pescadores reportagem Texto: Sofia Ferreira Fotos: Jorge Aguiar Ondas da vida Como é a vida de um pescador? Quais os riscos e perigos que enfrenta? Como chega o peixe aos nossos pratos? A VIVA quis ter resposta a todas estas (e muitas outras) questões e embarcou para o alto mar, para acompanhar o dia-a-dia de um pescador de sardinhas. 16 O relógio marca a hora, são 23h30. A equipa de reportagem da VIVA prepara-se para ir para alto mar, acompanhar a pesca da sardinha com os pescadores de Matosinhos. A partida está marcada para a meia-noite, hora em que dezenas de embarcações deixam o porto da Doca Pesca, sem saber aquilo que o mar lhes reserva. Nas embarcações assiste-se ao reboliço dos preparativos. Os homens limpam os barcos, preparam as redes e testam os equipamentos, esperançados que o mar os presenteie com uma boa pesca. Entre cigarros, vão conversando, sempre com sorrisos esboçados no rosto. A alegria parece ser uma constante na vida destes homens do mar. O mestre da embarcação Portugal Jovem começa a alertar os seus companhas que o vento não está favorável. Prevê uma noite agitada no mar, com muita nortada e ondulação forte. “A partida vai ser adiada”, diz o mestre José Ferreira, explicando que quando o mar está agitado “nunca se sabe a hora de partida e muito menos a de chegada”. Continuamos a aguardar, e começamos a sentir o espírito especial que une aqueles homens. Mas a verdade é que só vamos poder perceber as suas vidas e a sua difícil profissão quando navegarmos em direcção ao alto mar. Passam dez minutos da uma da manhã. O mestre ordena a partida. “Está na hora companheiros”. O motor liga-se, começa a ouvir-se o barulho do rádio intercomunicador e no convés tudo está a ser preparado. Ao mestre José Ferreira compete-lhe a principal missão de guiar os seus homens no mar. “Ser mestre é uma função, um emprego, uma responsabilidade”, afirma. “Quando vou para o mar Deus vai comigo, acompanha-me e guia-me”, partilha. À medida que nos vamos afastando do porto, a paisagem torna-se indescritível. Tal como a Portugal Jovem, várias são as embarcações que só ago17 pescadores reportagem vão seleccionando as sardinhas, limpando o barco e arrumando as redes. A bordo têm contentores, devidamente preparados, para transportar o peixe e mantê-lo fresco até chegar a terra. Terra à vista ra decidem partir. As luzes dos barcos proporcionam uma visão memorável, numa noite fria de Agosto. E entretanto deixamos de avistar o porto. “Nunca sabemos o quanto nos vamos afastar da costa. As sondas e o nosso instinto é que nos guiam até aos cardumes de sardinha”, diz José Ferreira. “Tanto podemos ter sorte e encontrar a sardinha não muito longe da costa, como ter que navegar 15 milhas”, acrescenta. Pela frente há só o mar. O mar e os homens que nele se aventuram para trazer as melhores sardinhas a porto seguro. Os minutos passam, a terra vai ficando longe. São horas dos homens irem para os seus camarotes descansar, enquanto não começa a “caça” à sardinha. Dividem-se em dois grupos. Cada grupo terá que fazer um turno, de duas em duas horas a vigia é mudada. Por sua vez, o mestre mantém-se firme no seu lugar. Sempre bem acordado e atento. “O mar para mim representa, para além de uma profissão, aquilo que eu mais gosto na vida. Desde pequenino que tenho uma ligação muito forte ao mar. O mar apaixona-me. Tinha 20 anos quando comecei a minha carreira de pescador”, conta José Ferreira, hoje com 43 anos. Embora tenha sido persistente quanto ao seu sonho, espera que os seus filhos não sigam as suas “pegadas”. Questionado quanto aos riscos de ser pes18 cador, mestre Ferreira diz que actualmente a pesca não representa um perigo tão grande. “Antigamente não tínhamos acesso a informações meteorológicas actualizadas, nem os barcos eram tão bem equipados. Hoje vamos bem preparados e prevenidos para o mar. Quando o mar está muito perigoso sabemos que não devemos ir e não vamos. Para mim os maiores riscos que enfrentamos no nosso dia-adia são os acidentes de trabalho. Esses sim são difíceis de prever”, sustenta. Momento da verdade O cheiro do mar torna-se cada vez mais intenso. O frio é esquecido perante a imensidão do oceano. As horas passam e um dos momentos mais aguardados aproxima-se. Um momento que justifica todo um trabalho de uma tripulação – o lançamento das redes. São 3h25, o motor desliga-se e o mestre decide lançar as redes. Redes de 800 metros que se espera que venham carregadas de “riquezas” do mar. Enquanto se aguarda o pescado, os homens vão conversando sobre variados temas, aquecendo-se com um café forte. Futebol, eleições, crise e gripe A são os assuntos de uma madrugada fresca e nublada. Finalmente chega o momento. O mestre toca a sineta do barco para alertar os homens que a sardi- nha entrou na rede. Todos os tripulantes acordam e apressam-se a subir para o convés. Passaram duas horas desde que a rede foi lançada. “Hoje a espera não foi muita. Nunca sabemos quando a sardinha vai entrar na rede, é um momento que não tem hora marcada. O que interessa é que entre. Chegar a terra com sardinhas é a nossa melhor recompensa”, afirma José Ferreira entusiasmado. Entusiasmo partilhado com os seus companhas que puxam as redes. Avelino Castro, pescador há 35 anos, diz que “a vida de pescador é dura” mas que um dia de “pesca boa traz muita felicidade a todos”. “Bom é vir para o mar, pescar sardinhas, chegar a terra e poder vender o pescado para ganhar tostão”, diz animado. “O melhor de ser pescador é estar no mar, o nosso grande amor. Para mim isto é tudo. Embora tenha já 51 anos, continuo a querer ir para o mar, se bem que já precisava de descanso”, brinca. Após a recolha das redes chega a vez de regressar o quanto antes a terra. A ansiedade é muita. O mestre volta ao seu posto e os restantes homens A viagem de regresso é marcada pela azáfama dos homens. De repente avista-se terra. Parece tão perto e ao mesmo tempo tão longe. Para estes homens o mar é tudo, mas é em terra que os esperam as suas famílias e o descanso merecido. Para mestre Ferreira “avistar terra é uma normalidade”. “É o mesmo que estar quase a chegar a casa após sair do trabalho. Se fizermos boa pesca, avistar terra significa alegria, se não o fizermos quer dizer que vamos chegar danados. É o pior que pode acontecer a um pescador”, refere. As gaivotas começam a cercar o barco. Buscam o alimento mais fresco dos mares e assinalam que a pesca da embarcação foi boa. São 7h50, a manhã é de nevoeiro cerrado e, o dia destes bravos homens está a chegar ao fim. Vários são os barcos que chegam ao porto. Vêem-se as caras conhecidas, felizes, pelo regresso bem-aventurado dos homens. O barco atraca. É a total euforia. Os tripulantes começam por descarregar o peixe, para que possa seguir para a lota, onde vai ser avaliado. “O mercado da sardinha está bom. A venda do pescado vai depender da sua qualidade, da oferta e da procura de quem está na lota”, diz o mestre do Portugal Jovem. O ritmo de trabalho é impressionante. O cansaço é esquecido, dando lugar a risadas e plena 19 pescadores reportagem boa disposição. Após descarregar as sardinhas, os trabalhadores limpam e desinfectam o barco. Mais um dia de trabalho chega ao fim. “Depois de um dia de trabalho vamos descansar. Quem trabalha de noite, quer descansar de dia”, salienta, entre risos. O destino de uma sardinha A sardinha depois de pescada tem três destinos: o consumo de primeira venda (Lota da sardinha), o comércio de rua e a indústria de conserva. Após os pescadores atracarem, as suas sardinhas seguem, primariamente para a Lota da sardinha, onde o peixe é avaliado e devidamente leiloado. Nesta lota os compradores resumem-se aos que compram em grandes 20 quantidades para depois vender em variados locais e zonas. No leilão a algazarra é total. Todos observam o peixe e querem-no comprar ao melhor preço com a melhor qualidade. Joaquim Amaral, comprador de sardinha há 30 anos, sabe como ninguém reconhecer o valor do preço de cada cabaz e explicou-nos este processo. “No painel electrónico que está na lota vê-se o valor da sardinha em euros e escudos. Consoante a qualidade, tamanho, aspecto e peso da sardinha o valor aumenta ou diminui. O leilão é feito por cada pescado da embarcação. O comprador tem que estar atento ao peixe e decidir a quanto o quer comprar e para que efeito é. Depois é só escolher a quantidade”, explica. A sardinha pode também ser vendida nas lotas comerciais ou na venda ambulante nas ruas. Mas a transformação da sardinha na indústria da conserva, ganha maior atenção. É o caso da Fábrica Pinhais que a VIVA visitou após a jornada ao mar. Esta fábrica, 100% tradicional e genuinamente do Norte, é das poucas que sobreviveu à crise da indústria da conserva, sendo a única a nível nacional que produz tudo manualmente. António Pinhal, filho do fundador da fábrica (cujo nome é também António Pinhal) acompanhounos na visita e mostrou-nos a transformação da sardinha passo-a-passo. “Quando a sardinha chega, as trabalhadoras retiram a cabeça e as tripas manualmente, uma a uma, seguindo para as salmouras. Depois, cada uma é lavada e cozida. Após a sardinha arrefecer volta a ser devidamente aparada e temperada e colocada na lata que depois é mergulhada em azeite. Depois de lacradas as latas são lavadas e esterilizadas”, explica, acrescentando que todas estas etapas são realizadas manualmente pelas 120 mulheres que emprega na fábrica. “As etapas finais são o controlo da qualidade e o empapelamento. Após as latas estarem esterilizadas seguem para o armazém, onde trabalhadoras conferem a sua qualidade, uma a uma. Depois, também manualmente, cada lata é empapelada e, uma vez mais, controlada a sua qualidade”, refere António Pinhais. Por dia são produzidas, em média, 30 mil latas nesta fábrica. Após a visita à fábrica, chega a vez de um momento que não poderia faltar. A prova da sardinha. São já 13 horas, e o almoço decorre no restaurante Valentim, quase em frente à Doca Pesca. Esta é a nossa recompensa após um dia a acompanhar a “vida de uma sardinha”. Q 21