0 Universidade Federal da Bahia Instituto de Letras Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística Rua Barão de Geremoabo, nº 147 – CEP: 40170-290 – Campus Universitário Ondina Salvador-BA Tel.: (71) 263-6256 – Site: www.ppgll.ufba.br – E-mail: [email protected] MRS. DALLOWAY E A REESCRITURA DE VIRGINIA WOOLF NA LITERATURA E NO CINEMA por CARLOS AUGUSTO VIANA DA SILVA Orientador: Prof. Dr. Décio Torres Cruz Co-Orientadora: Profª. Dra. Eliana Paes Cardoso Franco SALVADOR 2007 1 Universidade Federal da Bahia Instituto de Letras Program a de Pós-Graduação em Letras e Lingüística Rua Barão de Geremoabo, nº 147 – CEP: 40170-290 – Campus Universitário Ondina Salvador-BA Tel.: (71) 263-6256 – Site: www.ppgll.ufba.br – E-mail: [email protected] MRS. DALLOWAY E A REESCRITURA DE VIRGINIA WOOLF NA LITERATURA E NO CINEMA por CARLOS AUGUSTO VIANA DA SILVA Orientador: Prof. Dr. Décio Torres Cruz Co-Orientadora: Profª. Dra. Eliana Paes Cardoso Franco Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística, da Universidade Federal da Bahia – UFBA, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Letras, no Curso de Doutorado em Letras e Lingüística. SALVADOR 2007 2 Aos meus pais, Augusto e Neuza 3 AGRADECIMENTOS A todos os colegas, professores e funcionários do Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística da UFBA, já que de alguma maneira colaboraram para a elaboração desta tese. Aos professores das disciplinas que cursei na UFBA – Rosa Virginia, Ilza Ribeiro, Denise Chaeyerl e Florentina Sousa, pelas relevantes discussões sobre Lingüística, Lingüística Aplicada e Estudos Culturais. Às professoras Vera Santiago, pelas importantes sugestões, por ocasião do Exame de Qualificação, e Eliana Franco, pelas contribuições fundamentais na co-orientação desta tese. À CAPES, pela concessão da bolsa, no período de 2003 a 2005, para desenvolvimento da pesquisa. Ao meu amigo D. Henrique, pelas ajudas constantes com o computador e na revisão desta tese. Aos colegas do colegiado do Curso de Letras da FECLESC/UECE, pelo incentivo. A todos aqueles que fizeram e fazem parte da minha trajetória, principalmente à minha família e aos meus amigos – o meu grande patrimônio. E agradeço especialmente ao professor Dr. Décio Torres Cruz, pelo privilégio de sua valiosa orientação. 4 “Who would have thought that a book based on the lives of women in three different eras, all connected via a book, Virginia Woolf’s “Mrs. Dalloway”, would become a best-seller and this year’s darling of the movie awards, winning two Golden Globes for Best Picture and Best Actress and generating a powerful dose Oscar buzz?” (Curt Degenhart) 5 RESUMO Esta tese investiga a reescritura do universo literário de Virginia Woolf para a literatura e para o cinema, por meio da observação das reescrituras do romance Mrs. Dalloway (1925): o filme Sra. Dalloway (1997), de Marleen Gorris; o livro As Horas (1998), de Michael Cunningham; e o filme As Horas (2002), de Stephen Daldry. Partimos da hipótese de que as narrativas reescritoras são mais tradicionais, têm novo arranjo linear e não seguem uma tendência vanguardista, devido, principalmente, ao estilo dos tradutores. Para comprovarmos tal hipótese, analisamos algumas estratégias de tradução, empregadas na criação de imagens de Woolf para os novos públicos, levantando, em cada narrativa, questões gerais sobre o enredo e a construção do tempo e do espaço. As estratégias observadas, no filme Sra. Dalloway, foram as seguintes: linearidade (organização narrativa), flashback, voice-over e montagem. No filme As Horas as estratégias foram as seguintes: delineação do enredo (criação de três histórias paralelas), continuidade de elementos imagéticos (montagem), silêncio e expressões dos atores/atrizes e múltiplas perspectivas. A análise levou-nos a concluir que essas narrativas têm formatos próprios (como arranjo linear particular) e não seguem a tendência vanguardista do texto de Woolf, devido às questões inerentes ao meio cinematográfico (ampliação de público, criação de narrativas lineares, influência da narrativa clássica hollywoodiana, etc), mas, principalmente, devido ao estilo e concepção de criação dos próprios tradutores. A análise fundamenta-se na idéia de reescritura de Lefevere (1992), como um tipo de tradução, na concepção de tradução dos Estudos Descritivos de Toury (1995) e da teoria dos polissistemas de Even-Zohar (1990) e em alguns estudos que tratam da relação literatura e cinema, tais como Bordwell (1985), Vanoye & Goliot-Lété (1994), Aumont et al (1995) e Cruz (1997). Palavras-chave: Cinema; Literatura; Reescritura; Tradução 6 ABSTRACT This dissertation investigates the rewriting of Virginia Woolf’s literary universe to literature and to film, through the analysis of the rewritings of the novel Mrs. Dalloway (1925): the film Mrs. Dalloway (1998), directed by Marleen Gorris, the novel The Hours (1998), by Michael Cunningham, and the film The Hours (2002), directed by Stephen Daldry. Our hypothesis is that the rewriting narratives are more traditional, i.e. they have a new linear arrangement and do not follow an avant-garde tendency due, mainly, to their translators’ style. In order to confirm such hypothesis, we have analyzed some translation strategies, used in the creation of Woolf’s imagery to new audiences. In each narrative, general questions on plot and on the construction of time and space have been taken into account. The strategies observed in the film Mrs. Dalloway were the following: linearity (narrative organization), flashback, voiceover, and montage; in the film The Hours, the following strategies have been investigated: delineation of plot (the creation of three parallel stories), continuity of image elements (montage), silence and actors/actress’s expressions, and multiple perspectives. The analysis led us to conclude that these narratives have their own format (with a particular linear arrangement) and do not follow the avant-garde tendency of Woolf’s novel due not only to the questions inherent in the cinematographic medium (the increase of the audience, the creation of linear narratives, influenced by the classic Hollywoodian narratives, etc), but also to the translators’ style and conception of creation. The analysis is based on Lefevere’s idea of rewriting as a sort of translation (1992); on the conception of translation in Toury’s Descriptive Studies (1995), on Even-Zohar’s polysystem theory; and on some studies that deal with the relationship between literature and cinema such as Bordwell (1985), Vanoye & Goliot-Lété (1994), Aumont et al (1995) and Cruz (1997). 7 LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Diagrama triangular de Ogden e Richards .......................................................41 Figura 2 – “nascemorre” ..................................................................................................51 Figura 3 – “Tradução Intersemiótica”...............................................................................51 Figura 4 – Reprodução de um momento do passado da personagem............................... 136 Figura 5 – Descrição cênica do aeroplano ...................................................................... 144 Figura 6 – Descrição do presente e do passado da personagem....................................... 147 Figura 7 – Apresentação do espaço da personagem ........................................................ 150 Figura 8 – Alternância de imagens ................................................................................. 157 Figura 9 – Compra de flores no Mulberry’s.................................................................... 161 Figura 10 – Preparação final para a festa ........................................................................ 162 Figura 11 – Primeira situação comum entre as personagens ........................................... 192 Figura 12 – Atividades individuais das personagens....................................................... 199 Figura 13 – Ligação entre as personagens ...................................................................... 200 Figura 14 – Flores como elemento de transição.............................................................. 206 Figura 15 – Atitudes reveladoras de comportamentos..................................................... 211 Figura 16 – Criação de espaços fílmicos, do ponto de vista das personagens .................. 211 8 SUMÁRIO INTRODUÇÃO.............................................................................................. 09 1 OS ESTUDOS DE TRADUÇÃO, A REESCRITURA E A TRANSMUTAÇÃO ....................................................................................... 16 1.1 OS ESTUDOS DESCRITIVOS DE TRADUÇÃO....................................................... 16 1.2 A REESCRITURA QUE É UM TIPO DE TRADUÇÃO: CONSIDERAÇÕES SOBRE A TEORIA DAS REFRAÇÕES............................................................................................ 24 1.3 A INTERSEMIOSE ENTRE AS LINGUAGENS LITERÁRIA E CINEMATOGRÁFICA.................................................................................................... 39 2 A HIBRIDIZAÇÃO DOS GÊNEROS: UM DIÁLOGO ENTRE O DISCURSO LITERÁRIO E O DISCURSO CINEMATOGRÁFICO........ 56 2.1 CONSIDERAÇÕES GERAIS ..................................................................................... 56 2.2 A POÉTICA DA NARRATIVA LITERÁRIA ............................................................. 69 2.3 A POÉTICA DA NARRATIVA CINEMATOGRÁFICA ............................................ 83 2.4 O TEMPO E O ESPAÇO NAS NARRATIVAS LITERÁRIA E FÍLMICA .................. 92 3 MRS. DALLOWAY E A REESCRITURA DE VIRGINIA WOOLF NO CINEMA....................................................................................................... 110 3.1 MRS. DALLOWAY, DE VIRGINIA WOOLF............................................................. 110 3.2 SRA. DALLOWAY, DE MARLEEN GORRIS ............................................................ 133 3.2.1 Linearidade (organização narrativa) .................................................................. 134 3.2.2 Flashback ........................................................................................................... 144 3.2.3 Voice-over .......................................................................................................... 152 3.2.4 Montagem........................................................................................................... 156 4 AS HORAS E A REESCRITURA DE MRS. DALLOWAY NA LITERATURA E NO CINEMA ................................................................. 166 4.1 AS HORAS, DE MICHAEL CUNNINGHAM............................................................ 166 4.2 AS HORAS, DE STEPHEN DALDRY ...................................................................... 189 4.2.1 Delineação do enredo (três histórias paralelas).................................................. 189 4.2.2 Continuidade de elementos imagéticos (montagem) ............................................ 200 4.2.3 Silêncios e expressões de atores/atrizes............................................................... 210 4.2.4 Múltiplas perspectivas (o olhar do outro) ........................................................... 215 CONCLUSÃO .............................................................................................. 225 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................ 229 REFERÊNCIAS FILMOGRÁFICAS......................................................... 242 9 INTRODUÇÃO A reescritura de textos literários para outros meios de linguagem tem sido cada vez mais fonte de discussão pela natureza dialógica existente na relação entre a literatura e outras mídias. Esse diálogo constante se dá pela tradução de linguagem que ocorre na interação entre os campos. No caso da literatura e do cinema, por exemplo, o processo pode ter mão dupla, ou seja, algumas obras literárias se transformam em filmes e alguns roteiros cinematográficos se transformam em livros. Em ambos os casos, a reescritura favorece a difusão do texto de origem. Diante dessa condição de “mistura dos gêneros” (GEERTZ, 2000, p.33) entre os campos, em que cada vez mais as fronteiras entre as artes se embaralham, a tradução se estabelece na zona limiar para dar conta das questões relacionadas à “transposição” de uma linguagem para outra, conforme salientou Cruz (1997, p.2). Nesse sentido, a reescritura do texto literário é vista nos estudos atuais de tradução como uma instância do fenômeno tradutório. É um novo tipo de tradução que legitima as variadas formas pelas quais os textos são difundidos nos sistemas literários. Um exemplo pessoal sobre a questão merece destaque. Na década de oitenta, eu ouvia em vinil a canção “Wuthering Heights”, cantada por Kate Bush e, durante muito tempo, ela representava para mim apenas uma música agradável e, talvez, romântica, pela melodia, já que, naquele momento, ainda não tinha o conhecimento da língua inglesa. Em 1996, estudando Letras, na Universidade Estadual do Ceará, cursando a disciplina Literatura Inglesa I (Prosa em Língua Inglesa), descobri que, na verdade, a música fazia referência a um dos maiores romances da língua inglesa (O Morro dos Ventos Uivantes), escrito por Emily Brontë em 1847. A partir de então, pelo menos para mim, Wuthering Heights passou a ter duas dimensões: o texto de Brontë e a reescritura de Bush. Mas, será que para a grande maioria do público brasileiro haveria também essas mesmas dimensões? 10 Provavelmente, não, pois, para esse público, a música divulgada nas mídias da época continua sendo o texto o texto de partida. O reconhecimento de um fenômeno desses como tradução se deve, principalmente, à reformulação das teorias de tradução e ao surgimento de novas propostas de análise que levam em consideração não somente o produto, como faziam as análises prescritivas, mas também o processo. Com essa nova postura, muitos estudos na área de tradução audiovisual tentam sistematizar teorias e métodos para darem conta do processo e apontam a cada dia novas possibilidades para entender como se dão as reescrituras, seja pela tradução da linguagem verbal para a não-verbal, isto é, a tradução intersemiótica, conforme definida por Jakobson (1991), seja pela tradução da própria linguagem literária de um contexto para outro. A investigação da questão da reescritura de obras literárias para outras linguagens e/ou contextos é, certamente, um campo frutífero de estudo, mas ainda pouco explorado no nosso país. Se levarmos em conta as inúmeras obras da nossa literatura reescritas para as telas e as inúmeras obras das literaturas estrangeiras que foram traduzidas através do cinema para o espectador brasileiro, podemos inferir que o processo de reflexão sobre essas práticas precisa ser expandido no contexto acadêmico. Embora as pesquisas sobre tradução tenham avançado bastante nesse sentido, é ainda a teoria literária e a semiótica que se ocupam predominantemente com essa questão. Talvez esse fato se justifique por uma resistência, por parte de alguns estudiosos, principalmente, da literatura, que ainda persiste em relação à nova visão de tradução, que é a de dar ao texto traduzido nas telas a condição de texto autônomo e produtor de significado. E isso, certamente, fere os princípios tradicionais do “original”. Não é difícil observarmos esse fenômeno na crítica cinematográfica, por exemplo, em que, na maioria dos comentários, o filme é posto como uma “adaptação” da obra de partida por meio de análises comparativas. 11 A tradução intersemiótica ou transmutação discute o processamento das duas linguagens e coloca o texto de partida (o romance, o conto, uma peça etc) no sistema cinematográfico, intermediando para o espectador o resultado de uma leitura, permitindo, ainda, a possibilidade de várias outras leituras, assim como toda tradução o é: uma reescritura, uma reinterpretação. Lefevere (1992), ao levantar essa questão da reescritura, discute a multiplicidade de interpretações a que um texto é submetido ao ser traduzido. O autor argumenta que as interpretações se apresentam por meio de vários textos, tais como resumos, resenhas críticas em revistas ou jornais, representações em palcos ou nas telas e pela própria tradução. Todos esses textos, produzidos a partir de leituras são, na visão de Lefevere, importantes porque difundem-se e alcançam leitores de todos os níveis. O romance Mrs. Dalloway (1925), da escritora inglesa Virginia Woolf, traduzido para o cinema e para a literatura, por exemplo, insere-se nessas questões, pois o discurso literário da autora foi traduzido/reescrito para outros sistemas, criando uma imagem da sua obra para o leitor/espectador. O presente estudo investiga a reescritura do universo literário de Virginia Woolf para os novos meios e contextos de linguagens, por meio da análise das reescrituras de Mrs. Dalloway para a literatura e para o cinema. Essas reescrituras são três narrativas: o filme Sra. Dalloway (1997), de Marleen Gorris; o livro As Horas (1998), de Michael Cunningham; e o filme As Horas (2002), de Stephen Daldry. O romance Mrs. Dalloway apresenta inovações em sua estrutura, como a formulação do tempo, do espaço, da própria sintaxe e na sua tessitura como um todo. Dessa forma, o romance diferencia-se das narrativas tradicionais e passa a ser considerado um romance de vanguarda. A preocupação desse construto narrativo não é na ação narrativa, propriamente dita, mas na introspecção, na apreensão do mundo particular dos personagens e 12 lida, predominantemente, com processos mentais. Por tal razão, essa narrativa é também considerada romance impressionista, que apresenta leitura densa e de difícil compreensão. Devido a esses aspectos particulares da narrativa de Virginia Woolf, levantamos questões quanto à tradução desse complexo universo literário da autora para a linguagem do sistema cinematográfico, ou seja, um conjunto organizado de elementos interrelacionados, ligados à estrutura do texto fílmico, e do próprio sistema literário. O sistema cinematográfico, como sabemos, tem como princípio básico o enredo e a ação, exatamente o que não é o mais importante para o desenvolvimento do discurso literário de Woolf. Perguntamos, então, se a tradução de uma narrativa tão particular da escritora, de reconhecimento estilístico marcado, teria recebido o mesmo tratamento de quebra de paradigma e, consequentemente, semelhante impacto vanguardista no sistema cinematográfico ou teria sido transformada numa narrativa mais aproximada da narrativa clássica? Como os tradutores (escritor, diretores e roteiristas) lidam com essa narrativa nos novos contextos? O objetivo da pesquisa é, por meio da observação das reescrituras, investigar estratégias de tradução na reescritura da obra de Woolf na criação de imagens do universo literário para novos públicos. Partimos da hipótese de que as narrativas reescritoras são mais tradicionais, têm novo arranjo linear e não seguem uma tendência vanguardista, devido, principalmente, ao estilo dos diretores. Isso se dá, principalmente, pela apresentação de narrativas com ênfase no enredo, redimensionando, assim, o universo literário da autora para o espectador. O novo formato dado à narrativa impressionista de Woolf reescreve o seu discurso literário e consolida, por meio do cinema e da literatura, a sua imagem para outros sistemas. A indagação surgiu do estudo da tradução cinematográfica de Mrs. Dalloway em minha pesquisa de mestrado, cuja análise revelou que o novo tratamento dado ao enredo do filme teria resignificado o texto de Woolf por meio de uma proposta mais linear. 13 Um outro motivo que me impulsionou a investigar a questão da reescritura foi a partir de minha experiência em sala de aula de Literaturas de Língua inglesa. Ao trabalhar com os alunos os textos literários em inglês, comecei a perceber que eles procuravam outras formas de reescrituras desses textos como antologias, ensaios, resenhas críticas, e, principalmente, filmes, para suplementar a leitura desse texto. Vale lembrar que se trata de alunos de graduação e, na sua grande maioria, já professores da língua, ou seja, são alunos capazes de lerem na língua estrangeira. Diante desse fenômeno, começamos a nos inquietar e passar a olhar com maior cuidado o funcionamento dessas reescrituras como fonte importante pela busca dos textos de partida ou da interpretação deles. Ao contrário do que pensávamos até então, a reescritura tem um papel importante no sistema literário, pois tem o poder de refratar os textos e pode ser um forte aliado para o professor de literatura. Parti do seguinte pressuposto: se, para os alunos de formação em língua estrangeira, capazes de lerem em inglês, as reescrituras são um meio importante de entrar em contato com o universo literário, isso seria ainda mais aplicado ao leitor comum. Uma outra constatação, fruto da experiência em sala de aula, é que para os textos recomendados para leitura, que são considerados como “difíceis”, há uma grande tendência dos alunos a consultarem também reescrituras. Nesse caso, enquadra-se a narrativa de Virginia Woolf que, por utilizar a técnica do fluxo da consciência, torna-se um texto “complexo” para o leitor não especializado. Esse é um outro motivo, pelo qual optamos por trabalhar com Mrs. Dalloway e suas reescrituras nesta tese. O corpus da pesquisa é constituído de quatro narrativas: dois romances e dois filmes: o romance de partida Mrs. Dalloway (1925), escrito por Virginia Woolf; o filme Sra.. Dalloway (1997), dirigido por Marleen Gorris; o romance As Horas (1998), escrito por Michael Cunningham; e o filme As Horas (2002), dirigido por Stephen Daldry. Para o 14 desenvolvimento da análise desse corpus, partimos do romance Mrs. Dalloway até a reescritura mais recente pelo fato de tratarmos das imagens por ela criada. Primeiro, delinearemos o construto narrativo dos romances, com base em aspectos da construção narrativa: considerações gerais sobre o enredo, a construção do tempo e do espaço. A escolha desses aspectos se deve à importância que eles exercem na articulação do discurso literário de Woolf. Em seguida, discutiremos, também, os mesmos aspectos de construção narrativa para os filmes, mas, além disso, descreveremos e analisaremos algumas estratégias de tradução, utilizadas nessa construção. No filme Sra. Dalloway, descreveremos as seguintes estratégias: linearidade (organização narrativa); flashback; voice-over; e montagem. No filme As Horas, as estratégias são as seguintes: delineação do enredo (criação de três histórias paralelas); continuidade de elementos imagéticos (montagem); silêncio e expressões dos atores/atrizes; e múltiplas perspectivas (o olhar do outro). É importante enfatizar que as estratégias descritas não são, necessariamente, as mesmas nos dois filmes. Isso se deve ao fato de que a estratégia é analisada de acordo com a relevância que ela tem na construção de cada uma das narrativas. Finalmente, refletiremos sobre o papel dessas estratégias e os efeitos por elas causados sobre o formato dos textos reescritores. Vale ressaltar que as reflexões e as questões levantadas na análise do corpus são resultados da minha leitura, tanto da obra de Virginia Woolf quanto das reescrituras. No entanto, as leituras são reguladas e fundamentadas pelos princípios da literatura (teoria e crítica), pelas teorias de tradução, pelos estudos fílmicos, pela crítica cinematográfica e pelas próprias reescrituras dos textos nas diferentes mídias. O estudo é fundamentado em algumas posições teóricas que nos possibilitam a discussão de todas as questões postas e o desenvolvimento da análise proposta. Os princípios da tradução intersemiótica, discutidos por Plaza (2001), fornecem-nos elementos para o entendimento do processo de transmutação do signo de um sistema para outro. A visão de 15 tradução como reescritura, de Lefevere (1992), possibilita-nos a perceber a reescritura como uma tradução do romance de Woolf para a literatura e o cinema como uma reescritura do universo literário da autora. A discussão sobre a relação cinema e literatura e sobre os próprios estudos fílmicos são subsidiados por autores, tais como Eisenstein (1929), Bordwell (1985), Goliot & Lété (1994), Aumont et al (1995), Brito (1995), Coutinho (1996), Cruz (1997), Metz (1997) e outros. Para a condução da análise, os pressupostos dos estudos descritivos de tradução de Toury (1995) e da teoria dos polissistemas de Even-Zohar (1990) são importantes e subjazem todas as discussões. O primeiro, pelo fato de considerar o texto traduzido sob o ponto de vista do sistema de chegada. O segundo, por conceber a tradução como diálogo constante com as estruturas sociais, o que caracteriza uma ampliação do conceito. A tese está subdividida em quatro capítulos. Os dois primeiros formam o arcabouço teórico. O primeiro apresenta questões sobre os estudos descritivos de tradução, sobre a idéia de reescritura como um tipo de tradução e sobre a tradução intersemiótica. O segundo descreve as especificidades da literatura e do cinema. Traça um perfil da poética de cada um dos campos, levando em consideração a estrutura, o discurso e o trânsito dialógico entre as narrativas literária e cinematográfica e a articulação do tempo e do espaço nas narrativas literária e fílmica. Os terceiro e quarto capítulos apresentam a análise do corpus. A partir da delineação do construto narrativo das reescrituras, observamos essa delineação em relação ao texto de partida, investigando como os tradutores lidaram com a construção de imagens do universo de Woolf nos textos reescritores. 16 1 OS ESTUDOS TRANSMUTAÇÃO DE TRADUÇÃO, A REESCRITURA E A Este capítulo propõe discutir questões relacionadas à tradução intersemiótica, ou seja, a transmutação dos signos verbais por meio de sistemas não-verbais. Para a presente discussão, levaremos em conta definições, classificações e, sobretudo, reflexões sobre a prática tradutória entre sistemas diferentes de linguagens. Levaremos em conta as discussões acerca das novas tendências nos estudos de tradução que abordam não somente o produto, mas também o processo. O capítulo está subdividido em três seções. A primeira seção trata dos pressupostos teóricos dos estudos descritivos e as novas abordagens de análises do texto traduzido. A segunda, discute a reescritura como uma instância da tradução. A terceira seção aborda a questão da intersemiose entre as linguagens literária e cinematográfica. 1.1 OS ESTUDOS DESCRITIVOS DE TRADUÇÃO Com o advento dos estudos das novas teorias da tradução, como a Desconstrução, os Estudos Descritivos, o conceito de Reescritura como tradução, uma nova atitude se estabeleceu no processo tradutório de forma bastante pertinente. Os métodos de análise teórico-prescritivos, que davam à tradução um caráter de transcrição de uma língua-fonte para uma língua-alvo, tinham como base a idéia da equivalência entre os textos. As novas perpesctivas de análises passaram, com o avanço dessas novas teorias, a ser descritivas. Não se considera, pelo menos à luz delas, a tradução como resultado de equivalências ou fidedignidade com um texto “original”, mas sim um estudo que leva, também, em consideração o processo, o contexto e o público receptor. 17 Os estudos tradicionais de tradução tinham como característica principal a ênfase na questão da literariedade e da equivalência, as chamadas teorias lingüísticas da tradução. Cristina Rodrigues (2000, p.25-26) apresenta três vias produtivas de contato entre lingüística e tradução: uma via foi a de Nida, a outra, de Catford, e uma terceira seguida pela lingüística contrastiva. John Catford estabelece, em seu quadro de análise, a busca por uma sistematização lingüística da tradução, tendo como base a idéia de equivalência. Eugene Nida, por sua vez, usa a lingüística como um instrumental para análise e solução de questões de tradução. O autor também utiliza a idéia de equivalência, mas, diferente de Catford, trata da equivalência dinâmica, ou seja, sugere que o tradutor precisa manter equilíbrio de redundância, no sentido de manter proporção semelhante de informação nova e informação previsível sem sobrecarregar o canal de comunicação. Nesse sentido, Nida está muito mais preocupado com o receptor e a reprodução de mensagens equivalentes do que com a combinação das partes do enunciado, uma vez que se baseia na teoria da comunicação. E a lingüística contrastiva caracteriza-se pelo uso da tradução para fornecer critérios básicos para a comparação entre línguas. Para Rosemary Arrojo (2000, p.12), Catford percebe a tradução como um veículo de substituição do texto da língua de partida pelo seu equivalente na língua de chegada. Mary Snell Hornby (1995, p.15), também discutindo a postura teórica de Catford, afirma que a questão central na prática de tradução, para ele, é a procura dos equivalentes, dando à teoria o poder de definir a natureza e a condição dessas equivalências. Nessa perspectiva, a tradução passa a ser apenas um transporte de significado de uma língua para outra, dando ao texto traduzido uma limitação na sua dimensão interpretativa por se restringir à idéia de transferir o mesmo termo para a língua de chegada, conforme discute Arrojo: 18 Se pensarmos o processo de tradução como transporte de significados entre língua A e língua B, acreditamos ser o texto original um objeto estável, “transportável”, de contornos absolutamente claros, cujo conteúdo podemos classificar completa e objetivamente. Afinal, se as palavras de uma sentença são como carga contida em vagões, é perfeitamente possível determinarmos e controlarmos todo o seu conteúdo e até garantirmos que seja transposto na íntegra para outro conjunto de vagões. Ao mesmo tempo, se compararmos o tradutor ao encarregado do transporte dessa carga, se restringe a garantir que a carga chegue intacta ao seu destino. Assim, o tradutor traduz, isto é, transporta a carga de significado, mas não deve interferir nela, não deve “interpretá-la” (ARROJO, 2000, p.12). A discussão acima sintetiza bem a visão tradicional de se perceber o processo tradutório, visto como um fenômeno muito mais lingüístico e isolado, resultado de um processo estático que não leva em consideração as questões do contexto no qual a tradução está ocorrendo. A visão de tradução, em questão, torna-se problemática, pois desconsidera os fenômenos institucionais, culturais e políticos, que regem o processo tradutório. Ademais, forja um apagamento do tradutor como se fosse possível a sua total invisibilidade diante da tarefa, já que pressupõe a chegada de “uma carga intacta” a seu destino final, como se o tradutor não fosse, antes de tudo, um leitor, e o texto a ser traduzido não fosse passível de interpretações. Walter Benjamin, em 1923, já se posicionava diante desse fato, discutindo os problemas da literariedade impostos pelas teorias tradicionais de tradução, apontando novas perspectivas na maneira de conduzir os estudos: Uma teoria que busca na tradução só a reprodução de sentido não mais parece ser de valia. É verdade que seu emprego tradicional sempre toma esses conceitos como uma antinomia insolúvel. Pois a que pode propriamente conduzir a fidelidade à repetição do sentido? Fidelidade, na tradução, de cada palavra, não assegura que se reproduza o pleno sentido que ela tem no original. Pois este não se esgota em sua significação poética conforme o original, mas a adquire pela forma como o significado se une ao modo de significar a palavra em questão (BENJAMIN, 1992, p.xvii). Percebemos que, tanto em Arrojo quanto em Benjamin, existem severas críticas à idéia de tradução como um simples veículo de transporte de significados de uma língua para outra. Tais críticas contribuem para o questionamento sobre os conceitos de equivalência, 19 literariedade e fidelidade, tão enfatizados nas análises tradicionais. Implicitamente, instaura-se uma nova proposta, que contribui bastante para o avanço nas investigações sobre o fenômeno tradutório. A partir do final da década de setenta, os estudos de tradução se expandiram e se transformaram em uma disciplina. Esses estudos dialogam com várias áreas do conhecimento que incluem Lingüística, Literatura, História, Antropologia, Psicologia e outras. Diferentemente das teorias lingüísticas, as teorias de tradução nesse novo momento são, de certa forma, um veículo de difusão de idéias em diferentes sistemas do conhecimento. Um exemplo importante para ilustrar a mudança de perspectiva puramente lingüística nos estudos de tradução é a teoria skopos postulada, principalmente, por Hans Vermeer (1992, p.44-45). De acordo com os postulados da teoria, a tradução passa a ser vista sob uma perspectiva funcional e sociocultural. Ou seja, a tradução é funcionalmente adaptada aos objetivos e aos contextos específicos. A teoria skopos contribui para colocar o texto de chegada em foco. A tradução funciona como um texto e, como tal, não é mais determinada primeiramente pelo texto de partida, mas pelo seu próprio skopos (seu propósito), mudando o olhar sobre os estudos de tradução. Enquanto as análises tradicionais se limitavam a avaliar um determinado texto traduzido, sob o ponto de vista da língua de partida, observando, principalmente, aspectos relacionados à fidelidade ou não ao texto traduzido, as novas propostas de análise levam em conta a tradução numa dimensão muito maior, ou seja, focaliza-se na função que ela exercerá na comunidade receptora. Na perspectiva tradicional, a análise se concentrava sobre o produto da tradução como único objeto de investigação. Nessa nova perspectiva, a análise deve também levar em consideração todo o processo tradutório, e o próprio contexto passa a ser relevante para se entenderem as estratégias de tradução e a sua recepção no contexto de chegada. 20 José Lambert & Hendrik Van Gorp (1985, p.50-51) tratam dessa abordagem como sendo de natureza sistêmica e reconhecem que a relação da tradução com o contexto é bastante discutida entre os estudiosos. No entanto, acrescentam que é preciso combinar e conectar sistematicamente todos os aspectos tanto nos níveis inter-sistêmico quanto no intrasistêmico. Isso que dizer que todos os aspectos do processo de tradução devem ser descritos e discutidos por meio de uma análise que considere não somente o sistema que envolve o autor e o texto, mas também o leitor e o sistema receptor da tradução como um todo. O princípio dos estudos descritivos de Gideon Toury está associado a essa idéia. O autor, ao postular sua teoria, esclarece: Se optamos por concentrar esforços nos textos traduzidos e/ou em seus constituintes, em suas relações intertextuais, em seus modelos e normas de comportamento de tradução ou em estratégias recorrentes à solução de problemas particulares, o que constitui o objeto de uma disciplina propriamente dita de Estudos de Tradução são mais fatos (de observação ou de reconstrução) da vida real do que simplesmente entidades especulativas resultantes de hipóteses preconcebidas e modelos teóricos. É, portanto, por sua própria natureza, empírico e deve ser trabalhado como tal (TOURY, 1995, p.1).1 Por meio do pensamento acima, Toury esclarece a sua postura em relação às novas formas de se lidar com os objetos nos estudos de tradução. O objetivo das investigações não é mais prescrever normas para o processo, nem procurar erros, mas a busca de uma descrição de comportamentos regulares dos tradutores para que entenda como as traduções são feitas. Isso seria o cerne das questões teóricas, desenvolvidas por esses estudos. A tradução, na perspectiva de Toury, centra-se no pólo receptor e tenta sistematizar um método de análise que consolida a interação do texto traduzido com o sistema 1 Todas as traduções sem referências, ao longo desse trabalho, são do autor. Whether one chooses to focus one’s efforts on translated texts and/or their constituents, on intertextual relationships, on models and norms of translational behaviour or on strategies resorted to in and for the solution of particular problems, what constitutes the subject matter of a proper discipline of Translation Studies is (observable or reconstructable) facts of real life rather than merely speculative entities resulting from preconceived hypotheses and theoretical models. It is therefore empirical by its very nature and should be worked out accordingly. 21 receptor. O método em questão é uma elaboração da teoria dos polissistemas desenvolvida por Itamar Even-Zohar (1990) da escola de Telavive. De acordo com Else Vieira (1996, p.124), a teoria teve seus alicerces na orientação histórica dos formalistas de Leningrado, no Estruturalismo de Praga e na semiótica russa. Sua formulação traz grandes contribuições para a contextualização da tradução, já que trata da interação entre o meio e o ato de traduzir, considerando, nas análises, todo o aparato organizacional social do sistema literário a que se propõe traduzir. A teoria dos polissistemas pressupõe que as normas sociais e as convenções literárias na cultura de chegada ditam as pressuposições estéticas dos tradutores e, como conseqüência, afetam suas decisões no momento da tradução. Nesse contexto, o processo tradutório passa a ser bem mais amplo. Como reforçam André Lefevere (1992) e Toury (1995), a teoria da tradução parece transcender os aspectos lingüísticos. Nessa nova visão, o processo da tradução tenta descrever não somente o processo de transferência de um único texto, mas o processo de produção de tradução que possa transformar o sistema literário como um todo. Clem Robyns (1994, p.406-409), por meio da noção ampliada de tradução, corrobora essa idéia de transformação do sistema. Ao discutir a tradução e a identidade discursiva, o autor propõe que os discursos de chegada devem ser estudados e não somente as culturas e os textos isoladamente, pois esses elementos representam apenas tipos específicos de práticas discursivas que estão inseridas num conjunto de outras práticas dentro de um sistema cultural. Nesse sentido, a tradução poderia ser redefinida como a migração e a transformação de elementos discursivos entre discursos diferentes (literário, acadêmico, político, cinematográfico, etc) em que cada um desses discursos pode ser descrito como ocupante de uma posição no sistema maior e como fundador de seu próprio sistema. 22 Even-Zohar (1990, p.12) refere-se à teoria dos polissistemas como uma correlação de sistemas literários e não-literários com a sociedade. O autor percebe o sistema literário como um conjunto de fenômenos semióticos que são agregados dinâmicos e, como um sistema não é apenas sincrônico e diacrônico, ele é também heterogêneo. Assim, o termo polissistema enfatiza a idéia de uma multiplicidade de relações na heterogeneidade da cultura. Por considerar essa heterogeneidade cultural, a teoria dos polissistemas rejeita a idéia de julgamento de valor e seleções elitistas, e, por essa razão, não tem a preocupação apenas com obras canonizadas. Entretanto, reconhece a existência de hierarquias culturais. Ao apoiar-se no pressuposto de movimento dinâmico de estratos dentro de um sistema de Tynianov, EvenZohar (1979, p.118) estabelece as relações centro-periferia para tratar dos movimentos centrífugos e centrípetos entre diferentes estratos no sistema. Nesse sentido, Even-Zohar corrobora a idéia de Tynianov no que diz respeito às tensões entre forças conservadoras ou inovadoras, políticas, tipos e modelos dentro da estrutura do sistema como um todo. Um outro ponto importante para a teoria de Even-Zohar é sobre o estatuto respectivo dos estratos, com base em Klovskij. O autor discute a desigualdade entre os vários estratos e a forma como estes se deslocam da posição canônica para a não-canônica e viceversa (EVEN-ZOHAR, 1979,119). O postulado de Even-Zohar é uma tentativa de explicar a função de diferentes tipos de textos numa dada cultura, desde os cânones literários até os mais marginais. O pensamento do autor reforça a idéia de que a tradução de um determinado texto está ligada a uma rede de relações sistêmicas, condicionadas a fatos sociais. Ou seja, o processo de tradução sofre limitações do contexto em que está inserido. Para apresentar a nova teoria, o autor argumenta que a tradução deve ser considerada não somente como uma simples reprodução de textos de um sistema para outro. Ao contrário, dá ao texto traduzido a condição de elemento integrante do sistema literário de um país, introduzindo a idéia de que toda tradução também faz parte da cultura de chegada. 23 Ao reconhecer todos os aspectos envolvidos no processo como relevantes para a tradução, Even-Zohar infere que: [1] O problema da traduzibilidade deve ser reformulado. Não é tão importante “descobrir” que é sempre pouco provável que um enunciado traduzido seja idêntico ao seu original. Uma questão mais satisfatória parece, ao invés, ser sob quais circunstâncias e de que forma particular, um enunciado/texto alvo b se relaciona (ou é relacionável) a um enunciado/texto-fonte a. [2] Visto que os procedimentos de tradução produzem certos objetos num sistema-alvo e que são hipoteticamente envolvidos nos processos de transferência (e procedimentos) em geral, não há razão para confinar as relações de tradução somente aos textos propriamente ditos (...) (EVENZOHAR, 1990, p.75).2 Percebemos, por meio desse posicionamento, o quanto Even-Zohar contribuiu para os estudos de tradução, já que mudou uma perspectiva de análise que ficava no âmbito da comparação de textos. Ao reconhecer as limitações que esse tipo de análise dava aos textos traduzidos, ampliou os estudos para uma compreensão mais histórica, social e cultural do funcionamento dos textos originais e dos textos traduzidos. Os princípios da teoria dos polissistemas formalizaram os estudos descritivos de tradução e estão associados ao conceito de reescritura de Lefevere (1992), o que será discutido na próxima seção, já que esse conceito configura-se como resultado de um desenvolvimento da teoria. Os pressupostos teóricos, em questão, são importantes para reforçar a nova dimensão contextual do conceito de tradução aqui proposto, que considera as diferentes leituras de uma obra literária para diferentes meios de linguagem como prática tradutória. 2 1) The problem of translability must be reformulated. It is of no great value to “discover” that it is always of a lower probability that a translated utterance be identical with its original. A more adequate question seems rather to be under what circumstances, and in what particular way, a target utterance/text b relates (or is relatable) to a source utterance/text a. 2) Since translational procedures produce certain products in a Target system, and since these are hypothesized to be involved with transfer processes (and procedures) in general, there is no reason to confine translational relations only to actualized texts (...). 24 1.2 A REESCRITURA QUE É UM TIPO DE TRADUÇÃO: CONSIDERAÇÕES SOBRE A TEORIA DAS REFRAÇÕES Um conceito importante para a ampliação das novas abordagens de análise do texto traduzido é o de reescritura, apresentado por Lefevere (1992), como uma forma de tradução. Segundo esse conceito, a tradução é a reescritura de um texto de partida e as reescrituras, segundo o autor, afetam profundamente a interpenetração dos sistemas literários, não somente pelo fato de projetar a imagem de um escritor ou uma obra em outra literatura ou por fracassar em fazê-lo, mas também por introduzir novos instrumentos no corpo de uma poética, delineando mudanças. Como exemplo dessas mudanças, Lefevere (1992) aponta o caso da ode que, segundo o autor, tornou-se um acessório do sistema literário francês na época da Pléiade, por meio de traduções do latim. Uma outra situação parecida ocorreu um pouco antes na Itália em que a ode, também inspirada nas traduções do latim, tinha imediatamente assumido o lugar ocupado pela canzone na poética do final da Idade Média (LEFEVERE, 1992, p.38-39). Com esse posicionamento, Lefevere compactua com os pressupostos teóricos que dão prioridade ao pólo receptor do sistema de chegada. Assim como Toury e Even-Zohar, Lefevere concebe a tradução como um sistema de interação com outros sistemas semióticos e como uma força de delineação de sua literatura. Segundo Vieira, além de compartilhar com essa idéia, Lefevere acrescenta novas direções, introduzindo novas dimensões, como a de “poder”. A autora complementa: Ele enfatiza o papel dos agentes de continuidade cultural, do contexto receptor na transformação de textos e criação de imagens de autores e culturas estrangeiras, bem como o da tradução na criação de cânones literários. Ou seja, as traduções, produzidas dentro dos limites ideológicos e poetológicos da cultura receptora, têm também um efeito retroverso ao criarem imagens da cultura e cânones transculturais (VIEIRA, 1996, p.138). 25 Nesse sentido, a tradução assume um diálogo permanente com as estruturas sociais e adquire uma grande autonomia e poder de transformação nas relações de formação do cânone de uma determinada obra. Ao ser posta dentro dos princípios da poética de um certo sistema de chegada, a tradução estabelece diálogos entre fronteiras culturais e se difunde por meio de diferentes linguagens e códigos. Lefevere (1982, p.3), ao discutir a teoria literária e a literatura traduzida, apresenta algumas fases de abordagem na análise da tradução literária. Até o início do século vinte, os estudiosos estabeleciam em suas análises um tipo de estética estilística comparativa. A idéia central era observar quão belas ou até sublimes certas expressões ou grupos de frases eram no texto de partida e quanto dessa “beleza” perdia-se na tradução. Essa postura, segundo o autor, favorecia a supervalorização de uma língua em detrimento da outra, estabelecendo uma forma de imperialismo lingüístico. No final do século dezenove, os estudiosos acreditavam que a análise da tradução literária seria capaz de funcionar como base para afirmações sobre problemas da filosofia lingüística ou até da psicologia da língua. Segundo Lefevere (1982:4), esse tipo de análise liderava afirmações sobre a psicologia de diferentes autores, especialmente naqueles casos em que um autor “original” traduzia outro. Como resultado desse tipo de abordagem, o autor conclui que: “isto levou à produção de trabalhos do tipo “X como tradutor de Y”, nos quais alguma afirmação era feita sobre X ou Y, ou sobre ambos, mas raramente sobre a tradução” (1982, p.4).3 O desenvolvimento da lingüística moderna mudou radicalmente o estudo de textos traduzidos. Os lingüistas interessados em tradução quase nunca analisavam traduções da literatura, porque eles as consideravam complexas demais. Nessa perspectiva de análise, que lida com elementos puramente lingüísticos, esse é um ponto de vista totalmente justificável. 3 “This led to the production of a number of monographs of the “X as translator for Y” type, in which some statement was often made about X or Y, or both, but rarely about translation” (LEFEVERE, 1982, p.4). 26 As abordagens em questão tentam construir modelos, ou, pelo menos, propor descrições do processo de tradução que fossem relevantes para o ensino da tradução. Um modelo construído com base na literatura traduzida teria que levar em conta todos os tipos de complexidades, tais como conotação, alusões ou características específicas de certos gêneros e formas, elementos que não estariam presentes, ou pelo menos nesses termos, em textos menos complexos, ou seja, os não-literários. Isso reforça o uso da noção de equivalência em que as análises tinham como base elementos lingüísticos ideais com a utilização de exemplos normalmente fictícios. Com o surgimento da tradução automática de textos, os esforços foram concentrados no estudo do processo de tradução, simplesmente porque um modelo operacional desse processo era absolutamente necessário para o funcionamento da máquina. Ao se excluir a literatura traduzida do estudo do processo de tradução, os lingüistas deram a impressão de que há mais ou menos dois processos diferentes de tradução: um válido para a tradução da literatura e outro para a tradução de qualquer texto não literário. A distinção entre possíveis diferentes processos de tradução levanta uma outra discussão que é a competência do tradutor nessas duas vertentes. Lefevere (1982, p.5) aponta que todas as traduções literárias têm sido representadas como “arte”. Assim, pode-se até afirmar que certas traduções literárias feitas sob essa competência têm sido aceitas como literatura da cultura alvo. Esse argumento parece plausível se observarmos o número de traduções de escritores estrangeiros em nosso país que nunca serão lidos, ou pelo menos lidos por poucos, na língua de partida. E, no entanto, são bastante lidos e até discutidos por meio da tradução, e poucos ou quase nenhum desses leitores se preocupam com o fato de tratar-se de uma tradução. Porém, a tentativa de isolar a especificidade da tradução literária em relação ao processo de tradução como um todo vem, na visão de Lefevere (1978, p.5), de um conceito de literatura ainda tacitamente aceito por muitos lingüistas e teóricos da literatura, que é a idéia 27 de linguagem “literária” em oposição à linguagem “comum” ou “coloquial”. Essa idéia é usada como um critério para traçar uma linha divisória entre os textos “literários” e “nãoliterários”, argumento insustentável na literatura contemporânea. Alguns exemplos que reforçam a quebra da oposição é o caso da poesia moderna que usou uma linguagem não muito distante da linguagem coloquial; e os romances modernos, especialmente os realistas, que usaram linguagem similar. Assim, no escopo da tradução, não se pode traçar uma distinção radical entre textos literários e não-literários. Lefevere (1982, p.5) sugere, em vez disso, uma distinção gradual. Essa distinção de natureza gradual tem implicações para a competência específica dos tradutores literários. O autor sustenta: Será obviamente de um tipo diferente da esperada dos tradutores que lidam com a bioquímica, voltando ao exemplo anterior. Mas isto não necessariamente implica que a competência esperada do tradutor de literatura deva ser algo concebido como de “caráter superior”. O tradutor de textos históricos, por exemplo, também tem a sua competência que é diferente tanto da do tradutor literário quanto da do tradutor de textos de bioquímica. Porém este não é um argumento plausível para se começar a estabelecer distinções entre tradução “literária, bioquímica, histórica, nuclear, dietética”. A subdivisão do processo de tradução dessa forma somente leva à total atomização: todo tipo de tradução teria que ter o seu próprio processo específico. 4 Com tal argumento, a discussão de Lefevere, em relação ao fazer tradutório, apresenta uma intenção de contextualizar o processo e questiona um discurso de superioridade dos tradutores literários. A discussão do impasse sobre a subdivisão ou não do processo de tradução e sobre a competência do tradutor torna-se mais produtiva quando o autor pressupõe uma transcendência aos aspectos lingüísticos e insere os fatores extra-lingüísticos, como pontos importantes para a análise de um texto traduzido, seja literário ou não-literário. 4 It will obviously be of a different kind than that expected of translators of texts dealing with biochemistry, to go back to a previous example. But this does not necessarily imply that the competence expected of the translator of literature should somehow be thought of as being “of a higher order”. The translator of historical texts, e. g., also has his or her competence, which is different from both that of the translator of literature and the translator of texts on biochemistry. Yet this is no valid reason to start establishing distinctions between “literary, biochemical, historical, nuclear, dietetic” translating. Subdividing the translation process in this way only leads to total atomization: every kind of translation would have to have its own specific process. 28 Assim, o ponto de vista de Lefevere converge para os princípios da teoria dos polissistemas de Even-Zohar (1990) e para os estudos descritivos de tradução, apresentados por Toury (1995). Ao propor a distinção gradual dos textos literários e não–literários, em vez da radicalização na distinção, o autor compactua com a idéia de que a tradução e o seu processo não podem mais estar ligados somente a questões lingüísticas. Portanto, não podem ser mais dissociados dos contextos e da cultura. A especificidade da competência do tradutor literário não se apresenta mais somente no nível do processo tradutório, mas também na forma como o produto, ou seja, a tradução, funciona na língua ou na cultura-alvo. Portanto, para Lefevere (1992, p.6), o estudo da literatura traduzida não deve contribuir somente para os estudos de tradução, mas também para o estudo da literatura como um todo. Apesar de Lefevere adotar princípios da teoria dos polissistemas, Vieira (1996, p.143) vislumbra um novo direcionamento dado pelo autor a essa teoria. Enquanto EvenZohar dinamiza a sua teoria pela interação de vários sub-sistemas literários, estabelecendo a posição de domínio que cada sub-sistema busca nos eixos sincrônicos e diacrônicos, Lefevere dinamiza a sua teoria pelo conceito de crescimento, resultado da interação de fatores intrínsecos e extrínsecos. Segundo a autora: Ao invés de sub-sistemas literários conflitantes, percebemos em Lefevere que a metaliteratura ou as refrações exercem um papel ancilar. É que elas propiciam o crescimento e a sobrevivência dos textos ou determinam seu ostracismo, e o resultado desse papel ancilar é que as refrações empurram uma literatura numa certa direção (VIEIRA, 1996, p.143). Para a sustentação dessa nova proposta, Lefevere (1982:6-13) traça uma separação fundamental entre dois conceitos de literatura e, conseqüentemente, duas vertentes de análise nos estudos literários: o conceito de corpus e o conceito de sistema. A vertente que lida com o conceito de corpus tem característica prescritiva e restringe a posição que a tradução pode ocupar no estudo da literatura. Lida com o conceito de tradução “boa” ou “ruim”, pois tem 29 como foco principal o texto literário como produto. Segundo o autor, essa concepção tem como base dois princípios essencialmente românticos: a noção de genialidade e a noção de sacralização do texto literário (noções que dividem a tradução literária das outras). Ambos os conceitos estão ligados aos mesmos princípios dos texto religiosos, ou seja, a genialidade representa a manifestação de algo divino no autor do texto. E se um texto literário é produto da genialidade, ele pode ser considerado “boa” literatura (canônica) e, conseqüentemente, pode ser usado como padrão para avaliação ou produção. Qualquer tentativa de deterioração desse texto torna-se quase um sacrilégio. É, portanto, um texto único e a sua tradução representa uma ameaça para o caráter único do “original” e, portanto, para o conceito exato de literatura com um corpus. Por isso, o texto não pode ser traduzido. Podemos perceber que, nessa vertente, há um corpus canônico sagrado como a noção central da teorização literária. Para apresentar a sua outra vertente, o autor usa simplesmente a idéia de “dessacralização” dos textos literários e acrescenta o conceito de sistema literário (LEFEVERE, 1982, p.13). Lefevere, de forma alguma, nega a importância que alguns textos literários assumem em determinados sistemas literários e na sociedade na qual a literatura está inserida. O que o autor nega é o fato de que esses textos existam, para todos os efeitos, somente na sua forma “única”, já que os textos literários são circundados pelo que ele chama de textos refratores. Os textos refratores são aqueles processados para determinadas audiências, ou adaptados para uma determinada poética ou para uma determinada ideologia. Como exemplo desse tipo de texto, Lefevere apresenta as dissertações produzidas na Alemanha Oriental entre 1933 e o presente. Os mesmos textos são facilmente adaptados (ele até fala que talvez “reduzidos” fosse a melhor palavra para se definir a questão) para os devidos contextos. Em ambos os casos, as ideologias desses contextos são radicalmente opostas. O processo de refração, segundo o autor, é para que ambos sobrevivam. 30 Um outro exemplo que poderíamos acrescentar para ilustrar a questão da refração de um texto por meio da ideologia é o caso da reescritura de textos para o público infantil. O sítio do Pica Pau Amarelo, com base na obra de Monteiro Lobato, por exemplo, está sendo reescrito para TV atualmente com leituras diferentes daquelas da década de oitenta. Essas novas releituras levam em conta o contexto sociocultural atual das crianças brasileiras, ao inserir elementos tais como os novos recursos tecnológicos (elementos visuais e sonoros) dos meios de comunicação e a própria contextualização da linguagem, que levam em conta a forma atual de interação entre as crianças. A releitura de Monteiro Lobato na TV entra em consonância com um posicionamento político do autor nas décadas de 30 e 40, por ocasião da tentativa de ampliar o mercado editorial brasileiro para um público maior. Segundo John Milton (2002, p.27), Lobato buscou popularizar o livro (incluindo as traduções), fazendo com que fosse vendido como mercadoria em lojas e bancas de jornais, produzindo capas atraentes, reduzindo, assim, muito da aura que o circundava, pois, para ele, a leitura deveria tornar-se uma atividade recreativa. A tradução passa, então, a desempenhar um papel fundamental no sistema literário brasileiro, como reforça Milton: O novo consumidor de classe média, ou de classe média baixa, muito provavelmente não conhecia línguas estrangeiras, não havia herdado biblioteca, não usufruía “capital cultural”, mas estaria preparado para ampliar o próprio conhecimento (MILTON, 2002, p.27). Na concepção de sistema de Lefevere, os textos refratores, ou metatextos, são os principais responsáveis pelo estatuto de canonização de um corpus, pois a própria poética de uma literatura já é uma refração, à medida que no momento da sua primeira formulação, ela reflete implícita ou explicitamente a prática dominante desse período. A partir das reescrituras, alguns textos literários saem da periferia do sistema para o centro. Segundo Vieira (1996, p. 143), é em meados da década de 80 que Lefevere gradualmente substitui o termo “refração” por “reescritura” e expande o construto teórico de 31 sistema. O uso do termo sistema, segundo Lefevere (1992, p.12), não tem relação com o termo Sistema (com letra maiúscula) nem tampouco com a conotação Kafquiana, no sentido de referir-se aos aspectos mais sinistros dos poderes. O sistema, para o autor, é “um termo neutro, descritivo e é usado para designar um conjunto de elementos interrelacionados que por acaso dividem certas características que os diferem de outros elementos que não pertencem ao sistema”.5 Ao estabelecer a operação do sistema literário, Lefevere (1992, p.14) aponta um mecanismo de controle partilhado por dois elementos: um interno e outro externo ao sistema. O elemento interno é representado pelos tradutores que reimprimem determinadas obras que contrariam a visão predominante do que deveria ser literatura (a poética), ou do que deveria ser a sociedade (ideologia). Esses profissionais, na maioria das vezes, reescrevem obras literárias até que elas se tornem aceitas na poética e na ideologia de uma determinada época ou lugar. No caso dos filmes, temos os roteiristas e diretores. O elemento externo é representado pelo poder, ou seja, pessoas, editores e instituições que auxiliam ou impedem a escrita, leitura ou reescritura de uma literatura e é denominado “patronagem”. Esse elemento está mais interessado na ideologia da literatura do que na poética e consiste basicamente de três componentes: o ideológico, o econômico e o status. O componente ideológico diz respeito às limitações na escolha e no desenvolvimento do objeto. O componente econômico diz respeito à questão da escrita e reescritura como meio de sobrevivência. E o status diz respeito à aceitabilidade por determinados grupos e seus estilos. Os dois elementos representam, na verdade, restrições e exercem influências sobre a escrita e a reescritura da literatura. Porém, além das restrições, outras também se configuram no cenário desse processo, tais como a idéia do “universo do discurso”, ou seja, um universo 5 A neutral, descriptive term, used to designate a set of interrelated elements that happen to share certain characteristics that set apart from other elements perceived as not belonging to the system. 32 formado pelos conceitos, pessoas, lugares e outros aspectos que afloram nos textos; a própria língua na qual o texto é reescrito; e no caso da tradução, o próprio texto de partida. Vieira (1996, p.144) apresenta a discussão de Lefevere: Lefevere ressalta também que pelo menos uma dessas restrições regula as atividades de reescrita literária. A reescrita, por sua vez, influencia os destinos da obra. A historiografia, por exemplo, faz, com a obra, como um todo, o que a crítica faz com textos individuais – ou a encaixa na corrente ideológica ou poetológica ou a reduz a escritas menores. Na mesma linha de raciocínio, a antologização tende a refletir os julgamentos da história literária e a moldar o gosto do público, principalmente o dos estudantes que são apresentados aos autores através de antologias. Observamos, por meio dessa posição, a interseção constante entre os textos e as restrições a que são submetidas as suas reescrituras dentro de um sistema. Observamos também que as reescrituras detêm um poder importante na formação do cânone e no estabelecimento do texto enquanto elemento pertencente ao sistema alvo. Nesse contexto, a tradução é também uma forma de reescritura, já que está sujeita a todas as modalidades de restrições, mas assume uma dimensão importante como sinal de abertura de um sistema alvo, por meio da manipulação de conceitos e palavras que representam o poder numa determinada cultura. Dessa forma, a tradução, na linha teórica de Lefevere, é concebida, assim como os estudos descritivos, como fenômeno de cultura pelas observações conferidas ao produto, já que a análise só pode ser feita a partir de um elemento concreto, o texto. Contudo, é também concebida como processo, pois esse elemento não é a única fonte a ser considerada. Portanto, valemo-nos dessa discussão teórica de Lefevere para observar e analisar o nosso corpus. Muitas são as razões pela quais optamos por tais princípios, mas o próprio fato de estarmos trabalhando com várias leituras de um romance já parece ser um argumento suficiente para justificar a escolha. A primeira questão que levantamos é o fato de estarmos lidando também, em nossa análise, com a tradução de objetos de linguagens diferentes, sendo descartada qualquer possibilidade de emprego de métodos lingüísticos de análise de tradução. Esse posicionamento, provavelmente, reduziria a análise ao estudo de “equivalências” entre 33 aspectos da obra “original”, os romances e os filmes, considerando o grau de fidelidade que o tradutor teria conferido à tradução. A outra questão é que, ao lidarmos com a tradução nesses termos, estamos contribuindo para uma ampliação do próprio conceito de tradução que nos facilita inserir as análises de adaptação de obra literária para o cinema nos estudos de tradução e tratar das reescrituras de uma obra literária como diferentes formas de tradução. Ao adotarmos essa postura teórica, estamos tomando como base princípios da sistematização teórico-metodológica dos estudos da adaptação como tradução, de Patrick Cattrysse (1992). O autor recorre a postulados da teoria dos polissistemas de Even-Zohar (1990) e aos estudos descritivos de Toury (1995) para defender e consolidar o argumento de que o processo de transmutação entre signos do texto literário para o texto cinematográfico é uma tarefa essencialmente de tradução. Portanto, pelo reconhecimento de tal estatuto, o autor reivindica a inserção dos estudos da adaptação dentro dos estudos de tradução, contribuindo, assim, para a ampliação do conceito de tradução. Trata-se de uma posição relativamente recente e, ainda, controversa em alguns setores da academia. Isso se deve, entre outros fatores, às questões postas acima em que o texto literário assume uma posição de “intocável” e a sua adaptação para outro meio de linguagem implicaria, necessariamente, na sua “desfiguração” enquanto objeto artístico. Catrysse (1995, p.17) constata que se trata de um erro considerar que, ao contrário da adaptação (fílmica ou qualquer outra), a tradução seria mais “fiel” ao texto de partida. Assim, a adaptação, como a tradução, também segue os critérios de aproximação ou distanciamento de um texto-fonte, por isso, não pode ser dissociada da prática tradutória. A idéia central que norteia o argumento de Catrysse é que a tradução lingüística ou literária e a adaptação fílmica se distinguem sob o ponto de vista do processo de produção, pois o processo de criação dá-se em contextos sociais diferentes, como também da recepção, pois o contexto social de recepção de um texto literário é diferente da “leitura” e recepção de um 34 filme, por exemplo. Dessa forma, Catrysse revisou o conceito de tradução e ampliou o foco de interesse da disciplina. Assim como Catrysse, Lefevere também teve a sua contribuição na ampliação do foco nos estudos de tradução. Segundo Paulo Oliveira (1999, p.57), no início da década de noventa, as propostas de Lefevere relativas às novas noções e categorias para os estudos de tradução modificaram a abordagem da disciplina. A tradução passa, então, a ser considerada, nessa visão, a reescritura de um texto de partida. Ao observarmos o redimensionamento do romance Mrs. Dalloway, ao ser traduzido para a literatura e para o cinema, por exemplo, podemos levantar alguns pontos sobre a idéia de reescritura. Explica-se: a obra assumiu uma nova proposta narrativa quando traduzida para outro sistema, ou para outra linguagem. Ou seja, questões temáticas ou até mesmo estruturais do romance de partida foram enfatizadas, mas os enredos apresentam traços particulares, ligados ao contexto poético e político em que as produções estão inseridas. Por conseguinte, a reescritura desse texto é, de certa forma, manipulada sob o ponto de vista das interpretações feitas pelos agentes, envolvidos na tradução (escritor, roteiristas e diretores etc), já que a realização de um filme é uma tarefa essencialmente coletiva. Ainda sob essa perspectiva, parece relevante ressaltar também o aspecto manipulador do processo de reescritura. Para justificar esse posicionamento, Lefevere apresenta o poder das reescrituras para introduzir novos conceitos, gêneros, mecanismos numa determinada sociedade. Para esclarecer como se dá o processo de manipulação, Lefevere (1992, p.1-7) estabelece uma diferença importante entre os leitores comuns e os especialistas. Segundo o autor, esses especialistas têm uma importância muito grande na criação da imagem do texto para o público em geral porque são os responsáveis pela recepção e sobrevivência desses textos. Para ilustrar essa idéia, temos: Quando os leitores comuns de literatura (e deveria ficar claro que o termo não implica julgamento de qualquer natureza. Simplesmente se refere à 35 maioria dos leitores nas sociedades contemporâneas) dizem que eles “leram” um livro, o que eles querem dizer é que têm uma certa imagem deste livro em suas mentes. Este construto é sempre livremente baseado em algumas passagens selecionadas do texto propriamente dito do livro em questão (as passagens incluídas em antologias usadas na educação secundária ou universitária, por exemplo), suplementadas por outros textos que reescrevem o livro de outras formas, tais como resumos em histórias literárias ou em obras de referência, resenhas em jornais, revistas, ou periódicos, alguns artigos de opinião, apresentações no palco ou na tela, e por último, mas não menos importante, as traduções.6 Percebemos, por meio do discurso do autor, que há uma grande variedade de formas de reescritura de um texto e que essas reescrituras exercem um poder de apresentar, consagrar e difundir novos parâmetros. A tradução assume também a condição de criadora de imagem de um texto, o que amplia radicalmente as distinções tradicionais no escopo da disciplina. O próprio Lefevere afirma: As traduções são, portanto, apenas um tipo de texto que cria a “imagem” de um outro texto. Outros tipos seriam a crítica, a historiografia, o comentário e a antologia, que serão desconsideradas neste espaço, mas não deveriam ser desconsiderados nos estudos da tradução (apud OLIVEIRA, 1999, p.58). As questões de reescritura do texto estão muito ligadas a uma poética do sistema literário na qual se estabelecem ideologias e se chega ao prestígio literário de uma determinada obra. As reescrituras, segundo Lefevere (1992), têm um papel de grande relevância na difusão de uma obra literária num dado sistema. O autor cita como exemplo a poesia de John Donne que parecia desconhecida e não era lida desde algumas décadas após a sua morte até a sua redescoberta por T. S. Eliot. Ele cita também outros escritores modernos e os clássicos feministas publicados nas décadas de vinte, trinta e quarenta, reeditados nas décadas de setenta e oitenta. 6 When non-professional readers of literature (and it should be clear by now that the term does not imply any value judgment whatsoever. It merely refers to the majority of readers in contemporary societies) say they have “read” a book, what they mean is that they have a certain image of that book in their heads. That construct is often loosely based on some selected passages of the actual text of the book in question (the passages included in anthologies used in secondary or university education, for instance), supplemented by other texts that rewrite the actual text in one way or another, such as plot summaries in literary histories or reference works, reviews in newspapers, magazines, or journals, some critical articles, performances on stage or screen, and last but not least, translations. 36 Quanto ao papel das reescrituras, ainda poderíamos apresentar os exemplos das adaptações literárias que difundem o universo literário de alguns autores e fazem renascer os seus livros. Aqui no Brasil, poderíamos citar, entre muitos outros, a minissérie Os Maias (2001), transmutada do romance de Eça de Queiroz, e os filmes Memórias Póstumas (2001) e Dom (2003), transmutados do romance de Machado de Assis. Em todos os casos, os textos reescritos nas telas contribuíram para que os livros fossem reeditados, facilitaram a volta aos textos de partida, motivando a leitura deles. Um outro exemplo de reescritura é a minissérie Presença de Anita, escrita por Manoel Carlos, que foi ao ar, na Rede Globo, em 2001. A trama foi inspirada no livro homônimo de Mário Donato (1948). O romance brasileiro é anterior ao clássico Lolita do escritor russo Wladimir Nabokov, publicado em 1955. Ambos tratam do mesmo assunto, ou seja, o caso de amor entre uma adolescente e um quarentão, mas que tomaram direções diferentes. O romance de Donato causou muita polêmica, provocou tanto a leitura por parte dos jovens quanto a crítica severa por parte da Igreja. Essa reação dupla de grande aceitação e, ao mesmo tempo, rejeição se deu pelo fato de o livro abordar um tema considerado tabu para a sociedade da época. Segundo Jadyr Pavão (2002, p.116), o romance fez sucesso por uma década. Logo em seguida, juntamente com o escritor, foi esquecido. A tradução para a TV em 2001, pela Rede Globo, retoma os mesmo temas do romance, mas diferente dele, não sofre mais rejeição por parte do público. Isso porque as questões tratadas são, naquele momento de sua exibição, temas recorrentes, discutidos abertamente em outros programas, como as novelas, por exemplo, e não sofrem mais censura institucional, principalmente, por parte da igreja. Ao contrário, a série foi um grande sucesso. O romance de Nabokov, por sua vez, foi difundido aqui no Brasil por meio da tradução, tanto na literatura quanto no cinema. As traduções cinematográficas de Stanley Kubrick (1962) e Adrian Lyne (1998) ampliaram o público receptor da obra literária e 37 contribuíram para que a personagem Lolita se tornasse um símbolo de jovem sedutora. Esse fato pode ser interpretado do ponto de vista da interferência da produção e distribuição hollywoodiana e do alcance da língua inglesa nos centros produtores de cultura, conforme observou Décio Cruz (2004). É importante ressaltar que embora o romance de Donato já tivesse sido transmutado para a TV em A Outra Face de Anita (1964) pela TV Excelsior, parece que foi a obra de Nabokov que ficou como referência. Uma evidência clara disso é a própria reportagem da Revista Época, publicada dias antes da estréia da minissérie em 2001, intitulada “A Lolita Brasileira”. Vejamos que o romance brasileiro é anterior ao romance norte-americano, mas não parece ter alcançado a dimensão do clássico estrangeiro. Alguns elementos contextuais podem nos dar suporte para uma explicação do fenômeno. O romance brasileiro foi alvo de crítica e até da sugestão de recolhimento dos exemplares pela associação das Senhoras Cristãs de São Paulo (VELLOSO, 2002, p.116), representando, para a época, um produto cultural que subvertia os “princípios morais familiares”. O romance estrangeiro, além de ter sido lido por meio da tradução, ainda foi difundido pelo cinema e pela própria crítica literária, já que Nabokov tem o prestígio de “bom escritor”. E isso explica, de certa forma, o impacto das reescrituras no estabelecimento da obra no sistema literário brasileiro. A minissérie Presença de Anita alcançou uma conquista importante: a motivação da reedição do livro e, conseqüentemente, a volta de sua leitura. Por meio dessa minissérie de TV, o universo literário do escritor Mário Donato foi reescrito num novo contexto para uma nova audiência, e boa parte dela, provavelmente, seria influenciada a consultar o texto de partida. Tratando dessa questão, Cruz (1997, p.3) discute a presença de um grande número de reescrituras das obras de Shakespeare e Jane Austen, na década de noventa, nos Estados Unidos. O autor apresenta alguns dados que corroboram o nosso argumento quanto ao papel 38 que as reescrituras assumem nos sistemas de chegada. O filme Sense and Sensibility, traduzido de um romance de Jane Austen, publicado em 1811, segundo o autor, ficou em cartaz por várias semanas, nos Estados Unidos, no ano de 1996, com cinemas lotados. O romance é uma comédia refinada que trata de forma satírica a importância do dinheiro e do casamento para a classe média inglesa daquela época. O filme Jeffrey, por outro lado, que trata de assuntos bem mais atuais como as relações humanas naquela década e o problema da Aids, ficou poucos dias em cartaz e atraiu um pequeno público. Diante desse fato, Cruz faz as seguintes indagações: Qual será o fator que gera esse interesse? A fuga das complexidades da realidade atual, onde as relações humanas se tornam cada vez mais complicadas? Ou a busca de uma história divertida, bem escrita e bem contada? Talvez as duas alternativas (CRUZ, 1997, p.3). O próprio autor chega à conclusão de que qualquer que seja a explicação para esse fenômeno, o sucesso dessas reescrituras, tanto na tela como nos palcos provoca a leitura dos textos originais e “ajuda a manter a literatura viva”. Um outro exemplo apresentado por Cruz é o caso do lançamento do filme Quatro casamentos e um Funeral, que colocou uma edição de poemas de W. H. Auden na lista de best-sellers. Isso se deu pelo fato de, no filme, o nome do autor ser mencionado e um de seus poemas “Funeral Blues” declamado. Assim, evidenciase também o impacto das adaptações sobre a literatura. Com essa discussão sobre a definição de reescritura, que engloba diversos gêneros textuais e mecanismos de construção da imagem de outro texto, colocamos o texto cinematográfico de Marleen Gorris, o texto literário de Michael Cunningham e o texto cinematográfico de Stephen Daldry como reescrituras do romance de Woolf. Levamos em consideração, para efeito de nossa análise, dois pontos importantes defendidos por Lefevere: as diferentes reescrituras desses textos, por meio da crítica, tanto literária, quanto cinematográfica e o novo valor que as “adaptações” assumem nos estudos de tradução. Lefevere (1992, p.9), tentando incluir o audiovisual na sua proposta, diz: 39 O mesmo processo básico de reescritura está em ação na tradução, na historiografia, nas antologias, na crítica e na editoração. Está obviamente também em ação em outras formas de reescritura, tais como adaptações para filme e televisão, mas essas fogem à minha área de competência e por isso não serão tratadas aqui.7 A idéia de tradução como reescritura amplia os estudos de tradução e dá à tradução intersemiótica novas perspectivas de análise. O termo “adaptação”, por sua natureza polissêmica, é utilizado há muito tempo nos estudos tradicionais como sinônimo de modificação de um texto de um sistema de linguagem para outro. Nessa nova visão, a adaptação passa a ser considerada uma instância da tradução, vista não como semelhança, mas, principalmente, como diferença. Continuando nossas considerações sobre o ato tradutório, discutiremos, na próxima seção, questões mais específicas do processo de transmutação do signo. Teremos, como base, alguns princípios da Tradução Intersemiótica. 1.3 A INTERSEMIOSE ENTRE AS LINGUAGENS LITERÁRIA E CINEMATOGRÁFICA Julio Plaza (2001, p.17), na tentativa de formulação de uma teoria própria da tradução intersemiótica, recorre a princípios da semiótica peirceana para tratar de questões relacionadas ao signo e a sua transmutação nas diferentes linguagens. O autor se apóia na idéia de Charles Peirce no que diz respeito ao tratamento do signo não como unidade monolítica, mas um complexo de relações triádicas (signo, objeto e interpretante). Essas relações estão sempre ocasionando um poder de autogeração, o que caracteriza o processo sígnico como um contínuo. Essa definição de signo de Peirce, portanto, explica o processo de ação do signo (semiose) como uma transformação de signos em signos. Dessa forma, tal fenômeno ocorre por meio de uma relação de momentos num ‘processo sequencial-sucessivo’ ininterrupto. Essa relação dinâmica é assim discutida pelo autor: 7 The same basic process of rewriting is at work in translation, historiography, anthologization, criticism, and editing. It is obsviously also at work in order forms of rewriting, such as adaptations for film and television, but these are outside of my area of expertise and will therefore not be dealt with here. 40 A idéia mais simples de terceiridade dotada de interesse filosófico é a idéia de um signo ou representação. Um signo “representa” algo para a idéia que provoca ou modifica. Ou assim é um veículo que comunica à mente algo do exterior. O “representado” é seu objeto; o comunicado, a significação; a idéia que provoca, o seu interpretante. O objeto de representação que a primeira representação interpreta. Pode conceber-se que uma série sem fim de representações, cada uma delas representando a anterior, encontre um objeto absoluto como limite. A significação de uma representação é outra representação. Consiste, de fato, na representação despida de roupagens irrelevantes; mas nunca se conseguirá despi-la por completo; muda-se apenas de roupa mais diáfana. Lidamos apenas, então, com uma regressão infinita. Finalmente, o interpretante é outra representação a cujas mãos passa o facho da verdade; e como representação também possui interpretante. Aí está nova série infinita! (PEIRCE, 1980, p.93). Percebemos por meio do pensamento de Peirce que o processo de ação do signo é uma condição essencial da linguagem, e a própria atitude humana de pensar se dá pela mediação dos signos, já que pensamos através deles. Partindo dessa idéia, instaura-se a primeira relação dessa ação constante dos signos com o fenômeno tradutório, pois se verifica, desde então, um caráter de transmutação de signos em signos. O processo constante de transmutação entre os signos torna o pensamento necessariamente uma tradução, já que, quando pensamos, traduzimos o que está presente em nossa consciência, sejam imagens, sentimentos ou concepções em outras apresentações que funcionam também como signos. Como conseqüência, qualquer pensamento é a tradução de outro pensamento para o qual ele funciona como interpretante (PLAZA, 2001, p.18). Essa discussão de Plaza esclarece o posicionamento de Peirce, no que diz respeito ao processo de significação e à classificação do signo, por considerar todo pensamento como um signo, colocando o próprio homem como um signo também. Como reforça Peirce: É que a palavra ou signo usado pelo homem é o próprio homem. Se cada pensamento é um signo e a vida é uma corrente de pensamento, o homem é um signo; o fato de cada pensamento ser um signo exterior prova que o homem é um signo exterior. Quer dizer, o homem e o signo exterior são idênticos, no mesmo sentido em que as palavras homo e homem são idênticas. A minha linguagem, assim, é a soma de mim próprio; porque o homem é o pensamento (PEIRCE, 1980, p.82). 41 Para entendermos melhor essas relações constantes de significação que são imanentes à própria constituição do signo, na sua dinâmica de reprodução de significados, precisamos recorrer aos princípios da relação triádica de Peirce na qual estão apresentadas questões ligadas à problemática do significado. Com essa relação, o autor estabeleceu que todo processo sígnico opera entre os três elementos de semiose. Décio Pignatari (1987, p.41)8 se apóia no diagrama triangular em que Ogden e Richards tentaram traduzir a relação triádica de Peirce com relação ao significado para interpretar os problemas envolvendo os termos signo ou representante, objeto ou referente e interpretante: Figura 1(Diagrama triangular de Ogden e Richards) Com base nesse diagrama triangular e com referência ao signo, ao objeto e ao interpretante, essas três tricotomias, consideradas as mais importantes de Peirce, foram situadas no vértice-do-signo, no vértice do objeto e no vértice-do-interpretante. Para efeito dessa discussão sobre as questões da tradução intersemiótica, concentraremos a atenção no vértice do objeto, ou seja, o signo em relação ao seu objeto, que pode ser um ícone, um índice ou um símbolo. 8 Esse diagrama apresentado por Pignatari é uma interpretação e adaptação do diagrama de Ogden e Richards. Nele, o autor apresenta o terceiro vértice criado por Peirce, chamado interpretante, que é o signo de um signo, “pois que engloba não somente Objeto e Signo como a ele próprio, num continuo jogo de espelhos.” 42 Os ícones são signos que operam pela grande semelhança entre suas qualidades, seu objeto e seu significado. Os ícones são também signos de qualidade em relação aos seus objetos imediatos. Os significados que denotam são meros sentimentos, tais como o sentimento despertado por uma peça musical ou uma obra de arte. Ao olhar mais profundamente para esse tipo de signo, Peirce (1980, p.27) estabeleceu também os chamados “hipoícones”, ou ícones já materializados, tais como as imagens, os diagramas, as metáforas. As imagens são consideradas aquelas de qualidade primeira; os diagramas são aqueles que representam relações diádicas e análogas entre as duas partes constituintes, e as metáforas são aquelas que tendem à representação e traçam algum paralelismo com algo diverso. Para Pignatari (1987, p.46), o ícone é um signo que está no nível da primeiridade, ou seja, no reino dos possíveis. Os índices operam antes de tudo pela contigüidade de fato vivida. São signos determinados pelo seu objeto dinâmico que estão para com ele em relação ao real. Ao considerarmos o índice em relação ao seu objeto imediato, ele é um signo de um existente. Como exemplo, poderíamos citar as fotografias instantâneas que, por representarem, em certos aspectos, os objetos, são instrutivas. Isso se dá pelo fato de ter semelhança com a realidade a qual representam, por corresponder, com detalhes, a essa realidade. Os símbolos operam, sobretudo, por contigüidade institutiva, ou seja, por uma aproximação existente entre sua parte material e o seu significado. O seu objeto dinâmico o determina apenas no sentido de ser assim interpretado. Dessa forma, o símbolo depende de uma convenção ou hábito. É, portanto, em relação ao seu objeto imediato, um signo de lei. Percebemos, a partir das definições dessas características de signos, que eles se completam no processo de semiose. Assim, o signo não é um objeto, mas um processo de intermediação, que tende à comunicação para dentro e à autopreservação concretiva para fora, ou seja, dois movimentos de posições opostas centrífugo e centrípeto. Segundo Plaza 43 (2001, p.22), esse processo de dentro para fora, de transformação num outro tem um grande efeito na dinâmica da semiose. Ele afirma: Esse processo de “remessa”, para dentro e para fora, de transformação num outro, evidencia, de um lado, o enraizamento do símbolo não-simbólico, isto é, no índice e no ícone, evidenciando, de outro lado, que só há signos produzindo sentidos para interpretantes, descartada a possibilidade da coisa através do signo (o signo torna presente a ausência do seu objeto), porque esta, a coisa substituída, já é signo para um interpretante (PLAZA, 2001, p.22). Com esse posicionamento do autor, parece clara a condição de continuidade do signo na produção de sentido e significação. E essa continuidade plena da tricotomia é o que caracteriza a linguagem na sua função representativa e comunicativa e a relação do signo com o pensamento. Lúcia Santaella (1985, p.75-78), no intuito de sintetizar a grande quantidade de definições de signo, algumas mais detalhadas e outras mais simplificadas, distribuídas pelos textos de Peirce, tenta esclarecer que o signo é um sinal que representa ou está no lugar de algo, ou seja, o seu objeto. Assim, algo só poderá funcionar como signo se conduzir esse poder de representar, substituir uma outra coisa diferente dele. A autora conclui, portanto, que o signo não é um objeto, apenas está no lugar do objeto e sustenta seu argumento por meio do seguinte exemplo: Portanto, ele só pode representar esse objeto de um certo modo e numa certa capacidade. Por exemplo: a palavra casa, a pintura de uma casa, o desenho de uma casa, a fotografia de uma casa, o esboço de uma casa, um filme de uma casa, a planta de uma casa, a maquete de uma casa, ou mesmo o seu olhar para uma casa, são todos signos do objeto casa. Não são a própria casa, nem a idéia geral que temos de casa. Substituem-na, apenas, cada um deles de um certo modo que depende da natureza do próprio signo. A natureza de uma fotografia não é a mesma de uma planta baixa (SANTAELLA, 1985, p.78). Há, portanto, uma mediação entre o objeto do signo e a sua representação por um intérprete. Essa representação constrói na mente desse intérprete uma relação que produz na mente interpretadora um outro signo que traduz o significado, seja uma imagem mental, ou 44 material, uma ação ou uma reação gestual, uma palavra ou um sentimento qualquer. Há sempre um signo tradutor do primeiro. Partindo dessa rápida discussão em que tentamos apresentar algumas definições do caráter do signo e da sua relação no processo de comunicação, enquanto veículo intermediador e produtor de linguagens, poderíamos, então, tentar estabelecer questões mais específicas desse diálogo entre o signo e a sua representação no âmbito da intersemiose, ou seja, o fenômeno da tradução intersemiótica. Como conceito primeiro, a tradução intersemiótica, para Plaza (2001, p.45), é definida como sendo “a tradução entre diferentes sistemas de signos” e, por isso mesmo, tornam-se relevantes as relações entre os sentidos, meios e códigos. Com essa posição, o conceito de tradução passa a ser ampliado, insere-se diretamente nos estudos semióticos e abre novas perspectivas em relação aos estudos prescritivos e aos conceitos fechados que limitavam as análises à observação e à avaliação de um produto. Roman Jakobson (1991, p.64) foi o primeiro a perceber a tradução nesse sentido mais amplo e contribuiu muito para a difusão dessas novas idéias ao classificar as diferentes formas de tradução, dividindo-as nos três tipos já bastante conhecidos: 1. A tradução intralingual ou reformulação (rewording) consiste na interpretação dos signos verbais por meio de outros signos da mesma língua. 2. A tradução interlingual ou tradução propriamente dita consiste na interpretação dos signos verbais por meio de alguma outra língua. 3. A tradução intersemiótica ou transmutação consiste na interpretação dos signos verbais por meio de sistemas de signos não-verbais (JAKOBSON, 1991, p.64-65). Percebe-se, sem dúvida, nessa classificação de Jakobson, uma sistematização do novo conceito de tradução, mas, até pelo fato de tratar-se de uma idéia divulgada no final dos anos 50, ainda apresenta uma discussão muito limitada em relação ao conceito tradicional. Ao observarmos a apresentação do conceito de tradução interlingual, por exemplo, percebemos a 45 ênfase dada, pelo autor, à sua condição de tradução propriamente dita, ou seja, ao mesmo tempo em que ele amplia o conceito, ao dar diferentes classificações, recua e legitima a idéia que se propaga nos conceitos tradicionais. Um outro ponto que merece destaque é o fato de Jakobson simplesmente classificar a tradução intersemiótica e isentar o termo de uma discussão maior. A ênfase na tradução interlingual, mencionada como “tradução propriamente dita” na classificação de Jakobson, ainda se encontra muito presente nos estudos da disciplina, enquanto objeto de investigação. Esse fato causa alguns problemas difíceis de serem resolvidos ou, pelo menos, são geradores de grandes discussões dentro e fora dos muros da academia. O nosso objeto de estudo, as releituras do romance Mrs. Dalloway, por exemplo, distancia-se desse conceito fechado ao enquadrar-se na primeira classificação de Jakobson, por se tratar da tradução na mesma língua do romance, o inglês, e também na terceira classificação do autor, pelo fato de se traduzir do livro para as telas. Apesar de todos esses pontos que justificam claramente a inclusão da adaptação e a rescritura de uma obra literária como um fenômeno de tradução, muitas divergências teóricas ainda perduram por não a considerarem como tal. Muitas são as nomenclaturas, tais como “adaptação”, “transcriação”, “transposição”, termos usados tanto pela crítica literária, quanto pela cinematográfica, como também pelos próprios cineastas, que, de um modo geral, possuem uma visão diferente do conceito de tradução. Esse fato pode ser atribuído ainda à idéia tradicional de “superioridade” do texto literário canônico em relação ao texto transmutado na tela e uma idéia subjacente de “preservação” de um texto “original”. Como a transmutação lida com linguagens de meios diferentes, há uma pressuposição clara de que é natural a ocorrência de mudanças e “adequação” do texto de partida para o novo meio. Surge, daí, o grande impasse da aceitação do termo tradução para tal fenômeno, já que, na concepção tradicional de tradução, há um entendimento de que deveria haver sempre referência direta ao 46 texto de partida e, além disso, um esforço de conjunção com ele. Dentro dessa visão, ao contrário, a transmutação representaria somente diferença e, por não ter o compromisso de marcar o texto de partida, não representaria, portanto, uma tradução desse texto. Um outro ponto de divergência quanto à transmutação diz respeito à questão da autoria em que se discute a participação e a influência dos agentes nas diferentes instâncias do processo de construção do texto transmutado, isto é, o autor do livro, o roteirista e o diretor. Ao observarmos um texto traduzido para as telas, não podemos deixar de levar em conta a interferência que cada um desses agentes tem no processo de transmutação sígnica, pois, do ponto de vista da tradução, não haveria invisibilidade completa de nenhum deles. Isso acontece porque o filme é composto por um agregado de elementos estrategicamente elaborados a partir de cada fase de criação. Ou seja, a escolha e o manuseio de traços temáticos e/ou estruturais do texto de partida; o enquadramento desses traços num roteiro que atenda às necessidades da linguagem e meio fílmicos; e a organização dos elementos dentro do contexto cinematográfico. Todas elas contribuem significativamente para o resultado final na tela, tornando-se incoerente a observação do produto, sob o ponto de vista exclusivo do texto literário. Nossa intenção em atentar para essa questão é observar o quanto os conceitos tradicionais de tradução ainda estão muito arraigados no contexto da tradução de “equivalências” ou “palavra por palavra”, apesar de todos os avanços que os estudos tradutórios tiveram a partir do final da década de setenta. Como resultado disso, essa idéia do processo de adaptação de obras literárias para os meios audiovisuais parece ainda não conviver harmoniosamente com os conceitos tradicionais de tradução e com os próprios profissionais diretamente ligados ao processo e ao contexto nos quais a tradução intersemiótica se estabelece, conforme discutimos nas seções anteriores deste capítulo. 47 Diante dessas discussões sobre a constituição do signo e o seu processo dinâmico representativo como produtor de linguagem, a questão da tradução de signos entre diferentes sistemas de linguagem vai particularmente nos interessar, porque é o que constitui a base da definição da tradução intersemiótica e a coloca dentro de um sistema específico. A partir do entendimento e apreensão desse processo, enquanto sistema, podemos, então, falar um pouco da política e da poética desse tipo de tradução. Segundo Plaza (2001, p.205), a arte da tradução, que está submersa entre várias outras, tem a visão sincrônica da história por apresentar uma relação passado-presente que se apresenta em qualquer projeto poético. Há, dessa forma, um recorte da História a partir da seleção de determinados momentos apreendidos que dialogam com o nosso presente, criando uma nova configuração. Como o autor afirma: “Toda escolha do passado, além de definir um projeto poético, define-se também como projeto político, dado que essas escolhas incidem sobre a arte do presente.” (PLAZA, 2001, p.205) A tradução intersemiótica, por sua vez, está contextualizada nesse princípio sob duas formas: a prática artística dentro da contemporaneidade (poética) e o contexto da contemporaneidade da arte (política). A discussão parte das concepções pós-modernas que abordam um novo olhar sobre a realidade. Plaza (2001, p.206) mostra, por exemplo, que a criação está dramaticamente delineada pela influência dos meios de produção e reprodução de linguagens. É um momento em que as informações circulam por múltiplos veículos e não são mais fixas ou estáticas como costumavam ser na era mecânica e pré-industrial. Esse processo desencadeia os fenômenos da “pós-mídia”, “in mídia” ou “intermídia”. Ao tratar desses fenômenos, Plaza (2001, p.206) entende que esses processos de infra-estrutura não poderiam deixar de influenciar as formas estéticas e artísticas contemporâneas, já que são produtos da 48 superestrutura. A influência, por sua vez, dá-se, seja na forma de produção, elaboração e recepção, como também na sua interação. Há, então, a partir dessa nova perspectiva, uma combinação das artes envolvidas nas formas eletrônicas que faz rever as relações entre linguagens, que se firmam como uma sistematização de pressuposições estéticas e interferem até na tradução da própria História. Plaza concebe a tradução intersemiótica “como prática crítico-criativa, como metacriação, como ação sobre estruturas e eventos, como diálogo de signos, como um outro nas diferenças, como síntese e re-escritura da história” (2001, p.209). Ao defini-la de tal forma, o autor a coloca nesse contexto de novas tecnologias, apresentando, principalmente, o seu caráter de abrangência por desmistificar os meios e evidenciar a relatividade dos suportes e linguagens. Observa-se, nesse conceito, o aspecto de interferência que a tradução intersemiótica possui na sua estrutura ao agir num determinado contexto, porque a ação do signo torna a tradução uma construtora de sentido num determinado momento da História. Assim, a tradução não é somente transferência de pequenas unidades, mas construtora de uma significação numa unidade maior. Jakobson já se posicionava diante dessa questão: Mais freqüentemente, entretanto, ao traduzir de uma língua para outra, substituem-se mensagens em uma das línguas, não por unidades de códigos separados, mas por mensagens inteiras de outra língua. Tal tradução é uma forma de discurso indireto: o tradutor recodifica e transmite uma mensagem recebida de outra fonte. Assim, a tradução envolve duas mensagens equivalentes em dois códigos diferentes (JAKOBSON, 1991, p.65). Na operação da tradução há, portanto, dois signos que são mediadores de relações de uma ordem para outra: o signo de partida e o signo tradutor. Na tentativa de estabelecer uma tipologia das traduções intersemióticas, Plaza (2001, p.89) recorre às mesmas definições e ao mesmo princípio que guia a organização das características dos signos formuladas por Peirce para estabelecer as três matrizes 49 fundamentais de tradução: Tradução Icônica, Tradução Indicial e Tradução Simbólica. Ele mesmo justifica que não quer com essa tipologia se referir a uma grade classificatória de tipos isolados que devem funcionar de modo fixo e inflexível, mas sim a uma espécie de roteiro orientador para as sutilezas diferenciais mais gerais dos processos tradutórios. Segundo Plaza: “São tipos de referência, algumas vezes simultâneos em uma mesma tradução, que, por si mesmos, não substituem, mas apenas instrumentalizam o exame das traduções reais” (PLAZA, 2001, p.89). A Tradução Icônica está apta a reproduzir significados sob a forma de qualidades e de aparências entre ela própria e o texto de partida, tendo como objetivo principal o objeto imediato expresso no signo. Apóia-se no princípio de similaridade de estrutura. É, na verdade, uma transcriação. Um exemplo desse tipo de tradução, apresentado por Plaza (200, p.174), é o caso da tradução icônica do poema “CÉU-MAR” que Augusto de Campos traduziu de “Doublet” de Lewis Carrol: HEAD Heal Teal Tell Tall TAIL céu cem com cor dor dar mar Tanto no doublet de Carrol quanto no de Campos, pode ser observada a movimentação tipológica da linguagem evidenciada pela transformação da palavra anterior, por meio da mudança (paragrama) de uma letra como condição do jogo. Plaza afirma que: A tradução processa-se a partir dos dois termos opostos, tomando os referentes das palavras do poema, isto é, CÉU-MAR que, junto com a disposição dos grafemas, caracterizam o Objeto Imediato do Poema. A tradução é equivalente por vários motivos: 1. pela analogia espacial de oposição 2. pela configuração topológica dos elementos céu e mar (o segundo envolvendo o primeiro) que indica semelhança de procedimento. Nesta tradução ready-made, a relação de semelhança só pode se dar pela isomorfia entre os signos de lei utilizados” (PLAZA, p.174). 50 A Tradução Indicial está mais ligada ao contato entre texto de partida e tradução. O objeto imediato desse texto de partida é apropriado e transladado para um outro “meio que semantiza a informação que veicula” (PLAZA, 2001, p.91). Acontece, portanto, uma transformação de qualidade do objeto imediato. O cinema e a fotografia, por exemplo, apresentam um caráter mais predominantemente indicial, mas isso não impede que possam aspirar à iconicidade ou buscar o símbolo. Segundo Plaza (2001, p.92), esse tipo de tradução “indicia a relação de contato físico com o objeto, muito mais do que a transposição por invenção”. Por ser interpretada por meio da experiência concreta, será, nesse caso, uma transposição. Como exemplo dessa transposição, temos a adaptação do romance Mrs. Dalloway para o cinema, traduzindo para as telas o universo literário da escritora inglesa Virginia Woolf. Plaza (2001, p.109) comenta que a transposição de um signo estético de um determinado meio para outro meio tecnológico deve adaptar-se aos novos recursos normativos do novo suporte que declara e impõe suas leis e conforma a mensagem. Esse processo implica uma prática tradutória crítica. Essa prática, além de observar os limites e as particularidades do novo suporte, pode “dar o salto qualitativo, isto é, passar da mera reprodução para a produção.” Essa discussão de Plaza contribui para a nossa pesquisa, não como metodologia, mas como idéia subjacente ao entendimento do processo de semiose que nos ajuda a observar a tradução de Mrs. Dalloway para outros meios e verificar que o construto narrativo impressionista do romance, ao ser enquadrado numa nova linguagem, incorpora uma outra dimensão narrativa. Essa nova dimensão se estabelece no meio cinematográfico não só enquanto signo tradutor da obra, mas também como texto produtor de significado. Esse fato 51 corrobora a idéia de Plaza, no que diz respeito a uma prática tradutória que transcende a condição de mera reprodução. A Tradução Simbólica, por sua vez, opera pela aproximação instituída, ou seja, aquelas associações feitas por meio de metáforas, símbolos ou outros signos de caráter convencional. A referência simbólica torna-se dominante, e os caracteres do objeto imediato são evitados. É um tipo de tradução que define significados lógicos, que são mais abstratos e intelectuais do que sensíveis. O símbolo consistirá numa regra que determinará sua significação e a tradução, nesse caso, passa a ser uma transcodificação. Vejamos um exemplo da tradução do poema “nascemorre”, de Haroldo de Campos por Julio Plaza (2001, p.101102): Figura 2 – Original: “nascemorre” Haroldo de Campos (1958) Figura 3 – Tradução Intersemiótica Julio Plaza (1984) Ao longo da discussão e do estabelecimento dos pressupostos teóricos que dão conta da tradução intersemiótica, Plaza incorpora os princípios da semiótica perceiana para a reformulação do conceito de tradução, considerando-a como processo de semiose. Corrobora, portanto, uma nova perspectiva nos estudos da tradução, que não pretende enfatizar a idéia de cópia ou equivalência. Nesse sentido, a tradução sofre um redimensionamento e se amplia enquanto disciplina à medida que a oposição entre signos verbais e não-verbais não é mais levada em consideração, pelo menos na visão de Plaza (2001, p.67), já que a operacionalidade 52 tradutória intersemiótica não é somente a interpretação de signos lingüísticos por outros nãolingüísticos, mas diz muito mais respeito às transmutações intersígnicas. Com essa posição, Plaza reforça uma abordagem teórica pressuposta no escopo da tradução audiovisual, na medida em que dá aos sistemas semióticos não-verbais a condição de interpretantes, como é o caso da proposta de Catrysse (1992) que estuda o filme (e a adaptação literária) enquanto formas de tradução, vista acima. Ao apoiarmo-nos nesses princípios da tradução intersemiótica, poderíamos dizer que, nesse processo tradutório, trabalhamos com dois signos, o signo traduzido e o signo tradutor. O signo traduzido é a própria obra, como por exemplo um romance, um conto, uma peça de teatro, uma poesia, uma crônica e outros. O signo tradutor é o texto traduzido para a tela, como um filme, um documentário, um seriado, uma novela e outros, visto que há um fenômeno de interação semiótica entre duas linguagens, a do texto escrito e a do texto imagético das telas. Ainda levantando a questão de tentar-se evitar a redução da função da tradução intersemiótica à interpretação de signos lingüísticos por outros não-lingüísticos, Plaza (2001, p.66-67) discute não somente essa oposição, mas evita, deliberadamente, também, pensar a tradução nos diversos meios, a partir de uma estratificação prévia ou demarcação de fronteiras entre os diversos e diferentes sistemas sígnicos que os dividam em códigos separados. Esses sistemas compreendem o verbal, pictórico, fotográfico, fílmico, televisivo, gráfico, musical etc. Para o autor, essas divisões levariam a um número muito grande de subdivisões, o que tornaria quase impossível se pensar os processos de interação entre os signos, que se realizam na tradução intersemiótica. O autor ainda acrescenta que se fôssemos perguntar se determinados processos de linguagem se constituem em códigos instituídos ou não, grandes discussões poderiam surgir e não seriam produtivas a uma teoria e operacionalidade da tradução. Ao contrário, ele preferiu pensar o signo numa dimensão teórica mais abstrata, 53 como sendo uma atitude necessária, porque, para ele, ao se fazer o caminho empírico, ou seja, deter-se ao da classificação prévia dos sistemas sígnicos ou códigos, o advento de qualquer processo novo de linguagem, assim como o videotexto que ele apresentou como exemplo mais recente, tornaria, na sua concepção, sua pesquisa imediatamente obsoleta (PLAZA, 2001, p.67). Com esse posicionamento, fica clara a postura de que não é o rótulo do meio ou suporte como a fotografia ou o vídeo e o rótulo do código como o verbal ou musical que vão fornecer a capacidade para mapear as operações sígnicas processadas no interior de uma mensagem. Ao contrário, para que essas operações do trânsito semiótico sejam inteligíveis, precisa-se da capacidade de interpretar os signos na diversidade das linguagens e dos suportes, os movimentos de passagens dos elementos icônicos, indiciais e simbólicos tanto nos intercódigos, quanto nos intracódigos. Plaza explica: Ou seja, não é o código (pictórico, musical, fílmico etc) que define a priori se aquela linguagem é sine qua non icônica, indicial ou simbólica, mas os processos e leis de articulação de linguagem que se efetuam no interior de um suporte ou mensagem (PLAZA, 2001, p.67). Concordamos com Plaza quanto à natureza dialógica dos processos e leis de articulação de linguagem nas operações sígnicas. Por essa razão, não propomos, na análise do nosso corpus, reduzir a natureza do nosso objeto de estudo a uma classificação específica ou estanque de categorias sígnicas ou códigos. Isto quer dizer que utilizamos esses conceitos da semiótica em alguns momentos da análise, mas esse não será o único recurso, já que são utilizados também recursos dos estudos literários e fílmicos. Ao fazermos essa ponte interdisciplinar da semiótica com outros campos, corroboramos a posição de Santaella (2002, p.6), quando discute o aspecto abstrato da teoria semiótica que permite ao analista mapear somente o campo das linguagens nos vários aspectos que as constituem. A autora postula que tal generalidade faz com que a aplicação da 54 teoria reclame “pelo diálogo com teorias mais específicas dos processos de signos que estão sendo examinados” (p.6). Observamos, portanto, que, com base em toda a discussão sobre a tradução audiovisual (a tradução intersemiótica, os estudos descritivos da tradução e a teoria dos polissistemas) aqui posta, e na apresentação da nossa proposta de pesquisa, ou seja, a análise do processo de tradução na releitura do romance Mrs. Dalloway para a literatura e para o cinema, já existe uma certa sistematização teórica que dá conta dos estudos da adaptação fílmica enquanto fenômeno tradutório. E é nessa zona intermediária entre a literatura e o cinema que nos colocamos para tratar de questões mais específicas desse fenômeno e contribuir para as discussões nesse diálogo interdisciplinar. Vale ressaltar que as posições de Plaza e de Lefevere, discutidas acima, a princípio, parecem incompatíveis, em termos teóricos, já que Lefevere lida com a reescritura como texto de partida, ou seja, como texto autônomo, e Plaza lida com o texto traduzido como elemento de transposição, que está sempre à sombra de um “original”. Embora estejamos trabalhando as reescrituras de Mrs. Dalloway como textos autônomos, fruto de leituras dos agentes envolvidos na tradução e dos contextos, a presente pesquisa trata de um estudo que busca entender como se deu a tradução do universo literário da obra de Woolf para outras linguagens. Portanto, o uso dos princípios teóricos de Plaza tornam-se produtivos para a nossa discussão porque nos facilita o entendimento de questões ligadas ao processo tradutório na semiose de linguagens em diferentes meios. Entretanto, não estamos querendo reforçar a idéia de que essas reescrituras tenham necessariamente um compromisso com o texto de partida, pois acreditamos que as traduções foram feitas sob restrições da poética e da estética tanto do contexto de produção quanto do próprio meio de linguagem. Percebemos que as questões aqui levantadas convergem para formulações que dão conta dos novos postulados teóricos dos estudos de tradução. Na discussão sobre o princípio 55 da tradução como reescritura, de Lefevere, por exemplo, traçamos um novo papel que os textos traduzidos assumem como textos refratores de imagens de outros textos nas sociedades contemporâneas. Apresentamos, em seguida, alguns pontos que tratam dos estudos descritivos de tradução. Quanto ao processo de intersemiose entre linguagens, apresentamos pontos sobre a sistematização do quadro teórico da Tradução Intersemiótica de Plaza, fundamentado nos pressupostos da Semiótica. Em todos os casos, percebemos que o conceito de tradução é revisto, em relação às teorias “tradicionais”, e a ênfase nas análises passa a não ser mais centrada somente no produto, mas, também, no processo ou no contexto. As idéias em questão são importantes para a análise do nosso corpus, porque dão suporte teórico para a observação do processo de construção das reescrituras e o seu funcionamento dentro dos novos contextos de linguagem. 56 2 A HIBRIDIZAÇÃO DOS GÊNEROS: UM DIÁLOGO ENTRE O DISCURSO LITERÁRIO E O DISCURSO CINEMATOGRÁFICO Este capítulo trata das características dos discursos literário e cinematográfico e do diálogo constante que se estabelece entre esses discursos no processo de semiose entre as artes e os diferentes meios de linguagem. Aqui serão levantadas questões que dizem respeito às especificidades inerentes à literatura e ao cinema, e há uma tentativa de se mapear uma poética particular de cada um desses campos para melhor entendermos o processo de semiose entre as duas linguagens. Primeiro, traçaremos um perfil geral de como se dá esse trânsito dialógico de linguagem, discutindo o embaralhamento entre essas duas artes. Em seguida, discutiremos a poética da narrativa na literatura e no cinema, levando em consideração algumas questões teóricas que delineiam e discutem a organização dessas narrativas como discurso e o seu funcionamento dentro dessas poéticas. 2.1 CONSIDERAÇÕES GERAIS Segundo Cruz (1997, p.24), desde as suas origens, o cinema tem sempre apresentado relações muito próximas à literatura devido aos aspectos visuais inerentes a essas duas artes. Enquanto o texto literário recorre à linguagem escrita por meio das metáforas, símbolos, aliterações e muitas outras figuras de linguagem para materializar o seu discurso e expressar um determinado conteúdo, o texto cinematográfico recorre, além disso, ao apelo visual para a materialização do seu discurso. No entanto, ambos os textos estão ligados por um ponto comum que seria a característica visual inerente a cada um deles. Embora o caráter visual do texto literário apresente-se somente por meio da articulação da palavra escrita, a sua 57 condição de visualização é tão presente para o leitor quanto um texto na tela, já que ao ler um texto, necessariamente, o leitor cria imagens do universo narrativo, poético ou dramático apresentado pelo autor (CRUZ, 1997, p. 24-25). Essa relação sempre foi enfatizada desde o início do cinema na medida em que essa arte trazia inovações por algumas de suas particularidades por um lado, mas, por outro, apenas reestruturava num outro meio estratégias discursivas já desenvolvidas há muito tempo pela literatura. A partir desse primeiro pressuposto, surgiram várias grandes questões de delimitação de fronteiras entre essas artes. E mesmo cada uma delas apresentando suas especificidades, a condição de embaralhamento entre ambas sempre foi recorrente (CRUZ, 1997, p. 24-25). Essa discussão foi feita por Sergei Eisenstein (1990, p.173-216), por ocasião do seu artigo intitulado “Dickens, Griffith e nós”, escrito em 1943 e publicado numa coletânea de artigos sobre o cinema norte-americano. O autor apresenta a qualidade cinematográfica dos textos do escritor inglês Charles Dickens e faz relações da recepção desses textos com os textos cinematográficos produzidos por David Griffith. Primeiro, Eisenstein traça um panorama do sucesso surpreendente da recepção das narrativas de Dickens no período vitoriano, colocando esse fato como sendo um dos primeiros passos na formação da estética do cinema norte-americano. Esta situação, a priori, parece causar estranhamento se levarmos em conta a visão tradicional que se tem do cinema produzido no contexto norte-americano, que está calcado no espetáculo, na tecnologia e num centro de cultura completamente distinto da Inglaterra do século XIX. Mas logo o leitor se convence de que o autor aproxima, de forma substanciosa, as relações da produção literária de Dickens às de Griffith e o seu poder de revolução na consolidação da linguagem cinematográfica. Nesse sentido, apresenta-se a idéia de quanto Griffith ultrapassa a visão monolítica da cultura norte-americana para mostrar, em seus filmes, a outra face dessa cultura. O próprio Eisenstein explica: 58 Para entender Griffith, deve-se visualizar uns Estados Unidos compostos de mais do que automóveis velozes, trens aerodinâmicos, fios de telégrafo, inexoráveis correias de transmissão. É-se obrigado a compreender este segundo rosto dos Estados Unidos também – os Estados Unidos tradicionais, patriarcais, provincianos. E então se ficará consideravelmente menos espantado com esta vinculação entre Griffith e Dickens (1990, p.175). Griffith criou um recurso de narrar uma seqüência recortando e intercalando cenas, dando um sentido de ritmo essencialmente cinematográfico, ou seja, a montagem paralela. Por meio dela, Griffith representou esses dois Estados Unidos e abriu precedentes para a formação de uma linguagem própria do cinema. Como vimos anteriormente, a inspiração para a sistematização dessa linguagem foi buscada em Dickens, como por exemplo, os planos aproximados, em que a imagem enfatiza uma pessoa ou objeto, plano de conjunto, no qual os atores são vistos de corpo inteiro, como se estivessem no palco, os movimentos de câmera, o próprio recurso da montagem de planos que permite acompanhar duas ações diferentes ao mesmo tempo. No entanto, essa linguagem, mesmo inspirada na literatura do século XIX, adquiriu uma base semioticamente autônoma e tornou-se específica do cinema. João Brito, na tentativa de sintetizar essa questão, arrisca-se a afirmar que “foi querendo imitar a narração literária que o cinema encontrou o seu caminho semiótico e a sua especificidade” (1995, p.193). O posicionamento de Brito sustenta-se à medida que esse fato pode ser observado, ao longo da história do cinema, sobretudo no período de formação da linguagem cinematográfica. Contudo, no período moderno e na contemporaneidade, a situação foi inversa, ou seja, a literatura recorreu ao uso de recursos cinematográficos. Com a nova proposta narrativa do fluxo da consciência, lançado, primeiramente, pelo psicólogo norteamericano William James e propagado pelo escritor irlandês James Joyce e explorado, em seguida, por Virginia Woolf, em que os parâmetros da narrativa tradicional, constituída de começo, meio e fim são substituídos, essa linguagem do cinema migra novamente para a 59 literatura. Com as descrições cênicas dos processos mentais nas narrativas impressionistas modernas, a linguagem do cinema faz-se muito presente. No romance Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf, por exemplo, a presença de técnicas cinematográficas na tessitura do construto narrativo é recorrente. A escritora usa recursos tais como: o flashback, o close-up, o corte e a montagem. O flashback pode ser observado no romance por meio do repasse constante de fluxos da memória e das lembranças dos personagens. O close-up pode ser visto na focalizacão de um detalhe como é o caso das descrições cênicas dos processos mentais dos personagens. O corte pode ser observado na interrupção da apresentação dessas descrições cênicas. A montagem, por sua vez, apresenta-se por meio da disposição e organização de unidades de significação, oriundas das descrições cênicas dos processos mentais. Essas técnicas são subsídios importantes para a construção desse romance que dá ênfase às realidades internas, ao invés da externa. Entretanto, como já salientou Cruz (1997, p.25-26), Virginia Woolf, no seu ensaio “The Cinema” (O Cinema), publicado pelo jornal “Arts in New York”, em junho de 1926, discorda de uma proposta de trânsito natural entre as duas linguagens, já que, segundo ela, a apropriação feita pelo cinema em relação à literatura é indevida. Para a autora: “o cinema recai sobre a sua presa com uma voracidade imensa, e neste momento subsiste em grande parte sobre o corpo de sua pobre vitima. Mas os resultados são desastrosos para ambos. A aliança não é natural” (WOOLF, 1978, p.182).9 Embora Woolf apresente uma visão pessimista em relação à junção natural dessas artes, o que se considera como elemento importante aqui é a sua reflexão sobre a questão do trânsito entre as linguagens e a percepção de uma natureza específica de cada uma delas. Não parece existirem dúvidas do caráter de arte narrativa que o cinema tem. Também não parece existirem dúvidas quanto ao diálogo constante, de natureza até histórica, 9 The cinema fell upon its prey with immense rapacity, and to the moment largely subsists upon the body of its unfortunate victim. But the results are disastrous to both. The alliance is unnatural. 60 entre o cinema e as outras artes. Dentre elas, a literatura se configura até hoje como um dos intermediadores mais significativos desse diálogo. Vejamos mais algumas questões. Cruz (1997, p.28), ao discutir o filme como uma colagem literária, ou seja, o texto cinematográfico como uma conjunção de elementos de origem de textos literários, apresenta argumentos em sua tese que convergem para a associação dessas duas formas de linguagem, corroborando o princípio de “embaralhamento de gêneros” e a dificuldade de delimitação de fronteira entre as ciências sociais, discutidos por Clifford Geertz (2000, p.33-56). O autor vai além ao afirmar que, no período pós-moderno, esse embaralhamento se dá também no nível das mídias. Como exemplo, ele apresenta o filme Blade Runner, de Ridley Scott, como uma ilustração dessa característica de invasão das fronteiras nas artes, o que consolida a ruptura das fronteiras. Para o autor: Assim como a literatura toma emprestado discursos de outros meios, especialmente do cinema, o filme também toma emprestado recursos e técnicas literárias. BR não é simplesmente uma adaptação livre do romance Do Androids Dream of Electric Sheep? De Philip Dick (...). É uma representação, em filme, de diferentes obras literárias por meio do uso de metáforas traduzidas para aquele meio” (CRUZ, 1997, p.28)10. Observamos que, longe de se estabelecerem fronteiras entre essas artes, as discussões deixam clara a situação cada vez mais de convergência na qual elas se encontram na atualidade. Vale ressaltar que a discussão é bastante antiga e a solução definitiva de tal conflito não seria o nosso objetivo aqui. Para efeito de discussão nesta tese, o que se configura enquanto ponto importante de reflexão seria o reconhecimento do caráter indicial que um texto fílmico tem em relação ao texto literário, no caso da transmutação. No entanto, para percorrer na zona limiar entre a literatura e o cinema, zona na qual o analista de tradução fílmica se situa, faz-se necessário estabelecer alguns pontos do que é próprio de cada narrativa: da literária e da cinematográfica. Pretendemos tratar desses pontos mais específicos 10 In the same way that literature borrows discourses from other media, especially from the cinema, so does film borrow literary devices and techniques. BR is not simply a free film adaptation of Philip Dick´s novel Do Androids Dream of Electric Sheep? (...). It is a literary portrayal in film of different literary works through the use of metaphors translated into that medium. 61 em seções seguintes ao longo do capítulo. As linguagens literária e fílmica apresentam uma relação na sua articulação, por integrarem-se ao modo narrativo, mas apresentam, ao mesmo tempo, uma natureza específica que resulta em diferentes formas narrativas. Pela narratividade, ou seja, o aparato que torna um texto narrativo, ambos os textos possuem um construto que lhes é próprio e que fornece a orientação para a concepção e recepção do discurso. Na concepção de Juracy Saraiva (2003, p.9), as narrativas literárias e fílmicas estão ligadas às inúmeras narrativas do mundo e assumem diferentes substâncias de expressão, diferentes funções socioculturais e vários recortes pragmáticos. Para a autora: [...] a narrativa literária e a narrativa fílmica vinculam-se às demais pelo conceito integrador – o modo narrativo – e aproximam-se uma da outra pela natureza fictícia e pela artificialidade que ordena sua concepção, embora esses dois traços não sejam prerrogativas exclusivas do relato literário ou fílmico. Todavia, a similaridade que integra ambas as modalidades narrativas não se esgota na pretensão de instalar um mundo aparentemente possível através de uma linguagem convencional: o ato comunicativo sobre o qual a narrativa literária e a fílmica se fundam, a finalidade que as orienta e técnicas discursivas aproximam uma e outra, embora a diversidade de seus planos de expressão mantenha a fronteira entre os territórios (SARAIVA, 2003, p.10). Percebemos que o ponto de partida para uma possível delimitação de fronteira entre as narrativas literária e fílmica, segundo a posição do autor, seria a diversidade de seus planos de expressão, ou seja, a forma de apresentação de cada discurso. Nessa medida, o ato de narrar não seria, então, simplesmente a representação de uma série de acontecimentos, reais ou fictícios, por meio da linguagem, algo tão evidente como se contar uma história, por exemplo, como afirma Gérard Genette (1971, p.255), mas como uma atividade que pode traduzir o verídico ou instaurar a ficção. E daí surge a questão apontada por Genette, com base nas discussões literárias de meio século, da necessidade de observar o caráter não evidente do ato narrativo e sim do seu “aspecto singular, artificial e problemático”. 62 Rejane Oliveira (2003, p.27), ao tratar da relação cinema e literatura como uma produção de simulacros, reforça a idéia de que, apesar do reconhecimento da linguagem particular de expressão do texto cinematográfico e do texto literário, não se pode pressupor uma separação entre os signos verbais e visuais, já que ambos não se comunicam de forma independentes: os signos verbais explicam os visuais e os signos visuais ilustram os signos verbais. Assim, a escrita e a imagem confirmam a identidade da representação ou níveis de refencialidade, comunicando apenas a semelhança do objeto por cada um representado. A autora complementa que o mais produtivo seria perceber a rede intertextual que se estabelece entre os códigos verbais e visuais, escapando, então, do que é expressamente dito ou mostrado. Isso deveria acontecer, segundo Oliveira: [...] para revelar o próprio mecanismo da representação, em que os signos, quer da escrita, quer da imagem, não sejam vistos em função de uma referência, e sim na sua capacidade de interação, o que, necessariamente, conduz a um deslocamento de identidades, tornando possível compreender como o cinema é lido na literatura e como esta vê-se naquele (OLIVEIRA, 2003, p.26). É nesse sentido de diálogo entre literatura e cinema que a autora pensa o conceito de simulacro como uma categoria mediadora, à medida que as representações literária e cinematográfica encontram-se num processo de simulação, colocado em jogo pela linguagem. Nesse processo, os signos verbais e visuais encenam a sua abertura para o outro. Novamente, percebemos que existem muitos caminhos em que as linguagens do cinema e da literatura se encontram. Mas, para Marcel Martin (1990, p.18), existe um traço que distingue o cinema de todos os outros meios de expressão cultural, que é o fato de sua linguagem funcionar a partir da ‘reprodução fotográfica da realidade’ [sic]. Entendemos que, apesar de, à primeira vista, parecer que toda representação (significante) coincide de forma exata com a informação conceitual que veicula (significado), na verdade, essa representação é sempre mediatizada pelo tratamento fílmico, dado pelo roteiro e pela direção, por meio de técnicas específicas do sistema cinematográfico tais como: os movimentos de câmera, a 63 montagem, o som e a própria escolha das imagens que já desencadeia um direcionamento de leitura para o texto na tela, como observou Cruz (1997). Todo esse aparato é constituinte de uma realidade própria, um construto de segmentos autônomos que, ao serem articulados e interligados, dão sentido ao conjunto narrativo, ou seja, o filme, o que Christian Metz chama “o sintagma máximo do cinema” (1979, p.202). Vale ressaltar que a autonomia desses segmentos é, portanto, limitada, porque o sentido tomado por cada um deles só se constrói em relação ao filme. Existe, na própria relação interna desse texto cinematográfico, um conjunto de elementos que interagem e se completam através de suas relações. Isto se consolida por meio de influência direta das instâncias operacionais na realização do filme, ou seja, o roteiro, a filmagem, a direção e a edição. Assim, a realidade que se apresenta na tela nunca é totalmente neutra, mas sempre um signo de algo mais. É o que Martin chama de “dialética de significante-significado” (1990, p.18). Assim como o texto narrativo, a poesia e o teatro também estabelecem um diálogo significativo com o cinema. Esse diálogo se dá desde os princípios de estruturação do cinema e até mesmo devido à sua condição de linguagem de cunho poético e dramático por natureza. Por conseguinte, podemos vislumbrar algumas formas de fazer um percurso para se chegar aos territórios culturais em que essas artes se encontram. Ao tratar do encontro da poesia com o cinema, Eduardo Cañizal confronta pontos de vista na tentativa de percorrer uma trilha aberta por profissionais que, além de realizadores, são também, de certa forma, teóricos. Para tal, o autor focaliza o conceito de poesia posto por Paolo Pazolini (1973) e Jean Epstein (1996, p.353). Assim, Cañizal aponta a diferença no conceito de poesia que cada um desses cineastas apresenta. Para Cañizal: [...] nos conceitos de cada um desses dois cineastas, o termo poesia não designa exatamente a mesma coisa. Epstein se vincula à tradição de uma teoria do cinema calçada com os pressupostos da estética normativa e Pasolini, embora não tenha escapulido totalmente dessa ideologia, incursiona 64 pelos atalhos da semiótica procurando uma metalinguagem capaz de descrever de modo sistemático seu objeto de análise (1996, p.354). Partindo dessa observação de Cañizal, mais uma vez observamos a dificuldade de se traçar um posicionamento claro do que seja o encontro da poesia com o cinema. Existem, então, dois posicionamentos aparentemente distintos, mas que, na verdade, convergem significativamente à medida que ambos buscam traçar uma estética própria nesse encontro de linguagens e favorecem uma leitura poética do filme. Esses cineastas, na concepção de Cañizal, têm pensamentos coincidentes no “pressuposto de que o cinema, enquanto sistema estético, faz do filme um instrumento de poesia“ (1996, p.355). Nesse sentido, o processo de consciência artística do cineasta está na composição fílmica. Ele manipula os planos assim como o poeta manipula as palavras. A manipulação de imagens apresenta questões problemáticas no que se refere a postulados das teorias do cinema. Isso se dá pela dualidade semântico-expressiva nos recortes da realidade tomados nas telas, sob o ponto de vista das ideologias e do chamado pensamento científico. Tal dualidade é, ainda segundo Cañizal, um traço relevante da especificidade cinematográfica pelo caráter de duplicidade vinda da fotografia (1996, p.360). Assim, as teorias do cinema clássico, que admitem um excesso de esteticismo, vêem nessa duplicidade da fotografia a idéia de compromisso com a realidade e a implicação do aspecto científico no texto fílmico. O autor apresenta, como exemplo, Metz, que, mesmo sendo um teórico que se opõe ao excesso de esteticismo, admite que o enunciado pode ser científico, em alguns casos, mas a enunciação não (p. 360). Com essa idéia, parece claro o reconhecimento de que no significante de um construto de conotações também existe “uma forte carga de referencialidade, de comprometimento com o real despido de qualquer poesia” (CAÑIZAL, 1996, p.360). Em termos práticos, esse movimento duplo de representação da imagem apresenta diferentes instâncias significativas. No caso do filme Sra. Dalloway (1997), para citarmos um exemplo 65 que se enquadra nesse ponto de vista, as cenas que mostram a cidade de Londres são uma representação de uma visão da Londres dos anos vinte. No entanto, na construção narrativa do texto nas telas por Marleen Gorris, a imagem “real”, enquanto texto significante, passa a uma instância conotativa, ou seja, o sentido que o texto produz ultrapassa o caráter de cientificidade da imagem, dando margem à leitura poética, já que o espectador capta não somente a Londres real. Outros conteúdos subjacentes existem e são incorporados à leitura do espectador à medida que a narrativa se desenvolve com a presença das pessoas, das ruas, dos jardins, do Big Ben etc, configurando-se enquanto elementos simbólicos e metafóricos. Percebemos que o efeito poético tem uma função definida no filme e é fruto da manipulação das imagens por parte da direção. Diante das questões levantadas, parece evidente o traço de entrelaçamento entre o cinema e a poesia. No entanto, há divergências quanto à formulação da relação perfeitamente simétrica que aparentemente se estabelece entre os dois campos. Brito (1995, p.229), por exemplo, apresenta argumentos, no sentido de desconstruir a existência da simetria em que o discurso poético corre no sentido do símbolo para o ícone, via índice, em oposição diametral ao discurso fílmico, já que este parte do ícone para o símbolo, também passando pelo índice. Na concepção do autor, tal formulação não se sustenta por muito tempo devido às diferenças semióticas inerentes às duas modalidades de discurso. O autor explica: Assim, na poesia é muito mais “aceitável” – se for o caso – uma tendência generalizada (“generalizada” no sentido de atingir a totalidade do texto, e não da poesia) à iconização do que a sua equivalente simbolização no cinema. O problema é que o cinema, ao contrário da poesia, é por natureza narrativo, e o signo narrativo possui um funcionamento pragmático que o signo enunciativo da poesia desconhece. Por sua vez, esse signo enunciativo contém uma densidade de significação que o seu parceiro narrativo só suporta em circunstâncias especiais (1995, p.230). O posicionamento de Brito quanto a essa tendência natural do texto poético à iconização é aceitável, já que a sua própria estrutura enquanto gênero é reduzida, causando efeito rápido de impacto na recepção, e isso não se aplicaria à narrativa. Entretanto, parece 66 precipitado fazer essa separação radical entre essas duas instâncias dos textos, ou seja, o “funcionamento pragmático” da narrativa e a “densidade de significação” da poesia. O que se pode observar é que há um confronto de significados nos dois níveis de linguagem, um de valor plástico e o outro de valor simbólico. No primeiro caso, encontra-se o cinema que manifesta, por meio das imagens cinematográficas, uma “realidade” dos objetos representados. No segundo, encontra-se a poesia que manifesta a expressividade da linguagem que esses objetos adquirem ao serem representados. Assim, nada impede que o trânsito entre esses valores sejam constantes nos meios, fazendo com que o status artístico de cada um deles se preserve. O teatro também tem sua participação na formação da linguagem cinematográfica e faz parte do processo de interação com o cinema. O próprio Eisenstein (1990, p.17) confessa o intercâmbio experimental feito por ele entre as duas artes na encenação da peça de Ostrovsky, Mesmo o mais sábio se deixa enganar, no teatro do Protkult (Moscou, março de 1923). Para explicar o procedimento usado, o autor apresenta o fato de a peça conter um filme de curta metragem cômico, feito especialmente para ela. O filme não era separado, mas incluído no plano de montagem do espetáculo. Desse modo, elementos de especificidade do cinema já podiam ser detectados. O autor assim se justifica: Concordamos que o primeiro sinal de uma tendência do cinema é mostrar eventos com o mínimo de distorção, objetivando a realidade factual dos fragmentos. Uma busca nessa direção mostra o começo de minhas tendências cinematográficas três anos antes, na produção de O Mexicano (de história de Jack London)11. Aqui, minha participação levou para o teatro os próprios “eventos” – um elemento puramente cinematográfico, porque diferente das “reações aos eventos”, um elemento puramente teatral (1990, p.17). Nesse caso específico, Eisenstein, que atuou na tarefa oficial de desenhista na montagem do espetáculo, interferiu, enquanto cineasta, do ponto de vista do diálogo entre as . 11 A peça The Mexican Felipe Rivera foi traduzida para o teatro por Boris Arvatov e dirigida por Valentin Sergeievitch Smishlaiev, com a colaboração de Eisenstein. O espetáculo estreou em Moscou em maio de 1921. 67 concepções das especificidades nos gêneros. Ao deslocar o teatro de um cenário puramente fictício para um mais realista, aproximando-o do cinema, o autor descobrira um novo rumo, “um elemento materialista-factual do teatro” (EISENSTEIN, 1990, p.18). A aproximação do teatro e do cinema, proposta por Eisenstein, marca um ponto de ecletismo na nova cinematografia. Essa relação no período do cinema mudo apresentava grandes divergências e uma tendência a uma forte distinção entre as duas artes. Enquanto o cinema se escusava do uso dos sons, o teatro fazia dele um elemento essencial a sua assimilação. A nova natureza eclética do cinema, segundo Eduardo Coutinho (1996, p.127), deu ao cinema um estatuto de campo fecundo, propício, ao consumo do teatro, “a ponto de dizer-se corretamente, que o filme é teatro fotografado”. Thaís Diniz (1998, p.317) reconhece que historicamente muitos filmes usaram o teatro como fonte, devido à idéia de semelhança entre os dois meios de linguagem, em termos de espectáculo. Entretanto, a autora reforça que isso aconteceu com os primeiros filmes, quando eram apenas reproduções mecânicas dos dramas, simples teatro filmado, num momento em que ainda não se exploravam plenamente as várias formas de desenvolvimento da narrativa cinematográfica. Conclui, portanto, que: Hoje, os cineastas, conscientes da precariedade desse procedimento – que desprezava os recursos do meio utilizado – se valem das possibilidades temporais e espaciais ilimitadas do cinema para expandir o drama, isto é, usam equivalentes cinematográficos para determinados signos teatrais (DINIZ, 1998, p. 317). Uma outra questão importante ressaltada por Coutinho (1996, p.128) na construção desse diálogo é o fenômeno da equiparação entre a feição silenciosa do cinema e a feição mímica do teatro. A mímica teatral se reserva aos desempenhos, restringe-se à capacidade técnica, de forma que o distanciamento entre a encenação e o espectador assume uma grande importância para os efeitos dessa encenação. No cinema, por outro lado, a câmera 68 se encarrega, com os seus próprios recursos, de aproximar ou afastar, seguindo o que há pressuposto no roteiro. Quanto ao efeito dramático, as duas artes também apresentam suas especificidades. O teatro supervaloriza as visualizações por meio das atitudes faciais. Neste caso, a presença do corpo inteiro do autor em cena é, na maioria dos casos, necessária. No cinema, o uso da câmera objetiva favorece a visualização de partes específicas do corpo, ou seja, partes importantes para se atingir o tom dramático da cena. Para Coutinho (1996, p.128), ao agir de tal forma, o cinema apresenta a parcialização da realidade, “traduz uma espécie de mímica exercitada”. O autor, então, vislumbra um ponto de convergência entre o cinema e o teatro. Com toda essa natureza eclética da nova cinematografia, particularmente, com a composição falada e colorida, em que os recursos são os mais variados, Coutinho percebe que, em alguns momentos, o cinema parece depender do teatro, pois às vezes a música e os ruídos em um filme se sobrepõem ao uso da câmera. Assim, chega até ser paradoxal uma convergência tão clara desses gêneros que antes fora totalmente negada pela questão da natureza sonora de um, o teatro, e natureza não sonora de outro, o cinema (quando ainda era mudo). Porém, não se trata, aqui, de tentar resolver esse paradoxo, até porque, ao adotarmos tal postura, estaríamos negando um princípio básico do paradigma nas ciências na contemporaneidade, que é o processo de hibridização encontrado nos fenômenos artísticos, também conhecido como hibridização das artes. O que se configura como importante para o propósito desta tese é tentar entender algumas especificidades de cada discurso para se chegar a uma melhor descrição e análise do processo de tradução de um meio para o outro e o fato de levantarmos esses pontos de convergência entre os gêneros corrobora esse paradigma. 69 Vale ressaltar que, embora reconheçamos muitos pontos de convergência entre o cinema e o teatro, já que ambos apresentam uma grande variedade de sistemas de operação de significação, também reconhecemos pontos que os particularizam. No cinema, por exemplo, o material de expressão é constituído não somente de imagens, mas também de palavras, signos impressos, música e ruído. O teatro também apresenta uma grande variação de sistemas de significação em operação: cenário físico, contexto cultural, texto dramático, interpretação artística dos atores. Diniz (1998, p. 316) reforça que, além disso, podemos acrescentar outros elementos como os das artes cênicas: mímica, dança, circo e uma grande variedade de formas híbridas, muito comuns atualmente. Apesar dessa rápida discussão levantada acima em torno da possibilidade ou não do estabelecimento das fronteiras entre o literário e o cinematográfico, a tentativa de mostrar traços particulares de cada um desses tipos de narrativas e o reconhecimento de que cada uma tem sua forma significante, a nossa intenção, neste trabalho, não é fazer um estudo isolado das narrativas do presente corpus. Entretanto, queremos observar a complementaridade dessas duas linguagens na forma de apresentação de algumas imagens do universo literário de Woolf, por meio da tradução de Mrs. Dalloway, tanto na narrativa literária, de Michael Cunningham, quanto nas narrativas cinematográficas, de Stephen Daldry e de Marleen Gorris. 2.2 A POÉTICA DA NARRATIVA LITERÁRIA A narrativa se configura como elemento imprescindível, sempre presente em todas as atividades humanas. O mundo é permeado pela manifestação desse fenômeno comunicativo que se apresenta por meio de variadas formas e gêneros, que, a partir deles, estabelecem uma dinâmica constante de reprodução de substâncias factuais ou fictícias. 70 Roland Barthes (1971, p.19), ao apresentar a narrativa como um fenômeno presente em todos os tempos, lugares e em todas as sociedades, enumera as formas quase infinitas de sua manifestação: [...] a narrativa pode ser sustentada pela linguagem articulada, oral ou escrita, pela imagem fixa ou móvel, pelo gesto ou pela mistura ordenada de todas essas substâncias; está presente no mito, na lenda, na fábula, no conto, na novela, na epopéia, na história, na tragédia, no drama, na comédia, na pantomima, na pintura (recorde-se a Santa Úrsula de Carpaccio), no vitral, no cinema, nas histórias em quadrinhos, no fait divers, na conversação (1971, p.19). Por tratar-se de um fenômeno humano, a narrativa, na forma apresentada por Barthes, apresenta-se como uma atividade exercida por grupos humanos de todas as classes e culturas. Por essa razão, a narrativa “ridiculariza a boa e a má literatura: internacional, transhistórica, transcultural” (p. 20). Diante de tais afirmações tão generalizantes, que dão à narrativa um estatuto de “universalidade”, percebemos dois caminhos que podem tomar posições completamente opostas. De um lado, podemos reiterar a pergunta formulada pelo próprio Barthes, no que diz respeito a um fenômeno tão geral, que nada se pode afirmar e, daí, dá-se margem à idéia de sua insignificância. Por outro lado, poderíamos também observar essa variedade de formas e tentarmos estabelecer parâmetros de reconhecimentos por meio de descrições e reflexões de padrões de regularidades que regem os diferentes formatos narrativos. A busca pela resolução do impasse é uma tarefa há tempos desenvolvida pela história literária e por muitos outros teóricos que se propuseram a se debruçar sobre a questão. Sabemos que a tentativa de lidar com aspectos da narrativa vem desde A Poética, de Aristóteles, uma obra que delineou um quadro teórico, levantou muitas questões e abriu o debate para possíveis respostas. Seguindo a busca por uma sistematização dos estudos a respeito das questões narrativas, Seymour Chatman (1986, p.17) apresenta algumas das principais correntes teóricas que lançaram olhares sobre a poética da narrativa literária: as tradições anglo-americana, russa 71 e francesa. A primeira corrente constitui-se pelos estudos sobre a narrativa de Henry James, Percy Lubbock e Wayne Booth. A segunda, por teóricos do formalismo russo tais como Eichnbaum, Shklosvsky, Jakobson, Vinogradov, Tynianov, Brik, Propp e Bakhitin. E a terceira pelos estruturalistas franceses formada por Claude Lévi-Strauss, Claude Bremond, Roland Barthes, Gérard Genette, A. J. Greimas e outros. Tanto os formalistas quanto os estruturalistas apresentam o argumento de que não é o texto literário que é o sujeito da poética, mas a sua literariedade. Todos esses autores, sem dúvida, contribuíram para o debate e para as formulações de estruturação e funcionamento da narrativa literária. Sinalizaram pontos importantes que atendem (ou, pelo menos atendiam) aos propósitos narrativos de cada época. Vladimir Propp (1984), por exemplo, no seu estudo que apresentava características fixas à narrativa do conto fantástico russo, estabeleceu elementos importantes de categorizarão desse tipo de narrativa. No entanto, os elementos, certamente, não se adequam mais à narrativa moderna. Tzvetan Todorov, numa tentativa de elevar os estudos literários como uma ciência da literatura, firma-se no enunciado de Jakobson de que se deve estudar a “literariedade” e não a literatura, como uma fonte de redefinição do objeto de estudo. O autor reage, portanto, contra o que ele chama de o desprezo, por bastante tempo, da verdadeira significação do postulado de Jakobson e afirma o seguinte: [...] não visa a substituir um estudo imanente de enfoque transcendente (psicológico, sociológico ou filosófico) que reinava até então: em nenhum caso limita-se à descrição de uma obra. O que não poderia além disso ser o objetivo de uma ciência (e é mesmo de uma ciência de que se trata). Seria mais justo afirmar que, em lugar de projetar a obra sobre um outro tipo de discurso, ela é projetada aqui sobre o discurso literário (TODOROV, 1976, p.209). O autor submete a obra à condição de objeto subordinado ao discurso literário a que está submetida, ou seja, a narrativa estaria fadada à condição de correlação com múltiplas significações que aparecem no decorrer da leitura. O próprio autor reconhece o fato como um 72 problema se se levar em conta a indagação de qual dessas significações estão ligadas à idéia de literariedade. Para resolução de tal problema, Todorov propõe um sistema de noções que, segundo ele, serviriam para o estudo do discurso literário. A primeira seria a idéia de que a obra literária, em nível mais geral, apresenta dois aspectos: é uma história e um discurso. Tal noção já foi apresentada pelos formalistas russos com a idéia de fábula e assunto e pela retórica clássica com o inventio e dispositio. Por meio dessa subdivisão, o autor funda categorias da narrativa literária, tomando como referência o romance francês Les Liaisons Dangereuses (1782), de Chordelos de Laclos. Ele parte da noção de narrativa como história para tratar da lógica das ações e dos personagens e suas relações. Em seguida, discute a narrativa como discurso para tratar do tempo, dos aspectos e dos modos da narrativa. As observações de Todorov pressupõem uma estrutura da narrativa literária, o que ele próprio denomina de “uma certa ordem” (p. 247). Assim como a postura estruturalista de Todorov, muitos foram os críticos que tentaram teorizar e entender essa possível “ordem” na estrutura da narrativa literária, levando em conta os aspectos relacionados à organização da sua estrutura interna, o funcionamento das estruturas nos seus contextos de produção e o estabelecimento de padrões regulares que pudessem delimitar uma poética particular. Uma questão importante que sempre acompanhou as discussões é o fato de a narrativa sempre estar construindo e comunicando informações sobre uma ação e sobre um processo. O caráter constante de construção, próprio da narrativa, é transmitido ao leitor por meio de várias técnicas discursivas. Devido à variedade de técnicas que se manifestam por meio da organização dos eventos narrativos, da construção dos personagens, da maneira de lidar com o tempo e da própria forma de contar os fatos, os teóricos tendem sempre a lidar com a narrativa, levando em consideração a diferenciação de planos que, embora possam convergir para o mesmo objeto, ou seja, o texto narrativo, têm níveis funcionais distintos. Os 73 formalistas russos, por exemplo, distinguiram pelo menos dois planos, a fábula (fabula) e a intriga (sjuzet – doravante enredo). O primeiro diz respeito aos acontecimentos representados nas suas relações internas, às suas relações cronológicas e causais, o que, na concepção de Victor Manuel Silva “constitui, em rigor, um elemento pré-literário (...) material destinado à elaboração da intriga” (1988, p.711). O segundo diz respeito à apresentação dos mesmos acontecimentos, do ponto de vista da construção estética do texto, ou seja, constitui um elemento literário. Essa dicotomia conceitual subdivide a narrativa quanto aos seus elementos constitutivos. De um lado, temos um construto elaborado por meio de uma relação de causa e efeito (fábula) e do outro, a ordenação de eventos estruturados num tecido narrativo particular (enredo). A definição dos dois planos é importante para o entendimento do mecanismo de funcionamento das narrativas. Entretanto, o enredo apresenta-se como mais produtivo para o nosso propósito de análise, já que tratamos da tradução de aspectos constitutivos particulares de um tipo específico de narrativa, a narrativa moderna de Virginia Woolf. A narrativa moderna do início do século XX caracteriza-se, principalmente, pelo afastamento do romance psicológico e realista ou naturalista do século anterior. Esse romance que estamos chamando de tradicional tinha como base central dos enredos a descrição da realidade empírica com a delineação clara da idéia de causalidade (lei de causa e efeito), de encadeamento lógico de motivos e situações com seu início, meio e fim (ROSENFELD, 1996, p.84). O seu enredo é bem delimitado e os personagens e os eventos são construídos de forma nítida, com caráter bem definido, já que são elaborados numa seqüência causal com tempo cronologicamente ‘coerente’. A narrativa moderna, por outro lado, reage contra esse modo de articulação entre literatura e realidade. João Barbosa (1993, p.23) argumenta que há um descompasso entre a realidade e a sua representação, “exigindo, assim, reformulação e rupturas dos modelos 74 realistas”. Isso se deu pelo redimensionamento estrutural das narrativas. O enredo passou a ser desvalorizado e a ênfase recaiu sobre o aprofundamento da análise psicológica das personagens. Como afirma Anatol Rosenfeld (1996, p. 23), espaço, tempo e causalidade foram “desmascarados” como meras aparências exteriores, ou seja, a narrativa se preocupa em retratar os movimentos internos que se realizam na mente dos personagens. Daí, justificase o uso da técnica do fluxo da consciência na tentativa de apreender os processos mentais como Woolf o fez. Silva (1988, p.734) denomina o romance de Virginia Woolf de impressionista12 e aponta possíveis influências na sua configuração. Para o autor, é possível que esse tipo de romance tenha atuado como estímulo a uma reação contra o cinema mudo, assim como aconteceu com a pintura impressionista que representara uma reação contra a fotografia. Conforme argumenta sobre o cinema mudo: “o cinema, na verdade, podia traduzir um enredo movimentado e rico de peripécias, mas não conseguia apreender a vida secreta e profunda das consciências” (p. 734). A tentativa de captar todo esse universo intimista dos personagens dá ao romance um ritmo narrativo lento, sem a preocupação necessária de descrição da realidade externa circundante e contar uma história propriamente dita. Por conseguinte, a narrativa em questão é vanguardista por quebrar os parâmetros da narrativa tradicional. É impressionista por lidar com o material lingüístico no nível da consciência. A preocupação fundamental da narrativa passa a ser o desvelamento e o aprofundamento da complexidade do eu, criando uma nova linguagem que reflete o mundo interior e a fluidez do material existente na consciência, pela livre associação de idéias e a 12 Para Moisés (1988, p.287), o termo impressionismo, transportado para a literatura apresenta um contorno semântico difícil de apontar. Entretanto, o autor apresenta entre outros conceitos os dos irmãos Goncourt (Edmond, 1822-1869; Jules, 1830-1870), que procuraram transpor para a ficção a técnica da pintura impressionista, por meio de minuciosas descrições, como se buscassem pintar com as palavras, realizando a “escritura artística”, retratando as sensações e não as coisas. A definição em questão faz-nos concordar com a classificação dada por Silva ao romance de Woolf, e, por isso, utilizá-la ao longo desta tese. 75 mobilidade em relação ao tempo. Humphrey (1972, p.42) atribui como responsáveis pelo rompimento com a herança naturalista e realista os estudos sobre a consciência e a sua relação com o tempo dos filósofos William James e Henry Bergson. O primeiro, por tratar do movimento ininterrupto de sentimentos e impressões vivenciadas pelo indivíduo. E o segundo, por tratar da idéia de “durée” (duração), que consiste no reconhecimento de que existe a sucessão de estados de consciência, que se fundem entre o presente e o passado. Robert Humphrey (1972, p.8-9) argumenta que há na narrativa do fluxo da consciência aspectos do naturalismo na apresentação dos personagens. Porém estes diferem das narrativas naturalistas pela ênfase no aspecto psicológico. Os autores que usam essa técnica se comportam como naturalistas na medida em que tentam descrever a vida. No entanto, ao contrário dos naturalistas, estão preocupados com a vida psíquica individual. Essa idéia reafirma uma das principais pressuposições de Woolf na concepção do novo modelo de romance e uma mudança de atitude por parte de qualquer escritor ao lidar com a descrição do “real” no texto literário. Para a autora, a tarefa importante do artista é expressar a sua visão subjetiva da realidade (WOOLF, 1989, p.150). Ao discutirmos a tradução de tal narrativa para o cinema, percebemos que a utilização dos conceitos de fábula e enredo contribui para a delimitação dos seus elementos constitutivos e a articulação desses elementos dentro do universo da composição. Assim como essa divisão de conceitos dos formalistas russos, outras distinções também surgiram, tais como story e plot, de E. M. Forster; história e discurso de Todorov (já mencionado acima); narrativa (récit) e discurso e, em seguida, história ou diegese (o significado ou conteúdo narrativo), a narrativa propriamente dita e narração de Genette e a retomada de Chatman na distinção entre história e discurso (SILVA, 1988, p. 712). Além dessas categorias binárias, Silva (ibidem) apresenta a divisão tripartite de Lubomir Dolezel: a) 76 o nível dos motivemas, b) a estrutura dos motivos e c) a textura dos motivos; e o modelo quatripartido de Cesare Segre: a) o discurso, b) a intriga, c) a fábula e d) o modelo narrativo. Observamos que tal variedade de subdivisões taxionômicas da narrativa literária, na verdade, são tentativas de mapear, delimitar e estabelecer as configurações sistemáticas que constituem o texto narrativo. Nesse sentido, observamos que se trata de um construto de natureza difusa, já que, em todas as classificações, a narrativa se apresenta como objeto dual em que há uma unidade aparentemente fixa, um elemento pré-literário e, ao mesmo tempo, um discurso que se sobrepõe à unidade e lhe dá uma nova “textura”, tornando-a literária. São características independentes, mas que se solidarizam para a concepção da narrativa. Não podemos de forma alguma desconsiderar essas tentativas de mapeamento e garimpagem do “terreno narrativo” que vêm desde Aristóteles, mas também não podemos simplesmente assumir que tais classificações e conceitos dêem conta da análise de todas as narrativas, já que elas se configuram como objetos de deslocamentos constantes, tanto estilísticos quanto lingüísticos, frutos dos contextos sócio-históricos a que estão submetidas, como é o caso de redimensionamento da narrativa moderna em que o enredo não é tão importante quanto na narrativa tradicional como vimos acima. Mikhail Bakhtin (1998, p.71), mesmo tendo pertencido ao formalismo russo, elimina a compartimentalização do discurso literário e retira a idéia do texto enquanto objeto estático. Ao contrário, ele faz uma substituição por uma concepção em que a estrutura literária é fundada em relação a uma outra estrutura, ou seja, constitui-se elemento de diálogo com os vários setores históricos e sociais que circundam o texto. Para Bakhtin: A forma e o conteúdo estão unidos no discurso, entendido como fenômeno social – social em todas as esferas da sua existência e em todos os seus momentos – desde a imagem sonora até os estratos semânticos mais abstratos (1998, p.71). A idéia de texto como fenômeno social foi um dos importantes pontos levantados por Bakhtin, que repensa as abordagens de estudo estrutural da narrativa. Se tanto os 77 formalistas russos quanto os estruturalistas estavam sempre construindo modelos de análises nos quais observavam o texto por ele mesmo, buscando selecionar e categorizar as suas relações internas, por mais que, por algumas vezes, um nível macroestrutural fosse sugerido, é esse novo olhar sobre o estudo das narrativas que sinaliza um ponto de partida para o entendimento de que não se trata de observar somente as configurações internas per si, que também são importantes, mas trata-se, além disso, de observar as configurações e as suas relações de funcionamento nos contextos sócio-históricos. Julia Kristeva (1978, p.70) postula que a atitude de Bakhtin reflete uma dinamização do estruturalismo. A autora afirma que: Esta dinamização do estruturalismo só é possível a partir de uma concepção segundo a qual <palavra literária> é, não um ponto (um sentido fixo), mas um cruzamento de superfícies textuais, um diálogo de várias escritas: do escritor, do destinatário (ou da personagem), do contexto cultural actual ou anterior (p. 70). Nesse sentido, a análise das narrativas literárias isenta-se do caráter redutor a que as narrativas pareciam estar submetidas nas propostas até então postas em evidência. Se olharmos a narrativa literária, sob esse ponto de vista mais aberto, no sentido de percebê-la enquanto “cruzamentos de superfícies textuais”, poderemos vislumbrar todo o aparato orgânico e estrutural que envolve as atividades funcionais que circundam o texto, o que facilita um melhor entendimento da poética das narrativas dentro dos mais variados contextos. A “dinamização” bakhtiniana do estruturalismo aponta também para uma nova percepção da narrativa literária como ponte dialógica com as estruturas sociais. Ao negar, ou pelo menos, reconfigurar a idéia do texto enquanto sentido fixo, o postulado passa a conceber a narrativa literária como produto de significação que interage com os vários contextos de produção e recepção dos textos. Com a idéia de interação entre os textos, do diálogo de movimento duplo em que, ao mesmo tempo que o texto se constitui objeto de produção, ele é também objeto de recepção 78 de significado, a narrativa literária, assim como todas as narrativas, assume uma posição de deslocamento constante entre o centro e a periferia do sistema do qual faz parte, corroborando o princípio teórico-filosófico de différance de Jacques Derrida. De acordo com esse princípio, a estrutura está definida por um jogo que produz um movimento de diferença e os efeitos da diferença em que “o centro não é o centro” (1971, p.230). Assim, não há mais uma forma binária de diferença entre o que é absolutamente o mesmo e o que é absolutamente o outro. O que há é um conjunto de similaridades e diferenças que rompe com a idéia de oposições binárias fixas. A dinâmica se dá segundo o funcionamento estrutural de um sistema organizacional que compreende vários processos, desde a sua concepção à sua recepção, que denominamos de poética. A observação do movimento duplo é reflexo das questões sobre jogo da estrutura, postuladas por Derrida, na década de 60, que desconstróem o caráter logocêntrico, ou seja, repensam a idéia de essência do texto, tão discutida no formalismo e no estruturalismo, em que pressupunha uma interpretação única e a busca de uma verdade (SOUZA, 2002, p.84-85). Essa visão torna-se produtiva nesta pesquisa, porque sugere a ampliação do quadro de análise da narrativa, enquanto texto tradutor. Estamos diante de duas visões extremas em que, de um lado, temos a narrativa literária como detentora de um significado intrínseco e que o transmite para seus leitores e, do outro, a negação de uma pretensa instância significativa essencial. Corroborando o posicionamento de alguns críticos literários, no final da década de 60, quanto às restrições das abordagens da primeira visão discutida acima, Siegfried Schmidt (1990, p.4) argumenta a importância da estética da recepção para se repensar a postura em questão. Para o autor: A estética da recepção ensinou a lição que os textos literários não carregam seus significados simplesmente neles mesmos e os transmite para (todos) os leitores. Ao invés disso, o significado surge no contínuo diálogo entre materialidade textual e esforços de recepção que estão necessariamente 79 embutidos nos contextos social, cultural, político e econômico assim como em situações biográficas complexas de todos aqueles que lidam com quaisquer que sejam os fenômenos literários (SCHMIDT,1990, p.4).13 As considerações do autor sobre o caráter dialógico, pressuposto da estética da recepção, reforçam a idéia de interação entre a narrativa literária e as estruturas sociais, já discutida acima, quando mencionamos Bakhtin. Contudo, nesse caso, o autor apresenta, além das questões ligadas ao texto literário em si, questões ligadas às atividades literárias, ou seja, os aspectos contextuais que o cercam. Assim, todas as formas de reescrituras, inclusive a tradução, inserem-se como parte importante na organização da poética da narrativa literária, pois, à medida que discutem o texto, projetam sua imagem em diferentes meios de linguagem, deslocam sua posição de periferia a centro ou vice versa, por estarem constantemente relendo essas narrativas nos diferentes momentos da história. Se levarmos em consideração o primeiro momento da publicação do romance As Horas, como exemplo desse fenômeno, podemos ilustrar o fato. Ao observarmos a sua inserção na poética de Cunningham, o romance passa a ser visto, a priori, como um best-seller, já que essa é a posição ocupada pelo conjunto de obras do autor no cânone literário americano. Com as constantes reescrituras em que sempre recorrem a Mrs. Dalloway, como fonte primeira de inspiração, a poética vai aos poucos sendo redefinida. A partir da reescritura no cinema, em que o público é ampliado e em que o diálogo da obra se dá não somente com o público leitor, mas também com o espectador, a narrativa de Cunningham tem assumido uma posição canônica diferente daquela logo após o seu lançamento, ou seja, aos poucos vai sendo autorizada a sair da posição de periferia para o centro. Ousaríamos até afirmar que para a maioria dos espectadores do filme As Horas, o romance As Horas tem uma posição tão central no cânone quanto o romance Mrs. Dalloway. 13 Reception theory taught the lesson that literary texts do not simply bear their meanings in themselves and convey it to (all) readers. Instead meaning arises in the continual interplay between text –materiality and receptional efforts which are necessarily embedded in social, cultural, political and economic contexts as well as in complex biographical situations of all those dealing with literary phenomena in whatever respect. 80 O deslocamento não se dá simplesmente por meio da observação de escolhas estéticas pela elaboração da linguagem fílmica, ou mesmo pela apresentação dos temas na narrativa, mas, principalmente, pelas reescrituras que sempre mencionam ecos de uma obra canônica da literatura moderna, Mrs. Dalloway. Essas conjecturas só podem ser feitas a partir do momento em que o olhar sobre a narrativa literária não esteja mais reduzido à classificação de “alta” ou “baixa” literatura, ou a regras fixas de determinação de categorias do que é literário ou não-literário. Ao contrário, elas serão feitas a partir do momento em que se apresente um novo olhar que perceba o texto como fenômeno social, que adquire valor poético/estético por meio da interação com os mais variados contextos (CRUZ, 2003). Schmidt (1990, p.5), ao aprofundar a discussão sobre os aspectos contextuais, vislumbra a literatura como um sistema social de organização própria e apresenta as atividades literárias que, segundo ele, são manifestações de funções ativas, que desde o século XVIII têm se profissionalizado e se institucionalizado. O autor propõe uma classificação de quatro funções: a produção literária, a mediação literária, a recepção literária e o pós-processo literário. A primeira função compreende todas as atividades que envolvem um produto, o qual um produtor ou um grupo de produtores julgam literário de acordo com os critérios estéticos desses produtores no momento da produção. Um exemplo seria a escrita de um poema. A segunda função diz respeito a todas as atividades que tornam o produto literário acessível a outros leitores por meio de uma mediatização adequada. Um exemplo seria a produção e distribuição de um livro escrito a partir de um manuscrito. A terceira função compreende todas as atividades por meio das quais os destinatários atribuem significados para um produto que eles julgam literário de acordo com seus critérios implícitos e explícitos. Um exemplo, nesse caso, seria a interpretação de um romance. E a última função para Schmidt compreende todas as atividades das pessoas que classificam um produto como um fenômeno que eles julgam literário, 81 estabelecendo uma relação perceptível entre um fenômeno qualquer e os resultados de pósprocesso. Como exemplo dessa função estão relações como análises, descrições, avaliação ou comentários que podem ser estabelecidos em interpretações, resenhas, canonizações ou traduções de fenômenos literários para as telas. Observamos que essas funções supracitadas redimensionam o próprio conceito de literatura e o seu funcionamento dentro da poética, pois coloca o texto literário como parte integrante do sistema e cada uma dessas atividades se configura como elemento importante para o estabelecimento do cânone de uma determinada obra. Dessa forma, mais uma vez as categorizações fixas e o argumento do texto como construto autônomo que apresenta um “valor estético” intrínseco a ele não se sustentam mais, como já observou Cruz (2003, p.211), pelo menos nessa perspectiva, na qual temos insistido ao longo das discussões. Além desse fato, um outro ponto merece destaque na descrição dessas funções que é a menção dos conceitos de ‘produto literário’ e ‘fenômeno literário’. Tais conceitos parecem bastante produtivos nos estudos recentes, já que não podemos mais considerar somente os livros como fonte de acesso à literatura. Os filmes na TV, os vídeo clips, o teletexto, a revista em quadrinhos, os textos na internet e tantos outros textos que circulam na mídia diariamente também podem ser vistos como fenômenos de difusão de textos literários à medida que são produtos culturais, que estão cada vez mais em contato com diferentes públicos. Para lidarmos com as reescrituras de Mrs. Dalloway nesta pesquisa, admitimos que o reconhecimento dessas funções propostas por Schmidt no funcionamento da poética das narrativas do corpus no processo de análise das traduções é importante, pois facilita-nos delinear um quadro sistêmico de cada uma delas e seus efeitos em cada um dos contextos. No entanto, a última função, ou seja, o pós-processo literário é a que particularmente mais nos interessa, já que estamos tratando de um fenômeno de tradução entre meios diferentes de linguagem, estabelecendo relações entre textos reescritores e um texto de partida. 82 Ao traçarmos um percurso de mapeamento da poética da narrativa literária, em que diferentes perspectivas de olhares sobre esse fenômeno foram discutidos, compreendemos que essa questão, longe de estar encerrada, aponta para novas possibilidades de análise, já que a narrativa cada vez mais hibridiza-se e transforma-se em outras narrativas, sofrendo deslocamentos em relação à posição do cânone. Mesmo tendo em mente o processo constante de transformação e adaptação das visões sobre a configuração poética da narrativa nos diferentes momentos da história e da crítica literária, corroboramos a idéia de Saraiva (2003, p.11), quanto a uma pressuposição de regras internas inerentes ao texto narrativo. Para a autora: Diante de um texto narrativo, qualquer que seja sua linguagem, o receptor empírico desenvolve uma competência particular que lhe permite aderir às regras de um jogo, competência que tem a qualidade intrínseca dos textos narrativos por base. Essa adesão desencadeia o diálogo do sujeito consigo mesmo e com o momento histórico da leitura, uma vez que a mobilidade das referências, os enunciados metafóricos, a transgressão de significações usuais e a combinação de eventos expõem aspectos, qualidades e valores da realidade diante dos quais o sujeito se interroga e se posiciona, em um exercício de auto-revelação (SARAIVA, 2003, p.11). Concordamos que a formulação do construto da narrativa dá-se também por meio do aparato organizacional interno que compreende elementos tais como a construção de um enredo, a organização de um ponto de vista para o desenvolvimento do enredo, a articulação temporal em que os fatos ocorrem, a construção dos personagens e a própria dimensão da proposta narrativa. No entanto, isso representa apenas um dos seus níveis de materialização. O funcionamento dos elementos está ligado diretamente a um discurso inserido numa poética, ou seja, um conjunto de “regras” que leva em conta aspectos sociais, históricos e estéticos de cada contexto de produção. Dessa forma, os traços de uma poética da narrativa literária são flexíveis e deslocam-se de acordo com os contextos. Ao debruçarmo-nos sobre ela, faz-se necessário que observemos cada meio de produção e a articulação do discurso. Vejamos, então, na próxima seção, a narrativa no cinema. 83 2.3 A POÉTICA DA NARRATIVA CINEMATOGRÁFICA O cinema caracteriza-se principalmente pela habilidade de representar uma realidade material, mas que, ao mesmo tempo, tem essencialmente um valor icônico. Sua linguagem tem como base a imagem, o que seria a “matéria-prima fílmica” na visão de Martin (1990, p.21), já que, enquanto produto, o filme é um dispositivo de representação, possui mecanismos próprios de organização dos espaços e dos papéis discursivos que desempenha como texto produtor de significado. Assim, o cinema desenvolveu mecanismos autônomos de comunicação e garantiu o seu campo de delimitação dentro das artes modernas. A delimitação não significa estar à revelia de outras artes, tais como a literatura, o teatro e a própria pintura, como já discutimos anteriormente, mas significa, principalmente, estar em constante interação, fortalecendo laços de complementaridade entre as linguagens, como reforça Antonio Costa: “o cinema é uma linguagem com suas regras e suas convenções. É uma linguagem que tem parentesco com a literatura, possuindo em comum o uso da palavra das personagens e a finalidade de contar histórias” (1989, p.27). Reiteramos a relação de parentesco entre a literatura e o cinema, como o temos feito no decorrer do capítulo. Reconhecemos a convergência das duas artes quanto aos propósitos narrativos no que diz respeito à manifestação da linguagem. No entanto, reconhecemos também que, pela própria natureza do meio, o cinema possui especificidades para o desenvolvimento de sua narrativa. As especificidades, assim como na narrativa literária, vão da construção da linguagem ao próprio aparato institucional que gera, modela e faz circular os textos fílmicos, ou seja, a instituição cinematográfica. A partir do caráter de abrangência do cinema como instituição que envolve linguagem, técnica, indústria, arte, espetáculo, entretenimento e cultura, cada um desses elementos exerce importância fundamental nos mecanismos de funcionamento do conjunto 84 sistemático da instituição. Nesse sentido, o conceito de cinema constitui um vasto e complexo fenômeno sócio-cultural, “uma espécie de fato social total” (METZ, 1980, p.7). Por ter uma abrangência conceitual, a sua descrição ainda hoje pode ser feita por meio da distinção de dois níveis distintos entre o cinema e o filme. Cohen-Séat (apud METZ, 1980, p.11) estabeleceu em 1946 uma diferença, considerando os dois níveis como fato cinematográfico e fato fílmico. O primeiro fato representa um vasto conjunto de fenômenos que envolvem elementos que vêm antes, ao longo e depois do filme. Os que vêm antes dizem respeito a aspectos tais como: a infra-estrutura econômica da produção, estúdios, financiamentos, legislações nacionais, sociologia dos meios de decisão, estado tecnológico dos aparelhos, biografia dos cineastas etc. Os elementos que estão ao longo do filme, mas não dentro dele, como o autor reforça (“ao lado e fora dele” (p. 11)) compreendem o ritual social da sessão de cinema, equipamento das salas, modalidades técnicas do operador de projeção, papel do lanterninha, etc. Os elementos que vêm depois do filme tratam da influência social política e ideológica do filme sobre os diferentes públicos, dos padrões de comportamento ou sentimento induzidos pela visão dos filmes, reações do público, enquetes da audiência, mitologia dos “astros” e outros. O segundo fato, por sua vez, representa apenas uma pequena parte do cinema, pois constitui-se objeto mais limitado, delineado por fatores particulares que compõem um construto como unidade discursiva. Para o autor: Essa distinção entre o fato cinematográfico e fato fílmico tem o grande mérito de propor com o filme um objeto mais limitado, menos incontrolável, consistindo, principalmente, em contraste com o resto, de um discurso significante localizável – face ao cinema que, assim definido, constitui um “complexo” mais vasto dentro do qual, entretanto, três aspectos predominam mais fortemente: aspecto tecnológico, aspecto econômico, aspecto sociológico (METZ, 1980, p.11). Apesar da distinção dessas duas dimensões na atividade cinematográfica, parece evidente o entrecruzamento de mecanismos nas redes que abrangem os dois fatos, já que um 85 influencia, de certo modo, o outro. O fato fílmico, por exemplo, é um produto resultante de uma dinâmica de interação entre vários elementos que estão fora dele enquanto discursos, e após a sua materialidade como objeto definido que assume a condição de discurso significante. Dessa forma, a narrativa fílmica tem particularidades constitutivas de sua poética interna, mas não significa que uma análise dessa poética esteja totalmente isenta desse “complexo” aparato em que o cinema se insere. A questão está muito mais ligada ao olhar específico que se lança sobre cada fenômeno. Quando, por exemplo, tentamos fazer a delineação da poética de uma narrativa fílmica, geralmente a ênfase recai sobre os fatores internos da própria construção narrativa do filme, ou seja, sobre o fato fílmico. No entanto, quando tratarmos das questões sobre procedimentos de tradução, no sentido de entendimento do processo da transmutação das obras literárias, aspectos do fato cinematográfico podem se fazer necessários. Vejamos algumas questões específicas sobre o fato fílmico e a construção da narrativa nas telas. Ao partirmos do princípio da imagem como elemento fundamental no cinema, já podemos vislumbrar um primeiro aspecto importante na construção particular da narrativa cinematográfica. Primeiro, dada a sua materialidade objetiva, a imagem limita o campo espacial da visão, submetendo o espectador ao que é oferecido pela câmera. Segundo, o registro que a imagem faz dessa realidade proporciona uma apreensão objetiva por parte do leitor/espectador. Conforme afirma Martin (1990, p.22), “a imagem fílmica, portanto, é antes de tudo realista, ou melhor dizendo, dotada de todas as aparências (ou quase todas) da realidade”. Na literatura, ao contrário, os dois níveis de percepção não são tão deliberados, porque, embora o leitor esteja sempre criando imagens, ao longo da leitura, elas são de natureza subjetiva, pois são frutos de processos mentais. 86 Diante da diferenciação elementar e, por vezes, redutora, por muito tempo o cinema foi visto diante da literatura como uma “arte menor”. Enquanto esta é formada por palavras, exige do leitor uma elaboração imaginativa e muito mais criativa, o cinema, por lidar predominantemente com a imagem, dá ao espectador um construto acabado, reduzindo-o a uma condição de sujeito de reação automática e passiva. Além disso, outros pontos mais complexos contribuíram para tal diferenciação, como reforça Dudley Andrew (1998, p.21). Segundo o autor, os primeiros ensaios especializados sobre o cinema apareceram nos anos vinte numa tentativa de encontrar um lugar para o cinema na cultura moderna e libertá-lo de outros rótulos aos quais o público naturalmente o associava, tais como entretenimento das classes populares, eventos de feiras e fenômeno de contraponto ao erudito. Buscava-se, portanto, uma tradição formativa para dar ao cinema o estatuto de arte. Se examinarmos o quadro teórico sobre a narrativa cinematográfica, apresentado por estudiosos tais como Metz (1976), Bordwell (1985), Chatman (1992) e outros, como exemplos de estudiosos que se debruçaram sobre a construção dessa narrativa, podemos perceber claramente que as especificidades cinematográficas vão além da apresentação da imagem. Elas estão também relacionadas à elaboração técnica da linguagem e às particularidades estético-semióticas do próprio sistema. Vejamos, por exemplo, a questão do uso do espaço off na narrativa. Sabemos que o espaço mostrado na tela não constitui todo o espaço ficcional de um filme e sim uma parte dele. Nesse caso, a ausência da imagem também tem uma significação na construção da narrativa. Brito (1995, p.192), tratando da questão, aponta o supracitado recurso narrativo como parte importante no processo de leitura do filme. O autor afirma: O que a teoria da linguagem tem revelado e sistematizado é que o espaço efetivamente mostrado na tela faz parte de um espaço ficcional maior, que o espectador é conduzido a imaginar. Além de todo o vazio em torno do retângulo da tela (acima, abaixo, à direita e à esquerda), concebe-se um espaço, lá adiante, escondido atrás do cenário mais próximo, ou da paisagem 87 mais longínqua, e, em sentido, diametralmente oposto, um espaço anterior à tela: na frente dela ou tecnicamente falando, atrás das câmeras (1995, p.192). Partindo desse pressuposto, a discussão da narrativa no cinema como arte “menor” mais uma vez não tem sustentação, já que todos os mecanismos de elaboração e apresentação das imagens constituem-se elementos importantes na construção do sentido no texto. Assim sendo, o papel do espectador passa a ser redimensionado e a sua postura diante da tela não é tão passiva como se acreditava anteriormente. O problema remete-nos a uma questão importante quanto ao espaço fílmico. Na sua constituição, o filme é formado por um grande número de imagens fixas, ou seja, fotogramas postos em seqüência numa película transparente. Os fotogramas são projetados num ritmo que faz a imagem aumentar e mover-se. Tal mecanismo descreve, de forma clara, como se processam os elementos no cinema em que há a forma de uma imagem, delimitada por um quadro. Assim, justifica-se a reação do espectador diante da imagem fílmica como se estivesse diante de uma representação realista. A imagem fílmica, como se observa, é uma impressão da realidade, pois a representação na tela é parte de um espaço imaginário. É apenas uma parte no sentido de que pelas limitações em extensão da imagem no quadro, o espectador retém apenas uma porção do espaço. A parte do espaço imaginário contida dentro do quadro é chamada de campo por Jacques Aumont (1994, p.21). Estabelecem-se, a partir do conceito de Aumont, duas estratégias importantes na construção narrativa: o campo e o fora do campo. Ambos constituem-se objetos diferentes, já que o primeiro é visível e concreto e o segundo é invisível e, portanto, abstrato, mas pertencem ao mesmo espaço imaginário vislumbrado pelo espectador.14 14 Ao tratar dessa questão dos dois espaços, Noël Burch (1973, p.27-44) caracteriza como imaginário o que está fora do campo, apenas para o fora de campo que ainda não foi visto e concreto o espaço que está fora do campo depois de ter sido visto. Aderimos à definição de Aumont por concordarmos com a idéia de “reversiblidade” entre campo e fora de campo e por acharmos também que ambos são igualmente importantes para a compreensão do espaço fílmico. 88 Outras questões também vêm sendo discutidas e amadurecidas por teóricos que buscam estabelecer elementos da poética de estrutura e funcionamento da narrativa cinematográfica.15 Os conceitos básicos da teoria da narrativa cinematográfica partiram de duas fontes do pensamento semiótico: o Formalismo e o Estruturalismo. O primeiro com interesse voltado para questões de cunho mais formais e constitutivos da narrativa e o segundo, com interesse voltado não só para o nível estético, mas também na estrutura semiótica. Ou seja, a narrativa é vista como objeto de linguagem, tendo significado nela mesma, além dos conteúdos apresentados na sua história e aos filmes são dados o tratamento de texto (METZ, 1980, p.21). A noção de estrutura da narrativa cinematográfica enquanto linguagem por Metz torna-se produtiva no que diz respeito ao estatuto de texto que é dado ao filme. No entanto, a aplicação desta noção como procedimento de análise de filme, como uma analogia com a língua pelo caráter de produção de discurso nas relações sintagmáticas e paradigmáticas, torna-se problemática, pelo menos para o propósito desta tese, porque o universo de articulação de elementos nas dependências internas da narrativa cinematográfica dá-se por meio das relações icônicas estabelecidas, natural ao cinema. Assim, a articulação da linguagem, que é, fundamentalmente arbitrária, ocorre no cinema por meio de uma relação de motivação. David Bordwell (1985, p. 49), ao sistematizar um quadro teórico para a narrativa cinematográfica, retoma os conceitos de fábula e enredo, oriundos do formalismo russo para a análise de filme. Entretanto, reconhece que embora os formalistas tenham dado uma abordagem de análise com ênfase na materialidade lingüística, não usaram a língua como sistema no cinema. O autor explica o fato: 15 Gostaríamos de reforçar aqui a diferença entre os termos “cinematográfico” e “fílmico”. O primeiro trata dos procedimentos técnicos de filmagem; o segundo do efeito que se vê na tela. Para o analista, o enfoque recai fundamentalmente sobre o fílmico, pois é dele que se extrai a significação do que o espectador vê e interpreta no espaço da tela (BRITO, 1995, p. 183-185). Neste trabalho, ambos os termos são usados, mas estão sempre relacionados ao construto narrativo, o filme. 89 Isto foi em parte devido a sua crítica literária, que, apesar de clamar por um retorno ao estudo da língua como material, não produzia análise da narrativa estritamente lingüística. Os formalistas estudavam prosódia, alguns elementos sintáticos (ex. paralelismo), e certos efeitos semânticos (ex. metáfora), mas eles nunca construíram um modelo abrangente usando categorias lingüísticas pertinentes (1985, p.17)16 A postura em questão diz respeito aos seus propósitos de definir uma especificidade e autonomia dos materiais e dos procedimentos de operação do cinema. Bordwell (1985, p.50) define um outro elemento na análise da narrativa fílmica que é o estilo. Esse elemento está ligado ao uso sistemático dos recursos cinematográficos de acordo com os princípios de organização da narrativa, por meio de interação de vários modos com o enredo. Se, por um lado, a narrativa de um filme consiste de um padrão particular de eventos e pode ser descrita por procedimentos que envolvem ações, cenas, articulação de tempo e espaço, por outro, o mesmo filme pode ser descrito do ponto de vista da aplicação das técnicas cinematográficas como iluminação, o som, a edição etc. O primeiro caso relaciona-se ao enredo; e o segundo ao estilo. Para Bordwell (1985, p.51), esses dois sistemas coexistem na narrativa fílmica porque ambos tratam de fenômenos diferentes no processo, ou seja, o enredo diz respeito ao filme como um processo “dramatúrgico” e o estilo como um processo técnico.17 Os conceitos aplicados por Bordwell são importantes para a análise do corpus desta tese porque nos permite fazer a distinção entre as estruturas da narrativa cinematográfica clássica ou tradicional e as da narrativa moderna ou vanguardista. Essa distinção ocorre por meio da parametrização de configuração de padrões regulares de construção de narrativas na apresentação da fábula e da manipulação das possibilidades de desenvolvimento de enredos e marcação de estilo. 16 This was partly because their literary criticism, despite its call for a return to the study of language as a material, did not produce much strictly linguistic analysis of narrative. Formalist studied prosody, some syntactic devices (e.g. parallelism), and certain semantic effects (e.g. metaphor), but they did not construct a comprehensive model using linguistic categories. 17 The syuzhet embodies the film as a “dramturgical” process; style embodies it as a “technical” one (51). 90 Segundo Brito (1995, p. 197), a narrativa clássica americana apresenta-se como um modelo comunicável, previsível e fechado. É comunicável porque o seu espectador apreende com facilidade códigos que são previamente conhecidos, com signos integrantes de um repertório culturalmente delimitado. É previsível porque é estruturada com base na regularidade desses códigos e signos. É fechado porque o seu sistema estrutural determina a sua interpretação que é comum para os espectadores. Para Bordwell (1985, p.157), o princípio básico de construção da narrativa cinematográfica clássica é a causalidade. O seu enredo representa ordem, freqüência e duração dos eventos da fábula de forma que saliente as relações causais. O autor acrescenta que geralmente o enredo apresenta uma estrutura causal dupla, ou seja, duas linhas: uma envolvendo um romance heterossexual (rapaz/moça, esposo/esposa); a outra envolvendo outra esfera como trabalho, guerra, uma missão ou busca, outras relações pessoais. Cada uma dessas linhas, reforça Bordwell, terá um objetivo, obstáculos e um clímax. Assim, a natureza estrutural desse tipo de narrativa está subordinada à clareza, à homogeneidade, à linearidade, à coerência e ao impacto dramático. Existem situações de confronto e conflito, mas o desenvolvimento narrativo leva ao espectador as respostas às questões postas no filme. A narrativa cinematográfica moderna,18 por outro lado, toma uma nova posição em relação à clássica, consolidando um novo modelo. Caracteriza-se por ser mais fluida, menos ligada organicamente e menos dramatizada. Apresenta lacunas ou questões não resolvidas com finais às vezes abertos ou ambíguos (VANOYE & GOLIOT-LÉTÉ, 1994, p.35-36). 18 Entendemos por narrativas cinematográficas modernas aquelas comuns ao cinema de arte europeu cujo modelo se opõe à narrativa clássica americana. Tratamos delas como um modelo já consolidado. Portanto, não levamos em consideração, para efeito de discussão nesta tese, as tendências rebeldes ao classicismo tais como o Dadaísmo, o cinema soviético dos anos 20, o impressionismo francês, o Dadaísmo e o Surrealismo e o impressionismo alemão (VANOYE &GOLIOT-LÉTÉ, p.28-34). 91 Quanto à construção dos personagens, a narrativa moderna apresenta uma menor nitidez no seu delineamento. Estes são colocados na narrativa muitas vezes em crise (crise de casais, crise psicológica), deixando clara uma propensão a uma confusão das fronteiras entre objetividade e subjetividade e tendência à reflexividade. As formas de manipulação do material narrativo reforçam a presença da autoria na construção do filme por meio das marcas estilísticas sobre os personagens e a história (Ibidem). Brito (1996, p.197) afirma que o sistema abstrato que sustenta o modelo de cinema de arte europeu tem uma pretensão de ser anti-sistema, porque, diante dele, o espectador depara-se com novas construções semióticas, códigos e signos e mais ainda com suas virtuais combinações. Assim, a narrativa moderna contrapõe-se ao modelo clássico passando a ser incomunicável (ou pelo menos de comunicabilidade problemática), imprevisível (o espectador nunca prevê a conclusão) e aberta (sua significação depende do investimento semiótico por parte do espectador para preencher os vazios semânticos da forma que lhe for conveniente). A tendência de redimensionamento da narrativa cinematográfica clássica para o modelo anti-sistêmico do cinema de arte europeu foi inspirado, na visão de Brito (Ibidem), na proposta de desestruturação da narrativa literária tradicional, empreendida por alguns escritores do século passado, a começar por James Joyce. Nesse contexto, Virginia Woolf se insere e a sua narrativa é discutida por críticos tais como Silva (1988), Erich (1998), Humphrey (1972) e outros como ícone vanguardista em relação às narrativas tradicionais, com grande impacto no cenário da produção literária moderna. Daí, torna-se produtiva a investigação da tradução de uma narrativa dessa natureza. 92 2.4 O TEMPO E O ESPAÇO NAS NARRATIVAS LITERÁRIA E FÍLMICA Além dos pontos levantados nas seções anteriores, que envolvem os aspectos de organização do universo da narrativa e a sua localização num contexto temporal e espacial de funcionamento nos sistemas, o discurso narrativo, além de ser instituído por um universo diegético, é também instituído por uma seqüência mais ou menos extensa de enunciados no plano da temporalidade que e é pautado num espaço particular do universo narrado. Silva (1988, p. 745-746) classifica esses dois tempos como tempo da diegese, ou tempo da história narrada ou tempo do significado narrativo e o tempo do discurso narrativo. O primeiro tempo comporta um tempo objetivo, “público”, delimitado e caracterizado por indicadores cronológicos relacionados ao calendário – anos, meses, dias, e, em certos casos, as horas. Apresenta ainda informações relacionadas ao ritmo das estações, ao ritmo dos dias e das noites, assim como dados concernentes à uma determinada época histórica. O tempo do discurso narrativo, ao contrário, é de difícil mediação, pois, como não se trata de uma organização sistemática de um construto, torna-se bastante complicado estabelecer um padrão de normatização. O autor levanta alguns pontos que reforçam a natureza dessa dificuldade: Poder-se-à medir esse tempo por meio da paginação? Mas a página é uma unidade variável, em função da mancha tipográfica e uma função do tipo de letra; a página pode ser compactamente ocupada com enunciados ou pode apresentar numerosos espaços em branco. Poder-se-á fazer coincidir o tempo da narrativa com o tempo que é necessário dispender para a sua leitura? O tempo exigido pela leitura de um texto, porém, é igualmente um critério variável e aleatório. A velocidade da leitura modifica-se de leitor para leitor, e nem sequer é constante no mesmo leitor, de modo que é impossível estabelecer um padrão ideal susceptível de normalizar, digamos assim, essa velocidade (SILVA, 1988, p.750). Apesar de todos os questionamentos, um consenso parece existir quando se fala dos tempos em questão. As relações entre eles, ou seja, a ordem temporal da sucessão dos eventos na diegese e a ordem por que o discurso narrativo os produz e transmite têm uma importância fundamental na organização do romance. É interessante ressaltar que a 93 coincidência perfeita entre esses dois planos temporais da narrativa, como reforça Silva: “não se encontra possivelmente em nenhum romance” (SILVA, 1988, p.751). Entretanto, a articulação das técnicas e artifícios na ficção, no que diz respeito à manipulação do tempo nas narrativas, concedem diferentes valores e padrões temporais devido à forma como são trabalhados. Para Adam Mendilow (1972, p. 69), qualquer bom romance apresenta os seus próprios padrões e valores temporais. Assim, adquire a sua originalidade pela adequação com que são veiculados e expressos na narrativa, já que ele é, por essência, um complexo de valores temporais. O romancista estabelece, então, uma rede de relações entre diferentes valores temporais que dizem respeito ao leitor, ao autor e aos personagens. Mendilow (1972, p. 70-95), ao tentar tratar desses valores temporais, sejam eles separados ou isolados, elege alguns considerados, por ele, como importantes: o tempo do relógio ou tempo conceitual, a duração cronológica da leitura, a duração cronológica do escrever, a duração pseudocronológica do tempo do romance – o tempo ficcional e o contexto e seleção. O tempo conceitual diz respeito à relação temporal entre objetos e não é afetada pela percepção humana. Compreende a idéia de tempo relativo de Newton, ou seja, é o tempo aparente e comum. Não tem significado algum para a imaginação, pois é uma convenção artificial e arbitrária desenvolvida para fins de utilidade social, servindo para regular e coordenar ações. Dessa forma, o tempo conceitual é contrastado ao tempo psicológico ou de percepção, quer dizer, quando se fala da relação temporal entre objeto e sujeito, por que as nossas experiências, pensamentos e emoções procedem numa ordem diferente e pessoal. A duração cronológica da leitura trata da extensão do tempo que o leitor usa para ler um romance. Está à parte de outros valores do tempo existentes na ficção e apresenta importância mais econômica do que estética, pois, além da extensão direta que há entre o 94 tempo que se leva para ler um romance e a sua extensão, outros fatores também afetam o processo, como a variação da velocidade de leitura entre os leitores e os diferentes tipos de romances. Nesse sentido, o valor temporal em questão se alia a um ponto importante do caráter de produção e recepção da obra. Mendilow (1972, p.72) sustenta o argumento de que um romance é menos privado que uma pintura, por exemplo, e que, para ser bem sucedido comercialmente, deve chamar a atenção de um grande público e ser vendido em grande número. A pintura, por outro lado, pode ser vendida e chamar a atenção de um pequeno grupo de pessoas ou até de uma só pessoa. O autor assim complementa: “Daí a tendência do romance de explorar meios de comunicação mais convencionais, meios que irão assegurar aquêle [sic] grau mais amplo de comunicabilidade que constitui o elemento social em toda [sic] a arte” (p. 72). A duração cronológica do ato de escrever, por sua vez, refere-se ao tempo pelo relógio que o escritor leva para escrever um romance. Assim como o valor temporal anterior, sua influência não é puramente estética, mas também comercial, pois as exigências de mercado exercem de certa forma também pressão sobre as criações a partir do momento em que o romance deixou de ser uma forma de literatura direcionada essencialmente para as classes médias e adquiriu popularidade de massa, interferindo diretamente na política de produção, conforme se posiciona o autor: “O peso crescente dado à atenção popular tende a dominar a política de venda dos editôres [sic] e assim a afetar contratos e datas de publicação” (MENDILOW, 1972, p.75). Tais fatores externos ganham relevância no processo, pois nem todos os romancistas podem sobreviver independentes financeiramente de seu trabalho como escritor. O tempo ficcional implica a duração, uma passagem de tempo durante a qual as coisas permanecem ou eventos acontecem assim como os tempos medidos pelo relógio do leitor e do escritor. Trata-se de um tempo estendido em que durante poucas horas de leitura, 95 por meio da imaginação, o leitor se depara com um período de tempo que pode ser qualquer um, pode compreender de séculos até minutos. Há, portanto, um movimento que se complementa, como afirma Mendilow: “contra o tempo levado para apreender, há o tempo que está sendo apreendido, isto é, a extensão de tempo coberto pelo conteúdo do romance” (MENDILOW, 1972, p.79). Dependendo da natureza do romance, o uso desse tempo assume proporções diversas. Se tomarmos como exemplo o romance Mrs. Dalloway, a “ação” narrativa está concentrada em um dia, mas o material psicológico não se limita a esse dia. No romance As Horas, a ação acontece em um dia em três épocas diferentes. Em ambos os casos, o leitor é conduzido a lidar com o movimento entre o tempo do relógio e o tempo ficcional do conteúdo, a despeito das discrepâncias que podem surgir. A diferença entre esses tempos traz o escritor de encontro a problemas técnicos muito centrais para o desenvolvimento narrativo, como os de mudança de andamento, contexto, continuidade e seleção. Por conta disso, o autor necessariamente precisa usar artifícios que dêem conta da estruturação e organização do material temporal na criação do universo ficcional, estabelecendo uma relação de plausibilidade entre os eventos na realidade da representação. Mendilow vislumbra no processo um acordo tácito entre autor e leitor para o seu efetivo funcionamento. Para ele: Tudo isso é altamente artificial se julgado pelos padrões da vida real, mas ainda assim não impõe qualquer esforço [sic] indevido à imaginação do leitor. A ilusão de realidade que a maioria dos romancistas espera criar descansa na aceitação tácita de tantas convenções que uma a mais ou menos parece ser de pouca importância (MENDILOW, 1972, p.80). Um outro ponto importante na discussão da relação entre o tempo cronológico e ficcional é quanto ao contexto e seleção, já que a discrepância entre eles está diretamente ligada à transparência ou a densidade contextual de um romance. Nesse sentido, é a natureza do romance que vai estabelecer a condução do caráter temporal dos eventos do material narrativo, ou seja, se a ênfase será nos eventos mentais ou físicos, se terá referência a um 96 tempo de cronologia clara, de uma hora, um mês, um ano ou anos ou se terá referência a um estado de mente ou de vida em que se movimentará para diferentes épocas por meio das lembranças ou da memória. Pela tentativa de lidar de forma clara com essas questões do tempo na narrativa para preencher as possíveis lacunas deixadas no decorrer da narração, os autores vêm criando e sistematizando técnicas que tornam as suas narrativas convincentes em relação aos valores temporais que nelas se apresentam. O uso do episódio retrospectivo, ou seja, o flashback ou de uma série deles intercalados para lidar com o tempo, por exemplo, era um “artifício comum nos romances mais antigos e baseia-se num precedente dos poetas épicos”, como reforça Mendilow (1972, p.83). A técnica em questão é usada com freqüência porque permite esclarecer ao leitor os antecedentes de uma dada situação, ou de um personagem. Segundo Silva (1988, p.753), esta técnica desempenha um papel muito importante no romance naturalista com a sua relação estreita com a concepção positivista do mundo. O autor explica: Após a apresentação das personagens principais, romancista naturalista recorre logicamente a analepses19 mais ou menos extensas para analisar, segundo a óptica positivista, as forças determinadas –hereditariedade, influência do meio, constituição fisiológica e temperamental – que modelam aquele personagem (SILVA, 1988, p.753). A afirmação de Silva reforça a importância do uso do flashback no romance naturalista, reiterando a idéia de que não se trata de uma técnica própria do romance moderno. Embora tenha sido bastante usada nos romances do século XX, não se pode atribuir a eles essa descoberta. A técnica do fluxo da consciência é um outro artifício importante para se lidar com o material temporal nas narrativas. Por meio dela, o autor transfere os eventos para o plano mental, podendo dispensar a seqüência cronológica geralmente utilizada e prosseguir 19 Palavra equivalente a flashback na terminologia empregada por Gérard Genette em Figures III (1972, p.90105). 97 mantendo a continuidade. Pelo fato de essas narrativas, que usam a técnica, evocarem os processos mentais em que a memória associativa segue leis de caráter privado e individual, os valores de tempo que estão ligados a fatores da realidade externa passam a não ser tão relevantes. Voltaremos a falar com mais detalhes sobre essa técnica no capítulo seguinte por ocasião da análise. O senso de continuidade também pode ser perdido na narração dos eventos por meio da fragmentação deliberada da seqüência. Quer dizer, com a utilização da técnica da troca-de-tempo, a distribuição do material narrativo não apresenta, necessariamente, a preocupação de preencher as lacunas entre os acontecimentos. Um outro artifício apresentado por Mendilow (1972, p.84) diz respeito à ligação entre as lacunas. Refere-se, portanto, ao desdobramento de um espaço de tempo, ou seja, o “longueur propositado” em que a idéia da passagem de tempo é ressaltada. Nesse caso, o autor insere digressões ou episódios que, longe de serem elementos meramente decorativos, assumem posições importantes no desenvolvimento narrativo. Essa forma de lidar com o tempo se estabeleceu primeiramente com Sterne, em Tristan Shandy, em que o recurso da troca de tempo foi antecipada. De acordo com Mendilow, Sterne “partiu dos métodos veneráveis dos romances- o episódio inserido, a digressão e a fábula dentro da fábula; relacionou a estória ou digressão ao seu meio circundante, ao invés de dá-la in vacuo; enfatizando a sua passagem com o tempo ficcional,” [...] (MENDILOW, 1972, p.84). Como podemos observar, diferente dos escritores anteriores, Sterne dá uma nova dimensão ao tratamento do tempo. As digressões que, até então, eram tratadas apenas como meras digressões, nas narrativas anteriores deixaram de ter somente esse valor para constituírem-se elementos integrais e constitutivos na elaboração do enredo e passaram a atingir múltiplos propósitos, tais como o próprio longueur, a construção da atmosfera, a construção dos personagens e o uso de paralelos temáticos ou emocionais. 98 A construção do tempo das narrativas do nosso corpus enquadra-se nessa perspectiva. Isso ocorre pelo fato de não terem mais a preocupação com a simetria artificial do enredo padrão das narrativas tradicionais; de não precisarem mais obedecer, necessariamente, a uma ordem linear, mas de terem, como preocupação principal, a significação. Não há mais a pretensão de julgar a realidade, ou emitir um parecer pessoal sobre ela. Ao contrário, tentam fornecer uma transcrição do processo de viver, como a própria Virginia Woolf descreve no seu artigo “Modern Fiction”: Eles tentam chegar mais próximos da vida, e preservar mais sinceramente e exatamente o que os interessa e os motiva, mesmo que para assim fazer devam descartar a maioria das convenções que são comumente usadas pelo romancista. Registremos os átomos na medida em que recaiam sobre a mente, na ordem em que recaiam; descubramos o padrão que cada visão ou incidente marca na consciência, apesar de desconexos e incoerentes na aparência (WOOLF, 1984, p.150).20 Assim como o tempo, o espaço também exerce uma grande importância na articulação, desenvolvimento e apresentação do material narrativo. O universo espacial de um romance delimita para o leitor a presença de locais diversos da obra que estabelecem relações de simetria ou de contraste na condução do entendimento da história. Apresenta informações importantes sobre a localização dos personagens, sobre os objetos e as suas articulações com as outras instâncias narrativas, sob os ditames que são estabelecidos, pelo autor, à ação. A construção do espaço pode dar-se por meio de deslocamentos, em que os personagens são submetidos, seja através de movimentos de natureza física, ou seja, por movimentos da sua própria imaginação. Podem-se, assim, criar, na narrativa, ações que se desdobram em deslocamentos de pensamentos que fazem aparecer no espaço real do romance e outros espaços imaginários que se ligam a ele. 20 They attempt to come closer to life, and to preserve more sincerely and exactly what interests and moves them, even if to do so they must discard most of the conventions which are commonly observed by the novelist. Let us record the atoms as they fall upon the mind in the order in which they fall, let us trace the pattern, however disconnected and incoherent in appearance, which each sight or incident scores upon the consciousness. 99 Roland Bourneuf & Ouellet Real (1996, p.138), por exemplo, ao discutirem o espaço em Madame Bovary, de Flaubert, constatam que a narrativa desenrola-se sobre dois planos espaciais, que correspondem a dois planos psicológicos. Há a “realidade” de um recanto de província onde a personagem principal Emma habita e o “sonho” de países longínquos, por ela imaginados. Assim, o drama para a personagem vem do fato de que ela não pode viver simultaneamente nesses dois planos, experimentando um conflito de que não poderá sair senão pela morte. Traços semelhantes podem ser observados com a personagem Laura Brown, do romance As Horas. Como a personagem de Flaubert, a personagem de Cunningham vive um conflito por querer se livrar de uma vida aparentemente “normal”, localizada num espaço que a aprisiona. Entretanto, diferente de Emma, Laura não tem que necessariamente morrer. A personagem abandona esse espaço e faz opção pela vida. Podemos perceber que, em ambos os romances, o espaço é organizado de forma coerente, respeitando o mesmo rigor dos outros elementos narrativos. Age sobre esses elementos e reforça os seus efeitos como parte importante de demonstração da intenção dos autores. O espaço, portanto, seja “real” ou “imaginário”, aparece sempre associado ou integrado aos personagens, assim como o são a ação ou o tempo. Um outro ponto importante na construção do espaço no romance é o seu caráter fotográfico ou pictórico da realidade. Assim como um fotógrafo ou um pintor, o escritor escolhe em primeiro lugar uma porção do espaço, que o enquadra, e situa-se a certa distância. Como por exemplo, podemos citar as descrições de vastas paisagens nas narrativas românticas e a descrição de estados mentais nas narrativas modernas. No primeiro caso, há uma intenção de demonstrar a idéia de natureza como espaço amplo de liberdade; no segundo, há o isolamento de um fragmento de objeto ou um estado mental e a sua recorrência por meio da sua constante retomada, como sinal de aprisionamento do personagem em si mesmo. 100 Para Bourneuf & Real (1996, p.148-149), sempre houve a necessidade de se estabelecer uma correspondência entre a história e o espaço e os efeitos que se pode tirar dessa correspondência. No século XVIII, por exemplo, a descrição de lugares foi reduzida a termos gerais. No século XIX, ao contrário, esse tipo de descrição ganha uma outra dimensão que não pode mais ser considerada simplesmente como pano de fundo, pois a paisagem pode estar ligada à vida íntima dos personagens. O principal motivo de tal aproximação é a relação com uma teoria de pretensões científicas em que o meio assume uma importância considerável no processo de descrição de aspectos físico e humano. Os autores são enfáticos ao afirmarem que: Graças a esta teoria do naturalismo, a descrição do espaço vai ascender ao primeiro plano, a ponto de apagar as personagens ou, pelo menos, de ganhar uma importância superior à do seu estudo. [...] as descrições tendem a constituir o essencial do romance e a tornar-se autônomas (BOURNEUF & REAL,1996, p.152). Esse ponto de vista naturalista, que percebe o meio como realidade determinante, sofreu reação no final do século XIX. A partir de então, as paisagens nos romances passaram a ser consideradas como tais e as descrições de espaços passaram a considerar o meio como realidade percebida. Assim, fundam-se os princípios da narrativa contemporânea. Nela, o espaço é mostrado com freqüência através dos olhos de uma personagem ou do narrador. Ao desviar o olhar demasiadamente atento do ambiente propriamente dito, a perspectiva da narrativa literária é alargada e, por isso, passa a ter referenciais mais simbólicos. Tais referências são orientadas por vários modos de narração. No processo de descrição, por exemplo, o espaço é dimensionado sob a perspectiva de uma função, de uma natureza e significação própria. Pelas suas particularidades de oscilar entre posições opostas que, de um lado, apresenta apenas alguns traços significativos e, de outro, procura apreender a totalidade de um objeto, a descrição chega a ter, na visão de Bourneuf & Real (1996, p.156), algumas relações 101 diretas com outras artes como a pintura e o próprio cinema. O objeto, ou pelo menos parte dele, descrito, pintado ou fotografado sofre deslocamentos de um olhar, introduzindo um elemento dinâmico que permite uma exploração do espaço em vários sentidos. Entretanto, na pintura, estabelecem-se diferenças fundamentais da descrição em relação à literatura. Na pintura, como o quadro é apresentado de uma só vez, é o observador que de fato a efetiva. De forma diferente, na literatura, a descrição tem de ser sucessiva, pois o escritor guia a vista ao longo dos percursos por ele traçados. Essa descrição assume sentidos múltiplos pela sua natureza abrangente, tornando-se produtiva para delinear os espaços e a sua relação com outros elementos constitutivos da narrativa. A apresentação do espaço no romance pode ter aproximação também com o modo de narração do cinema, efetivando-se, mais uma vez, a relação entre essas duas artes que temos discutido ao longo deste capítulo. Assim como o diretor de um filme, que utiliza recursos visuais específicos na construção dos espaços na narrativa fílmica, o escritor pode recorrer a alguns desses recursos na construção da narrativa literária, tais como a panorâmica, o traveling, a profundeza de campo, os jogos de luz, a distância em relação ao objeto descrito e a mudança de plano para situar o personagem e integrá-lo ao meio. Com os avanços na elaboração de uma linguagem própria e o amadurecimento dos analistas e críticos, ao debruçarem-se com maior profundidade sobre a complexidade que o envolve, e a percepção de que a idéia de automatismo e passividade do espectador ao interpretar um filme não correspondem à realidade, a narrativa fílmica passou a ser vista como texto de estrutura particular, com especificidades que, assim como o texto literário, pode desafiar ao espectador na sua construção interpretativa. Nesse contexto, a construção do espaço se configura como elemento importante na criação do universo diegético do filme. Francis Vanoye & Anne Goliot-Lété (1994, p.130) consideram que é importante distinguir vários espaços e conseguir dar-lhes nomes e enfatizam que o espaço diegético na 102 narrativa pode ser representado ou não visualmente. Consideram, ainda, que o espaço não representado é “pensado” pelo espectador a partir da dedução e da reconstituição imaginária. O espaço representado na imagem, por sua vez, trata do conteúdo da própria imagem, constituindo-se elemento inseparável do espaço representante ou significante. Este espaço está ligado à matéria da expressão fílmica como resultado das opções estéticas e formais a que o produto é submetido, como por exemplo, cenário, arquitetura, movimento de câmera, como profundidade de campo, iluminação, enquadramento, montagem etc. Para os autores, o espaço narrativo tem sua origem na junção do “representado” e do “representante”, aliando, assim, o conteúdo à expressão (p. 31). Brito (1995, p.191), ao se referir a teóricos, tais como Jean Mitry, Noel Burch, David Bordwell e Eric Rohmer que conjecturam, em seus textos, sobre o emprego do espaço no cinema, afirma que esse emprego apresenta mais mistérios do que imaginamos, mas aponta o papel ativo do espectador como fator inequívoco. O autor, assim, levanta a seguinte questão: Para começo de conversa: primeiramente, o que se mostra na tela não constitui todo o espaço ficcional de um filme, mas tão-somente uma parte dele. Em segundo lugar, o não mostrado pode ter – e normalmente tem – uma função de construção simétrica à do mostrado. Em terceiro lugar, o que geralmente acontece é que o espaço visto e o não visto existem em tensão, e o efeito conjunto do filme depende parcialmente dessa tensão (1995, p.191). A idéia de tensão observada pelo autor torna-se bastante interessante no que diz respeito à construção espacial de um filme que tem, conseqüentemente, efeito direto no seu processo de leitura. Como se trata de fenômeno narrativo, o texto cinematográfico apresenta um conjunto de regras constitutivas de natureza lógica e causal. Assim, haverá sempre um confronto interpretativo entre o material narrativo apresentado (o campo) e a percepção desse material (o fora do campo). Ou seja, as possibilidades de leituras serão feitas de acordo com os pontos de vistas dos espectadores em que questões culturais e contextuais deverão ser, necessariamente, levadas em conta, já que na variação do espaço na narrativa haverá lacunas intencionais ou não intencionais por parte da direção que serão preenchidas consciente ou 103 inconscientemente na interação com o texto na tela (espaços imaginados pelo espectador). Ambos são de natureza diferente, mas engendrados de significação. Ao tratar do processo de construção do espaço e sua espectação, Bordwell (1985, p. 100-101) discute duas tendências principais na psicologia da representação visual: a teoria pespectivista que tem como principal exponente James J. Gibson e a teoria Gestaltista, associada a Rudolf Arnheim. A primeira tendência teórica tem como argumento a idéia de que o entendimento de um campo visual é determinado ou especificado pelas leis da geometria óptica. Quer dizer, sob condições normais, os estímulos psicológicos são suficientes para produzirem uma percepção precisa. A segunda assume que as operações mentais desempenham um papel bem maior, ou seja, a mente estrutura a visão por meio de “conceitos visuais”. Nesse sentido, nenhum quadro copia fidedignamente a natureza na forma empírica que o perspectivisimo entende. Bordwell vislumbra uma certa reconciliação entre essas tendência teóricas, pelo menos no que diz respeito à percepção figurativa. Aponta a tendência teórica construtivista como a mais apropriada, fruto de uma visão perceptiva e cognitiva dominante na análise fílmica desde os anos 60. Segundo essa tendência, a percepção e a cognição são ativas e não se pode fazer uma separação simplista entre elas: o ato de perceber é a identificação de um mundo tridimensional com base em conclusões. A percepção, por sua vez, torna-se um processo ativo de testar hipóteses. As atividades perceptivas ou cognitivas organizam conhecimentos que guiam as nossas hipóteses, os chamados esquemas. Esses esquemas, para o autor, são partes importantes na compreensão da narrativa, porque o espectador, ao utilizálos, faz conjecturas e inferências e levanta hipóteses sobre os eventos. Dessa forma, os esquemas mantêm o espectador sempre ativo no processo de percepção, empregando protótipos, encaixando itens nas matrizes macroestuturais, procedimentos para que o material narrativo faça sentido. testando e revisando 104 A compreensão do filme, portanto, depende da estruturação do enredo com base na organização dos esquemas da lógica, do tempo e do espaço que dão suporte para a formação do construto, geralmente motivado em termos de composição e de estilo. A visão teórica em questão parece bastante útil para a investigação do espaço na narrativa fílmica. Se retomarmos a questão de que há espaços “representados” e “não representados” visualmente num filme, somente podemos vislumbrar uma interpretação efetiva a partir da observação de que o espectador é um ator completamente ativo no processo e é capaz de preencher as lacunas com esquemas de informação histórica, cultural, política etc. O confronto entre a percepção desses espaços deve variar de acordo com o acervo cultural dos espectadores que, naturalmente, podem ter percepções diferentes sobre um mesmo fato apresentado na tela. Os filmes Sra. Dalloway e As Horas, por exemplo, apresentam espaços que dizem respeito puro e simplesmente às mentes das personagens. Os momentos de intensa intimidade de Clarissa Dalloway e Laura Brown precisam, muitas vezes, ser preenchidos pelo espectador para se captar o universo dessas personagens. Outro exemplo que ilustra essa questão é a presença do silêncio em As Horas como elemento de preenchimento de espaços na narrativa. Ou seja, a ausência do diálogo constitui fato narrativo que deverá ser apreendido pelo espectador. Voltaremos a essa questão no quarto capítulo, por ocasião da análise. Acrescentem-se, ainda, elementos auditivos que também podem ser utilizados como construtores de espaço. Eles aparecem por meio de falas ou ruídos de maior ou menor intensidade para marcarem situações ou eventos do filme. Para Bordwell (1985, p.119), na maioria dos filmes, a fala aparece para ocupar o primeiro plano e o ruído ou barulho como fundo, reforçando a idéia de que o volume e a textura acústica podem criar o que os engenheiros dos primeiros filmes falados chamavam “perspectiva sonora” (120). 105 Não obstante à natureza complexa de articulação no plano da expressão e do conteúdo, não há dúvidas de que, no cinema, muitos processos de narração dependem, diretamente, também, da manipulação do tempo. Ele se manifesta em todas as instâncias da narrativa tanto no nível da imagem quanto no estabelecimento de duração e ordem que afetam a experiência leitora do espectador. Quer dizer, o espectador observa as imagens, juntando-as à procura da significação, e o campo visual, por sua vez, vai dando pistas para o desenvolvimento temporal dentro da composição. Para Bordwell (1985, p.76), as limitações temporais do ato de assistir ao filme apontam diretamente para a importância central do ritmo no cinema. Corrobora, portanto, a perspectiva cognitivista de que as operações indutivas da mente podem ser limitadas pela velocidade a qual a situação exige na tomada de decisões, envolvidas no processo interpretativo, pois os esquemas mentais estão prontos para retirar certos dados e a quantidade em que a informação é apresentada pode afetar o modo como desenvolvemos hipóteses. Isso significa que o ritmo na narrativa cinematográfica se consolida por forçar o espectador a fazer inferências até certo ponto, fazendo a narração governar o quê e como inferimos. A narrativa do cinema clássico apresenta, na maioria das vezes, uma organização temporal estável em que os eventos da fábula são postos em ordem cronológica, fazendo com que o uso das técnicas de flashback ou flashforward não seja muito comum. Brito (1995, p.187), ao entrar na questão, reforça a idéia de que o espectador diante de um filme perfaz um caminho interpretativo em dois sentidos aparentemente opostos: o caminho prospectivo, no caso de tentar adivinhar o que vem a seguir na história; e o caminho retroativo, quando se confirma ou se nega o que já foi mostrado. O próprio autor reconhece a complicação que pode surgir desse processo, no caso dos filmes que não seguem esse padrão de linearidade e invertem a linha narrativa. Tais inversões temporais na tessitura narrativa são objetos 106 importantes de observação, porque consolidam um tipo de elaboração narrativa que exige uma outra postura de leitura por parte do espectador. Independente de que seja de forma linear ou não, a narrativa fílmica controla a freqüência, a ordem e a duração na apresentação dos eventos, tendo como princípio básico a idéia de que estes são elementos envolvidos no ato de se assistir a uma película. Bordwell (1985, p.81) apresenta três variáveis envolvidas no processo: a duração da fábula, a duração do enredo e a duração na tela (tempo de projeção). A primeira variável trata do tempo em que o espectador presume que a ação da história acontece, como por exemplo, uma década ou um dia, horas ou dias da semana ou séculos. A segunda consiste na elasticidade do tempo que o filme dramatiza, ou seja, de dez anos de uma ação, presumida pela ação da fábula, o enredo pode dramatizar somente poucos meses ou semanas. Essas relações entre a duração das fábulas se dão por meio de alguns meios convencionais, tais como relógios, calendários, indicações verbais, diálogos e protótipos culturais gerais. Quanto aos efeitos na organização da duração do enredo, Bordwell traça um paralelo com a narrativa literária e com o teatro. Para o autor: Geralmente, se a duração do enredo foca-se em uma ou poucas partes da duração da fábula, tendemos a considerar a duração da história ressaltada num modelo reminescente da dramaturgia pós-Ibsen ou do conto do século vinte. Na medida em que a duração do enredo inclui muitas extensões demoradas da duração da fábula, a construção do enredo parece mais reminescente do romance “épico” do século dezenove (BORDWELL, 1985, p.81).21 Percebemos que, embora as questões temporais no cinema tenham suas características próprias, o aparato teórico, oriundo da literatura, sempre permanece à espreita. Entretanto, o cinema tem a seu favor o recurso da imagem que torna o tempo elemento sempre presente. 21 Generally, if the syuzhet duration focuses on one or a few portions of fabula duration, we tend to consider the story duration highlighted in a fashion reminiscent of post-Ibsen dramaturgy or of the twentienth-century short story. To the extent that syuzhet duration includes many and lengthy stretches of fabula duration, the plot construction seems more reminiscent of the “epic” novel of the nineteenth century. 107 A terceira variável apresentada por Bordwell é a duração na tela, ou tempo de projeção. Diferente das outras duas variáveis, esta estaria, na visão do autor, enquadrada no sistema estilístico do filme, já que se trata de um ingrediente do meio cinematográfico, ou seja, envolve todas as técnicas fílmicas que contribuem para a criação: encenação, cinematografia, edição e som. Além dessas dimensões dadas, a duração que compreende os tipos relacionados à narrativa como um todo, ela também pode operar numa dimensão mais específica, como, por exemplo, ações, cenas, episódios e segmentos do tempo na tela. Partindo do pressuposto de que poucas narrativas representam a ação de forma completa, já que, normalmente, nos filmes com narrativas clássicas, espera-se que a duração da fábula seja maior do que a ação do enredo, e a duração do enredo seja maior do que o tempo de projeção, nas partes mais específicas, o procedimento é diferente, pois fatores estilísticos interferem. Para Bordwell (1985, p.81), em circunstâncias normais, a duração de um único plano deve ser equivalente à duração da ação que ele representa. O autor cita como exemplo uma situação em que um homem entra no carro e o plano representa a duração na tela que é igual à duração do enredo e da fábula. Nesse caso, as cenas, representadas pela continuidade espacial-temporal, são, da mesma forma, compreendidas como representando a duração do enredo e da fábula. Portanto, a forma como o tempo da narrativa é organizado, as técnicas que são empregadas fazem com que o espectador entenda que, naquele material, existem possibilidades de manipulação da duração da história e a natureza de cada parte contribui para que o espectador também participe dessa construção. Um outro ponto, levantado pelo autor, no que se refere à questão da duração na narrativa que merece destaque, é a quebra das convenções da narrativa cinematográfica clássica, pelo fato de essas convenções poderem ser desprezadas por usos específicos na manipulação do tempo. Para Bordwell (1985, p.81), é possível que um único plano possa 108 sugerir uma duração maior do enredo e da fábula do que é apresentado no tempo de projeção. Isso pode ser feito por meio de várias técnicas, tais como a apresentação de um letreiro na tela, a delimitação de tempo; o uso do diálogo ou comentário em voice-over, podendo sugerir que uma ação, que acontece em minutos na tela, levou horas para acontecer na verdade, ou vice-versa; e a quebra da pressuposição da continuidade estilística como uma regra para a duração da fábula. Assim, dependendo de cada contexto de criação, a articulação de técnicas específicas, em qualquer filme, pode modificar ou eliminar a tendência do espectador de assumir que no nível da cena ou do plano, o tempo da fábula é maior ou igual ao tempo de projeção. Alain Garcia (1990, p.39), ao tratar da elipse como um dos elementos temporais fundamentais na narrativa fílmica, enfatiza a distinção que os diferentes aspectos da temporalidade implicam, apresentando dois princípios básicos: o tempo histórico e o tempo diegético. O tempo histórico da ficção e da narração, ou seja, o tempo de referência, trata da temporalidade social ou ‘real’. Encontra-se no nível da macro-temporalidade em que as alusões histórico-sociais permitem ao espectador situar a época, o século ou ano em que a história acontece. O tempo diegético ou da ficção, por sua vez, encontra-se no plano da microtemporalidade, ou no tempo virtual. Não se ocupa do tempo histórico, mas do tempo da evolução da história. Por meio de elementos de duração, ou datas, que limitam o curso da narrativa, o espectador pode calcular o tempo diegético ao contar os dias, os meses ou os anos em que a história se passa. Com base nessa discussão, podemos perceber que a questão da articulação do tempo e do espaço, tanto na narrativa literatura, quanto na narrativa cinematográfica, é multifacetada, pois os processos de organização, embora tenham um conjunto de regras, comuns a cada linguagem, são dinâmicos e podem variar de acordo com cada proposta de 109 projeto narrativo. No que concerne especificamente ao tempo, o texto cinematográfico, por exemplo, apresenta, na sua construção, elementos macro e micro-estruturais que têm participação importante no processo de entendimento do texto. Ao longo deste capítulo, tratamos de princípios teóricos da relação entre cinema e literatura e a observação dos mecanismos de construção e funcionamento das narrativas em cada meio de linguagem. Tratamos também das conjunções e disjunções dessas narrativas e a sua natureza dialógica dentro do contexto e poética específicos, bem como de aspectos ligados ao tempo e espaço. Esses princípios, também, dão-nos suporte teórico importante para fundamentar as nossas discussões. Levando em conta todas as considerações feitas, até então, partimos, agora, para a análise das narrativas do nosso corpus nos dois próximos capítulos. 110 3 MRS. DALLOWAY E A REESCRITURA DE VIRGINIA WOOLF NO CINEMA Este capítulo tem como objetivo analisar o romance Mrs. Dalloway e a sua reescritura para o cinema. Primeiro, traçamos a construção do romance, considerando o aspecto temporal. Em seguida, discutimos algumas estratégias de tradução, usadas no texto cinematográfico Sra. Dalloway, de Marleen Gorris. Perguntamos se, ao ser traduzida para o cinema, a narrativa tão particular de Woolf, de reconhecimento estilístico marcado, teria recebido o mesmo tratamento de quebra de paradigma e, conseqüentemente, o mesmo impacto vanguardista no sistema cinematográfico ou teria sido transformada numa narrativa mais aproximada da narrativa clássica. Partimos da idéia de que a adaptação fílmica apresenta uma narrativa mais tradicional devido, dentre outras razões, ao estilo de criação da direção. 3.1 MRS. DALLOWAY, DE VIRGINIA WOOLF O romance Mrs. Dalloway, nomeado primeiramente sob o título de The Hours, foi publicado em 1925 por The Horgarth Press Ltd, mas nesta tese, trabalhamos com a edição de 1976. Esse romance representa, para o conjunto da obra de Virginia Woolf, a afirmação de uma nova técnica de escrita, o fluxo da consciência. Uma técnica primeiro empregada por James Joyce e, em seguida, utilizada por Woolf. A narrativa de Mrs. Dalloway é de natureza experimental pela sua diferença em relação ao romance tradicional e apresenta uma ação de natureza reduzida o que confere ao livro um título de romance impressionista, conforme classificou Silva (1988, p.734), não por pertencer ao movimento impressionista, mas por descrever impressões dos personagens e não as coisas em si. A história se passa em um único dia na vida da personagem Clarissa 111 Dalloway, na cidade de Londres, em junho de 1923. Nesse dia, a personagem revê e reflete sobre a sua vida, enquanto prepara mais uma festa. A “ação” narrativa se desenvolve, principalmente, pelas divagações dos personagens, por meio dos constantes deslocamentos temporais entre os fatos externos e as realidades internas dos personagens. Esses fatos em si são triviais, porque o mais importante para a confecção do construto narrativo é a apreensão do material psicológico nas mentes dos personagens. Pelo fato de a narrativa se passar em um dia na cidade de Londres, as unidades de tempo e de espaço parecem enquadrar a sua estrutura nos ditames da narrativa tradicional. No entanto, como o importante são as conjecturas dos personagens e não as situações externas, Mrs. Dalloway rompe com os padrões do romance tradicional, transformando-se num projeto vanguardista e se estabelece como texto literário moderno. Muitas estratégias foram empregadas na elaboração desse tipo de romance no período moderno, em que os aspectos psicológicos dos personagens foram muito mais explorados do que a ação narrativa, propriamente dita, comum aos romances tradicionais. Assim, definiríamos romances tradicionais como sendo aqueles que seguem as modalidades existentes nos discursos literário e não-literário, que mantêm fatos “objetivos”, com uma unidade bem definida de começo, meio e fim. O romance moderno, por outro lado, é de natureza experimental, ou seja, não obedece a essa unidade narrativa e se estabelece sem um verdadeiro começo e com um final geralmente aberto ou inacabado. Para David Lodge (1989, p.394), ele tem a proposta de fazer o leitor mergulhar num fluxo constante de experiência. Por meio do mergulho nessa experiência, o leitor se familiariza progressivamente com o processo de associação de impressões, idéias e memória. Mas, apesar dessa familiarização, o final é aberto ou ambíguo, deixando o leitor em dúvida quanto ao destino final dos personagens. 112 Para a construção desse tipo de romance, muitos foram os recursos lingüísticos utilizados pelos escritores modernos como veículos de formulação da nova técnica de escrita. Eles se manifestam no campo da sintaxe, dos neologismos e da própria elaboração da linguagem que assume um papel fundamental no repasse das conjecturas mentais tão enfatizadas nos textos modernos. Para Cruz (2003, p.107), o fluxo da consciência subverte regras e a lógica racional da gramática, já que abole a forma fixa de um discurso único e descentraliza a língua e, conseqüentemente, a arte. Em Mrs Dalloway, a pluralidade de recursos empregados compreende todos aqueles acima citados. É um romance resultante da imaginação poética que transfigura a realidade. Para Maria Hilda Oliveira, a linguagem de Woolf “carreia imagens difusas” (1979, p.17). Isso se dá por meio de som e ritmo propositadamente utilizados para criar a atmosfera de sugestão que as palavras têm o poder de criar. Alia-se à complexa articulação das palavras na criação de um universo literário particular um outro recurso importante recorrente no romance moderno, que é o cinematográfico. Pretendemos dar ênfase a esse recurso em nossa análise por considerarmos muito inovador. Orlando Pires (1985, p.151) afirma que, no surgimento do cinema, o discurso narrativo cinematográfico foi muito influenciado pelas técnicas utilizadas pelo discurso narrativo literário. Entretanto, o discurso cinematográfico se desenvolveu e consolidou a sua própria linguagem. No período moderno, esse processo de construção das narrativas foi inverso, ou seja, o discurso literário passou a adotar técnicas e recursos provenientes do discurso cinematográfico. A partir daí, surgiu a narrativa pela técnica de montagem, por meio da qual se constrói um texto “montado” por uma sucessão de quadros, organizados a ponto de lhe assegurar uma leitura. Woolf, ao empregar a técnica do fluxo da consciência na apresentação dos processos mentais dos personagens, recorreu a um procedimento de escrita que se 113 assemelha ao uso da técnica de montagem no cinema. O livro não está dividido regularmente em capítulos; está organizado de acordo com método de seleção e montagem. Para Oliveira (1979, p. 30), o uso da técnica por Woolf na fabricação de Mrs. Dalloway se assemelha à visão cinematográfica de Eisenstein. Eisenstein (1990, p.107), que montava seus filmes e refletia teoricamente sobre a questão, considerava a montagem o mais poderoso meio de composição para se contar uma história. Para o autor, essa técnica não se trata apenas de uma sintaxe para a construção correta de cada partícula de um fragmento cinematográfico, nem tampouco a junção aleatória de fragmentos de um filme. Ao contrário, a montagem diz respeito à unidade fílmica não no sentido de representação, mas de uma articulação de discurso. Ou seja, cada plano deve estar estreitamente associado ao todo narrativo, no sentido de manter a integridade de um raciocínio. Como o próprio autor argumenta: Num certo nível, nosso cinema conheceu uma responsabilidade assim rigorosa com relação a cada plano, colocando-o numa seqüência de montagem com o mesmo cuidado usado para colocar uma linha de poesia num poema, ou para colocar cada átomo musical no movimento de uma fuga (EISENSTEIN, 1990, p.110). Um exemplo que ilustra a dependência de composição de cada um dos planos é apresentado pelo próprio Eisenstein no seu filme O Encouraçado Potemkin (1926), nos fragmentos sucessivos de cena que precede a fuzilaria nas escadarias de Odessa. Nesse momento, intercalam-se dois temas diferentes na narrativa em que são mostrados os barcos correndo em direção ao navio e o povo de Odessa, olhando e acenando. Porém, embora haja essa intercalação de motivos na narrativa, no final, há uma fusão dos dois temas para dar contorno à composição. Isso significa que a escada não tem a pretensão de retratar a realidade propriamente dita. Mas, ao contrário, o que acontece é a junção de diferentes momentos, coisas e lugares por meio de símbolos e associações para dar um significado ao todo. Para Ismail Xavier (1984, p.109), a montagem de Eisenstein interrompe o fluxo de acontecimentos, 114 marcando a intervenção do sujeito do discurso por meio da inserção de planos que destroem a continuidade do espaço diegético e tornam-se parte integrante da exposição de uma idéia. Ou seja, a sucessão de eventos não obedece a uma estrita causalidade linear e, por essa razão, trata-se não de um encadeamento de planos, mas de uma justaposição. Nesse sentido, o romance de Woolf manifesta essa preocupação de fusão por meio da junção de momentos de vida dos personagens que formam o todo narrativo da obra. Pires (1985, p.151) distingue dois tipos de montagem: a temporal e a espacial. A montagem temporal acontece quando as imagens ou idéias de um tempo ou ocasião são superpostas às de outro, isto é, o objeto de focalização permanece fixo no espaço e as imagens de outros tempos são projetadas sobre ele. A montagem espacial acontece quando o tempo é mantido fixo, enquanto o elemento espacial vai mudando. Esse tipo de montagem é também chamado de visão múltipla, porque registra a convergência de várias imagens numa mesma situação, havendo uma simultaneidade de eventos. Mrs. Dalloway é composto pelo uso desses dois tipos de montagem. A montagem temporal se manifesta pelo fato de os personagens permanecerem fixos no espaço, mas as suas consciências deslocam-se no tempo. Um exemplo disso são os constantes flashbacks dos personagens, como nesse caso de Peter Walsh, um ex-pretendente de Clarissa que, após morar alguns anos na Índia, retorna à Inglaterra no dia de mais uma das festas de Mrs. Dalloway: Hugh she detested for some reason. He thought of nothing but his own appearance, she said. He ought to have been a Duke. He would be certain to marry one of the Royal Princesses. And of course Hugh had the most extraordinary, the most natural, the most sublime respect for the British aristocracy of any human being he had ever come across. Even Clarissa had to own that (WOOLF, 1976, p.80).22 22 A Hugh, detestava-o por alguma razão. Só pensava na sua própria aparência, dizia, ela. Devia ter nascido duque. Teria por certo casado com uma das princesas reais. E sem dúvida Hugh tinha, dentre todos os sêres humanos, o mais extraordinário, o mais natural, o mais sublime respeito pela aristocracia britânica. Até Clarissa tinha de confessá-lo (QUINTANA, 1980, p.72). Para facilitar a leitura ou esclarecer possíveis dúvidas quanto ao texto original, apresentamos, ao longo do trabalho, a tradução para o português. Quando estivermos nos referindo às citações do romance, utilizaremos a tradução de Mário Quintana (1980) e às do filme utilizaremos as legendas em DVD e vídeo. 115 Nesse trecho, há uma descrição do pensamento de Peter com reminiscências sobre o seu passado. Por meio dessas reminiscências, traços da personalidade de Hugh Whitbread, amigo dele e de Clarissa no passado, são descritos do ponto de vista tanto de Peter quanto de Sally Seton, uma amiga dos dois que um dia em Bourton trocou um beijo íntimo com Clarissa no jardim. Esses pensamentos se reportam a um momento no passado em que Peter e Sally faziam julgamentos a respeito das atitudes de Hugh. Percebemos que Peter permanece no mesmo lugar, mas o seu pensamento é deslocado para uma outra época, caracterizando, assim, o uso da montagem temporal. A montagem espacial aparece no romance quando apresenta certas imagens convergentes em momentos específicos da narrativa, ou seja, existe um tempo fixo, mas ao mesmo tempo há uma variedade de impressões sobre um determinado fato. Existe um único ponto de vista no romance, terceira pessoa, mas há múltiplas perspectivas no direcionamento do fluxo da consciência dos personagens e, por isso, há um confronto permanente entre essas perspectivas. A presença de um aeroplano no céu, num determinado momento da narrativa, por exemplo, ilustra bem essa questão: Suddenly Mrs. Coates looked up into the sky. The sound of an aeroplane bored ominously into the ears of the crowd. There it was coming over the trees, letting out white smoke from behind, which curled and twisted, actually writing something! Making letters in the sky! Every one looked up. Dropping dead down, the aeroplane soared straight up, curved in a loop, raced, sank, rose, and whatever it did, wherever it went, out fluttered behind it a thick ruffled bar of white smoke which curled and wreathed upon the sky in letters. But what letters? A C was it? An E, then an L? Only for a moment did they lie still; then they moved and melted and were rubbed out up in the sky, and the aeroplane shot further away and again, in a fresh space of sky, began writing a K, and E, a Y perhaps? ‘Blaxo’, said Mrs Coates in a strained, awe-stricken voice, gazing straight up, and her baby, lying stiff and white in her arms, gazed straight up. ‘Kreemo’, murmured Mrs. Bletchley, like a sleep walker. With his hat held out perfectly still in his hand, Mr. Bowley gazed straight up. All dawn the Mall people were standing and looking up into the sky. As they looked the whole world became perfectly silent, and a flight of gulls crossed the sky, first one gull leading, the another, and in his extraordinary silence and peace, 116 in this pallor, in this purity, bells struck eleven times, the sound fading up there among gulls (1976, p.24)23. Trata-se de um único objeto, que consegue afetar cada um dos personagens que o contemplam. Virginia Woolf faz o leitor penetrar na mente de cada um deles. As senhoras Coates, Bletchley e Bowley olham para o aeroplano e tanto a descrição da situação quanto as suas impressões sobre o objeto são apresentadas para o leitor. A presença dessas impressões pode ser observada mais especificamente pelas indagações da Sra. Coates, pelo estado de admiração de Sra. Bletchley e pela própria onisciência da narradora ao afirmar que enquanto todos olhavam aquilo, o mundo parecia totalmente silencioso. E isso nos remete ao efeito que a presença do aeroplano causou nas mentes dos personagens, caracterizando várias perspectivas num único ponto de vista narrativo. Como podemos observar, o uso da técnica de montagem em Mrs. Dalloway possibilita a expressão da mobilidade do real e a construção complexa da sua consistência por meio de uma visão de mundo impressionista. Oliveira, ao tratar desse ponto, faz a seguinte afirmação: É que, na descrição do real, Virginia Woolf propõe uma luminação [sic] difusa e incidente sobre áreas mais extensas do que as que marcam contornos e fronteiras definidas. As separações entre cenas e os objetos descritos são sugestivos e indecisos em sua escritura. A determinação dos limites excludentes não a distingue, e a descrição ascende à emoção momentânea, por sua vez responsável pela mobilidade do quadro (OLIVEIRA, 1979, p. 23-24). 23 De súbito Mrs. Coates olhou para o céu. O rumor de um aeroplano brocou ominosamente o ouvido da multidão. Ali estava sôbre as árvores, rojando fumaça branca que se desenrolava e entrelaçava, realmente escrevendo alguma coisa! Escrevendo letras no céu! Todos olhavam. O aeroplano mergulhava, remontava, traçava uma curva, deslizava, baixava, subia, e, o que quer que fizesse, por onde quer que fôsse, ia-lhe flutuando no rastro a fita de branco fumo que se desenrolava e enroscava em letras no céu. Mas que letras? Seria um C? um E, e depois um L? Só por um instante ficavam paradas; depois se moviam, mesclavam-se, apagavam-se no céu, e o aeroplano seguia adiante e, de nôvo, num espaço limpo de céu, começava a escrever – um K, um E, um Y, talvez? - Glaxo – disse impressionadamente Mrs. Coates, olhando para o alto, e o bebê, estirado rijo e branco em seus braços, olhava para o alto. - Kreemo – murmurou Mrs. Bletchley, como uma sonâmbula. Com o chapéu perfeitamente imóvel na mão, Mr. Bowley olhava para o alto. Por todo o Mall havia gente parada olhando o céu. Enquanto assim olhavam, o mundo se tornou perfeitamente silencioso, e um vôo de gaivotas cruzou o céu, primeiro uma guiando, depois as outras, e naquela extraordinária paz e silêncio, naquele palor, naquela pureza, os sinos batiam onze vêzes, indo morrer o som entre as gaivotas (1980, p.23). 117 O postulado de Oliveira traduz a nova proposta de escrita de Woolf, conforme ela mesma discute em seu diário no dia 19 de junho de 1923, em pleno processo de escrita do romance: But now what do I feel about my writing? – this book, that is, The Hours, if thats its name? One must write from deep feeling, said Dostoevsky. And do I? Or do I fabricate with words, loving them as I do? No I think not. In this book I have almost too many ideas. I want to give life & death, sanity& insanity; I want to criticise the social system, & to show it at work, as its most intense – But here I may be posing. [...] Am I writing The Hours from deep emotion? (WOOLF, 1981, p. 248).24 Essa reflexão de Woolf demonstra claramente suas incursões sobre a sua proposta particular de escrita. É um momento de concepção de Mrs. Dalloway, um romance que, nem sequer o título ainda está definido, mas apresenta traços de um projeto que difere do romance tradicional, já que Mrs. Dalloway, diferente da ficção naturalista e realista, parte de dentro para fora. Ou seja, as questões internas dos personagens incidem sobre os fatos externos e não o contrário. Além das informações contidas nos diários de Woolf, dois artigos escritos no mesmo ano da escrita de Mrs. Dalloway são também indicadores importantes dos objetivos propostos pela autora: “Modern Fiction” (1919), publicado no Times Literary Suplement e, em seguida, publicado no The Common Readers em 1925, e “Mr. Bennett and Mrs. Brown” (1924), escrito para uma conferência em Cambridge. Nesses artigos, vislumbramos uma discussão esclarecedora do que seria o tipo de romance desejado por Woolf, já que podem ser considerados tratados teóricos sobre a literatura moderna. 24 Mas agora o que eu sinto sobre a minha escrita? – isto é, The Hours, se é que é este o nome? Precisamos escrever com profunda convicção, disse Dostoesvsky. E eu escrevo? Ou crio palavras, amando-as como faço? Não, acho que não. Neste livro eu tenho bastantes idéias. Eu quero dar vida & morte, sanidade & insanidade; eu quero criticar o sistema social, & e mostrá-lo em funcionamento, o mais de intenso dele – mas aqui eu posso estar impressionando. [...] Estou escrevendo As Horas com profunda emoção? 118 Em “Modern Fiction”, Woolf reivindica uma autonomia no processo de criação por parte do escritor em relação aos paradigmas previstos na ficção tradicional. Ao propor uma ruptura com tal paradigma, a autora prevê o seguinte efeito: [...] so that, if a writer were a free man and not a slave, if he could write what he chose, not what he must, if he could base his work upon his own feeling and not upon convention, there would be no plot, no comedy, no tragedy, no love interest or catastrophe in the accepted style, and perhaps not a single button sewn on as the Bond Street tailors would have it. Life is not a series of gig lamps symmetrically arranged; life is a luminous halo, a semitransparent envelope surrounding us from the beginning of consciousness to the end (WOOLF, 1984, p. 150).25 E, em “Mr. Bennett and Mrs. Brown”, a autora trata da produção literária contemporânea, mostrando algumas limitações que as convenções de escrita literária apresentam e reivindica, como no artigo anterior, um redimensionamento na ficção: At the present moment we are suffering, not from decay, but from having no code of manners which writers and readers accept as a prelude to the more exciting intercourse of friendship. The literary convention of the time is so artificial – you have to talk about the weather throughout the entire visit – that, naturally, the feeble are tempted to outrage, and the strong are led to destroy the very foundations and rules of literary society (WOOLF, 1978, p.115).26 Como podemos observar nos trechos acima, há um questionamento da postura do escritor enquanto sujeito subserviente a uma convenção e a sugestão da tomada de uma nova atitude que repense os ditames da ficção. Por meio da tomada dessa atitude, Woolf preconiza efeitos imediatos na construção do novo paradigma da ficção. Os indícios mostrados ao longo da discussão apontam para a preocupação de Woolf com o delineamento de uma narrativa inovadora, no sentido de promover modificações na técnica ficcional. Como resultado, temos Mrs. Dalloway muito mais centrado numa 25 [...] de forma que, se um escritor fosse um homem livre e não um escravo, se ele pudesse escrever o que escolhesse, não o que ele deve, se ele pudesse basear seu trabalho no seu próprio sentimento e não na convenção, não haveria enredo, comédia, tragédia, interesse amoroso ou catástrofe no estilo empregado, e talvez nem um único botão de costura como os alfaiates da Bond Street teriam. A vida não é uma série de feixes de lâmpadas simetricamente organizadas; a vida é uma auréola reluzente, um envelope semi-transparente circundando-nos do início ao fim da consciência. 26 No momento estamos sofrendo, não de ruína, mas de não termos um código de costumes que os escritores e os leitores aceitem como um início para o mais excitante relação de amizade. A convenção literária atual é muito artificial – você tem que falar sobre o clima e nada mais na visita inteira – que, naturalmente, os fracos são tentados à atrocidade, e os fortes são levados a destruírem os fundamentos e regras da sociedade literária. 119 perspectiva impressionista, quer dizer, mesmo apresentando um enredo tecnicamente definido, a narrativa é provida de ação mínima, sem a preocupação com os acontecimentos, mas com os efeitos que eles exercem sobre as mentes dos personagens. Assim como o uso da montagem, outros recursos cinematográficos foram importantes para a construção da técnica ficcional, proposta por Woolf em Mrs.Dalloway. O flashback, o close-up e o corte têm participação fundamental na organização do romance, na medida em que lidam com o material psicológico dos personagens e o organizam dentro do percurso narrativo. O flashback é uma técnica na qual um certo seguimento do filme quebra a ordem cronológica normal dos fatos ao mudar para o passado. O flashback pode ser subjetivo (quando mostra os pensamentos e a memória de um personagem) ou objetivo (quando retorna a situações anteriores da narrativa para mostrar a sua relação com o presente) (HARRINGTON, 1978, p.161). O flashback subjetivo é o único usado no romance. Sua principal função é repassar para o leitor a memória e as lembranças dos personagens, como acontece no caso do personagem Peter, no exemplo mostrado acima. O uso do flashback consolida a idéia do processo da memória, desenvolvida mais ativamente por Virginia Woolf em Mrs. Dalloway, como salientou Soraya Alves (2002, p.40). Tal processo é discutido no seu diário e é denominado de tunnelling process (processo de tunelização), conforme a própria Woolf discute: “it took me a year’s groping to discover what I call my tunnelling process, by which I tell the past by installments, as I have need of it. This is my prime discovery so far” (..) (WOOLF, 1981, p.272).27 Uma outra questão levantada por Alves (2002, p.46) que acresce a idéia do desenvolvimento do tunneling process, em Mrs. Dalloway, é a preocupação de Woolf em demonstrar, na linguagem, a iconização da memória. Quer dizer, Woolf cria “pequenas 27 Custou-me um ano de busca para descobrir o que eu chamo de processo de tunelização, por meio do qual eu conto o passado por partes, conforme dele eu precise. Esta é a minha principal descoberta até aqui (...). 120 estruturas dentro de frases ou parágrafos que, por meio de recursos visuais ou sonoros, reforçam o tema ou idéia sobre o que se fala” (p. 46). O close-up focaliza um ponto, ou um plano, enfatizando um detalhe. Virginia Woolf o utiliza na apresentação de algumas descrições de objetos ou de situações dos personagens que são postos em foco. A forma de apresentação da passagem de uma pessoa na rua (provavelmente uma grande autoridade) retrata isso ao leitor: Passers-by, who, of course, stopped and stared, had just time to see a face of the very greatest importance against the dove-gray upholstery, before a male hand drew the blind and there was nothing to be seen except a square of dove grey. [...] But nobody knew whose face had been seen. Was it the Prince of Wales’s, the Queen’s, the Prime Minister’s? whose face was it? Nobody knew (WOOLF, 1976, p. 18).28 Há a apresentação das conjecturas feitas pelas pessoas que observam a situação. Há, principalmente, a particularização de um detalhe, a presença de uma face. O foco centrase num ponto específico que desencadeia as conjecturas. O corte é o recurso usado no cinema para fazer a passagem direta de uma cena para outra. Em Mrs. Dalloway, é usado na interrupção da apresentação das descrições cênicas dos processos mentais. Como podemos observar a mudança de cena na seguinte passagem do livro: ‘He is dead’, she said, smiling at the poor old woman who guarded her with her honest light-blue eyes fixed on the door. (They wouldn’t bring him in here, would they?) But Mrs Filmer pooh-poohed. Oh no, oh no! They were carrying him away now. Ought she not to be told? Married people ought to be together, Mrs Filmer thought. But they must do as the doctor said. Let her sleep,’ said Dr. Holmes, feeling her pulse. She saw the large outline of his body dark against the window. So that was Dr Holmes. One of the triumphs of civilization, Peter Walsh thought. It is one of the triumphs of civilization, as the light high bell of the ambulance sounded. 28 Os transeuntes, que, naturalmente e olharam, mal tiveram tempo de divisar uma face da mais alta importância contra a almofada gris-pérola, antes que uma mão de homem baixasse a cortina, nada mais se podendo ver senão um quadrado cinzento. [...] Mas de quem era a face, ninguém sabia. Do príncipe de Gales? Da rainha? Do primeiro-ministro? De quem era a face? Ninguém sabia (QUINTANA, 1980, p.17). 121 Swiftly, cleanly, the ambulance sped to the hospital, having picked up instantly, humanely, some poor devil;... (WOOLF, 1976, p.161).29 No primeiro fragmento, há a descrição do pensamento de Mrs. Filmer sobre a morte de Septimus. Por meio dos pensamentos de Mrs. Filmer, ficamos conhecendo a reação de Rezia, mulher de Septimus, após a morte do marido. Essa descrição é transferida, logo em seguida, para a apresentação do pensamento de um outro personagem, Peter, que, assim como Mrs. Filmer, também reflete sobre os efeitos da morte de Septimus. As reflexões de Peter desencadeiam-se pelo som da campainha da ambulância que anuncia a morte de Septimus. O fato é externo, mas o que o leitor apreende é o que se processa na mente de Peter no momento em que ouve o barulho da ambulância se dirigindo ao hospital. Essa passagem imediata da descrição das conjecturas de Mrs. Filmer para as de Peter caracteriza o uso do corte. Por meio do uso de todas essas técnicas de escrita, o pensamento da personagem é sempre contado ao leitor pela sua inserção na linguagem do narrador, utilizando-se do monólogo interior indireto. Woolf emprega normalmente os sinais de pontuação, com frases gramaticalmente mais estruturadas e há uma descrição cênica do pensamento dos personagens, dando ao construto narrativo uma coerência interna, tornando-se, assim, o fio condutor da narrativa. É imprescindível observar que esse desenvolvimento narrativo se dá pela transposição constante do leitor para a mente dos personagens e não simplesmente pela observação do comportamento deles. Esse é um dos pontos fundamentais para caracterizar o romance Mrs. Dalloway. Vejamos como Virginia Woolf transmite os pensamentos de um dos seus personagens, Lady Bruton, uma senhora influente na sociedade, conhecida por oferecer almoços extraordinários a convidados ilustres: 29 - Morreu -, disse ela, sorrindo para a pobre velha que a velava, com os fracos olhos azuis fixos na porta. (Não iam trazê-lo para ali, não era?) Mas Mrs. Filmer garantia: oh, não! Iriam levá-lo embora. Deveria dizer-lhe isso. Os casados devem permanecer juntos, pensava Mrs. Filmer. Mas devia fazer como o doutor recomendara. - Deixe-a dormir – disse o Dr. Holmes, tomando-lhe o pulso. Ela entreviu o amplo contôrno do seu corpo escuro contra a janela. Sim era o Dr. Holmes. Um dos triunfos da civilização, pensou Peter Walsh. É um dos triunfos da civilização... (enquanto estridulava a clara campainha da ambulância). Rápida, límpida, corria a ambulância para o hospital, após ter havido recolhido instantaneamente, humanamente, a algum pobre diabo;. (1980, p.145-146). 122 Lady Bruton preferred Richard Dalloway of course. He was made of much finer material. But she wouldn´t let them run down her poor dear Hugh. She could never forget his kindness – he had been really remarkably kind – she forgot precisely upon what occasion. But he had been – remarkably kind (WOOLF, 1976, p.112)30 Observamos, então, que Lady Bruton compara Richard Dalloway a Hugh. Ela reflete sobre a sua preferência por Richard, mas, mesmo assim, manifesta-se contra as críticas feitas a Hugh. O leitor observa não a situação em si, mas o que se processa na mente de Lady Bruton, ou seja, as impressões do personagem sobre seus dois amigos. Por se tratar de uma narrativa que focaliza mais a intuição do que a descrição de realidades circunstanciais, o romance apresenta uma linguagem predominantemente subjetiva, pois a realidade se encontra disfarçada pela tendência de se contar os fatos imaginados ou sentidos pelos personagens. Oliveira (1979, p.19) atribui a predominância da intuição em relação às estruturações fixas da ficção ao fato de a autora estar muito interessada na leitura de poesia no momento da escrita do romance. A idéia pode ser reforçada pelas próprias palavras de Woolf: “[..] Am I writing The Hours from deep emotion? Of course the mad part tries me so much, makes my mind squirt so badly that I can hardly face spending the next weeks at it” (WOOLF, 1981, p. 248).31 Embora tenhamos em Mrs. Dalloway uma narrativa de cunho impressionista, é necessário ressaltar que a sua estrutura, ao contrário do que se parece a priori, apresenta uma unidade discursiva que se desenvolve, não pelos fatos em si, mas pelas experiências vivenciadas pelos personagens. O tecido narrativo se desenvolve com base em um único ponto: a realização de uma festa. O fio condutor do processo se estende dos preparativos até a realização de um evento que representa não somente um único dia na vida da personagem, mas o resgate de 30 Lady Bruton preferia Richard Dalloway naturalmente. Era feito de material muito mais fino. Mas não deixava que criticassem o seu pobre querido Hugh. Não podia esquecer a sua bondade: fora realmente muito bom... não se lembrava em que ocasião. Mas se mostrara muito bom, mesmo... (1980, p.101). 31 Eu estou escrevendo As Horas com profunda emoção? Certamente a parte ruim me põe demais à prova, faz minha mente jorrar tão escassamente que mal posso passar as próximas semanas nele. 123 toda uma existência. Clarissa Dalloway, a personagem central, faz um percurso pela cidade para comprar flores, organiza a casa para receber convidados e recebe a visita de Peter Walsh, seu pretendente quando ela era jovem. A descrição constante dos momentos de experimentação de Clarissa tem como principal função na narrativa mostrar êxtase e deslumbramento por uma situação aparentemente trivial, mas que representa para a personagem a própria dinâmica da vida. Entretanto, tal dinâmica é interrompida na sua totalidade pela presença da morte, que ecoa sobre a vida, encarnada na figura do personagem Septimus. Temos, então, ao longo do romance, um contraponto importante entre os dois personagens que encadeiam todo o processo narrativo e sistematizam, de certa forma, os temas, delineados por meio do material psicológico repassado ao leitor. A idéia fica evidente logo na introdução dos dois personagens, como podemos observar: Mrs. Dalloway said she would buy the flowers herself. For Lucy had her work cut out for her. The doors would be taken off their hinges; Rumpelmayer´s men were coming. And then, thought Clarissa Dalloway, what a morning – fresh as if issued to children on a beach (WOOLF, 1976, p.7).32 And there the motor car stood, with drawn blinds, and upon them a curious pattern like a tree, Septimus thought, and this gradual drawing together of everything to one centre before his eyes, as if some horror had come almost to the surface and was about to burst into flames, terrified him. The world wavered and quivered and threatened to burst into flames (19).33 Nos dois fragmentos acima, manifestam-se duas oposições que permeiam Mrs. Dalloway. De um lado, temos Clarissa deslumbrada numa manhã, saindo para comprar flores. 32 Mrs. Dalloway disse que ela própria iria comprar as flôres. Quanto a Lucy, já estava com o serviço determinado. As portas seriam retiradas dos gonzos; em pouco chegaria o pessoal de Rumpelmayer. Mas que manhã, pensou Clarissa Dalloway – fresca como para crianças numa praia (1980, p.7). 33 E ali estava o auto, de cortinas descidas, que tinham um curioso desenho semelhante a uma àrvore, pensou Septimus, e aquele gradual centralização de tôdas as coisas ante os seus olhos, como se algo fosse surgir daquilo e tudo estivesse a ponto de estalar em chamas aterrorizou-o. O mundo oscilava, fremia e ameaçava estalar em chamas (1980, p.18). 124 Do outro, temos Septimus atormentado por tudo que vê e deslocado por uma sensação de inadequação ao mundo circundante. Clarissa, apesar de representar a personagem central, é juntamente com Septimus que define os meandros da construção narrativa. Ela representa, essencialmente, a idéia de plenitude e vida; enquanto Septimus, isolamento e morte. A morte é introduzida na festa de Clarissa, pela notícia do suicídio de Septimus dada pelo casal Bradshow: “A young man (that is what Sir William is telling Mrs. Dalloway) had killed himself. He had been in the army. Oh! Thought Clarissa, in the middle of my party, here´s death, she thought” (WOOLF, 1976, p.195-196).34 Com a notícia, a festa de Clarissa é imediatamente afetada pela morte, o que a leva a uma reflexão sobre um ponto comum que iguala todos os seres humanos, como a própria personagem constata: Death was a defiance. Death was an attemp to communicate, people feeling the impossibility of reaching the centre which, mystically, evaded them; closeness drew apart; rapture faded; one was alone. There was an embrace in death. But this young man had killed himself – had he plunged holding his treasure? ‘If it were now to die, ´twere now to be most happy,’ she had said to herself once, coming down, in white (WOOLF, 1976, p.196-197).35 Podemos perceber que, mesmo sem o contato direto entre Clarissa e Septimus, as oposições entre o episódio da festa e da morte unem-se e contribuem para o formato de um todo narrativo. Os outros personagens são construídos a partir deles à medida que, de alguma forma, fazem parte de um grande construto narrativo, estratificado em pequenos núcleos, que caminham, não necessariamente de forma linear, mas convergem para uma unidade final. 34 Um jovem (era o que o Sr. William estava contando a Mrs. Dalloway) se havia suicidado. Oh! pensou Clarissa, no meio da minha festa aparece a morte, pensou (1980, p.176). 35 A morte era um desafio. A morte era uma tentativa de união ante a impossibilidade de alcançar êsse centro que nos escapa; o que nos é próximo se afasta; todo entusiasmo desaparece; fica-se completamente só... Havia um enlace, um abraço, na morte. Mas êsse jovem que se havia suicidado... mergulhar acaso com o seu tesouro? ‘Se tivesse de morrer agora, seria no momento mais feliz’, dissera consigo certa vez, ao descer a escadaria, tôda vestida de branco (1980, p.177). 125 Vale salientar que a unidade final não diz respeito ao fim de uma história, propriamente dita, mas à apreensão plena, por parte do leitor, dos momentos de vidas, descritos e apresentados ao longo do romance. Oliveira (1979, p.34), na tentativa de sistematizar uma leitura para a narrativa do romance Mrs. Dalloway, elabora um esquema de visualização, em que se apresentam doze cenas maiores referentes ao passado, e constituídas de uma grande quantidade de miniestruturas significantes. As estruturas são centradas no presente, passado e futuro e as cenas funcionam como elos. Para a autora, a primeira cena liga-se à segunda por meio de Clarissa. Na segunda, surge Peter, que se ergue para a terceira seqüência. Nessa seqüência, encontra-se Septimus, dominante na quarta. A quinta cena prende-se à anterior de maneira mais indecisa. Entretanto, Hugh Whitbred e Septimus encontram-se diante do mesmo relógio em Oxford Street, no momento em que as duas cenas se sobrepõem. A quinta cena inclui Hugh Whitbred. Também há a citação do nome Peter Walsh, pelos comensais, como ressonância das cenas anteriores e prenúncio das seguintes. Por meio de Richard Dalloway, a sexta cena serve de conexão entre a quinta e a sétima. Na sétima cena, Clarissa já institui a cena oito, quando é mostrada a sua aversão ciumenta em relação a Mrs. Kilman ali dominante. Na nona cena, o exaltado sentimento maternal que Elizabeth cultiva em Mrs. Kilman é enfatizado, e ela é a dominante. Essa cena se ligaria à posterior por meio de sombras, já que Septimus domina na cena dez. Para Oliveira, Septimus é “uma espécie de sombra-sumário da condição humana, tão absurda quanto a loucura” (1979, p.36). A décima primeira cena do romance liga-se à anterior quando o suicídio de Septimus ecoa nos ouvidos de Peter, atentos à sirene da ambulância. Nesse momento, Peter, assim como Septimus, faz um balanço da própria vida, refletindo sobre o passado, presente e futuro. A última cena liga-se à anterior por meio da presença de Peter e funciona como um sumário geral das cenas. 126 A subdivisão de Mrs. Dalloway, feita por Oliveira, reforça a idéia de fluxo narrativo corrente em que as cenas são interligadas. Entretanto, não pode ser considerada como definitiva, como a própria autora admite, pois, como vimos, anteriormente, o tecido narrativo é composto por quadros de momentos de vida que se entrecruzam ou se alternam e, por isso, não necessariamente segue uma ordem fixa. Com Mrs. Dalloway, Woolf afirma o domínio de uma nova técnica literária e consolida um novo padrão narrativo moderno de características particulares, cuja ênfase recai não sobre as ações ou os fatos em si, mas sobre a análise da mente dos personagens. Dessa forma, o desenvolvimento da narrativa se dá por meio dos processos mentais, da ativação da memória, e não de uma ação externa, o que a isenta de um padrão narrativo com um começo meio e fim. O emprego da nova técnica, certamente, rompe com os padrões do romance tradicional. E, por tentar apreender as conjecturas mentais dos personagens, gera um discurso de caráter intimista que trata de questões relacionadas à própria existência. Uma narrativa dessa natureza pode suscitar muitas questões, quando se propõe a falar sobre a sua tradução para as telas. O emprego desses elementos inovadores, tais como os recursos cinematográficos por nós apresentados, e a própria atitude de descrever a vida de uma personagem em um dia, fazem de Mrs. Dalloway um projeto narrativo de vanguarda para a época. O romance apresenta um enredo tecnicamente definido. Isso se dá pela presença de uma cronologia aparente, ou seja, no romance, tudo se passa em algumas horas de um dia de junho na cidade de Londres. Nessas poucas horas em que o leitor mergulha no universo de Clarissa Dalloway, a idéia de tempo é sempre ressaltada e o espaço é a priori delimitado. No entanto, faz-se necessário reforçar que essas restrições são logo superadas porque, como se trata de uma narrativa que lida, predominantemente, com os processos mentais, e não com a ação 127 propriamente dita, os acontecimentos são triviais, e o que importa é a penetração no universo interior dos personagens. Mrs. Dalloway, em princípio, apresenta as unidades de tempo e espaço, já que o tempo se limita a um dia na vida do personagem principal, e o espaço real é Londres. Há, portanto, um tempo real na narrativa, ou seja, o presente real, que é o percurso da personagem principal que anda numa manhã de junho, sozinha com as suas divagações, suas lembranças e as suas visões. Outros personagens e “ações” são acrescidos, ao longo do dia. No final da tarde, ocorre o suicídio e à noite, a festa. Há, no desenvolvimento narrativo, durante todo o dia a ênfase de marcação do tempo por meio das batidas do Big Ben. Oliveira (1979, p.57) reforça que o tempo meteorológico e o cronológico estão bem demarcados no romance. Entretanto, o tempo psicológico supera a cronologia, dá maior profundidade aos personagens e aos acontecimentos. Assim como o espaço, o tempo é constantemente deslocado e subordinado à natureza subjetiva do romance, que se desenvolve não no nível dessa delimitação espaçotemporal, mas no das operações inconscientes da psiquê dos seus personagens. Há, então, no romance, uma organização temporal interna da narrativa, mas há também uma transcendência dessa organização que vai além do nível micro-estrutural da obra, devido aos constantes deslocamentos. Conforme ressalta Oliveira: A cronologia domina os momentos em que o passado ressurge, o que denuncia o tratamento subjetivo dado ao problema, pois o tempo-base é manejado pela mente dos diversos personagens. Embora haja uma sugestão de separação de cenas, como apontamos anteriormente, não há zonas estanques no fluir temporal pois, numa percepção dialética, cada pólo abriga o seu contrário (OLIVEIRA, 1979, p.57). Esse aspecto se instaura, principalmente, por meio da forte relação existente entre o estado de mente dos personagens e um determinado momento de suas vidas, ou seja, em muitos casos os fatos externos são apenas pretextos para o desencadeamento dos processos mentais ou da ativação da memória. Há uma interação simultânea de dois tempos: um tempo 128 real e um tempo da mente dos personagens, sendo o último o mais importante. Como exemplo dessa interação, poderíamos citar as reminiscências de Peter ao chegar ao hotel após sua visita à Clarissa: She had influenced him more than any person he had ever known. And always in this way coming before him without his wishing it cool, lady-like critical; or ravish, romantic, recalling some field or English harvest. He saw her most often in the country not in London. One scene after another at Bourton...” (WOOLF, 1976, p.164).36 Por meio dessas reminiscências, a mente do personagem se desloca no tempo para quase trinta anos atrás, para refletir sobre os dias de verão que passara em Bourton: He went upstairs – he saw her most often at Bourton, in the late summer, when he stayed there for a week, or fortnight even, as people did in those days. First on top of some hill there she would stand, hands clapped to her hair, her cloak blowing out, pointing, crying to them – She saw the Severn beneath. Or in a wood, making the kettle boil – very ineffective with her fingers; the smoke curtseying, blowing in their faces; her little pink face showing through; begging water from an old woman in a cottage, who came to the door to watch them go (WOOLF, 1976, p.164-165). 37 Percebemos que as digressões do personagem se sobrepõem em relação ao contexto narrativo, tanto no que diz respeito ao tempo, quanto ao espaço. Isso ratifica a idéia de que esses elementos não são os mais importantes para o desenvolvimento narrativo do texto de Woolf. Vale ainda enfatizar que, mesmo com o emprego deliberado da unidade de tempo no romance, a proposta narrativa não recai sobre esse elemento, mas nas constantes digressões, pois se trata de um romance cuja proposta é voltada para a descrição de processos mentais dos personagens e a apreensão de suas realidades internas. O processo de construção desse padrão narrativo difere, portanto, do padrão de construção dos romances tradicionais, que são lineares, com o desenvolvimento de uma história que guia o leitor para a resolução de 36 Clarissa o influenciava mais do que outra pessoa conhecida. E sempre se lhe apresentava de um modo imprevisto: fria, senhoril, crítica; ou arrebatadora, romântica, relembrando prados ou searas da Inglaterra. A maioria das vezes, vira-a no campo, não em Londres. Uma cena após outra, em Bourton. (1980, p.148). 37 Subiu as escadas ... Em Bourton, vira-se mais tempo em Bourton, naquele verão, quando ali passara uma semana ou dias, como era de costume. Primeiro parada no alto de uma colina, defendendo os cabelos revoltos, a capa ao vento, e apontando, gritando-lhes que avistava o Severn lá em baixo. Ou no mato, fazendo ferver a chaleira – muito sem jeito alías; o fumo desenrolava-se de encontro às suas faces; e através dêle entremostravase a sua carinha afogueada. Ou então quando ela pedia um copo d´água de passagem, a alguma velha, que ficava a porta, a segui-los com o olhar (1980, p.148). 129 uma determinada situação ou de um conjunto de situações da realidade externa dos personagens. A construção do romance, como esboçamos brevemente no início do capítulo, é formado por uma composição de diferentes quadros de momentos de vida dos personagens (romance de montagem), mas apresenta na articulação dessa composição, uma característica particular, a fusão de vários raciocínios. Assim, o tempo da narrativa e o da mente dos personagens são paralelos, confundem-se e intercalam-se. Há um único narrador que direciona as conjecturas mentais, mas há várias perspectivas, porque a onisciência múltipla apreende as consciências de mais de um personagem. O leitor, por sua vez, é colocado na posição de observador, diante da fala do narrador, o qual reproduz várias ‘falas’ no conjunto do discurso literário. O narrador apodera-se de sua função para relatar os mais profundos pensamentos de vários personagens atormentados pela condição das suas próprias existências. É como se o leitor se sentasse diante de uma tela e observasse toda a intimidade desses personagens. Eles discorrem sobre um tema a partir do qual se encadeia uma descrição de fatos ou casos isolados, ou de episódios mais longos; ou ainda de uma seqüência de episódios. O narrador, nesse caso, assume a posição de intermediador e condutor do processo narrativo. A forma de condução do material psicológico em Mrs. Dalloway está diretamente ligada à idéia de novo conceito de romance, empregada pela autora, em que a descrição física dos personagens passa a não ter tanta importância, como a maioria dos escritores o faz na ânsia de criar personagens reais. Woolf questiona o conceito de personagem real, defendido por Arnold Bennett, para criticar tal postura. Ela afirma o seguinte: But now I must recall what Mr. Arnold Bennett says. He says that it is only if the characters are real that the novel has any chance of surviving. Otherwise, die it must. But, I ask myself, what is reality? And who are the 130 judges of reality? A character may be real to Mr. Bennett and quite unreal to me (WOOLF, 1978, p.103). 38 A fala de Woolf contrapõe-se à visão realista de Bennett, na criação dos personagens, e abre precedentes para a criação de personagens mais voltados para as realidades internas, deixando-os mais abertos à criatividade do leitor e a uma interferência maior por parte dele na apreensão do universo particular disposto na narrativa. A busca de descrição das realidades internas, sugerida por Woolf, está em consonância com a técnica do fluxo da consciência, como reforça Oliveira: Nos chamados romances do “fluxo da consciência”, o atuante adquire maior força individual, já que além de “representar” a vida aos olhos do leitor, ele lhe proporciona a faculdade de “participar” efetivamente de seu conflito (OLIVEIRA, 1978, p.78). Como exemplo desse ponto de vista, podemos citar a descrição cênica do aeroplano, discutida anteriormente. Apresentamos, por meio do fragmento em questão, um recurso usado por Woolf para consolidar uma intermediação dialógica na qual o leitor observa o material psicológico dos vários personagens que dirigem suas conjecturas para a observação de um fato. Com o emprego do recurso da montagem espacial, o leitor adentra ao mesmo tempo na mente de vários personagens; o aeroplano é um só; o tempo é fixo, mas a variedade de impressões surge diante daquilo que afeta cada uma das mentes que o contemplam. Existem, assim, cortes cronológicos e ao mesmo tempo passagens para vários “enredos”. Por exemplo, existe uma situação comum na qual todos estão imersos, mas existe também o efeito particular que cada personagem tem em relação à situação. A Sra. Coates é a primeira a ser atraída pelo barulho do aeroplano. A Sra. Bletchley permanece estática e Sra. Bowley simplesmente olha. 38 Mas agora eu preciso lembrar o que o Sr. Arnold Bennett diz. Ele diz que é somente se os personagens forem reais que o romance tem alguma chance de sobreviver. Caso contrário, ele deve morrer. Mas, eu me pergunto, o que é realidade? E quem são os juizes da realidade? Um personagem pode ser real para o Sr. Bennett e completamente irreal para mim. 131 O objeto de observação é único, o aeroplano, mas as realidades dos sujeitos que o observam são diferentes. Essas rupturas no processo narrativo estão ligadas a questões fundamentais para o conjunto do discurso literário moderno que constitui o romance. Esse discurso tenta mostrar os fatos não como o autor os vê, mas como os personagens os sentem, numa seqüência cênica. Por isso, o uso particular desse ponto de vista é importante para categorizar o romance como moderno e delinear o projeto narrativo de Woolf. Vejamos um quadro comparativo sistemático, por nós elaborado, desse projeto em relação ao projeto da narrativa tradicional: PADRÃO NARRATIVO DOS ROMANCES TRADICIONAL E MODERNO ROMANCE MODERNO (MRS. DALLOWAY) ROMANCE TRADICIONAL 1) Elemento condutor da narrativa: descrição 1) Elemento condutor da narrativa: descrição de acontecimentos, comunicando informações dos processos mentais ou fluxos de consciência sobre uma ação por meio da articulação de (reminiscências, memória, reflexões, questões uma relação causa/efeito (presença de um intimistas etc.) enredo). 2) Técnicas discursivas empregadas: empregadas: apresentação dos fluxos de consciência por meio dos eventos do monólogo interior indireto (descrição de fim), realidades internas) e por meio de técnicas delineação de personagens, definição de tempo cinematográficas: a) montagem, b) flashback, c) e espaço com foco narrativo centrado na close-up, e d) corte. 2) Técnicas discursivas organização narrativos e linearização (com começo, meio e descrição de uma realidade externa. 3) Classificação: romance realista e naturalista. 3) Classificação: romance impressionista, conforme Silva (1988, p.734). Como podemos perceber, o padrão narrativo de Woolf redimensiona características estruturais do romance tradicional pelo uso da experimentação e consolidação do uso de um novo processo de escrita em que se apresenta o “reflexo múltiplo da 132 consciência”, conforme denomina Auerbach (1998, p.495). Esse processo, para o autor, foi paulatinamente formado, mas foi nos decênios ao redor da Primeira Guerra Mundial e depois dela que se consolidou. Pode ser visto, portanto, como resultado do alargamento de horizonte de visão do ser humano que vinha acontecendo nos últimos séculos por meio do enriquecimento em experiências, conhecimentos, pensamentos e possibilidades de vida. Auerbach argumenta que tal fenômeno começara no século XVI, avançou em ritmo sempre crescente no século XIX. Mas é desde o princípio do século XX que atingiu um ritmo de aceleração tão violento que “a cada instante tanto produz ensaios de interpretação sintéticoobjetivo como os derruba” (p. 495). O ritmo violento das modificações, nesse período, teve efeito importante na emolduração de uma “episteme” que contribuiu para o favorescimento de uma eclosão de simultaneidade em muitos campos da ciência, da técnica e da própria literatura. Assim, várias experiências literárias começaram a acontecer concomitantemente. Em À Procura do Tempo Perdido (1913), por exemplo, Marcel Proust anunciava o advir de um outro tipo de romance que penetra em áreas até então de uso exclusivo da psicanálise. Também nessa perspectiva, surgiram A Portrait of the Artist as a Young Man (1916), de James Joyce, Pilgrimage (1915), de Dorothy Richardson e as obras de Henry James. Nesse contexto de efervescência criativa inovadora, Mrs. Dalloway foi escrito como reforço a essas experiências e conferiu a Virginia Woolf a afirmação e o domínio da nova técnica que, juntamente com os outros escritores, vislumbraram novos rumos para o romance que aqui chamamos de moderno. Temos observado que se trata de um construto narrativo particular e custou a Woolf, por um lado, um enorme esforço mental e um grande desafio como ela própria assinala em seu diário: “One feels about in a state of misery – indeed I made up my mind one night to abandon the book - & then one touches the hidden spring” 133 (WOOLF apud BELL, 1981, p.272);39 e, por outro, uma visibilidade cada vez maior pela crítica e seu estabelecimento no cânone literário inglês. 3.2 SRA. DALLOWAY, DE MARLEEN GORRIS O filme Sra. Dalloway, traduzido do romance de Virginia Woolf, foi produzido pela Paris Vídeo Filmes/First Look Pictures, em associação com a Bergen Film/A NewMarket Capital Group e BBC Films, com a participação de The European Co-Production Fund UK/NPS Television/Dutch Co-Production Fund (COBO). Com o roteiro de Eillen Atkins e a direção de Marleen Gorris, o filme foi lançado em 1997. O elenco é composto por Vanessa Redgrave, Natasha McElhone, Rupert Graves, Michael Kitchen, Alan Cox e outros. No Brasil, esse filme foi exibido em curta temporada nos cinemas, tendo sido a sua divulgação maior em vídeo. O filme é um drama romântico que retrata situações de apenas um dia na vida da Sra. Dalloway, quando ela se prepara para a festa que pretende dar à noite. Em flashbacks, aparecem as cenas do passado, quando ela era apenas a jovem Clarissa. Outros dois personagens conduzem esse fio narrativo entre o presente e o passado: Peter Walsh (Michael Kitchen) e Septimus Smith (Rupert Graves). Peter, que desejava Clarissa em Burton e foi rejeitado por ela, volta para a Inglaterra após muito tempo na Índia. Assim, como Peter, Septimus é atormentado pelo passado, mas seus problemas estão em outra dimensão, pois estão relacionados aos efeitos da guerra e esse tormento o conduz ao suicídio. O processo de construção da narrativa se aproveitou de alguns elementos temáticos do romance, tais como as reminiscências de Clarissa Dalloway e Peter, a perturbação mental de Septimus e a própria descrição da Londres dos anos 20. Entretanto, 39 Fica-se num estado de impotência – de fato, eu decidi desistir do livro numa noite - & daí, a gente pega o fio da meada. 134 incorporou um padrão narrativo próprio. Esse padrão está diretamente associado ao uso de determinadas técnicas cinematográficas (que funcionam também como estratégias de tradução intersemiótica), responsáveis pela organização do material narrativo, tais como a linearidade, o flashback, o voice-over e a montagem. Vale ressaltar que as estratégias se entrecruzam, ao longo da narrativa, mas, por questões metodológicas, vamos discuti-las separadamente. 3.2.1 Linearidade (organização narrativa) A descrição dos momentos de vida dos personagens é feita de forma linearizada, como se houvesse uma intenção de facilitar a sua leitura por parte do espectador. Partindo desse pressuposto, questionamos a natureza da construção da narrativa fílmica, considerando o fato de que aspectos vanguardistas de uma narrativa moderna de grande impacto no início de século passado foram reescritos por uma narrativa mais tradicional no cinema na década de 90. O ponto de partida da nova construção do texto foi o uso da técnica de antecipação (flashforward) para enfatizar o estado mental dos personagens principais logo no início do filme e direcionar, de certa forma, a narrativa. Fica clara desde o início do filme, por meio da apresentação de Septimus e Clarissa, a delineação de dois pólos argumentativos que vão nortear todo o percurso narrativo: os efeitos da guerra e o repensar de toda uma existência. Septimus representa o primeiro e Clarissa, o segundo pólo. A oposição que marca os personagens é um dos principais fios de condução da narrativa. Os temas em questão são os mesmos desenvolvidos no romance. Entretanto, a forma como são distribuídos ao longo da narrativa é outra. A discussão da situação da Inglaterra após a Primeira Guerra Mundial é feita, tanto no texto de Woolf, quanto no de Gorris, como elemento importante condutor de todo o 135 processo narrativo, mas o uso da técnica de apresentação desse elemento é diferente nas duas narrativas. No romance, a discussão está sempre ligada às reflexões individuais e às reminiscências dos personagens. Ou seja, há uma maior subjetividade, dando um tom menos realista. A presença do fato é apenas fruto de uma realidade interna deles, ou seja, apresentase apenas como idéia subjacente ao desenvolvimento narrativo. Logo no início do romance, podemos perceber isso por meio das conjecturas de Clarissa Dalloway e das suas impressões pessoais acerca da guerra: For it was the middle of June. The War was over, except for someone like Mrs. Foxcroft at the Embassy last night eating her heart out because that nice boy was killed and now the old Manor House must go to a cousin; or Lady Bexborough who opened a bazaar, they said, with the telegram in her hand, John, her favourite, killed; but it was over; thank Heaven – over (WOOLF, 1976, p.8)40 Esse fragmento apresenta um caráter introspectivo, que funciona como indício de um aspecto bastante freqüente na escrita de Woolf. Clarissa se detém sobre a questão dos efeitos da guerra, e, mais especificamente, sobre a dor de Mrs. Foxcroft e Lady Bexborough pela morte de seus familiares. Apresenta-se por meio dessa descrição do pensamento de Clarissa uma convergência de imagens da situação da guerra. Embora trate-se do mesmo assunto, Clarissa aponta particularidades do ponto de vista de Mrs. Foxcroft e Lady Bexborough. Isso representa uma reação do romance ao período do pós-guerra na Inglaterra nos anos 20, em que os efeitos devastadores estavam por toda parte, manifestando-se de várias formas, seja por meio das neuroses, dos próprios danos físicos dos ex-combatentes e das mortes que separaram familiares e amigos. A questão da guerra no filme se transforma num forte apelo visual, e o que era apenas reflexão dos personagens passa a ser um elemento constitutivo do enredo do filme. A 40 Pois era em meados de junho. A guerra está acabada, exceto para alguns, como Mrs. Foxcroft, ainda a última noite, na embaixada, devorando a sua mágoa, porque fora morto aquêle belo rapaz e o velho castelo deveria agora passar para um primo; ou Lady Bexborough que inaugarava uma quermesse, diziam, tendo na mão o telegrama, de que John, o seu predileto fora morto; mas estava acabada, sim; graças a Deus – acabada. (1980, p.8). 136 primeira cena mostra a imagem de Septimus e de seu amigo Evans, lutando na Primeira Guerra Mundial, na Itália, em 1918. Na mesma cena, a morte de Evans é apresentada com os gritos desesperados de Septimus, tentando evitar a morte do amigo: “Evans! Don’t come!”41. Vejamos: Figura 4 – Reprodução de um momento do passado do personagem Essa cena reproduz um momento do passado do personagem. É um flashback que apresenta para o espectador o primeiro indício do desenvolvimento narrativo do filme. A cena em questão não mostra Septimus no presente, e sim uma experiência sua do passado. Com essa estratégia, Gorris traz o passado diretamente para a tela e negocia com o texto de Woolf (por introduzir um tema importante do livro) e com o espectador, por transformar uma reminiscência num episódio. Na tradução de Gorris para o cinema, o romance de Woolf foi redimensionado. A proposta de enredo mínimo, muito mais centralizada nas impressões sobre os fatos do que nos fatos em si, transformou-se numa história. Na proposta cinematográfica, as “histórias” individuais não são apenas pretexto para o desenvolvimento narrativo, como no livro, são 41 Septimus: Evans! Não se aproxime! 137 agora parte importante para a instância narrativa do filme. Assim sendo, a técnica de combinação e organização dos “sintagmas” do filme (METZ, 1976, p.201), a montagem, teve outro enfoque. A manipulação desses “sintagmas” constitui um outro objeto, um filme que apresenta um enredo com uma preocupação maior com o arranjo linear. Acrescente-se, a esse fato, a necessidade de adequação do romance aos novos ditames da linguagem do cinema tais como a ação e o caráter visual. Esses dois aspectos constituem-se elementos importantes para a mudança de foco na estrutura da narrativa. Ao submeter o texto de Woolf ao sistema cinematográfico, a idéia de enredo mínimo tende a ser diluída, pois uma ação, por menor que seja, passa a ser incorporada à tela. A criação e a organização das imagens visuais, por sua vez, também mudam o foco na estrutura na medida em que sugerem uma maior dramaticidade ao texto. Por meio da nova estrutura, a diretora tentou captar determinados elementos que julgou fundamentais para o entendimento do romance e construiu o seu próprio texto e, não, necessariamente, teve como preocupação a “fidelidade”. Uma posição tomada na tradução fílmica, com relação às questões mencionadas nos fragmentos acima apresentados, foi a de enfatizar a organização temporal interna da narrativa e segmentar as oscilações entre os fatos do presente e os do passado. Se, por um lado, o texto cinematográfico se preocupou em estruturar essa organização do material temporal no nível interno da sua narrativa, por outro, desconsiderou a articulação da simultaneidade dos vários ‘tempos’ nos quais as perspectivas dos personagens se entrelaçam. A presença do movimento constante das imagens de diferentes tempos entre as realidades internas e externas dos personagens confere à narrativa cinematográfica um caráter mais elaborado de ação, não observado no romance. O texto que se apresenta na tela é um drama romântico e já não tem como preocupação principal os propósitos experimentais do romance, muito embora estabeleça 138 algumas relações com ele. Vale enfatizar, aqui, que o tempo de recepção dos dois textos é diferente. O tempo do livro é para o leitor e do filme é para o espectador, que pode ser leitor ou não do texto de partida. Acrescenta-se ainda a esse fato o caráter narrativo do cinema que tende a dar uma maior dinâmica de ação aos textos. E, por isso, naturalmente, assume um formato próprio. O filme levanta uma discussão sobre o mundo da sociedade inglesa no verão de 1923, cinco anos após a Primeira Guerra Mundial. A narrativa se inicia com o deslocamento do cenário da guerra na Itália: “Italy, 1918”42 para a casa de Clarissa Dalloway em Londres: “London, June 13 1923”.43 Apesar de se tratarem de dois pólos argumentativos diferentes e se apresentarem em diferentes linguagens, algumas questões se interligam e vão permear todo o filme. A construção dos personagens torna-se importante para a interligação das questões. De um lado, temos as imagens e a fala de Septimus, atormentado pelas lembranças da guerra e da morte de seu amigo Evans. Do outro, temos Clarissa, também, de certa forma, atormentada pelas lembranças do passado, pelo repensar de sua própria vida. Nesse sentido, esses personagens se assemelham e fazem a questão existencial se apresentar em ambos os pólos, embora seus mundos sejam diferentes. Observamos que, assim como no romance, o padrão temporal do filme se sustenta, principalmente, pelo uso constante dos flashbacks, algumas vezes indicadores de informações para o desenvolvimento da narrativa, como no caso da questão da guerra, e outras vezes como suporte para apreensão da manifestação dos processos mentais de Clarissa e de seus sentimentos. A diferença é que esse padrão, no filme, funciona não somente como reprodução de processos mentais, mas também como elemento construtor do enredo. Se fizermos um paralelo das diferentes perspectivas no tratamento do deslocamento de tempo de Septimus e Clarissa no filme, podemos perceber a ênfase dada a 42 43 Itália, 1918. Londres, 13 de junho de 1923. 139 essa questão pela tradução. Septimus, por exemplo, foi reconhecido como personagem importante para estruturar toda a seqüência narrativa, desde suas constantes digressões no tempo até os momentos da guerra. E as digressões de Clarissa, por sua vez, são substratos que se juntam e formam, não somente uma cadeia de impressões como se observa no romance, mas elementos enunciadores de um enredo que compõem todo o conjunto narrativo. Dessa forma, o conjunto narrativo de Gorris lida com as digressões como suporte para tratar da construção dos personagens diante de uma situação de vida e tornam-se parte do enredo de um filme de narrativa tradicional. Vejamos algumas considerações da crítica a respeito do tratamento do tempo no filme. Segundo Merten, encontra-se no filme Mrs. Dalloway “a versão reduzida da história, mas não as implicações do estilo” (1998, p.1). Um dos principais argumentos apresentados pelo crítico é a forma como Marleen Gorris lidou com o ‘tempo interior’ dos personagens, um aspecto importante no romance. O autor acrescenta que surge nas reflexões dos personagens um tempo à parte, que seria exatamente a interação dos tempos interno e externo dos personagens. Enquanto no livro esses tempos se fundem numa teia narrativa, no filme, eles são linearizados na seqüência narrativa e não seria, na opinião do crítico, “a melhor forma para traduzir para as telas o estilo da escritora” (p.1). Luiz Merten, assim como outros críticos do filme, Alan Stone (1997), Maitland McDonagh (2001), Bjorn Thomson (2001), demonstram, de alguma forma, preocupação com o grau de fidelidade do filme em relação ao romance, seja pela idéia de aproximação ou de distanciamento que a narrativa tem com o texto de partida. Temos reconhecido, ao longo da discussão, que o tempo na composição narrativa do romance representa apenas uma forma de lidar com o material psicológico dos personagens e não tem o propósito de se tornar um elemento condutor de um enredo como acontece com o filme. Reconhecemos também que a forma de segmentação do tempo, em vez 140 da fusão, traz para a tradução do texto de Woolf um aspecto diferente daquilo que um leitor da escritora esperaria. Entretanto, discordamos de Merten quando ele afirma que essa não seria a melhor forma de tradução do estilo de Woolf. Primeiro, não podemos esperar que o filme seja uma “transposição” do livro para a tela, ou seja, que a linguagem do cinema tenha necessariamente que lidar com “equivalências” da linguagem do romance, já que o filme não se trata de um “romance filmado”. Segundo, uma tradução, principalmente a fílmica, não pode ser observada do ponto de vista da semelhança com um “original”, pois trata-se de um resultado de um trabalho coletivo que envolve a leitura de um roteirista, de um diretor que sofre interferências durante as filmagens e ainda está sujeita a restrições de caráter econômico, político e ideológico, comuns a uma produção cinematográfica. Torna-se, portanto, simplista demais prescrever o que o filme deveria ou não ter feito. Acrescenta-se a isso a interferência do estilo individual do diretor que exerce influência no processo, conforme assinala Gorris: Anyway, I make the films I want to make and the audience will see what they do. If they don’t like it, well that’s okay. If they do, then great. But, I think you should at least allow the artist the freedom of speech, to do what she or he wants to do (GORRIS apud WORSDALE, 1998, p.3).44 Essa fala de Gorris é esclarecedora quanto à idéia pressuposta de uma certa “autonomia”, por parte do diretor no trabalho que se propõe a realizar. Nesse sentido, explicam-se algumas de suas escolhas na reescritura de Mrs. Dalloway. Um outro ponto interessante a se considerar é o fato de Gorris dar ao diretor o estatuto de artista, ou seja, alguém que cria. Partindo desse pressuposto, Gorris se isenta de um compromisso necessário com o texto de Woolf. Esse posicionamento reforça uma discussão importante nos estudos de tradução, que é a questão da visibilidade do tradutor e da co-autoria da obra traduzida. 44 De qualquer forma, eu faço os filmes que eu quero e o público verá o que ele vê. Se não gostar, bom, tudo bem. Se gostar, ótimo. Mas eu acho que a gente deveria, pelo menos, dar ao artista a liberdade de voz para fazer o que quiser. 141 O romance Mrs. Dalloway apresenta um único narrador que direciona os processos mentais, mas existem várias perspectivas. Dada a natureza impressionista do romance, o leitor é colocado na posição de observador do narrador, que é reprodutor de um discurso interno. O discurso discorre sobre temas, a partir dos quais se encadeiam descrições de fatos ou casos isolados, ou de episódios mais longos; ou ainda uma seqüência de episódios. Reforçamos a idéia de que os episódios não dizem respeito aos fatos das realidades externas dos personagens, mas àqueles das consciências. No filme, a questão das múltiplas perspectivas foi bastante trabalhada por Marleen Gorris com o uso da correlação entre os personagens, como é o caso da constante ligação entre Clarissa e Septimus. Sabemos que há confrontação das várias realidades internas dos personagens e que essas realidades se confundem na narrativa de Woolf, como já vimos na descrição cênica do aeroplano, discutida anteriormente. Na tradução para a tela, Gorris, na tentativa de lidar com esse aspecto, propõe uma seqüência de cenas de aproximadamente seis minutos constituída por elementos que sintetizam a confrontação. Para tal, a diretora pôs na tela a imagem e o barulho do aeroplano, contrastando com cada um daqueles rostos que se vislumbram com a presença daquele objeto voando. Há, a partir de então, uma observação panorâmica do fato tanto por parte dos personagens, quanto por parte dos espectadores. Vejamos o desenvolvimento da seqüência. Clarissa é a primeira personagem a observar o aeroplano no ar e é, também, a última a fechar a seqüência. Clarissa é a primeira personagem a contemplar o objeto, mas é Rezia quem primeiro o aponta para Septimus: (Clarissa caminha pela rua, ouve o barulho do aeroplano e o observa no ar.) Rezia: Look! look, Septimus. Septimus: There is no crime. There is no death. The birds sing this in Greek.45 45 Rezia: Veja! Veja, Septimus. Septimus: “Não existe crime... Não existe morte” Os pássaros cantam isso em grego. 142 Mais uma vez, evidencia-se a presença dos dois pólos argumentativos da narrativa, em perspectivas opostas. Enquanto Clarissa, assim como os outros transeuntes, encanta-se com a figura do aeroplano no ar, Septimus está tão imerso em seu mundo que nem sequer dá atenção ao comentário de Rezia. Os dois personagens estão olhando em direção oposta, uma referência direta à condição deles no romance. Nesse momento, existe a possibilidade de fundirem as várias realidades, pois aparece na tela um ritmo mais acelerado de imagens que têm como efeito um tom dramático. O efeito da fusão se completa pelo discurso dos personagens. Há, imediatamente, uma simultaneidade de imagens e sons tais como um deficiente físico, uma mulher conduzindo um carrinho de bebê, Septimus e Rezia, o choro de uma criança e o próprio barulho do aeroplano. Cria-se, então, uma situação de caos na narrativa cinematográfica que entra em sintonia com a condição de ruína de Septimus e de desespero de Rezia: Septimus: The world is screaming: kill yourself! Kill yourself! Rezia: Septimus, I go to walk on the lake and back46 Assim, a narrativa fílmica se aproxima do romance, por manter um momento máximo de intropecção dos personagens. Mas, ao mesmo tempo, também se distancia dele, por apresentar maior dramaticidade. Trata-se, portanto, de um efeito bastante produtivo na consolidação do fato na narrativa. Na cena seguinte, a figura no céu da palavra KREEMO é posta por alguns segundos na tela, com uma voz feminina em off comentando o letreiro: ‘’Kreemo”! “It says kreemo.”47 Logo em seguida, Observa-se Rezia contemplando os jardins e Septimus é novamente posto em foco. Mais uma vez, o personagem está completamente imerso em seu próprio mundo: 46 Septimus: O mundo está gritando: Mate-se! Mate-se! Rezia: Vou até o lago e já volto. 47 “Kreemo” Está escrito “kreemo.” 143 Septimus: Make it known, make it known! But, there’s a God! No one kills from hatred! (Septimus vê a imagem de seu amigo Evans) Evans, for God’s sake! Don’t come!48 Percebemos que cada personagem reage de forma diferente à visão do aeroplano, mas cada um deles é, de certa forma, afetado pela situação. Consolidam-se, dessa forma, as diferentes perspectivas apresentadas no filme, que podem também ser vistas como relações sígnicas de natureza indicial e icônica do romance. Em seguida, a imagem de Clarissa retorna para a tela ainda caminhando, observando o percurso do aeroplano e observando, também, a reação de um casal de velhos ao tentar decodificar o que está sendo escrito: Woman: T... O... F... F... E... E... Man: It says “Toffee!” Woman: I know it’s toffee! (A expressão KREEMO TOFFEE na tela) Clarissa: Look, Lucy. It said ‘Kreemo Toffee” 49 Com o desenvolvimento dessa seqüência, Marleen Gorris reforça o aspecto do entrelaçamento das múltiplas perspectivas, tão recorrente no texto de Woolf. O fluxo narrativo desenvolve-se sob olhar dos vários personagens, e a percepção individual deles dialoga com o espectador, embora Clarissa seja a personagem que norteia todo esse fluxo no momento em questão. É como se Clarissa fosse consciente do efeito que o objeto pode causar em cada um daqueles transeuntes. Enquanto Clarissa contempla maravilhada o aeroplano, num momento de êxtase, Septimus, completamente indiferente ao fato, observa os pássaros se alimentado na praça, imerso em suas reflexões de angústia e de questionamento da própria existência, evidenciando-se, mais uma vez, o paralelismo entre dois mundos diferentes, como podemos observar no conjunto de imagens a seguir: 48 Septimus: Divulguem iss. Divulguem isso. Mas, existe um Deus! Ninguém mata por ódio! Evans, pelo amor de Deus, Não se aproxime! 49 Homem: Está escrito “Toffee!” Mulher: Eu sei. Clarissa: Veja, Lucy! Estava escrito “Kreemo Toffee.” 144 3.2.3 Flashback Figura 5 – Descrição cênica do aeroplano 3.2.2 Flashback O romance é desenvolvido em grande parte por meio do uso constante da técnica do flashback, já que o ponto central da narrativa é a descrição de processos mentais e neles se inserem a memória e as reminiscências dos personagens. O uso da técnica está condicionado à 145 relação tempo/personagem. A narrativa fílmica também usa esse recurso, mas o flashback, além de estar condicionado à mesma relação tempo/personagem, apresentada no livro, tem um novo papel, isto é, contribui para a composição do novo formato narrativo. Explica-se: a alternância de processos mentais do presente e do passado dos personagens, que no livro é apenas a apresentação dos fluxos de consciência, no filme, a alternância de imagens assume também a condição de parte integrante da história e ajuda a contá-la. Como um exemplo ilustrativo do uso do flashback, podemos voltar à cena em que Septimus está na guerra, no início do filme, indicando a transformação de reminiscências em episódio, conforme visto anteriormente. Todd Pruzan (2002, p.4), ao entrevistar Eileen Atkins, a roteirista, leitora e conhecedora da obra de Woolf, questiona a sua surpresa ao assistir o início de Sra. Dalloway e perceber que, diferente do romance cujo início apresenta Clarissa dizendo a Lucy que irá comprar flores, o filme começa com essa cena de Septimus nas trincheiras de guerra. Atkins responde que queria, com isso, deixar clara para o espectador, desde o início, a ligação entre Clarissa e Septimus. A roteirista ainda argumenta que outros indícios sobre as mortes na guerra foram suprimidos nas primeiras cenas da caminhada de Clarissa pelo parque. Podemos inferir que essa preocupação com a clareza na construção do roteiro tem uma intenção de lidar com referências temáticas diretas do romance. Mas a nova forma de organização é particular e torna a narrativa mais tradicional. As técnicas utilizadas são as mesmas, mas o que elas representam é diferente. Enquanto no romance o leitor adentra as reminiscências ou memória dos personagens, no caso dos flashbacks, ou detém-se a um detalhe importante de um momento de vida de um personagem, no caso do close-up, por meio da criação de imagens mentais, no filme, essas representações são icônicas ao reproduzirem o tempo, o espaço, os personagens, o figurino e os próprios efeitos, capazes de criar a ilusão da 146 realidade no cinema. Assim, a disposição de quadros visuais dá à reescritura do romance um caráter mais convencional na organização do material, oriundo das consciências. No romance, o flashback se apresenta logo no início da narrativa quando Clarissa abre a porta para ir à rua, e o simples barulho do ranger da janela a faz imediatamente reportar-se ao passado: And then, thought Clarissa Dalloway, what a morning – fresh as if issued to children on a beach. What a lark! What a plunge! For so it had always seemed to her when, with a little squeak of the hinges, which she could hear now, she had burst open the French windows and plunged at Bourton into the open air. How fresh, how calm, stiller than this of course, the air was in the early morning; like the flap of a wave; the kiss of a wave; chill and sharp and yet (for a girl of eighteen as she then was) solemn, feeling as she did, standing there at the open window, that something awful was about to happen; looking at flowers (WOOLF, 1976, p. 7).50 Por meio dessa descrição direcionada do pensamento de Clarissa, o leitor é conduzido a penetrar na sua mente, a qual é acometida por uma sensação de recordações e vislumbres que desencadeiam o fluxo da consciência. A condução do leitor ao universo do personagem é também uma estratégia para que ele perceba as imagens mentais que fazem parte do desenvolvimento do próprio romance. Na tradução do mesmo fragmento, o uso das imagens foi o principal recurso de transmutação do fluxo. As imagens oscilam entre o presente e o passado da Sra. Dalloway. Sua atitude de abrir as vidraças a reportou aos dezoito anos, em Bourton, quando ela era simplesmente a jovem Clarissa sem o sobrenome do esposo. O que era uma impressão, um pensamento, passa a ser verbalizado na tela: Sra. Dalloway: What a lark! What a plunge! Clarissa: What a plunge! 51 50 “Mas que manhã, pensou Clarissa Dalloway - fresca como para crianças numa praia. Que frêmito! Que mergulho! Pois sempre assim lhe parecera quando, com um leve ringir de gonzos, que ainda agora ouvia, abria de súbito as vidraças e mergulhava ao ar livre, lá em Bourton. Que fresco, que calmo, mais do que o de hoje, não era então, o ar da manhãzinha; como o tapa de uma onda; como o beijo de uma onda; frio, fino, e ainda (para uma menina de dezoito anos que ela era em Bourton) solene, sentindo como sentia, parada ali ante a janela aberta, que alguma coisa de terrível ia acontecer; olhando para as flores ...” (1980, p.7). 51 Sra. Dalloway: Que atrevimento! Que mergulho! Clarissa: Que mergulho! 147 A linguagem descritiva é restrita e as imagens têm maiores efeitos porque pelo cenário fica clara a diferença do tempo. Por meio da fala de Clarissa, o espectador fica conhecendo o produto da mente da personagem. A descrição densa dos processos mentais nesse momento vai para as telas de forma mais direta devido à junção do texto às imagens. Vejamos: Figura 6 – Descrição do presente e do passado da personagem Os processos mentais, que são a base do construto narrativo de Woolf, são colocados na narrativa do filme com a finalidade de fornecer dados sobre a história vivida por Clarissa. Por meio do uso dessa estratégia, o objetivo na narrativa fílmica não é mais simplesmente mergulhar no universo psicológico de Clarissa, como no romance, mas, além disso, contar a sua história. A disposição de imagens entre presente e passado, aqui, funciona também como material estruturante da narrativa. Dessa forma, o texto cinematográfico, mais uma vez, assume uma nova postura em relação ao romance. A presença da imagem de Clarissa em dois momentos diferentes de sua vida, usando a mesma fala, reforça o desenvolvimento do segundo pólo argumentativo do filme, pois trata das suas reflexões. O filme toma outra forma que difere do livro, quanto à questão da interação entre os tempos interno e externo, já que a ênfase recai sobre o segundo. A ênfase dada ao tempo externo é um indício da nova proposta da narrativa. O flashback já não é mais simplesmente a descrição de processos mentais, a técnica também assume a função de elemento importante da 148 montagem do enredo. Um exemplo pode ser visto na cena em que Clarissa recebe de Lucy um bilhete de seu marido Richard Dalloway, falando de um almoço que teria com Lady Bruton. O fato leva a personagem a um descontentamento e, consequentemente, a refletir sobre a sua condição: Fear no more the heat of the sun, nor the furious winter’s rage52. So all over for me. Sheets stretch in the bed narrow.53 A personagem é posta diante do seu cotidiano, com todos os inconvenientes do meio social no qual está inserida. O exemplo em questão reforça também o desenvolvimento do segundo pólo argumentativo da narrativa. Enquanto o estado mental de Clarissa vai sendo mostrado em voice-over, a sua história vai sendo contada para o espectador. O tempo, como no romance, é real. Clarissa é afetada por um fato trivial de sua vida, e as lembranças a transportam para o passado. Após abrir o guarda roupa, pegar um vestido e ficar em frente do espelho, o tempo da narrativa é transferido para um outro tempo, ou seja, o da mente de Clarissa pensando em suas conversas com Sally, sua grande amiga: Sally: All we need to do is to abolish private property, because it’s that really the cause of all the problems. Let’s try to write a letter to The Times about it. Then, we should find a society to abolish private property. And we will live it ever and ever! Clarissa: This house as well? Sally: You always look so virginal, Clarissa Clarissa: I’m virginal.54 O espectador se depara com as reminiscências de Clarissa e entra em contato com situações de seu passado. Ao fazer associações das reminiscências com o presente da personagem, o espectador vai construindo o segundo pólo argumentativo, o das reflexões de 52 Este verso da canção ‘elegy’ da obra Cymbeline, de William Shakespeare é recorrente em Mrs. Dalloway. Segundo Kettle (1973, p.16), este verso sugere a vulnerabilidade de Clarrissa diante das situações por ela vividas. 53 “Não tema mais o calor do sol... nem o furor do inverno. Está tudo acabado para mim. Os lençóis se esticam, e a cama se estreita.” 54 Sally: Precisamos abolir a propriedade privada... porque ela é a causa de todos os problemas. Vamos escrever para o “Times” sobre isso. Depois fundaremos uma sociedade para abolir a propriedade privada... Para todo o sempre. Clarissa: Esta casa também? Sally: Você sempre tão virginal, Clarissa! Clarissa: Eu sou virginal 149 Clarissa. Podemos ainda observar a presença recorrente do espelho como elemento intermediador das diferentes perspectivas temporais da narrativa, ou seja, o objeto faz constantemente a transição das imagens entre o presente e o passado. A personagem é posta diante dela mesma como uma forma de percepção de si. A estratégia reporta-se diretamente a uns dos temas do romance. Evidencia-se também, por meio desse pensamento de Clarissa, uma tentativa da narrativa de inserção na questão social. A conversa entre as personagens reforça, por um lado, a consciência política por parte de Sally ao defender um posicionamento audacioso e completamente fora dos padrões da sua realidade, e, por outro, a completa alienação por parte de Clarissa que parece concordar com Sally, mas, que ironicamente, não pretende abrir mão da casa em que vive. Além da apresentação das realidades de Clarissa e Sally, existe uma realidade externa a priori, o próprio cenário, mas o contraste do espelho que o reflete pode ser tomado como símbolo, um dos pontos referenciais na narrativa, usados por Gorris; esse símbolo funciona como uma tentativa de tratar da temática existencialista de Woolf. O pensamento da personagem é mostrado em voice-over.A presença das conjecturas mostra uma certa inquietação por parte da narração em lidar com o seu silêncio profundo. Isso enfatiza a relevância desse estado de mente apreendido pela própria personagem e que o espectador tanto busca desvendar. O close-up também tem participação importante em algumas situações da construção narrativa de Sra. Dalloway, porque aproxima o espectador dos momentos intimistas dos personagens. Segundo Bela Balázs (1992, p.261), close-ups são sempre revelações dramáticas do que está realmente acontecendo além das aparências superficiais, expressando a sensibilidade poética do diretor. No filme, manifesta-se, portanto, desde o início da narrativa da seguinte forma. 150 A partir da morte de Evans, um close-up de Septimus mostra a sua reação diante do fato. Instaura-se, então, na narrativa do filme, o primeiro dos seus argumentos, ou seja, os efeitos da guerra. O segundo pólo argumentativo se estabelece a partir da cena em questão. Do espaço da trincheira e do horror, por meio de um corte, há a transferência da face de Septimus para Clarissa, no espaço confortável do seu quarto. A câmara se movimenta lentamente até enquadrá-la num plano americano, diante do espelho: Figura 7 – Apresentação do espaço da personagem Clarissa está imersa em suas reflexões, que são repassadas para o espectador por meio da narração em voice-over: Those ruffians and gods shan’t have it all their own way. Those gods who never lose a chance of hurting, thwarting and spoiling human lives are seriously put out before even saying you behave like a lady. Of course now I think there are no gods. There’s no one to blame. So very dangerous to live for only one day.”55 O foco sobre o pensamento e as imagens de Clarissa consolida um espírito nostálgico que permeia todo o filme. Estamos chamando de espírito nostálgico a atmosfera de lamentação e saudosismo de que a personagem é acometida. Esse espírito é também reforçado pela presença da música que é introduzida mesmo antes da primeira cena. Passa a ser constante e funciona como elemento de captação dos momentos de intimidade dos 55 Aqueles deuses rufiões não vão ganhar desta vez. Aqueles deuses que nunca perdem uma chance de magoar, esmagar e estragar vidas humanas... Ficarão contrariados se você continuar a agir como uma dama. Mas agora que não acredito em deuses, não há quem culpar. É tão perigoso viver esperando um só dia!” 151 personagens, contribuindo para dar um tom dramático a esses momentos. O movimento lento da câmara em direção à personagem a focaliza no espelho. A presença do espelho se configura como símbolo importante que traduz a idéia do olhar para si, recorrente nesse dia, tanto de Clarissa quanto dos outros personagens. Isso ocorre porque o espelho, enquanto objeto, emoldura o processo de reflexão vivenciado pelos personagens, ao longo da narrativa, e confunde-se com o próprio objeto do desenvolvimento narrativo, como reforça John Harrington (1978, p.149), o símbolo evoca uma rede de significados interrelacionados. A idéia de nostalgia que se instaura no filme se diferencia do texto de Woolf, pois, por meio da linguagem, o ritmo das reminiscências no romance não produz um efeito de lamentação como as imagens em close-up parecem produzir. Com a introdução de Sra. Dalloway, o espectador tem o primeiro contato com a intimidade da personagem e capta os primeiros indícios da construção narrativa. Com Clarissa, diante do espelho, olhando para dentro de si, a descrição de seus processos mentais antecipa, de certa forma, para o espectador, o argumento da narrativa cinematográfica. A antecipação foi usada no filme para direcionar alguns pontos da narrativa. Para discutir a questão da guerra, por exemplo, a utilização de diálogos também foi uma das formas de apresentação. Assim, o material que estava no nível da ‘pré-fala’ (consciência) (PIRES, 1985, p.148) dos personagens foi transformado em material lingüístico verbal. O que era pensamento individual passou a ser elemento de construção do enredo por meio de diálogos entre os personagens. É o caso desse fragmento do diálogo entre Clarissa e Hugh, comentando a perturbação mental de Evelyn, a esposa de Hugh: Hugh: No, nothing serious. She is just a good deal out of sorts. The war may have gone, but there is still the echo of it. The Bexborough’s boy was killed. And she is very close to Lady Bexborough, of course. And Evelyn takes things badly. 152 Mrs. Dalloway: Yes, one does still hear dreadful stories.56 Podemos perceber que a tradução das questões sobre a guerra é também sistematizada por meio do discurso dos próprios personagens. No livro, os diálogos se confundem com o que os personagens pensam, reafirmando a natureza impressionista da escrita de Woolf. No texto cinematográfico, os diálogos são mais contundentes, mais visíveis, caracterizando uma forma própria de narrar o discurso da guerra que está presente no romance, criando impacto na narrativa, e tornando o filme mais dinâmico. Como podemos ver, o texto de Mrs. Dalloway traduzido para o cinema materializou o discurso da guerra como um dos elementos integrantes no desenvolvimento do conjunto narrativo. Observa-se, portanto, que, por meio dessa articulação do discurso, criouse uma estrutura significante composta de diálogo e imagens. Assim, o que era digressão passou a ser uma parte importante do enredo do filme. 3.2.3 Voice-over A narração em voice-over, embora tenha sido pouco usada em Sra. Dalloway, tem a sua função em algumas situações do filme e interfere no resultado final da narrativa. Os processos mentais de Clarissa são apresentados por meio dessa técnica, ou seja, os personagens são mostrados na tela, pensando, e as suas conjecturas são mostradas em voz alta para o espectador. Eliana Franco (2001, p.293), ao discutir a problemática da definição do voice-over e o seu emprego nos estudos de tradução, reconhece que parte da dificuldade terminológica dá-se pelo fato de o conceito vir dos estudos fílmicos (como técnica narrativa) em que não 56 Hugh: Não. Nada sério. Ela só está bastante aéria. A Guerra pode ter acabado, Mas o seu eco persiste. O garoto dos Bexborough morreu e ela, claro, é muito amiga de Lady Bexborough. E Evelyn não reage bem a notícias ruins. Mrs. Dalloway: Sim... Ainda se ouvem histórias terríveis. 153 implica em atividade de tradução. Ao ser tratado como tal, o voice-over passou a ser visto como a tradução que é posta simultaneamente em cima da voz original. Assim, pode-se dizer que tanto nos estudos fílmicos quantos nos de tradução, o termo voice-over seria a idéia de que há uma voz sobre algo. A autora, no entanto, levanta um outro ponto que seria a mudança de perspectiva que o termo assume na tradução audiovisual, porque a natureza da ‘voz’, e do ‘algo’ tem mudado, drasticamente, o que altera a função do voice-over como é concebido nos estudos fílmicos. Franco reforça: “from an invisible solitary voice– the narrator’s/commentator’s – delivered over images, to an invisible parallel voice – the translation performer’ssuperimposed on a visible voice, the on-screen source speaker’s” (p. 293).57 Em Sra Dalloway, a voz dos personagens são os próprios pensamentos em muitas situações do filme. Por essa razão, estamos, aqui, chamando de narração em voice-over todas as apresentações dos monólogos interiores dos personagens. O voice-over é, normalmente, usado para lidar no cinema com a apresentação de processos mentais. Embora essa técnica se apresente logo na primeira cena do filme, não tem presença marcante na tradução do fluxo da consciência no texto fílmico. Sarah Kosloff (1988, p.12-13) apresenta alguns argumentos para mostrar que o voice-over não é atualmente muito desejável no cinema. Parte da idéia principal de que a técnica sucumbe a imagem, quer dizer, mostrando somente, sem comentar, é que o espectador tem a comunicação efetiva com as imagens e interpreta o seu significado, por elas mesmas. Com o voice-over, há uma tendência a um direcionamento dessas imagens pela subjetividade do narrador. Este seria um princípio de parcialidade que, segundo a autora, é validado por uma noção tradicional da semiótica de que as imagens têm uma relação diferente e mais aproximada com os significados do que as palavras. Neste sentido, as imagens podem ser 57 de uma voz solitária invisível – a do narrador/comentarista – distribuída sobre as imagens, para uma voz paralela invisível – a do tradutor – sobreposta sobre uma voz visível, a original do falante na tela. 154 vistas como mais naturais ou mais objetivas. Esse argumentado é reforçado no filme Adaptação, de Spike Jonze (2002) na cena em que um professor de roteiro contesta o uso da técnica de voice-over por considerar que esta torna o filme mais subjetivo e voltado para os personagens em detrimento da ação. A posição tomada pelo filme Sra. Dalloway pode ter relação direta com a discussão de Kosloff que chega a afirmar que se trata de um tipo de narração que pode ser muito eficaz no cinema, mas se for usado com certas restrições (p. 12). Se levarmos em consideração que o romance é basicamente constituído de monólogos internos, para reproduzir as ‘falas’ internas dos personagens, era de se esperar no filme um uso muito mais acentuado da técnica de voice-over na transcrição dessas ‘falas’. No entanto, são poucos os momentos em que a diretora usou esse recurso. Parecem-nos evidentes os efeitos da redução do uso dessa técnica para a tradução do romance nas telas. Em muitas situações do filme, em que o desenvolvimento narrativo lida diretamente com o que está na mente dos personagens (o que, consequentemente, caberia, de um modo geral, o uso do voiceover), foi dada ênfase na articulação de diálogos ou imagens, contribuindo para conferir à narrativa do filme uma proposta diferente do romance. Outras pistas podem nos dar esclarecimentos quanto ao uso limitado de voice-over no filme. Um ponto importante é a própria interferência direta da roteirista. Para Eileen Atkins (2002, p.3), a primeira questão é que o uso de voice-over em filmes tende a ser visto como um fracasso, tanto na Inglaterra quanto nos Estados Unidos. Embora esse quadro tenha se modificado um pouco, principalmente, nos Estados Unidos, devido às séries de TV, ela optou por tornar a técnica a mais rara possível na narrativa e, ao contrário de Woolf, usar mais diálogos. E se justifica: I had to make my own style of the thing. I’d allowed myself Mrs. Dalloway’s thoughts, but if we’d started having Peter’s thoughts, and her 155 husband, his thoughts as well – then we were lost. It would be a mishmash (Atkins apud Pruzan, 2002, p.3). 58 A roteirista acrescenta que dois anos depois, quando Marleen Gorris foi dirigir o filme, após ter ganhado o Oscar pela direção de A Excêntrica Família de Antônia (1996), em que o uso do voice-over foi bem sucedido, a primeira pergunta que ela fez foi o porquê de tão pouco uso da técnica. Mas, ela manteve a sua posição: [...] But I’ll be considered a failure if I have to use voiceover.” And she couldn’t understand it. In the end, she came up to me and said she wanted everybody to have voiceovers, all the characters. And I said, “No, I won´t let it be done that way (apud Pruzan, 2002, p.3). 59 Essas questões levantadas por Atkins são bastante esclarecedoras quanto ao pouco uso da técnica na narrativa fílmica. A roteirista parecia estar atenta aos seus efeitos e ao que ela representa nos contextos de chegada. Esse fato parece ter sido decisivo na sua escolha, mesmo tendo consciência da mudança de foco que traria na narrativa de Woolf. Um outro ponto que merece destaque é a sua preocupação com a recepção do texto por parte do espectador pela sua insistência na sistematização e organização dos processos mentais, bastante importantes no romance, assim como a recepção da técnica pelo público no sistema de chegada, conforme argumenta em seguida: “Or you start having everybody´s voice-overs – but then you start saying, well, why is it a movie?” (Ibidem).60 Podemos inferir, por meio dessa fala, que Atkins tem uma preocupação em tratar da narrativa de Sra. Dalloway realmente como narrativa fílmica e não como um “romance filmado”. Essa interferência estilística tem efeito importante na concepção do projeto narrativo. 58 Eu tive que ter o meu próprio estilo na empreitada. Eu me permiti aos pensamentos da Sra. Dalloway, mas se tivéssemos começado a ter os pensamentos de Peter, e os do marido dela, os pensamentos dele também ficaríamos perdidos. Seria uma confusão (p.3). 59 Mas eu serei considerada um fracasso se eu tiver que usar voice-over. E ela não conseguia entender isso. Finalmente, ela veio até mim e disse que queria voice-over em todos os personagens. E eu disse não. Não faria dessa forma 60 Ou começa-se a ter o voice-over de todo mundo – mas então começa-se a dizer, bom, por que isto é um filme? 156 3.2.4 Montagem Na discussão sobre o uso do recurso da montagem, como veículo da nova técnica de escrita de Woolf, temos visto que o romance Mrs. Dalloway transmite em sucessão linear o material psíquico em seu estado de coexistência, tal como é encontrado na mente humana. Assim, o conjunto narrativo é formado por uma seqüência sucessiva de quadros que representam situações e momentos de vida dos personagens, constituídos por cortes, durante todo o percurso. Observa-se que o encadeamento dos processos mentais é segmentado no nível das reflexões do personagem. Sempre tomam um novo aspecto a ser apontado no desenvolvimento da narrativa, como se houvesse uma constante mudança de cena em vários momentos do romance. Há a apresentação de uma sucessão de quadros de situação de vida interna dos personagens, que, ao serem dispostos numa seqüência, formam o conjunto narrativo. É importante assinalar que o encadeamento de cenas do romance se dá mais num plano semântico do que por meio de um arranjo linear (OLIVEIRA, 1979, p. 53). Nessa perspectiva, a idéia do enredo mínimo do romance ainda se sustenta porque a formação desse conjunto narrativo não diz respeito às situações que acontecem no cotidiano dos personagens, mas às suas impressões e reflexões sobre essas situações, negando à narrativa a finalidade de se prender a uma história. Ao contrário, a narrativa de Woolf contempla várias “histórias” individuais de cada personagem que são apenas um pretexto para o desenvolvimento narrativo e não o seu ponto central, como nos romances tradicionais. Voltemos à discussão da estruturação dos pólos argumentativos da narrativa, apresentada no close-up. Com a presença das imagens da guerra e dos pensamentos de Clarissa, forma-se, a partir de então, um núcleo dramático. Os personagens passam a se ligar entre si, havendo uma outra construção narrativa em relação ao livro. Explica-se: enquanto no 157 livro as primeiras descrições sobre a guerra são apenas resultados das reflexões de Clarissa, no filme são imagens de impacto, criadoras de expectativas no espectador, porque se pretende deixar clara desde o início para o espectador a relevância do tema para a narrativa. Parece evidente a intenção da direção (diretora e roteirista) em manter a relação existente na obra entre os dois personagens. Para fazer tal relação, utilizou a alternância constante dos dois pólos argumentativos. Uma outra alternância de imagens com o propósito de ligar esses dois pólos argumentativos é a presença de um homem na rua, um deficiente físico, como se fosse um excombatente de guerra: Figura 8 – Alternância de imagens A imagem do deficiente caminhando de moletas é focalizada no momento em que Clarissa caminha, e há ênfase ao seu estado físico. A imagem funciona como um símbolo da guerra e uma referência direta ao livro, já que não é comum esse tipo de imagem aparecer em filmes que não sejam bélicos. Uma outra leitura pode ser feita a respeito dessa imagem como sendo uma crítica à vida burguesa de Clarissa que prepara festas numa época de catástrofe. O filme assume um novo formato, o processo de composição do conjunto narrativo se dá, principalmente, pela contraposição de dois temas que tratam de dois mundos diferentes: as reflexões sobre a existência de uma mulher de meia idade e a discussão dos efeitos da guerra. Os dois grandes argumentos da narrativa são para o texto cinematográfico 158 elementos que denotam o desenvolvimento de um enredo, que, mesmo trazendo imagens do romance, assume uma nova proposta narrativa diferente da proposta de Woolf. Além de dois grandes pólos narrativos, outras histórias paralelas também são apresentadas para o espectador. Entretanto, essas histórias estão sempre convergindo para o núcleo dramático principal, ou seja, a neurose de Septimus por causa da guerra e as reflexões de Clarissa. Assim como o romance, as histórias paralelas complementam-se no final, na medida em que os movimentos narrativos secundários vão se delineando e dando significação a uma narrativa maior. Uma estratégia usada por Gorris para marcar a oposição entre Clarissa e Septimus foi o uso de imagens desses dois personagens em determinadas cenas, mesmo que eles nunca se encontrem ou interajam diretamente. A presença implícita de Septimus como mediador das atitudes reflexivas de Clarissa evidencia-se pelo processo de construção do personagem e pela carga significativa a ele atribuída durante todo o seu percurso. A personagem Clarissa Dalloway é posta na tela como um ser estável, como um fio condutor de um conjunto narrativo de estrutura complexa, mas que, diferente do romance de Woolf, é parte de uma trama ou passa a ser até mesmo uma vítima da própria vida. Assim como no romance, o personagem Septimus revela-se, no filme, como um símbolo opositor, um elemento desestruturador dessa estabilidade, como se fosse uma autoimagem de Clarissa que a persegue em todo o conjunto da narrativa. No texto de Woolf, existe uma clara proposta de mostrar, através dos distúrbios mentais de Septimus, toda a discussão da problemática da guerra. E o texto de Gorris preocupou-se em mostrar esse fato, construindo a história do personagem, traçando um percurso que vai da experiência da guerra, com a morte do amigo, a neurose até o momento da sua ruína, o suicídio. Apesar da oposição gerada pelas perspectivas diferentes no livro, uma fusão de perspectivas também ocorre no sentido de conectar os temas em discussão na obra e dá ao texto uma certa unidade. 159 Um outro momento da narrativa do filme em que essa oposição entre os personagens se estabelece é quando Clarissa está no Mulberry’s comprando flores. A explosão súbita do carro, fora da loja, assusta Clarissa e Miss Pym. Nessa cena, Septimus, Clarissa, Miss Pym e o próprio espectador ficam conectados por fragmentos diferentes da realidade dos personagens. Essa realidade é completamente abstraída na tela, pela presença dos três personagens em foco ao mesmo tempo, diante do mesmo fato, sugerida apenas por meio de um ruído que vem da rua. Esse procedimento de tradução traz para tela a presença de várias imagens desencadeadas por um fato externo, consolidando, mais uma vez, a idéia da ligação dos pontos de vistas. Assim como na cena do aeroplano, essa seqüência torna-se alvo de várias perspectivas e, por isso, não se completa somente por meio da formação dos elementos apresentados em cena. Ao mesmo tempo que a cena parece ligar a percepção das realidades individuais dos personagens Clarissa e Septimus, tendo Miss Pyn como intermediadora dessa ligação, uma cena de flashback de Clarissa introduz a imagem rápida sorridente de Sally Seton na tela: Clarissa: Roses for the hall, I think. Miss Pym: And sweet peas fot the table, perhaps.61 A imagem de Sally está diretamente ligada às flores e reporta-se a um momento do passado de Clarissa em Bourton. Observamos que nessa cena a imagem de Sally rapidamente apresentada em flashback funciona também como encadeamento das outras imagens. Constitui-se, portanto, uma estratégia para traduzir as múltiplas perspectivas. Nesse instante, há uma composição de imagens que parte do olhar de Clarissa sobre as flores, que as remete imediatamente ao sorriso de Sally, que, por sua vez, é posta na cena como um outro elemento de conexão na perspectiva narrativa representada como símbolo. Enquanto o 61 Clarissa: Rosas para o salão, acho. Miss Pym: Ervilhas-de-cheiro para a mesa, talvez? 160 diálogo se desenvolve na seqüência, um outro elemento é introduzido como mudança na perspectiva da narrativa, o ruído do automóvel e a presença de Septimus: Clarissa: Yes, sweet peas for the table. It would be perfect! [Barulho do automóvel na rua] Miss Pym: These awful motorcars! Clarissa: Yes, oh yes, yes, of course. It was a motorcar [Septimus parado na rua] Sepimus: I’m imerged here Rezia: Septimus, please! We must go on! Septimus: I’m emerged here and I don’t know for what purpose. Rezia: Septimus, please! People are looking at us! Septimus: Am I blocking the way? All right, then. Miss Pym: Good bye, Mrs. Dalloway. 62 Novamente observa-se, por meio dessa cena, a idéia de um fato captar a atenção dos personagens, ramificando os diferentes estágios de suas realidades no desencadeamento dos processos mentais. No romance, esse elemento constituinte da narrativa se apresenta como entrelaçamento entre as diferentes percepções e reações dos personagens e não, necessariamente, existe devido ao acontecimento externo propriamente dito, mas pelo efeito que exerce em cada uma das mentes que o presencia. Em Sra. Dalloway, a realidade externa dos personagens tem uma importância muito maior e o entrelaçamento reflete uma progressão de suas histórias. O ruído é mostrado a priori na tela simplesmente como algo sem maiores repercussões no desenvolvimento do enredo e passa a ser irrelevante. No romance, no entanto, com o desenvolvimento da cena, essa explosão assume uma função importante na mudança de perspectiva do próprio desenvolvimento narrativo, pois entrecruza os personagens Clarissa e Septimus, reforçando o delineamento do novo “arranjo linear” assumido pela narrativa na tela. Vejamos: 62 Clarissa: Sim. Ervilhas-de-cheiro para a mesa. Seria perfeito. Miss Pym: Esses automóveis horrorosos! Clarissa: Sim, é claro. Foi um automóvel. Septimus: Estou enraizado aqui. Rezia: Septimus, vamos. Precisamos ir! Septimus: Estou enraizado aqui e não sei com que propósito. Rezia: Por favor! As pessoas estão olhando. Septimus: Estou impedindo a passagem? Tudo bem, então. Miss Pym: Até mais, Sra. Dalloway. 161 Figura 9 – Compra de flores no Mulberry’s Podemos perceber, por meio do discurso apresentado no fragmento acima e da junção dos quadros superpostos na seqüência narrativa em questão, que os personagens são constituídos dentro de um universo de realidades pessoais. Mas, ao mesmo tempo, esses personagens são delineados por fatores e realidades externos que se interligam. Clarissa Dalloway, por exemplo, quando confrontada diante de Septimus, é acometida por um certo sentimento de medo, como se estivesse diante de si mesma. Esse aspecto é bastante explorado no filme tanto pelas imagens quanto pela percepção individual da realidade externa que cada personagem apreende. Esse movimento constante que se dá pelo dialogismo entre as imagens e as realidades internas e externas dos personagens e, muito mais pelas realidades externas, confere parte importante de formação do enredo do filme. Outros exemplos podem ser vistos como marcantes para a fusão de perspectivas no filme. As cenas da festa na casa de Clarissa constituem-se as mais representativas. O ponto de partida desse processo dá-se quando Clarissa, no seu quarto, coloca o vestido para descer 162 para a festa. A personagem encontra-se, mais uma vez, diante do espelho, observando os últimos detalhes da roupa. De um plano médio, a câmera se movimenta para um plano americano até enquadrar todo o corpo de Clarissa: Figura 10 – Preparação final para a festa Como podemos observar, a câmera focaliza a saída de Clarissa do quarto do ponto de vista do espelho. O espectador não vê somente a Clarissa, mas também a imagem que o espelho (recurso bastante significativo, que enriquece a narrativa) consegue captar dela. Podemos vislumbrar duas interpretações para essa situação. Um delas seria um reforço à idéia do olhar para si mesma. A outra seria um símbolo da superficialidade das relações sociais de aparência em que Clarissa se encontra envolvida. Esses planos ainda podem ser vistos como indícios do processo de julgamento a que a personagem será submetida pelos seus amigos Sally e Peter e pelo próprio espectador. Isto se justifica porque a partir desse momento cria-se um jogo de perspectivas que se cruzam, seja pela percepção que cada personagem tem da situação em si, ou pelo julgamento que cada um faz dela. Clarissa, Peter e Sally são postos frente a frente depois de muitos anos e o confronto entre eles tem um efeito importante para se apreender questões do romance. Clarissa, a anfitriã, ocupa-se em receber os convidados com os famosos discursos tradicionais de saudação tais como: “How delightful to see you!, How lovely of you to come!”63 e, ao mesmo tempo, reflete sobre suas atitudes, diante da situação: 63 Clarissa: Estou encantada em vê-lo! Que bom ver você! 163 Clarissa: Oh Dear, It’s going to be a failure, A complete failure. How delightful of you to come! Why do I do it?64 Os diálogos são superpostos pelos monólogos de Clarissa, apresentados na tela por meio de voice-over; são marcadores de um momento máximo no qual a personagem analisa e reflete sua existência. Mesmo com o uso mais acentuado de voice-over, nesse momento do enredo, os diálogos prevalecem. A narração em voice-over, nessa situação, possibilita que o personagem seja observado a partir da perspectiva de outro personagem e do próprio espectador, contribuindo para um entrelaçamento de olhares e percepções da realidade de cada um deles. Os personagens são observados sob o ponto de vista interno da narrativa, ou seja, sob o ponto de vista deles, além da observação externa. No contexto em questão, as múltiplas perspectivas são apresentadas e a história é contada ao espectador nesse instante da narrativa. Ao perceber a presença de Peter na festa, Clarissa considera um erro tê-lo convidado, pois tem consciência da posição de julgamento que ele sempre teve em relação às suas atitudes e esse momento, para ele, não seria diferente: Clarissa: Peter, you came! How delightful to see you! (It’s a disaster, the party is a disaster. How humiliating!)65 A percepção de si mesmo, tão trabalhada por Woolf na constituição dos personagens em Mrs. Dalloway, dá ao texto de Marleen Gorris uma marca substanciosa a partir do momento em que o espectador consegue fazer a junção do conjunto dos quadros narrativos, ou seja, da própria história do filme. Enquanto Clarissa pressupõe os julgamentos, por parte de Peter, Sally também se insere como observadora de suas ações, reafirmando a sua posição em relação a algo que o espectador já tem conhecimento devido às informações previamente esclarecidas nos flashbacks: Sally: Don’t be too hard on her. After all, parties are a kind of performance. It isn’t the real Clarissa. 64 Clarissa: Meu Deus, isto vai ser um fracasso, um fracasso completo! É muita gentileza sua ter vindo. Por que eu faço isto? 65 Clarissa: Peter, você veio! Que bom ver você! (É um desastre! Esta festa é um desastre! Que humilhação!) 164 Peter: On the real, Clarissa was lost years ago.66 Nesse momento, a estratégia não é mais o voice-over, mas a transformação de conjecturas em diálogos. Sally e Peter conversam, fazendo comentários sobre Clarissa. Para possibilitar toda a unidade, cada detalhe assume um papel fundamental na constituição de fatos dramáticos na tela. A ligação constante entre os personagens e os enredos contribui também bastante para a progressão temática do texto. Essa síntese de interligação, mostrada direta ou indiretamente entre os personagens, ao longo da narrativa do filme, remete-nos a uma temática bastante recorrente à obra de Woolf, caracterizada pela concepção do eu a partir da percepção do outro. Nessa perspectiva, o filme parece ter tido bastante preocupação em manter esse espírito da narrativa da escritora. Para tanto, utilizou um entrecruzamento entre as várias realidades internas dos personagens com situações externas, conforme discutido acima. E, mais uma vez, a diretora deixou a sua marca criativa na reescritura, construindo uma narrativa diferente, porque apesar de trabalhar questões relevantes da obra, traduziu essas questões por meio da apresentação de uma história segmentada nas telas. Traduziu um aspecto importante da escrita de Woolf, mas, para isso, reformulou em termos estruturais algumas propriedades do construto narrativo. Há uma preocupação no texto cinematográfico em manter a relação permanente de confrontação entre os personagens. Diferente do livro, essa relação no filme tem o propósito de construção de uma narrativa com arranjo linear mais elaborado sem o impacto da experimentação vanguardista que o texto de partida representa para a literatura. No próximo capítulo, analisaremos a construção narrativa do romance As Horas, de Michael Cunningham, e do filme As Horas, de Stephen Daldry, que são reescrituras do romance Mrs. Dalloway. Assim como fizemos com o filme Sra. Dalloway, observaremos a 66 Sally: Não seja severo demais com ela. Afinal, as festas são uma espécie de teatro. Ela precisa representar. Não é a verdadeira Clarissa. Peter: Perdemos a verdadeira Clarissa há anos. 165 natureza dessas duas narrativas, a forma como foram traduzidas nos outros contextos, considerando se elas são tradicionais ou vanguardistas em relação ao texto de partida. 166 4 AS HORAS E A REESCRITURA DE MRS. DALLOWAY NA LITERATURA E NO CINEMA Este capítulo analisa o romance e o filme As Horas, considerando-o como uma reescritura de Mrs. Dalloway na literatura norte-americana e no cinema. Partimos da idéia de que essas narrativas reescritoras contêm índices que remetem diretamente ao romance de Woolf. Observamos como esses índices se apresentam nas narrativas e se elas seguem uma tendência vanguardista. 4.1 AS HORAS, DE MICHAEL CUNNINGHAM O romance As Horas foi publicado em 1998 e reescreve o universo literário de Virginia Woolf para a literatura no contexto social e político norte-americano em que posturas conservadoras são tomadas e difundidas por meio da propagação do imperialismo econômico e do discurso sobre questões religiosas e morais, como o conceito de família, por exemplo. O construto narrativo apresenta uma similaridade com o construto de Mrs. Dalloway na medida em que não conta necessariamente uma história com começo, meio e fim, mas apresenta momentos de vida dos personagens como objeto fundamental para o desenvolvimento narrativo. Trata-se de uma homenagem ao romance Mrs. Dalloway, já que o próprio título foi aquele primeiro sugerido por Woolf, como a autora menciona em seu diário no dia 19 de junho de 1923: “But now what do I feel about my writing? – this book, that is, The Hours, if thats its name? (WOOLF apud BELL, 1981, p.248).67 A narrativa conta a história de um dia na vida de três mulheres e se desenvolve por meio de três narrativas paralelas, com tempo e situações que se intercalam, entrecruzam-se e convergem para formarem o todo narrativo: 67 Mas agora o que eu sinto sobe a minha escrita? – este livro, isto é, As Horas, se é que este é o seu título? 167 Virginia Woolf, em 1923, num subúrbio de Londres; Clarissa Vaughan, em Nova York, no final do século vinte; e Laura Brown, em 1949, em Los Angeles. A construção narrativa de As Horas, assim como a de Mrs. Dalloway, apresenta algumas características da linguagem cinematográfica. A montagem é um exemplo delas. Se observarmos a forma como as três narrativas são contadas no romance, podemos associá-la àquela utilizada por Griffith, em 1916, no filme Intolerância. A narrativa do filme é composta por quatro histórias que tratam de situações de intolerância em diferentes momentos da história da humanidade, ou seja, o desenvolvimento é feito por meio da montagem paralela. Constata-se, portanto, por meio da relação entre essas duas obras, que a estrutura narrativa de As Horas toma de empréstimo elementos estruturais da narrativa de Intolerância. Há três tempos que compõem o conjunto narrativo de As Horas. Mas, além desses três tempos, um outro ainda é apresentado no início da narrativa por meio do prólogo. Esse trata de um fato real da vida da escritora Virginia Woolf, ou seja, o seu suicídio em 1941. O autor usa o prólogo e, então, subdivide o romance em capítulos em que cada um trata das personagens com suas respectivas histórias. Entretanto, há sempre um ponto em comum entre elas: o romance Mrs. Dalloway. O paralelo entre as histórias dá-se, principalmente, pela delimitação clara, em cada capítulo, da história de cada personagem que se apresenta por meio da descrição de processos mentais que desvendam a sua intimidade, tratando de seus projetos individuais em diferentes épocas e lugares. Virginia Woolf, que tenta escrever Mrs. Dalloway nos arredores de Londres; Laura Brown, que lê o romance e repensa questões sobre a sua vida em Los Angeles; e Clarissa, que prepara uma festa em Nova York. Embora se tenham esses núcleos narrativos com essas personagens principais, envolvidas em projetos individuais, também existem ramificações que contribuem para o desenvolvimento narrativo. Elas aparecem por estarem ligadas aos núcleos centrais da narrativa por meio de personagens que pertencem, de 168 alguma forma, às personagens principais ou são postas como contraponto nas situações narrativas. Um exemplo claro disso são os parceiros que estão na posição de complemento e desencadeadores de motivos na narrativa, como podemos observar nesses fragmentos das primeiras descrições mentais das personagens Mrs. Dalloway, Mrs. Woolf e Mrs. Brown, respectivamente: The name Mrs. Dalloway had been Richard’s idea – a conceit tossed off one drunken dormitory night as he assured her that Vaughan was not the proper name for her. She should, he´d said, be named after a great figure in literature, and while she´d argued for Isabel Archer or Anna Karenina, Richard had insisted that Mrs. Dalloway was the singular and obvious choice (CUNNINGHAN, 1998, p. 10). 68 She rises from her bed and goes into the bathroom. Leonard is already up; he may already be at work. In the bathroom, she washes her face (CUNNINGHAM, 1998, p.30).69 She should not be permitting herself to read, not this morning of all mornings; not on Dan´s birthday. She should be out of bed, showered and dressed, fixing breakfast for Dan and Richie. She can hear them downstairs, her husband making his own breakfast, ministering to Richie (CUNNINGHAM, 1998, p. 38).70 Como podemos ver, assim como as muitas situações do romance, os outros personagens são introduzidos por meio de conjecturas das personagens principais. No primeiro fragmento, por meio desses pensamentos de Clarissa, é contado ao leitor o motivo pelo qual ela é chamada de Mrs. Dalloway. O leitor tem informações sobre seu passado e sobre a sua ligação com outro personagem, Richard. No segundo, há a introdução do personagem Leonardo, o esposo de Viriginia Woolf. E no terceiro, há a apresentação da família de Laura Brown. 68 O nome Mrs. Dalloway fora idéia de Richard – um capricho fantasioso inventado numa noite regada a álcool, no dormitório da faculdade. Ele lhe garantira que Vaughan não era o nome apropriado e que ela deveria ter o mesmo nome de uma das grandes personagens da literatura. Embora tivesse defendido a idéia de uma Isabel Ascher ou Anna Karenina, Richard insistira em que Mrs. Dalloway era a única e óbvia escolha (VIERA, 1999, p.16). Todas as traduções referentes às citações do romance são de Beth Vieira (1999) e às do filme são das legendas em DVD e vídeo. 69 Sai da cama e vai até o banheiro. Leonardo já está de pé; talvez já esteja trabalhando. No banheiro, lava o rosto (VIEIRA, 1999, p. 30) 70 Não deveria estar se permitindo ler, sobretudo nessa manhã; não no aniversário de Dan. Deveria estar de pé, banhada e vestida, preparando o café de Dan e Richie. Pode ouví-los no andar de baixo, o marido fazendo café, dando de comer a Richie (VIEIRA, p. 1999, p.35). 169 É importante ressaltar que há paralelismo entre as histórias e que elas tendem a uma convergência no final da narrativa, já que essas histórias se encontram. Laura Brown, por exemplo, visita Clarissa Vaughan em Nova York após a morte de Richard. Os universos desses personagens são mostrados, ao longo da narrativa, mas é somente no final que eles se complementam, dando ao leitor uma visão do todo narrativo. O romance começa com a idéia emblemática do suicídio. Essa idéia delineia e traça o destino das personagens, pois cada uma delas está imersa numa situação de questionamento da própria existência. Trata-se de uma narrativa que lida com dilemas, escolhas e até mesmo revisitação do passado. As situações cotidianas enfrentadas por essas personagens são aparentemente simples, mas são motivos para a revelação de questões sérias, subjacentes ao cotidiano “banal”, apresentado ao leitor. A descrição do ato de Woolf é posta logo no primeiro parágrafo do livro: She hurries from the house, wearing a coat too heavy for the weather. It is 1941. Another war was begun. She has left a note for Leonard, and another for Vanessa. She walks purposefully toward the river, certain of what she´ll do, but even now she is almost distracted by the sight of the downs, the church, and a scattering of sheep, incandescent, tinged with a faint hint of sulfur, grazing under a darkening sky (CUNNINGHAN, 1998, p. 3).71 Mesmo se tratando de uma personagem ficcional e de uma ação da narrativa, esse fato traz para o leitor o impacto de um fato real pois remete diretamente ao ocorrido com a escritora. Para aqueles que nada sabem sobre a vida de Woolf, o impacto dá-se pelo fato de a narrativa parecer começar pelo fim: a morte de uma personagem. E, para os que têm conhecimento de dados biográficos sobre a escritora, o impacto dá-se pela reescritura de um fato que realmente aconteceu em 1941. 71 Ela sai apressada de casa, vestida com um casaco pesado demais para a época do ano. Estamos em 1941. Há uma outra guerra em andamento. Deixou um bilhete para Leonard, outro para Vanessa. Caminha decidida em direção ao rio, certa daquilo que fará, mas mesmo assim um tanto distraída, observado as colinas, a igreja e um grupo de carneiros, incandescentes, matizados por um vago tom cor de enxofre, que pastam sob o céu enfarruscado (VIEIRA, 1999, p. 9). 170 Logo em seguida, o leitor depara-se com a abertura de um capítulo intitulado “Mrs. Dalloway” e a surpresa maior dá-se quando percebe que os primeiros parágrafos desse capítulo remetem imediatamente aos primeiros capítulos do romance de Woolf: There are still flowers to buy. Clarissa feigns exasperation (though she loves doing errands like this), leaves Sally cleaning the bathroom, and runs out, promising to be back in half an hour. It is New York City. It is the end of the twentieth century. The vestibule door opens onto a June morning so fine and scrubbed Clarissa pauses at the threshold as she would at the edge of a pool, watching the turquoise water lapping at the tiles, the liquid nets of sun wavering in the blue depths (CUNNINGHAM, 1998, p. 9).72 E, em Mrs. Dalloway, temos: Mrs. Dalloway said she would buy the flowers herself. For Lucy had her work cut out for her. The doors would be taken off their hinges; Rumpelmayers were coming. And then, thought Clarissa Dalloway, what a morning – fresh as if issued to children on a beach. What a lark! What a plunge! For so it had always seemed to her when, with a little squeak of the hinges, which she could hear now, she had burst open the French windows and plunged at Burton into the open air (WOOLF, 1976, p. 7).73 Assim como esses indícios acima citados, a construção narrativa de As Horas é toda pautada em questões identificadas na construção de Mrs. Dalloway. As histórias acontecem em um único dia, uma das personagens prepara uma festa e a discussão da questão da AIDS é posta como uma neurose contemporânea, equivalente à discussão da guerra na década de vinte, no romance de Woolf. 72 Ainda é preciso comprar flores. Clarissa finge-se irritada (embora adore tarefas como essa), deixa Sally limpando o banheiro e sai correndo, com a promessa de voltar em meia hora. Estamos em Nova York. No final do século XX. A porta do vestíbulo abre-se para uma manhã de junho tão clara e pura que Clarissa pára na soleira, como teria parado na beira de uma piscina para ver a água turquesa roçando nos ladrilhos, as redes líquidas de sol tremulando nas funduras azuis (VIEIRA, 1999, p. 15). 73 Mrs. Dalloway disse que ela própria iria comprar as flôres. Quanto a Lucy, já estava com o serviço determinado. As portas seriam retiradas dos gonzos; em pouco chegaria o pessoal de Rumpelmayer. Mas que manhã, pensou Clarissa Dalloway – fresca como para crianças numa praia. Que frêmito! Que mergulho! Pois sempre assim lhe parecera quando com um leve ringir de gonzos, que ainda agora ouvia, abria de súbito as vidraças e mergulhava ao ar livre, lá em Bourton (QUINTANA, 1980, p. 7). 171 Essas questões trazem claramente ecos importantes da narrativa de Woolf para o leitor. Temos a reescrita do incidente real da vida da escritora, o seu suicídio, e a constituição de suas personagens que, de alguma forma, estão ligadas ao romance Mrs. Dalloway. Para Cunningham, em sua entrevista à revista Cult em 2002, a sua tentativa nesse projeto narrativo foi a de trazer Woolf para a Nova York contemporânea. E uma das suas grandes ambições era tentar captar o mundo contemporâneo, ou seja, o mundo dele, com algo aproximado à força e a intensidade que Woolf trouxe para a Londres de Clarissa Dalloway. Para justificar o seu ponto de vista, o autor assim se posiciona: Na minha opinião, uma das principais qualidades da literatura é a habilidade que ela tem de criar uma névoa sobre a linha que liga o passado, o presente e o futuro. Ou melhor, o passado e o futuro, já que o “presente” termina muito antes do tempo que leva para digitar a palavra (CUNNINGHAM apud ROCHA, 2002, p. 48). Essa posição do autor parece explicar muitos aspectos da construção do seu projeto de reescritura de Mrs. Dalloway, pois, além da sua narrativa entrecruzar os tempos, cria uma “névoa” entre a ficção e a realidade, já que retrata, como um de seus personagens ficcionais, alguém que viveu de fato. A estruturação de As Horas representa uma questão complicada e até arriscada, em termos de plausibilidade narrativa, por trazer para a ficção uma pessoa real ou mesmo personagens de outros universos narrativos. Há uma tarefa árdua do autor em conseguir equilibrar a realidade com a ficção. No início do segundo capítulo, intitulado “Mrs. Woolf”, temos três informações importantes na construção da personagem, com referências diretas à escritora Virginia Woolf: o próprio título do capítulo, o processo de escrita da primeira frase do romance Mrs. Dalloway e informações de lugar e descrição da personagem. Vejamos: [1] Mrs. Dalloway said something (what?), and got the flowers herself. [2] It is a suburb of London. It is 1923. [3] Virginia awakens. This might be another way to begin, certainly; with Clarissa going on an errand on a day in June, instead of soldiers marching off to lay the wreath in Whitehall. But is it the right beginning? Is it a little 172 too ordinary? Virginia lies quietly in her bed, and sleep takes her again so quickly she is not conscious of falling back to sleep at all. It seems, suddenly, that she is not in her bed but in a park; a park impossibly verdant, green beyond green – a Platonic vision of a park, at once homely and the seat of mystery, implying as parks do that while the old woman in the shawl dozes on the slatted bench something alive and ancient, something neither kind nor unkind, exulting only in continuance, knits together the green world of farms and meadows, forests and parks (CUNNINGHAM, 1998, p. 2930).74 Como podemos observar neste fragmento, o leitor é conduzido diretamente à vida da personagem por meio da descrição. As informações apresentadas confundem-se, pois tratam-se de referências biográficas da escritora Virginia Woolf. Primeiro, o leitor depara-se com a primeira sentença do romance da autora [1]. Em seguida, com a contextualização do momento em que a obra foi produzida [2]. E, finalmente, com a descrição do seu processo de construção da obra [3]. Essa passagem dá indícios de características importantes no processo de construção do romance de Cunningham, já que a sua feitura compreende uma complexidade de universos literários vividos pelos personagens. Nesse sentido, os universos dos personagens são postos num trânsito constante entre realidade e ficção. Além de Woolf ser posta como personagem do romance, há também a personagem Clarissa Vaughan que faz referência direta à Clarissa Dalloway. Ela é uma personagem do romance de Cunningham que age como a personagem do romance de Woolf. Dessa forma, vislumbramos em As Horas situações narrativas que se mostram como uma 74 Mrs. Dalloway disse alguma coisa (o quê?) e comprou ela mesma as flores. Estamos nos arredores de Londres. No ano de 1923. Virginia acorda. Talvez esse seja um outro jeito de começar, quem sabe; com Clarissa saindo de casa encarregada de fazer algo, numa manhã de junho, em vez de um batalhão de soldados marchando para depositar uma coroa de flores em Whitehall. Mas seria o começo correto? Não seria um pouco banal demais? Virginia continua deitada e o sono a invade tão rápido que não tem consciência de estar pegando no sono de novo. De repente, não parece mais estar na cama e sim num parque; um parque de um verdor implausível, verde verdíssimo – uma visão platônica de parque, ao mesmo tempo despretensioso e sede de mistérios, sugerindo, como costumam fazer os parques, que, enquanto a velha senhora embrulhada no xale cochila no banco de madeira, alguma coisa viva e antiquíssima, alguma coisa que não é nem boa nem má, exultante tão-somente de haver continuidade, tece o verde dos prados e das florestas, dos parques e das terras aradas (VIEIRA, 1999, p. 30). 173 ficção dentro de uma ficção, que é o caso da apresentação das conjecturas de Woolf ao começar a escrever Mrs. Dalloway, como no fragmento visto acima. Uma outra situação em que essas duas dimensões da realidade se confundem na narrativa é quando Clarissa Vaughan discute o romance de Richard com Louis. A personagem trata da construção de outra personagem do romance que remete diretamente a uma personagem real. No romance discutido por Clarissa e Louis, mostram-se evidências de que a construção dos personagens do romance de Richard está diretamente ligada a pessoas reais. A personagem principal, por exemplo, remete a Clarissa por apresentar características semelhantes a ela. Conforme podemos observar nesse diálogo: “Of course, I’ve read the book,” he says. “Have you? Good.” “Isn’t it weird?” “Yes, It is.” “He hardly even bothered to change your name.” “That isn’t me,” she says. “It’s Richard’s fantasy about some woman who vaguely resembles me.” “It’s a damned weird book.” “So everybody seems to think.” “It feels like it’s about ten thousand pages long. Nothing happens. And then, bam. She kills herself.” “His mother.” “I know. Still. It’s completely out of the blue.” You’re in perfect agreement with almost every critic. They’d waited all that time, and for what? More than nine hundreds pages of flirtation, really, with a sudden death at the end. People did say it was beautifully written” (CUNNINGHAM, 1998, p. 129-130).75 No fragmento anterior, temos uma evidência da mistura da construção dos personagens em As Horas que se confundem entre o real e o fictício. Clarissa e Louis são 75 “Li o livro, é claro” ele diz. “Leu? Ótimo.” “Não é meio estranho?” “É. É Sim.” “Ele mal se deu ao trabalho de mudar seu nome.’ “Aquela não sou eu. É a fantasia de Richard a respeito de uma mulher vagamente parecida comigo.” É um livro estranhíssimo.’ É o que todo mundo acha, ao que parece.” “A impressão é que tem umas dez mil páginas. Não acontece nada. E, de repente, pum. Ela se mata.” “A mãe dele.” “Eu sei. Mesmo assim. Acontece sem nenhum aviso, do nada.” “Você está perfeitamente de acordo com todos os críticos. Eles esperaram esse tempo todo, e pelo quê? Mais de novecentas páginas de flerte, no fundo, com uma morte repentina no final. Mas dizem que é muito bem escrito” (VIEIRA, 1999, p. 106). 174 personagens do universo narrativo de Cunningham e estão discutindo o universo narrativo de um outro personagem do próprio romance, Richard. Há, dessa forma, uma “autoreferenciação” na discussão desses universos. Clarissa é uma referência para a criação da personagem de Richard; Louis se comporta como narratário dessa evidência para o leitor; Richard, ao proceder de tal forma, torna-se indiretamente um enunciador de um projeto narrativo contemporâneo. A presença da figura da mãe no livro de Richard também se confunde com a narrativa de As Horas, já que a problemática do seu abandono por parte de Laura Brown quando ele era ainda criança é um fato importante para a sua construção enquanto personagem no romance. E a morte dela no seu texto é uma simbologia de sua vingança por esse fato. Se elevarmos essa discussão para o universo extra-diegético de As Horas, de Cunningham, teremos outras referência diretas a Mrs. Dalloway. A primeira questão a ser levantada é a natureza da narrativa, que se apresenta como uma quebra de paradigma das narrativas tradicionais. Ambos os personagens reconhecem as particularidades da construção da narrativa desse texto. Apresentam argumentos que caracterizam esse construto como a lentidão no desenvolvimento da “história”, a não ênfase no enredo já que “nada acontece”, segundo Louis, e a sugestão de dificuldade de leitura que esse texto propicia e até o seu impacto na recepção crítica. Esses aspectos, apresentados como sendo relevantes no romance de Richard, podem ser também observados no romance de Cunningham e remetem imediatamente ao romance Mrs. Dalloway. Assim como esse romance, os textos de Woolf e de Cunningham não necessariamente apresentam uma história como plano central da narrativa, mas apenas leitmotivs para levantar questões de natureza mais subjetivas, tais como a apreensão do momento de vida dos personagens, a contemplação e a reação diante desses momentos por parte deles. 175 As Horas é uma reescritura de um dos mais célebres romances da literatura inglesa, escrito por uma autora que tem uma grande importância na literatura moderna, por usar, como técnica de escrita, o fluxo de consciência em seus textos de caráter reflexivo. Susana Schild (2003, p. 181), ao comentar esse fato, apresenta um ponto importante que consolida essa idéia: A ficção de As Horas parece partir da premissa de que há livros tão poderosos que aderem a seus leitores como uma segunda pele. Esta fina sintonia poderia representar uma espécie de planta baixa sobre a qual ações e reações já estariam, a priori, delimitadas como percursos de cartas marcadas por páginas já escritas. A ficção, habitualmente associada a entretenimento e escapismo pode também, como sabem seus súditos mais fiéis, constituir poderoso atalho para várias formas de conhecimento, incluindo o autoconhecimento e suas muitas armadilhas (SCHILD, 2003, p. 181). Esse posicionamento de Schild reforça o caráter de reescritura ao qual o romance de Cunningham está submetido, por meio de uma narrativa que se desenvolve à sombra de uma grande discussão sobre a teoria e crítica literária, subjacente a um enredo ou vários enredos paralelos. Como temos mostrado, há, por trás dessa narrativa, uma obra literária famosa que funciona como pano de fundo estruturador de outra obra. Uma produzida no contexto da década de 20, na Inglaterra; e a outra, no contexto norte-americano, na década de 90, e ambas, obviamente, com seu respectivo impacto de recepção. Mrs. Dalloway, pela sua estrutura narrativa inovadora, tornou-se ícone de vanguarda na literatura moderna. As Horas, dentre outros motivos, pela sua estrutura particular e por fazer referência direta ao romance de Woolf, foi aclamado pela crítica, ganhou dois prêmios literários importantes de literatura americana: o “Pulitzer Prize” e o “PEN Faulkner Award” e figurou por muito tempo entre os best sellers dos EUA, como reforça Flávia Rocha (2002, p.47). Além da repercussão da crítica, outro fato importante que podemos considerar como responsável pela grande aceitação de público é a discussão de temas que subvertem padrões conservadores norte-americanos (trataremos dessa questão mais adiante), centrando-se em problemas contemporâneos. Nesse sentido, o próprio romance discute o papel que o texto literário pode exercer na vida dos 176 leitores. Em outras palavras, podemos vislumbrar em As Horas indícios sobre a influência que os textos têm no cotidiano das pessoas. O caso específico de Laura Brown seria um exemplo emblemático desse fato. A personagem é construída na narrativa, presa a uma vida aparentemente “normal”. Ela é uma dona de casa, mãe e grávida do segundo filho, com uma família que vive confortavelmente nos arredores de Los Angeles. Entretanto, na medida em que o leitor se depara com o seu cotidiano e entra em contato com as suas conjecturas, começa a perceber que há, na verdade, um “falso conforto” no qual a personagem vive. Ou seja, ela vive angustiada, triste e refugiada em si mesma, pelo fato de estar imersa num mundo que não lhe pertence e não lhe causa fascínio. É o romance de Woolf que lhe faz penetrar em um mundo paralelo e enxergar possibilidades de uma ação até então por ela negligenciada. O terceiro capítulo do romance, intitulado “Mrs. Brown”, que apresenta a personagem, inicia-se com a sua leitura do romance de Woolf, por meio da reprodução dos primeiros parágrafos de Mrs. Dalloway: Mrs. Dalloway said she would buy the flowers herself. For Lucy had her work cut out for herself. The doors would have to be taken off their hinges; Rumpelmayer’s men were coming. And then, thought Clarissa Dalloway, what a morning – fresh as if issued to children on a beach (CUNNINGHAM, 1998, p. 37).76 Como vimos, o leitor é, primeiramente, surpreendido com esse fragmento de Mrs. Dalloway. E, só, em seguida, há descrição com informações sobre a personagem, propriamente dita. Vejamos: It is Los Angeles. It is 1949. Laura Brown is trying to lose herself. No, that’s not it exactly – she is trying to keep herself by gaining entry into a parallel world. She lays the book face down on her chest. Already her bedroom (no, their bedroom) feels more 76 Mrs. Dalloway disse que compraria ela mesma as flores. Porque Lucy já tinha trabalho de sobra. As portas teriam de ser removidas das dobradiças; os homens de Rumpelmayer viriam. Depois, pensou Clarissa Dalloway, que dia – limpo como se nascido para criança numa praia (VIEIRA, 1999, p. 350). 177 densely inhabited, more actual, because a character named Mrs. Dalloway is on her way to buy flowers (CUNNINGHAM, 1998, p. 37).77 A partir dessa descrição, fica claro o efeito que o livro tem sobre a personagem Laura. Aparece, aqui, a primeira evidência de que ela se propõe a entrar no seu mundo particular e conjecturar sobre sua própria vida, já que ela reivindica seu próprio quarto, ou seja, seu espaço individual. Aparece também uma evidência de que o universo do romance passa a ser naquele instante o seu mundo. E a atitude de Clarissa de sair para comprar flores e o seu universo são vistos por Laura com um certo deslumbramento. Isso fica mais evidente logo em seguida: At least, she thinks, she does not read mysteries or romances.At least she continues to improve her mind. Right now she is reading Virginia Woolf, all of Virginia Woolf, book by book – she is fascinated by the idea of a woman like that, a woman of such brilliance, such strangeness, such immeasurable sorrow; a woman who had genius but still filled her pocket with a stone and waded out into a river (CUNNINGHAM, 1998, p. 42).78 Essa situação em que o livro tem influência na vida dos personagens é um fato que também influenciou a vida do próprio autor. Michael Cunningham, ao ser perguntado em entrevista o porquê da sua escolha em ter como base Mrs. Dalloway para escrever As Horas e qual seria a sua relação com esse livro, declarou como se deu o processo de influência de Mrs. Dalloway na sua formação enquanto escritor: Mrs. Dalloway foi o primeiro grande livro que li. Li-o quando eu tinha 15 anos e era um estudante teimoso em escola pública, que lia o mínimo possível. Um dia, uma menina mais velha disse para mim, num tom grosseiro quanto o que irá parecer: “Por que você não tenta ser menos estúpido? Por que não lê Virginia Woolf?” Ela me deu Mrs. Dalloway. Eu não entendi, isto é, não tinha a menor idéia do que se tratava, mas entendi a densidade, a complexidade e a música daquelas frases. Não sabia que se podia fazer aquilo com a linguagem. Lembro-me de ter pensado que ela 77 Estamos em Los Angeles. Em 1949. Laura Brown está tentando se perder. Não, não é bem assim – está tentando se manter, entrando num mundo paralelo. Ela descansa o livro aberto sobre o peito. Em poucos instantes seu quarto (não o quarto deles) parece mais densamente povoado, mais atual, porque uma personagem chamada Mrs. Dalloway está a caminho da floricultura (VIEIRA, 1999, p. 35). 78 Pelo menos, pensa, não é leitora de livros de mistério nem de romances de amor. Pelo menos continua aperfeiçoando a mente. Bem nesse momento está lendo Virginia Woolf, toda a obra de Virginia Woolf, livro por livro – está fascinada com a idéia de uma mulher como aquela, uma mulher de tamanho brilhantismo, tamanha singularidade, com uma dor tão imensurável; uma mulher de gênio que mesmo assim encheu o bolso com uma pedra e entrou num rio (VIEIRA, 1999, p. 38). 178 estava fazendo com as palavras o que Jimi Hendrix faz com a guitarra (CUNNINGHAM apud ROCHA, 2002, p. 49). Assim como os seus personagens, Cunningham sofreu influência do romance de Woolf, chegando a afirmar que a sua experiência enquanto leitor da obra foi um passo inicial para a sua formação de leitor e depois de escritor. Essas declarações do autor suscitam pontos importantes para um melhor entendimento do construto narrativo de As Horas. O primeiro ponto é a relação direta que o autor tem com uma fonte inspiradora, assumindo claramente a condição de reescritura que o seu texto tem. Um outro ponto importante é o reforço do argumento da estreita ligação entre os gêneros, que se consolida, por meio desse experimento de Cunningham, e o resultado bem sucedido de reescrever um livro repleto de subjetividade. O resultado desse processo é a resignificação de um universo literário, reescrito para sistemas literários, contextos e públicos distintos: As Horas desloca uma personagem de Virginia Woolf para a Nova York dos anos 90, enfrentando todos os problemas de uma sociedade contemporânea79,a descrição do espaço londrino por onde Clarissa Dalloway transita e se deslumbra é traduzido para o contexto norte-americano no século XX; e o leitor não é mais somente aquele de um grupo seleto ávido pelos textos rebuscados, comuns nos romances mais tradicionais, e sim um público mais amplo, bem maior, que também tem interesse pelos textos mais pragmáticos, ou seja, pelas discussões mais próximas do cotidiano. As Horas lida com temas contemporâneos, mas a sua estrutura lida, principalmente, com a linguagem enquanto elemento narrativo. O desenvolvimento se dá por meio de um processo de construção de escrita em que envolve escrita e recepção. Como temos visto, o romance apresenta Virginia Woolf, tentando escrever Mrs. Dalloway em 1923; Laura Brown, lendo o romance em 1949 e sendo afetada pelo universo fascinante de Clarissa 79 Ao usarmos um critério puramente cronológico, estamos chamando de contemporâneo o período iniciado depois da Segunda Guerra Mundial, conforme destacou Tânia Pellegrini (2003, p.18). 179 Dalloway; e Clarissa Vaughan, agindo como a própria personagem de Mrs. Dalloway no final do século. O processo de desenvolvimento do romance compreende três níveis: produção, recepção e “transferência” 80 . Esses níveis são colocados paralelamente e demonstram cada etapa para o leitor. O primeiro passo dá-se com Woolf, tentando escrever a primeira sentença da obra: “Mrs. Dalloway said (what?), and got the flowers herself” (CUNNINGHAM, 1998, p.29).81 O leitor acompanha, juntamente com a autora, as suas inquietações, hesitações para construir a primeira sentença. Como podemos observar no fragmento a seguir: Virginia awakens again. She is here, in her bedroom at Hogarth House. Gray light fills the room; muted, steel-toned; it lies with a gray-white, liquid life on her coverlet. It silvers the green walls. She has dreamed of a park and she has dreamed of a line for her book – what was it? Flowers; something to do with flowers. Or something to do with a park? Was something singing? No, the line is gone, and it doesn’t matter, really, because she still has the feeling it left behind. She knows she can get up and write (CUNNINGHAM, 1998, p.30). 82 Por meio dessas conjecturas da personagem, o leitor entra em seu mundo interior e apreende informações sobre o seu processo criativo e a sua angústia diante do ato de escrever. Após uma longa reflexão sobre esse ato, no final do capítulo, surge a primeira frase do livro: She may pick up her pen and follow it with her hand as it moves across the paper; she may pick up her pen and find that she’s merely herself, a woman in a housecoat holding a pen, afraid and uncertain, only mildly competent, with no idea about where to begin or what to write. She picks up her pen. Mrs. Dalloway said she would buy the flowers herself (CUNNINGHAM, 1998, p.35). 83 80 Transferência, aqui, significa a atitude de Clarissa Vaughan em experimentar, ao longo da narrativa, situações similares às vividas por Clarissa Dalloway. 81 Mrs. Dalloway disse alguma coisa (o quê?) e comprou ela mesma as flores (VIEIRA, 1999, p. 30). 82 Virginia acorda de novo. Está ali, em seu quarto, em Hogarth House. A luz cinzenta permeia o aposento; em surdina, cor de aço; repousa com uma vida branco-acinzentada e líqüida em sua colcha. Prateia as paredes verdes. Ela sonhou com um parque e sonhou com um rumo para o seu livro – qual era? Flores; alguma coisa a ver com flores. Ou alguma coisa a ver com parque? Tinha alguém cantando? Não, o rumo se foi, mas no fundo não tem importância, porque ainda guarda consigo a sensação que ficou para trás. Sabe que pode se levantar e escrever (VIEIRA, 1999, p. 31). 83 Um dia pode apanhar a caneta e segui-lo com a mão que se move pelo papel; num outro, pode pegar a caneta e descobrir que é apenas ela mesma, uma mulher de chambre segurando uma caneta, com medo e incerta, apenas razoavelmente competente, sem a mínima idéia de onde começar ou do que escrever. Ela pega a caneta. Mrs. Dalloway disse que compraria ela mesma as flores (VIEIRA, 1999, p. 34). 180 Essas questões perpassam toda a obra. As duas passagens, acima mostradas, situam a personagem Woolf, envolvida no processo de criação de Mrs. Dalloway, tornando o leitor um observador direto desse processo. Na recepção do texto, temos a presença de duas personagens: Laura, que lê e reflete sobre as atitudes da personagem principal do romance de Woolf, e Clarissa, que desloca o comportamento dessa personagem para o contexto de Nova York. No primeiro caso, apesar de a personagem ser em tese apenas uma leitora, ela também é mostrada envolvida, assim como Woolf, numa atividade de processo, numa atividade quase que artística. Na medida em que lê, dialoga com o texto, reage diante da própria existência. Num sentido mais geral, sua atitude corresponde àquela da escritora. Woolf se debate sobre a criação de sua primeira sentença. Existe uma preocupação, quase uma obsessão com a escolha da palavra certa que capte o sentido exato do estado da personagem. Por outro lado, o senso de perfeição também está presente na tarefa de Laura. A personagem permanece sempre em busca da reformulação dos seus propósitos e, a partir de Clarissa Dalloway, questiona a si mesma. O fato em questão pode ser observado no momento em que ela, juntamente com Richard, prepara o bolo de aniversário de Dan: This, she thinks, is how artists or architects must feel (it’s an awfully grand comparison, she knows, maybe even a little foolish, but still), faced with canvas, with stones, with oil or wet cement. Wasn’t a book like Mrs. Dalloway once just empty paper and a pot of ink? It’s only a cake, she tells herself. But still. There are cakes and then there are cakes. At this moment, holding a bowl full of sifted flour in an ordely house under the California sky, she hopes to be as satisfied and as filled with anticipation as a writer putting down the first sentence, a builder beginning to draw the plans (CUNNINGHAM, 1998, p. 76- 77).84 84 Isso, ela pensa, é o que os artistas ou arquitetos devem sentir (é uma comparação horrivelmente grandiosa, ela sabe, talvez até um pouco tola, mas e daí?) diante da tela, da pedra, do óleo ou do cimento fresco. Pois então um livro como Mrs. Dalloway já não foi um dia apenas papel em branco e um tinteiro? É apenas um bolo, diz consigo mesma. Mas e daí? Existem bolos e bolos. Nesse momento, segurando uma tigela cheia de farinha peneirando numa casa bem-arrumada, sob o céu da Califórnia, espera sentir-se tão satisfeita e tão repleta de expectativas quanto um escritor pondo sua primeira frase no papel, um arquiteto começando a desenhar seus planos (VIEIRA, 1999, p. 67). 181 A feitura do bolo torna-se simbólica para a construção narrativa de As Horas. A atividade representa o processo metalingüístico que perpassa toda a narrativa. Se, por um lado, temos a personagem Virginia Woolf, dedicando-se à difícil tarefa de construir o seu romance, valendo-se de todo o aparato estratégico ao qual os escritores recorrem, por outro, temos uma dona de casa que se preocupa em refletir sobre uma tarefa, aparentemente simples, do dia-a-dia. São duas situações bem diferentes, mas convergem para um ponto em comum, ou seja, o processo de criação. A construção da personagem Clarissa Vaughan também se enquadra nessa discussão do processo de criação na medida em que a personagem está diretamente relacionada à outra, age como tal e também reflete sobre a sua ação. A sua preocupação em preparar uma grande festa para que seu amigo, Richard, sinta-se feliz no dia da celebração de sua carreira, como escritor bem sucedido, remete à mesma excitação de Clarissa Dalloway ao preparar uma grande festa, na sua casa, como podemos observar: Tonight she will give her party. She will fill the rooms of her apartment with food and flowers, with people of wit and influence. She will shepherd Richard through it, see that he doesn’t overtire, and then she will escort him uptown to receive his prize (CUNNINGHAM, 1998, p.13).85 Her evening dresses hung in the cupboard. Clarissa, plunguing her hand into the softness, gently detached the green dress and carried it to the window. She torn it. Some one had trod on the skirt. She had felt it give at the Embassy party at the top among the folds. By artificial light the green shone, but lost its colour now in the sun. She would mend it. Her maids had too much to do. She would wear it to-night. She would take her silks, her scissors, her – what was it? – her thimble, of course, down into the drawingroom, for she must also write, and see that things generally were more or less in order (WOOLF, 1976, p.43).86 85 Essa noite ela dará uma festa. Encherá as salas de seu apartamento de comida e flores, como gente espirituosa e influente. Vai acompanhar Richard o tempo todo, providenciar para que não se canse demais e, depois, vai levá-lo para receber o seu prêmio (VIEIRA, 1999, p.18). 86 Seus vestidos de baile estavam no guarda-roupa. Clarissa, mergulhando a mão naquela macieza, retirou delicadamente o vestido verde e levou-o para junto da janela. Tinha um rasgão. Alguém lhe pisara a cauda. Desconfiara-o na festa da Embaixada, quando sentira um puxão em cima, na cintura. À luz articificial, o verde brilha, mas ali, ao sol, perdia a cor. Ela remendaria. Suas criadas tinham muito que fazer. Ia pô-lo aquele noite. Levaria as linhas, as tesouras – que mais?-, o dedal, naturalmente, lá para baixo, no salão, pois também tinha de escrever e ver se as coisas iam marchando mais ou menos em ordem (QUINTANA, 1980, p. 39-40). 182 Desde o início da narrativa, a personagem é posta na sua empreitada de organizar um evento que aparece como sendo uma das ocupações que mais lhe apraz. A introdução do primeiro capítulo é feita pela saída da personagem de casa para comprar flores. Vejamos: There are still the flowers to buy. Clarissa feigns exasperation (though she loves doing errands like this), leaves Sally cleaning the bathroom, and runs out, promising to be back in half an hour (CUNNINGHAM, 1998, p. 9). 87 Como podemos observar, esse fato é a primeira manifestação da atividade num dia na vida de Clarissa. A partir daí, toda a narrativa se desenvolve. Vale lembrar que a festa não seria, na verdade, um fato narrativo, propriamente dito, mas um fio condutor para o desencadeamento de uma série de reflexões por parte da personagem. Nessas reflexões, está um dia de uma vida inteira por meio das reminiscências, da memória, das escolhas pessoais. Assim como as outras personagens, Clarissa está, nesse dia, diante de si mesma: She, Clarissa, was clearly not destined to make a disastrous marriage or fall under the wheels of a train. She was destined to charm, to prosper. So Mrs. Dalloway it was and would be. “Isn’t it beautiful?” Mrs. Dalloway said that morning to Richard. He answered, “Beauty is a whore, I like money better.” He preferred wit. Clarissa, being the youngest, the only woman, felt she could afford a certain sentimentality. If it was late June, she and Richard would have been lovers. It would have been almost a full month since Richard left Louis’s bed (Louis the farm-boy fantasy, the living embodiment of lazy-eyed carnality) and came into hers (CUNNINGHAM, 1998, p.11).88 Como a situação mostra, enquanto caminha para comprar flores, Clarissa revê situações do passado. Por meio das reminiscências, o leitor entra em contato com eventos da vida da personagem e seus julgamentos sobre eles. Os julgamentos funcionam como uma reconstituição desse passado e uma busca de reconciliação. O olhar constante para si, que é uma característica não só de Clarissa, mas de todos os outros personagens de As Horas, reforça a idéia de processo a que a construção da narrativa se submete. Isso ocorre seja pela 87 Ainda é preciso comprar flores. Clarissa finge-se irritada (embora adore tarefas como essa), deixa Sally limpando o banheiro e sai correndo, com a promessa de voltar em meia hora (VIEIRA, 1999, p. 15). 88 Ela, Clarissa, evidentemente não estava destinada a um casamento desastroso ou morrer sob as rodas de um trem. Estava destinada ao charme, à prosperidade. De modo que tinha que ser, e foi Mrs. Dalloway. “Não está lindo?”, Mrs. Dalloway perguntara a Richard naquela manhã. Ele respondera: “A beleza é uma puta, eu prefiro o dinheiro”. Ele preferia a sagacidade. Clarissa, sendo a mais nova e a única mulher, sentiu que podia se dar ao luxo de um certo sentimentalismo. Se era final de junho, ela e Richard seriam amantes. Já estaria fazendo quase um mês inteiro que Richard abandonara a cama de Louis (Louis, a fantasia da beleza rústica feita realidade, a corporificação da carnalidade preguiçosa) e passara para a sua (VIEIRA, 1999, p.16). 183 criação e realização de alguma tarefa, seja pela percepção e reformulação da própria existência. Além desse ponto em comum, em termos de procedimentos da linguagem, existem outros elementos que fazem as “histórias” paralelas de As Horas convergirem também em termos temáticos. Por tratar-se de uma narrativa de cunho também impressionista, os temas existenciais estão sempre presentes, tanto nas ações e nos comportamentos dos personagens, quanto no próprio fluxo narrativo, já que o leitor tem acesso direto aos seus processos mentais. Temas como o suicídio, a angústia, a loucura, a festa, a literatura, a morte e a AIDS intercalam-se dentro de um tecido narrativo que trabalha relações complexas entre autoria, criação, personagens e processo de leitura. E graças a toda a complexidade estrutural e temática, As Horas, assim como Mrs. Dalloway, entrou a princípio na lista dos romances, “infilmáveis”, oferecendo um grande desafio para os que se propuseram a investir em tão árdua tarefa (SCHILD, 2003, p.180). A construção espacial-temporal do romance é organizada, tendo como base o paralelismo entre três histórias. Tal paralelismo se desenvolve por meio de um dilatamento transcendental de tempo que compreende três épocas diferentes, na vida de três personagens diferentes, mas ligadas por um ponto que é uma grande obra literária. Para tratarmos do tempo em As Horas não há como negligenciarmos o aspecto contextual a que cada personagem se insere, pois a idéia de tempo ressaltada no romance remete diretamente à memória e aos processos mentais dessas personagens. Dessa forma, a regularidade temporal da narrativa é fluida para adequar-se aos momentos de vida de cada uma delas. Um ponto de partida para se tentar mapear essa estrutura no romance é a subdivisão de três “tempos” na narrativa que, do mesmo modo que são delimitados, por apresentarem as suas particularidades de cada época, são também convergentes e 184 desencadeadores dos motivos para o desenvolvimento narrativo. A seqüência de apresentação dos tempos no romance dá-se da seguinte forma. O primeiro tempo trata da personagem de ficção Virginia Woolf. Por meio do uso da técnica de flashforward, o romance inicia-se remetendo a um fato de conotação real, pois descreve o suicídio da escritora Virginia Woolf, em 1941, na Inglaterra. Em seguida, o tempo em questão se estabelece em 1923, no momento em que Mrs. Woolf escreve o romance Mrs. Dalloway. O leitor, nesse momento, tem contato com referências biográficas sobre a escritora que, na pele de uma personagem ficcional, introduz um aspecto de tempo que será recorrente na narrativa, já que a sombra da escritora inglesa pairará durante toda a leitura. O segundo desloca-se para Nova York, no final do século XX, para tratar de Clarissa Vaugham, uma personagem imersa num mundo contemporâneo em que os valores sociais são discutidos. O terceiro tempo apresenta Laura Brown lendo o romance em Los Angeles em 1949. Embora tenhamos essa seqüência sistematizada de tempo em As Horas, assim como em Mrs Dalloway, o leitor precisa abstraí-la para captar o teor narrativo. Não é numa perspectiva cronológica que se pressupõe apreender o universo literário proposto por Cunningham, pois os espaços físicos e os fatos externos que envolvem os personagens são apenas uma parte desse universo. Há, além disso, os espaços internos, inerentes à própria individualidade dos personagens como a memória e os fluxos de pensamentos que são atemporais e deslocam-se constantemente. Entretanto, diferente do romance de Woolf, o romance de Cunningham está subdividido em capítulos, facilitando para o leitor a montagem de cada um dos tempos desenvolvidos na narrativa. Se há, na construção narrativa de As Horas, questões ligadas à problemática da autoria e da recepção, como mostramos acima, há, na sua estruturação temporal, diferentes dimensões sociohistóricas na contextualização dos personagens como elemento de reescritura 185 e resignificação temática. São diferentes temas que se intercalam em situações vividas pelas personagens em épocas diferentes. Entretanto, têm como ponto comum o livro de Woolf. As dimensões temporais de As Horas, num sentido mais amplo, dão-se no nível interno e externo da narrativa. No plano diegético, temos a estrutura interna em que as personagens transitam e tecem os três enredos paralelos. No externo, temos a resignificação de uma obra literária, em dois contextos diferentes. Nesse sentido, o desenvolvimento narrativo pode ser interpretado sob duas perspectivas: um tributo a uma obra literária experimental do início do século, mas também uma descrição ou até mesmo uma crítica à sociedade norte-americana. As evidências da primeira perspectiva apresentam-se por meio da manifestação de uma narrativa que trata de questões existencialistas, dos dilemas das escolhas individuais, do acúmulo de sofrimento que adquirimos ao longo da vida. Apresentam-se também por meio da construção de personagens, da construção dos “enredos” e da conexão entre eles e os personagens, da descrição de processos mentais e da presença da escritora Virginia Woolf como personagem de ficção. Quanto à segunda perspectiva, o romance discute vários temas que dizem respeito às minorias, vítimas de um sistema sócio-político opressor que podem ser observados por meio da presença da problemática da Aids com o personagem Richard; do casamento não convencional de Clarissa e Sally e, conseqüentemente, da nova estrutura familiar e da reprodução independente de Clarissa. Ao apontarmos essas questões, não temos a pretensão de prescrever classificações ou rótulos de As Horas como romance engajado ou panfletário, porque isso fugiria dos nossos propósitos para essa tese. Porém é necessário que reconheçamos que esses são pontos recorrentes que se enquadram na estética de Cunningham. Ao ser perguntado sobre a sua preocupação em analisar a família e a sociedade norte-americana, incluindo questões como divórcio, homossexualidade e Aids, o autor aponta como principal elemento motivador uma 186 reação ao conservadorismo americano que pretende construir um mundo seguro para os valores familiares. Ele, assim, se posiciona: Cresci numa América cada vez mais conservadora, que identifica a “família” com as mais conservadoras virtudes. Na verdade, menos de 50% das famílias americanas envolvem um homem, uma mulher e seus filhos biológicos. Todo o resto são grupos que vêm de divórcios, mães ou pais solteiros, pais gays ou lésbicas, ou até mesmo de famílias menos oficiais, grupos de amigos que cuidam uns dos outros porque seus pais de sangue não irão fazê-lo. Eu tento escrever sobre as pessoas cujos hábitos e vidas os excluem do que George Bush quer dizer quando ele fala sobre “família” (CUNNINGHAM apud ROCHA, 2002, p. 49). Essa fala de Cunningham evidencia traços importantes do sistema em que se dá a sua produção e a forma de diálogo que ele estabelece como este sistema. Podemos inferir que, assim como Mrs. Dalloway, que trata da neurose do pós-querra na Inglaterra, como discutimos anteriormente, As Horas também representa uma crítica a questões sociais e políticas de sua época, ao discutir o problema da AIDS, que se apresenta no romance como uma situação enfrentada por um grupo marginal na sociedade norte-americana, assim como a discussão da nova estrutura familiar no final dos anos 90. Temos observado, ao longo da discussão, convergências entre o romance de Cunningham e de Woolf. O construto narrativo de ambos é composto por diferentes quadros que retratam momentos de vida dos seus personagens (romance de montagem). No entanto, As Horas apresenta uma particularidade na sua estrutura em relação a Mrs. Dalloway. Por meio da montagem paralela, o romance segmenta para o leitor os momentos de vida em questão e dá um desfecho com a convergência das três no final, ou seja, apresenta um outro “arranjo linear” (OLIVEIRA, 1979, p.53). A tessitura narrativa de As Horas dá-se, assim como Mrs. Dalloway, pela apreensão por parte do leitor das consciências dos personagens. Assim, a delineação tanto do tempo quanto do espaço é muito mais fruto de percepção do que propriamente uma tentativa 187 de descrição, como acontece nas narrativas realistas.89 O processo de captação da “realidade”, portanto, ocorre, na maioria das vezes, a partir do que os personagens apreendem dos fatos e não os fatos em si. Vejamos exemplos, envolvendo as três personagens principais: She walks past one of the farm workers (is his name John?), a robust, smallheaded man wearing a potato-colored vest, cleaning the ditch that runs through the osier bed. He looks up at her, nods, looks down again into the brown water. As she passes him on her way to the river she thinks of how successful he is, how fortunate, to be cleaning a ditch in an osier bed. She herself has failed. She is not a writer at all, really; she is merely a gifted eccentric (CUNNINGHAM, 1998, p.3-4).90 “Nice to see you,” Walter says. Clarissa knows – she can practically see – that Walter is, at this moment, working mentally through a series of intricate calibrations regarding her personal significance. Yes, she’s the woman in the book, the subject of a much-anticipated novel by an almost legendary writer, but the book failed, didn’t it? It was curtly reviewed; it slipped silently beneath the waves. She is, Walter decides, like a deposed aristocrat, interesting without being particularly important. She sees him arrive at his decision. She smiles (CUNNINGHAM, 1998, p. 16).91 She, Laura, likes to imagine (it’s one of her most closely secrets) that she has a touch of brilliance herself, just a hint of it, though she knows most people probably walk around with similar hopeful suspicions curled up like tiny fists inside them, never divulged (CUNNINGHAM, 1998, p.42).92 Nos três casos acima, as personagens apresentam suas reações sobre situações externas simples, por elas apreendidas. O leitor tem conhecimento dessas situações, mas não são elas em si que se tornam importantes. Ao contrário, é o que se processa nas mentes a partir delas que, conduzido pelo narrador, constitui-se o material narrativo importante para o desenvolvimento dos “enredos”. Primeiro, temos Virginia Woolf que, ao caminhar para o rio 89 Para Massaud Moisés (1988, p.228), essas narrativas realistas preconizavam um enfoque objetivo do mundo em oposição ao subjetivismo romântico, propondo a substituir o sentimento pela razão, ou pela inteligência. 90 Passa por um dos empregados da fazenda (seria John, o seu nome?), um homem robusto, de cabeça pequena, que usa uma camisa cor de batata e limpa um rego entre os chorões. Ele ergue os olhos para ela, faz um gesto de cabeça, baixa a vista de novo para a água pardacenta. Ao cruzar com ele, a caminho do rio, pensa em como é bem sucedido, no quanto é feliz ao limpar um rego que corre entre chorões. Ela mesma fracassou. Não é escritora coisa nenhuma, não de verdade; é apenas uma excêntrica bem-dotada (VIEIRA, 1999, p. 9). 91 “Há quanto tempo”, Walter diz. Clarissa sabe – pode até ver – que, nesse momento, ele está fazendo mentalmente uma série de calibragens intrincadas para calcular sua importância no mundo. Sim, ela é a mulher do livro, o tema de um romance muito aguardado de autoria de uma escritor quase lendário, mas o livro não emplacou, não é mesmo? Foi resenhado de modo sumário; deslizou em silêncio por sob as ondas. Ela é, Walter decide, igual a um aristocrata falido, interessante sem ser especialmente importante. Ela o vê chegar a essa decisão. E sorri (VIEIRA, 1999, p. 20). 92 Ela, Laura, gosta de imaginar (é um de seus segredos mais cuidadosamente guardados) que ela também possui algum brilho, só um tiquinho, embora saiba que com certeza a maioria das pessoas anda pela vida com semelhantes suspeitas esperançosas crispadas como pequenos punhos lá no íntimo, sem jamais divulgá-las (VIEIRA, 1999, p.39). 188 onde se afogará, passa pelo empregado da fazenda e questiona uma possível felicidade dele ao realizar com destreza uma tarefa tão simples do cotidiano. Ela, ao contrário do empregado, não foi bem sucedida. Em seguida, temos Clarissa e Walter que, ao se encontrarem na Washington Square Park, fazem mútuas conjecturas a respeito um do outro. Os pensamentos de Walter, por exemplo, são mostrados do ponto de vista de Clarissa, ou seja, o leitor tem acesso às conjecturas de um personagem em relação ao outro. E, por último, temos Laura que, ao acabar de ler mais uma página de Mrs. Dalloway, reconhece que, apesar de sua vida aparentemente banal, possui também algum brilho. Os fragmentos analisados são representativos da forma como se dá a condução do material psicológico em As Horas. As descrições de características físicas ou de fatos externos são menos relevantes do que os efeitos por eles exercidos na mente de quem os observa. Isso seria um ponto fundamental para o entendimento do desenvolvimento narrativo do romance. Para uma melhor compreensão, visualizemos o seguinte paralelo entre Mrs. Dalloway e As Horas: PADRÃO NARRATIVO DE AS HORAS 1. Elemento condutor da narrativa: descrição dos processos mentais ou fluxos de consciência (reminiscências, memória, reflexões, questões intimistas, críticas política e social etc.); 2. Técnicas discursivas empregadas: apresentação de fluxos de consciência por meio de monólogo interior indireto (descrição de realidades internas) e uso do recurso da montagem para contar três história paralelas; 3. Principais diferenças em relação a Mrs. Dalloway: subdivisão do romance em capítulos, segmentando para o leitor as transições entre os espaços e os tempos narrativos, e a delineação de personagens na narrativa (novo arranjo linear). Observamos que, como Woolf, Cunningham descreve realidades mentais, já que a realidade externa é apenas um elemento motivador de apresentação dos fluxos de consciência. Nesse sentido, assim como nas questões temáticas, os dois romances se aproximam embora cada um tenha as suas particularidades em termos de estrutura narrativa. 189 4.2 AS HORAS, DE STEPHEN DALDRY O filme As Horas, traduzido do romance do escritor norte-americano Michael Cunningham, foi lançado em 2002, pela Miramax International e Paramount Pictures.93 O texto cinematográfico de Daldry é uma tradução do romance de Michael Cunningham que, por sua vez, remete ao romance de Woolf. Assim como Cunningham, Daldry entrelaça três histórias paralelas em seu texto e reescreve, para as telas, imagens de Mrs. Dalloway para o espectador. Isso ocorre devido ao uso de algumas estratégias de tradução, consideradas importantes para o processo de construção da narrativa fílmica. Descrevemos algumas das principais estratégias a seguir. 4.2.1 Delineação do enredo (três histórias paralelas) O filme começa com um prólogo que apresenta uma idéia emblemática do suicídio de Virgínia Woolf. Essa idéia funciona como uma forma delineadora dos destinos das três personagens principais: a própria Woolf, Laura Brown e Clarissa Vaughan. Todas essas personagens apresentam um questionamento sobre a aparente “normalidade” das situações simples do cotidiano, quando, na verdade, existem questões existenciais sérias que subjazem a essa “normalidade”. No primeiro plano, temos, na tela: “Sussex, England 1941” 94, com a imagem do rio, no momento em que Virginia sai de casa. A câmera se movimenta, focalizando o fluxo corrente da água do rio e, por meio de um corte, há a transferência da imagem do rio para a da 93 O filme foi dirigido por Stephen Daldry, produzido por Scott Rudin e Robert Fox, e traz, no elenco, Meryl Streep, Juliane Moore, Nicole Kidman, Ed Harris, Toni Collette, Claire Danes, Jeff Daniels, Stephen Dillane dentre outros. O filme As Horas foi lançado no Brasil no início de 2003 no circuito dos cinemas comerciais e, logo em seguida, lançado em DVD e vídeo. 94 Sussex, Inglaterra 1941 190 personagem se vestindo para sair. A personagem é mostrada apreensiva e inquieta, durante todo o percurso de casa até o rio. A primeira cena do filme é construída por meio do suicídio de Woolf. A seqüência alterna-se entre a saída da personagem de sua casa, sua caminhada até o rio e a escrita da carta que ela deixou para o seu esposo, Leonard. À proporção que a personagem se dirige ao rio, uma alternância de imagens é feita entre o caminho e a sua casa, na qual são apresentadas a escritura da carta e a sua leitura por Leonard. O conteúdo da carta é narrado em voice-over enquanto a alternância de imagens é apresentada na tela: Dearest, I feel certain that I am going mad again. I feel we can’t go through another of these terrible times, And.. I shan’t recover this time. I begin to hear voices, and I can´t concentrate (...) I don’t think two people could have been happier than we have been. Virginia95 A personagem mergulha no rio e a imagem dela morta conclui o prólogo. Essa situação cria um momento de tensão para o espectador. O impacto visual da primeira cena desdobra-se, em pelo menos, duas diferentes reações por parte do público. Para aqueles que conhecem dados biográficos sobre Virginia Woolf, a cena é surpreendente, mas representa na tela a tradução de um fato real. Para os que não têm essas informações, essa cena representa um mistério, já que a personagem morre antes de qualquer ação na narrativa. Após o afogamento, o construto narrativo começa a ser montado. As outras personagens, os outros espaços e os tempos vão, paulatinamente, sendo demarcados por meio de recortes de narrativas, montados paralelamente. De Sussex, onde Woolf foi mostrada, a narrativa se transfere para Los Angeles, em 1951, para a casa da segunda personagem Laura Brown. Nesse momento, a narrativa é transferida para a cidade de Richarmond, na Inglaterra em 1923, ano em que o romance Mrs. Dalloway foi escrito. Novamente, a narrativa se transfere para Nova York, no ano de 2001. Aqui, a terceira personagem é introduzida e 95 Virginia: “Meu querido... sinto que estou enlouquecendo de novo. Sinto que não podemos agüentar mais outro desses terríveis momentos e... Não vou me recuperar dessa vez. Começo a ouvir vozes e não consigo me concentrar. (...) Não acho que duas pessoas tenham sido mais felizes... De que nós dois fomos. Virginia.” 191 informações importantes para o desenvolvimento narrativo ficam delimitadas para o espectador. Há, nessa introdução do filme, uma evidência clara da segmentação de informações que norteiam a narrativa, assim como ocorre no livro de Cunningham quando ele o divide por capítulos. Em seguida, a narrativa é transferida para Los Angeles, em 1951, na casa da segunda personagem, Laura Brown. Novamente, a narrativa é transferida para a cidade de Richarmond, na Inglaterra, em 1923, no ano em que o romance Mrs. Dalloway foi escrito. Podemos perceber, a partir desse primeiro momento do filme, uma delineação do enredo em que ficção e realidade se confundem e causam impacto. Primeiro, temos a cena do suicídio de Woolf que de fato aconteceu em 1941. Depois, temos a presença da carta, com um tom extremamente dramático, deixada por ela e que também foi um fato real. Na cena seguinte, inicia-se o desdobramento da narrativa fílmica por meio do início da introdução da história de cada personagem. Diferente do livro, não são as personagens principais que apresentam os seus companheiros. Ao contrário, Leonard, Dan e Sally aparecem primeiro chegando a suas respetivas casas ao amanhecer e, em seguida, Laura, Virginia e Clarissa são mostradas ainda deitadas. Isso acontece por meio da câmera que se movimenta e vai procurando cada uma delas. Em seguida, o despertador toca, e as três levantam-se para enfrentarem o dia. Esta seria a primeira situação comum entre elas. Nesse momento da narrativa, Clarissa e Virginia são postas diante do espelho, e as suas imagens são alternadas. Laura, por sua vez, não é posta diante do espelho, mas está diante do romance Mrs. Dalloway. Vejamos: 192 Figura 11 – Primeira situação comum entre as personagens Como podemos observar as imagens, os objetos tornam-se símbolos que dizem respeito ao próprio construto narrativo. Assim como nos romances Mrs. Dalloway e As Horas, as personagens na narrativa fílmica são acometidas de momentos de reflexões existenciais, voltando-se para um desvendamento de suas intimidades. Dessa forma, o espelho simboliza esse olhar para dentro, uma imersão na própria alma. O livro na mão de Laura também assume essa simbologia, já que a personagem mergulha num universo de deslumbramento e nele se reconhece. Outros símbolos podem ser observados como recursos importantes nesse momento da narrativa, como as flores e os despertadores. Quando as personagens acordam, as imagens de flores se fazem presentes nos três espaços. Essas imagens são recursos simbólicos que se reportam diretamente aos textos de partida e dizem respeito ao próprio construto narrativo, já que a primeira ação de Clarissa Vaughan é decidir que ela mesma irá comprar as flores. As flores nos remetem ao desenvolvimento temático da obra, ou seja, a preparação da festa por parte de uma das personagens, a comemoração do aniversário do esposo por outra; e o amanhecer de entusiasmo de outra personagem ao buscar inspiração para começar a escrever o seu livro. Os despertadores nos remetem a idéia de tempo, bastante ressaltada na narrativa, pela própria construção dos espaços narrativos em épocas diferentes. Após o prólogo e a apresentação das personagens, instaura-se um segundo momento em que as histórias e os espaços da narrativa vão se delineando. Estabelece-se, a partir de então, um entrecruzamento de fatos e de atitudes por parte dos personagens que 193 fundam o desenvolvimento do texto cinematográfico. A seqüência se apresenta da seguinte forma: após acordar, Virginia desce a escada, bebe um pouco de água e conversa com o marido sobre a inspiração para escrever. Leonard a incentiva, mas sugere que ela primeiro se alimente: Virginia: Leonard, I believe I may have a first sentence. Leonard: Work, then. But then you must eat.96 Tanto a fala de Virginia quanto o seu comportamento são reveladores de uma característica importante na construção da narrativa do filme. A personagem introduz sua nova tarefa de escrever um romance, que, como ela própria sugere, acredita ter somente ainda uma primeira frase. O processo de criação é, portanto, anunciado e passará a ser recorrente durante toda narrativa por meio de um movimento constante de situações que tratam dos fenômenos de produção e recepção. Assim, o processo de escrita da personagem, a partir de então, passa a se confundir com o próprio filme. Após essa rápida conversa, Virginia vai para o quarto para começar a escrever o romance Mrs. Dalloway. Um corte transfere a narrativa para Laura Brown lendo o livro e, em seguida, para Clarissa pensando sobre a organização da festa. À medida que o delineamento de cada história vai sendo feito, o paralelismo entre essas histórias acentua-se cada vez mais. O paralelismo identificado desde os primeiros momentos de As Horas é resultado de um ponto de vista já previsto no roteiro que, apesar de ter sido escrito por David Hare, teve a contribuição do diretor Stephen Daldry e do próprio autor do romance de partida, Michael Cunningham. Segundo Hare, a idéia de manter as histórias paralelas foi um ponto central do filme. Conforme ele próprio afirma: The central, haunting problem of the adaptation was, of course, to keep the three stories equally compelling. Nothing could be more disastrous to the impact of the film than for the audience to end up regretting the time they 96 Virginia: Leonard, creio que tenho a primeira sentença. Leonard: Trabalhe, então. Mas precisa comer. 194 spent with one set of characters, and wishing they had spent more with another (HARE, 2002, p.XI).97 Observamos, nessa fala do roteirista, a intenção de manter o equilíbrio nas três histórias. Esse é um principio básico da construção da narrativa do filme. Um outro efeito desse paralelismo das histórias é a ligação dos enredos entre o universo diegético da narrativa fílmica e o universo diegético, criado na feitura do romance pela personagem Virginia. As questões que a personagem Virginia levanta durante o seu processo de escrita são postas na tela por meio de monólogos, diálogos e elementos simbólicos que se ligam e, em alguns casos, confundem-se. Assim, há uma experimentação da construção de uma narrativa (livro), dentro de uma outra narrativa (filme). Vejamos alguns exemplos. A partir do momento em que a personagem Virginia é mostrada, envolvida no seu processo de criação, reflexões são feitas no sentido de evidenciar a construção de personagens e de situações. A personagem reflete sobre as possibilidades de desfecho do destino dos personagens do seu livro e o espectador vê situações equivalentes nos outros enredos do universo diegético do filme, como, por exemplo, a definição do enredo quando a personagem escritora menciona “a woman’s whole life in a single day. Just one day...”98 Em seguida, temos: “It’s on this day. This day of all days her fate becomes clear to her”.99 Em ambos os casos, o espectador se depara, por meio da reflexão de Virginia, com o universo narrativo que ela se propõe a criar. Trata-se ainda de um momento de mistério para o espectador, pois criam-se possibilidades de delineamento do texto da personagem escritora, estendendo também essas possibilidades para o delineamento do texto fílmico. 97 O problema central, perseguido na adaptação foi, naturalmente, manter as três histórias igualmente convincentes. Nada poderia ser mais desastroso para o impacto do filme do que para o público acabar lamentando o tempo passado com um grupo de personagens, enquanto gostaria de ter passado com um outro. 98 Virginia: a vida inteira de uma mulher num único dia. Apenas um dia. 99 Virginia: E neste dia... neste dia especificamente... o destino dela torna-se mais evidente. 195 Consolida-se, portanto, no filme um movimento metalingüístico por haver uma mediação entre o processo de criação do projeto de escrita da personagem e a leitura desse projeto. Uma outra situação importante que caracteriza esse movimento metalingüístico é a idéia de construção e resolução do destino da personagem principal do livro. A princípio, Virginia tem a intenção de matar Clarissa, como ela afirma: “She’ll die. She’s going to die. That’s what’s going to happen. Huh. That’s it. She’ll kill herself. She’ll kill herself over something. What doesn’t seem to matter”.100 Essa reflexão de Virginia acontece em 1923, mas outras situações ocorrem em outras épocas e têm desdobramentos relacionados a ela na construção da narrativa fílmica. Enquanto a autora pensa em matar a personagem principal, Laura, a leitora do romance, vinte oito anos depois, pensa em se suicidar. Em seguida, Virginia decide que um outro personagem deverá morrer: Virginia: someone has to die in order that the rest of us should value life more. It’s contrast. Leonard: And who will die? Tell me. Virginia: the poet will die. The visionary. [...]. All else is clear. The outline of the story is planned. Now one thing only. Mrs. Dalloway’s destiny must be resolved.101 Como podemos ver, Virginia muda de idéia e decide que o personagem escritor é que deverá morrer. No filme, é exatamente este personagem, ou seja, Richard, que está associado ao personagem Septimus, de Mrs. Dalloway, que se suicida, conforme sugere a personagem escritora do livro. Laura também muda de idéia, decide não cometer o suicídio e pensa num outro plano. Mais uma vez, reforça-se a idéia de paralelismo nas histórias do filme e a convergência entre elas dentro de um construto narrativo que já é a tradução da tradução de outro texto. 100 Virginia: Ela vai morrer. Ela vai morrer. É o que vai acontecer! Isso mesmo. Ela vai se matar. Ela vai se matar. Sem uma razão importante. 101 Virginia: Alguém tem que morrer... Para que o resto de nós tenha uma vida mais significativa. É um contraste. Leonard: E quem vai morrer? Conte-me. Virginia: O poeta vai morrer. O visionário (...) Está tudo claro. A história está montada. Só falta uma coisa. O destino da Sra. Dalloway deve ser resolvido. 196 Diante desse quadro, o espectador passa, então, a ser um “leitor” mais atento pelo fato de presenciar na tela não somente um enredo, sob o ponto de vista de um narrador (a câmera), como são normalmente estruturados os filmes de uma forma geral, mas passa a presenciar pontos de vistas diferentes, devido à reação e tomada de atitude por parte dos personagens, dentro do universo fílmico. Uma enuncia o seu processo de criação e a outra consolida esse processo por meio da leitura e a sua reação diante dessa criação. Como resultado, temos uma conexão de vozes no universo diegético da narrativa que se reportam a um discurso do próprio processo de criação. Embora trate-se de uma reescritura de um texto com significação própria, o filme tem a preocupação em enfatizar questões bastante recorrentes no romance de partida. Clarissa, por sua vez, também insere-se nessa discussão. A personagem confundese com a própria personagem do livro escrito por Richard, já que apresenta traços particulares dela. O fato fica evidente na sua conversa com Barbara, a florista, no momento em que Clarissa está comprando flores: Barbara: I actually tried to read Richard’s novel. Clarissa: you did? Oh, I know it’s not easy I know. It did take him Ten years to write. Barbara: Maybe it just takes another ten to read. It’s you isn’t it? Clarissa: what is? Barbara: In the novel, isn’t it meant to be you? Clarissa: Oh, I see. Yeah Sort of. I mean, in a way. You know, Richard’s a writer. That’s what he is. He uses things which actually happen. Barbara: Yeah. Clarissa: And years ago, he and I were students. That’s true. But, you know, then he changes things. Barbara: Oh, sure Clarissa: I don’t mean in a bad way. It’s more like... He makes them his own.102 102 Barbara: Tentei ler o romance de Richard. Clarissa: É mesmo? Não é fácil, eu sei. Eu sei. Ele levou 10 anos para escrever. Barbara: E talvez se leve 10 anos para ler. É você, não é? Clarissa: o quê? Barbara: No romance. É para ver você? Clarissa: entendi. É mais ou menos. De certa forma. Richard é escritor. Essa é a profissão dele. Ele usa elementos da vida real. Há anos nós dois fomos estudantes. É verdade. Mas ele muda as coisas, claro. Não digo no mau sentido. É como se ele interpretasse do jeito dele. 197 Por meio desse diálogo, podemos perceber mais uma vez a questão sobre o processo de escrita numa outra perspectiva. Enquanto Virginia, ela mesma, como autora, discute e interfere no seu projeto de escrita, nesse momento, é uma leitora de um romance e uma personagem do filme, que se confunde com a personagem desse romance, que discutem o projeto de um outro autor, Richard. As falas deixam clara a natureza complexa da obra e a sua elaboração particular. Esses indícios se evidenciam quando Barbara menciona que tentou ler o romance, quando Clarissa menciona que o autor levou dez anos para escrever e quando a leitora diz que “talvez se leve dez anos para ler.” A situação em questão estabelece uma relação indicial e icônica entre quatro narrativas: Mrs. Dalloway, o romance As Horas, o romance de Richard e o próprio filme As Horas, pois todas elas estão interligadas por um mesmo processo de construção particular que desafia padrões da narrativa tradicional. Um outro momento bastante esclarecedor dessa relação acontece por ocasião da conversa entre Louis e Clarissa. Louis também insiste que a personagem do livro é a própria Clarissa e reforça a dificuldade de se apreender o universo narrado no romance: Louis: Isn’t it meant to be fiction? Even had you living on the 10th street. Clarissa: It isn’t me. Louis: It isn’t? Clarissa: You know how Richard is. It’s a fantasy. Louis: A whole chapter on should she buy some nail polish? And then, guess what? After 50 pages, she doesn’t. The whole thing seems to go on for eternity. Nothing happens and wham! For no reason, she kills herself.103 A partir desse diálogo, em que os movimentos metalingüísticos são ratificados, podemos vislumbrar, na construção da narrativa fílmica, a discussão sobre realidade e ficção. Como mencionamos anteriormente, Barbara reconhece Clarissa como personagem do romance de Richard. Clarissa também se reconhece como tal, mas levanta pontos que 103 Louis: Não era para ser ficção? Ele até te fez morar na 10th st. Clarissa: Não sou eu. Louis: Não é? Clarissa: Sabe como Richard é. É só fantasia. Louis: Um capítulo inteiro sobre se ela deve comprar esmalte? E adivinha? Depois de 50 páginas, ela não compra. A história parece durar uma eternidade. Nada acontece e bum! Sem motivo algum, ela se mata. 198 delimitam bem o papel ficcional que ela assume na obra. A personagem afirma que é natural da profissão do escritor usar elementos da vida real. No entanto, reconhece que ele é capaz de dar uma interpretação particular para esses elementos. Podemos interpretar a fala de Clarissa como uma referência direta à construção narrativa do romance As Horas enquanto processo. Essa idéia pode ser vista no filme não somente do ponto de vista da escrita, mas também na perspectiva da própria vida e ação dos personagens. Explica-se: é como se todas as suas atitudes estivessem ligadas a um “fazer” constante, uma busca por uma obra perfeita, como se a própria idéia de viver fosse uma atividade artística. Virginia pensa numa frase perfeita para iniciar seu romance, Laura tenta fazer um bolo perfeito de aniversário e Clarissa anseia por uma grande recepção à altura da ocasião. Os três eventos representam para as personagens algo extraordinário e funcionam como uma obra de arte, como podemos ver nas imagens abaixo: Figura 12 – Atividades individuais das personagens Se por um lado, elas dispensam dedicação a essas atividades, por outro, elas parecem ter uma sensação de fracasso por não atingirem a perfeição naquilo a que se propõem. Cunningham, ao ser indagado por Elizabeth Farnsworth, por ocasião de uma entrevista à Online NewsHour, sobre essa questão, admite a sua intenção de lidar com esse aspecto como parte da narrativa. Para o autor: Well, it’s part – it’s part of the creative story – it’s part of the artist’s story. And I do think of each of these women in her way, as an artist. I know, speaking for myself, no matter what I’m able to do, no matter what book comes out and ends up on paper, I always had something bigger and grander in my head. I was always thinking this time I’m going to write the book of 199 love. I was thinking this time I’m going to write the book to end all books. Without delusions of grandeur, I don’t think you could do this at all. And yet with delusions of grandeur, there is the inevitable moment when you look at what you have done and see, oh, it’s just a book (CUNNINGHAM apud FARNSWORTH, 1999, p. 3).104 O autor, como podemos ver, aponta caminhos de conflitos existentes no ato de escrever. Apresenta a preocupação com algo maior que o artista normalmente tem ao criar sua obra. Mas também apresenta a “quase” impossibilidade de se chegar a esse algo maior. A narrativa fílmica, por sua vez, contempla essa discussão, conforme as situações acima mencionadas. 4.2.2 Continuidade de elementos imagéticos (montagem) A consolidação desse princípio dá-se, principalmente, por meio de dois fatores: o uso de cortes abruptos constantes de imagens que transferem a narrativa para uma época ou espaço específico de cada personagem e a continuidade de elementos imagéticos que fazem uma relação direta entre as imagens, deixando um indício claro da ligação entre as histórias. Poderíamos citar, como exemplo do uso dessa técnica, as imagens logo no início do filme quando acontece a apresentação dos personagens. Percebemos uma alternância de imagens dos rostos das personagens que, por meio dos cortes constantes, são postos na tela como personagens que estão entrecruzadas de alguma forma. Podemos ilustrar essa questão na seqüência de imagens em que Virginia está diante do espelho, baixa a cabeça para lavar o rosto e, de repente, quem levanta a cabeça é Clarissa: 104 Bom, é parte, parte da história criativa – é parte da história do artista. E eu, realmente, penso sobre cada uma dessas mulheres, à sua maneira, como um artista. Eu sei, falando por mim, não importa o que sou capaz de fazer, não importa como o livro surja e acabe no papel, eu sempre tive algo maior e magnífico na minha cabeça. Eu estava sempre pensando dessa vez eu vou escrever o livro de amor. Eu estava pensando dessa vez eu vou escrever o livro para acabar com todos. Sem ilusão de grandiosidade, eu não acho que se possa fazer isso. E ainda com ilusão de grandiosidade, há o momento inevitável quando olhamos para o que fizemos e vem, ah, é apenas um livro. 200 Figura 13 – Ligação entre as personagens Essa seqüência de imagens, logo no início do filme, é bastante representativa da forma de construção da narrativa. Como vimos acima, havia um propósito claro, por parte dos realizadores, de manter um equilíbrio entre as histórias. A técnica de entrecruzamento de imagens, que aparece desde o início do filme, é uma estratégia de tradução importante que tem efeito direto na condução da narrativa. Ela estabelece a ligação entre os personagens, os tempos e os espaços, contribuindo para a construção de leitura do texto fílmico pelo espectador. Uma outra situação que reforça a presença dessa estratégia de construção narrativa pode ser observada no momento em que Clarissa é mostrada, pensando sobre os preparativos da festa. De um corte da imagem dela, passamos para a imagem de Virginia falando e escrevendo a primeira frase do romance. Logo em seguida, aparece Laura lendo essa primeira frase e, novamente, Clarissa é mostrada, anunciando a Sally que irá comprar flores: Virginia: Mrs. Dalloway said she would buy the flowers herself. Laura: Mrs. Dalloway said she would buy the flowers herself. Clarissa: Sally, I think I’ll buy the flowers myself.105 A partir desse momento, há um novo desdobramento na narrativa, que é presença das três personagens, envolvidas em seus projetos individuais: uma escritora que começa a escrever seu livro e pensa sobre o processo de criação, uma dona de casa que lê o romance e 105 Virginia: Sra. Dalloway diz.... “vou comprar as flores... eu mesma.” Laura: Sra. Dalloway diz... “vou comprar as flores... eu mesma.” Clarissa: Sally, eu mesma vou comprar as flores. 201 busca abstrair elementos de recusa de uma vida “normal” e uma editora bem sucedida que prepara uma festa e age como uma das personagens criadas pela escritora. Podemos ver claramente que a história se inicia como um mistério e aos poucos vai sendo montada “à medida que os personagens vão sendo introduzidos e as situações vão se encaixando. Isso torna o filme de Stephen Daldry um texto cinematográfico de montagem particular, cujos indícios são apenas sinalizados, e a leitura é construída a partir de um olhar mais atento por parte do espectador. Assim, a montagem não pode ser ainda considerada tão fluente para um espectador das narrativas de espetáculo, ou seja, aquelas estruturadas sob a perspectiva hollywoodiana, já que se trata de um construto narrativo de uma certa complexidade, conforme reforçam alguns críticos do filme: Matt Wolf (2002), Robert Roten (2003), Vallana Hill (2003) e Luiz Gallego (2003). A narrativa do filme As Horas, assim como o romance Mrs. Dalloway, exige do espectador uma nova postura de leitura, pois, como reforçamos acima, os enredos vão sendo aos poucos desenvolvidos com ritmo narrativo lento. Se o colocarmos em oposição à narrativa de As Horas, de Cunningham, podemos perceber a utilização da mesma técnica de montagem paralela, mas com efeitos um pouco diferentes. A narrativa do romance, por exemplo, tende a ser mais fluente, isto é, a leitura do romance torna-se mais fácil do que a do filme. Um dos aspectos importantes que podem justificar a diferença é o fato de o livro está segmentado em capítulos, nomeados pelo nome de cada personagem, facilitando a junção das histórias. A construção temporal no filme, assim como a narrativa em si, apresenta traços particulares, graças ao uso do recurso de montagem paralela, tecnicamente elaborado e com um propósito claro de deixar rastros do texto de Michael Cunningham para o espectador. A narrativa do filme também se passa em três tempos que contemplam os três enredos paralelos da narrativa: em Los Angeles, em 1951; em Richmond, na Inglaterra, em 1923; e em Nova 202 York, em 2001, merecendo destaque o tempo de Virginia Woolf que é estendido para o futuro por meio de um flashforward com a cena do suicídio da personagem no ano de 1941. Esses três tempos vão se delineando, ao longo da narrativa, e convergem para um encontro no final. Vale ressaltar a importância da cena do suicídio de Woolf para o contexto narrativo. Ela, Woolf, representa o início e o fim de um ciclo como um dos temas recorrentes da obra, que é a tomada de atitude. As três histórias ocorrem em datas diferentes, mas estão entrecruzadas tanto pelas discussões, que cercam as personagens, quanto pela influência de uma obra literária. Há, a priori, uma delimitação clara desses tempos por meio de cenários de época, figurino, comportamentos e fotografia. As três histórias vão sendo montadas para funcionar simultaneamente. Os enredos funcionam como se fizessem parte de um processo, não necessariamente linear, que envolve a produção, a recepção e a própria vivência de um universo ficcional criado por uma personagem que faz referência a uma escritora que de fato existiu. A referência ao ano de 1941 remete a um fato real, que foi o suicídio da escritora Virginia Woolf. Embora o filme não tenha a pretensão de representar o real, já que é essencialmente uma obra de ficção, os rastros dessa realidade são mostrados de forma bastante convincente para o espectador que conhece dados biográficos de Woolf e de forma bastante clara para os que nada sabem sobre esses dados. É uma parte muito importante na montagem geral do texto porque traz uma referência direta da autora que escreveu o romance que o filme reescreve. Um outro ponto importante que norteia toda a construção temporal do filme é a reflexão sobre o processo de escrita. Isso acontece, principalmente, por dois motivos. Primeiro, pelo fato de a transição entre ficção e realidade (entre os personagens do romance e da própria narrativa do filme) ser constante, já que a dinâmica se apresenta da seguinte forma: 203 Virginia cria, Laura lê e Clarissa age. Segundo, pelo fato de essa interferência ter uma ação direta no desfecho narrativo do filme, pois, no final, as histórias, que ao longo do filme são paralelas, se encontram. Voltemos à cena do suicídio porque ela ilustra bem essa questão. No início, a cena é desenvolvida em diferentes estágios, pois há a ação da personagem e a sua reflexão sobre essa ação por meio da escrita da carta e da justificativa pelo ato, como vimos anteriormente. A cena funciona para o espectador muito mais como um dado biográfico da autora Virginia Woolf. Entretanto, no final, após o desenvolvimento narrativo, ela assume uma função muito mais ligada ao universo diegético do filme. A cena do suicídio é retomada e, com narração em voice-over, o pensamento da personagem é mostrado enquanto a entrada dela no rio se repete. Vejamos: Virginia: Dear, Leonard... To look life in the face. Always to look life in the face. And to know it what it is. At least to know it, to love it what it is. And then... To put it away. Leonard... Always the years between us. Always the years... Always... The love. Always... The hours.106 Essa cena final é a mesma do início. Porém o texto da carta é diferente, já que se trata de uma criação por parte do roteirista David Hare. O seu conteúdo não traz mais dados biográficos sobre Virginia Woolf, mas está muito mais ligado ao desenvolvimento narrativo do filme. O espectador, nesse momento, entende a escolha da personagem de não continuar viva como uma forma de reconciliação com ela mesma e, por ter acompanhado a história da personagem ao longo da narrativa, constrói significado e compreende o efeito que a montagem exerce sobre a maneira como a história é contada. Num outro momento bem mais adiante, mas também ligado pelo mesmo fio condutor narrativo, encontra-se Clarissa Vaughan, na Nova York contemporânea, em 2001. O cenário nesse momento é uma grande metrópole que se diferencia em tudo dos espaços 106 Virginia: Querido, Leonard... É preciso encarar a vida... Encarar a vida sempre. E saber... Como ela realmente é. Pelo menos... Conhecer a vida. Para amá-la conforme Ela se apresenta para você. E depois... Você a descarta. Leonard... Sempre haverá os anos... Sempre... O amor... Sempre... As horas. 204 anteriores. A personagem Virginia está situada no subúrbio de Londres, numa casa de campo, juntamente com o seu esposo, na época em que produz um romance. Laura está situada num subúrbio de Los Angeles, com o esposo e o filho, representando o símbolo da família “estruturada” nos anos 50. Clarissa, ao contrário das outras duas personagens, está situada num contexto de quebra de paradigmas, em que padrões de comportamento são revistos, como reforça Cunningham (ROCHA, 2002, p.49). A família de Clarissa, por exemplo, é constituída por ela, sua filha Julia e sua amante Sally. Ou seja, apresenta um outro formato que desestabiliza os valores sociais conservadores preestabelecidos. Insistimos na idéia de que a ligação entre três tempos paralelos na narrativa dá-se por meio do uso da montagem em que a caracterização de cada período é reforçada pela fotografia e pelo cenário. A música também tem um papel importante nessa construção. Ela possui corpo próprio e liga os tempos. Philip Glass, ao tratar da função da música no filme, afirma: Percebi que a música deveria servir como uma ponte de um lugar para outro. O filme oferece uma função especial à música, como mostrar diferentes pontos de vista. Lembre-se de que, nos primeiros minutos do filme, não há diálogo apenas voz em off de Nicole Kidman. Isso personaliza a música já no início da história. Aliás, em determinados momentos, (o diretor) Stephen Daldry decidiu modular a música no mesmo tom de voz dos personagens, não um tom abaixo como normalmente acontece (GLASS apud BRASIL, 2003, p.3). Percebemos a natureza de independência da música para a construção de As Horas. Ela se impõe como elemento narrativo ao criar tons e atmosfera no desenvolvimento do filme. Assume, portanto, um papel dramático por intervir como “contraponto psicológico”, como define Martin (1990, p.1215), ao se apresentar para o espectador como elemento de ligação para a compreensão dos três enredos paralelos. Alves (2004, p.9), ao refletir sobre o uso particular da música no filme de Daldry, considera que ela pode ser associada ao leito de um rio, ou seja, ao fluxo da consciência. 205 Assim, a narrativa apresenta uma estrutura que tradicionalmente não seria a mais comum, porque apesar de ter uma certa “linearidade”, a narrativa é construída pelo espectador por meio de uma construção de leitura que tem como base um diálogo de tensão constante entre as situações, vividas pelas personagens, nos diferentes tempos. Em outras palavras, a compreensão completa da narrativa só acontece por meio da junção e da ligação das “micronarrativas”, que são montadas também, de certa forma, pelo espectador. Para manter essa “linearidade”, um recurso bastante utilizado pelo diretor foi o uso do princípio da continuidade entre imagens, o que facilita para o espectador fazer a relação entre as histórias e montar o enredo. Uma situação que ilustra bem isso é a imagem das flores como elementos de transição entre os três contextos no início da narrativa. Vejamos os seguintes planos: Figura 14 – Flores como elemento de transição Podemos observar, nesses planos, o papel desse recurso na transição temporal da narrativa. Clarissa olha o jarro de flores e o pega. Imediatamente, um corte transfere a imagem de Clarissa para a imagem de Dan, conduzindo o jarro, e um outro corte transfere a imagem de Dan para a imagem de Nelly, arrumando as flores na casa de Virginia. Nos três casos, os jarros de flores são mostrados em close-up para enfatizar a sua importância na relação entre os contextos. 206 Conforme argumentamos acima, as histórias se encontram no final da narrativa, tendo o romance Mrs. Dalloway como fio condutor. A princípio, temos três personagens, ocupando diferentes posições nas instâncias do processo de criação em épocas distintas. Cada enredo situa o espectador num contexto específico de produção. Virginia produz um romance, contando a história de uma mulher de vida trivial que vai dar uma festa que converge para a personagem Clarissa Vaughan que também irá dar uma festa. A festa de Clarissa irá comemorar o recebimento de um prêmio literário de grande prestígio, por parte de Richard, o filho de Laura, a leitora do romance. O personagem Richard, assim como Clarissa, representa um ícone da sociedade contemporânea. É um autor com estilo particular de escrita, que, apesar de ter recebido um prêmio máximo pela sua atuação, não se sente contemplado com o seu sucesso. A presença de Richard torna-se emblemática para o desenvolvimento narrativo desde o seu início. O personagem é mostrado ainda criança no dia do aniversário de seu pai, Dan, e a partir de então, o espectador entra em contato com indícios de sua personalidade. Na narrativa em Los Angeles, Richard apresenta-se como uma criança inquiridora e muito atenta a todas as questões em sua volta. Na narrativa em Nova York, ele é mostrado como um escritor soropositivo em estágio final, que triunfou na carreira profissional, mas que apenas tenta sobreviver mais um dia por conta da doença. Por meio desse paralelismo entre momentos diferentes na vida de Richard, duas questões importantes se configuram em relação ao desenvolvimento do tempo na narrativa. Uma é a história de sua família que faz parte do segundo enredo do filme. A outra é a sua própria história quando jovem em Wellfleet. No primeiro caso, temos como desdobramento a tragédia familiar de que foi vítima: a mãe o abandonou, quando ainda criança, o pai morreu de câncer e a irmã também morreu. Esses fatos são revelados apenas após a sua morte pela própria Laura. Como podemos perceber na sua conversa com Clarissa: 207 Laura: It’s a terrible thing, Ms. Vaughan, to outline your whole family. Clarissa: Richard’s father died? Laura: Yes, he died of cancer quite young. And Richard’s sister is dead. Obviously, you feel unworthy. It gives you feelings of unworthiness. You survive and they don’t.107 No segundo caso, temos a sua tragédia pessoal, resultante de uma escolha quando ainda era jovem num verão em Wellfleet. Ou seja, Richard, apesar de ter se relacionado naquele verão com Clarissa, foi com Louis que decidiu viver. Essas informações são ressaltadas por conta da visita inesperada de Louis a Clarissa no dia da festa, momento em que ela se encontra fragilizada e tem uma crise nervosa. Vejamos: Clarissa: And now you walk in. To see you walk in... Because I never see you. Look at you. Anyway... It doesn’t matter. It was you he stayed with and lived with. I had one Summer.108 Esses fatos são contados por meio dos próprios personagens e das situações na narrativa. Daldry, nos comentários dos extras do filme (2002), comenta que chegou a ser feita uma cena de flashback dessa situação, em Wellfleet, mas foi retirada na edição. Como resultado, o filme toma uma outra postura em relação ao que normalmente se espera nesse tipo de circunstância no cinema. A técnica do flashback praticamente não foi usada no filme, salvo no momento em que Richard se lembra do dia em que sua mãe saiu e o deixou com uma vizinha. Mesmo assim, essa situação não é posta como informação nova para o espectador, mas muito mais como elemento de paralelismo entre os enredos, prevalecendo, assim, os diálogos. Se no filme Sra. Dalloway a estruturação dos efeitos narrativos se deu pela apresentação das conjecturas mentais, em alguns casos por meio da técnica do flashback, no filme As Horas, a estratégia de tradução foi outra. As ações dramáticas, fruto das tomadas de atitudes dos atores em cena e até os diálogos longos, que permeiam toda a narrativa, dão 107 Laura: É terrível, Sra. Vaughn, sobreviver a toda a família. Clarissa: O pai de Richard morreu? Laura: Ele morreu de câncer ainda jovem. E a irmã de Richard também. E, é claro, nos sentimos indignos. É uma sensação de não merecimento. O fato de sobreviver e eles não. 108 Clarissa: E aí você chega. Ver você chegar... Afinal eu nunca te vejo. Olhe só para você. Enfim... Não importa. Foi com você que ele ficou, com você que ele viveu. Eu tive um verão. 208 subsídios para se captar toda a problemática de se lidar com o grande tema das horas (tempo) no filme. Quer dizer, em vez de lidar diretamente com os fluxos de consciências e mostrar os processos mentais para o espectador, o diretor criou acontecimentos para expressar o que se passa nas mentes. Como ilustração dessa idéia, temos o caso das personagens que quebram ovos e separam a clara da gema, que acordam após os toques dos despertadores, que escrevem, lêem e vivem as situações do próprio livro, como as que fazem o balanço nostálgico de um passado. Ou seja, forma-se na narrativa uma rede de fatos que interliga os diferentes tempos e histórias. Vale ressaltar que todos os temas em questão são referências do texto de partida. No entanto, o desenvolvimento deles assume conotações particulares que dizem respeito aos propósitos de desenvolvimento da narrativa fílmica. Um exemplo disso seria a situação, acima descrita, da crise nervosa de Clarissa no filme. No romance, o personagem acometido pela crise é Louis e Clarissa é quem o consola. No filme, esse papel se inverte, e é Louis que a consola. Reforça-se, dessa forma, na narrativa fílmica, a ênfase em contar a história de três mulheres. Um outro ponto importante que estabelece paralelo entre as épocas no filme é a devastação, oriunda de uma crise que atinge as sociedades de cada período. A primeira guerra mundial, por exemplo, faz parte do contexto de pavor e medo, cujos reflexos aparecem por meio da neurose, estampada nos personagens que Virginia Woolf cria na Inglaterra dos anos vinte. Em As Horas, Stephen Daldry fala da devastação que atinge a comunidade homossexual,109 ou seja, a Aids. O tema é discutido por meio do personagem Richard. A primeira situação é pouco explorada no filme. Apenas os leitores do romance de partida são 109 Vale ressaltar que o fenômeno da Aids não atinge somente a comunidade homossexual como foi, por muito tempo, difundido pelos discursos da mídia e de instituições conservadoras. Trata-se, portanto, de um problema que atinge também a sociedade heterossexual como mostram dados do Ministério da Saúde. Se referimo-nos a esta epidemia como ligada a um grupo específico é porque tanto no romance, quanto no filme As Horas os personagens são assim descritos. 209 capazes de perceberem os rastros indiciais dessa questão. A segunda, ao contrário, é muito mais trabalhada à medida que o drama do personagem é mostrado na tela e é parte integrante da construção do enredo do filme. Essa foi uma questão pensada pelo diretor, conforme afirma o roteirista David Hare: Stephen was determined that we should achieve a film which not only sought to avoid the stereotyping of its characters’ sexuality, but which also found an honest and original way of portraying the disease (HARE, 2002, p.X).110 Percebemos, por meio dessa fala de Hare, uma intenção clara de manter o paralelismo entre esses temas, respeitando as dimensões de cada época. O drama da Aids é discutido, mas o que parece ficar sobre Richard para o espectador não é o seu sofrimento pelo fato de ele ser soropositivo, mas suas angústias ao questionar a sua própria existência. Nesse sentido, o filme procura não reforçar os estereótipos comumente presentes nos filmes que lidam com o tema. Ao contrário, a discussão sobre a Aids funciona apenas como mais um ponto para o desenvolvimento dos enredos. Isso contribui para a estruturação e sustentação da unidade temporal mantida ao longo da narrativa, que se adapta convincentemente de acordo com cada período. 4.2.3 Silêncios e expressões de atores/atrizes Um outro ponto importante que caracteriza o texto de Daldry são os silêncios e a expressão dos atores ao longo da narrativa. Isso se consolida pela constante apresentação dos personagens, que, geralmente em close-up, mostram suas reações diretas diante das situações. Esse fato fica bem evidente logo nos primeiros momentos do filme em que a realidade de 110 Stephen estava determinado de que deveríamos chegar a um filme que não somente procurasse evitar estereotipar a sexualidade de seus personagens, mas que também encontrasse uma forma original e honesta de retratar a doença. 210 cada personagem é posta como leitmotiv no desenvolvimento dos enredos paralelos. Vejamos algumas situações em que se dá esse processo. Logo no início da narrativa, no momento em que as personagens acordam, a forma como elas agem é reveladora de comportamentos. Virginia, por exemplo, ao descer a escada e conversar com Leonard, revela a sua apatia em relação às recomendações médicas, pois se recusa a tomar o café da manhã com o esposo. Isso representa, de uma alguma forma, a sua reação de rebeldia e de pouco interesse pelo cumprimento de prescrições. Clarissa pensa sobre os preparativos da festa e esboça reação de preocupação e excitação com essa tarefa. Laura, por sua vez, apresenta-se como uma dona de casa, acordando no dia do aniversário do esposo, mas demonstra claramente o seu tédio por aquele estilo de vida. Vejamos as seguintes imagens: Figura 15 – Atitudes reveladoras de comportamentos Podemos observar que, nos três casos, o silêncio das personagens é mais importante para a condução da narrativa do que as falas. A interpretação das atrizes é fundamental para dar ao espectador a atmosfera do fio condutor narrativo. Nessas situações, os momentos em que elas se calam são os que mais têm a dizer para o espectador. Poderíamos vislumbrar essa estratégia discursiva no filme como tradução dos monólogos interiores dos romances de partida. Entretanto, ressalva-se a essa conjectura o aspecto puramente temático, ou seja, as cenas em questão são bastante reveladoras da intimidade das personagens como acontece nos romances Mrs. Dalloway e As Horas. No entanto, tratando-se do efeito, ela 211 assume na tela um caráter mais dramático, com um “arranjo linear” mais próprio do meio cinematográfico. Uma outra situação em que o silêncio é muito importante é quando a personagem Laura está no quarto de hotel. Ela quer, a priori, apenas um lugar sossegado para ler e decidir se deve morrer ou continuar viva. Dois rastros indiciais importantes marcam esse momento: a sua retirada do sapato ao deitar-se na cama e a sua imersão na água, logo após ler o romance e adormecer. Em ambos os casos, as imagens funcionam como elementos metafóricos que denunciam a sua decisão. O primeiro caso pode ser lido como um momento de liberdade em que ela, naquele instante, está consigo mesma, praticando uma atividade que tanto gosta, a leitura, e está tentando fazer uma escolha, algo que sempre lhe fora negado. O segundo pode ser lido como um momento de percepção quase que epifânico, em que a personagem reconcilia-se consigo mesma e opta por viver. Esse momento representa a manifestação de uma técnica importante, empregada na narrativa moderna que, assim como o fluxo da consciência, foi, primeiramente, explorada por James Joyce, e, em seguida, utilizada por Virginia Woolf, a epifania. Nessa técnica, por meio de um momento extremo de introspecção, os personagens atingem um estágio de auto-revelação em que suas concepções sobre a realidade e sobre a própria existência mudam. A relação entre Woolf e Joyce não está só na semelhança de técnica de escrita como romancistas modernos. A autora leu Joyce e se posicionou sobre a sua escrita. Até se cogitou a possiblidade de publicar Ulysses, quando ainda estava inacabado, na editora Horgarth Press, o que não aconteceu por se tratar ainda de uma editora pequena. Anne Bell (1981, p.68) aponta uma outra razão pela qual os Woolfs não publicaram a obra de Joyce. Segundo a autora, Ulysses poderia representar risco de perseguição à editora por crime, já que era classificado como obsceno. No dia 20 de setembro de 1920, ainda no início da leitura da obra, a própria Woolf menciona Ulysses em seu diário e o reconhece como romance inovador: 212 [...] Joyce gives internals. His novel Ulysses, presents the life of man in 16 incidents, all taking place (I think) in one day. This, so far as he has seen it, is extremely brilliant, he says. Perhaps we shall try to publish it (WOOLF apud BELL, 1981, p.69).111 No dia seguinte, a autora admite uma relação de Ulysses com o seu estilo de escrita: “(...) – but I reflected how what I’m doing is probably being better done by Mr. Joyce” (WOOLF apud BELL, 1981, p.69).112 Entretanto, dois anos depois, Woolf se posicionou sobre o projeto narrativo de Joyce e não poupou críticas: I finished Ulysses, & think a mis-fire. Genius it has I think; but of the inferior water. The book is diffuse. It is brackish. It is pretentious. It is underbred, not only in the obvious sense, but in the literary sense (WOOLF apud BELL, 1981, p.199).113 Apesar dessas considerações por parte de Woolf, seus romances, ao serem enquadrados pelos críticos como modernos, apresentam, em alguma medida, características que remetem a Joyce (SILVA, 1988; HUMPHREY, 1972; BARBOSA, 1993). O caso da descrição de momentos introspectivos dos personagens, por exemplo, seria uma delas. Poderíamos, ainda, associar este momento de introspecção (ou de silêncio profundo) de Laura Brown ao de Clarissa Dalloway, tanto na narrativa de Woolf quanto na narrativa de Marleen Gorris. No caso de Sra. Dalloway, a introspecção funciona como elemento dramático nos momentos finais da narrativa. No romance, após saber que um homem jovem, vítima de neurose de guerra, cometeu suicídio, Clarissa se afasta dos convidados e isolada reflete sobre a atitude de Septimus e sobre a sua própria existência: The young man had killed himself; but she did not pity him; with the clock striking the hour, one, two, three, she did not pity him, withall things going on. There! The old lady had put out her light! The whole house was dark now with this going on, she repeated, and the words came to her, Fear no more the heat of the sun. She must go back to them. But what an extraordinary night! She felt somehow very like him – the young man who had killed himself. She felt glad that he had done it; thrown it away while they went on living. The clock was striking. The leaden circles dissolved in 111 Joyce dá os internos. O seu romance Ulysses apresenta a vida de um homem em 16 incidentes, todos acontecendo (eu acho) em um dia. Este, até agora como ele tem visto, é extremamente brilhante, diz ele. Talvez, tentaremos publicá-lo. 112 Mas eu refleti como o que eu estou fazendo esteja provavelmente sendo feito melhor pelo Sr. Joyce. 113 Eu terminei Ulysses & acho um fracasso. Gênio ele tem eu acho. Mas de menor importância. O livro é difuso. É lacônico. É pretensioso. É pouco criativo não somente no sentido óbvio, mas no sentido literário. 213 the air. But she must go back. She must assemble. She must find Sally and Peter. And she came in from the little room (WOOLF, 1976, p.198-199).114 Essa situação acontece no filme da seguinte forma. Clarissa recebe o Sr. e a Sra. Bradshaw, que dão a notícia do suicídio de Septimus e valem-se de tal argumento para justificar o atraso na chegada à festa. No meio de muita alegria, o tema da morte é introduzido pelo médico e a sua esposa, e esse fato afeta Clarissa profundamente. Com narração em voiceover, os pensamentos da personagem sobre os efeitos desse fato são mostrados para o espectador: Clarissa: She looks like a sea-lion barking at me! Stop it! Stop it! Don’t talk about death in the middle of my party. I don’t like you, I’ve never liked to! You are obscurely evil! A young man came to you on the advance insanity and you forced his soul, made his life intolerable, and he killed himself.115 Logo em seguida, Clarissa isola-se dos convidados e caminha até uma sacada, de onde olha, com uma certa fascinação, para as grades pontiagudas de um portão logo embaixo. Por um instante, assim como Laura, o espectador pensa que ela também chegará a se suicidar, diante de todos os questionamentos sobre a percepção da fragilidade e do vazio de sua existência e, assim, se posiciona: Clarissa: He threw himself out of the window. And then, impaled himself on the railings... But flashed the ground, and through him, blundering, bruising went the rusty spikes. There he lay with a thud thud, thud in his brain and, then, a sufocation of blackness. Why? Why? Did he do it? Why did the Bradshaw talk about this in my party? He’s torn all away, his life. Just like that! I once threw a chilling into the Serpentine, but he’s torn his life away!116 114 O jovem homem se havia suicidado; mas não podia lamentá-lo; com o relógio a bater a hora, uma, duas, três, não podia lamentá-lo, com tudo aquilo indo para diante. Pronto! A velha senhora apagara a luz! Toda a casa agora às escuras, com tudo indo para diante, e outra vez lhe ocorrera as palavras: “Não mais temas o calor do sol...” Devia ir para junto deles. Mas que noite extraordinária! Sentia-se de certo modo como ele... o jovem que se havia suicidado. Sentia-se contente de que ele tivesse feito aquilo; alijado a vida, enquanto ela continuava a viver. O relógio batia. Os pesados círculos se dissolviam no ar. Mas tinha de voltar para junto deles. Tinha de reuní-los. Tinha de encontrar-se com Sally e Peter. E deixou a saleta (QUINTANA, 1980, p.178-179). 115 Clarissa: Ela parece um leão-marinho urrando! Parem! Parem! Não falem de morte durante a minha festa! Não gosto de vocês, nunca gostei! Você são malignos! Um jovem procurou você à beira da loucura... Você pressionou a alma dele, tornou a vida dele intolerável... E ele se matou. 116 Clarissa: Ele se jogou pela janela... e ficou empalado na cerca. O chão subiu, e, através dele, Rasgando e machucando... As lanças da cerca penetraram, E ele ficou lá... Com um martelar surdo no cérebro... E, depois, uma escuridão sufocante! Por que ele fez isso? E por que os Bradshaw falaram disso na minha festa? Ele jogou tudo fora, a sua própria vida, sem pensar! Uma vez eu joguei uma moeda no rio... Mas ele jogou a sua própria vida fora! 214 A cena se destaca pelo tom dramático, proporcionado pela característica poética do discurso e pela presença de imagens repletas de símbolos. O monólogo interior de Clarissa, acima, apresenta fragmentos do romance, sugerindo uma passagem importante do texto de Woolf. A imagem da grade pontiaguda na tela é mostrada e funciona como índice do suicídio de Septimus e reforça o efeito que ele exerce no estado de mente de Clarrissa. A narrativa de Daldry apresenta, mais uma vez, um rastro indicial de uma situação vivida por outra personagem do romance, mesmo que em contexto diferente. O caso da presença da água no quarto do hotel está também ligado à idéia do suicídio, mas não de um outro personagem do romance, como no caso de Mrs. Dalloway, mas da própria autora, Virginia Woolf. A simbologia da água, nesse instante narrativo, desdobra-se em pelo menos três possibilidades interpretativas. Primeiro, ela pode estabelecer uma relação com o início do filme, representando a morte na cena do suicídio de Woolf. Segundo, pode assumir um papel de oposição, ou seja, uma nova possibilidade de vida e de liberdade para a personagem Laura. Finalmente, pode assumir um valor icônico e indicial na medida em que o objeto (a água) aproxima e une as personagens por meio de semelhança e contiguidade de idéias. Poderíamos citar a natureza da água como exemplo. Quer dizer, tanto a água do rio no qual Virginia Woolf se suicida quanto a que flui debaixo da cama de Laura é turva, cheia de plantas e está em movimento, representando, assim, o fluxo corrente das vidas das personagens e os próprios movimentos narrativos. Na visão de Alves (2004, p.12), este recurso representaria uma metáfora do fluxo da consciência, ou seja, o rio corrente da consciência pelo qual Virginia Woolf se deixou levar, unindo, dessa forma, sua vida e sua obra. A discussão em questão fez-nos perceber que os momentos individuais dos personagens, manifestados por meio do isolamento e dos silêncios, são tão reveladores quanto as falas, já que se configuram enquanto elementos condutores dos fatos narrativos. 215 Constituem-se, portanto, elementos denunciadores de comportamentos que aos poucos vão construindo os personagens e as “ações” da narrativa para o espectador. 4.2.4 Múltiplas perspectivas (o olhar do outro) As Horas apresenta uma certa complexidade na construção do ponto de vista narrativo. Assim como nos textos de partida, isto se dá pela multiplicidade de ponto de vista por meio da qual a narrativa é contada. Temos observado que a leitura da narrativa vai sendo construída aos poucos pelo espectador. A delimitação do tempo nos três espaços diegéticos, onde as personagens principais transitam, funciona como um narrador com olhar capaz de dar informações básicas para o espectador sobre as suas vidas. Logo no início da narrativa, a grande preocupação está na ambientação de cada personagem, deixando claro seu espaço, sua época e suas atitudes em relação à vida. Isso se manifesta pela presença dos planos que mostram o lugar, a época de cada uma das personagens e o cenário adaptado de cada lugar. A forma de contar as histórias em As Horas, além de ser feita pelas atitudes e enunciação própria de cada personagem, é também feita por meio da intervenção do olhar do “outro” sobre essas personagens. É como se esse olhar fosse também importante para o espectador montar a história. Vejamos algumas situações que ilustram isso. Virginia se sente extremamente incomodada pelas limitações impostas pelos médicos, devido a sua doença, e, principalmente, pela constante vigilância do esposo com relação a essas ordens. Uma cena representativa desse fato é o momento em que ela acorda, fala que irá escrever e não toma o café da manhã. Em vez disso, toma um pouco d’água. Essa atitude de Virginia é sintomática da sua subversão, tanto das ordens médicas quanto do seu próprio esposo, funcionando como um índice para o espectador da sua recusa a todo aquele 216 aparato que a cerca. Um outro momento que retrata isso é quando ela, sozinha, vai até a estação e tenta ir embora para Londres. Leonard tenta mostrar a sua preocupação em relação ao estado de saúde dela e reforça que o que ele faz é para o próprio bem da esposa. A personagem, por sua vez, tenta mostrar que ninguém mais do que ela é capaz de saber o que funcionaria para a sua cura. Podemos perceber que existem dois pontos de vista para uma mesma situação. O espectador vai construindo a sua leitura, percorrendo uma zona intermediária entre eles. Uma estratégia bastante usada pelo filme para mostrar esses diferentes pontos de vista das personagens é o uso constante da câmara subjetiva em que “o objeto e/ou situações em foco é o próprio olhar de um personagem da diegese”, como define Aumont (2003, p.279). Em muitos momentos do filme, fica claro que alguns espaços fílmicos são criados do ponto de vista dos personagens. As próprias situações, acima descritas, podem ser vistas como um índice da manifestação dessa estratégia. Uma outra situação ilustrativa dessa questão é a cena em que Virginia Woolf conversa com Nelly, a sua cozinheira, sobre a escolha do almoço e a sua necessidade de ir até Londres para comprar gengibre. Quando ela chega na cozinha, Nelly já está preparando o almoço. O diálogo entre as duas personagens se alterna entre as imagens recorrentes de Nelly, cortando carne: Virginia: Yes, Nelly, tell me how can I help? Nelly: It’s about lunch. I just had to go ahead on my own. Virginia: I understand. You chose a pie? Nelly: I chose a lamb pie (...). We’d have to go to London for ginger, madam. I haven’t finished this and there’s the rest of lunch to get ready. Virginia: the twelve-thirty train, Nelly will get you into London just after one. If you return on the two-thirty, you should be back in Richmond after three. Do I miscalculate?117 117 Virginia: Pode dizer, Nelly. O que deseja? Nelly: É sobre o almoço. Tive que decidir por mim mesma. Virginia: Entendo. Ecolheu empadão? Nelly: O empadão de carneiro (...). Terei de ir à Londres para comprar gengibre. Tenho os meus afazeres e o resto do almoço para preparar. Virginia: Se pegar o trem das 12:30, chegará em Londres pouco depois de 13:00. Se voltar no das 14:30 estará aqui pouco depois das 15:00. Estou errada? 217 Figura 16 – Criação de espaços fílmicos, do ponto de vista das personagens Como podemos observar, a conversa se desenvolve num tom de indisposição de uma personagem para com a outra. Nelly mostra o seu descontentamento por ser obrigada por Virginia a ir a Londres. Virginia, por sua vez, também mostra o seu descontentamento com a resistência de Nelly. As imagens grotescas da carne sendo cortada em close-up causam uma certa repulsa e desconforto ao espectador, e isso pode funcionar como um índice que reflete exatamente o estado de espírito de Virginia naquela situação específica. Assim como nas atitudes de Virginia, o uso da câmara subjetiva também acontece para mostrar as de outras personagens. Richard, por exemplo, enquanto criança está sempre com um olhar inquiridor para a sua mãe como se tivesse desvendando-a para o espectador. Após tornar-se adulto, esse olhar continua a ser repassado para o espectador, mas do ponto de vista de outras personagens que discutem o seu livro. É o caso dessa conversa de Clarissa e Louis: Clarissa: His mother kills herself. Louis: Sure, but still for no reason. Clarissa: Well, I... Louis: Out of the blue. 218 Clarissa: I know the book is tough, but I liked it.118 Com base na discussão sobre o livro, o espectador pode inferir pontos sobre a própria vida do personagem e o seu julgamento em relação à mãe. Um outro momento em que isso se evidencia é na conversa de Laura e Clarissa, já no final da narrativa: Laura: He had me die in the novel. I know why he did that. It hurts of course. I can’t pretend it didn’t hurt, but I... I know why he did it. Clarissa: You left Richard when he was a child. Laura: I left both of my children. I abandoned them. They say it’s the worst thing a mother can do.119 Em ambos os casos, apresenta-se a mistura de ficção e realidade em que os fatos que, verdadeiramente aconteceram com o personagem, são mostrados por meio do seu processo de escrita. Quer dizer, trata-se de um enredo dentro de outro enredo. Uma outra situação de uso da câmera subjetiva é quando Richard também olha para Clarissa como se tivesse julgando-a pela as suas atitudes “triviais”, no caso da preparação da festa. O personagem deixa isso claro no momento em que ela o convida para a recepção, por ocasião do recebimento do prémio: “Oh, Mrs. Dalloway. Always giving parties... To cover the silence”.120 Essa estratégia é bastante usada como forma de revelar traços da construção das personagens que, por meio dos julgamentos de outrem, reconhecem-se e despojam-se. Logo após essa observação, em relação à Clarissa, Richard também reconhece a sua fragilidade diante da situação de sucesso inesperado na sua carreira e da própria vida. Ele mesmo argumenta: Richard: Is my work going to live? I can’t go through with it, Clarissa. Clarissa: Oh, why do you say that? 118 Clarissa: A mãe dele se mata. Louis: É, mas motivo algum. Clarissa: Bom, eu Louis: Do nada. Clarissa: Sei que o livro é difícil, mas eu gostei. 119 Laura: Ele me fez morrer no romance. Eu sei por que ele fez isso. Não posso fingir que não doeu. Mas... Se sei por que ele fez isso. Clarissa: Você abandonou Richard quando ele era pequeno. Laura: Eu abandonei meus dois filhos. Abandonei os dois. Dizem que é a pior coisa que uma mulher pode fazer. 120 Richard: Ah, Mrs. Dalloway... Sempre dando festas... Para encobrir o silêncio. 219 Richard: I can’t. Clarissa: Why. Richard: I wanted to be a writer. That’s all. Clarissa: So? Riachard: I wanted to write about it all. Everything that happens in a moment. The way the flowers looked when you carried them in your arms. This towel, how it smells, how it feels, this thread. All our feelings yours and mine... The history of it, who we once were. Everything in the world. Everything all mixed up. Like it’s all mixed up now. And I failed. I failed. (...) 121 Observamos, por meio da fala de Richard, uma espécie de prestação de contas consigo próprio em que ele se desnuda para Clarissa. O personagem fala sobre as suas pretensões como escritor e de seu fracasso em não se sentir contemplado com os resultados. Esse momento de reconciliação, que ocorre com todas as personagens do filme, pode ser relacionado ao próprio título “The Hours” (As Horas) que representa, de certa forma, uma prestação de contas de uma vida inteira de cada uma delas num só dia. Entretanto, esse dia, que o espectador acompanha na narrativa, é apenas ilustrativo de uma relação muito mais complexa que envolve o tempo, o espaço e a memória dessas personagens. Em outras palavras, esse dia é sintomático das situações vividas no passado, que “infectam” o seu presente, das suas escolhas bem ou mal sucedidas, dos reflexos dessas escolhas para o futuro, dos sofrimentos e alegrias, do acúmulo de sofrimento que as pessoas vão tendo ao longo de suas existências, de vida e morte. O espectador é conduzido a entrar nessas várias facetas de cada personagem para apreender os universos de cada um. Como temos insistido ao longo das dicussões, a narrativa de Daldry vai sendo montada, principalmente, por meio do recurso da montagem paralela e pela continuidade. O uso da multiplicidade do ponto de vista, na construção dos espaços fímicos, discutido acima, 121 Richard: Minha obra permanecerá? Não vou conseguir, Clarissa. Clarissa: Por que faz isso? Richard: Porque não consigo. Clarissa: Por quê? Rihard: Eu queria ser escritor. Só isso. Clarissa: Então? Richard: Queria escrever sobre tudo. Tudo o que acontece num momento. A aparência das flores quando você as carrega nos braços. Esta toalha, o cheiro, o toque, o fio do tecido. Todas nossas sensações. As suas e as minhas. A história do que já fomos um dia. Todas as coisas do mundo. Tudo tão misturado. Assim como está misturado agora. Mas não consegui. Não consegui. 220 em que os enredos são mostrados pelas reações dos personagens, pelas suas falas, pelo que também deles se fala, vai, aos poucos, articulando-se e à proporção que revelações sobre os fatos são feitas, ao longo do filme, até que as histórias se encontrem no final. Trata-se de um construto narrativo complexo que apresenta alguns rastros intertextuais das narrativas de Woolf e de Cunningham. Com a ajuda dos recursos do cinema e a estratégia de estruturação da narrativa, As Horas, de Stephen Daldry, apresenta na tela a tradução da tradução de Mrs. Dalloway. Com base nessa rápida discussão sobre as reescrituras (que chamamos também de tradução) de Mrs. Dalloway, nos contextos da literatura e do cinema, passamos, agora, a levantar alguns pontos relacionados ao funcionamento dessas traduções nesses contextos. Poderíamos vislumbrar, a partir desses exemplos, desdobramentos importantes quanto ao efeito provocado por essas traduções na recepção do universo literário de Woolf nos novos contextos. Para ilustrar melhor esses desdobramentos, apresentamos três prováveis públicos receptores das traduções: o público leitor da obra de partida; os que não leram a obra de partida, mas já leram algumas reescrituras por meio de resenhas críticas, resumos ou coletâneas literárias, ou até mesmo pela tradução, e têm uma idéia da posição do texto de Woolf em relação ao cânone moderno; e, em menor quantidade, mas que não podem ser deixados de lado, aqueles que não conhecem nada a respeito da autora. No primeiro caso, encontram-se os leitores mais especializados, capazes de opinarem e até julgarem a qualidade da tradução da obra. No segundo, estão aqueles que já têm uma idéia do que seja o universo literário de Woolf e vêem no filme um objeto de melhor visualização desse universo. E, no terceiro caso, estariam aqueles que estão sendo submetidos a esse universo por meio dessas reescrituras pela primeira vez. Mas vale ressaltar que, nos três casos, esses leitores/espectadores são receptores de imagens de um “original”, mesmo que as reações 221 sejam distintas, já que as traduções apresentam marcas estruturais próprias, como temos reforçado ao longo da análise. O novo formato da narrativa cinematográfica é resultado de uma parceria importante de colaboração de Cunningham na escrita do roteiro. Hare (2002, p.ix), ao comentar o fato, afirma que nas primeiras quatro horas de encontro com o autor, Cunningham mostrou gestos generosos de confiança no seu desempenho e observou que: When writing the book, he had simply been trying to organize a large number of themes and stories into patterns which made sense for him. Now, he insisted, the screenwriter should rearrange the material with an equal freedom (HARE, 2002, p.ix).122 Trata-se, portanto, de uma certa interferência da concepção de Cunningham no processo de escrita do roteiro. Tal interferência pode ser vista como uma pista importante para justificar as particularidades das marcas estruturais da narrativa fílmica discutidas ao longo do capítulo. Ao discutir sobre o público leitor do romance The Hours, Cunningham (apud DEGENHART, 2003, p.4) afirma que houve um aumento considerável desse público, em relação aos seus livros anteriores, mas, ao escrever o livro, não teve a intenção de aumentar esse público. Sua intenção era a de escrever um livro de caráter mais “artístico”. Apesar da perspectiva peculiar dada a esse romance pelo autor, não se pode negar o fato de que o prestígio da obra de partida teve influência nessa ampliação de público. Com a tradução para o cinema, esse público certamente se ampliou ainda mais. Cunningham admite isso na mesma entrevista. Ao ser questionado quanto ao nível de conhecimento do público, em relação ao romance de partida, para um bom entendimento do seu texto, ele afirma que é importante tanto para o romance quanto para o filme que as narrativas sejam completamente acessíveis para as pessoas que não sabem nada sobre 122 Ao escrever o livro, ele estava simplesmente tentando organizar um grande número de temas e histórias dentro de padrões que lhe fizesse sentido. Agora, ele insistia que o roteirista deveria reorganizar o material com igual liberdade. 222 Virginia Woolf, ou até mesmo para aquelas que não tenham nem a idéia se ela é uma pessoa real ou fictícia. De acordo com Cunningham, não é necessário saber nada sobre Woolf para entender a sua compulsão em criar algo tão belo: “que é uma das coisas que eu acho que torna a espécie humana mais interessante e digna de perpetuação” (2003, p.2). O autor acrescenta: I would love it if the point of the movie sparked enough interest in Virginia Woolf so that people went on to read her. Mrs. Dalloway is turning up in best seller lists already. Isn’t that wild? (CUNNINGHAM apud DEGENHART, 2003, p.2).123 Por meio dessas falas de Cunningham, percebemos que ele, na posição de autor, pressupôs leitores imaginários para o seu texto. Seria um texto de fácil acesso, mas reescrevendo, ao mesmo tempo, uma obra literária considerada de difícil leitura. E, ao ser traduzido para o cinema, o autor reconhece o alcance que esse texto terá no novo contexto. Parece claro, portanto, que o autor tem noção da relevância da reescritura na criação de imagens de Virginia Woolf para esses públicos distintos, já que a “grandeza” da obra, na concepção dele, está além do conhecimento que se tem da autora. Uma outra noção implícita que salta aos olhos no posicionamento de Cunningham é quanto ao papel das reescrituras dentro dos sistemas literários. É um reforço à idéia de que, por meio das reescrituras, os textos de partida voltam a ser lido. Discutimos, ao longo desses dois últimos capítulos, traços importantes da construção das narrativas que reescrevem o romance Mrs. Dalloway. Levantamos algumas particularidades estruturais de cada uma delas, observando algumas estratégias de tradução e a articulação dessas estratégias dentro dos universos narrados. Vejamos, a seguir, um quadro geral que resume as estratégias de construção das narrativas cinematográficas reescritoras, analisadas no corpus: 123 Eu adoraria se o feito do filme provocasse bastante interesse em Virginia Woolf de forma que as pessoas fossem lê-la. Mrs. Dalloway já está chegando na lista dos mais vendidos. Não é impressionante isso? 223 QUADRO GERAL DAS PRINCIPAIS ESTRATÉGIAS DE CONSTRUÇÃO DAS TRADUÇÕES FÍLMICAS Sra. Dalloway As Horas 1. Delineação do enredo (criação de três histórias 1. Linearidade (organização narrativa); 2. Flashback; 3. Voice-over; 2. Continuidade de elementos imagéticos (montagem); 4. Montagem. 3. Silêncio e expressões dos atores/atrizes; 4. Múltiplas perspectivas (o olhar do outro); paralelas); Como temos observado, ao longo da análise, todas essas estratégias de tradução se entrecruzam e contribuem significativamente para a consolidação dos universos literários traduzidos. 224 CONCLUSÃO Pela própria natureza dialógica, a tradução constitui-se uma atividade importante que se estabelece dentro de um sistema cultural que compreende diferentes discursos e linguagens. Trata-se de um elemento difusor de discursos entre sistemas de culturas diferentes, de sistemas lingüísticos diferentes e meios diferentes de linguagem. Nesse contexto, a reescritura, que é um tipo de tradução, insere-se na questão. As reescrituras são, portanto, construídas a partir de procedimentos sistemáticos que envolvem questões culturais, políticas, individuais e/ou institucionais, disciplinadores que interferem ou, pelo menos, têm a pretensão de interferir nos textos traduzidos nos contextos de chegada. Observamos, ao longo deste trabalho, a descrição e reflexão sobre alguns aspectos importantes na construção das narrativas que reescrevem o romance Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf, na literatura e no cinema. Discutimos, ainda, algumas perspectivas teóricas que permeiam os estudos de tradução e a sua relação dialógica com a literatura (teoria e crítica) e o cinema para que pudéssemos investigar como as narrativas foram feitas. Para isso, analisamos algumas estratégias de tradução, utilizadas pelos reescritores ao demonstrarem rastros indiciais do universo literário de Woolf no livro ou na tela para o leitor/espectador, no intuito de verificar que essas narrativas, mesmo sendo ricas, tendo significação própria e exigindo uma nova postura de leitura por parte do leitor/espectador, não seguem a mesma tendência vanguardista do texto de partida. Isto se dá pelo fato de tornarem-se mais sistematizadas e assumirem um novo arranjo linear. O resultado dessa investigação pode ser vislumbrado por meio da observação das estratégias, empregadas pelos reescritores (escritor, roteiristas e diretores), ao lidarem com a narrativa impressionista de Woolf em outros contextos e linguagens. No caso específico de As Horas, de Michael Cunningham, destacamos a subdivisão do romance em capítulos e a transição entre os espaços e os tempos, 225 fornecendo ao leitor uma maior segmentação do material narrativo e uma maior sistematização na descrição dos processos mentais dos personagens. Ao observarmos as estratégias descritas no corpus (mostradas no quadro geral das principais estratégias de construção das traduções fílmicas no final do capítulo anterior), agora podemos afirmar que as narrativas de Marleen Gorris, de Michael Cunningham e de Stephen Daldry têm formatos próprios (com arranjo linear particular) e não seguem a tendência vanguardista do texto de Woolf, devido às questões próprias do meio cinematográfico (amplição de público, criação de narrativas lineares, influência da narrativa clássica hollywoodiana, etc), mas, principalmente, devido ao estilo e à concepção de criação dos próprios tradutores. As estratégias da linearidade, do flashback e da montagem em Sra. Dalloway, por exemplo, estão diretamente ligadas à questão da organização do material narrativo e a sua linearização para o espectador. O voice-over, por sua vez, também influenciou para esse traço linear no formato da narrativa. A antecipação foi utilizada, no início da narrativa, para direcionar alguns pontos dos argumentos do filme. A estratégia de usar o voice-over de forma limitada contribui para que os processos mentais dos personagens se transformem em diálogos, dando mais ação ao filme que se juntando, em alguns momentos, à estratégia do close-up, garante à narrativa um caráter mais dramático. Em As Horas, as estratégias observadas também contribuíram contundentemente para o arranjo que a narrativa assume na tela. A delineação do enredo, por meio da apresentação de três histórias paralelas, e a continuidade de elementos imagéticos, fazem com que o espectador, aos poucos, vá montando micro-narrativas convergentes e, ao final, junte-as num construto completo. As estratégias dos silêncios e expressões dos atores/atrizes e as múltiplas perspectivas consolidam o caráter existencial da narrativa, facilitando ao leitor o ordenamento das questões intimistas e o adentramento no universo individual complexo de cada um dos personagens. 226 Vale reforçar que as estratégias se entrecruzam e a descrição isolada de cada uma delas torna-se complicada, porque elas tendem a funcionar simultaneamente. Explica-se: no caso do flashback, por exemplo, podemos associá-lo à idéia de linearidade, por ter como efeito imediato o suprimento de algumas informações sobre o passado para que o espectador entenda situações do presente; entretanto, podemos, também, associá-lo à questão da montagem, por mostrar na tela um paralelo entre duas ações diferentes em dois tempos (presente e passado) e espaços diferentes. Nesse sentido, a nossa tentativa de descrevê-las separadamente foi para que a análise ficasse melhor sitematizada. Reforçamos, ainda, que a escolha dessas estratégias não teve pretensão alguma de exaurir o nosso objeto de estudo. Ao contrário, reconhemos a complexidade da construção dessas narrativas e, por isso, assumimos que devem existir muitas outras estratégias de tradução que atendam a outros propósitos de análise. Se trabalhamos com essas em particular é porque acreditamos que elas nos ajudariam a responder a nossa pergunta de pesquisa e a comprovar o argumento desta pesquisa. Insistimos, ao longo de nossas discussões, que as reescrituras assumem papéis importantes nos contextos de chegada, pois são textos criadores de imagens de outros textos e são capazes de interferir nas dinâmicas dos sistemas. As traduções da narrativa de Mrs. Dalloway, por exemplo, reforçam essa assertiva na medida em que trazem para outro sistema de linguagem (o cinema) e outro público um texto importante da literatura inglesa moderna. Mesmo em se tratando de textos traduzidos, tivemos a preocupação de não lidarmos, na análise do corpus, com a idéia de equivalência ou fidelidade, por compactuarmos com os pressupostos de teorias contemporâneas de tradução, tais como a teoria dos polissistemas de Even-Zohar (1990), a idéia da reescritura como um tipo de tradução de Lefevere (1992) e os Estudos Descritivos de Toury (1995), apresentadas na fundamentação teórica, e por 227 considerarmos que esses textos têm construção própria e, conseqüentemente, sua própria significação. A partir dos resultados apresentados nesta tese, vislumbramos alguns outros estudos que poderiam ser desenvolvidos para ampliar a discussão sobre as reescrituras de Virginia Woolf. Uma possiblidade seria extender a investigação das estratégias de tradução ao conjunto da obra da autora reescrito para o cinema, já que, além de Mrs. Dalloway, o universo literário de Woolf foi traduzido para o espectador por meio de dois outros romances importantes de sua produção literária: As Ondas, por meio do filme Golven (1982), dirigido por Annette Apon, e Orlando, por meio do filme Orlando, A Mulher Imortal (1992), dirigido por Sally Porter. Por meio de uma análise conjunta das traduções dessas obras, poder-se-ia estabelecer um conjunto de normas que regem a tradução da autora e verificar se existe uma “Virginia Woolf cinematográfica”. Um outro estudo que poderia ser desenvolvido a partir deste, é uma pesquisa de recepção para observar se as narrativas de Woolf, que tendem a se tornar mais lineares no cinema, são realmente narrativas fluentes para o grande público. Acreditamos que, assim como outras pesquisas apresentadas, refletimos sobre a questão da reescritura como um tipo de tradução e a influência por ela exercida dentro dos contextos de chegada. Refletimos, também, sobre o papel importante que esses textos reescritores assumem e a sua interferência na dinâmica dos sistemas receptores. Por se tratarem de textos difusores de imagens de universos literários, as reescrituras acabam revitalizando esses textos e ajudam a manter a literatura viva. Dessa forma, esperamos ter contribuído para o debate sobre o campo de estudo em questão. 228 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AUERBACH, E. A meia marrom In: Mimesis: a representação da realidade na literatura universal. 4ª ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1998. ARNHEIM, R. A arte do cinema. Tradução de Maria da Conceição Lopes da Silva. Lisboa: Edições 70, 1989. ANDREW, J. D. As principais teorias do cinema. Tradução de Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda.1989. ARAÚJO, V. L. S. 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