Mestrado em Direito da União Europeia
U.C.: Contencioso da União Europeia – Aula 23.10.2009
Docente: Prof. Alessandra Silveira
Tema: Observações tecidas sobre as Conclusões apresentadas pelo Advogado-Geral M- Poiares Maduro,
relativo ao Processo C-402/05P – Yassin Abdullah Kadi contra Conselho União Europeia e Comissão das
Comunidades Europeias.
Objecto: Conclusões do Advogado-Geral M. Poiares Maduro, Acórdão do TJCE C-402/05P e C –
415/05P, Regulamento 881/2002 do Conselho, Artigos 60.º, 301.º e 308.º CEE e carta das Nações
Unidas.
Mestrando: Ana Filipa Duarte Pereira Campos Gonçalves
Número: PG15607
Email: [email protected]
No âmbito deste processo acima enumerado, é recorrente Yassin Abdullah Kadi, contra o
Conselho da União Europeia e a Comissão das Comunidades Europeias. Em causa está o facto de o
recorrente - Yassin Abdullah Kadi – no presente processo ter sido designado pelo Comité das sanções
do Conselho de Segurança das Nações Unidas, como “(…)pessoa suspeita de apoiar o terrorismo, cujos
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fundos e outros recursos financeiros deveriam ser congelados (…) .
De uma forma sintética, os argumentos do Recorrente dividem-se em dois:

A impugnação do Regulamento através do qual o Conselho implementou a ordem de
congelamento dos seus bens na Comunidade, concluindo afinal pela sua anulação,
alegando que a Comunidade não era competente para adoptar esse regulamento;

Que o próprio regulamento viola direitos fundamentais: nomeadamente os Princípios
da proporcionalidade, propriedade privada e o direito de audição, e o direito a uma
tutela jurisdicional efectiva.
Por sua vez os Recorridos - Conselho da União Europeia e Comissão das Comunidades Europeias
- argumentam que “(…) o regulamento é necessário para a implementação das resoluções vinculativas
do Conselho de Segurança e, consequentemente, que os tribunais comunitários não devem apreciar a
sua conformidade com os direitos fundamentais (…) (…), quando o Conselho de Segurança se
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pronunciou, o Tribunal de Justiça deve permanecer em «silêncio» (…)” .
Os Recorridos sustentam a legalidade do Regulamento, nos artigos 60.º, 301.º e 308.º, todos do
Tratado de Constituição da Comunidade Europeia. Como subscritores da Carta das Nações Unidas,
consideram à luz daquele texto que, a supressão do terrorismo internacional é essencial para a
manutenção da paz e da segurança internacionais, daí terem adoptado sem mais, as resoluções do
Conselho de Segurança – órgão pilar previsto na Carta das nações Unidas.
Tendo como base as conclusões do Advogado-geral, qual a posição adoptada pelo TJCE?
Em primeiro lugar, cumpre-nos referir que o Tribunal de Primeira Instância concluiu que
conjugados os artigos 60.º, 301.º e 308.º da CE, estes conferem competência à Comunidade para
adoptar o regulamento “em crise”, deixando, no entanto, toda a margem aos Estados-membros de
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2
cfr. – Conclusões do Advogado-geral M. Poiares Maduro, relativo ao processo C-402/05P, 1.ª pág.
- idem
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adoptarem as medidas necessárias ao cumprimento do mesmo; sempre tendo presente a manutenção
da paz e segurança internacionais.
Mais refere o Tribunal de Primeira Instância, nas suas conclusões que: “(…) a União e o seu pilar
comunitário não podem ser impedidos de se adaptarem [às ameaças à paz e à segurança internacionais]
pela imposição de sanções económicas e financeiras não apenas contra países terceiros mas também
contra pessoas, grupos, empresas ou entidades associadas que desenvolvam uma actividade terrorista
internacional ou que atentem de outra forma contra a paz e a segurança internacionais (…)”
Mas as conclusões do Tribunal de Primeira Instância não se ficaram por aqui, chegando mesmo a
considerar que o Direito Comunitário reconhece e aceita, atendendo ao artigo 103.º da Carta das
Nações Unidas, que as Resoluções do Conselho de Segurança prevalecem sobre o Tratado da
Comunidade Europeia. Não possuindo, desta forma, poderes para fiscalizar, ainda que indirectamente,
as resoluções do Conselho de Segurança, de modo a apreciar a sua conformidade com os direitos
fundamentais protegidos pelo ordenamento jurídico comunitário, como aliás o Recorrente exigiu.
A isenção de fiscalização alegada pelo Tribunal de Primeira Instância poderá encontrar a sua base
legal no artigo 307.º da CE., pois esta disposição refere que “(…)As disposições do presente Tratado não
prejudicam os direitos e obrigações decorrentes de convenções(…)”
Sobre esta questão, somos da opinião do Recorrente quando este defende que, enquanto as
Nações Unidas não previrem um mecanismo específico de fiscalização judicial independente que
garanta a conformidade das decisões do Conselho de Segurança e do Comité das Sanções com os
direitos fundamentais, os Tribunais Comunitários deverão fiscalizar as medidas adoptadas pelas
instituições comunitárias, tendo como objectivo verificar a sua conformidade com os direitos
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fundamentais, como condição de legalidade dos actos da Comunidade.
A este respeito, já anteriormente o TJCE tem vindo a afirmar que não serão admissíveis na
Comunidade medidas incompatíveis com o respeito pelos Direitos do Homem.
Como resolver a questão do regulamento versus tratado comunitário?
O Tratado da Comunidade Europeia não se trata meramente de um acordo entre Estados, mas sim
um acordo entre os “povos” da Europa, estão por isso, sujeitos, ao dever de cooperação leal. Tendo uma
base absolutamente consensual, o Tratado Instituiu um novo ordenamento jurídico interno de
dimensão transnacional. Desta forma, o direito internacional só poderá ser integrado no ordenamento
jurídico comunitário mediante a observância plena e absoluta das condições impostas pelos princípios
constitucionais da Comunidade, nomeadamente o respeito pelos Direitos Fundamentais. Esta
protecção, funda-se nos contratos constitutivos e é exercida pelos tribunais que integram a estrutura
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judicial europeia. Ainda que não exista em bom rigor um catálogo de direitos fundamentais da União, a
Jurisprudência do TJCE tem vindo a identificá-los naturalmente, e admitido que «não podem ser
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admitidas na Comunidade medidas incompatíveis com o respeito dos direitos do homem. . Ao TJCE cabe
assim, ao contrário do defendido pelo Tribunal da Primeira Instância, a última palavra obre a
interpretação e a validade dos actos jurídicos europeus nomeadamente quando estejam em causa
direitos fundamentais protegidos pela ordem jurídica europeia. Desta forma, se um acto jurídico
europeu viola direitos fundamentais consagrados na ordem jurídica europeia, o particular pode
questionar a sua validade.
E ainda que estejamos perante uma medida adoptada pela Comunidade tendo em vista
assegurar um acordo internacional que tem como objectivo a manutenção da paz e da segurança, esta
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Conclusões do advogado-geral F. G. Jacobs de 30 de Abril de 1996 no processo Bosphorus, já referido na nota 16, n.° 53. V.,
igualmente, n.° 34 do parecer 2/94, já referido na nota 22.
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Princípios de Direito da União Europeia, Alessandra Silveira, Quid Juris editora, página 69.
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– Acórdão do Tribunal de Justiça de 12 de Junho de 2003 (C-112/00, Colect., p. I-5659, n.° 73).
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não poderá em momento algum ter como efeito colateral, “ignorar por completo” os Princípios Gerais
do Direito Comunitário, privando assim os indivíduos dos seus direitos fundamentais.
Os Recorridos, admitindo a possibilidade de fiscalização da aplicação do presente Regulamento
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por parte dos Tribunais que integram a estrutura judicial europeia , alegam que, “in casu” não deverão
ser aplicados os critérios normais de fiscalização, mas sim – tendo em conta os interesses de segurança
internacional em causa – aplicar critérios menos rigorosos de protecção dos direitos fundamentais.
A este respeito, não podemos deixar de concordar com o vertido no Acórdão do TJCE, pois, o
facto de as medidas de aplicação do Regulamento se destinarem a suprimir o terrorismo internacional
não deve inibir o Tribunal de Justiça de cumprir o seu dever de preservar o Princípio do Estado de
Direito. Resta saber se as necessidades concretas suscitadas pela prevenção do terrorismo
internacional justificam restrições aos direitos fundamentais do Recorrente, que de outro modo não
seriam aceitáveis. Uma vez que todos os seus interesses foram congelados por vários anos, sem
qualquer limitação no tempo e em condições que aparentemente não dispõe de nenhum meio
adequado para contestar o ilícito que lhe é imputado.
Retornando à susceptibilidade de violação da propriedade privada alegada pelo Recorrente e
atendendo aos factos, o congelamento por tempo indeterminado dos bens de um indivíduo constitui
claramente uma interferência profunda na fruição pacífica da propriedade. As consequências para o
indivíduo podem ser devastadoras, isso explica a razão pela qual a medida tem um efeito coercivo tão
forte e porque é que sanções deste género podem ser consideradas como um meio adequado para
prevenir actos terroristas.
No entanto, também evidencia a necessidade de serem consagradas garantias processuais que
obriguem, de alguma forma, as autoridades a justificar essas medidas e a demonstrar a sua
proporcionalidade, não apenas em abstracto mas nas circunstâncias concretas do caso. É bem verdade
que a prevenção do terrorismo internacional pode justificar restrições ao direito de propriedade
privada. Mas isso não dispensa em absoluto as autoridades da obrigação de demonstrar e de provar que
essas restrições se justificam, relativamente à pessoa em causa e no caso concreto. As garantias
processuais são necessárias, precisamente, para assegurar que a tutela jurisdicional persiste
independentemente das circunstâncias. Não havendo essas garantias, o congelamento dos bens de um
indivíduo por um período de tempo indeterminado viola o direito de propriedade privada.
No que diz respeito à violação do direito de audição alegado também pelo Recorrente, uma das
principais razões por que o direito de audição tem de ser respeitado é permitir que as pessoas em causa
defendam efectivamente os seus direitos, especialmente no âmbito dos processos judiciais que podem
ocorrer posteriormente ao encerramento do procedimento administrativo. A observância do direito de
audição tem relevância directa para garantir o direito a uma tutela jurisdicional efectiva. Mas este
direito de audição não tem necessariamente de se realizar previamente à adoptação das sanções
restritivas, sob pena de caírem por terra todos os esforços encetados para atingir o fim proposto pelo
regulamento. As garantias processuais ao nível do procedimento administrativo jamais podem eliminar
a necessidade da fiscalização judicial subsequente. Ora, a inexistência dessas garantias administrativas
tem efeitos adversos significativos no direito do recorrente à tutela jurisdicional efectiva – o que não
pode ser permitido. Pois as obrigações impostas por acordo internacional, não podem ter como efeito, a
violação dos princípios constitucionais do Tratado CE, entre os quais os princípios da liberdade, da
democracia e do respeito pelos Direitos do Homem.
Assim, somos da opinião que o direito de audição do recorrente (ainda que não se exija que
decorra previamente) foi violado, pois a Conselho jamais comunicou os elementos de acusação de que
dispunha para fundamentar as medidas restritivas que foram impostas, nem tão pouco lhe concedeu o
direito de tomarem conhecimento dos referidos elementos num prazo razoável depois da aplicação
dessas medidas, de forma a permitir aos seus destinatários defenderem os seus direitos nas melhores
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Princípios de Direito da União Europeia, Alessandra Silveira, Quid Juris editora, página 69
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condições possíveis e decidirem com pleno conhecimento se é útil recorrer ao juiz comunitário como
para dar a este todas as condições para exercer a fiscalização da legalidade do acto comunitário em
causa, que lhe incumbe por força do Tratado. Ainda que as medidas restritivas aplicadas, como violação
do direito da propriedade possam ser justificadas, esta restrição ao direito de propriedade do
recorrente foi adoptada sem contudo, fornecer qualquer garantia que lhe permitisse expor a sua causa
às autoridades competentes, e isto tendo em atenção que a restrição aos seus direitos e
nomeadamente o congelamento de fundos foi realizado sem contudo fornecer se afigurar qual o prazo
em que as medidas restritivas aplicadas se manteriam.
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Desta forma, também se considera ter existido violação do Princípio da tutela jurisdicional
efectiva, como princípio geral do direito comunitário.
Este princípio postula que a efectividade do Direito da União depende da garantia judicial das
suas normas, integra o direito de acesso à justiça quer pelos Estados-membros como também pelos
próprios particulares. Integra ainda o direito a um processo equitativo, o direito a um recurso efectivo, e
implica a aplicação de providências cautelares pelo juiz nacional tendentes a evitar danos irreparáveis
nos direitos dos particulares decorrentes do Direito da União, mesmo que tais providências não tenham
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previsão ou estejam proibidas pelo direito nacional.
As jurisdições comunitárias devem - e no caso concreto o TJCE assim o fez - em conformidade
com as competências de que estão investidas ao abrigo do Tratado CE, assegurar a fiscalização, em
princípio integral, da legalidade de todos os actos comunitários à luz dos direitos fundamentais,
incluindo dos actos comunitários que, como o regulamento em causa, se destinam a implementar
resoluções adoptadas pelo Conselho de Segurança ao abrigo da Carta das Nações Unidas.
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Princípios de Direito da União Europeia, Alessandra Silveira, Quid Juris editora, página 69
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