Saúde do trabalhador: o alcoolismo como sintoma do sofrimento dos Policiais Militares de Alagoas 1 Larissa Paes de Omena2 Carlos Frederico de Oliveira Alves3 Resumo Este artigo discute a relação entre o alcoolismo e o sofrimento do trabalhador, especificamente o Policial Militar, através de uma ótica social, que focaliza não apenas o sujeito que sofre, mas os determinantes sociais e institucionais a que ele está submetido cotidianamente. Para contextualizar a discussão sobre o tema realizou-se um breve resgate sobre o papel do trabalho na vida do ser humano, enfocando o estresse enquanto um continum que envolve as dimensões pessoal, social, concreta e institucional, aparecendo enquanto conseqüência do sofrimento no trabalho. O estresse no âmbito da Policia Militar é apresentado, focalizando os fatores que contribuem para a demanda excessiva de agentes estressores no trabalho do policial militar, tais como urgência de tempo, responsabilidade e expectativas excessivas, falta de apoio, privação de sono, perspectivas pessimistas, perigo constante de morte, relação hierarquizada rígida e ergonomia. O alcoolismo, então, é trazido na perspectiva da saúde pública e focalizado dentro da instituição policial militar enquanto um dos maiores problemas enfrentados pela instituição, caracterizando-se enquanto sintoma do sofrimento no trabalho. O que se busca é um redimensionamento do olhar acerca do alcoolismo e do sofrimento do trabalhador dentro da Policia Militar a partir da mudança do paradigma clínico para o social, de forma que a instituição se torne um lugar de saúde e crescimento pessoal. Palavras-Chaves: Saúde do Trabalhador; Alcoolismo; Policia Militar 1 Artigo apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas para obtenção do título de Especialista em Saúde Mental. 2 3 Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Alagoas, Psicóloga da Policia Militar de Alagoas. Psicólogo, professor da Faculdade Integrada Tiradentes (FITs). Sanitarista. Mestre em Psicologia Clínica; orientador. 2 Abstract This article argues the relation between alcoholism and the suffering of the worker, specifically the Military Policeman, through a social optics, that the citizen focuses not only that suffers, but determinative social and institucional the the one that it is submitted daily. To contextualizar the quarrel on the subject a briefing was become fullfilled has rescued on the paper of the work in the life of the human being, focusing it one estresse while continum that it involves the dimensions personal, social, concrete and institucional, appearing while consequence of the suffering in the work. It estresse it in the scope of Military Policia is presented, focusing the factors that contribute for the extreme demand of agent estressores in the work of the military policeman, such as time urgency, extreme responsibility and expectations, lack of support, pessimistic privation of sleep, perspectives, constant danger of death, rigid hierarquizada relation and ergonomics. Alcoholism, then, is brought in the perspective of the health public and focused inside of the police institution to militate while one of the biggest problems faced for the institution, characterizing itself while symptom of the suffering in the work. What if it searchs is a redimensionamento of the look concerning alcoholism and the suffering of the worker inside of Military Policia from the change of the clinical paradigm for the social one, of form that the institution if becomes a place of health and personal growth. Key Words: Health of the Worker; Alcoholism; It polices To militate 3 1. Saúde e sofrimento do trabalhador: a questão do Estresse O trabalho nem sempre ocupou o lugar que tem hoje na vida do ser humano. Na Grécia antiga, o trabalho era ofício dos escravos, sendo resguardado aos “cidadãos” o desenvolvimento intelectual. Na Idade Média, com o feudalismo, os servos trabalhavam nas terras dos reis e senhores feudais, existindo uma parcela da população – homens livres- que detinham seus próprios meios de produção, se destacando como artesãos e comerciantes. Com o desenvolvimento do capitalismo, as bases fundamentais das relações de trabalho se modificaram, criando o antagonismo entre duas classes distintas: a burguesia e proletariado. Marx & Engels discorrem sobre o espectro do trabalho, aplicando o termo “alienação” para designar o sofrimento do homem diante de sua relação com os meios de produção: O desenvolvimento da maquinaria e a divisão do trabalho levam o trabalho dos proletários a perder todo caráter independente e com isso qualquer atrativo para o operário. Esse se torna um simples acessório da máquina, do qual só se requer a operação mais simples, mais monótona, mais fácil de aprender. (MARX& ENGELS, 2002, p.52)) Na atualidade, o trabalho ocupa papel central na teia das relações sociais do ser humano, já que é no trabalho que o homem moderno passa a maior parte de seu tempo. Por esse motivo, nos últimos anos, tem se falado muito em qualidade de vida no trabalho, principalmente na perspectiva de identificar os fatores que estariam relacionados ao bom desempenho do indivíduo. Essa preocupação deve-se, em grande parte, ao interesse dos empregadores em diminuir o afastamento de seus empregados e garantir melhor produtividade. 4 Um dos temas que tem recebido destaque nas discussões referentes à saúde do trabalhador está relacionado ao conceito de estresse e suas repercussões no homem em seus diversos aspectos: físico, psíquico e social. O termo estresse foi usado originalmente no sentido de denominar “um conjunto de reações que um organismo desenvolve ao ser submetido a uma situação que exige esforço para a adaptação” (SEYLE apud RODRIGUES & GASPARINI, 1992). Ou seja, quando o equilíbrio do organismo está ameaçado, ele responde de modo uniforme e inespecífico, através do que Seyle denominou de Síndrome da Adaptação Geral. De acordo com as postulações de Seyle, o processo de estresse é constituído de três fases: Alerta, Resistência e Exaustão. A reação de alerta, primeira das fases, consiste nas primeiras respostas do organismo frente a um novo elemento estressor: à medida que ocorre a quebra do equilíbrio interno o organismo reage, preparando-se para “a luta ou fuga” (CANNON apud LIPP, 2001). Tal reação é reconhecidamente um elemento de grande valia no processo de preservação da vida e manutenção das espécies. Na fase de resistência, o organismo investe energia no seu reequilíbrio interno. Neste sentido, Lipp (2001) destaca: Se essa reserva é suficiente, a pessoa recupera-se e sai do processo do stress. Se, por outro lado, o estressor exige mais esforços de adaptação do que é possível para aquele indivíduo, então o organismo se enfraquece e torna-se mais vulnerável a doenças. (p.23) Sendo incapaz de restabelecer o equilíbrio, o organismo vivencia a última fase: exaustão ou esgotamento, onde as reações presentes na primeira fase reaparecem e o organismo se encontra em colapso, tendo como consequencia o adoecimento. 5 Ampliando a perspectiva de Seyle, diversos autores (BALLONE, 2002; SAMPAIO, 2004; FRENEDA, 2004) têm apontado o estresse como uma das principais conseqüências do sofrimento no trabalho. Cotidianamente, o homem é colocado diante de situações que exigem adaptação. Segundo Ballone (2002), há uma ampla área da vida moderna onde se misturam os estressores do trabalho e da vida cotidiana. A pessoa, além das habituais responsabilidades ocupacionais, da alta competitividade exigida pelas empresas, das necessidades de aprendizado constante, tem que lidar com os estressores normais da vida em sociedade, tais como a segurança social, a manutenção da família, as exigências culturais etc. O desgaste emocional a que pessoas são submetidas nas relações com o trabalho é fator muito significativo na determinação de transtornos relacionados ao estresse, como é o caso das depressões, ansiedade patológica, pânico, fobias, doenças psicossomáticas, alcoolismo etc. Em suma, submetido a exposição constante a agentes estressores relacionados ao seu fazer profissional, o sujeito apresenta maior vulnerabilidade, de modo a comprometer sua resposta à demanda do trabalho, podendo vir a desenvolver respostas patológicas, geralmente identificadas como irritabilidade, nervosismo, humor deprimido, dentre outros.4 Segundo Grandjean (1998), estresse ocupacional pode ser definido como sendo o estado emocional causado por uma discrepância entre o grau de exigência do trabalho 4 Segundo a literatura (LIPP, 2001; COVOLAN, 2001; MELLO FILHO, 1992; HIRIGOYEN (2002); RODRIGUES & GASPARINI, 1992), o estresse pode contribuir para a etiologia e ontogênese de diversas doenças psicofisiológicas, como fator contribuinte ou desencadeador. Entre elas, ressaltam-se: úlceras digestivas, crises hemorroidárias, alterações da pressão arterial, alterações nas paredes dos vasos sangüíneos, diversas afecções dermatológicas, manifestações alérgicas, artrites reumáticas e reumatóides, perturbações sexuais, comprometimento do sistema imunológico, além de alterações no humor, apatia, irritabilidade, quadros depressivos, ansiosos e psicóticos diversos. (ALVES,2005) 6 e os recursos disponíveis para gerenciá-lo. O autor enfatiza o componente subjetivo do estresse, relacionado à compreensão individual da incapacidade de gerenciar as exigências do trabalho por parte do trabalhador. Entretanto, é importante destacar que o estresse apresenta uma importante dimensão concreta e institucional, que não deve ser negligenciada nas discussões acerca do sofrimento no trabalho, para que não se caia no erro de culpabilizar o sujeito que sofre enquanto único responsável por sua situação de sofrimento. Geralmente, o estresse do trabalho pode surgir de uma carga excessiva de cobrança do empregador ou do próprio empregado, pela ausência de políticas de relaxamento e prevenção, bem como por jornadas excessivas e pela necessidade de cumprimento de metas exíguas e rígidas, inexistência de clareza ou até mesmo a inexistência de políticas de estímulos e evolução de cargos e salários na instituição (FRENEDA, 2004). De acordo com Iida (2002), as causas do estresse são muito variadas e possuem efeito cumulativo. As exigências físicas e mentais exageradas provocam estresse, mas este pode incidir mais fortemente naqueles trabalhadores já afetados por outros fatores, como conflitos com a chefia ou até mesmo problemas de ordem particular, como questões familiares, por exemplo. A sobrecarga de agentes estressores, enquanto um estado no qual as exigências do ambiente excedem nossa capacidade de adaptação, também pode ser considerada um fator importante para eclosão do estresse patológico no trabalho. Ballone (2002) aponta ainda uma importante questão relativa ao estresse ocupacional, diz respeito ao o tipo de tarefa desempenhada pelo trabalhador nas instituições. Segundo o autor, as atividades destituídas de significação, repetitivas ou desinteressantes podem produzir estresse, uma vez que não exigem do indivíduo 7 criatividade, superação e autonomia, corroborando as discussões trazidas por Dejours (1992). Um dos agravantes do estresse ocupacional é a limitação que a sociedade submete as pessoas quanto às manifestações de suas angústias, frustrações e emoções. Por causa das normas e regras sociais as pessoas podem sentir-se obrigadas a aparentar um comportamento emocional incongruente com seus reais sentimentos, amplificando sua situação de conflito e sofrimento. 2. O Estresse no âmbito da Policia Militar A problemática referente ao estresse ocupacional deve ser amplamente considerada no âmbito da Policia Militar, uma vez que esses profissionais por ocuparem um papel de agentes de segurança pública, se vêem constantemente expostos a diferentes agentes estressores em seus mais variados níveis. Segundo Sampaio (2004), um recente estudo realizado pela ISMA (International Stress Management Association) aponta os profissionais de segurança pública - onde se enquadram os policiais militares - como o grupo mais afetado pelo estresse ocupacional. Além disso, comprovou que 70% dos brasileiros sofrem de estresse no trabalho. O mais grave é que 30% dos pesquisados mostraram sintomas da síndrome de Burnout5 que significa um estado de exaustão total, à beira de uma depressão. 5 O termo burnout, aplicado neste sentido, passou a ter destaque a partir da década de 70, ao ser utilizado pelo psicanalista Freudenberger para descrever um indivíduo como estando frustrado ou com fadiga desencadeada pelo investimento em determinada causa, modo de vida ou relacionamento que não correspondeu às suas expectativas. Traduzido do inglês, burnout significa algo como ‘queimar para fora’, ‘perder o fogo’ ou ainda ‘perder energia’. A literatura descreve a Síndrome de Burnout, referindo-se a uma condição de mal-estar psicológico e indisposição que decorre de uma situação de trabalho, vivenciada como estressante e permanente. (ALVES, 2005 ) 8 Dejours apud Benedicto el all (2007) discute a existência de quatro fatores que contribuem para a demanda excessiva de agentes estressores no trabalho, a saber: urgência de tempo; responsabilidade excessiva; falta de apoio; expectativas excessivas de nós mesmos e daqueles que nos cercam. No caso dos policiais militares, a urgência de tempo é prerrogativa da ação profissional, posto que a situação de crise e intervenção da policia ostensiva6 exige uma ação rápida. O tempo é determinante do sucesso das ações e da capacidade de prever, impedir e resolver situações de crise. No que se refere à responsabilidade excessiva, vale considerar o objetivo da Policial Militar, qual seja o de garantir a ordem pública através de atos de prevenção e repressão. Assim, os agentes de segurança carregam a responsabilidade de garantir uma “situação de convivência pacifica e harmoniosa da população, fundada nos princípios éticos vigentes na sociedade” (ALAGOAS, 1992), mesmo quando diversos fatores colaboram em sentido contrário. O profissional de segurança pública, mais especificamente, o policial militar, carrega implícito em seu papel a responsabilidade de promover o bem-estar da população, mantendo a calma, controle e coerência em suas ações. Tais fatos levam-no a defrontar-se o tempo todo com a polaridade: expectativas versus limitação, além de favorecer um intenso gasto de energia, na busca pela manutenção de estereótipos e representações, reforçando a imagem de força e imunidade. Tais representações em muito contradizem suas experiências corriqueiras de impotência, não-saber e fragilidade. 6 Policia Ostensiva: é o ramo da policia administrativa que tem atribuição à prática de atos de prevenção e repressão destinadas à preservação da ordem pública. 9 A falta de apoio é uma outra realidade vivenciada pelos policiais. Dentre tantas outras coisas, pode-se claramente destacar a dualidade vivenciada pelos policiais frente àquilo que lhes seria mais básico e primordial, a saber a manutenção de sua própria segurança. Em muitos Estados, como em Alagoas, o Centro de Assistência Social (CAS) e o Centro Hospitalar da Policia Militar (CHPM) são tentativas de garantir apoio aos policiais por meio do acesso a serviços de saúde e sociais. Entretanto, dentro dos batalhões e unidades policiais o apoio nem sempre se efetiva, e as relações hierárquicas, muitas vezes, contribuem para isso. Além desses fatores, a dinâmica de trabalho do Policial Militar possui características bastante peculiares, relacionadas às questões como: privação de sono, perspectivas pessimistas, perigo constante de morte, relação hierarquizada rígida, ergonomia, dentre outros. Os indivíduos que trabalham em regime de escala/plantão ou têm trabalho noturno, como é o caso dos policiais, geralmente possuem um sono de má qualidade em decorrência do conflito entre ações matinais e noturnas, excesso de ruído diurno, além da própria alteração do ritmo circadiano. Essa má qualidade do sono acaba provocando aumento da sonolência no período de trabalho, muitas vezes responsável por acidentes, desinteresse, ansiedade, irritabilidade, perda da eficiência e aumento do estresse. As alterações do sono também podem vir associadas a sintomas depressivos que indicam uma alteração do humor, muitas vezes decorrentes da própria atividade laboral. A esperança, perspectiva ou expectativa otimista é uma das motivações que mais aliviam as tensões do cotidiano. Dentro no trabalho, a perspectiva de ascensão e promoção profissionais é responsável por parte da motivação do indivíduo. Por outro lado, na presença de perspectivas pessimistas a pessoa poderá ficar a mercê dos efeitos ansiosos do cotidiano, sem esperanças de recompensas agradáveis. Há ambientes de 10 trabalho onde o futuro se mostra continuamente sombrio, sem perspectivas de crescimento ou melhoria. Dentro da Policial Militar, a ascensão na carreira é feita através das promoções. De acordo com o Estatuto da Policia Militar de Alagoas em seu Art. 76º: o acesso na hierarquia policial militar é seletivo, gradual, sucessivo e será feito mediante promoção, de conformidade com o disposto na legislação e Regulamento de Promoções de Oficiais e Praças, de modo a obter-se um fluxo regular e equilibrado. (ALAGOAS,2002) Assim, os policiais ascendem gradualmente, galgando posto a posto, após cumprirem o tempo necessário no posto ou graduação em que se encontra no momento. Entretanto, no círculo hierárquico de praças7 a ascensão é lenta, e a maioria dos policiais que entram na corporação como soldado nunca chegará ao círculo dos oficiais 8. A hierarquia9 é uma das bases institucionais da policial militar e é definida como “ordenação da autoridade nos diferentes níveis, dentro da estrutura policial militar” (ALAGOAS, 1992). É um mecanismo legal que ordena as diferentes funções e relação entre os postos e graduações. Segundo o mesmo documento, a subordinação não afeta a dignidade pessoal e o decoro do policial, devendo o superior tratar seu subordinado com dignidade e urbanidade. Na prática, uma relação hierarquizada rígida, muitas vezes, se estabelece, distanciando os elementos da corporação e produzindo uma relação autoritária e perversa, geradora de grande sofrimento psíquico. 7 Compreende: soldado, cabo, sargento e subtenente. Compreende: aspirante a oficial, tenente, Capitão, Major, Tenente Coronel e Coronel. 9 A hierarquia e a disciplina são as bases organizacionais da Policia Militar. Hierarquia é a ordenação da autoridade nos diferentes níveis, dentro da estrutura policial militar. Disciplina é a rigorosa observância e acatamento integral das leis, regulamentos, normas e dispositivos que fundamentam a Organização policial militar. (ALAGOAS,1992) 8 11 Com relação à ergonomia, o conforto humano em seu trabalho deve ser sempre considerado. Atividades que exigem posições anti-fisiológicas, repetição de exercícios danosos, e permanência exagerada em atitudes cansativas fazem parte das exigências posturais a que são submetidas as pessoas durante o trabalho. Dentro da Policia Militar, posturas determinadas pelo Manual de Ordem Unida, como a posição de descansar (pés posicionados na altura do ombro, a mão esquerda segura o braço direito pelo pulso, a mão direita fechada colocada às costas, pouco abaixo da cintura, indivíduo imóvel) e a marcha ordinária, são exemplos de posturas anti-fisiológicas que causam dores e lesões nos braços, ombros, pernas, pés e joelhos. Em pesquisa realizada durante o Estágio de Adaptação de Oficiais (ALAGOAS, 2007), a queixa de dores nos ombros, braços, mãos, pernas, pés e joelhos foi constante, principalmente nos praças. Outra característica peculiar da atividade policial militar é o constante risco de morte. Este profissional está exposto às situações de risco iminente, despertando sentimentos de ansiedade e medo. De acordo com Kovacs (1992) o medo é a resposta psicológica mais comum diante da morte e desempenha papel vital na auto-preservação, entretanto, pode suscitar reações ansiosas e favorecer um estado geral de ansiedade patológica. Diante de todas estas questões abordadas, percebe-se a necessidade, por parte do sujeito, em buscar alternativas para se conviver com situações cotidianas que, muitas vezes, vão de encontro às suas reais possibilidades de enfrentamento. Muitas dessas alternativas terminam por apresentar um caráter patológico, devido, não apenas, ao modo como se desenvolvem, mas, sobretudo, relacionadas aos efeitos negativos que desencadeiam no processo vital do trabalhador. 12 Dentre as diversas situações que se apresentam no cotidiano dos policiais militares, pretende-se destacar o alcoolismo, enquanto sintoma e sinalização de sofrimento, posto que se tornou uma realidade preocupante no âmbito da instituição policial, principalmente pelo risco a que se encontram expostos o policial, seus pares, subordinados e a própria população. 3. Alcoolismo: uma questão de saúde do trabalhador O interesse dos seres humanos pelas substâncias psicoativas parece ser tão antigo quanto á própria existência do planeta. O álcool talvez seja a droga mais antiga utilizada pela espécie humana, havendo vestígios de sua existência desde períodos paleolíticos (WESTERMEYER, 1991 apud BALTIERI, 2004). Foi somente a partir do século XVIII que o conceito de beber excessivamente teve descrição clínica na literatura, começando a relacionar o consumo excessivo do álcool com o conceito de doença. (BALTIERI, 2004) Assim, a questão do uso, abuso e/ou dependência de álcool e outras drogas passou a ser abordada por uma ótica predominantemente psiquiátrica ou médica. Entretanto, as implicações sociais, psicológicas, econômicas e políticas são evidentes, e devem ser consideradas numa compreensão global e completa do problema. (BRASIL, 2004) Em todo o mundo, são evidentes os agravos decorrentes do uso indevido de substâncias psicoativas: acidentes de trabalho, de trânsito, destruição e violência na família, abusos físico e sexual, ineficiência e perdas nos negócios, dentro outros. O estigma, a exclusão, o preconceito, a discriminação e a desabilitação são ao mesmo tempo agravantes e conseqüências do uso indevido de álcool e drogas, colaborando morbidamente para a situação de comprometimento global que acomete tais pessoas. (BRASIL, 2004) 13 Compreendendo a drogadicção como questão de saúde pública, o Ministério da Saúde definiu uma polícia nacional para a atenção integral a usuários de álcool e outras drogas tendo em vista a estruturação e fortalecimento de uma rede de assistência centrada na atenção comunitária associada à rede de serviços de saúde e sociais, com ênfase na reabilitação e reinserção social dos seus usuários. Dentro da Policia Militar, a problemática do uso abusivo do álcool não é recente, e tem sido estudada por profissionais em diversos Estados, no intuito de propor alternativas de tratamento e prevenção dentro de corporação. Na Policia Militar de Alagoas (PMAL), o uso abusivo do álcool é comprovado empiricamente através do absenteísmo e interferência direta na realização da atividade profissional. Além disso, uma pesquisa realizada nas diversas unidades da Policial Militar de Alagoas indica que 75% dos oficiais da PMAL fazem uso de bebida alcoólica, ficando esta porcentagem em torno de 57% nos praças (ALAGOAS, 2002).10 Por sua relevância, o tratamento do alcoolismo está previsto no Plano Estadual de Segurança Publica de Alagoas (ALAGOS, 2003) que define como um dos seus objetivos específicos a prevenção de “comportamentos inadequados provenientes do stress característico dos profissionais da área de segurança pública: prevenir o alcoolismo e tratá-lo como doença.” Outra iniciativa dentro da corporação, voltada para a prevenção do uso do álcool e outras drogas, é o Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência – PROERD - mantido pela Polícia Militar no Brasil, com representatividade em vários Estados. Apesar de importantes, essas iniciativas têm se mostrado insuficientes para resolver a problemática do uso abusivo do álcool dentro da Policia Militar. Fazendo-se 10 Apesar da pesquisa não especificar a modalidade de uso (uso normal, uso abusivo ou dependência), é um importante indicador do potencial da problemática, se considerarmos que o alcoolismo geralmente se desenvolve de maneira gradual e contínua. 14 necessária a ampliação da discussão acerca dos diversos fatores envolvidos em sua determinação, dentre os quais encontram-se as características institucionais que estão gerando o sofrimento psíquico encoberto atrás do uso do álcool. Abordar o alcoolismo como um sintoma de sofrimento psíquico no trabalho, buscando alternativas na área de as saúde do trabalhador é uma nova perspectiva que se impõe àqueles que se propõe a tratar e/ou prevenir o alcoolismo dentro da instituição policial. 4. Alcoolismo como sintoma: um redimensionamento do olhar psicológico Considerar o alcoolismo como sintoma exige a mudança de um discurso centrado no sujeito para focalizar a instituição da qual ele faz parte. É, portanto, uma mudança do paradigma clínico, para o paradigma institucional. Nas palavras de Bleger(1984): a) o psicólogo como profissional deve passar da atividade psicoterápica (doente e cura) à da psico-higiene (população sadia e promoção de saúde); b) para isso, impõe-se uma passagem dos enfoques individuais aos sociais. (p.31) Bleger (1984) discorreu com propriedade acerca da importância da inserção da psicologia dentro das instituições, a partir de um novo paradigma. Para o autor, o objetivo do psicólogo no campo institucional é “conseguir a melhor organização e as condições que tendem a promover saúde e bem-estar dos integrantes da instituição” (p.43). Ao falar em melhor organização e condições, Bleger situa no âmbito institucional a possibilidade de promover a saúde do trabalhador, neste momento, desloca a atenção do sujeito para a instituição, enquanto promotora do binômio saúde/doença. Segundo ele: 15 Toda instituição é o meio pelo qual os seres humanos podem se enriquecer ou se empobrecer e se esvaziar como seres humanos; o que comumente se chama de adaptação é submissão à alienação e a submissão à estereotipia institucional. (BLEGER,1984, p.57) À medida que os trabalhadores se alienam e se empobrecem dentro da instituição, alternativas defensivas são utilizadas para minimizar esse sofrimento. Quando possuidores de estrutura emocional consistente, os trabalhadores podem recorrer a estratégias criativas, e encontrar fora do trabalho prazer e satisfação que anulem as conseqüências negativas da vivencia institucional. Do contrário, comportamentos patológicos, adoecimento e sofrimento psíquico será a resposta do organismo ao sofrimento imposto. Ao estudar uma instituição e o padrão de adoecimento de seus trabalhadores podemos identificar que respostas adaptativas estão sendo utilizadas por aquele determinado grupo social e relacionar aos fatores institucionais desencadeantes. Dentro da Policia Militar de Alagoas, nos meses de maio a julho de 2007, 28,40% dos atendimentos registrados no Centro de Assistência Social (CAS) foram devido a problema com alcoolismo 11. Se considerarmos que, segundo estimativas oriundas de depoimentos dos diversos envolvidos na atenção a essa problemática na PMAL, para cada policial em tratamento existe uma demanda reprimida que ainda não procurou ajuda espontaneamente ou não foi encaminhada por seus comandantes, então, chegaremos um número muito maior. Outros estudos realizados dentro da Policia Militar (ALAGOAS, 2002; ALAGOAS, 2007) indicam que o alcoolismo precisa ser considerado como um problema institucional. 11 Informação obtida através dos prontuários do serviço em 06 de agosto de 2007. 16 Atualmente, as estratégias utilizadas para o tratamento do alcoolismo no âmbito da corporação mantêm o enfoque individual, oferecendo serviços para tratar o sintoma e garantir a volta do policial ao trabalho o mais breve possível. Apesar de importantes, as intervenções no campo da saúde destinadas aos policiais alcoolistas devem ser associadas a ações institucionais que visem promover a saúde dos trabalhadores, a partir da revisão de padrões e paradigmas, com forte ênfase na prevenção e desenvolvimento de estratégias saudáveis de enfretamento de crises. Considerações Finais Diante da gama de questões apontadas, até então, se estabelecem alguns desafios. O primeiro, é considerar a multifatorialidade da problemática do alcoolismo enquanto sintoma do sofrimento do trabalhador, intervindo nos agentes estressores e determinantes do adoecimento. Outro desafio, é a implementação de ações preventivas, através de um processo de planejamento e implantação de estratégias institucionais voltadas para a redução dos fatores de vulnerabilidade e risco específicos, e fortalecimento dos fatores de proteção12, numa perspectiva de promoção de qualidade de vida. O mais importante, entretanto, é transformar a instituição em um lugar de crescimento, segundo a perspectiva de Bleger. Para isso, a instituição deve estar disposta a repensar sua forma de funcionamento, as relações de poder, suas regras, normas, tradições e as relações interpessoais estabelecidas. O desafio está em mudarmos os paradigmas, sem transformar hierarquia e disciplina em sofrimento. 12 Os fatores de risco para o uso de álcool e outras drogas são as características ou atributos de um indivíduo, grupo ou ambiente de convívio social, que contribuem para aumentar a probabilidade de ocorrência deste uso. Os fatores de proteção são os que diminuem as chances de uso. (BRASIL, 2004) 17 Referências bibliográficas ALAGOAS. Estatuto da Policia Militar do Estado de Alagoas. Lei nº 5346 de 26 de maio de 1992. Poder Legislativo, 1992. ALAGOAS. Pesquisa nas unidades da Policial Militar de Alagoas. Maceió-AL. Policia Militar de Alagoas. 3ªsecção – Centro de pesquisa e desenvolvimento. 2002. (mimeo) ALAGOAS. Plano Estadual de Segurança Publica de Alagoas. Secretaria Coordenadora de Justiça e Segurança Pública, 2003. (mimeo) ALAGOAS. Avaliação do índice de capacidade para o trabalho em policiais militares da Academia da Policia Militar Senador Arnon de Melo (APMSAM)- Maceió-AL. 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