RELAÇÕES E PRÁTICAS COMERCIAIS NO PORTO DO AÇAÍ, JURUNAS, BELÉM-PA Marcos Trindade Borges1 Carmem Izabel Rodrigues2 RESUMO: Este trabalho é resultado de pesquisa realizada no Porto do Açaí, no bairro do Jurunas, em Belém, e está dividido em duas partes. Na primeira parte, o objetivo foi descrever as relações entre trabalhadores conhecidos como maquineiros de açaí e outros grupos sociais existentes no porto jurunense, revelando algumas práticas comerciais realizadas pelos grupos em questão no ato de compra e venda do açaí (euterpe oleracea) no Porto, ou melhor, neste mundo de vida à beira do rio Guamá. O Porto do Açaí, porta de entrada e pórtico de comunicação entre os mundos urbano e ribeirinho, é também o palco de diversas interações e práticas construídas por esses diversos sujeitos que trabalham e/ou frequentam esse mundo de vida à beira do rio Guamá. Na segunda parte, buscamos trazer à tona a influência das práticas culturais locais e do meio ambiental amazônico nas estratégias de compra e venda do açaí no Porto. A metodologia se pautou no uso de métodos etnográficos, observação participante, entrevista estruturada e não-estruturada, levantamento bibliográfico e registro fotográfico. O resultado traz uma grande quantidade de informações pertinentes às particularidades que cercam a vivência desses grupos no contexto da Amazônia, principalmente dos maquineiros ou batedores de “vinho” de açaí, no desenvolvimento social, cultural, econômico da produção, da venda e do consumo do açaí no Jurunas. Palavras-chave: Relações sociais; práticas comerciais; Porto do Açaí; Jurunas. Introdução Este artigo é resultado de pesquisa realizada no Porto do Açaí3, bairro do Jurunas, em Belém, e está dividido em duas partes. Na primeira parte, o objetivo foi descrever as relações entre trabalhadores conhecidos como maquineiros ou batedores de açaí e outros grupos de trabalhadores existentes no porto jurunense, revelando algumas práticas comerciais realizadas pelos grupos em questão no ato de compra e venda do 1 Mestre em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Pará; Antropólogo do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA/SR01/Belém. 2 Doutora em Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco, docente da Faculdade de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da Universidade Federal do Pará. 3 O Porto do Açaí fica às margens do rio Guamá, bairro do Jurunas, Belém-Pa. É considerado o segundo maior entreposto de compra e venda de açaí de Belém, perdendo apenas para Feira do Açaí, no Ver-opeso. Nele a comercialização de compra e de venda de açaí funciona quase que 24 horas. Por ali transitam, em média, 800 pessoas por dia. Na safra do fruto este número de pessoas costuma dobrar, época em que chegam ao porto cerca de 60 mil quilos do fruto por dia (edição do jornal “Público”, 17 fev. 2009. Caderno Dia a Dia, p. A9). 1 açaí (euterpe oleracea), e que nesse contexto se transformam e ganham vida, através de um linguajar todo especial, utilizado pelos sujeitos no cotidiano do porto. O Porto do Açaí, porta de entrada e pórtico de comunicação entre os mundos urbano e ribeirinho, é também o palco de diversas interações e práticas construídas por esses diversos sujeitos que trabalham e/ou frequentam esse mundo de vida à beira do rio Guamá. Na segunda parte, buscamos trazer à tona a influência das práticas culturais locais e do meio ambiental amazônico nas estratégias de compra e venda do açaí no Porto. Estar “dentro” desse dia a dia, ou melhor, desse “mundo” dos maquineiros de açaí, pode ser muito favorável mas também desafiador para entender as razões que condicionam as ações e as relações que envolvem esse grupo social. Escolhemos o lado positivo dessa possibilidade, já que isso, de certa forma, facilitou o acesso a uma gama de informações, muitas delas oriundas de uma introspecção que só pode ser feita em virtude de uma longa vivência do autor na atividade, por mais de meio século de experiência familiar no Porto do Açaí4, assim como pelo convívio, durante o trabalho de campo, com o grupo dos maquineiros de açaí. Esses trabalhadores construíram e constroem um mundo de práticas e interações no porto jurunense. Buscamos neste artigo descrever e interpretar um pouco dessas interações de trabalho, sociabilidade e reciprocidade que permeiam a realidade social dos diversos grupos ali presentes. O objetivo então é descrever algumas dessas relações e ações dentro do ambiente do Porto, começando pela relação maquineiro-apanhador e finalizando pela relação maquineiro-indústria ou exportação, para depois trazer à tona a influência das práticas culturais locais e do meio ambiental amazônico nas estratégias do maquineiros no momento de compra do açaí no Porto. O maquineiro chega ao porto... O Porto do Açaí, um dos principais espaços de comercialização desse produto amazônico, é parte relevante do que foi denominado acima de “mundo de vida” do maquineiro, pois se apresenta como porta de entrada do produto para a grande maioria 4 Não seria um exagero dizer que o autor já nasceu “dentro” do “mundo” desse grupo, no qual outros maquineiros, marreteiros, produtores ou apanhadores, carregadores, enfim, várias outras categorias estão presentes nesse cotidiano familiar. Na frente da sua casa fica localizada a baiúca na qual sua avó, depois sua mãe e por muito o próprio autor produziam o “vinho”, enquanto na parte dos fundos ficava a oficina onde seu avô fabricava máquinas de bater açaí. 2 dos produtores e consumidores residentes no bairro. Em busca desse fruto tão apreciado em nossa região, para produzir diariamente o famoso “vinho” de açaí, homens e mulheres saem de suas casas antes dos primeiros raios do sol, em meio à manhã, à tarde e à noite. Nesta procura, o maquineiro vai tecendo uma teia de relações com outros atores e grupos sociais, não menos importantes, através de ações nas quais os conhecimentos empíricos constituem as bases de sustentação da vida social do grupo. Os maquineiros chegam a pé, de bicicleta, de carro, de ônibus, van, etc. ao Porto do Açaí; trazem suas sacas de fibra embaixo do braço ou podem estar acompanhados por um carregador que carrega suas próprias sacas. Observam os pontos de venda e depois aproximam-se, entrando em interação direta com os diversos parceiros envolvidos no ato de compra e venda do açaí, uma espécie de leilão a céu aberto, que acontece diariamente, desde a madrugada até o final da tarde, no chão do porto. Eles querem saber o preço do açaí ou a região de procedência dos caroços, examinam os caroços com lanternas (na madrugada), reviram os paneiros (a fim de encontrar os melhores frutos); negociam, regateiam, entre ofertas e contraofertas, até chegarem ao ato final da compra, quando o vendedor aceita o valor proposto pelo ato de receber a quantia ofertada. No momento seguinte abrem as sacas que carregam e chamam os apanhadores, os marreteiros e os carregadores (na chamada “virada do açaí na saca” ou “metida do açaí na saca”) para que as encham com caroços do fruto do açaizeiro. Esses compradores ou maquineiros de açaí formam um grupo que tem um modo de agir, de pensar e de sentir bem peculiar dentro das inúmeras relações que podem ser observadas nos locais em que há comercialização do açaí. Desde a chegada até a saída do Porto, às vezes em curto espaço de tempo, eles se envolvem em múltiplas relações, que passam pelo vendedor de mingau (de açaí, miriti, etc.), pela cafeteira ambulante ou de barraquinha, pelo vendedor de lanche, pelo vendedor de sacas ou de sacos e sacolas plásticas, pelo vendedor de quinquilharias, pelos feirantes que negociam frutas, farinha, carvão, peixe, camarão, entre outros produtos e, principalmente, pelos marreteiros, pelos carregadores, pelos apanhadores, pelos outros maquineiros. Todas estas relações são baseadas na informalidade dos acordos e contratos, muitos deles pré-estabelecidos, entre os agentes das trocas comerciais. São muitas vezes bem rápidas, mas sinalizadas por regras tácitas ou verbalmente explicitadas, marcadas por experiências e vivências trazidas das regiões do interior do Estado, onde muitos nasceram ou ainda vivem, ou adquiridas no processo de socialização nos espaços de convivência atual, como é o caso do Porto do Açaí e o bairro onde está localizado. Essas 3 experiências, somadas ou acrescidas às adquiridas na vida urbana, são fundamentais nas relações estabelecidas pelos maquineiros no Porto, manifestas nas linguagens e na sociabilidade local, dando um toque especial às ações construídas pelo grupo social em questão. A relação maquineiro-apanhador. É uma relação baseada em ações que vão, em muitos casos, muito além da simples troca dos frutos do açaizeiro por dinheiro. Muitas vezes maquineiro e apanhador criam um vínculo próximo de fidelidade. Isto é, o maquineiro dá grande preferência, no momento da compra, aos furtos de um determinado apanhador, e este, por sua vez, prefere vender os caroços para um mesmo maquineiro (no Porto do Açaí esta ligação é chamada de “freguesia”). Esta relação tem muitas vezes como pauta, aquilo que ambos chamam de “forra”. A “forra” acontece em virtude das relações de compra e venda dos frutos do açaí se tornarem um pacto bastante sério entre ambos. Funciona da seguinte forma: quando a oferta de açaí é grande na chamada “pedra”5, o que é denominado como “tampa”6, ao maquineiro cabe “dar a forra”, ou seja, pagar o preço um pouco acima do valor do dia ao apanhador. Quando a oferta é menor, havendo pouco fruto à disposição para venda, o que é chamado de “falha”, a “forra” cabe ao apanhador que vende, por um preço um pouco abaixo do preço da feira, os frutos do açaí ao maquineiro. A “forra” também acontece quando um maquineiro, sem ter nenhum vínculo anterior com um apanhador, compra o açaí deste, numa ocasião de “tampa”, tirando-o da “pedra” e de uma situação difícil. Como retribuição o apanhador, numa ocasião de “falha”, dará preferência de venda ao maquineiro que um dia o tirou da “pedra”, o que pode engendrar ou não um caso de compromisso dali em diante. Nota-se que o apanhador que mantém esse tipo de relação com algum maquineiro sempre separa as maiores rasas e paneiros e os melhores frutos para este. Porém nem sempre isso se dá de forma harmônica, pois não são raros os pactos quebrados e o vaivém ou troca de “freguesia”, mas nada que não possa ser resolvido com o presenteio de um cafezinho ou um paneiro de frutas ou, melhor ainda, com uma boa “forra” e um bom diálogo na próxima negociação. 5 Local onde ficam os paneiros e as rasas com açaí no Porto, durante a comercialização. Nome dado quando o maquineiro não consegue enxergar a “pedra” pela grande quantidade de açaí ou quando a oferta de frutos é maior que a procura. 6 4 Outra relação observada no Porto, entre esses atores, é o que eles denominam “contrato”. O “contrato” acontece de forma bem parecida com a “forra”, só que o preço acertado entre maquineiro e apanhador não muda, ou seja, é um preço único para os frutos do açaí tanto na safra quanto na entressafra, sendo que nesta última o valor dos frutos é maior e o preço fica mais alto. Apesar dessas variações, no “contrato” não se leva em consideração a “tampa”, a “falha” e a “virada de preço”. Esta última acontece quando os preços dos frutos estão muito baixos ou muito altos e, de maneira repentina, os frutos que estão à venda mudam de valor. Alguns desses vínculos chegam a durar anos, já que se cria um ambiente de confiança. As relações acima descritas são, na maioria das vezes, realizadas por maquineiros e apanhadores que comercializam grandes quantidades de frutos de açaí, mas também são observadas entre aqueles que compram e vendem poucos caroços do fruto, como também entre os que compram e vendem em pequenas e grandes quantidades, bem como entre esses dois grupos e os marreteiros. Contudo, muitos maquineiros gostam de comprar os frutos de açaí na feira livre, na qual a negociação se baseia na “falha”, na “tampa” e na “virada”, entre outros fatores. O “não ter compromisso com ninguém”, segundo muitos maquineiros, parece ser a melhor forma de realizar uma boa compra, pois isso pode representar uma rentabilidade maior no fim do dia, principalmente na safra. Todavia, essa relação descompromissada pede maior atenção por parte dos maquineiros que, entre outros fatores, têm que realizar a compra levando em consideração os fatores acima referidos; ser um bom especulador de preço, além de ter cuidado no momento da “virada do açaí na saca”, porque muitos apanhadores não têm a mesma consideração ou o mesmo cuidado que têm com os fregueses na seleção do açaí. Este pode estar “paráu” (açaí pouco maduro) ou “moqueado” (açaí estragado). O que pode gerar um coro bem familiar, para quem trabalha na atividade, no Porto do Açaí: “morreu”7, que significa uma péssima compra. Por outro lado, o maquineiro está livre para “matar” o apanhador, isto é, pagar o preço mais baixo possível a este último pela rasa ou paneiro com açaí, no momento da “tampa”. Entretanto na “falha” e na “virada de preço” aquele é um alvo fácil para os apanhadores. É importante destacar o jogo de posições/oposições entre maquineiros e apanhadores na safra e na entressafra. Nesta o apanhador, em virtude da escassez de 7 Geralmente essa expressão vê acompanhada de outra: “esse não volta amanhã”, provavelmente, por estar “morto”. 5 açaí disponível para venda, geralmente está no comando das negociações, realizando pressão muito forte sobre os maquineiros, que acabam transformando a situação em algo bem parecido com um leilão. O apanhador aqui aparece, em relação ao maquineiro, como dono da situação; neste contexto da atividade, como proprietário do produto mais procurado no Porto do Açaí, torna-se o centro das atenções, preferindo vender seu produto ao maquineiro conhecido como “americano” (uma analogia aos moradores da rica e poderosa nação do norte da América), ou seja, para o maquineiro que pode pagar o preço mais alto da feira pelo açaí; ainda nesse contexto, o apanhador nomeia aqueles que não podem pagar o preço desejado de “rói-rói” ou “pirangueiro” (aquele que rói o caroço de açaí de vários apanhadores, para verificar a qualidade do açaí, ou que passa várias vezes pelo mesmo lote de açaí, mas não o compra), usando muitas vezes a expressão: “hoje não tem pra rói-rói”. Já na safra, ocasião na qual a oferta de açaí é muito grande, há uma inversão de posições, pois o maquineiro domina a situação na relação de compra e venda do açaí, utilizando-se também de frases que funcionam propositalmente para “atingir” o outro grupo. Não é difícil ouvir a expressão “Quem está no comando hoje aqui é o maquineiro”, “deixa pra amanhã”, “hoje tem pra rói-rói” (frases e gritos para os apanhadores que estão chegando ao Porto do Açaí para descarregar o fruto, dando a impressão ou afirmando que tem muito açaí disponível para venda na “pedra”). Também nomeiam aqueles apanhadores que não querem aceitar o preço oferecido como: “ruim de negócio”, “brabo”, “olhão”, “paroeiro” (nome dado a quem é péssimo apanhador), entre outros termos depreciativos. A relação maquineiro-apanhador vai muito além de fatos colocados aqui. Cabe destacar que o Porto do Açaí é um local que funciona como uma feira livre, na qual acontece um pouco de tudo. Apelidos, arremedos, vida íntima, vida alheia, discussões sobre Remo e Paissandu, violência no bairro, convites para festas, jogos de futebol, assim como lembranças da terra natal, dos hábitos alimentares, o mês que dará mais açaí, o mês que dará pouco, os preços das outras feiras, o uso de novas tecnologias na comunicação (celular), informações sobre coisas variadas fazem parte do encontro diário entre esses grupos sociais. 6 A relação maquineiro-marreteiro8. Dificilmente se encontra no Porto maquineiros que nunca negociaram com marreteiros. Na entressafra, por exemplo, estes ficam de posse de boa parte do açaí que chega ao Porto do Açaí, causando um tipo de dependência dos maquineiros em relação a eles. Isto acontece principalmente porque os maquineiros estão com “capital” baixo ou sem “capital” para realizar a compra do açaí 9. Neste caso, recorrer ao marreteiro é uma das saídas para que o maquineiro continue na atividade. Também ocorre porque marreteiros negociam com grandes produtores de açaí, que geralmente têm terrenos onde a safra e a entressafra, numa linguagem bem típica dos que trabalham na comercialização do açaí, – “emendam” – ou seja, a produção do açaí acontece quase o ano todo. Assim muitos maquineiros são dependentes desse outro grupo social por anos. Todavia eles representam uma pequena parte do grupo social dos maquineiros de açaí, pois a maior parte compra livremente os frutos no Porto. Também muitos maquineiros novos na atividade, quando não têm um parente ou um conhecido que os oriente na compra do açaí, usam o marreteiro para essa função. O marreteiro, neste caso, é quem escolhe e seleciona os frutos no momento da compra e acrescenta ao preço o serviço. Outro tipo de relação maquineiro-marreteiro que se pode observar no Porto do Açaí acontece em decorrência de muitos maquineiros receberem o açaí diretamente nos pontos de produção e de venda do “vinho” de açaí. Os caroços são enviados por marreteiros e levados por carregadores de confiança de ambos. Estes últimos informam ao maquineiro o preço do açaí e a movimentação no Porto (“falha” ou “tampa”). A comunicação por telefone convencional ou celular é uma constante nesse tipo de relação que é, no geral, uma relação muito parecida com a anterior, em especial quanto à “forra” e ao “contrato”, mas com algumas peculiaridades. A relação maquineiro-carregador. Esta se realiza com base na confiança, o que faz o maquineiro trabalhar por muitos anos com o mesmo carregador10. No Porto este está, muitas vezes, ao lado do maquineiro, esperando que o último realize a negociação com 8 No Jurunas muitos marreteiros são também maquineiros. Muitos marreteiros são parentes ou conterrâneos dos produtores de açaí, o que também facilita essa espécie de monopólio dos frutos. 10 Apesar de serem raros os casos de desvio de açaí por carregadores, essa possibilidade deixa os maquineiros sobressaltados, principalmente quando estes compram os caroços na Feira do Ver-o-Peso. 9 7 o apanhador ou com o marreteiro, para realizar a costura ou a “virada do açaí na saca”. Alguns carregadores só costuram a saca e levam até ao ônibus, ao táxi, ao carro de propriedade do maquineiro, à bicicleta, entre outros meios de transporte usados por maquineiros; outros costuram a saca e transportam o açaí até as baiúcas ou ponto de vendas do “vinho” de açaí de bicicleta ou de carro de mão. Também existem aqueles que só carregam as rasas e paneiros com açaí dos barcos à “pedra”, o que os aproxima mais duma relação com apanhadores e marreteiros do que com maquineiros. Muitos carregadores chegam cedo ao porto jurunense e dão as primeiras informações sobre a movimentação e o preço do açaí neste local aos maquineiros. Outros prestam serviço de comprador e carregador de açaí ao mesmo tempo aos maquineiros. Estes pagam os serviços prestados por aqueles no momento da chegado do açaí aos pontos de venda do “vinho” ou apenas após a venda de todo o produto para os consumidores, no final do dia, ou ainda no dia posterior. Diversos carregadores realizam uma espécie de “ponte de comunicação” entre maquineiros e os demais grupos sociais envolvidos na compra e venda dos frutos do açaizeiro, como uso de celular, mas o contato mais comum ainda é o face a face. A relação maquineiro-maquineiro. Apesar de pouco tempo de contato entre eles no Porto, pode-se dizer que é uma relação pautada na cooperação, no respeito, mas também no conflito. Não é raro ver no Porto do Açaí os maquineiros se unindo para comprar açaí de um único apanhador, principalmente quando este tem uma grande quantidade de frutos para vender. Isso pode estar relacionado à proximidade de parentesco, de amizade, etc., entre eles. Mas um fato que exemplifica bem uma situação de cooperação entre os maquineiros do Jurunas, e que não foi observado na relação entre maquineiros em outros bairros ou na Feira do Açaí, é o ritual chamado de “fazer um paneiro”. Isso acontece especialmente por motivo de doença de um maquineiro. Em geral se inicia quando o grupo recebe a notícia de que um maquineiro está doente e com a família passando dificuldades financeiras. Então um dos maquineiros mais experientes separa ou manda alguém (um maquineiro mais jovem ou um carregador) separar um paneiro qualquer no Porto e sai arrecadando dinheiro, entre os integrantes do grupo, em nome 8 do companheiro enfermo11. A soma do que foi arrecadado é levada à casa deste por um pequeno grupo ou por um maquineiro vizinho, amigo ou parente do necessitado. O respeito entre os maquineiros se configura também entre os mais antigos e os mais novos. Estes não interferem quando aqueles estão negociando com os apanhadores. Aguardam até a negociação ser concluída, e caso ela não dê certo, aí entram para negociar. Muitos maquineiros experientes têm grande prestígio com o grupo e exercem papel de liderança diante dos demais, principalmente nos momentos de conflito. A palavra ou o posicionamento deles têm bastante influência no momento de se resolver os problemas do dia a dia relacionados à compra e à venda do açaí. Situações de conflito não são raras entre os maquineiros; cabe lembrar que num contexto de escassez do açaí, como é o caso da entressafra, elas se intensificam, pois todos se tornam concorrentes em potencial. Sendo assim, dentro do sistema de compra e venda do açaí, o respeito é deixado de lado e se parte para disputas, nas quais quem pagar mais pelas rasas, pelos paneiros e pelas basquetas com açaí, as leva. Entre os maquineiros, cobrir a oferta dos outros se chama “jogar sal”. O maquineiro que realiza diversas vezes este tipo de procedimento fica conhecido como “salgador”, como “olhão”, como “americano”, e não é muito bem visto pelo restante do grupo. “Jogar sal”, assim, significa pagar o maior preço ao apanhador pelo açaí disputado por vários maquineiros, o que engendra muitos conflitos e desentendimentos entre os que trabalham na atividade. A relação maquineiro-indústria ou maquineiro-exportação12. A indústria ou exportação é vista pelo grupo social dos maquineiros com desconfiança. A entrada desse processo de produção em grande escala no mercado de compra e venda do açaí no Porto, afetou de maneira substancial o cotidiano dos maquineiros, já que antes a oferta e, consequentemente, o preço do fruto, eram bem baixos. Muitas vezes, na safra, havia tanto açaí na “pedra” que muitos frutos eram jogados fora. Atualmente a indústria absorve boa parte do açaí que é comercializado nas feiras e portos, impedindo que episódios como esses se repitam. Por outro lado, a queda na oferta elevou bastante o preço dos frutos do açaizeiro, encarecendo os investimentos do maquineiro no momento da compra. 11 12 Este ritual também é realizado para os carregadores com problemas de saúde. É como o maquineiro chama a indústria de exportação do açaí. 9 Todavia foi em decorrência da possibilidade da contaminação da doença da Chagas, que os maquineiros revelaram com ênfase esse sentimento em relação à indústria de exportação do açaí. Para eles, todas as notícias que circulavam nos meios de comunicação eram tendenciosas, e as ações da Vigilância Sanitária e do Ministério Público tinham envolvimento da indústria. “Isso é coisa da exportação!”. “Eles [as indústrias] querem ficar com todo açaí pra eles”, “Por que só o açaí do maquineiro tá contaminado pelo barbudo e o deles não? Aí tem coisa!” afirmavam os integrantes do grupo mais exaltados, após cada reportagem e ação dos órgãos acima citados13. Nos dias atuais, a indústria é percebida, pelos maquineiros, como sua maior concorrente na hora de comprar o açaí de cada dia. Na feira ou no porto eles sabem que a “exportação” veio para ficar, e talvez seja o maior e o pior “salgador” que já conheceram. Os tempos do Açaí “Pro açaí não tem professor”. Essa é uma afirmação comumente repetida pelos maquineiros mais antigos do Jurunas. Comprar açaí é uma ação que demanda conhecimento acumulado de anos. Sentir o cheiro, ver o tamanho, morder os frutos do açaizeiro são atos necessários mas nem sempre suficientes para se realizar uma boa compra. O açaí muitas vezes “engana” os maquineiros mais experientes, parece não ter “defeito” algum ou todos os “defeitos” possíveis, mas “é só na máquina que se conhece o açaí” ou “só na hora de bater” é que se sabe a qualidade do fruto comprado. Mesmo os melhores maquineiros compradores de açaí reconhecem que a escolha é um pouco mais complexa do que parece à primeira vista. Na safra pode ser mais fácil acertar em bons furtos, em decorrência da quantidade e da qualidade do açaí aumentar significativamente. No Porto do Açaí, neste período, a chamada “tampa” é constante, o que de certa forma diminui a possibilidade do maquineiro “morrer”, ou seja, fazer uma péssima compra. Mas a atenção não pode ser deixada de lado, nem mesmo no referido 13 Em conversa com um grupo de maquineiros no Porto do Açaí, em 2008, entre os quais estava o presidente da AVABEL (Associação dos Vendedores Artesanais de Açaí de Belém), que havia participado de uma reunião na SAGRE (Secretaria de Agricultura do Estado da Pará), o que ficou mais evidente para eles foi a indiferença do poder público em realizar políticas voltadas à produção e consumo interno do açaí, especialmente o consumido nos subúrbios. Segundo o presidente da AVABEL, todos os investimentos públicos para melhorar a estrutura e comprar novos maquinários, milhões de reais em dinheiro público, estavam voltados para os proprietários das indústrias. Quando o presidente se manifestou, nessa reunião, sobre o problema da doença de Chagas que poderia estar atingindo os maquineiros do Jurunas, perguntando se haveria algum tipo de investimento no grupo, por parte do governo, recebeu a resposta que o governo estava elaborando outro plano de ajuda aos fabricantes artesanais. 10 contexto, pois, assim como há “tampa”, há “falha”, e os maquineiros acostumados a se dar bem na primeira situação, enfrentam algumas dificuldades, quando se vêem em meio à segunda. Assim, é preciso estar atento aos diversos fatores que podem influenciar a relação entre a qualidade/quantidade e o preço do produto. A segunda-feira, por exemplo, é um dia no qual o açaí apresenta baixa qualidade no Porto do Açaí, pois não há colheita, ou melhor, “apanha” de açaí no dia de domingo na região do Marajó, que é uma das regiões que mais fornece frutos para portos e feiras de Belém14, ou seja, o açaí que vem para a cidade foi trabalhado (colhido) no sábado, o que faz os frutos perderem qualidade. Outra situação acontece na terça-feira, pois na Feira do Açaí (Ver-o-Peso) é dia de oferta baixa, o que aumenta muito a possibilidade de acontecer uma “falha” ou uma “virada de preço” no porto do Jurunas, já que os maquineiros que não conseguem comprar açaí naquela feira vêm ao Porto do Açaí à procura do produto. Os Círios, Dias Santos, feriados, entre outras datas festivas e religiosas, são outros indicadores de “tampa”, de “falha” e de “virada de preço”. Três exemplos bem interessantes sobre essas datas são: o “Dia do Beto” (dia 24 de agosto), a “Festa do Juca” (na Ilha do Maracujá, no mês de setembro) e Dia de Finados (dia 2 de novembro). Em relação ao “Dia do Beto”, são poucos apanhadores que se arriscam a entrar no mato para coletar o açaí. Muitos têm medo de apanhar açaí nesse dia, já que os trabalhadores mais experientes contam histórias de pessoas que já enxergaram “o Beto no mato”. Este medo, em geral, atinge as pessoas da religião católica, enquanto os evangélicos trabalham sem muito problema nessa data. Sobre essa prática, um maquineiro no Porto do Açaí afirmou que, com o preço elevado do açaí na “pedra” neste dia, tem apanhador que traz “o açaí com Beto e tudo”; muitos apanhadores, entretanto, preferem nem comentar o assunto. A “Festa do Juca” na ilha do Maracujá, segundo Bassalo (2011), tem um caráter religioso muito forte e tradicional no local. Essa é a principal festividade da ínsula, voltada a homenagear [...] Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, no Furo do Maracujá Grande, durante o mês de setembro, sob a organização da família Freire, seu Juca e dona Luzia, que realizam 14 Segundo Marinho (2005, p.155), “o açaí procuubense direciona-se preferencialmente para Belém, onde obtém bons preços até o mês de agosto, ocasião em que Ponta de Pedras, Muaná e os municípios do baixo Tocantins (Cametá, Igarapé-Miri, Abaetetuba), começam a escoar grande quantidade de frutos para essa cidade”. 11 essa festa desde o ano de 1962, por isso, dizem eles, a festa “é tradição”. Informaram que existem outras festas, como as de aniversário, de casamentos, de batizados, entre outros eventos, mas nenhuma é comparável a essa por vários motivos e, principalmente pelo número de pessoas que participa todos os anos (p.115). Os dias que antecedem a “Festa do Juca” são de grande movimentação no porto do Jurunas e muito propícios à “tampa”, pois muitos apanhadores precisam de dinheiro para participar do evento esperado o ano todo e investem maciçamente na maior oferta do produto no porto; inversamente, durante a festa e alguns dias depois da festa, as “falhas” e as “viradas de preço” são quase certas, pois haverá menor oferta do produto. É a conhecida “ressaca da Festa do Juca”. Em relação ao Dia de Finados, uma parte expressiva dos apanhadores não vai aos açaizais em respeito às pessoas falecidas. Geralmente, a safra de açaí da Ilha das Onças “fraqueja” nesse período. As “falhas” começam a ficar mais frequentes, dando sinais de um período de instabilidade para os trabalhadores do Porto do Açaí. Em decorrência disso, muitos deles se deslocam para a Feira de Açaí, no Ver-o-Peso, em busca do fruto de outras regiões (“açaí gelado” que vem do Amapá, “açaí da estrada”, etc.) e de um melhor preço para a compra do açaí (BORGES, 2008), pois, como bons jogadores, vão se posicionar “não onde está o lucro, mas onde ele vai ser encontrado” (BOURDIEU, 1996, p. 142). Em síntese, a movimentação do porto do Jurunas para o “Ver-o-Peso” é comumente realizada de novembro a fevereiro, em madrugadas diárias e sob muita chuva. Mas assim que o fornecimento do açaí “perde a força” na Feira do Ver-o-Peso (isso ocorre geralmente no final de fevereiro), os maquineiros, marreteiros e carregadores voltam ao porto do Jurunas e, em tese, permanecem nele até o final de outubro, já que as ilhas mais próximas ao sul de Belém e outras regiões que abastecem o porto em questão estão em períodos de safras. Os fenômenos da natureza e outros fatores relevantes Existem outros fatores que interferem na compra dos frutos do açaizeiro no porto do Jurunas. Entre eles estão os fenômenos naturais. O movimento das marés, na chamada “feira das nove horas”, tem influência na ação dos maquineiros no porto do Jurunas, pois quando a maré está em “lançante” ou “cheia” é sinal de que o local receberá uma boa quantidade do produto, porque a “água grande” invade os furos e os 12 igarapés da região, fatores que facilitam o transporte do açaí em canoas e barcos até os portos e feiras. No caso contrário, na chamada “maré de quebra” ou “maré seca” ela se torna incerta para a “tampa” e quase certa para a “falha”. A chuva também faz parte desses fatores ao agir diretamente no amadurecimento dos frutos. Porém, em quantidade elevada, torna a “apanha” mais difícil, principalmente após ela cessar, em virtude do açaizeiro ficar liso e os caminhos mais perigosos e insalubres para o apanhador. Nesta situação, além da quantidade de frutos diminuírem no Porto do Açaí, a qualidade do produto também sofre alterações, pois “o açaí não gosta muito de chuva” depois de apanhado, já que os caroços, às vezes, não amolecem quando estão molhados ou chegam moles e azedos ao porto, principalmente quando os frutos são encharcados pelas águas do rio. A chegada da safra de outras frutas também tem consequências para a atividade, segundo muitos maquineiros. Quando os apanhadores começam a trazer, juntamente com o açaí, paneiros com taperebá e miriti15 para o Porto do Açaí, isto é considerado como um “mau sinal”, porque marca empiricamente para os grupos do local o final da safra do açaí e, consequentemente, o começo da entressafra desse fruto nas regiões que abastecem o porto do Jurunas. Quanto mais cedo isso acontecer, para o maquineiro e para apanhadores, mais curta será safra do “fruto precioso”. A chegada da época do camarão também funciona de modo análogo ao das frutas. Outras representações que os maquineiros levam em conta, no momento da compra do açaí, estão relacionadas com a região, com a “medida” dos paneiros e rasas, com o apanhador, com o preço e com a qualidade do açaí. Com relação à primeira, há uma preferência dos maquineiros e marreteiros do Jurunas pelo açaí da Ilha das Onças, por ser um açaí de excelente sabor, cuja produção e “medida” não obedece ao padrão da lata16, e por isso é considerado um dos melhores produtos de revenda, particularmente para os marreteiros, além do que a região é relativamente próxima do Porto do Açaí. Mas existe um número considerável de pessoas que trabalham com açaí de outras regiões, como é o caso dos trabalhadores que só comercializam os frutos vindos da Ilha do Marajó, como o município de Muaná, por exemplo. 15 Frutas típicas da região. A safra dessas frutas geralmente coincide com a entressafra do açaí. Utensílio usado para medir o açaí por quem trabalha na atividade de venda. Cada lata, em média, equivale a 14,2 kg, de acordo com Homma (2006). 16 13 A “medida”17 é de grande importância para os maquineiros. Por isso, quanto maior a quantidade de açaí nas rasas, paneiros e “basquetas”, melhor será a compra que ele realizou. O açaí da Ilha das Onças, considerado de “medida boa”, não segue uma padronização de medida, pois os tamanhos de rasas são variados, o que permite ao maquineiro dar até duas “batidas a mais”, quando comparado aos frutos medidos na lata, bem como ter um faturamento maior. Os açaís de Ponta de Pedras, de Atatá (Marajó) e de Abaeté, apesar de serem de boa produção e de gosto bom, são considerados “mal medidos” pelos maquineiros. Muitos são alertados pelos carregadores quando a saca com açaí ficou com “orelha de coelho” após a “virada do açaí” nas sacas e a costura das mesmas. Escolher um bom apanhador também pode representar uma boa compra. Os que trabalham selecionando bem os frutos maduros ou trazem rasas consideradas de “medida boa” têm suas apanhas disputadas pelos maquineiros. Além de observar estas duas primeiras qualidades, os maquineiros identificam o bom apanhador através dos símbolos pintados nas rasas ou paneiros. Em geral esses itens representam a abreviatura do nome do apanhador, o local de origem do açaí, etc.. Muitos ainda utilizam apenas uma cor específica para serem identificados pelos maquineiros e carregadores. “Açaí bom é açaí barato!” Essa afirmação tem peso no Porto do Açaí, já que quanto mais dinheiro sobrar da ida ao porto, maior a rentabilidade dos maquineiros no final do dia. Mas nem sempre isto é assim, pois o dito popular “o barato pode sair caro”, vez ou outra faz grande sentido no dia a dia dos trabalhadores do porto, principalmente dos maquineiros. Por isso, muitos deles preferem pagar mais caro por um açaí que tem retorno garantido, do que se arriscar a pagar barato e não servir bem os fregueses ou “não ganhar nada”, devido a uma péssima compra do produto. A qualidade dos furtos é também essencial. O açaí com mais de vinte e quatro horas de “apanhado” já não apresenta uma boa qualidade, entrando num estágio que fica conhecido pelas pessoas que trabalham com o fruto como “moqueado”. Cor, sabor e produção nesta situação sofrem alterações substanciais que desvalorizam o produto. Os frutos maduros são chamados de “preto” e “tuíra” pelos trabalhadores do local. O açaí “preto” é aquele que acabou de ficar maduro, enquanto o “tuíra” revela sinais de 17 No Porto do Açaí a medida é muito relativa. Há uma variação de pesos e tamanhos de paneiros, conforme a região e o período. Os paneiros com açaí que vem de Ponta de Pedras, no Marajó, por exemplo, vão diminuindo quando a safra da referida região está chegando ao final, entre os meses de janeiro e fevereiro. 14 que o açaí começou a passar do ponto de amadurecimento e começou a secar, ou seja, o fruto já está perdendo características de um bom fruto para produção do açaí. Muitos maquineiros dão preferência ao açaí preto; outros gostam do “tuíra” por acreditarem que esta característica sinaliza para um açaí de boa produção. Tudo isso só se revela mesmo é na baiúca onde se produz o açaí, após a primeira “batida” (despolpamento) dos caroços. A comunicação via celular tem afetado a compra do açaí no Porto do Açaí. Antes da popularização do celular, os grupos que trabalham na comercialização do produto tinham como base de negociação o preço das feiras dos dias anteriores. Com o uso dessa tecnologia, principalmente produtores e apanhadores, começaram a atropelar as etapas tradicionais dessas negociações. Muito produtores entram na relação e “já vêm com o preço” estipulado, reclamam alguns maquineiros e marreteiros. Na entressafra, a responsabilidade de comprar bons frutos cresce consideravelmente para o maquineiro, pois o açaí, além de escasso, não produz um “vinho” consistente e o preço da rasa, lata, “basqueta”, paneiro de açaí fica muito elevado. Como dito acima, um número considerável de maquineiros realizam um processo de deslocamento do Porto do Açaí, no Jurunas, para a Feira do Açaí, no bairro da Cidade Velha, no fim de cada ano. Neste período, o maquineiro enfrenta frias madrugadas sob chuvas fortíssimas, açaí de má qualidade (muito molhado e azedo) e o risco de ser assaltado, para conseguir ao menos “tirar o bebe”18. O fluxo contrário se dá a partir do final do mês de fevereiro, quando a quantidade de açaí para venda diminui muito na “pedra” do Ver-o-peso e os maquineiros retornam para o porto ou param de trabalhar. Outros ainda optam em comprar bacaba ou miriti, para extrair “vinhos” bastante apreciados no Jurunas19, como opção de sustento familiar e substituição, até que o precioso fruto volte a aparecer em volume suficiente. Considerações finais 18 É a parte do “vinho” produzido nos pontos de venda que se destina ao consumo da família dos maquineiros. O “bebe” não segue um padrão em relação à consistência do “vinho” (fino, médio, grosso), depende muito do hábito de cada família. Já quanto à qualidade, em geral, é extraído dos melhores frutos que chegam aos locais de venda. Atualmente a expressão continua sendo utilizada pelos maquineiros com a mesma representação. Os ribeirinhos também chamam de “bebe” a quantidade de frutos apanhados para alimentação familiar, apenas o excedente que é tirado dos açaizais é vendido nas feiras e nos portos. 19 Nem todos os maquineiros se arriscam na compra da bacaba e do miriti. Ela requer, assim como a do açaí, muita experiência, além de habilidade e utensílios específicos para despolpá-los. 15 Neste trabalho buscamos descrever as relações e as práticas comerciais que são vivenciadas por vários grupos de trabalhadores no cotidiano do Porto do Açaí, bairro do Jurunas, Belém, destacando o grupo dos maquineiros de açaí. Na primeira parte, destacamos como os maquineiros e outros grupos vão construindo um conjunto de relações muito interessantes e, em certos aspectos, específicas daquele lugar, cujos termos nativos nos dão o tom, os ritmos e as dinâmicas locais. Essas relações, apesar de sua natureza comercial, trazem consigo particularidades dos costumes e da sociabilidade local. Peculiaridades que acabam por engendrar linguagens e sentidos que ajudam a interpretar a circulação desses grupos sociais no Porto. Assim sendo, ser “rói-rói”, “olhão”, “salgador”, são expressões que talvez não tenham nenhum sentido para os que estão apenas de passagem, mas para os nativos carregam os significados de suas práticas sociais e simbólicas, enquanto sujeitos participantes do cotidiano desse porto jurunense. Descrevemos como esses grupos de trabalhadores, em especial os maquineiros, têm que possuir um conhecimento prático, um conjunto de saberes culturais acumulados para realizar a compra dos frutos açaí, no Porto, considerando alguns dias da semana, datas festivas, fenômenos naturais, como, por exemplo, a sazonalidade, pois parece que no Porto do Açaí tudo tem seu tempo: os tempos do açaí. Assim, buscamos capturar e registrar um pouco dessa realidade, apurando os sentidos para ver, ouvir, viver esse cotidiano do porto, cujos ritmos e sonoridades, apreensíveis e compreensíveis aos grupos que nele convivem, mantêm ainda muitas formas, ruídos e nuances que continuam a nos desconcertar. 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