Philippa ppag.qxd 4/12/07 9:54 Page 3 FILIPA DE LENCASTRE A RAINHA QUE MUDOU PORTUGAL Philippa ppag.qxd 4/12/07 9:54 Page 5 Isabel Stilwell FILIPA DE LENCASTRE A RAINHA QUE MUDOU PORTUGAL Philippa ppag.qxd 4/12/07 9:54 Page 6 A Esfera dos Livros Rua Garrett, n.° 19 – 2.° A 1200-203 Lisboa – Portugal Tel. 213 404 060 Fax 213 404 069 www.esferadoslivros.pt Distribuição: Sodilivros, SA Praceta Quintinha, lote CC4 – 2.o Piso R/c e C/v 2620-161 Póvoa de Santo Adrião Tel. 213 815 600 Fax 213 876 281 [email protected] Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor © Isabel Stilwell, 2007 © A Esfera dos Livros, 2007 1.a edição: Capa: Fotos da capa: Paginação: Segundo Capítulo Revisão: Impressão e Acabamento: Depósito legal n.° ISBN Philippa ppag.qxd 4/12/07 9:54 Page 7 ÍNDICE I PARTE PHILIPPA, PRINCESA DE INGLATERRA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . II PARTE FILIPA, RAINHA DE PORTUGAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 207 Philippa ppag.qxd 4/12/07 9:54 Page 9 Para a minha mãe, uma autêntica Philippa of Lancaster do século XX – nasceu na mesma região de Inglaterra, veio para Portugal por amor, foi mãe de oito filhos e guiou-se sempre, e acima de tudo, pelas suas convicções religiosas. Philippa de Lancaster.qxd 4/12/07 9:51 Page 11 I PARTE PHILIPPA, PRINCESA DE INGLATERRA «o meu destino, escrevo-o eu!» (1360 – 1386) 11 Philippa de Lancaster.qxd 4/12/07 9:51 Page 12 12 Philippa de Lancaster.qxd 4/12/07 9:51 Page 13 1 Burford Castle, 20 de Maio de 1364 P hilippa não conseguia adormecer. Naquela cama grande que lhe era estranha, estava frio, os lençóis húmidos, e nem as mantas de peles com que a ama a enfaixara como se fosse um bebé, lhe traziam o calor necessário para permitir que o sono a tomasse. Esta cama do castelo de Burford não era a sua, e hoje, ainda por cima, faltava-lhe o corpo quente da ama, Maud, que a pretexto de adormecer a sua menina acabava sempre por passar a noite abraçada a ela. Há quatro anos que era assim, desde que com segundos de vida no último dia de Abril tinha sido posta ao seu peito, a que se agarrara com uma sofreguidão imensa, como ainda hoje se prendia a qualquer colo que a acolhesse. Philippa gostava da noite. Gostava dos rituais que marcavam as horas do fim do dia, e se repetiam, imutáveis, indiferentes ao facto de terem como cenário os luxuosos aposentos do Savoy em Londres, na ala dos Lancasters em Windsor, no aconchego de Kenilworth, nas torres de Bolingbroke, ou como agora, no castelo dos primos, em Buford. Philippa nem sequer se perguntava por que andavam sempre com a casa às costas, nem lhe passaria pela cabeça indagar porque é que o pai, John, ou o avô, Edward, não pareciam capazes de assentar arraiais onde quer que fosse. Mas Maud, nascida e criada em Leiscester, de onde só saíra aos dezasseis anos, depois do desgosto de ver o seu filho morrer-lhe nos braços, para entrar ao serviço como ama-de-leite da princesa Philippa, achava tudo aquilo excentricidades de loucos, e consolava-se, tanto como a sua princezinha, com a organização e disciplina que impunha no seu território: os aposentos da primogénita. 13 Philippa de Lancaster.qxd 4/12/07 9:51 Page 14 Para Philippa estes hábitos certos davam-lhe a segurança de sentir que se tudo mudava lá fora, tudo permanecia igual cá dentro, desde que Maud, e sobretudo a mãe, estivessem por perto. As criadas que a serviam arrastavam dos fogões da cozinha para o quarto de brinquedos, baldes de água quente para encherem a grande tina de madeira polida. Maud enfiava-a na água e ensaboava-a devagarinho, enquanto lhe contava as últimas novidades do dia, ou esquecendo-a, tagalerava com as criadas. Depois tirava-a do banho – era tão delicada que a ama continuava a pegar-lhe como se fosse um bebé – e enrolava-a em toalhas de linho, sentando-a num pouf de carneira frente à lareira, que estava sempre acesa mesmo nestes dias em que a Primavera já tomava conta das árvores, enchendoas de folhas verde-alface. Os cabelos de Philippa eram cor de trigo, mas lisos e baços, sem qualquer sombra de graça, e mesmo os caracóis que em bebé lhe tinham rodeado a cara magra e estreita haviam desaparecido há muito. Maud embebia-os em leite de cabra, para que Philippa não lhe furasse os tímpanos com guinchos sempre que a escova se prendia ao penteá-los. A ama gostava de os deixar soltos, e em cada madeixa de cabelo revivia as doenças que a tinham deixado alerta noite e dia à cabeceira daquela criança sempre frágil e enfermiça, a ansiedade que lhe causava a timidez da menina, que preferia manter-se agarrada às suas saias a brincar com as primas, sobretudo quando toda a família se reunia. E enquanto Maud invariavelmente pensava no passado, Philippa olhava o fogo e procurava encontrar o futuro nas formas das labaredas. O futuro próximo, que se resumia a um só desejo: que a mãe viesse rezar com ela as orações da noite, lhe passasse as mãos pelos cabelos, e entalando os cobertores à sua volta, lhe fizesse por fim uma pequena cruz na testa, a cruz que a protegeria dos fantasmas da noite e a encomendaria a Deus Nosso Senhor, até que o sol voltasse a nascer… As orelhas de Philippa quase cresciam nesse desejo de ouvir o menor sinal, o menor ruído: os camareiros a abrir as portas, as criadas numa roda viva, os saltos da mãe nos degraus das escadas, a porta da nursery a ranger, as argolas da cortina de tapeçaria que tapava a pequena porta, sob o arco de pedra, a deslizarem no varão para um dos lados, deixando entrever a mãe, os seus cabelos loiros brilhantes presos numa trança imensa em redor da cabeça, coberta por uma rede de pequenas pérolas e brilhantes. 14 Philippa de Lancaster.qxd 4/12/07 9:51 Page 15 Philippa dava voltas e voltas na cama. Já se destapara e voltara a tapar, já chamara pela ama, mas sem obter resposta, já martelara as almofadas para lhes fazer um ninho para a cabeça, mas não conseguia adormecer. Hoje olhara para o fogo como sempre e fizera figas atrás das costas: – Philippa, deixe-se dessas heresias, menina, reze aos santos se quer favores, não me cruze os dedos como se fosse uma miúda da rua – dizia-lhe Maud quando a apanhava de dedinhos minúsculos torcidos com força, escondidos do seu olhar. Fizera figas com mais força do que o costume e espevitara os ouvidos como nunca, mas não lhe chegaram nem sons de portas a ranger, nem tão-pouco o toc-toc das polainas da mãe nos degraus do torreão, nem muito menos a cortina a deslizar. Hoje a mãe não viera e a ama Maud não respondera às perguntas com que a metralhara ao jantar. – Coma, princesa, não faça essas bolas na boca, que não tem sorte nenhuma, há-de comer tudo ou não me chame eu Maud de Leiscester, uma terra temente de Deus. Farta de a velar à beira da cama estou eu, e não quero a sua mãe a chamar-me a atenção. Coma, que se não comer, amanhã ainda aqui está, e o fogo apaga-se e a menina tirita de frio que não sou eu que a meto na cama. Comera depressa, só ela sabia com quanto custo fizera passar na garganta aquele pedaço de vianda, e aqueles legumes cozidos, bebera a taça de cidra quente, dobrara o guardanapo no tabuleiro imenso, tudo para que quando a mãe chegasse os criados já tivessem levado as memórias do detestável jantar, e no quarto de brinquedos estivesse só ela e a lareira. A cortina cederia por fim, a mãe entraria com o seu sorriso quente, e viria sentar-se no banquinho de flores bordadas a petit-point, chegando-o para mais perto da filha. E depois de lhe perguntar pelas brincadeiras e pelas orações, estenderia as suas mãos finas cor de pérola e deixaria que a palma da mão passasse suave entre os cabelos soltos que Maud desembaraçara, e Philippa sentir-se-ia a pessoa mais feliz do universo. Fizera tudo certo, tudo bem feito, mas a mãe não chegara. Philippa sabia que não era tão bonita como a mãe Blanche of Lancaster. Herdara dela o cabelo loiro e os seus olhos cor de mar, mas as feições, diziam os criados, as aias, as damas e toda a gente com que se cruzava, eram os da Casa dos Plantagenet, a casa real inglesa, ou seja, as do pai: o nariz comprido e afiado, as maçãs do rosto salientes, os 15 Philippa de Lancaster.qxd 4/12/07 9:51 Page 16 olhos pequenos, um pouco perdidos em arcadas fundas, a boca marcada, no caso do pai, muito marcada e sensual. – Mas ninguém pode ser tão bonita como a minha mãe, porque toda a gente diz que a minha mãe é a mulher mais bonita de Inglaterra. Chaucer até diz que ela é mais bonita do que a rainha-avó, e a Maud garante que, só por dizer uma coisa dessas, o homem pode ficar sem cabeça! – consolava-se a si mesma vezes e vezes sem conta. Porque não era só a beleza de Blanche que apaixonava os cavaleiros e os poetas da corte, fazendo correr a sua fama na boca do povo. Blanche tinha uma suavidade imensa, uma serenidade que aparentemente nada abalava, uma forma de captar o olhar que se cruzava com o seu e de o reter, deixando o interlocutor entontecido como que subitamente promovido a alguém muito especial. A mãe mantinha presa a si a atenção do pai, John, e Philippa já ouvira vezes sem conta as damas a murmurar que «reter o coração do duque» era uma tarefa impossível para qualquer outra mulher, pelo menos da forma permanente e indelével como ela o fizera. Gostava de as ouvir falar assim dos seus pais. Divertia-se a passear silenciosamente entre as tias, as damas e as camareiras, com a consciência perfeita de que os adultos nunca se lembram de que as crianças têm ouvidos. Quando repetia a Maud o que escutara, a ama abanava a cabeça, zangada, e vocifrava: – Quanto mais cabeleiras e chapéus usam na cabeça, menos lá têm dentro! Então não sabem que os duendes pequenos são aqueles que têm as orelhas mais compridas? Numa família de segredos e traições, Maud temia que um dia a sua pequenina Philippa ouvisse alguma coisa que a pudesse magoar. Maud vivia há tempo suficiente naquela casa, naquela corte, para saber aquilo de que as pessoas eram capazes! Mesmo quando tinham perfeita consciência de que podiam estilhaçar o coração de uma criança tão inocente como a sua menina. Mesmo quando o que estava em causa era o seu pai. Decididamente a fé de Maud na lealdade da humanidade já não era forte, mas esmorecia de vez quando se tratava da metade descendente de Adão. E desaparecia por completo quando o homem era John of Gaunt. Philippa de repente teve uma ideia: saiu da cama como uma flecha e voltou para dentro dos cobertores com a mesma rapidez, um espelho de tartaruga na mão. À luz da lareira e das velas que ardiam em 16 Philippa de Lancaster.qxd 4/12/07 9:51 Page 17 redor do seu quarto circular, ou não fosse o maior e o mais alto daquela torre, olhou para a sua imagem reflectida no espelho que a madrinha de baptismo lhe dera e que fazia parte do cortejo de objectos que a seguiam por onde fosse. – Algum dia vou ser parecida com a minha mãe? – perguntava de vez em quando a Maud. A ama estava sempre preparada para a pergunta: – A menina já é linda e vai ser linda como a sua mãe, se comer a sopa toda e deixar que essas bochechas ganhem carne e os seus cabelos se tornem mais fortes, com a força que lhe vem da fruta – respondia, devolvendo-lhe invariavelmente a maçã que ficara intacta, apenas com uma marca dos seus dentes pequeninos. E Philippa prometia a si mesma devorar tudo o que viesse nos pratos e nas malgas de estanho. Mas hoje Maud não respondia quando a chamava. E o espelho parecia hesitante em responder-lhe com a mesma certeza da sua ama. Philippa disse alto, falando sozinha: – Quando me levarem à sala num dia de festa, uma daquelas amigas da mãe vai dizer, julgando que não oiço, «ai, vê-se mesmo que aquela é a filha mais velha de Blanche, é igualzinha a ela»! O som da sua própria voz e a imitação que fizera da dama afectada, deram-lhe vontade de rir, aquele riso em que só os mais próximos sabem detectar uma gota de amargura: nunca seria como a mãe, porque não havia ninguém como ela, nem sequer naquele reino longínquo de Castela de que o pai voltava sempre com um sorriso largo e a pele tisnada pelo sol. Por pensar nele, lembrou-se. O pai hoje estava em casa. Quando, naquela tarde, ajudava Maud a dobar lã na sua salinha, tinha ouvido as trombetas soar, sinal de que o senhor da terra e daquela casa estava a chegar. Atirara ao ar o novelo e correra para a janela, e só não tinha sido repreendida por um gesto tão impulsivo porque Maud fizera o mesmo. Ao ver o séquito aproximar-se a galope, e os portões a abrirem-se de par em par Philippa sentia que lhe faltava o ar – todos vestiam as mesmas capas vermelhas e no ombro esquerdo ressaltava a rosa encarnada dos Lancaster, que tinha o condão de a comover sempre. Atravessara a sala a correr, em direcção ao patamar de onde partiam as escadas de caracol, desceu-as o mais depressa que pôde, a saia presa numa das mãos a outra no corrimão para não cair, até chegar ao varandim da escadaria de onde podia ver a entrada principal. Sentou-se, ofe17 Philippa de Lancaster.qxd 4/12/07 9:51 Page 18 gante: não queria perder nada. Procurou a mãe, como ponto de referência, direita e sorridente no topo da escadaria, como estava sempre que o pai chegava a casa. Mas desta vez não viu ninguém. E o pai nem se deteve surpreendido, entrando pela galeria em passo de corrida. O ruído das suas botas cardadas não conseguia abafar totalmente um som distante e indistinto, que a Philippa pareceram gemidos. Subitamente uma mão segurou-a com força pela gola do vestido: – O que é que a menina Philippa acha que faz aqui? – Era Maud. Philippa agarrou-se a ela com todas as forças que tinha, desesperada por acalmar a ansiedade que crescia dentro de si, e perguntou numa voz que procurou manter firme: – Maud, por que é que a minha mãe não estava à espera do meu pai? Maud fugiu-lhe com os olhos, mas a voz não denunciava nada: – Porque hoje tem coisas mais importantes a fazer! Philippa sossegou, mas mesmo assim fez figas quando ao fim da tarde olhou a lareira e esperou que os compromissos da mãe, estivessem resolvidos antes da hora de lhe vir dar um beijo de boas noites. Mas pelos vistos as suas figas idiotas não serviam de nada. Até a ama lhe dera o banho e o jantar a despachar, para desaparecer também… – Maud – gritou mais uma vez. Mas de Maud, nada. Philippa estava farta de estar ali deitada. Se nem Maud respondia, e a mãe não aparecia, ninguém podia zangar-se com ela por sair da cama, pois não? A camisa de noite de linho grosso não era quente, mas Philippa cobriu-se com o manto forrado das viagens e ainda colocou por cima uma das mantas de pele que a ama lhe deixara sobre a cama. Pensou ir acordar uma das aias, porque não conhecia muito bem este castelo, mas mudou de ideias. Havia de encontrar o caminho, seguindo as vozes e as tochas acesas. Quando, à saída do quarto forrado de tapetes grossos, pôs pela primeira vez os pés nas lajes geladas, deu um grito e um salto para trás, onde o calor do tapete a protegia. Voltou e procurou os chinelos que atirara algures para debaixo da cama. Enrolou-se de novo nas peles e saiu para o corredor – estranho, nem uma criada a cuidar das lareiras, nem uma aia entretida com um bordado por acabar, decididamente esta noite não era como as outras. Uma noite estranha que lhe fazia lembrar uma outra, já há muito tempo, em que deixara de ver a mãe por uns dias, para depois ser levada ao seu quarto, onde deitada e muito pálida, Blanche se agarrara a ela num silêncio profundo e magoado. Philippa era pequenina, 18 Philippa de Lancaster.qxd 4/12/07 9:51 Page 19 mas mesmo então tivera a certeza de que se a mãe não fosse a duquesa de Lancaster, casada com o terceiro filho do rei de Inglaterra, se não tivesse sido educada para esconder as lágrimas, teria chorado e soluçado. Nesse dia em que a mãe a segurara tão perto de si, o medalhão que tinha sempre ao pescoço a roçar-lhe no cabelo, Philippa pressentira nela uma enorme tristeza, que não conseguira partilhar, tal a felicidade de se ver estreitada nos seus braços e, surpresa das surpresas, autorizada a esgueirar-se para dentro dos seus lençóis ficando ali tão imóvel e quieta quanto conseguia. – Se não respirar – pensara a princezinha –, nem a mãe, nem ninguém, se vai lembrar de que aqui estou. Se não me virem, vão deixar-me aqui para sempre, e para sempre, e para sempre… Mas estragaram-lhe os sonhos. Philippa ficara a odiar a camareira que dera por ela e, com um grito de horror, a arrancara do calor da cama da mãe e a devolvera, esperneando de fúria, a uma ama, um bocadinho enciumada: – O raio da gaiata, sempre colada à mãe. Que é mãe, é certo, mas foi do meu leite que bebeu – murmurava Maud enciumada para si mesma, para logo se envergonhar. Quando a retiraram do quarto que o pós-parto obrigava a ser mergulhado na mais completa escuridão, Philippa ficou cega pelo cintilar das tochas. Tão cega que não reconheceu imediatamente aquele homem no canto, com os ombros descaídos em desânimo. Como podia ser o seu pai, sempre tão direito, e tão forte, de gargalhada sempre pronta? Lembrava-se de ter perguntado: O que é que aconteceu ao meu pai e à minha mãe? Vão morrer? A minha mãe vai morrer? Falar de concepções, gravidez e partos, do período em que uma mulher tem de combater a impureza fechada num quarto longe de todos, até que o sangue pare de correr, não eram conversas para ter com crianças, que viam chegar os irmãos ao quarto de brinquedos como se a cegonha os tivesse trazido. Mas Maud teve pena da aflição da princesa: – O bebé que a senhora duquesa trazia na barriga, morreu ao nascer, paz à sua alma – disse benzendo-se. E a criança percebeu que, tragédia das tragédias, o irmão era um rapaz, John of Plantagenet, herdeiro do ducado de Lancaster, o herdeiro tão esperado. Respirara ainda uns segundos, para se ficar nos braços da parteira, cuja sabedoria de anos não fora suficiente para o salvar. 19 Philippa de Lancaster.qxd 4/12/07 9:51 Page 20 Nessa outra noite quase esquecida, Philippa tinha sonhado com duelos e espadas, como via nos torneios, e imaginara-se a trespassar o coração de um menino loiro como a mãe, a quem todos faziam uma vénia. Esquecidos dela. Dela, que nascera antes dele… Assaltada por tantas memórias, Philippa abanou o cabelo solto e tentou afastá-lo para longe. Agora o importante era encontrar o caminho por entre estes corredores labirínticos e gelados de Burford. Foi seguindo o ruído das vozes de uma corte privada, que preferia, sem dúvida, o barulho ao silêncio. Espreitou por detrás dos reposteiros para o salão nobre de mesas corridas, onde o ruído das facas contra os pratos de estanho era ensurdecedor, e o levantar das canecas entre o clamor de saudações, tornava impossível perceber sequer o que se celebrava. Mas as cadeiras no topo da mesa estavam vazias. O seu veludo carmim ressaltava a ausência do pai e da mãe. Nem Blanche nem John presidiam a este jantar e Philippa não sabia onde encontrá-los. Gelada, hesitava sobre o que fazer a seguir quando viu Maud passar apressada, um tabuleiro de vime com roupas dobradas nas mãos, e uma pressa nos pés que era raro ver-lhe. Philippa seguiu-a. Escondendo-se atrás das colunas e das estatuetas, conseguiu, sem saber bem como, esgueirar-se pela porta entreaberta para dentro do quarto onde a ama Maud entrara também. O fogo ardia forte na lareira de pedra e desta vez o pai não era uma sombra descaída e triste, mas um homem aparentemente satisfeito, que sem grandes exuberâncias comemorava qualquer coisa com os seus amigos mais próximos. E foi um deles que, rindo, apontou para uma Philippa de cabelos desgrenhados, a cara pálida e estreita, uma Plantagenet sem tirar nem pôr e exclamou: – Sir John, a princesa Philippa veio dar as boas vindas à nova irmã! John virou-se na direcção do dedo apontado, e os seus olhos encontraram a filha, embrulhada em peles, o rosto de quem não sabe se deve fugir ou ficar. Uma das suas gargalhadas fortes, daquelas que lhe vinham da alma, encheu o quarto, e estendendo os braços, prendeu-a e atirou-a ao ar, rindo: «Princesa, tens o coração forte e a força dos leões dos Plantagenets, para andares por aí nos corredores frios e escuros, completamente sozinha!» E a princesa sentiu que, afinal, não queria ser parecida com a mãe, mas forte e determinada como o pai, para que ele se orgulhasse sem20 Philippa de Lancaster.qxd 4/12/07 9:51 Page 21 pre dela. Queria que John não se importasse, nem um bocadinho, que o John pequenino tivesse morrido, porque seria ela a herdeira que o pai desejara, a força onde poderia depositar a sua confiança. Naquela noite, nascera Elisabeth, e o seu nascimento parecia-lhe merecer uma grande celebração – Uf, pensou com alívio – esta não vem ocupar o meu lugar –, é só mais uma rapariga, e logo a segunda, para quem o pai nem vai olhar. Quando Maud a levava de regresso aos lençóis, depois de a mãe lhe ter dado um beijo rápido, deixando-a espreitar a irmã a chuchar no peito de uma ama de leite, Philippa adormeceu nos seus braços, pelo caminho. E dormiu a noite toda, sem pesadelos nem corações trespassados por espadas. Esses viriam depois. 21