RELAÇÕES E PRÁTICAS COMERCIAIS NO PORTO DO AÇAÍ,
JURUNAS, BELÉM-PA
Marcos Trindade Borges1
Carmem Izabel Rodrigues2
RESUMO: Este trabalho é resultado de pesquisa realizada no Porto do Açaí, no bairro
do Jurunas, em Belém, e está dividido em duas partes. Na primeira parte, o objetivo foi
descrever as relações entre trabalhadores conhecidos como maquineiros de açaí e outros
grupos sociais existentes no porto jurunense, revelando algumas práticas comerciais
realizadas pelos grupos em questão no ato de compra e venda do açaí (euterpe oleracea)
no Porto, ou melhor, neste mundo de vida à beira do rio Guamá. O Porto do Açaí, porta
de entrada e pórtico de comunicação entre os mundos urbano e ribeirinho, é também o
palco de diversas interações e práticas construídas por esses diversos sujeitos que
trabalham e/ou frequentam esse mundo de vida à beira do rio Guamá. Na segunda parte,
buscamos trazer à tona a influência das práticas culturais locais e do meio ambiental
amazônico nas estratégias de compra e venda do açaí no Porto. A metodologia se
pautou no uso de métodos etnográficos, observação participante, entrevista estruturada e
não-estruturada, levantamento bibliográfico e registro fotográfico. O resultado traz uma
grande quantidade de informações pertinentes às particularidades que cercam a vivência
desses grupos no contexto da Amazônia, principalmente dos maquineiros ou batedores
de “vinho” de açaí, no desenvolvimento social, cultural, econômico da produção, da
venda e do consumo do açaí no Jurunas.
Palavras-chave: Relações sociais; práticas comerciais; Porto do Açaí; Jurunas.
Introdução
Este artigo é resultado de pesquisa realizada no Porto do Açaí3, bairro do
Jurunas, em Belém, e está dividido em duas partes. Na primeira parte, o objetivo foi
descrever as relações entre trabalhadores conhecidos como maquineiros ou batedores de
açaí e outros grupos de trabalhadores existentes no porto jurunense, revelando algumas
práticas comerciais realizadas pelos grupos em questão no ato de compra e venda do
1
Mestre em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal
do Pará; Antropólogo do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA/SR01/Belém.
2
Doutora em Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco, docente da Faculdade de Ciências
Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da Universidade
Federal do Pará.
3
O Porto do Açaí fica às margens do rio Guamá, bairro do Jurunas, Belém-Pa. É considerado o segundo
maior entreposto de compra e venda de açaí de Belém, perdendo apenas para Feira do Açaí, no Ver-opeso. Nele a comercialização de compra e de venda de açaí funciona quase que 24 horas. Por ali
transitam, em média, 800 pessoas por dia. Na safra do fruto este número de pessoas costuma dobrar,
época em que chegam ao porto cerca de 60 mil quilos do fruto por dia (edição do jornal “Público”, 17 fev.
2009. Caderno Dia a Dia, p. A9).
1
açaí (euterpe oleracea), e que nesse contexto se transformam e ganham vida, através de
um linguajar todo especial, utilizado pelos sujeitos no cotidiano do porto.
O Porto do Açaí, porta de entrada e pórtico de comunicação entre os mundos
urbano e ribeirinho, é também o palco de diversas interações e práticas construídas por
esses diversos sujeitos que trabalham e/ou frequentam esse mundo de vida à beira do rio
Guamá. Na segunda parte, buscamos trazer à tona a influência das práticas culturais
locais e do meio ambiental amazônico nas estratégias de compra e venda do açaí no
Porto.
Estar “dentro” desse dia a dia, ou melhor, desse “mundo” dos maquineiros de
açaí, pode ser muito favorável mas também desafiador para entender as razões que
condicionam as ações e as relações que envolvem esse grupo social. Escolhemos o lado
positivo dessa possibilidade, já que isso, de certa forma, facilitou o acesso a uma gama
de informações, muitas delas oriundas de uma introspecção que só pode ser feita em
virtude de uma longa vivência do autor na atividade, por mais de meio século de
experiência familiar no Porto do Açaí4, assim como pelo convívio, durante o trabalho de
campo, com o grupo dos maquineiros de açaí.
Esses trabalhadores construíram e constroem um mundo de práticas e interações
no porto jurunense. Buscamos neste artigo descrever e interpretar um pouco dessas
interações de trabalho, sociabilidade e reciprocidade que permeiam a realidade social
dos diversos grupos ali presentes. O objetivo então é descrever algumas dessas relações
e ações dentro do ambiente do Porto, começando pela relação maquineiro-apanhador e
finalizando pela relação maquineiro-indústria ou exportação, para depois trazer à tona a
influência das práticas culturais locais e do meio ambiental amazônico nas estratégias
do maquineiros no momento de compra do açaí no Porto.
O maquineiro chega ao porto...
O Porto do Açaí, um dos principais espaços de comercialização desse produto
amazônico, é parte relevante do que foi denominado acima de “mundo de vida” do
maquineiro, pois se apresenta como porta de entrada do produto para a grande maioria
4
Não seria um exagero dizer que o autor já nasceu “dentro” do “mundo” desse grupo, no qual outros
maquineiros, marreteiros, produtores ou apanhadores, carregadores, enfim, várias outras categorias estão
presentes nesse cotidiano familiar. Na frente da sua casa fica localizada a baiúca na qual sua avó, depois
sua mãe e por muito o próprio autor produziam o “vinho”, enquanto na parte dos fundos ficava a oficina
onde seu avô fabricava máquinas de bater açaí.
2
dos produtores e consumidores residentes no bairro. Em busca desse fruto tão apreciado
em nossa região, para produzir diariamente o famoso “vinho” de açaí, homens e
mulheres saem de suas casas antes dos primeiros raios do sol, em meio à manhã, à tarde
e à noite. Nesta procura, o maquineiro vai tecendo uma teia de relações com outros
atores e grupos sociais, não menos importantes, através de ações nas quais os
conhecimentos empíricos constituem as bases de sustentação da vida social do grupo.
Os maquineiros chegam a pé, de bicicleta, de carro, de ônibus, van, etc. ao Porto
do Açaí; trazem suas sacas de fibra embaixo do braço ou podem estar acompanhados
por um carregador que carrega suas próprias sacas. Observam os pontos de venda e
depois aproximam-se, entrando em interação direta com os diversos parceiros
envolvidos no ato de compra e venda do açaí, uma espécie de leilão a céu aberto, que
acontece diariamente, desde a madrugada até o final da tarde, no chão do porto. Eles
querem saber o preço do açaí ou a região de procedência dos caroços, examinam os
caroços com lanternas (na madrugada), reviram os paneiros (a fim de encontrar os
melhores frutos); negociam, regateiam, entre ofertas e contraofertas, até chegarem ao
ato final da compra, quando o vendedor aceita o valor proposto pelo ato de receber a
quantia ofertada. No momento seguinte abrem as sacas que carregam e chamam os
apanhadores, os marreteiros e os carregadores (na chamada “virada do açaí na saca” ou
“metida do açaí na saca”) para que as encham com caroços do fruto do açaizeiro.
Esses compradores ou maquineiros de açaí formam um grupo que tem um modo
de agir, de pensar e de sentir bem peculiar dentro das inúmeras relações que podem ser
observadas nos locais em que há comercialização do açaí. Desde a chegada até a saída
do Porto, às vezes em curto espaço de tempo, eles se envolvem em múltiplas relações,
que passam pelo vendedor de mingau (de açaí, miriti, etc.), pela cafeteira ambulante ou
de barraquinha, pelo vendedor de lanche, pelo vendedor de sacas ou de sacos e sacolas
plásticas, pelo vendedor de quinquilharias, pelos feirantes que negociam frutas, farinha,
carvão, peixe, camarão, entre outros produtos e, principalmente, pelos marreteiros, pelos
carregadores, pelos apanhadores, pelos outros maquineiros.
Todas estas relações são baseadas na informalidade dos acordos e contratos,
muitos deles pré-estabelecidos, entre os agentes das trocas comerciais. São muitas vezes
bem rápidas, mas sinalizadas por regras tácitas ou verbalmente explicitadas, marcadas
por experiências e vivências trazidas das regiões do interior do Estado, onde muitos
nasceram ou ainda vivem, ou adquiridas no processo de socialização nos espaços de
convivência atual, como é o caso do Porto do Açaí e o bairro onde está localizado. Essas
3
experiências, somadas ou acrescidas às adquiridas na vida urbana, são fundamentais nas
relações estabelecidas pelos maquineiros no Porto, manifestas nas linguagens e na
sociabilidade local, dando um toque especial às ações construídas pelo grupo social em
questão.
A relação maquineiro-apanhador. É uma relação baseada em ações que vão, em
muitos casos, muito além da simples troca dos frutos do açaizeiro por dinheiro. Muitas
vezes maquineiro e apanhador criam um vínculo próximo de fidelidade. Isto é, o
maquineiro dá grande preferência, no momento da compra, aos furtos de um
determinado apanhador, e este, por sua vez, prefere vender os caroços para um mesmo
maquineiro (no Porto do Açaí esta ligação é chamada de “freguesia”).
Esta relação tem muitas vezes como pauta, aquilo que ambos chamam de
“forra”. A “forra” acontece em virtude das relações de compra e venda dos frutos do
açaí se tornarem um pacto bastante sério entre ambos. Funciona da seguinte forma:
quando a oferta de açaí é grande na chamada “pedra”5, o que é denominado como
“tampa”6, ao maquineiro cabe “dar a forra”, ou seja, pagar o preço um pouco acima do
valor do dia ao apanhador. Quando a oferta é menor, havendo pouco fruto à disposição
para venda, o que é chamado de “falha”, a “forra” cabe ao apanhador que vende, por
um preço um pouco abaixo do preço da feira, os frutos do açaí ao maquineiro.
A “forra” também acontece quando um maquineiro, sem ter nenhum vínculo
anterior com um apanhador, compra o açaí deste, numa ocasião de “tampa”, tirando-o
da “pedra” e de uma situação difícil. Como retribuição o apanhador, numa ocasião de
“falha”, dará preferência de venda ao maquineiro que um dia o tirou da “pedra”, o que
pode engendrar ou não um caso de compromisso dali em diante.
Nota-se que o apanhador que mantém esse tipo de relação com algum
maquineiro sempre separa as maiores rasas e paneiros e os melhores frutos para este.
Porém nem sempre isso se dá de forma harmônica, pois não são raros os pactos
quebrados e o vaivém ou troca de “freguesia”, mas nada que não possa ser resolvido
com o presenteio de um cafezinho ou um paneiro de frutas ou, melhor ainda, com uma
boa “forra” e um bom diálogo na próxima negociação.
5
Local onde ficam os paneiros e as rasas com açaí no Porto, durante a comercialização.
Nome dado quando o maquineiro não consegue enxergar a “pedra” pela grande quantidade de açaí ou
quando a oferta de frutos é maior que a procura.
6
4
Outra relação observada no Porto, entre esses atores, é o que eles denominam
“contrato”. O “contrato” acontece de forma bem parecida com a “forra”, só que o
preço acertado entre maquineiro e apanhador não muda, ou seja, é um preço único para
os frutos do açaí tanto na safra quanto na entressafra, sendo que nesta última o valor dos
frutos é maior e o preço fica mais alto. Apesar dessas variações, no “contrato” não se
leva em consideração a “tampa”, a “falha” e a “virada de preço”. Esta última acontece
quando os preços dos frutos estão muito baixos ou muito altos e, de maneira repentina,
os frutos que estão à venda mudam de valor. Alguns desses vínculos chegam a durar
anos, já que se cria um ambiente de confiança.
As relações acima descritas são, na maioria das vezes, realizadas por
maquineiros e apanhadores que comercializam grandes quantidades de frutos de açaí,
mas também são observadas entre aqueles que compram e vendem poucos caroços do
fruto, como também entre os que compram e vendem em pequenas e grandes
quantidades, bem como entre esses dois grupos e os marreteiros. Contudo, muitos
maquineiros gostam de comprar os frutos de açaí na feira livre, na qual a negociação se
baseia na “falha”, na “tampa” e na “virada”, entre outros fatores.
O “não ter compromisso com ninguém”, segundo muitos maquineiros, parece ser
a melhor forma de realizar uma boa compra, pois isso pode representar uma
rentabilidade maior no fim do dia, principalmente na safra. Todavia, essa relação
descompromissada pede maior atenção por parte dos maquineiros que, entre outros
fatores, têm que realizar a compra levando em consideração os fatores acima referidos;
ser um bom especulador de preço, além de ter cuidado no momento da “virada do açaí
na saca”, porque muitos apanhadores não têm a mesma consideração ou o mesmo
cuidado que têm com os fregueses na seleção do açaí. Este pode estar “paráu” (açaí
pouco maduro) ou “moqueado” (açaí estragado). O que pode gerar um coro bem
familiar, para quem trabalha na atividade, no Porto do Açaí: “morreu”7, que significa
uma péssima compra. Por outro lado, o maquineiro está livre para “matar” o
apanhador, isto é, pagar o preço mais baixo possível a este último pela rasa ou paneiro
com açaí, no momento da “tampa”. Entretanto na “falha” e na “virada de preço”
aquele é um alvo fácil para os apanhadores.
É importante destacar o jogo de posições/oposições entre maquineiros e
apanhadores na safra e na entressafra. Nesta o apanhador, em virtude da escassez de
7
Geralmente essa expressão vê acompanhada de outra: “esse não volta amanhã”, provavelmente, por
estar “morto”.
5
açaí disponível para venda, geralmente está no comando das negociações, realizando
pressão muito forte sobre os maquineiros, que acabam transformando a situação em
algo bem parecido com um leilão. O apanhador aqui aparece, em relação ao maquineiro,
como dono da situação; neste contexto da atividade, como proprietário do produto mais
procurado no Porto do Açaí, torna-se o centro das atenções, preferindo vender seu
produto ao maquineiro conhecido como “americano” (uma analogia aos moradores da
rica e poderosa nação do norte da América), ou seja, para o maquineiro que pode pagar
o preço mais alto da feira pelo açaí; ainda nesse contexto, o apanhador nomeia aqueles
que não podem pagar o preço desejado de “rói-rói” ou “pirangueiro” (aquele que rói o
caroço de açaí de vários apanhadores, para verificar a qualidade do açaí, ou que passa
várias vezes pelo mesmo lote de açaí, mas não o compra), usando muitas vezes a
expressão: “hoje não tem pra rói-rói”.
Já na safra, ocasião na qual a oferta de açaí é muito grande, há uma inversão de
posições, pois o maquineiro domina a situação na relação de compra e venda do açaí,
utilizando-se também de frases que funcionam propositalmente para “atingir” o outro
grupo. Não é difícil ouvir a expressão “Quem está no comando hoje aqui é o
maquineiro”, “deixa pra amanhã”, “hoje tem pra rói-rói” (frases e gritos para os
apanhadores que estão chegando ao Porto do Açaí para descarregar o fruto, dando a
impressão ou afirmando que tem muito açaí disponível para venda na “pedra”).
Também nomeiam aqueles apanhadores que não querem aceitar o preço oferecido
como: “ruim de negócio”, “brabo”, “olhão”, “paroeiro” (nome dado a quem é
péssimo apanhador), entre outros termos depreciativos.
A relação maquineiro-apanhador vai muito além de fatos colocados aqui. Cabe
destacar que o Porto do Açaí é um local que funciona como uma feira livre, na qual
acontece um pouco de tudo. Apelidos, arremedos, vida íntima, vida alheia, discussões
sobre Remo e Paissandu, violência no bairro, convites para festas, jogos de futebol,
assim como lembranças da terra natal, dos hábitos alimentares, o mês que dará mais
açaí, o mês que dará pouco, os preços das outras feiras, o uso de novas tecnologias na
comunicação (celular), informações sobre coisas variadas fazem parte do encontro
diário entre esses grupos sociais.
6
A relação maquineiro-marreteiro8. Dificilmente se encontra no Porto maquineiros
que nunca negociaram com marreteiros. Na entressafra, por exemplo, estes ficam de
posse de boa parte do açaí que chega ao Porto do Açaí, causando um tipo de
dependência dos maquineiros em relação a eles. Isto acontece principalmente porque os
maquineiros estão com “capital” baixo ou sem “capital” para realizar a compra do açaí 9.
Neste caso, recorrer ao marreteiro é uma das saídas para que o maquineiro continue na
atividade.
Também ocorre porque marreteiros negociam com grandes produtores de açaí,
que geralmente têm terrenos onde a safra e a entressafra, numa linguagem bem típica
dos que trabalham na comercialização do açaí, – “emendam” – ou seja, a produção do
açaí acontece quase o ano todo. Assim muitos maquineiros são dependentes desse outro
grupo social por anos. Todavia eles representam uma pequena parte do grupo social dos
maquineiros de açaí, pois a maior parte compra livremente os frutos no Porto.
Também muitos maquineiros novos na atividade, quando não têm um parente ou
um conhecido que os oriente na compra do açaí, usam o marreteiro para essa função. O
marreteiro, neste caso, é quem escolhe e seleciona os frutos no momento da compra e
acrescenta ao preço o serviço.
Outro tipo de relação maquineiro-marreteiro que se pode observar no Porto do
Açaí acontece em decorrência de muitos maquineiros receberem o açaí diretamente nos
pontos de produção e de venda do “vinho” de açaí. Os caroços são enviados por
marreteiros e levados por carregadores de confiança de ambos. Estes últimos informam
ao maquineiro o preço do açaí e a movimentação no Porto (“falha” ou “tampa”). A
comunicação por telefone convencional ou celular é uma constante nesse tipo de relação
que é, no geral, uma relação muito parecida com a anterior, em especial quanto à
“forra” e ao “contrato”, mas com algumas peculiaridades.
A relação maquineiro-carregador. Esta se realiza com base na confiança, o que faz o
maquineiro trabalhar por muitos anos com o mesmo carregador10. No Porto este está,
muitas vezes, ao lado do maquineiro, esperando que o último realize a negociação com
8
No Jurunas muitos marreteiros são também maquineiros.
Muitos marreteiros são parentes ou conterrâneos dos produtores de açaí, o que também facilita essa
espécie de monopólio dos frutos.
10
Apesar de serem raros os casos de desvio de açaí por carregadores, essa possibilidade deixa os
maquineiros sobressaltados, principalmente quando estes compram os caroços na Feira do Ver-o-Peso.
9
7
o apanhador ou com o marreteiro, para realizar a costura ou a “virada do açaí na saca”.
Alguns carregadores só costuram a saca e levam até ao ônibus, ao táxi, ao carro de
propriedade do maquineiro, à bicicleta, entre outros meios de transporte usados por
maquineiros; outros costuram a saca e transportam o açaí até as baiúcas ou ponto de
vendas do “vinho” de açaí de bicicleta ou de carro de mão. Também existem aqueles
que só carregam as rasas e paneiros com açaí dos barcos à “pedra”, o que os aproxima
mais duma relação com apanhadores e marreteiros do que com maquineiros.
Muitos carregadores chegam cedo ao porto jurunense e dão as primeiras
informações sobre a movimentação e o preço do açaí neste local aos maquineiros.
Outros prestam serviço de comprador e carregador de açaí ao mesmo tempo aos
maquineiros. Estes pagam os serviços prestados por aqueles no momento da chegado do
açaí aos pontos de venda do “vinho” ou apenas após a venda de todo o produto para os
consumidores, no final do dia, ou ainda no dia posterior. Diversos carregadores
realizam uma espécie de “ponte de comunicação” entre maquineiros e os demais grupos
sociais envolvidos na compra e venda dos frutos do açaizeiro, como uso de celular, mas
o contato mais comum ainda é o face a face.
A relação maquineiro-maquineiro. Apesar de pouco tempo de contato entre eles no
Porto, pode-se dizer que é uma relação pautada na cooperação, no respeito, mas também
no conflito. Não é raro ver no Porto do Açaí os maquineiros se unindo para comprar
açaí de um único apanhador, principalmente quando este tem uma grande quantidade de
frutos para vender. Isso pode estar relacionado à proximidade de parentesco, de
amizade, etc., entre eles.
Mas um fato que exemplifica bem uma situação de cooperação entre os
maquineiros do Jurunas, e que não foi observado na relação entre maquineiros em
outros bairros ou na Feira do Açaí, é o ritual chamado de “fazer um paneiro”. Isso
acontece especialmente por motivo de doença de um maquineiro. Em geral se inicia
quando o grupo recebe a notícia de que um maquineiro está doente e com a família
passando dificuldades financeiras. Então um dos maquineiros mais experientes separa
ou manda alguém (um maquineiro mais jovem ou um carregador) separar um paneiro
qualquer no Porto e sai arrecadando dinheiro, entre os integrantes do grupo, em nome
8
do companheiro enfermo11. A soma do que foi arrecadado é levada à casa deste por um
pequeno grupo ou por um maquineiro vizinho, amigo ou parente do necessitado.
O respeito entre os maquineiros se configura também entre os mais antigos e os
mais novos. Estes não interferem quando aqueles estão negociando com os
apanhadores. Aguardam até a negociação ser concluída, e caso ela não dê certo, aí
entram para negociar. Muitos maquineiros experientes têm grande prestígio com o
grupo e exercem papel de liderança diante dos demais, principalmente nos momentos de
conflito. A palavra ou o posicionamento deles têm bastante influência no momento de
se resolver os problemas do dia a dia relacionados à compra e à venda do açaí.
Situações de conflito não são raras entre os maquineiros; cabe lembrar que num
contexto de escassez do açaí, como é o caso da entressafra, elas se intensificam, pois
todos se tornam concorrentes em potencial. Sendo assim, dentro do sistema de compra e
venda do açaí, o respeito é deixado de lado e se parte para disputas, nas quais quem
pagar mais pelas rasas, pelos paneiros e pelas basquetas com açaí, as leva. Entre os
maquineiros, cobrir a oferta dos outros se chama “jogar sal”. O maquineiro que realiza
diversas vezes este tipo de procedimento fica conhecido como “salgador”, como
“olhão”, como “americano”, e não é muito bem visto pelo restante do grupo. “Jogar
sal”, assim, significa pagar o maior preço ao apanhador pelo açaí disputado por vários
maquineiros, o que engendra muitos conflitos e desentendimentos entre os que
trabalham na atividade.
A relação maquineiro-indústria ou maquineiro-exportação12.
A indústria ou
exportação é vista pelo grupo social dos maquineiros com desconfiança. A entrada
desse processo de produção em grande escala no mercado de compra e venda do açaí no
Porto, afetou de maneira substancial o cotidiano dos maquineiros, já que antes a oferta
e, consequentemente, o preço do fruto, eram bem baixos. Muitas vezes, na safra, havia
tanto açaí na “pedra” que muitos frutos eram jogados fora. Atualmente a indústria
absorve boa parte do açaí que é comercializado nas feiras e portos, impedindo que
episódios como esses se repitam. Por outro lado, a queda na oferta elevou bastante o
preço dos frutos do açaizeiro, encarecendo os investimentos do maquineiro no momento
da compra.
11
12
Este ritual também é realizado para os carregadores com problemas de saúde.
É como o maquineiro chama a indústria de exportação do açaí.
9
Todavia foi em decorrência da possibilidade da contaminação da doença da
Chagas, que os maquineiros revelaram com ênfase esse sentimento em relação à
indústria de exportação do açaí. Para eles, todas as notícias que circulavam nos meios de
comunicação eram tendenciosas, e as ações da Vigilância Sanitária e do Ministério
Público tinham envolvimento da indústria. “Isso é coisa da exportação!”. “Eles [as
indústrias] querem ficar com todo açaí pra eles”, “Por que só o açaí do maquineiro tá
contaminado pelo barbudo e o deles não? Aí tem coisa!” afirmavam os integrantes do
grupo mais exaltados, após cada reportagem e ação dos órgãos acima citados13. Nos dias
atuais, a indústria é percebida, pelos maquineiros, como sua maior concorrente na hora
de comprar o açaí de cada dia. Na feira ou no porto eles sabem que a “exportação” veio
para ficar, e talvez seja o maior e o pior “salgador” que já conheceram.
Os tempos do Açaí
“Pro açaí não tem professor”. Essa é uma afirmação comumente repetida pelos
maquineiros mais antigos do Jurunas. Comprar açaí é uma ação que demanda
conhecimento acumulado de anos. Sentir o cheiro, ver o tamanho, morder os frutos do
açaizeiro são atos necessários mas nem sempre suficientes para se realizar uma boa
compra. O açaí muitas vezes “engana” os maquineiros mais experientes, parece não ter
“defeito” algum ou todos os “defeitos” possíveis, mas “é só na máquina que se conhece
o açaí” ou “só na hora de bater” é que se sabe a qualidade do fruto comprado.
Mesmo os melhores maquineiros compradores de açaí reconhecem que a escolha
é um pouco mais complexa do que parece à primeira vista. Na safra pode ser mais fácil
acertar em bons furtos, em decorrência da quantidade e da qualidade do açaí aumentar
significativamente. No Porto do Açaí, neste período, a chamada “tampa” é constante, o
que de certa forma diminui a possibilidade do maquineiro “morrer”, ou seja, fazer uma
péssima compra. Mas a atenção não pode ser deixada de lado, nem mesmo no referido
13
Em conversa com um grupo de maquineiros no Porto do Açaí, em 2008, entre os quais estava o
presidente da AVABEL (Associação dos Vendedores Artesanais de Açaí de Belém), que havia
participado de uma reunião na SAGRE (Secretaria de Agricultura do Estado da Pará), o que ficou mais
evidente para eles foi a indiferença do poder público em realizar políticas voltadas à produção e consumo
interno do açaí, especialmente o consumido nos subúrbios. Segundo o presidente da AVABEL, todos os
investimentos públicos para melhorar a estrutura e comprar novos maquinários, milhões de reais em
dinheiro público, estavam voltados para os proprietários das indústrias. Quando o presidente se
manifestou, nessa reunião, sobre o problema da doença de Chagas que poderia estar atingindo os
maquineiros do Jurunas, perguntando se haveria algum tipo de investimento no grupo, por parte do
governo, recebeu a resposta que o governo estava elaborando outro plano de ajuda aos fabricantes
artesanais.
10
contexto, pois, assim como há “tampa”, há “falha”, e os maquineiros acostumados a se
dar bem na primeira situação, enfrentam algumas dificuldades, quando se vêem em
meio à segunda. Assim, é preciso estar atento aos diversos fatores que podem
influenciar a relação entre a qualidade/quantidade e o preço do produto.
A segunda-feira, por exemplo, é um dia no qual o açaí apresenta baixa qualidade
no Porto do Açaí, pois não há colheita, ou melhor, “apanha” de açaí no dia de domingo
na região do Marajó, que é uma das regiões que mais fornece frutos para portos e feiras
de Belém14, ou seja, o açaí que vem para a cidade foi trabalhado (colhido) no sábado, o
que faz os frutos perderem qualidade. Outra situação acontece na terça-feira, pois na
Feira do Açaí (Ver-o-Peso) é dia de oferta baixa, o que aumenta muito a possibilidade
de acontecer uma “falha” ou uma “virada de preço” no porto do Jurunas, já que os
maquineiros que não conseguem comprar açaí naquela feira vêm ao Porto do Açaí à
procura do produto.
Os Círios, Dias Santos, feriados, entre outras datas festivas e religiosas, são
outros indicadores de “tampa”, de “falha” e de “virada de preço”. Três exemplos bem
interessantes sobre essas datas são: o “Dia do Beto” (dia 24 de agosto), a “Festa do
Juca” (na Ilha do Maracujá, no mês de setembro) e Dia de Finados (dia 2 de novembro).
Em relação ao “Dia do Beto”, são poucos apanhadores que se arriscam a entrar
no mato para coletar o açaí. Muitos têm medo de apanhar açaí nesse dia, já que os
trabalhadores mais experientes contam histórias de pessoas que já enxergaram “o Beto
no mato”. Este medo, em geral, atinge as pessoas da religião católica, enquanto os
evangélicos trabalham sem muito problema nessa data. Sobre essa prática, um
maquineiro no Porto do Açaí afirmou que, com o preço elevado do açaí na “pedra”
neste dia, tem apanhador que traz “o açaí com Beto e tudo”; muitos apanhadores,
entretanto, preferem nem comentar o assunto.
A “Festa do Juca” na ilha do Maracujá, segundo Bassalo (2011), tem um
caráter religioso muito forte e tradicional no local. Essa é a principal festividade da
ínsula, voltada a homenagear
[...] Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, no Furo do Maracujá Grande, durante o mês
de setembro, sob a organização da família Freire, seu Juca e dona Luzia, que realizam
14
Segundo Marinho (2005, p.155), “o açaí procuubense direciona-se preferencialmente para Belém, onde
obtém bons preços até o mês de agosto, ocasião em que Ponta de Pedras, Muaná e os municípios do baixo
Tocantins (Cametá, Igarapé-Miri, Abaetetuba), começam a escoar grande quantidade de frutos para essa
cidade”.
11
essa festa desde o ano de 1962, por isso, dizem eles, a festa “é tradição”. Informaram
que existem outras festas, como as de aniversário, de casamentos, de batizados, entre
outros eventos, mas nenhuma é comparável a essa por vários motivos e, principalmente
pelo número de pessoas que participa todos os anos (p.115).
Os dias que antecedem a “Festa do Juca” são de grande movimentação no porto
do Jurunas e muito propícios à “tampa”, pois muitos apanhadores precisam de dinheiro
para participar do evento esperado o ano todo e investem maciçamente na maior oferta
do produto no porto; inversamente, durante a festa e alguns dias depois da festa, as
“falhas” e as “viradas de preço” são quase certas, pois haverá menor oferta do produto.
É a conhecida “ressaca da Festa do Juca”.
Em relação ao Dia de Finados, uma parte expressiva dos apanhadores não vai
aos açaizais em respeito às pessoas falecidas. Geralmente, a safra de açaí da Ilha das
Onças “fraqueja” nesse período. As “falhas” começam a ficar mais frequentes, dando
sinais de um período de instabilidade para os trabalhadores do Porto do Açaí. Em
decorrência disso, muitos deles se deslocam para a Feira de Açaí, no Ver-o-Peso, em
busca do fruto de outras regiões (“açaí gelado” que vem do Amapá, “açaí da estrada”,
etc.) e de um melhor preço para a compra do açaí (BORGES, 2008), pois, como bons
jogadores, vão se posicionar “não onde está o lucro, mas onde ele vai ser encontrado”
(BOURDIEU, 1996, p. 142).
Em síntese, a movimentação do porto do Jurunas para o “Ver-o-Peso” é
comumente realizada de novembro a fevereiro, em madrugadas diárias e sob muita
chuva. Mas assim que o fornecimento do açaí “perde a força” na Feira do Ver-o-Peso
(isso ocorre geralmente no final de fevereiro), os maquineiros, marreteiros e
carregadores voltam ao porto do Jurunas e, em tese, permanecem nele até o final de
outubro, já que as ilhas mais próximas ao sul de Belém e outras regiões que abastecem o
porto em questão estão em períodos de safras.
Os fenômenos da natureza e outros fatores relevantes
Existem outros fatores que interferem na compra dos frutos do açaizeiro no
porto do Jurunas. Entre eles estão os fenômenos naturais. O movimento das marés, na
chamada “feira das nove horas”, tem influência na ação dos maquineiros no porto do
Jurunas, pois quando a maré está em “lançante” ou “cheia” é sinal de que o local
receberá uma boa quantidade do produto, porque a “água grande” invade os furos e os
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igarapés da região, fatores que facilitam o transporte do açaí em canoas e barcos até os
portos e feiras. No caso contrário, na chamada “maré de quebra” ou “maré seca” ela se
torna incerta para a “tampa” e quase certa para a “falha”.
A chuva também faz parte desses fatores ao agir diretamente no amadurecimento
dos frutos. Porém, em quantidade elevada, torna a “apanha” mais difícil, principalmente
após ela cessar, em virtude do açaizeiro ficar liso e os caminhos mais perigosos e
insalubres para o apanhador. Nesta situação, além da quantidade de frutos diminuírem
no Porto do Açaí, a qualidade do produto também sofre alterações, pois “o açaí não
gosta muito de chuva” depois de apanhado, já que os caroços, às vezes, não amolecem
quando estão molhados ou chegam moles e azedos ao porto, principalmente quando os
frutos são encharcados pelas águas do rio.
A chegada da safra de outras frutas também tem consequências para a atividade,
segundo muitos maquineiros. Quando os apanhadores começam a trazer, juntamente
com o açaí, paneiros com taperebá e miriti15 para o Porto do Açaí, isto é considerado
como um “mau sinal”, porque marca empiricamente para os grupos do local o final da
safra do açaí e, consequentemente, o começo da entressafra desse fruto nas regiões que
abastecem o porto do Jurunas. Quanto mais cedo isso acontecer, para o maquineiro e
para apanhadores, mais curta será safra do “fruto precioso”. A chegada da época do
camarão também funciona de modo análogo ao das frutas.
Outras representações que os maquineiros levam em conta, no momento da
compra do açaí, estão relacionadas com a região, com a “medida” dos paneiros e
rasas, com o apanhador, com o preço e com a qualidade do açaí. Com relação à
primeira, há uma preferência dos maquineiros e marreteiros do Jurunas pelo açaí da Ilha
das Onças, por ser um açaí de excelente sabor, cuja produção e “medida” não obedece
ao padrão da lata16, e por isso é considerado um dos melhores produtos de revenda,
particularmente para os marreteiros, além do que a região é relativamente próxima do
Porto do Açaí. Mas existe um número considerável de pessoas que trabalham com açaí
de outras regiões, como é o caso dos trabalhadores que só comercializam os frutos
vindos da Ilha do Marajó, como o município de Muaná, por exemplo.
15
Frutas típicas da região. A safra dessas frutas geralmente coincide com a entressafra do açaí.
Utensílio usado para medir o açaí por quem trabalha na atividade de venda. Cada lata, em média,
equivale a 14,2 kg, de acordo com Homma (2006).
16
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A “medida”17 é de grande importância para os maquineiros. Por isso, quanto
maior a quantidade de açaí nas rasas, paneiros e “basquetas”, melhor será a compra
que ele realizou. O açaí da Ilha das Onças, considerado de “medida boa”, não segue
uma padronização de medida, pois os tamanhos de rasas são variados, o que permite ao
maquineiro dar até duas “batidas a mais”, quando comparado aos frutos medidos na
lata, bem como ter um faturamento maior. Os açaís de Ponta de Pedras, de Atatá
(Marajó) e de Abaeté, apesar de serem de boa produção e de gosto bom, são
considerados “mal medidos” pelos maquineiros. Muitos são alertados pelos
carregadores quando a saca com açaí ficou com “orelha de coelho” após a “virada do
açaí” nas sacas e a costura das mesmas.
Escolher um bom apanhador também pode representar uma boa compra. Os que
trabalham selecionando bem os frutos maduros ou trazem rasas consideradas de
“medida boa” têm suas apanhas disputadas pelos maquineiros. Além de observar estas
duas primeiras qualidades, os maquineiros identificam o bom apanhador através dos
símbolos pintados nas rasas ou paneiros. Em geral esses itens representam a abreviatura
do nome do apanhador, o local de origem do açaí, etc.. Muitos ainda utilizam apenas
uma cor específica para serem identificados pelos maquineiros e carregadores.
“Açaí bom é açaí barato!” Essa afirmação tem peso no Porto do Açaí, já que
quanto mais dinheiro sobrar da ida ao porto, maior a rentabilidade dos maquineiros no
final do dia. Mas nem sempre isto é assim, pois o dito popular “o barato pode sair
caro”, vez ou outra faz grande sentido no dia a dia dos trabalhadores do porto,
principalmente dos maquineiros. Por isso, muitos deles preferem pagar mais caro por
um açaí que tem retorno garantido, do que se arriscar a pagar barato e não servir bem os
fregueses ou “não ganhar nada”, devido a uma péssima compra do produto.
A qualidade dos furtos é também essencial. O açaí com mais de vinte e quatro
horas de “apanhado” já não apresenta uma boa qualidade, entrando num estágio que
fica conhecido pelas pessoas que trabalham com o fruto como “moqueado”. Cor, sabor
e produção nesta situação sofrem alterações substanciais que desvalorizam o produto.
Os frutos maduros são chamados de “preto” e “tuíra” pelos trabalhadores do local. O
açaí “preto” é aquele que acabou de ficar maduro, enquanto o “tuíra” revela sinais de
17
No Porto do Açaí a medida é muito relativa. Há uma variação de pesos e tamanhos de paneiros,
conforme a região e o período. Os paneiros com açaí que vem de Ponta de Pedras, no Marajó, por
exemplo, vão diminuindo quando a safra da referida região está chegando ao final, entre os meses de
janeiro e fevereiro.
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que o açaí começou a passar do ponto de amadurecimento e começou a secar, ou seja, o
fruto já está perdendo características de um bom fruto para produção do açaí. Muitos
maquineiros dão preferência ao açaí preto; outros gostam do “tuíra” por acreditarem
que esta característica sinaliza para um açaí de boa produção. Tudo isso só se revela
mesmo é na baiúca onde se produz o açaí, após a primeira “batida” (despolpamento)
dos caroços.
A comunicação via celular tem afetado a compra do açaí no Porto do Açaí.
Antes da popularização do celular, os grupos que trabalham na comercialização do
produto tinham como base de negociação o preço das feiras dos dias anteriores. Com o
uso dessa tecnologia, principalmente produtores e apanhadores, começaram a atropelar
as etapas tradicionais dessas negociações. Muito produtores entram na relação e “já vêm
com o preço” estipulado, reclamam alguns maquineiros e marreteiros.
Na
entressafra,
a
responsabilidade
de
comprar
bons
frutos
cresce
consideravelmente para o maquineiro, pois o açaí, além de escasso, não produz um
“vinho” consistente e o preço da rasa, lata, “basqueta”, paneiro de açaí fica muito
elevado. Como dito acima, um número considerável de maquineiros realizam um
processo de deslocamento do Porto do Açaí, no Jurunas, para a Feira do Açaí, no bairro
da Cidade Velha, no fim de cada ano. Neste período, o maquineiro enfrenta frias
madrugadas sob chuvas fortíssimas, açaí de má qualidade (muito molhado e azedo) e o
risco de ser assaltado, para conseguir ao menos “tirar o bebe”18. O fluxo contrário se dá
a partir do final do mês de fevereiro, quando a quantidade de açaí para venda diminui
muito na “pedra” do Ver-o-peso e os maquineiros retornam para o porto ou param de
trabalhar. Outros ainda optam em comprar bacaba ou miriti, para extrair “vinhos”
bastante apreciados no Jurunas19, como opção de sustento familiar e substituição, até
que o precioso fruto volte a aparecer em volume suficiente.
Considerações finais
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É a parte do “vinho” produzido nos pontos de venda que se destina ao consumo da família dos
maquineiros. O “bebe” não segue um padrão em relação à consistência do “vinho” (fino, médio, grosso),
depende muito do hábito de cada família. Já quanto à qualidade, em geral, é extraído dos melhores frutos
que chegam aos locais de venda. Atualmente a expressão continua sendo utilizada pelos maquineiros com
a mesma representação. Os ribeirinhos também chamam de “bebe” a quantidade de frutos apanhados para
alimentação familiar, apenas o excedente que é tirado dos açaizais é vendido nas feiras e nos portos.
19
Nem todos os maquineiros se arriscam na compra da bacaba e do miriti. Ela requer, assim como a do
açaí, muita experiência, além de habilidade e utensílios específicos para despolpá-los.
15
Neste trabalho buscamos descrever as relações e as práticas comerciais que são
vivenciadas por vários grupos de trabalhadores no cotidiano do Porto do Açaí, bairro do
Jurunas, Belém, destacando o grupo dos maquineiros de açaí. Na primeira parte,
destacamos como os maquineiros e outros grupos vão construindo um conjunto de
relações muito interessantes e, em certos aspectos, específicas daquele lugar, cujos
termos nativos nos dão o tom, os ritmos e as dinâmicas locais. Essas relações, apesar de
sua natureza comercial, trazem consigo particularidades dos costumes e da sociabilidade
local. Peculiaridades que acabam por engendrar linguagens e sentidos que ajudam a
interpretar a circulação desses grupos sociais no Porto. Assim sendo, ser “rói-rói”,
“olhão”, “salgador”, são expressões que talvez não tenham nenhum sentido para os que
estão apenas de passagem, mas para os nativos carregam os significados de suas práticas
sociais e simbólicas, enquanto sujeitos participantes do cotidiano desse porto jurunense.
Descrevemos como esses grupos de trabalhadores, em especial os maquineiros,
têm que possuir um conhecimento prático, um conjunto de saberes culturais acumulados
para realizar a compra dos frutos açaí, no Porto, considerando alguns dias da semana,
datas festivas, fenômenos naturais, como, por exemplo, a sazonalidade, pois parece que
no Porto do Açaí tudo tem seu tempo: os tempos do açaí.
Assim, buscamos capturar e registrar um pouco dessa realidade, apurando os
sentidos para ver, ouvir, viver esse cotidiano do porto, cujos ritmos e sonoridades,
apreensíveis e compreensíveis aos grupos que nele convivem, mantêm ainda muitas
formas, ruídos e nuances que continuam a nos desconcertar.
Referências
BASSALO, Terezinha Ribeiro. Diálogos com a metrópole: um estudo antropológico
sobre os moradores da ilha do Maracujá em relação de proximidade com a
metrópole Belém (PA). Dissertação (Mestrado). Universidade Federal do Pará,
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Belém, 2011.
BORGES, Marcos Trindade. Cheguei ao Jurunas, amassei, bati, vendi, fiquei: uma
breve abordagem etnográfica sobre os maquineiros de açaí do Jurunas (Belém-PA).
Trabalho de Conclusão de Curso, Graduação em Ciências Sociais, Universidade Federal
do Pará, Belém, 2008.
__________ Do Porto à mesa: etnografia dos fluxos de comercialização, circulação e
consumo do açaí no bairro do Jurunas, Belém-PA. Dissertação (Mestrado),
Universidade Federal do Pará, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais,
Belém, 2013.
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BOURDIEU, Pierre, Razões práticas: Sobre a teoria da ação. Campinas, SP: Papirus,
1996.
HOMMA, Alfredo, et alli. Açaí: Novos desafios e tendências. Disponível em:
www.florestavivaextrativismo.org.br/download/documentos/2006_oyama_acai.pdf.
Acesso 25/09/2008.
MARINHO, José Antônio Magalhães. Os agentes comerciais e a circulação do açaí.
In: das Relações Socioeconômicas e Ecológicas no Extrativismo do Açaí: o caso do
médio Rio Pracuúba, São Sebastião da Boa Vista, Marajó (Pa). Dissertação (Mestrado)
UFPA/NAEA, Programa de Pós-Graduação Internacional em Desenvolvimento
Sustentável do Trópico Úmido/Mestrado em planejamento do Desenvolvimento.
Capítulo 7, p 138-161, 2005.
PÚBLICO. Trabalhadores de dois portos vão à OAB: o Portal da Amazônia prevê
a retirada dos portos do Açaí e da Palha, inviabilizando o comércio. 17 fev. 2009.
Caderno Dia a Dia, p.A9.
RODRIGUES, Carmem Izabel. Vem do bairro do Jurunas: sociabilidade e
construção de identidades em espaços urbanos. Belém: Editora NAEA, 2008. 354p.
17
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RELAÇÕES E PRÁTICAS COMERCIAIS NO PORTO DO AÇAÍ