Jornal Valor --- Página 3 da edição "23/09/2014 1a CAD A" ---- Impressa por CCassiano às 22/09/2014@20:31:51 Jornal Valor Econômico - CAD A - BRASIL - 23/9/2014 (20:31) - Página 3- Cor: BLACKCYANMAGENTAYELLOW Enxerto Terça-feira, 23 de setembro de 2014 | Valor | A3 Brasil Conjuntura Mais setores usam estratégia de revender itens importados prontos ou feitos em outra empresa Peso da revenda de bens no faturamento industrial chega a 12% Crise na indústria Denise Neumann, Vanessa Jurgenfeld e Marta Watanabe De São Paulo Todos os meses, empresas grandes e pequenas do setor têxtil, como Lepper, Cativa, RC Conti, entre tantas outras, recebem peças de vestuário ou de cama, mesa e banho prontas, embaladas, com etiqueta, vindas da China. Sem pregar nenhum botão, esses itens são vendidos no varejo brasileiro e elevam o faturamento das empresas. Essa estratégia, muito conhecida nas têxteis, tem se espalhado por diferentes setores da indústria. Segundo dados obtidos a partir da Pesquisa Industrial Anual (PIA) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a revenda de mercadorias produzidas em fábricas de terceiros (no Brasil ou fora) foi ampliada e ganhou corpo em setores como medicamentos, papel e celulose, cimento, máquinas, bebidas, entre outros. Atualmente, R$ 12 em cada R$ 100 faturados pela indústria de transformação não foram produzidos dentro da fábrica que vendeu o bem. Em 2007, o peso da receita obtida com revenda de mercadorias (nacionais ou importadas) na composição do faturamento da indústria era de 7% . A revenda de mercadorias que a indústria não produziu envolve duas estratégias distintas. Uma é mais espalhada e reflete a importação de um bem que pode ser classificado de “commodity industrial”, pois o mesmo item pode ser importado — e revendido — por qualquer empresa do setor. Aqui, a busca é pelo menor preço. É a chamada importação de “prateleira”. A segunda estratégia envolve maior participação da indústria brasileira. Em alguns casos, o fabricante local desenvolveu o produto no Brasil e procurou um parceiro no exterior ou mesmo no país para produzir a mercadoria a um custo menor; em outros, a empresa faz parceria para trazer uma mercadoria ainda não produzida no Brasil — seja porque a escala é pequena, seja porque existe proteção de patente. Esse último modelo é típico do setor farmacêutico, onde a revenda de medicamentos não produzidos na fábrica local já alcança 28% do faturamento total, maior percentual entre todos os setores, segundo os dados da PIA de 2012. O setor têxtil, pioneiro na importação de peças prontas para revenda no mercado local como forma de concorrer com o próprio importado e assim sobreviver, é um exemplo da produção contratada sob supervisão e design brasileiros. Na Lepper, do setor de cama, mesa e banho, a produção feita na China representou 20% do faturamento em 2013. Maria Regina Loyola Alves, presidente da empresa, conta que a criação das peças produzidas na Ásia está sendo feita no Brasil e é parte da estratégia de assegurar a lucratividade. Na Cativa, empresa de vestuário sediada em Pomerode (SC), a criação e o desenvolvimento são feitos no Brasil. Depois, as coleções são enviadas para diversos fornecedores. Escolhido o melhor preço, começam a ser produzidas as primeiras amostras até que a mercadoria é entregue totalmente acabada, com etiqueta e tags da empresa brasileira, conta Gilmar Sprung, presidente da Cativa, que começou a importar da Ásia em 2004 e hoje mantém uma trading em Xangai. Entre os 24 setores nos quais o IBGE divide a indústria de transformação, a ampliação da receita com revenda foi mais forte no setor de medicamentos. Ela passou de 12,3% em 2007 para 27,9% em 2012 — 126% mais. Os representantes do setor se dividem, um pouco, sobre o que é importado pronto. Para Pedro Bernardo, diretor de acesso da Interfarma (que reúne grandes laboratórios multinacionais), “antes você importava o produto inovador, mas isso se generalizou e chegou naqueles produtos de grande volume”. Para Nelson Mussolini, presidente-executivo do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos de São Paulo (que reúne multinacionais e laboratórios nacionais), a importação ainda está relacionada aos produtos de maior complexidade, cuja patente ainda não foi quebrada e não envolve os genéricos. Embora se dividam sobre o tipo de medicamento importado pronto, os dois executivos concordam sobre as razões que levaram o setor a essa opção. Bernardo lista maior carga tributária, juro mais alto, real valorizado, falta de infraestrutura e muita burocracia. “Tudo isso dificulta a competição com outros países”, diz ele. Por isso, conta, muitos medicamentos vêm prontos, já na caixa. “Mesmo empresas que fazem genéricos importam esses produtos de países onde o custo de produção é bem menor”, pondera Bernardo. Segundo dados da Secretaria de Comércio Exterior (Secex), a importação de medicamentos prontos e vacinas somou US$ 6,8 bilhões em 2012, alta de 94% em relação a 2007. Entre todas as farmacêuticas, foi a Abbot que mais aumentou a importação no período — 246%, chegando a US$ 586 milhões. Procurada, a empresa não se manifestou, porque separou os negócios e a importação de medicamentos passou, em 2014, para a Abbvie, sem fábrica no Brasil. Mussolini aponta os mesmos problemas para a perda de competitividade do Brasil, mas acrescenta que o governo assumiu, no Sistema Único de Saúde (SUS), o uso de medicamentos mais complexos. “Esses produtos passaram a ser importados pelas empresas que os fabricam no exterior”, diz ele, lembrando que alguns são alvo de tentativas de Parceria Público-Privada (PPP). A conta, diz, também sobe pela importação de vacinas, além do crescimento e da melhoria da renda terem elevado a demanda por remédios, exigindo maior importação de princípios ativos e de itens de alta complexidade. A EMS é o maior fabricante nacional de medicamentos e o maior importador farmacêutico de capital local. Segundo a Secex, a empresa importou US$ 148 milhões em 2012, 66% mais que em 2007. Como todo setor, parte expressiva da importação é de princípios ativos, mas ela traz atualmente dois medicamentos prontos que não existem no mercado brasileiro. De acordo com a empresa, “o volume de negócios resultante da comercialização de medicamentos importados ainda é pouco representativo, considerando o portfólio da EMS, que tem cerca de 2,5 mil apresentações de produtos”. Segundo a companhia, “as parcerias com laboratórios internacionais e a importação de medicamentos representam um mecanismo adicional de inovação e são estratégicas ao seu portfólio”. Para José Ricardo Roriz, presidente de Abiplast — setor onde o peso da revenda dobrou desde 2007, embora ainda seja 5% da receita — , “a própria indústria acaba importando, o que a faz produzir menos, deixando a finalidade de indústria e indo para a comercialização.” Ele acrescenta que “para a Com um pé no comércio Participação da receita com revenda na receita bruta, em % 2007 Indústrias de transformação Fabricação de produtos alimentícios Fabricação de bebidas Fabricação de produtos do fumo Fabricação de produtos têxteis Confecção de artigos do vestuário e acessórios Preparação e fabricação de artefatos de couro, e calçados Fabricação de produtos de madeira Fabricação de celulose, papel e produtos de papel Impressão e reprodução de gravações Fabricação de coque, de produtos derivados do petróleo e de biocombustíveis Fabricação de produtos químicos Fabricação de produtos farmoquímicos e farmacêuticos Fabricação de produtos de borracha e de material plástico Fabricação de produtos de minerais não-metálicos Metalurgia Fabricação de produtos de metal, exceto máquinas e equipamentos Fabricação de equipamentos de informática, produtos eletrônicos e ópticos Fabricação de máquinas, aparelhos e materiais elétricos Fabricação de máquinas e equipamentos Fabricação de veículos automotores, reboques e carrocerias Fabricação de outros equipamentos de transporte, exceto veículos automotores Fabricação de móveis Fabricação de produtos diversos Manutenção, reparação e instalação de máquinas e equipamentos Evolução do peso da revenda na receita bruta, em % * 2012 6,9 12,06 6,6 14,12 6,8 13,45 9,03 2,26 3,88 5,55 3,67 9,54 5,66 6,98 2,15 3,05 9,84 3,88 2,17 2,61 8,14 25,87 10,27 11,26 12,3 27,92 2,47 4,57 4,44 7,34 1,35 2,39 4,73 4,59 11,75 12,94 7,75 11,36 7,62 10,6 10,26 13,53 3,73 7,54 3,34 2,97 11,33 15,6 6,4 7,23 Onde estão os novos empregos na indústria, em % ** Ocupados na produção 13 11,27 12,06 80 11 8,86 9 7 6,90 100 Ocupados fora da produção 90 76 75 58 60 9,04 7,86 40 20 5 57 42 25 43 24 10 0 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2008 2009 2010 2011 2012 Fonte: PIA/IBGE. *Receita revenda/receita bruta de venda de produtos industriais (em %). ** Participação dos novos empregos industriais criados a cada ano, por local da ocupação. indústria é fácil fazer isso, porque ela conhece os mercados, os fornecedores e os canais de venda”. Roriz explica que a importação de produtos acabados não se restringe aos itens mais baratos, produzidos em larga escala em países asiáticos, como bacias e baldes de plástico. “Também há importação de um produto mais sofisticado, que serve como complementação de linhas ou é destinado a um nicho de mercado que está se desenvolvendo”, diz ele. Ele exemplifica com o “stand-up pouch”, embalagem flexível usada em alimentos e cosméticos. Esse produto é desenvolvido pela indústria local de embalagens segundo a necessidade do cliente, mas a fabricação é feita no exterior, com custo menor, e a embalagem chega pronta, muitas vezes estampada. “As indústrias passaram a importar como estratégia de sobrevivência”, diz Carlos Pastoriza, presidente da Abimaq, que reúne fabricantes de bens de capital. No setor de máquinas e equipamentos, a revenda de equipamentos soma quase 11% do faturamento do setor. “É o que eu chamo de processo de desindustrialização silencioso, no qual em vez das empresas quebrarem, embora algumas realmente fechem as portas, elas viram montadoras, maquiladoras ou, nos casos mais extremos, revendedoras.” Segundo ele, há indústrias de máquinas que já fazem praticamente só revenda. “Elas mantêm a razão social como indústria, mas viraram revendedoras.” Emprego fora da linha de produção cresce mais De São Paulo Ao mesmo tempo em que a participação da revenda avança no faturamento, a composição do emprego industrial está mudando. Entre 2007 e 2012, a receita bruta da indústria de transformação subiu 53%, enquanto a receita com revenda de mercadorias cresceu o triplo — 155%, segundo a Pesquisa Anual da Indústria (PIA). No mesmo período, o pessoal ocupado na linha de produção aumentou 15%, enquanto os ocupados em outras atividades dentro da indústria cresceram 25%. Dos novos contratados em 2012, 43% foram para atividades fora da linha de produção. Para Silvio Sales, pesquisador da Fundação Getulio Vargas, a PIA reforça sinais que já apareciam a partir da diferença entre os dados da indústria medidos pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), que olha para o faturamento, e a Pesquisa Industrial Mensal de Produção Física (PIM-PF), que mede volume produzido. “A comparação mostra que os dados vão abrindo uma boca, com o faturamento crescendo bem acima da produção”, pondera Sales. Para ele, os dados sugerem que a revenda funcionou como parte da saída en- contrada pela indústria para enfrentar perda de competitividade. Sales, que foi gerente da área de indústria do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), chama atenção para o aumento da revenda estar presente em quase todos os segmentos, inclusive em minerais não metálicos. “Isso reforça a preocupação com desindustrialização”, diz ele, lembrando que as estatísticas da Fundação Centro de Estudos do Comércio Exterior (Funcex) mostram alta generalizada dos importados no consumo doméstico. O professor David Kupfer, da Universidade Federal do Rio de Janeiro e também assessor do Banco Nacional para o Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), observa que a taxa de difusão de setores com aumento da participação da revenda na receita é grande, mas recomenda cautela com esse dado. Kupfer concorda que ocorreu uma mudança na produção doméstica, com aumento da participação de insumos e bens finais importados, mas pondera que os dados da PIA são de difícil interpretação, e não dá para imaginar que “a indústria está virando uma empresa comercial”. Entre outras razões, pondera, há uma heterogeneidade muito grande entre os setores. (DN) Nas têxteis, produto ‘made in China’ tem design brasileiro RAPHAEL GUNTHER/VALOR De São Paulo A RC Conti, uma pequena empresa de Brusque (SC), com 180 funcionários, costuma trazer pijamas da China que não têm similares no mercado nacional, feito com um soft especial. O produto vem pronto, já embalado, com etiqueta e tag da empresa. Na Cativa, 22% do faturamento de 2014 deve vir de produtos importados da Ásia. Já a Lepper encontrou na China uma boa relação de custos para a produção de sua linha bebê e de artigos sintéticos, como roupão e mantas. A produção da China, iniciada há 5 anos, já representa 20% do faturamento. O setor têxtil é representativo do avanço da compra de produtos prontos via terceirização produtiva. A ida para a Ásia, que envolve empresas de diferentes portes, ocorre após exaustivas contas de custo de produção. A RC Conti pesquisou o valor de nacionalizar o pijama que importa, mas desistiu. “O custo aqui seria quatro vezes maior”, explica Rita Conti, dona da empresa e presidente do Sindicato das indústrias do Vestuário de Brusque, Botuverá, Guabiruba e Gilmar Sprung, presidente da Cativa: todo o processo, da criação até a chegada da mercadoria no Brasil, leva um ano Nova Trento (Sindivest). “Não há dúvida que a revenda ganhou importância e isso é fruto da perda de competitividade da indústria nacional”, diz Fernando Pimentel, diretor da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit). Ele afirma que, além do aumento de custos domésticos, o mundo não se recuperou após a crise de 2008 e o país não só perdeu mercados no exte- rior como virou alvo de todos os fornecedores do mundo, que passaram a direcionar seus excedentes ao Brasil. Ele aponta dois tipos de “competição” externa: a “desleal”, porque não segue padrões mínimos de condições de trabalho e marcos regulatórios; e a “real”, feita por países onde o custo é efetivamente menor que o brasileiro. Na onda atual de aumento da importação de produtos prontos, em muitos casos a criação e o desenvolvimento dos produtos é toda feita no Brasil, segundo os fabricantes ouvidos pelo Valor. Gilmar Sprung, presidente da Cativa, conta que as coleções são mandadas para diversos fornecedores na Ásia para uma cotação. Depois de escolhido o melhor preço, são produzidas as primeiras amostras até que a mercadoria é entregue com etiqueta e tags da Cativa. Segundo ele, todo processo, da criação até a efetiva chegada da mercadoria no Brasil, leva um ano. O produto chega pronto, revisado e embalado. “Realizamos somente inspeções por amostragem”, diz Sprung. A RC Conti define até o botão do pijama. “Daí volta para cá [SC] para aprovação”, diz Rita. Esse processo demora de seis a oito meses. A parte de criação e design dos produtos importados pela Lepper também está sendo feita “dentro de casa”, em Joinville, na sede da empresa. Além da Ásia, as empresas também têm avançado na terceirização produtiva com oficinas de costura (também chamadas de facções) no Brasil. Essa forma de operar, segundo as empresas, não têm diminuído a produção no Brasil, mas também não levou, nos últimos anos, a uma ampliação de capacidade de produção no país. A maior parte das empresas ouvidas não possuem planos para isso nos próximos anos. Rita, da RC Conti, diz que começa a planejar uma expansão no Brasil, mas ela será em outras áreas, que não a produção: loja física (ela tem oito da sua marca Mensageiro dos Sonhos), telemarketing ou loja virtual. A empresa já usa 22 oficinas no Brasil. Na Lepper, a presidente Maria Regina Loyola Alves diz que a empresa tem faccionado tudo que é possível. “O caminho é ficar na empresa com aquilo que é capital mais intensivo e maquinário com alta produtividade”, destacou. O prazo entre desenvolver e produzir na Ásia faz com que Ivo Lombardi, dono da Miss Beth, especializada em biquínis, roupas para ginástica e pijamas, evite essa estratégia. A antecipação dos pedidos, diz, poderia fazê-lo “fugir da moda” , pois fica difícil ter o “feeling” do varejo com tanta antecedência. Embora não use a Ásia, Lombardi terceiriza produção com 42 facções no Brasil, processo que cresce cerca de 15% ao ano. Dada a concorrência pelas oficinas no país, diz que algumas já ficam a mil quilômetros da sua fábrica. Para o presidente do Sindicato das Indústrias de Fiação, de Tecelagem e do Vestuário de Blumenau (Sintex), Ulrich Kuhn, há hoje dois lados muito claros na relação com a Ásia. “Um é que realmente ela danifica e impede o crescimento da indústria têxtil brasileira. De outro lado, é um processo absolutamente necessário”. (DN, VJ e MW)