José Carlos de Araújo Almeida Filho (UFF) Delton R. S. Meirelles (UFF) Fernanda Pimentel (UFF) Organizadores PROCESSO E CONEXÕES HUMANAS Petrópolis – RJ 2014 Processo e Conexões Humanas 2014 CIP – Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Almeida Filho, José Carlos de Araújo. Meirelles, Delton R. S. Pimentel, Fernanda. Organizadores. Processo e Conexões Humanas – Petrópolis: Sermograf, 2014. Inclui bibliografia ISBN I. Direito – Brasil. I. Título Reservados os direitos de propriedade desta edição pelo Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico Todos os textos foram enviados através de formulário, com a afirmação de serem inéditos e com cessão de direitos de autor. Os autores atestaram que revisaram seus textos, não podendo a editora ou o IBDE serem responsabilizados por quaisquer incongruências nas afirmações. Rua Nelson Silva, 294 – Petrópolis – RJ – CEP: 25715-310 [email protected] PREFÁCIO Recebi, com imensa satisfação, a tarefa de redigir o prefácio desta obra, cujo título Processo e Conexões Humanas, guarda, em si, a qualidade dos trabalhos apresentados para o VI Congresso Internacional de Direito Eletrônico. Não posso deixar de aproveitar a ocasião para agradecer ao Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico (IBDE), José Carlos de Araújo Almeida Filho por estar participando de tudo isso e, ainda, a oportunidade de acompanhar o seu trabalho diariamente, o que é um enorme privilégio e aprendizado. Parabéns pelo trabalho lindo que vem desenvolvendo, e por estar propiciando a evolução do Direito. O tema do congresso organizado pelo Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico já nos provoca a nítida sensação de que devemos estar cada vez mais atentos a um novo Direito, que surge e emerge com uma visão multidisciplinar, acompanhando a própria evolução social e tecnológica: Responsabilidade Social e Conexões Humanas. A Internet revolucionou as relações sociais. Em verdade, a Internet promoveu, verdadeiramente, outra revolução industrial. A tecnologia tem este viés de modificar o mundo e as relações. E, nada mais oportuno, do que trabalharmos com a ideia de conexões humanas. Os trabalhos apresentados demonstram a preocupação de seus autores com o tema proposto e são dotados de qualidade científica. O título do livro, não poderia deixar de se assemelhar ao tema do congresso, traduzindo a temática central da maioria dos textos, que é o da ciência processual e das preocupações com o processo eletrônico. Temas que se apresentam angustiantes no dia-a-dia do profissional do Direito estão traduzidos nesta obra com muita propriedade, inclusive trazendo algumas das novidades mais recentes do direito da Internet. Percebemos que existe uma angústia em relação a prazos, por exemplo. A partir de uma perspectiva que a Lei 11.419/2006 insere, conceitos em relação à intimação foram modificados. Melhor explicando, a intimação passa a ser alvo de novos debates, e, certamente, provocará na academia a necessidade de revermos a forma de comunicação dos atos processuais. Antes, não estávamos preocupados com a ideia de publicização da intimação, ou se esta seria mediata ou imediata. Contudo, esta obra provocará este novo passo para uma releitura, obrigatória, dos atos de comunicação processual. A preocupação com a publicidade do processo também se apresenta no livro. O tema não é novo, porque vem sendo debatido desde a promulgação da Lei 11.419/2006. Recentemente tivemos a edição da Lei 12.965/2014, intitulada como Marco Civil da Internet e considerada um exemplo por outros países. O Marco Civil regula Direitos e deveres na Internet, com valorização dos Direitos Humanos. Tema este, inclusive, que vem sendo alvo de pesquisas pelo IBDE. O livro não poderia se omitir quanto ao tema. Quando estamos diante de uma sociedade informatizada, em um ambiente virtual e, portanto, desterritorializado, porque as conexões não necessariamente estão obedecendo a barreiras geofísicas, começamos a nos preocupar com proteção de dados e a criminalidade em virtude das conexões cada vez mais rápidas e em vários pontos do mundo. Proteger dados informáticos e, muitas vezes, pessoais é uma preocupação que deve estar na mente de todo o pesquisador, de todo o profissional do Direito, porque, especialmente quando estamos passando do processo físico para o processo totalmente informatizado, a privacidade, a cada dia mais, deve ser protegida. Assim, admitimos, pela grande publicidade que o processo brasileiro consagra, que, diversamente de outros países, nosso processo é dotado de uma excessiva publicidade. O que propicia uma violação à intimidade dos “atores” envolvidos nas relações jurídicas. O estudo do Marco Civil, portanto, não está dissociado da temática do Direito Processual. Ao contrário, é de extrema importância que passemos a analisar, inclusive, o Direito ao Esquecimento, que, recentemente teve uma expressiva ampliação após o resultado de julgamento pela Corte de Justiça da União Europeia. O Direito está, sim, quebrando paradigmas. E, por esta razão, admitimos de extrema importância esta obra. Fruto de pesquisas em centros acadêmicos do Brasil, Processo e Conexões Humanas traz a todos, de forma clara e com textos relevantes, uma preocupação com a sociedade. A questão dos crimes praticados pela Internet também é alvo de estudo neste ensaio que se apresenta como uma obra indispensável para pensarmos em alguns pontos: primeiro, o IBDE traz uma novidade, que é a de produzir um livro a partir dos artigos apresentados para o congresso de Direito eletrônico; segundo, porque teremos a possibilidade, a partir dos textos, de produzir nossos próprios textos, ampliando ou criticando os aqui publicados, ou seja, estabelecendo um verdadeiro diálogo entre todos os participantes. Finalmente, atendendo à temática do VI Congresso Internacional de Direito Eletrônico, esta obra reproduz, sem dúvida, o que seria Responsabilidade Social e Conexões Humanas. A proposta é pensar e repensar o Direito como ciência apta a pacificar os conflitos sociais. Pensar e repensar o Direito, com o fim de analisar, quantificar e divulgar os resultados das pesquisas. Sabemos que a pesquisa no Direito já foi muito criticada, em passado próximo. Mas, assim como este livro, especialmente com a participação de professores da Universidade Federal Fluminense, percebemos que o Direito vem sendo pensado em conjunto com a sociologia, a antropologia, a filosofia, e, ampliando este horizonte, com as novas tecnologias postas a serviço do homem. O mais importante, é lembrar Chaplin e afirmar que não somos máquinas. Somos homens. E, como homens, pensamos, criamos e provocamos uma revolução no pensamento da sociedade. Espero que esta obra seja um marco no que diz respeito à difusão de conhecimento para outros congressos. Sim, porque com a publicação de um livro proporcionamos uma maior divulgação das pesquisas. Parabéns a todos os participantes do VI Congresso Internacional de Direito Eletrônico, por se mostrarem preocupados com a evolução não apenas do Direito, mas de toda uma sociedade. Helena Costa Salgueiro d'Ottenfels Advogada em Petrópolis. Associada de Almeida & Gomes Advogados Associados. Petrópolis, novembro de 2014 APRESENTAÇÃO Apresentamos o livro Processo e Conexões Humanas, a partir dos artigos e de palestras que foram apresentados no VI Congresso Internacional de Direito Eletrônico, promovido pelo Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico, entre os dias 05 a 07 de novembro, na cidade de Petrópolis. Admitimos ser esta uma forma de estimular os eventos e que a produção acadêmica tenha uma maior visibilidade, ou seja, a partir do momento em que não apenas publicamos os textos nos anais do evento, ampliamos a divulgação da pesquisa científica no Direito através de um livro. Este modelo se deu, em grande parte, à aceitação que estamos percebendo em relação ao Direito Eletrônico. Em um passado não muito distante, a academia e os profissionais estavam afastados da ideia de um direito que trabalhasse com tecnologia. Desde 2002, quando fundamos o IBDE, percebemos que havia uma grande resistência. Paulatinamente, contudo, a curiosidade pelo tema foi contagiante. E nada melhor para a pesquisa do que a curiosidade. A partir, então, de marcos como processo eletrônico, a regulamentação de algumas espécies de crimes eletrônicos, o monitoramento eletrônico como medida cautelar penal, e, finalmente, o Marco Civil da Internet, propulsionaram a pesquisa. Mas, admitimos, ainda é incipiente a pesquisa na área do Direito Eletrônico, e, por que não dizer, a ideia de não haver uma especialidade, mas que todas as áreas do Direito passem a valorizar as novas tecnologias. Ao que tudo indica, pelos textos inseridos neste livro, percebemos esta evolução. Partimos da ideia de um Direito Eletrônico, para a sua inserção nos demais ramos do Direito. Com isto, não estamos afirmando que o IBDE deixará de existir ou de utilizar a denominação Direito Eletrônico. Ao contrário, tudo o quanto se vivencia nestes dias de congresso e pelos textos que apresentamos, somente nos fortalece a ampliar o instituto e os eventos em todos os rincões deste nosso lindo país. A partir de agora, não temos mais dúvidas de que o marco está fundado e devidamente delimitado, ampliando suas fronteiras para toda a América Latina. Não poderíamos deixar de registrar, nesta apresentação, nossos agradecimentos a todos que participaram desta produção. Agradecemos à FIRJAN, patrocinadora oficial do evento. Nossos patrocinadores Tribuna de Petrópolis e Sermograf, agradecemos por todo o empenho. Ao Município de Petrópolis e à Fundação de Cultura, que nos apoiou durante o evento. BANK foi um parceiro sem precedentes, produzindo todo o material gráfico, e, por fim, a editoração desta obra. O Laboratório Fluminense de Estudos Processuais da UFF, que, sem medo de errar, deu um grande passo na pesquisa do processo eletrônico, além dos demais atributos deste grande corpo de pesquisadores de uma das mais importantes universidades do mundo. Agradecemos, em verdade, a todos, sem exceção, que acreditam no trabalho que desenvolvemos desde 2002. Que nosso trabalho seja o de todos. E que todos os trabalhos sejam, sempre, dignos do mais alto respeito. José Carlos de Araújo Almeida Filho Presidente do IBDE. Novembro de 2014 ÍNDICE SISTEMÁTICO Prefácio ................................................................................................ v Apresentação ....................................................................................... x I. INTIMAÇÃO VIA PORTAL OU POR DIÁRIO DA JUSTIÇA ELETRÔNICO? UMA ANÁLISE DOS ARTIGOS 4º E 5º DA LEI 11.419/2006. José Carlos de Araújo Almeida Filho. .............................................................................................................. 1 II. A LEI 11.419/2006 E SUAS IMPLICAÇÕES PARA O EXERCÍCIO DA ADVOCACIA À LUZ DA JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA. Angelo Setaro Soares Masullo e Isadora Grumbt Najjar.................................................................................................. 21 III. O PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE NO PROCESSO JUDICIAL LETRÔNICO E O DIREITO À PRIVACIDADE. Jurema Schwind Pedroso Stussi e Cibele Carneiro da Cunha Macedo Santos ............................................................................................................ 40 IV. OBSOLESCÊNCIAS DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL EM RAZÃO DO PROCESSO ELETRÔNICO. Silvano Ghisi. ............................................................................................................ 58 V. O MARCO CIVIL E A PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS: COERÊNCIAS COM OS PLS 4060/2012 E 3558/2012. Marco A. R. Cunha e Cruz e Jéffson Menezes de Sousa. ...................................... 78 VI. MODELOS DE REGULACION DE PROTECCION DE DATOS PERSONALES. Énfasis en el modelo adoptado por Colombia. Claudia Milena Botero Giraldo. ......................................................................108 VII. A DEFESA CONSTITUCIONAL DO CONSUMIDOR E A LEI N° 12.414/2011 (CADASTRO POSITIVO): BANCO DE DADOS, PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS E RELAÇÕES DE CONSUMO. Afonso Carvalho de Oliva e Marco A. R. Cunha e Cruz..................... 130 VIII. INTIMIDADE E PRIVACIDADE NA INTERNET EM FACE DO MARCO CIVIL (LEI 12.965/14). Marcelo Xavier de Freitas Crespo...............................................................................................159 IX. OS DESAFIOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO ÂMBITO DAS RELAÇÕES PROCESSUAIS. Lucas Bafi Ferreira Pinto................. 187 X. REPRESENTAÇÕES SOCIAIS E A VIOLÊNCIA DE GÊNERO NAS REDES SOCIAIS. Salete Casali Rocha e Daniela E. Urio Mujahed ...........................................................................................................206 XI. DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL, FRATERNIDADE E CONSUMISMO VIRTUAL. Tatiana Fernandes Dias da Silva e Ana Paula Bustamante .............................................................................231 XII. O DIREITO AO ESQUECIMENTO FRENTE AOS MECANISMOS DE BUSCA DENTRO DA INTERNET. Guilherme Tomizawa ............247 Processo e Conexões Humanas INTIMAÇÃO VIA PORTAL OU POR DIÁRIO DA JUSTIÇA ELETRÔNICO? UMA ANÁLISE DOS ARTIGOS 4º E 5º DA LEI 11.419/2006. José Carlos de Araújo Almeida Filho 1 RESUMO: Trabalhamos, no presente texto, a duplicidade de intimação no processo judicial eletrônico, ou seja, se a mesma se dá de acordo com o art. 4º ou de acordo com o art. 5º, da Lei 11.419/2006. Trazemos, com a finalidade de desenvolver o texto, um caso prático, a fim de demonstrar a propriedade da investigação. PALAVRAS-CHAVE: processo eletrônico; intimação ABSTRACT. We work in this text, the duplicity of the electronic judicial intimation process, ie, whether it occurs in accordance with art. 4 or in accordance with art. 5 of Law 11,319 / 2006. Bring, in order to develop text, a case, in order to demonstrate the property of research. KEY WORDS: electronic procedure; intimation INTRODUÇÃO Ainda que o método de análise não seja o melhor, temos observado, através das redes sociais, que há um desconforto dos profissionais da advocacia no que tange à intimação realizada nos termos da Lei 11.419/2006. Contudo, a análise tem sido realizada em diversos grupos de discussão, que tratam da informatização judicial do processo, o que não deixa de ser um indicador para a pesquisa. Também, no que diz respeito às conclusões em relação ao problema da intimação ficta do art. 5º da lei do processo 1 Professor de Direito Processual da Universidade Federal Fluminense (UFF), lecionando a disciplina de Processo Eletrônico. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico. Membro fundador do Laboratório Fluminense de Estudos Processuais da UFF. Mestre em Direito e doutorando no PPGSD da UFF. 1 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico eletrônico, os grupos de debate na Internet apontam este desconforto e a intenção do Poder Judiciário em eliminar o Diário da Justiça. Ao analisarmos a norma, podemos observar que há, no mínimo, uma antinomia interna, como tantas outras 2 que se observam. O objetivo deste estudo é desmitificar a ideia de uma intimação ficta, a ser realizada através do portal do Poder Judiciário, como forma de intimação pessoal. Com o fim de tratar da questão relativa a uma possível intimação ficta, tratamos da intimação pessoal e analisamos algumas decisões já proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça, em relação às modalidades de intimação. Admitimos, finalmente, que a Lei 11.419/2006, deveria ser reformulada, e, por certo, o Código de Processo Civil, cujo projeto de lei tramita desde 2010, não deu a devida atenção a questões de extrema importância, especialmente quando se está diante de um dos grandes problemas do processo, ou seja, o prazo. E assim admitimos porque são vários os dispositivos da Lei 11.419/2006, que deveriam ser revogados e reformulados. I. DA INTIMAÇÃO Com o advento da Lei 11.419/2006, passamos a perceber que determinados conceitos do Direito Processual passaram a ter mais importância, especialmente quando a norma em análise possui uma terminologia não muito jurídica, ou, em outras palavras, com termos equivocados, de má técnica legislativa. É o caso, por exemplo, do art. 10, que, ao invés de tratar do protocolo, afirma que o advogado poderá distribuir, sem intervenção (do Poder Judiciário), a petição inicial. Sem dúvida, um erro grave. Ao mesmo passo, percebemos a confusão relativa à intimação e sua publicidade, através da exteriorização através do Diário Oficial – agora, Diário da Justiça Eletrônico. 2 Cf. tratamos anteriormente. ALMEIDA FILHO, José Carlos de Araújo Almeida. Processo Eletrônico e Teoria Geral do Processo Eletrônico. A informatização judicial no Brasil. 4ed., 2011. Forense, RJ. 2 Processo e Conexões Humanas Intimação é o ato pelo qual se dá ciência aos sujeitos do processo, nos termos do art. 234 do CPC, “pelo qual se dá ciência a alguém dos atos e termos do processo, para que faça ou deixe de fazer alguma coisa”. Conforme ressalta Leonardo Greco 3, a intimação não se aplica aos juízes e aos auxiliares permanentes. A fim de desenvolver a hipótese deste estudo, é importante analisarmos a intimação pessoal, uma vez que o § 6o, do art. 5º, da Lei 11.419/2006, afirma que as intimações realizadas pelo portal, serão consideradas pessoais, para os efeitos legais. Como há um debate, em especial com a intenção do Poder Judiciário em suprimir o Diário da Justiça eletrônico, é importante destacar a natureza da intimação pessoal. Antes, contudo, é importante destacar que a hipótese prevista no art. 4º da lei, pretendia a eliminação do Diário da Justiça em meio físico, ou seja, em papel. Isto porque quando da edição da Lei 11.419/2006, não se poderia imaginar que todos os tribunais, sem exceção, fossem adotar o DJe. O certo é que os tribunais eliminaram o papel e passaram a utilização o Diário da Justiça eletrônico. Analisemos a intimação pessoal. I.A. DA INTIMAÇÃO PESSOAL Diante da dicotomia entre os artigos 4º e 5º da lei, já que ambos tratam de comunicação do ato processual, especificamente, da intimação, é importante elaborarmos uma distinção entre a intimação e sua publicidade. Por intimação pessoal, temos certo que é aquela realizada à parte, ao Ministério Público e à Defensoria Pública. Pode ser que o advogado, quando tenha ciência inequívoca, seja intimado pessoalmente. Tal ocorre quando tem vista dos autos, em cartório ou fora dele. Neste caso, deverá o escrivão certificar que o advogado teve acesso aos autos, e, portanto, foi do ato processual cientificado. Contudo, quando se está diante de um procedimento 3 GRECO, Leonardo. Instituições de Processo Civil. Introdução ao Direito Processual Civil. Vol. I, 2. Ed. Forense, RJ: 2010. 3 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico informatizado, a regra do art. 5º cria uma ficção jurídica que não se pode admitir, mas que pode ter uma explicação. Ao que tudo indica, nunca nos demos conta de que as intimações realizadas na pessoa do advogado não podem ser consideradas pessoais, porque, de fato, a comunicação do ato processual, em relação a determinadas condutas processuais, deve ser realizada à parte e não ao advogado constituído. Trazemos, como exemplo do que afirmamos, a súmula 410 do STJ: A prévia intimação pessoal do devedor constitui condição necessária para a cobrança de multa pelo descumprimento de obrigação de fazer ou não fazer. A partir da necessária intimação da parte, parece-nos claro que a intimação realizada na pessoa do advogado não é pessoal, mas já se constitui em uma ficção jurídica de que o advogado, representando a parte, teve ciência do ato processual. Por outro lado, quando se afirma que o Ministério Público e a Defensoria Pública serão intimados pessoalmente, assim se dá porque seria impossível, diante do excesso de demandas que temos em andamento, dar ciência do ato através do Diário da Justiça. Desta forma, serão os órgãos intimados pessoalmente. Neste caso, entendemos que é a ciência para a prática do ato a ser efetivada pelo Ministério Público – quando parte –, para que se manifeste como fiscal da lei, e, no caso da Defensoria Pública, para que o assistido tenha ciência da prática do ato. À exceção do Ministério Público, quando parte no processo, não podemos entender que esta intimação seja considerada pessoal, mas através do representante. Não se trata de uma intimação que poderemos conceituar como direta à parte, mas através de um representante, para a parte. Por intimação pessoal, a fim de evitar maiores confusões, esta deverá ocorrer na pessoa do demandado. Um exemplo na jurisprudência acerca da diferença entre a intimação pessoal e a intimação na pessoa do defensor: 4 Processo e Conexões Humanas AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. AUSÊNCIA DE INTIMAÇÃO PESSOAL DA SENTENÇA CONDENATÓRIA. RÉU SOLTO. NULIDADE NÃO CONFIGURADA. INTIMAÇÃO, VIA IMPRENSA OFICIAL, DO DEFENSOR. SUFICIÊNCIA. ARTIGO 392, II, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO. I - Consoante o entendimento desta Corte e literalidade da lei - art. 392, II, do Código de Processo Penal - no caso de réu solto, é suficiente a intimação de seu defensor constituído, via imprensa oficial, da sentença condenatória. II - A decisão agravada não merece reparos, porquanto proferida em consonância com a jurisprudência desta Corte Superior. III - Agravo Regimental improvido. (AgRg no RHC 40.667/SP, Rel. Ministra REGINA HELENA COSTA, QUINTA TURMA, julgado em 26/08/2014, DJe 29/08/2014) Portanto, não temos dúvida de que intimação pessoal é aquela realizada na pessoa do demandante, seja por correio, seja por oficial de justiça. A intimação realizada ao advogado não é pessoal, mas uma intimação mediata. Contudo, a forma pela qual os tribunais estão cientificando os advogados poderá chegar ao cúmulo de violar o amplo direito de defesa e o contraditório. I.B. INTIMAÇÃO PESSOAL: MEDIATA E IMEDIATA Desta forma, podemos, então, admitir que há duas modalidades de intimação pessoal, ou seja, a mediata e a 5 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico imediata. Ao admitirmos que o advogado será intimado pessoalmente, teremos uma intimação mediata, porque, em verdade, a não ser atos de natureza processual, devem ser efetivados na pessoa das partes. A imediata seria a intimação da parte, sem o intermédio do advogado. Ainda que o CPC preveja que a intimação, nas localidades aonde não haja Diário Oficial 4 se realize pessoalmente ao advogado (art. 237), o certo é que a regra está prevista no art. 238, e, desta forma, a intimação pessoal é aquela efetuada na pessoa do demandante: Art. 238. Não dispondo a lei de outro modo, as intimações serão feitas às partes, aos seus representantes legais e aos advogados pelo correio ou, se presentes em cartório, diretamente pelo escrivão ou chefe de secretaria A intimação, desta forma, é meio de comunicação do ato processual destinado à parte – intimação imediata. E, em havendo advogado constituído nos autos, por regra, a intimação far-se-á através deste – intimação mediata. O Novo CPC, ao tratar da intimação da Defensoria Pública e de seus assistidos, reforça a nossa ideia de que a intimação pessoal pode ser mediata e imediata: Art. 186. A Defensoria Pública gozará de prazo em dobro para todas as suas manifestações processuais. (...) § 2º A requerimento da Defensoria Pública, o juiz determinará a intimação pessoal da parte patrocinada quando o ato processual depender de providência ou informação que somente por ela possa ser realizada ou prestada. 4 O CPC é de 1973, e, por certo, tal previsão não se presta aos dias atuais. 6 Processo e Conexões Humanas (...) No caso da Defensoria Pública, o ato deverá ser realizado, pessoalmente, na pessoa do assistido quando depender dele para a prática do ato em questão. Tem-se, portanto, no conceito de intimação pessoal, uma necessária distinção, que preferimos chamar de mediata e imediata. Com o intuito, finalmente, de elidir a ideia de uma intimação ficta, criada no art. 5º, da Lei 11.419/2006, devemos lembrar que o jus postulandi persiste nos Juizados Especiais (Lei 9099/95) e na Justiça do Trabalho. Desta forma, a se admitir a intimação pelo portal, como sendo o meio de intimação das partes, estaremos eliminando a ideia de a parte ser intimada pelo correio (regra) ou por oficial de justiça, fazendo vigorar uma intimação, que, por certo, demanda a contratação de um certificado digital. Novas questões acerca de acesso à justiça, que admitíamos superadas, poderão surgir, a partir da ideia deturpada do art. 5º. II. PROBLEMAS ATUAIS EM RELAÇÃO À INTIMAÇÃO PESSOAL DO ARTIGO 5º DA LEI 11.419/2006 As duas jurisprudências abaixo colacionadas demonstram o grave risco de termos a intimação realizada por portal, como sendo considerada pessoal, até mesmo porque em matéria de recurso especial, segundo a orientação jurisprudencial (Súmula 07), a questão será de reexame de provas. Sem dúvida, manifestamos, aqui, severas críticas quanto a este posicionamento, porque, se estamos diante de possível nulidade, com prejuízo à parte, não podemos adotar uma jurisprudência defensiva, ao ponto de não serem apreciadas questões importantes nesta fase de informatização em nosso país. PENAL. AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. RECURSO INTEMPESTIVO. INTERPOSIÇÃO ALÉM DO QUINQUÍDIO LEGAL. TERMO A QUO. 7 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico PUBLICAÇÃO NO DIÁRIO DE JUSTIÇA ELETRÔNICO. RECORRENTE QUE FIRMA QUE A INTIMAÇÃO FOI REALIZADA NOS MOLDES DO ART. 5º DA LEI N. 11.419/2006. FALTA DE EVIDÊNCIA. EXTRATO COLACIONADO QUE NÃO PROVA O ALEGADO. 1. Nos termos do art. 4º da Lei n. 11.419/2006, a publicação em Diário de Justiça eletrônico substitui qualquer outro meio e publicação oficial, para quaisquer efeitos legais, à exceção dos casos que, por lei, exigem intimação ou vista pessoal. 2. Apesar de o recorrente alegar que a intimação eletrônica não ocorreu na data em que publicada a decisão no Diário de Justiça eletrônico, mas em momento subsequente - por intermédio de portal específico, na forma do art. 5º da Lei n. 11.419/2006 -, não logrou provar o alegado. 3. Agravo regimental improvido. (AgRg no AREsp 469.738/RJ, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 20/03/2014, DJe 10/04/2014) PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. MANDADO DE SEGURANÇA. PROCEDIMENTO DE TOMADA DE CONTAS. INTIMAÇÃO VIA DIÁRIO ELETRÔNICO. QUESTÃO DECIDIDA MEDIANTE INTERPRETAÇÃO DE NORMAS DO REGIMENTO INTERNO DO 8 Processo e Conexões Humanas TRIBUNAL DE CONTAS ESTADUAL. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL. AUSÊNCIA DE COTEJO ANALÍTICO. 1. É inviável o conhecimento do recurso especial quando decidido o acórdão recorrido por fundamentação embasada exclusivamente em interpretação de normas infralegais. 2. É distinta a intimação feita por meio eletrônico em portal próprio, na forma do art. 5º da Lei n.º 11.419/06, daquela realizada mediante publicação em Diário Eletrônico. 3. Aferir se houve ou não intimação pessoal na forma do art. 5º da Lei n.º 11.419/06 (por meio eletrônico em portal próprio) exige o reexame do contexto fático-probatório dos autos, tendo em vista ter a Corte de origem se limitado à apreciação da legalidade da intimação via Diário Eletrônico. Incidência do óbice da Súmula 7/STJ. 4. O conhecimento da divergência jurisprudencial pressupõe demonstração, mediante a realização do devido cotejo analítico, da existência de similitude das circunstâncias fáticas e do direito aplicado nos acórdãos recorrido e paradigmas, nos moldes dos arts. 541 do CPC e 255 do RISTJ. 5. Recurso especial não conhecido. (REsp 1354877/RS, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 03/10/2013, DJe 14/10/2013) A questão passa por aspectos pragmáticos. E assim afirmamos porque, acaso haja uma perda de prazo, por exemplo, 9 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico poder-se-ia afirmar que sendo o processo totalmente eletrônico, a intimação deveria ocorrer nos moldes do art. 5º. Por outro lado, nos termos do art. 4º, em havendo Diário da Justiça eletrônico, não se olvida que ele supre qualquer outro meio de intimação. Reforçamos nossas críticas quanto à jurisprudência defensiva, porque, no caso, a partir do momento em que houver uma pacificação quanto a obrigatoriedade de publicação por meio do Diário da Justiça eletrônico, as controvérsias se dissiparão. Por outro lado, a prática tem demonstrado que as partes podem ser surpreendidas com as duas modalidades de comunicação do ato processual. A respeito do tema, fomos consultados por um advogado que teve, exatamente, este problema, ou seja, ainda que o processo fosse totalmente eletrônico, vinha o mesmo recebendo as publicações através do DJe. A partir de um determinado momento, passa a receber as intimações através do portal, e, por esta razão, em tese, teria perdido um prazo, de extrema importância, porque não foi regularmente intimado da sentença prolatada, tendo sido intimado fictamente nos termos do art. 5º. Analisemos a situação. II.A. A ANÁLISE DE UM CASO CONCRETO A consulta que nos foi solicitada 5, dizia respeito a um processo eletrônico, no qual as intimações estavam sendo publicadas no DJe. A partir da prolação da sentença, as publicações passam a ser publicadas – se é que se pode admitir tal prática publicação –, através do portal. Em um primeiro momento, admitimos, neste caso, o elemento surpresa, ou seja, a parte (no caso, o advogado), vinha sendo intimada pelo órgão oficial, e, em determinado momento, exatamente quando da prolação da sentença, passa a ser intimado pelo portal. O ideal do processo é a pacificação dos conflitos. Desta forma, se não houver uma segurança quanto à forma de intimação, os recursos serão manejados, vez por outra, em virtude da aplicação equivocada da Lei 11.419/2006. Ou seja, 5 Originais em nosso poder. 10 Processo e Conexões Humanas uma vez implantado o DJe, este é o meio de publicização do ato intimação. Podemos, até, afirmar que o portal viola ao art. 93, IX, da Constituição, por inexistência de publicidade. Em relação ao caso trazido para exame, a fundamentação da peça de impugnação, conclui: “Nos termos do art. 4º, § 2o , da Lei 11.419, de 2006, verifica-se que: § 2o A publicação eletrônica na forma deste artigo substitui qualquer outro meio e publicação oficial, para quaisquer efeitos legais, à exceção dos casos que, por lei, exigem intimação ou vista pessoal. E, intimação pessoal, aquela que deve ocorrer na pessoa da parte, do Ministério Público ou em casos defendidos pela Defensoria Pública O que significa dizer que, a partir do momento em que há Diário da Justiça Eletrônico, não se pode cogitar de uma pseudo intimação, a ser admitida, inclusive, como ficta. A regra, portanto, a ser aplicada, é a do art. 4º e não a do art. 5º, até porque, repita-se, nestes autos, já houve intimações pelo DJe. De fato, não fosse a norma em questão, ou seja, a Lei 11.419/2006, que prevê a publicação no DJe como a válida, em caso de duplicidade de intimação, deve-se afirmar que o impugnante foi prejudicado e induzido em erro, posto ter havido publicações naquele órgão. A respeito, já decidiu o STJ: PROCESSUAL CIVIL. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. 11 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico DEFICIÊNCIA NA FUNDAMENTAÇÃO. SÚMULA 284/STF. AUSÊNCIA DE CITAÇÃO DO NOME E ENDEREÇO DE ADVOGADO. PETIÇÃO DO AGRAVADO REQUERENDO SUA HABILITAÇÃO NOS AUTOS. SUPRIMENTO (ART. 524, III, DO CPC). PRECEDENTES. TEMPESTIVIDADE. RECURSO INTERPOSTO PELA VIA ELETRÔNICA. FALHA NO SISTEMA ELETRÔNICO. REEXAME DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. ÓBICE DA SÚMULA 7/STJ. ALÍNEA "C". NÃO DEMONSTRAÇÃO DA DIVERGÊNCIA. (...) 4. Quanto à tempestividade do Agravo de Instrumento interposto pelo ora agravado, a Corte local, no caso concreto, rejeitou a preliminar sob a seguinte motivação: De fato, o recurso foi interposto primeiramente perante o juízo agravado, em função de existir no sítio do SISTEMA PROJUDI (processo judicial eletrônico) um ícone que possibilitava a interposição eletrônica do recurso para o 2º grau, o que induziu o agravante ao erro, conforme alegado por ele em suas razões, por se tratar de processo judicial eletrônico. Alertado de que havia se equivocado, o agravante corrigiu seu erro, interpondo novamente o recurso, perante o órgão adequado, com prejuízo, contudo, do prazo recursal, que já estava esgotado. (...) entendo justo que o recurso do agravante seja considerado 12 Processo e Conexões Humanas tempestivo, evitando, assim, que seja prejudicado por falha do sistema (fls. 194-195, e-STJ). 5. In casu, a instância de origem decidiu a controvérsia fundamentada no conjunto fáticoprobatório dos autos. Assim, para infirmar a conclusão assentada no acórdão regional, seria necessário o reexame dos autos, o que encontra óbice na Súmula 7/STJ. (AGARESP 201202724118, HERMAN BENJAMIN, STJ - SEGUNDA TURMA, DJE DATA:22/05/2013 ..DTPB:.) Em sua obra, Processo Eletrônico e Teoria Geral do Processo Eletrônico. A informatização judicial no Brasil (Forense, 5aed, 2014), José Carlos de Araújo Almeida Filho afirma: “Com a criação do Diário da Justiça na modalidade eletrônica, além de se reduzirem os custos com o processamento dos feitos e impingir maior celeridade ao processo, uma vez que os Tribunais poderão criar sistema de certificação digital nos autos – sempre pela ICP-Brasil –, as informações prestadas nos sítios serão dotadas de credibilidade. Credibilidade é o termo mais apropriado, porque a jurisprudência, como vimos no item anterior, não conferia tal adjetivo aos seus sítios. Nos termos do parágrafo 2º do art. 4º, a publicação no Diário da Justiça eletrônico substitui qualquer outro meio, Ressalva-se, contudo, a intimação pessoal. (...) 13 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico Frise-se, então, que o prazo para a prática de qualquer ato processual em virtude de intimação por Diário, será contado a partir da publicação na modalidade eletrônica. Contrario sensu, acaso optante pelo Processo Eletrônico e a publicação ocorrer nesta modalidade, ou seja, on-line, a publicação posterior não poderá validar o ato e, com isto, sobrepor-se aos efeitos da preclusão, porque o que se pretende é a celeridade processual. Mas o Processo Eletrônico pode ser total ou parcialmente realizado desta forma. O parágrafo 2º do art. 4º poderia suprimir qualquer discussão acerca do meio realizado, ou seja, a comunicação eletrônica dispensa qualquer outra modalidade de comunicação.” Não se olvida, pois, que a não comunicação do ato processual por meio do Diário da Justiça Eletrônico, culmina com sua nulidade, violandose, assim, ao disposto no art. 4º, parágrafo segundo, da Lei 11.419, de 2006.” A falta de técnica legislativa da Lei 11.419/2006, provocou, sem qualquer dúvida, uma dicotomia interna, em relação às formas de exteriorização do ato processual. Entendemos que o art. 5º somente pode ser aplicado acaso não haja Diário da Justiça eletrônico. Por outro lado, não somos favoráveis à eliminação do DJe, porque, como já afirmamos, seria uma violação ao princípio da publicidade. Admitimos que estas considerações e as experiências vivenciadas por uma grande parcela dos advogados 6, deva ser 6 É importante destacar que o método de análise, como afirmado na introdução, pode não ser o mais ortodoxo, uma vez ter sido procedido 14 Processo e Conexões Humanas levada em consideração pelo Poder Judiciário, especialmente em face da redação do art. 18, da Lei 11.419/2006, que permite a regulamentação pelo Poder Judiciário. III. A INTIMAÇÃO NO PROCESSO ELETRÔNICO DEVE OBEDECER AO COMANDO DO ARTIGO 4º, DA LEI 11.419/2006 Analisadas as questões práticas e as novas modalidades de intimação trazidas com a Lei 11.419, de 2006, em um primeiro momento é preciso reforçar uma crítica ao Novo CPC. Ao que tudo indica, os legisladores não se preocuparam com a informatização, elaborando um novo código que nasce – se bem que ainda não foi, sequer, votado – ultrapassado. As questões envolvendo as novas tecnologias e o direito apresentam-se expurgadas de nosso cenário jurídico, não se sabendo o real motivo para um desprezo legislativo acerca do tema. O Novo CPC poderia, sem qualquer dúvida, solucionar as questões até então apresentadas, pacificando o entendimento acerca da publicização dos atos processuais. Até mesmo porque, a intimação ficta não pode ser considerada forma de exteriorização e comunicação do ato processual, porque não está acessível a todos. Em outro ponto, podemos afirmar que a idealização de cadastro junto ao Poder Judiciário não é uma faculdade, mas a única forma de se trabalhar no processo eletrônico. Como detalhamos julgados anteriormente, admitimos importante as decisões emanadas do STJ, no que tange à dispensa de qualquer outra forma de comunicação do ato processual, a partir do momento em que haja a edição do DJe. através de comentários e insatisfações manifestados em redes sociais. Contudo, muitos dos relatos, foram extraídos de grupos de advogados que vivenciam a prática do processo eletrônico. Por outro lado, adotamos, aqui, experiências já experimentadas e outros relatos contidos em listas de discussões, com a presença de todos os atores do processo. A conclusão, portanto, é a de que o DJe não pode ser eliminado e que o art. 5º não pode ser adotado como regra, 15 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico PROCESSUAL CIVIL. INTERPOSIÇÃO DE AGRAVO. RECURSO INTEMPESTIVO. 1. Não se conhece do agravo regimental interposto intempestivamente, nos termos do art. 4º, §§ 3º e 4º da Lei nº 11.419/06. 2. O teor dessa norma expressa que a publicação do DJe, à exceção dos casos que exigem intimação ou vista pessoal, dispensa qualquer outro meio e publicação oficial para a produção dos efeitos legais. Agravo regimental não conhecido. (AgRg no AREsp 439.297/PR, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 11/03/2014, DJe 18/03/2014) PROCESSUAL CIVIL - EXECUÇÃO FISCAL - BLOQUEIO DE ATIVOS FINANCEIROS PELO SISTEMA BACENJUD INTIMAÇÃO PESSOAL DO REPRESENTANTE DA FAZENDA ESTADUAL PRERROGATIVA PREVISTA NO ART. 25 DA LEI 6.830/1980 - NÃO APLICAÇÃO DA LEI 11.419/2006. 1. A intimação dos membros da Fazenda do Estado deve ser feita pessoalmente, nos termos do art. 25 da Lei de Execuções Fiscais. 2. O § 2° do art. 4° da Lei 11.419/2006, que trata da informatização do processo judicial, estabelece que a publicação em Diário de Justiça eletrônico substitui qualquer outro meio e publicação oficial, à exceção dos casos que, por lei, exigem intimação ou vista pessoal. 16 Processo e Conexões Humanas 3. Recurso especial provido. (REsp 1284869/SP, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 06/08/2013, DJe 14/08/2013) A fim de caminharmos para uma conclusão, temos a convicção de que a intimação pelo Diário da Justiça eletrônico é o modelo admitido pelo legislador, não podendo coexistirem duas formas de comunicação dos atos processuais, inclusive a fim de garantir a segurança jurídica. Não duvidamos, por outro lado, que uma ideia de duplicidade de intimação foi fruto da coexistência, no ano de 2006, do processo físico com a transmutação para o processo informatizado. E, ainda, a coexistência do Diário de Justiça e do Diário da Justiça eletrônico. Desta forma, pretendeu o legislador, adotar o modelo eletrônico ao invés do formato em papel. Contudo, em que pese nosso conhecimento em relação ao processo legislativo, o certo é que não podemos permitir a coexistência de duas formas de intimação no processo eletrônico. E, a partir do momento em que a redação do parágrafo segundo, do art. 4º, é bem clara, prevalece a publicação pelo DJe, independentemente de qualquer outra. CONCLUSÃO Pesquisamos atos processuais por meios eletrônicos desde 2002. Com a tramitação do PL 5828/2001, muitas inserções foram procedidas, sem que, à época, houvesse uma maturidade na tramitação dos processos por meio informatizado. Sabemos, sim, que a Lei 10.259/2001 já se encontrava em vigor, com previsão de atos por meios eletrônicos, em seu art. 8º. Contudo, a experiência nos apontou que apenas o TRF da 4ª 17 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico Região adotou o sistema, que, à época, era conhecido como eproc. A partir das experiências com o e-proc, e, levando-se em consideração que o Poder Público era intimado, inclusive por email, pretendeu-se inserir a prática na Lei 11.419/2006, mas com consequências catastróficas. Assim afirmamos porque não é possível coexistir duas modalidades de intimação, pouco importando se o processo é eletrônico ou físico. Ainda que seja totalmente eletrônico o processo, deverá a intimação se proceder por meio do Diário da Justiça eletrônico. Esta é a conclusão, a partir do texto legal. Relativamente à prática, temos observado que há muitos advogados perdendo prazos em virtude da confusão que se provoca quando se está diante da malsinada intimação ficta, processada pelo portal. A ideia do legislador, por certo, foi comparar a vista dos autos com seu acesso por meio eletrônico. Mas, a infelicidade ao transcrever o artigo e permitir uma intimação ficta, é de tal forma prejudicial que não pode prevalecer. Por esta razão que sempre tecemos nossas críticas ao Novo CPC, que não se preocupou com a informatização. Quem sabe, agora, não seja o momento de se dar uma atenção, antes que o mesmo seja votado no Congresso? REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA FILHO, José Carlos de Araújo; CASTRO, Aldemario Araujo. Manual de Informática Jurídica e Direito da Informática. Rio de Janeiro: Forense, 2005. _____. A Responsabilidade Civil do Juiz, São Paulo: WVC, 1999. _____. Apostila para a cadeira de Direito e Informática. Disponível em http://www.almeidafilho.adv.br/academica. 18 Processo e Conexões Humanas _____. O Direito como Sistema Autopoiético. Sítio do Instituto Politécnico de Beja, disponível em http://www.estig.ipbeja.pt/~ac_direito/odireitocomosistema autopoietico.doc. _____. “O Pedido e o Princípio da Adstrição”, in Revista de Processo. 118. Coord. Teresa Arruda Alvim Wambier, São Paulo: RT, 2005. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 1994. _____. Instituições de Direito Processual Civil. V. I. 2. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002. _____. Fundamentos do Processo Civil Moderno. V. I, 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. _____. A Reforma da Reforma. São Paulo: Malheiros, 2002. GRECO, Leonardo. Teoria da Ação. São Paulo: Dialética, 2003. _______. Instituições de Processo Civil. v. I, 2. ed. Rio de Janeiro, Forense, 2010. LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: 34, 2005. _____. Inteligência Coletiva. São Paulo: Loyola, 2003. MEDINA, José Miguel Garcia. O Prequestionamento no Recursos Extraordinário e Especial. 3. ed. São Paulo: RT, 2002. _____. Execução Civil. 2. ed. São Paulo: RT, 2004. MOREIRA, José Carlos Barbosa. O Novo Processo Civil Brasileiro. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995. _____. Temas de Direito Processual, Sétima Série. São Paulo: Saraiva, 2001. MORIN, Edgar. Ciência com Consciência. 8. ed. Rio de Janeiro: Bertrand, 2005. NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 2. ed. São Paulo: RT, 1995. RÚA, Fernando de La. Teoría General del Processo. Buenos Aires: Depalma, 1991. 19 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico WAMBIER, Luiz Rodrigues (coord.). Curso Avançado de Processo Civil. V. I. 5. ed. São Paulo: RT, 2002. _____. Sentença Civil. Liquidação e Cumprimento. São Paulo: RT, 2006. _____; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Breves Comentários à 2ª Fase da Reforma do Código de Processo Civil. 2. ed. São Paulo: RT, 2002. _____;_____; MEDINA, José Miguel Garcia. Breves Comentários à Nova Sistemática Processual Civil – 2. São Paulo: RT, 2006. 20 Processo e Conexões Humanas A LEI 11.419/2006 E SUAS IMPLICAÇÕES PARA O EXERCÍCIO DA ADVOCACIA À LUZ DA JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA Angelo Setaro Soares Masullo 1 Isadora Grumbt Najjar 2 RESUMO: O presente artigo busca trazer as consequências práticas e teóricas, de forma breve e objetiva, que surgem com o advento da Lei 11.419/2006 e do Processo Eletrônico em relação a regulamentação feita pelos diversos Tribunais no Brasil e suas incompatibilidades, bem como as mudanças oriundas da nova sistemática de contagem do prazo processual, trazendo correlato a cada tema o entendimento da jurisprudência pátria em conjunto com uma interpretação crítica sobre o assunto, com o objetivo de aprimorar o debate e construir um Processo Eletrônico que, priorizando seus usuários e destinatários e com respeito as garantias constitucionais, ajude a dar celeridade e eficiência ao Poder Judiciário nacional. PALAVRAS-CHAVE: Lei 11.419/2006. Processo Eletrônico. Incompatibilidade da regulamentação dos Tribunais. Prazos processuais. ABSTRACT: The present article aims to convey practical and theoretical consequences, in a brief and objective manner, that appear with the advent of the Law 11.419/2006 and the Electronic Process in relation to the regulation made by several courts in Brazil and its incompatibilities, as well as the changes derived from the new counting system of procedural delay, presenting a correlate to each theme the understanding of the national jurisprudence together with a critical interpretation of this subject, aiming at improving the debate and constructing an Eletronic Process that, prioritizing its users and recipients and 1 Advogado; bacharel em Direito pela UFF; pós-graduando em Direito Processual Civil pela Universidade Candido Mendes; e residente jurídico da Procuradoria Geral do Município de Niterói/RJ. 2 Graduanda em Direito pela UFF; monitora da disciplina Processo Eletrônico; e estagiária do Departamento de Contencioso da Financiadora de Estudos e Projetos - Finep. 21 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico with respect to the constitutional guarantees, contribute in giving rapidity and efficiency to the national Judiciary. KEY-WORDS: Law 11.419/2006. Electronic Process. Incompatibility of courts regulation. Procedural delay. INTRODUÇÃO E CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES. A tecnologia avança no dia a dia trazendo sempre novidades e novas formas de fazer as tarefas cotidianas de maneira mais rápida, eficaz e econômica. Carros, celulares, computadores evoluem rapidamente buscando mais praticidade e conforto aos seus destinatários finais. Todos os novos instrumentos tecnológicos são desenvolvidos em prol de facilitar as necessidades do homem. Ocorre que da mesma forma como esta ciência evolui, as relações jurídicas também vão ganhando novos sentidos, novas velocidades, novos paradigmas. Contratos são acordados em segundos entre pessoas em lados opostos do mundo, assim como os próprios computadores são capazes de realizar operações sem a necessidade de auxílio humano. Correndo ao lado disto está o Direito, as legislações e o Poder Judiciário, que tem o dever de seguir essa onda evolutiva e estar preparado para dirimir novos conflitos que surgem, sem precedentes e muitas vezes nunca nem imaginados serem possíveis de existir. O processo judicial eletrônico surge como resultado dessa busca do Poder Judiciário em evoluir junto com a sociedade, usando a tecnologia como aliada em conseguir aquilo que todos buscamos em novas tecnologias: eficiência, celeridade e praticidade. As criticas aos Tribunais no Brasil são intensas no sentido da demora em prover a tutela jurisdicional. A Emenda Constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004, trouxe, inclusive, para o rol de garantias fundamentais do artigo 5º, em seu inciso LXXVIII, o direito a razoável duração do processo e aos meios que garantam a celeridade de sua tramitação. Desse mesmo modo, a Lei nº 11.419, de 19 de dezembro de 2006, surge como última lei que regulamenta a informatização do processo judicial como um todo, instrumento que visa dar celeridade ao trâmite judicial, dispondo sobre o processo 22 Processo e Conexões Humanas eletrônico, a comunicação dos atos processuais, transmissão de peças processuais virtuais, entre outras medidas. Enfatiza José Carlos de Araújo Almeida Filho que “é preciso, neste momento, com a vigência da Lei do Processo Eletrônico, que os meios eletrônicos sejam dotados para a pacificação de conflitos e provoquem uma celeridade no processo.” 3 Todavia, apesar do avanço que representa, problemas ainda surgem de sua implementação principalmente para a pratica da advocacia, classe a qual mais sofre com os percalços advindos do processo eletrônico. Assim sendo, ponto essencial que surge e precisa ser enfrentado para avançar no objetivo básico de celeridade processual e a devida valorização da advocacia como função essencial a justiça, que lhe é característica constitucional, é a falta de unidade na regulamentação atualmente aplicada ao processo judicial eletrônico, principalmente no que diz respeito aos atos de comunicação por meio eletrônico e a nova sistemática dos prazos processuais. I. DIVERSIDADE E DISPARIDADE DA REGULAMENTAÇÃO DO PROCESSO ELETRÔNICO. Esta é uma questão que causa grande dificuldade para o exercício da advocacia, sobretudo a privada: a discrepância da regulamentação do processo eletrônico pelos Tribunais Brasil afora. Cada tribunal possui um regramento, um sistema, uma forma de disponibilização de seus julgados. Isso significa, para o advogado, perder tempo (e muitas vezes um prazo peremptório) consultando sistemas dos diversos tribunais diariamente. Para um país da extensão do Brasil, que conta com noventa e um tribunais 4, esse árduo trabalho é quase que humanamente impossível de ser administrado pelo advogado que não conta com o aparato dos grandes escritórios. 3 ALMEIDA FILHO, José Carlos de Araújo. Processo Eletrônico e teoria geral do processo eletrônico: a informação judicial no Brasil – Rio de Janeiro. Ed. Forense, 2011. Pg. 162. 4 Número de Tribunais no Brasil. Disponível em: http://direito.folha.uol.com.br/blog/nmero-de-tribunais-no-brasil 23 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico O Conselho Nacional de Justiça emitiu a Resolução nº 185, de 18 de dezembro de 2013, com o fito de regulamentar, em âmbito nacional, o Sistema Processo Judicial Eletrônico - PJe como sistema de processamento de informações e prática de atos processuais, estabelecendo os parâmetros para sua implementação e funcionamento. Tal resolução tem o condão de uniformizar a implantação do processo eletrônico no Poder Judiciário como um todo, trazendo como fundamento a necessidade de uniformização, de controle dos gastos e, principalmente, celeridade e eficiência da prestação jurisdicional, conforme expresso em seu preâmbulo, in verbis: CONSIDERANDO as diretrizes contidas na Lei n. 11.419, de 19 de dezembro de 2006, que dispõe sobre a informatização do processo judicial, especialmente o disposto no art. 18, que autoriza a regulamentação pelos órgãos do Poder Judiciário; CONSIDERANDO os benefícios advindos da substituição da tramitação de autos em meio físico pelo meio eletrônico, como instrumento de celeridade e qualidade da prestação jurisdicional; CONSIDERANDO a necessidade de racionalização da utilização dos recursos orçamentários pelos órgãos do Poder Judiciário; CONSIDERANDO o contido no Acórdão TCU 1094, que, entre outras medidas, recomenda que o Conselho Superior da Justiça do Trabalho - CSJT fiscalize "as medidas a serem adotadas pelos órgãos integrantes da Justiça do Trabalho, de modo a evitar o desperdício de recursos no desenvolvimento de soluções a serem descartadas quando da implantação dos projetos nacionais, orientando 24 Processo e Conexões Humanas acerca da estrita observância dos termos do Ato Conjunto CSJT.TST.GP.SE 9/2008, especialmente em seus arts. 9º e 11, zelando pela compatibilidade das soluções de TI adotadas no âmbito da Justiça do Trabalho, bem como se abstendo da prática de contratações cujo objeto venha a ser rapidamente descartado, podendo resultar em atos de gestão antieconômicos e ineficientes", com envio de cópia ao Conselho Nacional de Justiça; CONSIDERANDO as vantagens advindas da adoção de instrumentos tecnológicos que permitam a adequação do funcionamento do Poder Judiciário aos princípios da proteção ambiental; CONSIDERANDO a necessidade de regulamentar a implantação do sistema Processo Judicial Eletrônico - PJe nos órgãos do Poder Judiciário, de modo a conferir-lhe uniformidade; CONSIDERANDO a edição da Resolução nº. 94 do Conselho Superior da Justiça do Trabalho - CSJT, de 23 de março de 2012, e suas posteriores alterações, que regulamentou o PJe-JT no âmbito daquela justiça especializada; CONSIDERANDO a Resolução n. 202, de 29 de agosto de 2012, do Conselho da Justiça Federal, que "Dispõe sobre a implantação do Sistema Processo Judicial Eletrônico PJe no âmbito do Conselho e da Justiça Federal de primeiro e segundo graus"; CONSIDERANDO o Acordo de Cooperação Técnica n. 029/2012, 25 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico celebrado entre o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho da Justiça Federal, detalhando as obrigações dos partícipes quanto à customização, implantação e utilização do PJe no âmbito da Justiça Federal; CONSIDERANDO a Resolução n. 23393/2013, aprovada pelo Tribunal Superior Eleitoral na Sessão Administrativa de 10 de setembro de 2013, que regulamentou o Processo Judicial Eletrônico - PJe na Justiça Eleitoral; CONSIDERANDO a adesão de grande número de Tribunais de Justiça ao Sistema PJe, por meio do Acordo de Cooperação n. 043/2010; CONSIDERANDO as atribuições do Conselho Nacional de Justiça, previstas no art. 103-B, § 4º, da Constituição Federal, especialmente no que concerne ao controle da atuação administrativa e financeira e à coordenação do planejamento estratégico do Poder Judiciário, inclusive na área de tecnologia da informação, CONSIDERANDO a deliberação do Plenário do Conselho Nacional de Justiça na 181ª Sessão Ordinária, realizada em 17 de dezembro de 2013; 5 5 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução nº 185, de 18 de dezembro de 2013. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/atosadministrativos/atos-da-presidencia/resolucoespresidencia/27241resolucao-n-185-de-18-de-dezembro-de-2013.> Acesso em 28/09/2014. 39. 26 Processo e Conexões Humanas Contudo, tal realidade ainda está longe de ser concretizada, seja pela vasta gama de Tribunais a migrar concordando com a nova diretriz estabelecida pelo CNJ, seja pelos recursos a serem despendidos. Os Tribunais que já haviam implantado sistema próprio devem agora “jogar no lixo” todo investimento já feito e gastar novamente milhões de reais para adequar ao novo sistema. Desse modo, enquanto não é implementado o sistema PJe introduzido pelo CNJ, importante se faz expor alguns entendimentos jurisprudenciais nos Tribunais Superiores sobre as controvérsias encontradas, que são consequências dessa diversidade de regulamentação do processo eletrônico, com foco na comunicação por meio eletrônico dos atos processuais e, por conseguinte, a nova contagem dos prazos processuais. I.A. A COMUNICAÇÃO DAS INTIMAÇÕES NA LEI 11.419/2006: A DUPLICIDADE DE INTIMAÇÃO E SUAS CONSEQUÊNCIAS. Uma das questões polêmicas envolvendo o processo eletrônico é a possibilidade de duplicidade de intimação: pelo Diário de Justiça eletrônico (DJe) e pelo portal do processo eletrônico dos Tribunais. O caput do art. 4º da lei 11.419/2006 6 prevê a possibilidade de criação, pelos Tribunais, de Diários de Justiça na modalidade eletrônica, enquanto seu §2º 7 diz que a publicação por ele efetuada substituirá qualquer outro meio de publicação oficial. Entretanto, a mesma lei, em seu art. 5º, prevê que “as intimações serão feitas por meio eletrônico em portal próprio aos que se cadastrarem na forma do art. 2º desta Lei, dispensando-se a publicação no órgão oficial, inclusive eletrônico”. 6 “Art. 4o Os tribunais poderão criar Diário da Justiça eletrônico, disponibilizado em sítio da rede mundial de computadores, para publicação de atos judiciais e administrativos próprios e dos órgãos a eles subordinados, bem como comunicações em geral.” 7 “§ 2o A publicação eletrônica na forma deste artigo substitui qualquer outro meio e publicação oficial, para quaisquer efeitos legais, à exceção dos casos que, por lei, exigem intimação ou vista pessoal.” 27 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico Dessa maneira, a Lei 11.419/2006, deixou brecha que permite que haja intimação tanto pelo DJe, quanto pelo portal de processo eletrônico de cada Tribunal, ou seja, duplicidade de intimação. Constatada essa possibilidade, pode-se afirmar que, mesmo que sejam publicadas no mesmo dia em ambos os lugares, tal duplicidade influenciará na contagem do prazo. No caso, por exemplo, de duplicidade de intimação ocorrendo em dias diferentes, há o entendimento pacífico do Superior Tribunal de Justiça 8 de que o termo inicial do prazo terá como referência a disponibilização que aconteceu primeiro. Caso o advogado tome como referência a segunda publicação para contagem de prazo para, por exemplo, interpor recurso de apelação, fatalmente terá seu recurso considerado intempestivo. No entanto, quando há publicação em momentos diferentes, mas com diferença em seu teor, será o caso de uma falsa duplicação, tendo em vista que se estará diante de uma verdadeira republicação, tendo aqui como termo inicial o primeiro dia útil seguinte à última publicação. Outra hipótese é a de publicação somente da parte dispositiva do decisum, e posterior disponibilização de seu inteiro teor. Nesse caso, o Supremo Tribunal Federal já se pronunciou 9 no sentido de que o dia a ser considerado para contagem de prazo é o da disponibilização no DJe. Cabe aqui ressaltar que, os autos do processo em que houve tal entendimento eram físicos, portanto, o inteiro teor da decisão poderia ser consultado mediante diligência do advogado ao fórum. Caso o processo fosse eletrônico, outra solução não poderia ser dada se não a de que a data da disponibilização na internet seria a referência para início de contagem do prazo, tendo em vista que o procurador não teria meios para recorrer da decisão, por não ter acesso aos fundamentos da decisão. 8 EDcl no REsp 1296420/PB, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 22/04/2014, DJe 05/05/2014 9 ARE 671838 AgR, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 26/06/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-159 DIVULG 13-08-2012 PUBLIC 14-08-2012. 28 Processo e Conexões Humanas I.B. A COMUNICAÇÃO DAS INTIMAÇÕES NA LEI 11.419/2006: A INTIMAÇÃO SOMENTE PELO PORTAL DE PROCESSO ELETRÔNICO É MEIO MATERIALMENTE EFICAZ DE CONFERIR PUBLICIDADE AO ATO PROCESSUAL? Causa de imensa preocupação é a hipótese em que o tribunal somente faz suas intimações mediante o portal do processo eletrônico, como é feito, por exemplo, no Tribunal Regional Federal da 5ª Região. A possibilidade da perda de um prazo é preocupação constante na vida de um advogado. Tal preocupação aumenta ainda mais quando a intimação somente é feita através do portal, que, ainda que não tenha sido acessado, considera que foi feita intimação pessoal após 10 dias da disponibilização, conforme prevê o art. 5º da Lei 11.419/2006 10. Tal sistemática é perigosa principalmente para o advogado que não está acostumado a lidar com a regulamentação 10 Art. 5o As intimações serão feitas por meio eletrônico em portal próprio aos que se cadastrarem na forma do art. 2o desta Lei, dispensando-se a publicação no órgão oficial, inclusive eletrônico. § 1o Considerar-se-á realizada a intimação no dia em que o intimando efetivar a consulta eletrônica ao teor da intimação, certificando-se nos autos a sua realização. § 2o Na hipótese do § 1o deste artigo, nos casos em que a consulta se dê em dia não útil, a intimação será considerada como realizada no primeiro dia útil seguinte. § 3o A consulta referida nos §§ 1o e 2o deste artigo deverá ser feita em até 10 (dez) dias corridos contados da data do envio da intimação, sob pena de considerar-se a intimação automaticamente realizada na data do término desse prazo. § 4o Em caráter informativo, poderá ser efetivada remessa de correspondência eletrônica, comunicando o envio da intimação e a abertura automática do prazo processual nos termos do § 3o deste artigo, aos que manifestarem interesse por esse serviço. § 5o Nos casos urgentes em que a intimação feita na forma deste artigo possa causar prejuízo a quaisquer das partes ou nos casos em que for evidenciada qualquer tentativa de burla ao sistema, o ato processual deverá ser realizado por outro meio que atinja a sua finalidade, conforme determinado pelo juiz. § 6o As intimações feitas na forma deste artigo, inclusive da Fazenda Pública, serão consideradas pessoais para todos os efeitos legais. 29 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico desses tribunais (como no caso de advogado registrado em um Estado X, que atua eventualmente em outros Estados da Federação). Isso porque, em muitos casos, o advogado é surpreendido com a decisão já transitada em julgado, pois não está habituado a acessar diariamente aquele portal, por não ser o ambiente no qual costuma atuar. Desse modo, o advogado necessita consultar diariamente diversos sítios eletrônicos de Tribunais para verificar se um processo seu está com alguma intimação pendente, o que demanda tempo e trabalho em tarefa repetitiva e que não poderá ser delegada, visto que a consulta ao portal dá-se mediante login e senha pessoal. O mesmo artigo 5º traz, em seu §4º, a possibilidade de envio de correspondência eletrônica, comunicando o envio de intimação e a abertura automática do prazo, aos que demonstrarem interesse no serviço. Trata-se do sistema conhecido como push. Tal serviço poderia, de fato, suprir o problema de o advogado ser pego de surpresa, não fosse por um detalhe: ele tem caráter meramente informativo, ou seja, não oficial. Isso significa que o procurador não pode confiar tão somente no recebimento do e-mail pelo push para informar-se acerca de suas intimações, pois, se o sistema falhar, ele não terá o seu prazo devolvido. Esse é o entendimento do STJ, conforme se extrai do seguinte julgado 11: PROCESSUAL CIVIL ? EMBARGOS DE DECLARAÇÃO INTEMPESTIVOS ? FALHA NO SISTEMA PUSH ? DESINFLUÊNCIA ? AUSÊNCIA DE OFICIALIDADE ? PRECEDENTE DA CORTE ESPECIAL. 1. Manifesta a intempestividade, o recurso não comporta conhecimento. 11 EDcl no AgRg no REsp 671.462/PR, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 13/10/2009, DJe 21/10/2009 30 Processo e Conexões Humanas 2. In casu, o acórdão embargado foi publicado no Diário de Justiça em 2.5.2007, com escoamento do prazo de 5 dias para a interposição dos embargos na data de 7.5.2007. Os presentes embargos foram protocolados apenas na data de 4.6.2007, intempestivamente, portanto, porque passados 27 dias do termo final. 3. O "sistema push", o qual provê o envio de correspondência eletrônica com informações sobre o andamento dos processos previamente cadastrados pelo usuário, carece de qualquer caráter de oficialidade, sendo certo que as informações nele veiculadas são de natureza meramente informativa. Precedente da Corte Especial: AgRg nos EREsp 514412/DF Rel. Min. Luiz Fux, DJ 20.8.2007. Embargos de declaração nãoconhecidos. Assim, no fim, tal sistema não serve ao que se propõe: facilitar o acompanhamento de processos, tendo em vista que será sempre preciso que o advogado verifique diariamente o portal de todos os Tribunais que não utilizam o DJe. Além do inconveniente de não receber as intimações por nenhuma outra forma que não seja acessando o portal, tal sistema de intimações traz outro problema para os patronos e os jurisdicionados: a falta de publicidade necessária dos atos processuais. Ao somente disponibilizar as decisões através do portal, a própria parte terá o seu direito de acompanhar o processo dificultado, tendo em vista que, para o cidadão comum, não lhe é familiar o ambiente processual eletrônico. De forma mais contundente, impede-se que um terceiro interessado na demanda tome conhecimento de seu regular 31 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico processamento, e de decisões que possivelmente possam lhe afetar. Neste sentido, Wesley Roberto de Paula discorre sobre a importância do Diário da Justiça Eletrônico para a publicidade dos atos processuais: A Lei de Informatização do Processo Judicial (LIP), em seu art. 4º, permite a criação de Diários da Justiça Eletrônicos a serem disponibilizados via internet com assinatura eletrônica. A medida mostra-se altamente valorativa à garantia da publicidade, vez que a existência desses veículos na forma impressa inviabiliza o acesso a grande parcela da população ao seu conteúdo. 12 O texto constitucional é claro ao prever como direito fundamental a publicidade dos atos processuais, ressalvando apenas os casos em que a defesa da intimidade e o interesse social exigirem. 13 Dessa maneira, ao dispensar a publicação no órgão oficial, o art. 5º da Lei 11.419/2006 afronta o princípio constitucional da publicidade dos atos processuais, vez que, sendo a intimação somente disponibilizada no portal, a informação somente chega aos advogados daquela demanda. Acerca da publicidade e necessidade de publicação dos atos processuais, vale transcrever as lições de Cassio Scarpinella Bueno: 12 PAULA, Wesley Roberto de. Publicidade no processo judicial eletrônico: busca da indispensável relativização - São Paulo. Ed. LTr, 2009. Pg. 39. 13 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) LX - a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem. 32 Processo e Conexões Humanas A publicidade, tal qual exigida constitucionalmente, tem sentido duplo. [...] A segunda é no sentido de que todas as decisões, para serem entendidas como tais, devem ser publicadas, isto é, tornadas públicas, tudo o que caracteriza o “processo” – e o “processo”, sempre é bom destacar, é método de manifestação do Estado – é público, e, como tal tem que estar disponível para quem quer que seja. 14 Nesse sentido, temos que essa maneira exclusiva de disponibilização é mais uma maneira de restringir direitos do que um mecanismo para garanti-los. I.C. A COMUNICAÇÃO DAS INTIMAÇÕES NA LEI 11.419/2006: IMPOSSIBILIDADE DE RECEBIMENTO DE PETIÇÃO FÍSICA EM PROCESSO ELETRÔNICO INSTÂNCIAS. EM ALGUMAS COMARCAS E Outra questão causada pela discrepância entre as normas de regulamentação do processo eletrônico é a da possibilidade ou não de peticionamento físico a depender do entendimento de cada Tribunal. Pegando como exemplo o Estado do Rio de Janeiro e a Justiça Federal de 1ª e 2ª instância, constata-se que naquela, mesmo no processo que tramita por meio eletrônico, são aceitas petições físicas no balcão do protocolo, enquanto que na instância acima, no Tribunal Regional Federal da 2ª região 15, não 14 BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: teoria geral do direito processual civil, 1 – 6ª edição revista, atualizada e ampliada. São Paulo. Ed. Saraiva, 2012. Pg. 169. 15 TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 2ª REGIÃO. Resolução Nº TRF2-RSP-2014/00006 de 14 de março de 2014. Disponível em: <http://www10.trf2.jus.br/processoeletronico/wpcontent/uploads/sites/31/2014/04/Res-AgravoTRF2RSP201400006.pdf>. Acesso em 27/08/2014 33 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico são aceitas petições físicas de Agravo de Instrumento referentes a processos eletrônicos. Vejam bem, trata-se de 1ª e 2ª instâncias do mesmo Tribunal. Não há sentido nessa diferenciação que somente serve para confundir o advogado. Além disso, a negativa de protocolo físico de petições em processo eletrônico pode causar prejuízo ao advogado e à parte representada no caso de, por exemplo, problemas no computador de seu escritório ou uma falta de luz. Poderia ser levantada a solução de que o advogado pode ir a qualquer lan house com um pen drive contendo sua petição, juntamente com seu token, e realizar de lá o protocolo. No entanto, essa possibilidade está longe de ser realidade. Isso porque, para que o advogado proceda com o protocolo eletrônico é preciso que se realize a instalação de diversos programas. Pode parecer tarefa simples, mas, para o advogado que não conta com um setor de informática para auxiliá-lo (realidade da grande maioria dos profissionais da advocacia), isso pode levar um dia inteiro. Ou seja, retirar a possibilidade de protocolo físico de petição em processo eletrônico, no momento atual, em que não é tão simples encontrar todo o aparato necessário para o protocolo eletrônico, é manter o advogado em constante risco de perda de prazo, gerando prejuízo não só para ele, mas principalmente para a parte por ele representada. I.D. IMPLICAÇÕES DA LEI 11.419/2006 NA CONTAGEM DO PRAZO PROCESSUAL: A EXTENSÃO DO HORÁRIO PARA PROTOCOLO DE PETIÇÃO PARA AS 24 HORAS DO ÚLTIMO DIA DO PRAZO. Já em relação às novidades da contagem dos prazos processuais, segundo o parágrafo único do art. 3º 16 e o §1º do art. 16 Art. 3o Consideram-se realizados os atos processuais por meio eletrônico no dia e hora do seu envio ao sistema do Poder Judiciário, do que deverá ser fornecido protocolo eletrônico. Parágrafo único. Quando a petição eletrônica for enviada para atender prazo processual, serão consideradas tempestivas as transmitidas até as 24 (vinte e quatro) horas do seu último dia. 34 Processo e Conexões Humanas 10 17, ambos da Lei 11.419/2006, os atos processuais que forem praticados por meio eletrônico serão considerados tempestivos se enviados até às 24 horas do último dia do prazo estipulado. Tal previsão traz consigo alguns questionamentos. O primeiro deles é o erro de redação dos artigos. Ora, se a petição for protocolada às 24 horas, por certo não será mais no último dia de prazo, mas sim no dia seguinte ao mesmo. A redação mais adequada, seria, então, a previsão de tempestividade para os atos praticados até às 23:59 do último dia de prazo. Outro problema é o da desigualdade entre os processos que tramitam por meio físico e os que tramitam por meio eletrônico. Poderemos ter a situação de dois cidadãos ajuizando ações idênticas, em comarcas diferentes, só que um poderá ter horas de prazo a mais do que o outro somente porque uma comarca utiliza o processo eletrônico e outra não. Cabe ressaltar que nem mesmo é preciso que o processo tramite em órgãos diferentes para se ter tal situação de desigualdade, pois, na maioria deles, processos físicos e eletrônicos tramitam simultaneamente. E mais, dentro de um único processo podemos ter prazos diversos para autor e réu. É só pensarmos na hipótese em que uma parte é cadastrada no portal do tribunal e, portanto, usufrui de dez dias para acessá-lo e que, só a partir desse acesso ou tacitamente após os dez dias, será dado inicio ao seu prazo, ao passo que a outra parte, não cadastrada, será intimada por DJe e terá seu prazo iniciado imediatamente no dia após a publicação. Outra, e talvez mais grave, questão é a da inconstitucionalidade dos referidos artigos, tendo em vista que a 17 Art. 10. A distribuição da petição inicial e a juntada da contestação, dos recursos e das petições em geral, todos em formato digital, nos autos de processo eletrônico, podem ser feitas diretamente pelos advogados públicos e privados, sem necessidade da intervenção do cartório ou secretaria judicial, situação em que a autuação deverá se dar de forma automática, fornecendo-se recibo eletrônico de protocolo. § 1o Quando o ato processual tiver que ser praticado em determinado prazo, por meio de petição eletrônica, serão considerados tempestivos os efetivados até as 24 (vinte e quatro) horas do último dia. 35 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico competência para legislar acerca de procedimentos processuais é concorrente da União, Estados e Distrito Federal 18. Sendo assim, a competência da União para legislar sobre procedimentos processuais limita-se ao estabelecimento de normais gerais, o que não é o caso da imposição de horário de protocolo de petição, que é regramento específico, de competência constitucional dos Tribunais 19. I.E. IMPLICAÇÕES DA LEI 11.419/2006 NA CONTAGEM DO PRAZO PROCESSUAL: TEMPESTIVIDADE DE RECURSO INTERPOSTO ANTES DA DATA CONSIDERADA COMO A DA PUBLICAÇÃO. Com a nova sistemática de contagem de prazo contida nos §§ 3º e 4º do artigo 4º 20 da Lei 11.419/2006, criou-se uma ficção jurídica onde se considera como data da publicação o primeiro dia útil seguinte ao da disponibilização no DJe. Assim, pode-se dizer que se “ganhou” um dia a mais no prazo para recorrer, pois, apesar do advogado já poder ter conhecimento da decisão no dia da disponibilização do julgado, o mesmo só será considerado publicado em momento posterior. Nesse sentido, podemos cogitar a hipótese de se interpor recurso antes da data da publicação. 18 Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: (...) XI - procedimentos em matéria processual; 19 Art. 96. Compete privativamente: I - aos tribunais: a) eleger seus órgãos diretivos e elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos; 20 Art. 4o (...) § 3o Considera-se como data da publicação o primeiro dia útil seguinte ao da disponibilização da informação no Diário da Justiça eletrônico. § 4o Os prazos processuais terão início no primeiro dia útil que seguir ao considerado como data da publicação. 36 Processo e Conexões Humanas Entretanto, teoricamente, esbarrar-se-ia nos enunciados 418 21 da Súmula do STJ e 434 22 da Súmula do TST, os quais consideram extemporâneo o recurso interposto antes da data da publicação do acórdão recorrido. Porém, acertadamente, o entendimento dos tribunais superiores, notadamente do STJ 23 e TST 24, é no sentido de que, se o advogado deu-se por ciente por meios lícitos (disponibilização no DJe, por exemplo) do teor da decisão a ser impugnada, não há que se falar em extemporaneidade do recurso. Outro não poderia ser o entendimento, tendo em vista que ao advogado já é facultado tomar ciência da decisão antes de sua publicação, começando desse momento o prazo para recurso. Assim, ao interpor recurso antes da data considerada como a de publicação da decisão vergastada, quando a decisão atacada já se encontra disponibilizada, é presumido que o advogado tomou conhecimento da mesma por meios lícitos, devendo ter como única consequência a antecipação do termo inicial da fluência do prazo para recurso. 21 Admissibilidade - Recurso Especial - Antes da Publicação do Acórdão dos Embargos de Declaração. É inadmissível o recurso especial interposto antes da publicação do acórdão dos embargos de declaração, sem posterior ratificação. 22 RECURSO. INTERPOSIÇÃO ANTES DA PUBLICAÇÃO DO ACÓRDÃO IMPUGNADO. EXTEMPORANEIDADE. (Conversão da Orientação Jurisprudencial nº 357 da SBDI-1 e inserção do item II à redação) - Res. 177/2012, DEJT divulgado em 13, 14 e 15.02.2012 I) É extemporâneo recurso interposto antes de publicado o acórdão impugnado. (ex-OJ nº 357 da SBDI-1 – inserida em 14.03.2008) II) A interrupção do prazo recursal em razão da interposição de embargos de declaração pela parte adversa não acarreta qualquer prejuízo àquele que apresentou seu recurso tempestivamente. 23 AGRESP 200801229639, MARIA ISABEL GALLOTTI, STJ QUARTA TURMA, DJE DATA:22/04/2013 ..DTPB:. 24 TST - RR: 11350620115180141 1135-06.2011.5.18.0141, Relator: Lelio Bentes Corrêa, Data de Julgamento: 08/08/2012, 1ª Turma. 37 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico I.F. IMPLICAÇÕES DA LEI 11.419/2006 NA CONTAGEM DO PRAZO PROCESSUAL: FALHA NO SISTEMA E PRORROGAÇÃO DE PRAZO. Dispõe o §2º do art. 10 25 da Lei 11.419/2006 que, em caso de impossibilidade de envio de petição eletrônica por indisponibilidade do Sistema por motivos técnicos, o prazo ficará prorrogado para o dia útil seguinte à resolução do problema. Acertou o legislador ao prorrogar para o primeiro dia útil seguinte ao da resolução do problema, de forma a não deixar o advogado à mercê de problemas técnicos do sistema do próprio tribunal, onde ele, o procurador, não tem ingerência para solucionar o problema. Cabe ressaltar que, mesmo que a indisponibilidade dure apenas alguns instantes, o prazo deverá ser prorrogado. Entender de outra maneira seria o mesmo que estabelecer horário de trabalho de 24 horas para o advogado. Explica-se: se o sistema falhar em uma determinada hora do último dia de prazo, o advogado terá que, a partir dessa hora, ficar tentando até às 23:59h daquele dia, pois, se assim não procedesse e o sistema voltasse ao ar, o prazo seria perdido. Assim, mais acertada é a opção do legislador, sendo o prazo prorrogado ainda que o sistema fique indisponível por poucos instantes. II. CONSIDERAÇÕES FINAIS. Assim, após a análise dos pontos acima, resta claro que muitos avanços ainda são necessários para que o processo judicial eletrônico alcance sua verdadeira função de ajudar na celeridade e eficiência processual sem deixar de lado garantias fundamentais como o devido processo legal, a isonomia processual, a publicidade dos atos processuais e a ampla defesa. Não se pode admitir que atos não revestidos por segredo de justiça não sejam publicitados. Não se pode admitir que pela falta de estrutura dos Tribunais em disponibilizar meios adequados 25 § 2o No caso do § 1o deste artigo, se o Sistema do Poder Judiciário se tornar indisponível por motivo técnico, o prazo fica automaticamente prorrogado para o primeiro dia útil seguinte à resolução do problema. 38 Processo e Conexões Humanas para que os advogados enviem petições eletrônicas, estes sejam impedidos de exercer seu ofício. Não se pode admitir que partes tenham seus prazos para recorrer, contestar ou se manifestar de qualquer forma privilegiados por ter cadastro em portal do Tribunal. Dessa forma, o processo eletrônico é sim um avanço para tentar minimizar o tempo de tramitação de um litigio no Poder Judiciário, mas deve-se estar atento as garantias fundamentais de todos os cidadãos e, principalmente, o sistema precisa se aperfeiçoar para que os advogados, principais usuários desse sistema, não sejam excluídos dele ou, para que assim não seja, precisem ter grande capital para investir. O acesso à justiça deve ser garantido pelo Poder Judiciário, para que seja possível que a tutela jurisdicional seja efetiva, alcançando a almejada paz social. III. REFERÊNCIAS. Referências Doutrinárias ALMEIDA FILHO, José Carlos de Araújo. Processo Eletrônico e Teoria Geral do Processo Eletrônico: a informação judicial no Brasil, 4ª Ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011. ARAÚJO CINTRA, Antonio Carlos; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo, 28ª Ed., São Paulo, Malheiros, 2012 BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: teoria geral do direito processual civil, 1 – 6ª edição revista, atualizada e ampliada. São Paulo. Ed. Saraiva, 2012. MARTINS, Leonardo Pereira. Da utilização de meios eletrônicos de comunicação e documentação em juízo. Possibilidades e perspectivas. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/3420>. Acesso em: 28/09/2014. PAULA, Wesley Roberto de. Publicidade no processo judicial eletrônico: busca da indispensável relativização - São Paulo. Ed. LTr, 2009. ______. 39 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico Referências Legislativas BRASIL. Lei nº 9800 de 26 de Maio de 1999. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9800.htm>. Acesso em: 27/09/2014. BRASIL. Lei nº 11419 de 19 de Dezembro de 2006. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20042006/2006/lei/l11419.htm>. Acesso em: 27/09/2014. BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C 3%A7ao.htm>. Acesso em: 27/09/2014. BRASIL. Código de Processo Civil - Lei nº 5.869 de 11 de Janeiro de 1973. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L5869.htm>. Acesso em: 27/09/2014. TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 2ª REGIÃO. Resolução Nº TRF2-RSP-2014/00006 de 14 de março de 2014. Disponível em: <http://www10.trf2.jus.br/processoeletronico/wpcontent/uploads/sites/31/2014/04/Res-AgravoTRF2RSP201400006.pdf>. Acesso em 27/08/2014 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução nº 185, de 18 de dezembro de 2013. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/atos-administrativos/atos-dapresidencia/resolucoespresidencia/27241-resolucao-n-185-de18-de-dezembro-de-2013.> Acesso em 28/09/2014. 40 Processo e Conexões Humanas O PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE NO PROCESSO JUDICIAL ELETRÔNICO E O DIREITO À PRIVACIDADE Jurema Schwind Pedroso Stussi1 Cibele Carneiro da Cunha Macedo Santos2 RESUMO: Trata o presente trabalho de uma indagação acerca do princípio da publicidade, garantido constitucionalmente e sua aplicabilidade no processo civil brasileiro e mais recentemente, no processo judicial eletrônico. Procura-se levantar a questão sobre a sua prevalência em face do direito, também fundamental, à privacidade, levando-se em conta a obrigatoriedade de sua observância pelos órgãos do Poder Judiciário. O princípio da publicidade é um dos norteadores da Administração Pública. Inicia-se um questionamento sobre qual o direito deve ter preponderância sobre o outro. Em outros termos: até que ponto pode, a Administração, expor o jurisdicionado e a sua intimidade sob o pretexto de respeito à norma constitucional. Há limites? Quais são? A quem o princípio obriga e em que medida? Pode ser um intimidador ao acesso à justiça? Sem a pretensão de responder a estas questões, abre-se a discussão acerca dos direitos individuais frente às obrigações exigíveis do Estado. Ganha, este tema, especial relevância no novo cenário do processo judicial eletrônico. 1 Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense, Mestre em Políticas Sociais pelo Programa de Estudos Pós-graduados em Política Social da Universidade Federal Fluminense, Professora Adjunta do Departamento de Direito Processual da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense. 2 Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense, Mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP. Professora Assistente da Universidade Federal Fluminense. 40 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico PALAVRAS CHAVE: Acesso à justiça. Princípio da publicidade. Direito à privacidade. RÉSUMÉ: Cet article traite d'une question sur le principe de la publicité, garanti par la Constitution et son application dans la procédure civile brésilienne et, plus récemment, dans les procédures judiciaires électroniques. Il cherche à soulever la question de sa prévalence dans le visage de la loi, aussi critique, la vie privée, en tenant compte de l'exigence de son respect par le pouvoir judiciaire. Le principe de la publicité est l'un des directeurs de l'administration publique. Démarre une question sur laquelle la loi doit prévaloir sur l'autre. En d'autres termes: dans quelle mesure peut l'Administration exposé l’intimité des citoyens sous la couverture du respect de l'ordre constitutionnel. Y at-il des limites? Que sont-ils? Dont le principe force et dans quelle mesure? Peut-être un accès intimidant à la justice? Sans tenter de répondre à ces questions, il ouvre la discussion sur les droits individuels contre les obligations requises à l’État. Gagne, ce sujet d'une importance particulière, dans le nouveau scénario d’une procédure judiciaire électronique. MOTS-CLÉS: accès à la justice. Principe de la publicité. Droit à la vie privée. SUMÁRIO: Introdução. I. Os Direitos Fundamentais. II. O Princípio da Publicidade na Constituição Federal e no Código de Processo Civil. III. Privacidade e Publicidade. IV. Considerações Finais. V. Referências INTRODUÇÃO Em um Estado Democrático de Direito é imprescindível que o acesso à informação, entendido aqui sob o aspecto mais geral, seja assegurado de forma ampla. Desde aquela informação obtida por meio da imprensa à qual se deve garantir liberdade, como também livres para informar devem ser a escola, o cinema, a literatura, as artes em geral. 41 Processo e Conexões Humanas Se para o cidadão o acesso à informação é um direito exigível do Estado, para este, torna-se um dever. A democracia é incompatível com uma Administração que atue em segredo, com sigilo, com o ato praticado sem que seja posto à disposição para o conhecimento de todos os cidadãos. Não se pode imaginar um Estado que se reconheça como democrático sem que haja transparência para que o cidadão acompanhe se seus atos são praticados em conformidade com a lei. Essa transparência, no Brasil, vem coroar o Estado (re)surgido nos primeiros anos de 1980 e desenhado pelo Constituinte de 1988. O princípio da publicidade, um dos que regem a Administração, ao lado de outros insculpidos no artigo 37, da Constituição Federal é que impõe, ao Estado Brasileiro, a transparência, em todos os níveis de Poder e, sendo assim, tanto Executivo como Legislativo e Judiciário, estão vinculados ao mandamento. Longe de esgotar o tema, e mesmo sem esta pretensão, o presente texto pretende trazer questões acerca do princípio da publicidade no processo judicial. Discutindo sua aplicação no processo civil, busca-se uma reflexão sobre o seu alcance e finalidade. Deve, o princípio da publicidade, ser aplicado de forma absoluta ou remece ser relativizado? Quais as suas limitações, se existem? Interfere positiva ou negativamente nhoque tange ao acesso à justiça? Em confronto com o direito fundamental à privacidade, em relação às partes litigantes, qual dos dois deverá ceder? A atividade do Poder Judiciário vem passando por um processo de visibilidade amplíssimo, que tem lugar diariamente, em inúmeras matérias jornalísticas que dão notícias sobre andamentos de processos judiciais e transmitem julgamentos, ou partes destes, muitas vezes até mesmo de forma um tanto espetacular, emitindo e formando opiniões, como também pela recente modalidade do processo judicial eletrônico, previsto na lei 11.419/2006. A popularização da rede mundial de computadores, que permite ao usuário o acesso quase que irrestrito e imediato ao conteúdo publicado em qualquer parte do globo, bem como as redes sociais, que são importante veículo de 42 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico transmissão de informação e verdadeiros fóruns de discussões sobre todo e qualquer assunto, nos faz sentir que a privacidade foi de fato relativizada. Alguns tribunais já possuem canais próprios de televisão e transmitem diretamente seus julgamentos, o que não deve ser, em princípio, uma novidade nefasta. Mas quando pensamos em processo judicial eletrônico, estamos diante da publicidade de questões afetas ao círculo de intimidade e privacidade daqueles que buscaram proteção do Judiciário para seu direito violado, nos termos da garantia constitucional de acesso à Justiça. Em alguns casos podemos pensar que a publicidade pode gerar prejuízos ainda maiores. 3 Assim, temos que refletir sobre a proporcionalidade entre os direitos constitucionais à publicidade e à privacidade. I. OS DIREITOS FUNDAMENTAIS Os direitos fundamentais são classificados pela doutrina 4 em dimensões (gerações) cumulativas. Os de primeira geração são voltados para a liberdade individual, não intervenção do Estado, igualdade formal, direitos civis e políticos, podendo citar-se como exemplos de instrumentos importantes a Declaração de Direitos do Povo da Virgínia (1776) Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (França, 1789), muito importante para a inclusão dos direitos e liberdades fundamentais nas constituições do séc. XIX. 3 Como exemplo podemos pensar numa Ação Civil que discute a responsabilidade civil por erro médico. Enquanto a decisão não transita em julgado, o que pode levar anos, fica a dúvida para aqueles que buscam informações na internet, prejudicando assim, o exercício da profissão daquele médico que exerce seu direito à ampla defesa e aguarda um pronunciamento favorável. Perdendo sua clientela, ele poderia pedir indenização ao Estado, por ter publicizado uma situação sub judice? 4 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10ª Ed. Editora Livraria do Advogado: Porto Alegre, 2010. 43 Processo e Conexões Humanas Os de segunda geração são os chamados direitos econômicos, sociais e culturais, buscando garantir as liberdades por intermédio do Estado e não apenas perante o Estado. Tratase dos direitos às prestações positivas estatais, quais sejam: o direito à assistência social, à saúde, à educação, ao trabalho, etc., à igualdade material. O termo social nesse momento deve ser entendido como busca da Justiça Social. Surgem no séc. XX, nas constituições do pós-guerra. Já os de terceira geração são os denominados de direitos de fraternidade ou de solidariedade e visam à proteção de grupos humanos, como, por exemplo, a família. Enfim, os de quarta e quinta dimensões que são aqueles ligados à biotecnologia, informação, e o direito à paz, respectivamente. Quanto a essas últimas dimensões (quarta e quinta), a doutrina não é pacífica, é possível encontrá-los na terceira dimensão. Todas elas são cumulativas, porque apesar de evolutivas, uma não exclui a outra, mas ao contrário, complementam-se. Os direitos fundamentais, na verdade, representam a concretização do princípio da dignidade humana e, nessa perspectiva, deve-se consagrar um sistema de direitos fundamentais isento de lacunas e que sirva de fundamento para uma ordem justa. Na situação que colocamos, percebemos que a publicidade dos processos judiciais pode gerar injustiças e prejuízos irreparáveis, não só por ofender a privacidade, mas por colocar em “praça pública” a idoneidade dos envolvidos no litígio, possibilitando julgamentos antecipados, e em alguns casos, estimulando práticas criminosas, para aqueles que acreditam que seja legítimo fazer justiça com as próprias mãos. 5 5 Recentemente, os noticiários informaram uma barbárie contra uma mulher no Guarujá/SP. Pessoas a agrediram após a divulgação numa rede social de que ela seria suspeita pelo seqüestro de crianças. Houve a divulgação de um retrato falado feito pela polícia e isso foi parar nas redes sociais e houve uma confusão com a fisionomia da vítima. Isso representou uma execução sumária, uma barbárie, que não teria acontecido se não tivéssemos tanta publicidade, nesse caso, do próprio ato do Inquérito, que foi o retrato falado. Notícia disponível em: http://g1.globo.com/sp/santos-regiao/noticia/2014/05/mulher-mortaapos-boato-em-rede-social-e-enterrada-nao-vou-aguentar.html. Consultado em 26/09/2014. 44 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico Assim, acreditamos estar num impasse: de um lado uma conquista à publicidade fundamentada na transparência da atividade do Estado para maior garantia aos jurisidicionados, do outro lado o direito à intimidade e à privacidade dos indivíduos que estejam exercendo seu direito de acesso à justiça perante o Poder Judiciário. Vejam que estamos falando sobre direitos que não podem ser hierarquizados em grau de importância. Todos representam uma conquista do Estado Democrático de Direito e são igualmente relevantes. Essa localização constitucional é importante para a adequada interpretação dos referidos direitos, à publicidade dos atos estatais e à privacidade dos indivíduos, bem como a garantia de acesso à justiça. Estes devem ser interpretados como norma de eficácia plena. A interpretação constitucional deve ser feita de acordo com princípios específicos, dentre os quais se encontra o princípio da máxima efetividade. Trata-se de um princípio invocado especialmente para garantir maior eficácia aos direitos fundamentais. Também chamado de princípio da eficiência ou da interpretação efetiva, o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais deve ser entendido no sentido de a norma constitucional ter a mais ampla efetividade social. 6 E quando falamos em hermenêutica constitucional, não podemos deixar de citar a vedação ao retrocesso social. Não estamos a defender um Estado de julgamentos secretos e sigilosos, nem uma ditadura. Mas as medidas inovadoras de modernização do judiciário, não podem representar retrocessos também quanto à privacidade individual, nem servir de obstáculo para o acesso à justiça. Ou seja, o individuo, não deve ser desestimulado para ingressar com uma ação judicial, por receio de ter sua intimidade devassada pelas redes eletrônicas. 6 LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 13ª Ed. Editora Saraiva: São Paulo, 2009, pág. 95. 45 Processo e Conexões Humanas O postulado da vedação do retrocesso está diretamente relacionado ao princípio da segurança jurídica, tendo em vista que os direitos sociais, econômicos e culturais devem implicar em certa garantia de estabilidade das situações ou posições jurídicas criadas pelo legislador ao concretizar normas respectivas. (...) No ordenamento jurídico brasileiro a proibição do retrocesso pode ser abstraída, dentre outros, do princípio da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), do princípio da máxima efetividade (CF, 5º, §1º) e do princípio do Estado democrático e social de direito (CF, art. 1º). 7Pags. 476 e 478. Destarte, na nossa opinião, a grande dificuldade é aplicar a razoabilidade e a proporcionalidade entre essas garantias constitucionais conquistadas a duras penas, e a evolução do processo judicial, neste momento, do processo civil, na modalidade eletrônica. II. O PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL Ao tratar da Organização do Estado, a Constituição Federal trata minuciosamente, a partir do artigo 18, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, estabelecendo que devam seguir as bases estatuídas na Norma Máxima, embora se lhes assegure autonomia entre si. O princípio da publicidade vem insculpido na Carta Magna, como regra geral para toda a Administração Pública no artigo 37, que o estabelece em termos precisos: “A administração 7 NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 4ª Ed. Editora Método: São Paulo, 2010, pág. 476. 46 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência [...]”. A publicidade não pode ser entendida, portanto, como uma mera formalidade à qual está obrigada a Administração, mas sim requisito a ser atendido em respeito à moralidade e impessoalidade nos atos administrativos que não convalida os que sejam praticados com irregularidade 8. Sua exigibilidade está diretamente ligada ao direito do cidadão de exercer fiscalização em relação aos atos praticados pelas pessoas investidas em funções administrativas. A publicidade, como princípio de administração pública (CF, art. 37, caput), abrange toda a atuação estatal, não só sob o aspecto de divulgação de seus atos como, também, de propiciação de conhecimento da conduta interna de seus agentes.(grifo nosso) 9 Em relação ao processo judicial, o princípio aparece enunciado no inciso IX do caput do artigo 93, que determina sua observância estrita em todas as audiências sob o rigor da pena de nulidade. Em sua redação inicial havia ressalva para se permitir o sigilo quando o interesse público o exigisse. 10 Com a Emenda Constitucional nº 45, de 2004, o inciso recebeu nova 8 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. Malheiros: São Paulo, 1993, p. 86 9 MEIRELLES, op. Cit. P.87. 10 A redação original do inciso IX, do caput do artigo 93, é “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes;”(grifo nosso) 47 Processo e Conexões Humanas redação 11para acrescentar que o sigilo que visa à proteção do direito à intimidade da parte não pode prejudicar o interesse público à informação. O princípio da publicidade, no que concerne ao processo judicial, também é consagrado no Código de Processo Civil, no artigo 155, mas de forma muito mais ampla, preceituando taxativamente que a publicidade abarca todos os atos processuais, excetuando os casos em que o sigilo deva ser observado quando o exigir o interesse público e naquelas ações em que são discutidas questões de família e outras que, por decisão do julgador, devam tramitar em segredo de justiça. O parágrafo único do mesmo artigo 155 do CPC, procura estabelecer algum limite à publicidade quando restringe o acesso aos autos dos processos às partes e seus procuradores, resguardando, no entanto, o direito de terceiro de obter certidões desde que venha a demonstrar a existência de interesse jurídico na sua obtenção 12. Em se tratando dos princípios gerais do direito processual, o da publicidade desempenha papel de extrema relevância no que diz respeito ao direito de se ter um instrumento de controle sobre o exercício da função jurisdicional ao permitir que o povo tenha acesso direto aos atos e audiências conforme o declaram CINTRA, GRINOVER E DINAMARCO. 11 Atualmente, o inciso IX, do caput do artigo 93 da Constituição Federal tem a seguinte redação: “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito a intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação;” 12 Assim se lê no artigo 155, do Código de Processo Civil “ Os atos processuais são públicos. Correm, todavia, em segredo de justiça os processos: I – em que o exigir o interesse público; II – que dizem respeito a casamento, filiação, separação dos cônjuges, conversão desta em divórcio, alimentos e guarda de menores. Parágrafo único. O direito de consultar os autos e de pedir certidões de seus atos é restrito às partes e a seus procuradores. O terceiro, que demonstrar interesse jurídico, pode requerer ao juiz certidão do dispositivo da sentença, bom como de inventário e partilha resultante do desquite.” 48 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico O princípio da publicidade do processo constitui uma preciosa garantia do indivíduo no tocante ao exercício da jurisdição. A presença do público nas audiências e a possibilidade do exame dos autos por qualquer pessoa representam o mais seguro instrumento de fiscalização popular sobre a obra dos magistrados, promotores públicos e advogados. Em última análise, o povo é o juiz dos juízes. 13 Como já assinalado acima, é a publicidade o meio fornecido pelo ordenamento jurídico que permite que os demais princípios que regulam a atividade administrativa em geral, e do Poder Judiciário em especial, possam ser fiscalizados. Longe de criticá-lo, vale acentuar sua importância e indispensabilidade especialmente na atuação do Poder Judiciário. 14 O que se pretende, no presente trabalho é iniciar uma reflexão sobre a forma de pensar e de aplicar o princípio no processo civil brasileiro 15. Apesar da permissão alargada existente no caput do artigo 155, seu parágrafo único procura restringir o acesso aos autos às partes litigantes e seus procuradores. No entanto, 13 Cintra, Antonio Carlos et ali, Teoria Geral do Processo. Malheiros: São Paulo, 2011, p.75. 14 Em aulas ministradas nas disciplinas de Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento na Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense, ao tratar do princípio da publicidade, costuma-se chamar a atenção dos discentes para sua extrema relevância, tendo em vista que o Judiciário é o único dos três Poderes da República que não tem seus membros eleitos pelo povo e nem exercem suas atividades por mandato o que dificulta, ou até mesmo impede, o controle sobre seus atos se não houver publicidade dos mesmos. 15 O projeto do novo Código de Processo Civil em relação ao princípio da publicidade, reproduz, basicamente, o artigo 5º, LX e 93, IX da Constituição Federal e também o artigo 155 do CPC, com algumas alterações. 49 Processo e Conexões Humanas encontra-se, no mesmo Código de Processo Civil, norma que concede acesso aos autos de qualquer processo judicial a qualquer pessoa inscrita nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil, ainda que não seja procurador constituído por qualquer das partes. É o que se apreende do contido no artigo 40, CPC, que confere a qualquer advogado o direito de “I- examinar em cartório de justiça e secretaria de tribunal, autos de qualquer processo [...]”. Tal dispositivo combinado com o que vem estabelecido pelo inciso XIII, do artigo 7º, da Lei nº8.906, de 1994, que dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil, amplia de forma bastante importante o acesso aos atos processuais praticados em quaisquer feitos judiciais, já que estabelece como direito do advogado consultar qualquer processo mesmo sem procuração nos autos 16, conforme anota Perlingeiro (2012) 17. A restrição do parágrafo único do artigo 155, ao que parece, restou inócua, caindo no vazio, pois, permitir o exame a qualquer advogado, nos dias que correm, é praticamente o mesmo que franquear vistas de todos os processos judiciais, com exceção daqueles que tramitam em segredo de justiça, a uma população considerável de pessoas 18. 16 Lei n° 8.906/1994, artigo 7° “São direitos do advogado: [...] XIII – examinar em qualquer órgão dos Poderes Judiciário e Legislativo, ou da Administração Pública em geral, autos de processos findos ou em andamento, mesmo sem procuração, quando não estejam sujeitos a sigilo, assegurada a obtenção de cópias, podendo tomar apontamento;” 17 PERLINGEIRO, Ricardo. O Livre Acesso à Informação, as Inovações Tecnológicas e a Publicidade Processual. Revista de Processo, 2012. 18 Em consulta ao sítio do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil é possível acessar o quadro quantitativo de inscritos. Para demonstrar, assinala-se apenas o quantitativo de inscrições principais, não considerados, aqui, as inscrições suplementares e de estagiários, perfazendo um total nacional de 830.940 inscritos, sendo que 252.905 no estado de São Paulo, 127.091 no estado do Riode Janeiro, 84.519 em Minas Gerais, 60.164 no Rio Grande do Sul e 47.118 no estado do Paraná, para só anotar os cinco estados da federação com maior população de advogados. Dados disponíveis em http://www.oab.org.br/institucionalconselhofederal/quadroadvogados, acessado em 30/09/2014 50 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico No entanto, ao que parece, uma excessiva exposição pode gerar consequências deletérias que podem mesmo chegar a atingir o direito ao acesso à justiça, na medida em que o cidadão possa vir a se sentir acuado frente à possibilidade de ver sua intimidade devassada diante à realidade da rede mundial de computadores (ALMEIDA FILHO, 2013) 19. III. PRIVACIDADE E PUBLICIDADE Se a intimidade, a privacidade, são alvos de proteção constitucional, com o destaque conferido pelo artigo 5º da Constituição Federal, pode haver relativização independentemente da vontade de seu titular? O indivíduo tem assegurado o direito à privacidade, como garantia individual, fundamental, prevista na Constituição Federal que coloca à sua disposição mecanismos de reparação quando violado, nos seguintes termos: “Art. 5º, X- são invioláveis a intimidade, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. José Afonso da Silva 20 lecionando acerca dos direitos fundamentais faz uma análise precisa das várias terminologias utilizadas para a sua designação, concluindo pela maior propriedade na utilização da expressão “direitos fundamentais do homem”. Ensina que por direito se deva perceber como a positividade que assegura o seu cumprimento por todos, sem distinção; por fundamentais o entendimento claro de que constituem o mínimo indispensável para a existência humana; e do homem não em uma referência de gênero, mas sim à pessoa 19 ALMEIDA FILHO, José Carlos de Araújo, STUSSI, Jurema Schwind Pedroso e NOBLAT, Francis. Publicidade e Informatização Judicial do Processo: Uma quetão sobre o acesso à Justiça. II CONINTER, Belo Horizonte, 2013. 20 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. Malheiros. São Paulo, 2009 51 Processo e Conexões Humanas humana, à Humanidade. E continua, agora fundamentado em Pérez Luño, a expressão direitos fundamentais do homem [...] não significa esfera privada contraposta à atividade pública, como simples limitação ao Estado ou autolimitação deste, mas limitação imposta pela soberania popular aos poderes constituídos do Estado que dela dependem. (grifos do original) Nos tempos que correm, a vulgarização do uso da internet expõe em maior ou menor grau a intimidade das pessoas. Muitas das vezes, é bem verdade, por livre vontade das próprias que buscam tal exposição com a divulgação de dados pessoais, fotos e até mesmo com relatos dos seus movimentos mais corriqueiros nas redes sociais. Algumas outras tantas vezes, no entanto, a exposição se dá pela prática de invasões feitas por terceiros, quer por desconhecerem o sentido do direito à privacidade quer por, mesmo o conhecendo, desejarem submeter alguém ao ridículo, escudando-se muitas das vezes no anonimato que traz dificuldades à reparação de um possível dano que venham a causar. Mas e quando essa exposição desautorizada é praticada pelo poder público em nome do princípio da publicidade? Ainda seguindo as lições de José Afonso da Silva inferimos que o direito à privacidade, fundamental que é, e como tal reconhecido pelo constituinte originário, não pode ser disposto senão pelo seu titular. Só o sujeito deste direito pode abrir mão de seu exercício e de sua exigibilidade, equivale dizer que não se permite que dele se disponha por quem quer que seja. Os direitos fundamentais têm como uma de suas características a inalienabilidade e a irrenunciabilidade. São, portanto direitos 52 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico intransferíveis, inegociáveis, porque não são de conteúdo econômico-patrimonial. Se a ordem constitucional os confere a todos, deles não se pode desfazer, porque são indisponíveis; [...] não se renunciam direitos fundamentais. Alguns deles podem até não ser exercidos, pode-se deixar de exercê-los, mas não se admite sejam renunciados. (p.181) 21. Ora, se nem mesmo o titular do direito pode a ele renunciar e se apenas ele e somente ele pode deixar de exercitálo, como entender que o Estado possa fazê-lo em seu nome e sem sua autorização? Em nome de atender a um mandamento constitucional imposto à Administração Pública, pode o Estado relativizar um direito fundamental individual? Por uma outra forma de ver, pode-se apontar que o direito à intimidade, sendo elencado no artigo 5° da Constituição Federal, é direito fundamental. Como tal, a par do direito à propriedade, à liberdade, à vida, à segurança, historicamente, é assegurado ao cidadão como proteção à atuação, por vezes, abusiva do Estado 22 que, conforme anota Luís Roberto Barroso, os direitos individuais contêm limitações ao poder político, traçando a esfera de proteção jurídica do indivíduo em face do Estado. Os direitos individuais impõem, em essência, deveres de abstenção aos órgãos públicos, 21 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. Malheiros. São Paulo, 2009. 22 BARROSO, Luis Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. Limites e Possibilidades da Constituição Brasileira. Renovar, Rio de Janeiro, 2002. p.101. 53 Processo e Conexões Humanas preservando a iniciativa e a autonomia dos particulares. Ocorre que o direito à privacidade não vem sendo observado no que tange ao processo judicial. E com a instituição do processo eletrônico agrava-se a situação posto que o acesso é permitido a todos os atos e documentos do processo. Assim, tanto no processo físico como no processo eletrônico, o direito à privacidade vem sendo relativizado com a disponibilização e consequente acesso indiscriminado aos atos processuais. CONSIDERAÇÕES FINAIS A norma processual do artigo 155, com a finalidade de resguardar os interesses privados, faz ressalva à publicidade dos atos nos casos de ações que versem sobre casamento, filiação, divórcio, alimentos, guarda de menores. Nestes processos, “pelo respeito que merecem as questões de foro íntimo” 23 as audiências não serão públicas e sim, necessariamente restritas à presença das partes e seus advogados. Mas através da internet, é possível visualizar os demais atos, resguardado apenas os nomes das partes. Então que “segredo” é esse? Cada vez mais a internet torna publico o que não deveria ser. Esse é um fato, que parece ser incontestável. Então como proteger aqueles que exercem seus direitos fundamentais? O mesmo artigo 155 elenca outro caso em que os atos processuais não terão publicidade, em seu inciso I, que são aqueles “em que o exigir o interesse público”. O interesse privado, não pode e não deve sobrepor-se ao interesse público e isso é inerente ao Estado Democrático de Direito. Mas aqui, falamos de um interesse privado, discutido em 23 Humberto Theodoro Junior, Curso de Direito Processual Civil, vol. I, 53ªEdição. Forense, Rio de Janeiro, 2012. p. 243 54 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico Juízo, ou seja, sob os cuidados do Poder Estatal no exercício jurisdicional. Portanto, enquanto os fatos estiverem sub judice, eles merecem um cuidado maior. O princípio da publicidade na Administração Pública consagrado na Carta Magna brasileira é também inerente às democracias. Mas com a modernização do Judiciário através da implantação do processo judicial eletrônico (apelidado pelos operadores do direito como PJe), precisamos achar as respostas para as seguintes indagações acerca da extensão de sua aplicabilidade, por exemplo: A quem ele é dirigido? Quem está a ele vinculado? Tem aplicação de forma absoluta a todos os atos da Administração? Estão os administrados também obrigados a cumpri-lo mesmo em suas atividades privadas que, momentaneamente venham a ter curso em um processo judicial? Sem a pretensão de dar as respostas, mas ao menos, iniciando uma reflexão sobre o tema, indaga-se a quem esse princípio se dirige. De pronto podem ser identificados dois sujeitos relacionados: um, o Estado, já que ligado diretamente às atividades Públicas e o outro, o cidadão, que é o recebedor destas atividades. Nesse caso, o princípio obriga e vincula as atividades da Administração Pública. É a ele que se dirige o mandamento inafastável de atuar com transparência, dando publicidade de seus atos para que não pairem dúvidas sobre a lisura imprescindível na função estatal. É, ao fim e ao cabo, a publicidade que permite ao cidadão verificar se são respeitados os demais princípios constantes do caput do art. 37, da Constituição Federal. Sem publicidade não há como identificar se os atos administrativos foram praticados em conformidade com a lei, de maneira impessoal, de acordo com a moral e se seus objetivos foram atingidos com eficiência. Mas se esse princípio, em alguma medida, restringir o exercício de outro direito, que seria o de acesso à justiça, em razão da ofensa à privacidade, ele deve ser relativizado. É o que pensamos. 55 Processo e Conexões Humanas REFERÊNCIAS ALMEIDA FILHO, José Carlos de Araújo, STUSSI, Jurema Schwind Pedroso Stussi, NOBLAT, Francis. Publicidade e Informatização Judicial do Processo: Uma questão sobre o acesso à Justiça. Artigo apresentado no II CONINTER. Belo Horizonte, 2013. BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de Suas Normas. Limites e Possibilidades da Constituição Brasileira. Renovar. Rio de Janeiro, 2002. BRASIL, Constituição da Republica Federativa do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2012. BRASIL, Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2012. CINTRA, Antonio Carlos, GRINOVER, Ada Pellegrini e DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. Malheiros. São Paulo. 2011. Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, http://www.oab.org.br/institucionalconselhofederal/quadroadvo gados. LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 13ª Ed. Editora Saraiva: São Paulo, 2009. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, Malheiros. São Paulo 1993. NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 4ª Ed. Editora Método: São Paulo, 2010. PERLINGEIRO, Ricardo. O Livre Acesso à Informação, as Inovações Tecnológicas e a Publicidade Processual. Revista de Processo. 2012 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10ª Ed. Editora Livraria do Advogado: Porto Alegre, 2010. 56 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. Malheiros. São Paulo. 2009 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Forense. Rio de Janeiro. 53ªedição. 2012. 57 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico OBSOLESCÊNCIAS DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL EM RAZÃO DO PROCESSO ELETRÔNICO Silvano Ghisi 1 RESUMO: O processo judicial eletrônico é uma realidade irreversível no sistema jurídico brasileiro, especialmente porque traz benefícios econômicos e maior rapidez na resolução das demandas submetidas ao Poder Judiciário. A realização de atos processuais pelas partes, magistrados, membros do Ministério Público, auxiliares da justiça, e quaisquer outras pessoas que intervenham de algum modo nos processos judiciais, ganhou novas características diante dos sistemas de processo eletrônicos, levando a maneiras diferentes de se pensar e conduzir o processo. A maior mudança foi da passagem dos tradicionais “autos físicos”, representados pelos atos processuais praticados em escritos sobre papel, para os “autos digitais”, consistentes em arquivos eletrônicos que conservam todas as informações e atividades processuais de determinada demanda. Estas circunstâncias desaguam na prematura obsolescência de várias regras contidas no Código de Processo Civil brasileiro vigente, à míngua de qualquer alteração legislativa, tendo em vista a desnecessidade ou impossibilidade de realização prática de algumas providências processuais que foram pensadas apenas em razão de processos materializados em autos em papel. PALAVRAS-CHAVE: Processo; Processo Eletrônico; Obsolescências. RESUMEN: El proceso judicial electrónico es una realidad 1 Advogado, Bacharel em Direito graduado em 2006 pela Faculdade de Direito de Francisco Beltrão, mantida pelo Centro Sulamericano de Ensino Superior. Pós-Graduando em Direito e Processo do Trabalho pelo CESUL (2007). Especialista em Direito pela Escola da Magistratura do Paraná – Núcleo de Francisco Beltrão (2008). Docente da Faculdade de Direito de Francisco Beltrão nas disciplinas de Direito Processual Civil e Estágio Supervisionado I, II e IV. Mestrando em Direito Constitucional: Dimensões materiais e eficaciais dos direitos fundamentais, pela UNOESC (2013/2014). 58 Processo e Conexões Humanas irreversible en el sistema jurídico brasileño, sobre todo porque trae beneficios económicos y resolución más rápida de las demandas presentadas ante el Poder Judicial. La realización de actos procesales por las partes, los jueces, los fiscales, los funcionarios judiciales, y toda persona que participe de alguna manera en los juicios, ha adquirido nuevas características antes de que el proceso de los sistemas electrónicos, dando lugar a diferentes formas de pensar y conducir el proceso. El cambio más importante fue el câmbio de los "autos físicos" tradicionales, representadas por los actos procesales en escrito en el papel, por los "autos digitales", que consiste en archivos electrónicos que conservan toda la información y las actividades procesales de las demandas. Estas circunstancias desembocan en la obsolescencia prematura de diversas normas contenidas en el Código de Procedimiento Civil vigente, sin cualquier cambio legislativo, en vista de la imposibilidad de practicar la realización de determinados actos procesales que se pensaba sólo debido proceso incorporado en autos de papel. PALABRAS CLAVE: Proceso; Proceso electrónico; Código de Procedimiento Civil; Obsolescencia. SUMÁRIO: Introdução; I. Conflitos Sociais, Jurisdição e Processo. II. Processo, Procedimento e Atos Processuais. III. Processo Judicial Eletrônico no Brasil. IV. Obsolescências no Código de Processo Civil. V. Conclusão. VI. Referências. INTRODUÇÃO Diante da evolução dos agrupamentos humanos e a consolidação de sociedades, a figura do Estado se fortaleceu e passou a deter o império da Lei e o monopólio da Justiça, de tal forma que a resolução dos conflitos entre indivíduos saiu dos domínios das próprias partes interessadas, passando ao EstadoJuiz a incumbência de regular as contendas e definir o interesse, ou direito, prevalente. Para que os conflitos fossem levados ao conhecimento do Estado-Juiz surgiu o processo judicial, um sistema de atos e regras predefinidos por lei pelos quais qualquer pessoa poderia submeter seu dilema à apreciação estatal e dali receber uma resposta. Com efeito, o processo é uma abstração, pois 59 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico concretamente o que se vê são os atos materiais que lhe constituem, chamados de atos processuais, nos moldes previstos em lei. Estes atos processuais se consubstanciavam amiúde em atos materializados em escritos em papel, dando origem aos autos processuais. Nessa raia, as normatizações da prática de atos processuais pelos códigos de processo civil, e aqui em especial o Código de Processo Civil brasileiro vigente (Lei 5.869/1973) partiram da premissa de atos praticados em papel para criar as regras sobre sua prática e funcionamento. Contudo, as inovações das tecnologias de informação, notadamente informática e comunicações, pressentidas nas duas últimas décadas, levaram a se pensar em formas de praticar aqueles mesmo atos processuais agora por meios eletrônicos, eliminando a feitura de atos em papel, o que contribuiria para a celeridade processual, já que a morosidade do processo judicial é uma das visíveis mazelas da justiça brasileira. Essa perspectiva deu azo a várias legislações para criar e regular o processo judicial eletrônico, e sua implantação em concreto passou a demonstrar que inúmeras regras do Código de Processo Civil brasileiro se tornaram obsoletas porque pensadas apenas para atos em papel. Verifica-se, assim, insidiosa ocorrência de alterações involuntárias nas regras do Código de Processo Civil brasileiro em razão do processo eletrônico. Estas alterações são objeto deste estudo, que aborda os fins do processo judicial, a regulamentação da prática de atos processuais, e a realização destes atos por meios eletrônicos, examinando alguns sistemas de processo eletrônico de destaque no Poder Judiciário brasileiro. I. CONFLITOS SOCIAIS, JURISDIÇÃO E PROCESSO A convivência humana em agrupamentos de qualquer natureza e dimensão, tenham estes poucos ou incontáveis indivíduos, inescapavelmente conduz a frequentes conflitos de opiniões e interesses, especialmente porque mesmo reunidos em grupos, comunidades ou sociedade que partilhem interesses afins, cada indivíduo conserva anseios particulares. A colisão de interesses particulares entre indivíduos, ou de interesses de um indivíduo confrontantes com o do grupo em que inserido, resulta em conflitos sociais. 60 Processo e Conexões Humanas Nos primórdios das sociedades humanas a resolução destes conflitos era feita diretamente pelas partes, prevalecendo o mais fortes. A evolução social, com a criação dos Estados e a centralização nestes dos poderes de dizer o direito, prévia e genericamente válido, na forma das leis para a nação, e de dizer o direito aplicável no caso concreto, na forma de uma Justiça, retirou dos indivíduos a possibilidade de dirimirem seus conflitos autonomamente. O Estado, passando assim à figura do Estado-Juiz, atraiu para si o poder de dizer o direito, encampando o monopólio da jurisdição. De consequência, como os indivíduos por si, e entre si, não mais poderiam legitimamente promover a resolução dos seus conflitos, precisavam recorrer ao Estado-Juiz para que o fizesse, sendo necessária a existência de mecanismos prévio, claros e seguros, para tanto. Segundo DIDIER JUNIOR (2008, p. 65), A jurisdição é a função atribuída a terceiro imparcial (a) de realizar o Direito de modo imperativo (b) e criativo (c), reconhecendo/efetivando/protegendo situações jurídicas (d) concretamente deduzidas (e), em decisão insuscetível de controle externo (f) e com aptidão para tornar-se indiscutível (g). Com efeito, o Estado-Juiz precisa assegurar aos indivíduos o acesso à justiça, ou seja, meios sérios de levar seus reclamos aos órgãos jurisdicionais, participar do iter processual (fazer pedidos, produzir provas, ser ouvido, etc.), e obter uma resposta estatal, traduzida na prestação jurisdicional, e que esta seja pronunciada em tempo razoável. O acesso à justiça, na visão de CAPPELLETTI e GARTH (2002, p. 5), “pode ser encarado como um requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos”. O processo judicial, portanto, presta-se a este desiderato. É reconhecido como um mecanismo para a realização da justiça, já que oferta às partes os meios e condições para levarem o conflito ao conhecimento do Estado-Juiz e dele exigir uma resposta. Segundo MEDINA (2011, p. 22), “a controvérsia, a ser 61 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico solucionada à luz do ordenamento jurídico, emerge da sociedade, motivo pelo qual o processo deve ter a aptidão para realizar materialmente os direitos subjetivos amoldando-se as variações sociais”. A relevância do processo como instrumento propiciador da justiça levou a reconhecer que um devido processo legal, com regras pré-estabelecidas, onde se permita ao jurisdicionado o acesso ao Poder Judiciário, bem como os meios de exercício do contraditório e ampla defesa, configuram direitos fundamentais do indivíduo, assim plasmados no art. 5º, XXXV e LV, da Constituição Federal de 1988. II. PROCESSO, PROCEDIMENTO E ATOS PROCESSUAIS O processo, portanto, é uma abstração, de modo que os indivíduos envolvidos visualizam os atos que lhe perfazem. A forma pela qual o processo é materializado é chamada de procedimento, segundo distinção que faz a doutrina processualista: Do ponto de vista político, o processo é visto como instrumento de que dispõem o Estado e as partes para buscar solução pacificadora dos conflitos, servindo de meio, portanto, para a realização de objetivos afeiçoados ao Estado de Direito. Já o procedimento (na praxe, muitas vezes também designado ‘rito’), embora esteja ligado ao processo, com esse não se identifica. O procedimento é o mecanismo pelo qual se desenvolvem os processos diante dos órgãos da jurisdição. Processo e procedimento, na verdade, segundo expressiva doutrina, somados compõem a relação jurídica processual (o primeiro como dado substancial e o segundo como aspecto formal, de ordem estrutural, pois é por meio dele – do procedimento – que o processo se desenvolve) com toda a sua complexa sequência de atos, entre si interligados, de forma a proporcionar condições para a 62 Processo e Conexões Humanas existência do provimento jurisdicional que ponha fim à lide (WAMBIER e TALAMINI, 2011, p. 188). Nesse plano, o funcionamento do procedimento pressupõe a prática de inúmeros atos materiais definidos em lei que conduzam ao final a uma resposta estatal para o conflito havido entre indivíduos. Logo, tem-se, por exemplo, o ato que inicia o processo (petição inicial), o ato que dá ciência à parte adversa sobre a existência do processo (citação), o ato de resposta (contestação), o ato que permite ao magistrado atestar a veracidade das alegações das partes (provas), e muitos outros, segundo cada lei processual incidente à demanda judicial. Por ser o procedimento uma série concatenada de atos coordenados tendentes a um fim, qual seja a obtenção da resposta estatal a um conflito, a maneira de praticar aqueles atos precisa ser padronizada. Nos sistemas de direito positivo e escrito, assim o caso brasileiro, a materialização destes atos processuais deu-se a rigor por sua realização em escritos em papel. Os atos processuais no ordenamento jurídico pátrio tiveram, desde há muito, o papel como suporte, e a junção de vários atos processuais com esta característica forma os denominados autos. O modo, tempo, e forma da prática dos atos processuais são estabelecidos por lei, e no processo civil brasileiro estão principalmente, ainda que não exclusivamente, entre os art. 154 a 161 do Código de Processo Civil. Analisando o referido código processual, quando se enfoca o modo e a forma da prática dos atos processuais, inferese que em sua quase totalidade o legislador partiu de uma premissa básica para conformar tais regulações, qual seja a de que os atos processuais seriam praticados em escritos em papel, originando “autos físicos”. E nenhuma repreensão há de ser feita no particular, pois à época da edição do Código de Processo Civil vigente, reconhecidamente moderno e dinâmico, não se imaginavam as transformações tecnológicas que seriam experimentadas na vida social hodierna. Com efeito, no início deste século, experimentou-se uma veloz transformação das relações socais em virtude das tecnologias da informação, especialmente de informática e comunicações, sobretudo pela evolução tecnológica, seu 63 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico barateamento, e a ampliação de acesso às pessoas. Esta disponibilidade de tecnologias levou a se pensar que os atos processuais até então praticados por escritos em papel pudessem transmudar-se em atos realizáveis por meios eletrônicos. Assim passou-se a cogitar e defender o processo eletrônico, um fator que traria benesses ao processo judicial, já que reduziria os custos, imprimiria maior celeridade processual, e atenderia à preocupação ambiental por reduzir o uso de papel. Nessa toada, foi produzida farta legislação visando à prática de atos processuais por meios eletrônicos. III. PROCESSO JUDICIAL ELETRÔNICO NO BRASIL A possibilidade de se praticar atos processuais por meios eletrônicos no ordenamento jurídico brasileiro teve sua regulamentação incipiente com a Lei 9.800/1999, norma que permitiu a transmissão de peças processuais via fac-símile, porém com a exigência da posterior apresentação da via original em cartório, no prazo de 05 (cinco) dias. Dois anos mais tarde sobreveio a Medida Provisória 2.200-2/2001, que regulou a utilização de tecnologias de assinatura digital e certificação digital no país, a partir de técnicas refinadas de criptografia com chaves públicas e privadas2, pressuposto tecnológico básico para assegurar a segurança, autoria e integridade de atos e documentos produzidos e transmitidos por intermédio de sistemas eletrônicos, na medida que impede qualquer alteração no conteúdo dos documentos após o protocolo realizado nos sistemas de processo eletrônico. Em 2004 o Supremo Tribunal Federal editou a Resolução 287, permitindo a utilização de sistema de correio eletrônico para a prática de atos processuais no âmbito daquele tribunal. Mas 2 “Criptografia (do grego kryptós, "escondido", e gráphein, "escrita") é uma forma sistemática utilizada para esconder a informação na forma de um texto ou mensagem incompreensível. Essa codificação é executada por um programa de computador que realiza um conjunto de operações matemáticas, inserindo uma chave secreta na mensagem. O emissor do documento envia o texto cifrado, que será reprocessado pelo receptor, transformando-o, novamente, em texto legível, igual ao emitido, desde que tenha a chave correta” (Instituto Nacional de Tecnologia da Informação, 2012). 64 Processo e Conexões Humanas seguindo a lógica da Lei 9.800/1990, exigia que os documentos originais fossem protocolizados no prazo de 05 (cinco) dias. Demonstrando apreço pelo processo eletrônico, sua segurança e confiabilidade, o Tribunal Superior do Trabalho editou, no ano de 2005, a Instrução Normativa 28, criando o Sistema Integrado de Protocolização e Fluxo de Documentos Eletrônicos da Justiça do Trabalho (e-Doc), pelo qual petições e documentos poderiam ser transmitidos para qualquer órgão da Justiça do Trabalho, inclusive tribunais, dispensando a posterior apresentação das vias originais. Este sistema, para assegurar a autoria dos atos, fez uso das técnicas de assinatura e certificação digital prevista pela Medida Provisória 2.200-2/2001. Em 2006 a Lei 11.280 acrescentou um parágrafo único ao art. 154 do CPC, conferindo aos Tribunais a faculdade de implantar mecanismos para a prática e comunicação de atos processuais por meios eletrônicos, desde que atendessem a requisitos de autenticidade, integridade e validade jurídica, devendo ser preparados para dialogar com as tecnologias de assinatura e certificação digital, reguladas pela Medida Provisória 2.200-2/2001. Ainda no ano de 2006 sobreveio a Lei 11.419, cognominada de Lei do Processo Judicial Eletrônico, dispondo sobre a prática de atos processuais por meios eletrônicos, criação e implantação de sistemas de processos inteiramente eletrônicos, e comunicação oficial dos atos processuais por meio de Diário da Justiça Eletrônico. Com efeito, a Lei 11.419/2006, ao autorizar que todos os atos processuais pudessem se dar por formas eletrônicas, iniciou a transição dos “autos físicos” para os “autos digitais”. A partir dos impulsos normatizadores acima elencados, vários sistemas de processo eletrônico foram elaborados em diversas instâncias do Poder Judiciário brasileiro. Nesse contexto, convém destacar o sistema e-PROC, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, criado em 2004, sendo o primeiro sistema de processo totalmente eletrônico, abolindo os “autos físicos” tradicionais. Em 2005 a Justiça do Trabalho criou o sistema e-DOC, permitindo a transmissão de atos processuais por meio eletrônico, via Internet, para qualquer instância trabalhista, com abrangência nacional. Neste caso, porém, o sistema era de mera 65 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico transmissão, pois os atos processuais recebidos no órgão de destino seriam impressos e juntados aos “autos físicos” do processo pertinente. O sistema dispensava a necessidade de juntada das petições e documentos originais nos autos, utilizando-se da tecnologia de assinatura e certificação digitais da Medida Provisória 2.200-2/2001 para assegurar a integridade e autoria dos atos praticados. O Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região (Santa Catarina) produziu em 2007 o sistema STDI, apto a receber atos processuais (petições e documentos) via Internet para juntada nos “autos físicos” no âmbito daquela jurisdição trabalhista. A diferença para o sistema e-Doc da Justiça do Trabalho, antes comentado, é que o STDI não exigia uso de assinatura e certificação digital, bastando cadastro prévio no sistema e acesso mediante login e senha. Em 2009 o Conselho Nacional de Justiça – CNJ iniciou a implantação do sistema Projudi (Processo Judicial Digital), criado e ofertado aos Tribunais Estaduais para operação dos processos nas justiças comuns. A primeira fase abrangeu os Juizados Especiais Cíveis e Criminais (Lei 9.099/1995) e posteriormente a Varas da Justiça Comum. Todavia não foi um sistema obrigatório, sendo faculdade de cada tribunal estadual optar por sua adoção, criar um sistema próprio, ou não utilizar sistemas de processo eletrônico. Em 2011 o Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região desenvolveu o sistema chamado Escritório Digital, e aos poucos implantou em todas as varas do trabalho de sua jurisdição e também no âmbito do Tribunal Regional. O sistema substituiu completamente os “autos físicos” por “autos digitais”, desde a petição inicial das demandas. Para conferir segurança, integridade e autenticidade, adotou assinatura e certificação digital, nos moldes da Medida Provisória 2.200-2/2001. Também em 2011 o Conselho Nacional de Justiça, passou a vislumbrar que o Projudi estava se tornando defasado e não receptivo às inovações tecnológicas necessárias ao processo eletrônico. Com isso, e no intuito de uniformizar a prática de atos processuais por meios eletrônicos em todas as instâncias e órgãos judiciais do país, elaborou o sistema PJe (Processo Judicial Eletrônico), atualmente em fase de expansão pelo território nacional. 66 Processo e Conexões Humanas Todos estes esforços do Poder Judiciário em busca de soluções de processo eletrônico demonstram o apreço por esta ferramenta, na medida em que tem como benefícios a economicidade, a celeridade, a transparência e os reflexos na preservação ambiental. IV. OBSOLESCÊNCIAS NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL A mudança do processo judicial, da materialização em escritos em papel para arquivos eletrônicos, impôs uma nova maneira de se pensar, conduzir e realizar o processo. Consequentemente, algumas regras processuais contidas no Código de Processo Civil brasileiro perderam sua justificativa diante do esvaziamento da premissa dos “autos físicos”. A análise de dispositivos processuais pontuais dá o tom da obsolescência de várias regras. Principiando este exame, toma-se os art. 15 3 e 161 4 do CPC que conferem ao magistrado a prerrogativa de determinar que sejam riscadas expressões lançadas nos escritos do processo. O ato é factível nos escritos em papel, porém nos atos processuais eletrônicos em que não é possível qualquer alteração no documento após seu protocolo, em razão das tecnologias de criptografia necessárias para garantir a autoria e segurança, o riscamento de que trata o dispositivo em tela fica prejudicado. Outras medidas técnicas, ou jurídicas deverão ser implementadas, inexistindo, por ora, qualquer normatização a respeito. 3 “Art. 15. É defeso às partes e seus advogados empregar expressões injuriosas nos escritos apresentados no processo, cabendo ao juiz, de ofício ou a requerimento do ofendido, mandar riscá-las” (CPC) [grifou-se]. 4 “Art. 161. É defeso lançar, nos autos, cotas marginais ou interlineares; o juiz mandará riscá-las, impondo a quem as escrever multa correspondente à metade do salário mínimo vigente na sede do juízo” (CPC) [grifou-se]. 67 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico Os art. 166 5 e 167 6 do CPC versam sobre a formação e organização sequencial dos autos processuais, dizendo sobre as condutas a serem adotadas pelo escrivão, ou outro serventuário da justiça. Prevêem os dispositivos atos de autuação, numeração, identificação e lançamento de informações sobre partes, natureza da demanda, data de início, numeração e rubricamento de folhas. Como evidente, são atitudes possíveis nos escritos em papel, nos autos físicos, mas não nos processo eletrônicos, pois ali as informações sobre partes, natureza da demanda, já fornecidas pelas partes quando do cadastro processual da ação. Número de registro e data de início são gerados pelo próprio sistema informático. Também é desnecessária a numeração de páginas, pois no processo eletrônico amiúde a sequência de atos é controlada por “eventos”, em ordem cronológica precisa, no nível dos segundos. E a rubrica nas folhas também é desnecessária em virtude do procedimento de assinatura digital que valida todos os documentos presentes em um determinado evento (instante da realização). Ademais, os autos não são mais formados pelo escrivão, e sim gerados e gerenciados pelo sistema informatizado do processo judicial. Já no tocante à contagem dos prazos processuais, o art. 184 do CPC prevê, nos seus dois incisos, a prorrogação para o próximo dia útil quanto “for determinado o fechamento do fórum” (inciso I) ou “o expediente forense for encerrado antes da hora normal” (inciso II). Nitidamente a regra parte do pressuposto da possibilidade de acesso às instalações físicas onde esteja instalado o juízo em que tramita o processo. Mas para o processo eletrônico a norma se torna inoperante, já que neste os atos processuais poderão ser praticados indistintamente, esteja ou não aberto ao público o prédio do juízo, já que podem ser praticados até as 24 horas do último dia do prazo (art. 10, § 1º, Lei 11.419/2006). Nesse passo, oportuno registrar que se o 5 “Art. 166. Ao receber a petição inicial de qualquer processo, o escrivão a autuará, mencionando o juízo, a natureza do feito, o número de seu registro, os nomes das partes e a data do seu início; e procederá do mesmo modo quanto aos volumes que se forem formando” (CPC) [grifou-se]. 6 “Art. 167. O escrivão numerará e rubricará todas as folhas dos autos, procedendo da mesma forma quanto aos suplementares” (CPC) [grifou-se] 68 Processo e Conexões Humanas sistema de processo eletrônico se tornar indisponível por motivo técnico, haverá prorrogação do prazo para o próxima dia útil após a resolução do problema (art. 10, § 2º, Lei 11.419/2006). Prevê o art. 191 7 do CPC que naqueles processos em que litisconsortes tiverem advogados distintos, ser-lhes-á concedido prazo em dobro pra contestar, recorrer e praticar demais atos processuais ordinários. Percebe-se que a regra provoca certo retardamento processual, pois duplica o tempo que as partes têm para praticar atos que lhe competem. A justificativa da medida está insitamente ligada à existência de autos físicos, pois o objetivo do artigo em tela é permitir aos advogados dos litisconsortes o fácil manuseio dos autos, para o que precisarão de mais tempo. Com o processo eletrônico deixa de existir a carga de autos, isto é, a retirada dos “autos físicos” do cartório do juízo por uma das partes de modo torná-lo inacessível aos demais envolvidos na causa. Como no processo eletrônico os autos estão disponíveis a qualquer das partes ininterruptamente, a existência de litisconsortes, no número que for, não trará qualquer prejuízo ao acesso dos autos processuais. Assim, o prazo em dobro previsto neste artigo perde sua ratio essendi, como já defende o CNJ 8. Contudo, por se tratar de garantia processual aos litigantes, fazse necessária alteração legislativa para suprimir esta benesse processual, já tendo ocorrido pronunciamento judicial nesse sentido 9. 7 “Art. 191. Quando os litisconsortes tiverem diferentes procuradores, ser-lhes-ão contados em dobro os prazos para contestar, para recorrer e, de modo geral, para falar nos autos” (CPC). 8 “Não há mais a necessidade de uma tramitação linear do processo, o qual, podendo estar em vários lugares ao mesmo tempo, retira qualquer justificativa para a concessão de prazos em dobro em determinadas situações” (CNJ, 2013). 9 “O escopo do dispositivo [art. 191] é o de garantir a ampla defesa e o contraditório, mormente porque, sendo o prazo comum, de regra, os procuradores só teriam vista dos autos em cartório, podendo retirá-los somente após prévio ajuste e por petição, como previsto no § 2º, do art. 40, do CPC. II. A despeito de não se vislumbrar prejuízo aos litisconsortes, mormente porque, no processo eletrônico, os procuradores teriam simultaneamente disponível a integralidade das peças dos autos, devem às partes ser conferido prazo em dobro, vez que 69 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico Os art. 195 10 e 196 11 do CPC também foram inegavelmente construídos sob a premissa dos autos físicos, já que cuidam de hipóteses em que o advogado retiver consigo os autos processuais por prazo superior ao previsto em lei. Conforme exposto no exame do artigo anterior, no processo eletrônico desaparece o expediente de carga dos autos, na medida em que o acesso a eles é feito via sistema eletrônico, na integralidade e em qualquer momento, com a característica adicional de não torná-los indisponíveis ou inacessíveis à parte contrária ou a qualquer outro envolvido ou interveniente da demanda. É dizer que no processo eletrônico não existe carga de autos, e de consequência não há como falar em prazo para restituição de autos pelo advogado. Esta inferência demonstra a obsolescência dos dispositivos do CPC em comento, e também evidencia a perda da pertinência da norma do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil que considera infração profissional punível com advertência, a retenção abusiva de autos processuais (art. 34, XXII, c/c art. 37, Lei 8.906 /1994). Ao versar sobre carta precatória para realização de exame pericial em documento, o art. 202, § 2º 12, do CPC, dispõe que o original será enviado ao juízo deprecado, permanecendo a Lei nº 11.419, de 19 de dezembro 2006, que dispôs sobre a informatização do processo judicial, não revogara ou afastara a incidência do art. 191, do CPC, tampouco criara qualquer exceção à aplicação deste dispositivo no processo eletrônico” (TRF 2ª Região AI 0015332-92.2012.4.02.0000 - Rel. Des. Sergio Schwaitzer - DEJF 06/12/2012). 10 “Art. 195. O advogado deve restituir os autos no prazo legal. Não o fazendo, mandará o juiz, de ofício, riscar o que neles houver escrito e desentranhar as alegações e documentos que apresentar” (CPC) [grifouse]. 11 “Art. 196. É lícito a qualquer interessado cobrar os autos ao advogado que exceder o prazo legal. Se, intimado, não os devolver dentro em 24 (vinte e quatro) horas, perderá o direito à vista fora de cartório e incorrerá em multa, correspondente à metade do salário mínimo vigente na sede do juízo” (CPC) [grifou-se]. 12 “Art. 202. São requisitos essenciais da carta de ordem, da carta precatória e da carta rogatória: (...). § 2º. Quando o objeto da carta for exame pericial sobre documento, este será remetido em original, ficando nos autos reprodução fotográfica” (CPC) [grifou-se]. 70 Processo e Conexões Humanas uma fotocópia no juízo deprecante. No processo eletrônico os documentos são encaminhados de forma digitalizada já nos autos do processo originário, no juízo deprecante, de sorte que o original ficará em poder das partes (art. 11, § 3º, Lei 11.419/2006). Assim, ainda que o magistrado possa determinar que a parte, ou quem detiver o original, apresente no local da realização da prova pericial, não há se falar em reprodução fotográfica deste original para conservação nos autos originais, pois ali já estará a versão digitalizada do documento. O art. 223 13 do CPC cuida da citação da parte demandada, prevendo que esta deverá receber um comunicado oficial oriundo do juízo, informando prazo para resposta e suas consequências, e instruindo com cópia da petição inicial e do despacho do juiz. Notadamente que a citação nunca será dispensada, pois é pressuposto básico de validade do processo adrede a permitir o devido processo legal. Entretanto, o acompanhamento da petição inicial e despacho do juiz se torna desnecessário, na medida em que os sistemas de processo eletrônico devem permitir a consulta pública destes documentos pelas partes, a partir da informação de dados como o número do processo ou nome da parte. Se o processo eletrônico tem como uma das justificativas eliminar a produção de atos em papel, não parece sensato que neste momento se reverta a lógica transformando atos genuinamente eletrônicos em papel. O art. 385 do CPC trata da equivalência de valor probatório de originais e cópias, e especialmente seus parágrafos 1º e 2º contemplam regras interessantes. O § 1º 14 prevê que sempre que for incluída uma fotografia no processo, terá que ser juntado o respectivo negativo, o passo que o § 2º 15, exige que em caso de fotografia publicada em jornal se junte aos autos o 13 “Art. 223. Deferida a citação pelo correio, o escrivão ou chefe da secretaria remeterá ao citando cópias da petição inicial e do despacho do juiz, expressamente consignada em seu inteiro teor a advertência a que se refere o Art. 285, segunda parte, comunicando, ainda, o prazo para a resposta e o juízo e cartório, com o respectivo endereço” (CPC) [grifou-se]. 14 “Art. 385. (...).§ 1º. Quando se tratar de fotografia, esta terá de ser acompanhada do respectivo negativo” (CPC) [grifou-se]. 15 “Art. 385. (...). § 2º. Se a prova for uma fotografia publicada em jornal, exigir-se-ão o original e o negativo” (CPC) [grifou-se]. 71 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico original e o negativo. O negativo das fotografias não é elemento facilmente presente nesta época de máquinas fotográficas digitais, celulares e tablets, em que o momento capturado é conservado de imediato em arquivos eletrônicos. A previsão de juntada de negativo, nessa senda, torna-se impraticável pela própria inexistência de negativo das fotografias. A argúcia que a questão desperta é assim examinada por MARINONI e ARENHART (2007, p. 350): (...) a fotografia digital não possui negativo, já que ela é gravada diretamente em meio lógico, dispensando o filme fotográfico. Desse modo, nota-se que a regra em questão não se presta a lidar com esta nova realidade, sendo necessário encontrar um outro preceito capaz de disciplinar seu uso. O Código Civil tentou dar tratamento ao tema (ainda que de forma genérica), ao prever, em seu arr. 225, que ‘as reproduções fotográficas, cinematográficas, ou registros fonográficos e, em geral, quaisquer outras reproduções mecânicas ou eletrônicas de fatos ou de coisas fazem prova plena destes, se a parte, contra quem forem exibidos, não lhes impugnar a exatidão’. O preceito, que repete em linhas gerais a regra do art. 383 do Código de Processo Civil, não se encontra em condições de reger a matéria, já que sua aplicação é restrita à hipótese em que não surja controvérsia a respeito da integridade da prova. Noutro passo, na regulamentação da interposição de recursos às decisões judiciais, o art. 506, parágrafo único, do CPC, prevê que a petição recursal será protocolada em cartório, ou segundo norma especial de organização judiciária. Porém, em sede de processo eletrônico desparece o ato de protocolamento junto ao cartório do juízo, pois a parte interessada efetua o protocolo das petições diretamente no sistema processual, já 72 Processo e Conexões Humanas “dentro” dos autos do processo. Pela sistemática recursal pátria, os recursos a rigor são interpostos junto à autoridade judiciária prolatora da decisão recorrida, que após recebê-lo e oportunizar o contraditório à parte adversa, encaminhará os autos processuais ao órgão judicial superior competente para o julgamento do recurso. Em autos “físicos”, este envio consiste, a rigor, na remessa por correio dos autos completos de um lugar para outro, gerando despesas postais. Por esta razão o art. 511 do CPC 16 prevê que no ato de interposição do recurso a parte deverá efetuar o recolhimento de portes de remessa e retorno, isto é, valores de despesas postais para envio dos autos ao órgão julgador superior e também para seu retorno à origem após julgado. O processo eletrônico dispensa a remessa dos autos por via postal, na medida em que qualquer dos órgãos judiciários envolvidos pode ter acesso à integralidade dos autos em segundos, com a execução de alguns comandos no sistema informatizado que gere o processo. Ao regular especificamente o recurso de Agravo de Instrumento, o art. 525 do CPC fixa um conjunto de peças processuais que devem ser anexadas à petição recursal, e seu parágrafo único ressalta a necessidade de comprovar o recolhimento de porte de retorno. Quanto a este último requisito, aplicam-se as observações alhures feitas para o art. 506, parágrafo único, do CPC. Com relação à exigência de juntada de peças processuais, essenciais (art. 525, I, CPC) e facultativas (art. 525, II, CPC), requisitos que se não cumpridos ou cumpridos deficientemente acarretam o não conhecimento do recurso, a possibilidade de acesso à integralidade dos autos por qualquer órgão do Poder Judiciário a que vinculado o processo também torna desnecessária a providência. Já no processo executivo, o art. 614, I, do CPC, determina que o título executivo original deverá ser encartado nos autos já com a petição inicial. A exigência se explica para evitar a circulação do título de crédito, protegendo interesses de terceiros de boa-fé. Todavia, no processo eletrônico, mesmo 16 “Art. 511. No ato de interposição do recurso, o recorrente comprovará, quando exigido pela legislação pertinente, o respectivo preparo, inclusive porte de remessa e de retorno, sob pena de deserção” (CPC) [grifou-se]. 73 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico executivo, constará dos autos uma cópia do título original, de forma que a exigida juntada do original com a petição inicial se mostra impraticável. Soluções paliativas têm sido adotadas para impedir a circulação do título quando objeto de execução via processo eletrônico: ou a parte é intimada para apresentá-lo ao cartório que a conservará ou então aporá carimbo que menciona a vinculação a uma execução em curso, conforme orientação do Enunciado 126 do FONAJE 17. Em sede de Embargos à Execução, o art. 736, parágrafo único, do CPC, determina que a petição de Embargos seja instruída com cópias processuais relevantes, cautela desnecessária em processos eletrônicos, na medida em que, distribuídos por dependência e autuados em apenso ao processo executivo principal (art. 736, parágrafo único, do CPC), serão conhecidos e apreciados pelo mesmo juízo. Logo, este juízo terá acesso integral aos autos da execução, de modo rápido e em poucos comandos, não havendo razão plausível para repetir peças processuais nos autos de Embargos. Os art. 866 18 e 872 19 do CPC estão inseridos, respectivamente, nas seções que tratam das medidas cautelares de Justificação e Protesto. Ambos prevêem que ultimados os atos processuais cabíveis em juízo, os autos serão entregues à parte demandante. A regra perde o sentido diante da constatação de que no processo eletrônico não existem autos físicos e que qualquer das partes tem acesso ao inteiro teor destes a qualquer momento, podendo gerar cópia para sua conservação. Logo, a entrega dos autos às partes, como contido nestes dispositivos, perde sua pertinência. V. CONCLUSÃO 17 Enunciado 126, FONAJE: “Em execução eletrônica de título extrajudicial, o título de crédito será digitalizado e o original apresentado até a sessão de conciliação ou prazo assinado, a fim de ser carimbado ou retido pela secretaria”. 18 “Art. 866. A justificação será afinal julgada por sentença e os autos serão entregues ao requerente independentemente de traslado, decorridas 48 (quarenta e oito) horas da decisão” (CPC) [grifou-se]. 19 “Art. 872. Feita a intimação, ordenará o juiz que, pagas as custas, e decorridas 48 (quarenta e oito) horas, sejam os autos entregues à parte independentemente de traslado” (CPC) [grifou-se]. 74 Processo e Conexões Humanas O estudo aqui empreendido permitiu rememorar que o processo judicial é o instrumento para a realização da justiça posto à disposição da sociedade pelo Estado, na medida em que este detém o monopólio da jurisdição e deve resolver os conflitos entre particulares fornecendo uma resposta estatal. Nessa toada, no ordenamento jurídico brasileiro o acesso à justiça e o devido processo legal, são direitos fundamentais, o que mostra a relevância da jurisdição. A busca pela prestação jurisdicional do Estado-Juiz pressupõe um caminho predeterminado, conhecível e acessível a todos. Este caminho é composto pelas regras processuais predeterminadas em lei, sobremodo refletidas pelo Código de Processo Civil e legislação extravagante que regula processo e procedimentos. As regras dadas pela lei em torno da prática de atos processuais foram pensadas e construídas a partir da premissa de autos processuais “físicos”, isto é, materializados em escritos em papel. A implantação dos sistemas de processo eletrônico modificou a forma de se conduzir e efetivar o processo judicial, tornando muitas regras expressas do Código de Processo Civil vigente impertinentes, inaplicáveis e obsoletas, por absoluta desnecessidade ou impraticabilidade diante das funções e características dos sistemas de processo eletrônico. Assim, com o advento do processo eletrônico, à míngua de qualquer alteração legislativa, depara-se com manifestas obsolescências de regras contidas no Código de Processo Civil brasileiro provocadas pelo advento do processo eletrônico. VI. REFERÊNCIAS BRASIL. Constituição (1988). Constituição Federal da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Organização do texto: Alexandre de Moraes. 36 ed. São Paulo: Atlas, 2012. (Coleção manuais de legislação). _______. Lei n. 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Institui o Código de Processo Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 12 jan. 1973. _______. Lei n. 9.800, de 26 de maio de 1999. Permite às partes 75 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico a utilização de sistema de transmissão de dados para a prática de atos processuais. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 27 maio 1999. _______. Medida Provisória nº 2.200-2, de 24 de agosto de 2001. Institui a Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICPBrasil, transforma o Instituto Nacional de Tecnologia da Informação em autarquia, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 25 ago. 2001. _______. Lei n. 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 jan. 2002. _______. Lei 11.280, de 26 de fevereiro de 2006. Altera os arts. 112, 114, 154, 219, 253, 305, 322, 338, 489 e 555 da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil, relativos à incompetência relativa, meios eletrônicos, prescrição, distribuição por dependência, exceção de incompetência, revelia, carta precatória e rogatória, ação rescisória e vista dos autos; e revoga o art. 194 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 17 fev. 2006. _______. Lei n º. 11.419, de 19 de dezembro de 2006. Dispõe sobre a informatização do processo judicial; altera a Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Código de Processo Civil; e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 dez. 2006. _______. STF. Resolução nº 287, de 14 de abril de 2004. Sistema e-STF. Institui o e-STF, sistema que permite o uso de correio eletrônico para a prática de atos processuais, no âmbito do Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 12 jul. 2013. _______. Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Processo Judicial Eletrônico (PJe), O sistema. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/programas-de-a-a-z/sistemas/processojudicial-eletronico-pje/o-sistema>. Acesso em: 12 jul. 2013. 76 Processo e Conexões Humanas _______. Instituto Nacional de Tecnologia da Informação (ITI). Perguntas Frequentes: Sobre Certificação Digital, 11 ago. 2012. Disponível em: <http://www.iti.gov.br/perguntasfrequentes/1743-sobre-certificacao-digital>. Acesso em: 15 jul. 2013. _______. TRF 2ª Região - AI 0015332-92.2012.4.02.0000 - Rel. Des. Sergio Schwaitzer - DEJF 06 dez. 2012. Disponível em: <http://www.trf2.jus.br>. Acesso em: 12 jul. 2013. _______. TST. Instrução Normativa nº 28, de 07 de junho de 2005. Sistema e-Doc. Dispõe sobre o Sistema Integrado de Protocolização e Fluxo de Documentos Eletrônicos da Justiça do Trabalho (e-DOC). Disponível em: <http://www.tst.gov.br>. Acesso em: 12 jul. 2013. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução: Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2002. DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Teoria geral do processo e processo de conhecimento. v. 1. 10 ed. Salvador, BA: Juspodivm, 2008. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil: processo de conhecimento. v. 2. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. MEDINA, José Miguel Garcia. Código de Processo Civil comentado: com remissões e notas comparativas ao projeto do novo CPC. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de Processo Civil: Teoria geral do processo e processo de conhecimento. v. 1. 12 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. 77 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico O MARCO CIVIL E A PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS: COERÊNCIAS COM OS PLS 4060/2012 E 3558/2012 Marco A. R. Cunha e Cruz 1 Jéffson Menezes de Sousa 2 RESUMO: O objetivo deste artigo se centra em estudar a coerência protetiva dos dados pessoais entre o Marco Civil e os PLs 4060/2012 e 3558/2012. Foi utilizado o método dedutivo, subsidiado por pesquisa bibliográfica e documental, com a sucessão de 02 etapas. Na primeira, examina-se o discurso científico, para situar os conceitos “proteção de dados pessoais” e “autodeterminação informativa”. Na segunda, é analisado o marco normativo, para interpretar qual a denominação legal dada ao objeto de estudo e o tratamento conferido a partir da análise dos pontos convergentes e divergentes entre a lei 12.965/2014 e os PLs 4060/2012 e 3558/2012. As principais conclusões são: (i) é mais adequado, no Brasil, utilizar a expressão “proteção de dados pessoais”, e (ii) a lei 12.965/2014 e os PLs 3558/212 e 4060/2012 convergem quanto ao consentimento inequívoco do titular para o armazenamento de dados pessoais, retificação, exclusão ou bloqueio na manutenção e/ou transmissão dos dados pessoais e aplicação da jurisdição nacional, no tocante à questão da territorialidade, e a incoerência entre eles reside na responsabilização daqueles que tratam os dados pessoais. PALAVRAS-CHAVE: Marco Civil da Internet. Autodeterminação Informativa. Internet. Dados Pessoais. ABSTRACT: This article aims to study the protective coherence of personal data between the Brazilian Civil Rights Framework for the Internet and PLs 4060/2012 and 3558/2012. For such, it was used the deductive method, subsided by bibliographical and documental research, in a sequence of two steps. Firstly, the examination of the scientific speech in order to situate “personal data protection” and “informative self-determination” concepts; 1 Doutor em Direito Constitucional, Pesquisador Direito | Alfa-GO. [email protected] 2 Bacharelando em Direito, bolsista PROBIC | Universidade Tiradentes–[email protected] 78 Processo e Conexões Humanas and, secondly, analysis of the normative framework with a view to interpreting which legal denomination is given to the object of study and its treatment from an analysis of convergent and divergent aspects between the legal documents mentioned above. The main conclusions are: (i) it is more appropriated to use the expression “personal data protection” in Brazil; and (ii) such legal documents converge between the unambiguous consent of the holder for storing, rectification, exclusion or blockage of the maintenance and/ or transmission of personal data and the application of the national jurisdiction, concerning the territoriality matter; and their incoherence is related to the responsibility of those who deal with the personal data. KEYWORDS: Brazilian civil rights framework for the internet. Informative Self-determination. Internet. Personal data. SUMÁRIO: Introdução. I. Breves notas sobre a construção do direito à proteção dos dados pessoais (discurso científico) II. A proteção de dados pessoais no marco normativo brasileiro (discurso normativo). III. O Marco Civil e a proteção de dados pessoais: coerências com os PLs 4060/2012 e 3558/2012 IV. Conclusões. V. Referências. INTRODUÇÃO A atual discussão da proteção de dados pessoais cobra cada vez mais relevância. Não se exaurem as notícias sobre tal temática e as mais recentes são que (i) o recém-lançado o iPhone 6 da Apple deve dificultar o repasse de dados para agências de inteligência mesmo quando houver autorização judicial, segundo reportagem do jornal The New York Times, pois cada usuário terá um código único com a criptografia de e-mails, imagens e contatos 3; (ii) é uma multinacional, apontada como auxiliar da Agência de Segurança Nacional norte-americana (NSA), que 3 REVISTA CONSULTOR JURÍDICO. Novo iPhone protege usuário contra busca de dados no aparelho. 28 set. 2014a. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014-set-28/iphone-bloqueia-acessogrampo-autorizacao-judicial>. Acesso em: 30 set. 2014. 79 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico desenvolve o programa usado pelas operadoras de telefonia do Brasil para fazer interceptações telefônicas quando há autorização judicial. Há suspeitas de que o conteúdo das interceptações seja franqueado ao governo estadunidense durante as investigações e antes mesmo que a Justiça tenha conhecimento de seu conteúdo 4. Com efeito, a busca de formas de controle e de acesso a informações/dados pessoais sobre o indivíduo se justifica pela necessidade que os entes públicos e privados requerem para o desenvolvimento social e econômico ou para a segurança do Estado. Foi e é imperiosa, pois, uma reposta jurídica tanto para garantir direitos aos titulares como para responsabilizar os abusos cometidos. E é sobre isso que versa o objeto deste escrito: a forma como a proteção dos dados pessoais foi tratada no Marco Civil e a sua coerência com os PLs 4060/2012 e 3558/2012. Em 2013, foi-se publicizado que a Casa Civil está examinando proposta que cria o Conselho Nacional de Proteção de Dados. A Câmara dos Deputados está analisando o Projeto de Lei 3558/12, apensado ao Projeto de Lei 4060/12, que disciplina a proteção de dados pessoais e a utilização de sistemas biométricos e tipifica os crimes de modificação de dados em sistema de informações. É cediço que a publicação da Lei 12.965/2014 (Marco Civil) imprimiu novo tônus protetivo aos dados pessoais, mas por ser uma lei geral, não é este o seu foco específico. Além da intenção legislativa, é fato que está se formando uma doutrina brasileira que quer consolidar a existência de um novo direito da personalidade. Apesar da discussão sobre a efetividade, emerge um embate não declarado acerca da nomenclatura deste direito, se entendido como “direito à proteção de dados pessoais” ou “autodeterminação informativa”. Esta problematização pode ser ilustrada pela ilação de Ricardo Vilas Bôas Cueva que escreveu um interrogante texto “Há um 4 REVISTA CONSULTOR JURÍDICO. Sistema da Polícia Federal pode estar repassando aos EUA grampos feitos no Brasil. 27 set. 2014b. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014-set-27/euapodem-estar-acessando-autorizacao-grampos-feitos-brasil>. Acesso em: 30 set. 214. 80 Processo e Conexões Humanas direito à autodeterminação informativa no Brasil?” 5 e de Danilo Doneda que publicou o artigo “A proteção dos dados pessoais como um direito fundamental” 6. Neste sentido, o objeto deste artigo se centra em estudar o direito à proteção de dados pessoais/o direito à autodeterminação informativa. O objetivo é estudar, ante uma revisão de literatura, a coerência protetiva dos dados pessoais entre o Marco Civil e os PLs 4060/2012 e 3558/2012. Foi utilizado o método dedutivo, subsidiado por pesquisa bibliográfica e documental, com a sucessão de 02 etapas. Na primeira, examina-se o discurso científico, para situar os conceitos “proteção de dados pessoais” e “autodeterminação informativa”. Na segunda, é analisado o marco normativo, para interpretar qual a denominação legal dada ao objeto de estudo e o tratamento conferido a partir da análise dos pontos convergentes e divergentes entre a lei 12.965/2014 e os PLs 4060/2012 e 3558/2012. Após, serão oferecidas as conclusões. I. BREVES NOTAS SOBRE A CONSTRUÇÃO DO DIREITO À PROTEÇÃO DOS DADOS PESSOAIS (DISCURSO CIENTÍFICO) “Digitalizar uma informação consiste em traduzi-la em números” 7. A sugestiva constatação de Pierre Lévy leva a meditar sobre suas inflexões jurídicas relacionadas ao objeto deste escrito. É certo que na década de 80 sobre o capitalismo incidiu uma reestruturação organizacional e econômica fomentada por uma nova tecnologia da informação: a Internet 8. Nada obstante, esta tecnologia encontra também seu suporte com 5 CUEVA, R. V. B. Há um direito a autodeterminação informativa no Brasil? In: MUSSI, J.; SALOMÃO, L. F.; MAIA FILHO, N. N. (Org.). Estudos jurídicos em homenagem ao Ministro Cesar Asfor Rocha. Ribeirão Preto: Migalhas, 2012, v.3, p. 220-241. 6 DONEDA, D. A proteção dos dados pessoais como um direito fundamental. Espaço Jurídico Journal of Law, Joaçaba-SC, v. 12, n. 2, p. 91-108, jul./dez. 2011. 7 LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 1999. (Coleção TRANS), p. 50. 8 CASTELLS, M. A sociedade em rede. 7. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003, p. 98. 81 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico o manejo dos dados pessoais, evidenciado após os impulsos tecnocráticos do pós-guerra que, na década de 1960, com a informática, inspiraram projetos como o estadunidense National Data Center e o francês SAFARI. Tais projetos posteriormente fundamentaram as iniciativas legislativas e originaram as discussões doutrinárias. Averígua-se uma das primeiras reações no conceito de privacy a que foi proposta por Allan Westin em 1967, que a define como sendo o direito dos indivíduos, grupos ou instituições para determinar por si mesmos, quando, como e com qual extensão a informação acerca deles pode ser ou não comunicada 9. Ainda, André de Carvalho Ramos 10 indica que em 1974 Mclauglin e Vaupel publicaram o texto em que apontam o risco à intimidade e de discriminação pela existência dos “credit bureaus” sobre o comportamento do consumidor, cujas informações eram vendidas para fornecedores e direcionavam crédito e outras decisões. Neste contexto, a resposta legislativa sobre a proteção dos dados pessoais pode ser categorizada em fases. A inicial se caracteriza pelo rigor na criação dos arquivos informatizados, com princípios de proteção amplos e abstratos, centrados na atividade do processamento de dados, com regras dirigidas aos agentes do processamento 11. Tratou-se, na verdade, dos bancos de dados e não de privacidade 12. Diante da ampliação dos centros de processamento de dados, as leis se tornaram obsoletas, o que gerou ineficácia de um controle baseado em normas que estabeleciam minuciosamente alguns aspectos do funcionamento dos bancos de dados. A lei do Land Hesse, de 07.10.1970, na 9 LOPÉZ DÍAZ, E. El derecho al honor y el derecho a la intimidad: jurisprudencia y doctrina. Dykinson, Madrid: 1996, p. 188. 10 RAMOS, A. C. O pequeno irmão que nos observa: os direitos dos consumidores e os bancos de dados de consumo no Brasil. Revista de Direito do Consumidor(RT), São Paulo, ano 14, n°53, p.39-53, jan./mar. 2005. 11 LIMBERGER T. Da evolução do direito a ser deixado em paz, à proteção dos dados pessoais. Revista do Direito (UNISC), v. 30, p. 138-160, 2008. 12 DONEDA, D. A proteção dos dados pessoais como um direito fundamental. Espaço Jurídico Journal of Law, Joaçaba-SC, v. 12, n. 2, p. 91-108, jul./dez. 2011. 82 Processo e Conexões Humanas Alemanha é a primeira a regular a proteção dos dados informatizados de titularidade pública 13. A lei posterior, de 27.01.1977 disciplinou os arquivos públicos e privados. A segunda fase se compõe de normas menos austeras para a criação de arquivos e fundamentadas na proteção dos dados pessoais como uma liberdade negativa e não mais no fenômeno computacional 14. Percebeu-se que o fornecimento de dados pessoais pelos cidadãos tinha se tornado indispensável para a sua efetiva participação na vida social. Tanto os entes privados como os públicos utilizavam frequentemente os dados pessoais para seu funcionamento, motivo pelo qual o exercício puramente individual desta liberdade era fundamental para a própria socialização dos indivíduos. Como exemplos expoentes se cita a lei francesa de 06.01.1978, a lei suíça de 1981, a lei da Islândia de 26.05.1981 e a de Luxemburgo de 30.03.1979. Urge registrar a positivação no texto constitucional espanhol de 1978 (art. 18.4). O convênio de Estrasburgo, de 28.01.1981, inicia a terceira fase, de pretensão de unificação do direito europeu. É marcada pela tentativa de garantir os direitos e de não obstar o desenvolvimento da informática. Preocupa-se em garantir a liberdade de fornecer ou não os dados pessoais. Reconhece-se que tal rito envolve a participação do individuo na sociedade e leva em consideração o contexto no qual lhe é solicitado que revele seus dados, estabelecendo meios de proteção para as ocasiões em que sua liberdade de decidir é limitada. Assim estão a lei do Reino Unido de 12.07.1984, a lei alemã de 20.12.1990, a 13 ATHENIENSE, A. As transações eletrônicas e o direito de privacidade. Fórum Administrativo: Direito Público, Belo Horizonte, v. 2, n. 19, p. 1170-1177, set. 2002. 14 LIMBERGER, Têmis. A informática e a proteção à intimidade. Revista de Direito Constitucional e Internacional, v.8, n.33, p.110124, out./dez 2000. 83 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico lei de Portugal de 20.04.1991, a lei espanhola de 31.10.1992 e a de 13.12.1999 e a lei italiana de 31.12.1996 15. Danilo Doneda 16 identifica uma quarta geração das leis que se caracteriza por tentar suprir as desvantagens do enfoque individual existente, além de disseminar o modelo das autoridades independentes, criar normas conexas específicas para alguns setores (saúde, crédito, consumo). Adverte que se vislumbra um modelo de proteção de dados pessoais com a leitura da Diretiva 95/46/CE, da Diretiva 2000/58/CE e da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia de 7/12/2000 (art. 8°). Inobstante a importância da citada produção normativa, é consenso sustentar que a principal contribuição para a configuração jurídica da “autodeterminação informativa” é a decisão de 15 de dezembro de 1983 do Tribunal Constitucional alemão, sobre a Lei do Censo da população (Volkszählungsgesetz). O teor deste julgado concebeu a “autodeterminação informativa” (RechtaufinformationelleSelbstimmung), como a autonomia que a pessoa tem de determinar quem, o que, e em que ocasião (wer, was, wann, beiwelchenGelegenheit) pode conhecer e/ou utilizar dados que lhe afetam. O reconhecimento do direito à autodeterminação informativa decorreu da interpretação constitucional realizada pelo Bundesverfassungsgericht (art. 1.1 c/c art. 2.1, da Lei Fundamental), sobre o livre desenvolvimento da personalidade, o direito geral da personalidade e a dignidade da pessoa humana 17. É neste contexto que, ciente de que na CF-88 não consta literalmente a expressão “direito à autodeterminação 15 LIMBERGER, Têmis. Da evolução do direito a ser deixado em paz, à proteção dos dados pessoais. Novos Estudos Jurídicos,v. 14, n. 2, p. 27-53, 2º Quadrimestre 2009. 16 DONEDA, op. cit., p. 98. 17 CUEVA, R. V. B. Há um direito a autodeterminação informativa no Brasil? In: MUSSI, J.; SALOMÃO, L. F.; MAIA FILHO, N. N. (Org.). Estudos jurídicos em homenagem ao Ministro Cesar Asfor Rocha. Ribeirão Preto: Migalhas, 2012, v.3, p. 230. 84 Processo e Conexões Humanas informativa” ou “direito à proteção de dados pessoais”, cabe questionar como fez Ricardo Vilas Bôas Cueva 18 “Há um direito à autodeterminação informativa no Brasil?”. O autor conclui que sim, com a ressalva da ausência de disposição normativa que robusteça tal direito. Com efeito, foi se formando uma doutrina brasileira que opina pela existência de um direito à proteção de dados pessoais 19 18 Ibid. Cf. ATHENIENSE, op. cit.; BARRIENTOS-PARRA, J. D.; BORGES MELO, E. C. O Direito à Intimidade na Sociedade Técnica: rumo a uma política pública em matéria de tratamento de dados pessoais. Revista de Informação Legislativa, ano 45, v. 180, p. 197214,out./dez. 2008; DONEDA, D. Da privacidade à proteção dos dados pessoais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, DONEDA, D. Iguais mas separados: o Habeas Data no ordenamento jurídico brasileiro e a proteção de dados pessoais. Cadernos da Escola de Direito e Relações Internacionais (UniBrasil), v. 9, p. 14-32, 2008, DONEDA, D. A proteção dos dados pessoais como um direito fundamental. Espaço Jurídico Journal of Law, Joaçaba-SC, v. 12, n. 2, p. 91-108, jul./dez. 2011; DRUMMOND, Victor. Internet, privacidade e dados pessoais. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003; GEDIEL, J. A. P; CORRÊA, A. E. Proteção jurídica de dados pessoais: a intimidade sitiada entre o estado e o mercado. Revista da Faculdade de Direito (UFPR), Curitiba, v. 47, p. 141-153, 2008; GUERRA, S. C. S. O direito à privacidade na internet: uma discussão da esfera privada no mundo globalizado. Rio de janeiro: América Jurídica, 2004; LIMBERGER, T. A informática e a proteção à intimidade. Revista de Direito Constitucional e Internacional, v.8, n.33, p.110-124, out./dez 2000, LIMBERGER T. Da evolução do direito a ser deixado em paz, à proteção dos dados pessoais. Revista do Direito (UNISC), v. 30, p. 138-160, 2008, LIMBERGER, Têmis. Da evolução do direito a ser deixado em paz, à proteção dos dados pessoais. Novos Estudos Jurídicos,v. 14, n. 2, p. 27-53, 2º Quadrimestre 2009; MATOS, A. N. S. Privacidade e honra nas relações de consumo: uma análise a partir dos bancos de dados e da cobrança vexatória. Curitiba, PR: Universidade Federal do Paraná, Setor de Ciências Jurídicas e Sociais, 2007. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Paraná, 2007. Disponível em: <http://dspace.c3sl.ufpr.br:8080/dspace/bitstream/handle/1884/11634/ %28Microsoft%20Word%20-%20DISSERTA.pdf?sequence=1>. Acesso em 30 set. 2014.; MENDES, L. S. F. Transparência e privacidade: violação e proteção da informação pessoal na sociedade 19 85 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico ou de um direito à autodeterminação informativa 20. Percebe-se que alguns autores manejam com fungibilidade as duas de consumo. Brasília, DF: Universidade de Brasília, 2008. Dissertação de Mestrado, Universidade de Brasília, 2008. Disponível em:<http://repositorio.bce.unb.br/bitstream/10482/4782/1/DISSERTA CAO%20LAURA.pdf>. Acesso em 30 set. 2014.; PEZZI, A. P. J. A necessidade de proteção dos dados pessoais nos arquivos de consumo: em busca da concretização do direito à privacidade. São Leopoldo, RS: Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2007. Dissertação de Mestrado (Universidade do Vale do Rio dos Sinos), 2007. Disponível em: <http://dominiopublico.mec.gov.br/download/teste/arqs/cp042824.pdf >. Acesso em 30 set. 2014.; PINHEIRO, C. R. Cadastro Positivo: a possibilidade de acesso ao crédito como um dos caminhos para o desenvolvimento social. Rio de Janeiro: RJ, 2012. Dissertação de Mestrado, Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, 2012. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/9792/C aroline%20da%20Rosa%20Pinheiro.pdf?sequence=1>. Acesso em 30 set. 2014.; REINALDO FILHO, D. A privacidade na Sociedade da Informação. In: REINALDO FILHO D. (Coord.). Direito da Informática, temas polêmicos. Bauru, SP: Edipro, 2002, p. 25-40; RUARO, R., RODRIGUEZ, D., FINGER, B. O direito à proteção de dados pessoais e a privacidade. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, n° 53, p. 45-66, 2011. Disponível em: <http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/direito/article/view/30768/1987 6>. Acesso em 30 set. 2014.; WATFE, C. G. C. A internet e a violação da intimidade e privacidade. Maringá. PR: Centro Universitário de Maringá, 2006. Dissertação de Mestrado, Centro Universitário de Maringá, 2006. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?se lect_action=&co_obra=59555>. Acesso em 30 set. 2014. 20 Cf. CARVALHO, A. P. G. O consumidor e o direito à autodeterminação informacional: considerações sobre os bancos de dados eletrônicos. Revista de direito do consumidor (RT), ano 12, n.46, p. 77-119, abril/jun. 2003; CUEVA, op. cit.; MAIA, F. J. F. O habeas data e a tutela da dignidade da pessoa humana na vida privada. Revista de Direitos e Garantias Fundamentais, Vitória-ES, n. 12, p. 269-303, jul./dez. 2012; NAVARRO, A. M. N. P. O Direito Fundamental à Autodeterminação Informativa. In: NASPOLINI SANCHES, S. H D. F.; DUARTE, F.; ALENCAR, M. L. P. (Coord.). CONPEDI/UFF. (Org.). Direitos fundamentais e democracia II. XXI Congresso Nacional do CONPEDI. FUNJAB, 2012, p. 429-458; SATO, S. T. Os bancos de dados cadastrais de proteção ao crédito após 86 Processo e Conexões Humanas expressões, sem diferenciar um aspecto técnico-jurídico que dois autores espanhóis fazem. Antonio Enrique Pérez Luño aposta na metamorfose do direito à intimidade para incluir a proteção de dados pessoais em seu âmbito de proteção. Advoga que o conceito de intimidade emergiu do filosófico foro interno, intrassubjetivo, estático, da interioridade ao foro externo, dinâmico, prático, da alteridade, respeitadas suas implicações intersubjetivas. À delimitação conceitual do direito à intimidade, antes referido como a faculdade de se isolar, adicionou-se, portanto, o poder de controle sobre as informações/dados pessoais. Tal dilatação conceitual se conecta a capacidade de interação da pessoa humana, assumindo esta uma postura de sujeito socializado, que não renuncia, igualmente, a sua individualidade 21. Pablo Lucas Murillo de la Cueva afirma que o direito à autodeterminação informativa se constrói a partir da noção de intimidade 22, mas é autônomo em relação a esta, por ser um novo direito fundamental que inclui a proteção de dados pessoais. Defende o tratamento diferenciado destes dois direitos, para que os problemas específicos que suscitam a informática invoquem a defesa jurídica dos dados pessoais desde uma posição de a sanção da Lei 8.078/90 e o cadastro positivo. Nova Lima, MG: Faculdade de Direito Milton Campos. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Direito Milton Campos, 2010. Disponível em: <http://www.mcampos.br/posgraduacao/Mestrado/dissertacoes/2010/s aratoshiesatoosbancosdedadoscadastraisdeprotecaoaocredito.pdf>. Acesso em 30 set. 2014.; SOUZA, V. R. C. O acesso à informação na legislação brasileira. Revista da Seção Judiciária do Rio de Janeiro, v. 19, p. 161-181, 2011. 21 PÉREZ LUÑO, A-E. Informática y libertad: Comentario al artículo 18.4 de la Constitución. Revista de estudios políticos, nº 24, p. 31-54, 1981; PÉREZ LUÑO, A-E. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitución. Madrid: Tecnos, 2005; PÉRE LUÑO, A-E. La protección de los datos personales del menor en internet. Anuario Facultad de Derecho (Universidad de Alcalá), n 2, p. 143-175, 2009. 22 MURILLO DE LA CUEVA, P. L. El derecho a la autodeterminación informativa. Tecnos: Madrid, 1990, p. 25. 87 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico independência sistemática com relação a outros perfis da intimidade 23. Emergem, pois, dois aspectos distintos da vigente estrutura do direito à intimidade: ad se – ad alteros/interioridade – alteridade que podem ser identificados com a faculdade de se obstar a intromissão na sua vida privada e familiar e de se impedir o acesso, a divulgação e a alteração de informações pessoais 24. Este direito deve ser encarado numa dupla perspectiva 25: (a) uma subjetiva, que se refere à capacidade dos seus titulares gozarem de capacidade jurídica para se defenderem da utilização abusiva de informações pessoais por parte do Estado; e (b) uma objetiva, que impõe ao Estado a defesa contra violações de terceiros a este 23 Cf.: MURILLO DE LA CUEVA, P. L. La primera jurisprudencia sobre el derecho a la autodeterminación informativa.Datospersonales.org: La revista de la Agencia de Protección de Datos de la Comunidad de Madrid, ISSN-e 1988-1797, Nº. 1, 2003. Disponível em: <http://www.madrid.org/cs/Satellite?c=CM_Revista_FP&cid=110926 5815854&esArticulo=true&idRevistaElegida=1109265601339&langu age=es&pag=1&pagename=RevistaDatosPersonales%2FPage%2Fho me_RDP&siteName=RevistaDatosPersonales>. Acessoem: 2 maio 2013; MURILLO DE LA CUEVA, P. L. La construcción del derecho a la autodeterminación informativa. Revista de estudios políticos, nº 104, p. 35-60, 1999; MURILLO DE LA CUEVA, P. L. La protección de los datos de carácter personal en el horizonte de 2010, Anuario de la Facultad de Derecho (Universidad de Alcalá), nº. 2, p. 131-142, 2009; MURILLO DE LA CUEVA, P. L. Perspectivas del derecho a la autodeterminación informativa. IDP: revista de Internet, derecho y política = revista d'Internet, dret i política, nº. 5, 2007. Disponível em: <http://www.uoc.edu/idp/5/dt/esp/lucas.pdf>. Acessoem: 2 maio 2013; MURILLO DE LA CUEVA, P. L. Derechos fundamentales y avances tecnológicos: Los riesgos del progreso. Boletín Mexicano de Derecho Comparado, nº. 109, p. 72-110, 2004. 24 FARIÑAS MATONI, L. M. El derecho a la intimidad. Madrid: Editorial Trivium, 1983. 25 CASTRO, C. S. O direito à autodeterminação informativa e os novos desafios gerados pelo direito à liberdade e à segurança no pós 11 de Setembro. In: Congreso Iberoamericano de Derecho Constitucional: Derecho constitucional para el siglo XXI, 8., 2006, Sevilla (Epaña)/ Universidad de Sevilla, Actas..., Navarra: Aranzadi, 2006, p. 16391661. 88 Processo e Conexões Humanas direito, quer ele denominado de proteção de dados pessoais, quer ele chamado de “autodeterminação informativa”. Para agregar esta problematização doutrinária, cumpre aduzir que o marco normativo brasileiro, em comparação com outros sistemas jurídicos, ainda é incapaz de atender as demandas sobre a proteção dos dados pessoais ou sobre a autodeterminação informativa. Nada obstante, com a publicação do Marco Civil (Lei 12.965/2014), e em que pese não ser a proteção dos dados pessoais o seu objeto principal, é necessário saber se a sua redação é coerente com os dois projetos de lei que versam especificamente sobre esta temática. Estas observações serão elencadas no tópico a seguir. II. A PROTEÇÃO DOS DADOS PESSOAIS NO MARCO NORMATIVO BRASILEIRO (DISCURSO NORMATIVO) Em que pese seu advento ser antes dos aludidos impulsos tecnocráticos, com uma interpretação evolutiva e indivisível dos direitos humanos (art. 5° da Declaração e Programa de Ação de Viena de 1993), pode-se vislumbrar a proteção dos dados pessoais no art. 12 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (DUDH), no art. 17 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP) 1966 (Decreto nº 592, de 06/07/1992) e no art. 11 do Pacto de San José da Costa Rica (PSJCR) de 1969 (Decreto n° 678, de 6/11/1992). Não destoante deste sentido é a exortação do item 45 da Declaração de Santa Cruz de La Sierra, documento final da XIII Cumbre IberoAmericana de Chefes de Estado e de Governo, firmada pelo Brasil em 15 de novembro de 2003, onde se lê que: Estamos também conscientes de que a protecção de dados pessoais é um direito fundamental das pessoas e destacamos a importância das 89 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico iniciativas reguladoras iberoamericanas para proteger a privacidade dos cidadãos, contidas na Declaração de Antigua, pela qual se cria a Rede Ibero-Americana de Protecção de Dados, aberta a todos os países da nossa Comunidade. O reconhecimento da proteção de dados pessoais pode ser defendido, se adotada a posição de Pérez Luño pela conjugação do âmbito de proteção do inciso III, do art. 1° (dignidade da pessoa humana); do inciso X (vida privada) e do inciso LXXII (habeas data), do art. 5º da CF-88. Também pode ser reconhecido tal direito, dentro da perspectiva autônoma defendida por Murillo de la Cueva, com a inteligência do art. 5º, § 2º, da CF-88, como direito fundamental atípico 26. Nada obstante, é mais que certo que o hermeneuta constitucional não pode ignorar a dimensão política, a abertura e a densidade que estão presentes em qualquer dispositivo normativo inserto na Constituição. 27Ademais, a interpretação constitucional deve ser contextualizada e feita em condições social, ideológica, econômica e historicamente determinadas, além de impregnadas de valores, que geram os usos linguísticos dos que deve partir qualquer atribuição de significado. 28 É por 26 GOUVEIA, J. B. Os direitos fundamentais atípicos. Aequitas Editorial Notícias: Lisboa, 1995, passim. 27 CANOTILHO, J. J. G.; MACHADO, J. E. M. “Reality shows” e Liberdade de Programação. Coimbra: Coimbra Editora, 2003. PÉREZ ROYO, J. Curso de Derecho Constitucional. rev. Manuel Carrasco Durán. Madrid: Marcial Pons, 2005. CADEMARTORI, L. H. U.; DUARTE, F. C. Hermenêutica e Argumentação Neoconstitucional. 1.ed. São Paulo: Atlas, 2009. 28 PÉRE LUÑO, A-E. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitución. Madrid: Tecnos, 2005. NUNES JÚNIOR, V. S. Interpretação constitucional. In: DE LUCCA, N.; MEYER-PFLUG, S. R.; BAETA NEVES, M. B. (Org.). Direito Constitucional Contemporâneo: Homenagem ao professor Michel Temer. São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 301-311. 90 Processo e Conexões Humanas isso que ao teor do que foi exposto é forçoso concluir que, apesar de não se equiparar aos moldes normativos europeus da “autodeterminação informativa”, pode-se falar em um direito fundamental à proteção de dados pessoais 29 no Brasil. Esta afirmação não incorre em um “jusfundamentalismo”, como já advertiu Vieira de Andrade 30 em seu relevante texto “Os direitos fundamentais do século XXI”, pois está de acordo com a coerência espiritual do conjunto normativo dos direitos fundamentais. Isso porque ao comentar esta coerência, o constitucionalista lusitano ilustra com palavraschave o itinerário e a evolução histórica para a inclusão no catálogo de novos direitos fundamentais: (a) a acumulação, pois em cada momento histórico se formulam novos direitos, típicos do seu tempo, que se somam aos antigos ou até se acrescentam sob novos aspectos; (b) a variedade, que é potencializada pela acumulação, mas justificada porque os direitos fundamentais não são estruturalmente uniformes e têm diversas dimensões normativas; (c) a abertura, que resulta da despretensão de um catálogo constitucional exauriente, por aceitar a existência de direitos não escritos ou de faculdades implícitas e pela expectativa de que surjam novos direitos ou novas dimensões de direitos antigos conforme as ameaças e as necessidades de proteção dos bens pessoais nas circunstâncias de cada época. De fato, como demonstrado no tópico anterior, o direito à proteção de dados pessoais se enquadra neste iter, pois se apresenta como mais uma proteção da “dignidade da pessoa contra os perigos que resultam das estruturas do poder na 29 DONEDA, D. A proteção dos dados pessoais como um direito fundamental. Espaço Jurídico Journal of Law, Joaçaba-SC, v. 12, n. 2, p. 91-108, jul./dez. 2011. 30 ANDRADE, V. Os direitos fundamentais do século XXI. In: Congreso Iberoamericano de Derecho Constitucional: Derecho constitucional para el siglo XXI, 8., 2006, Sevilla (Epaña)/ Universidad de Sevilla, Actas..., Navarra: Aranzadi, 2006, p. 1.0511078. 91 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico sociedade [...] contra a explosão dos fenômenos de tratamento automatizado, conexão, transmissão e utilização de dados pessoais.” 31 Sem embargo, com a “progressão geracional” legislativa descrita no tópico anterior é importante ressaltar que a Convenção de Strasbourg e as Guidelines da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) propuseram princípios básicos (Fair Information Principles) que passaram a serem encontrados em várias normativas sobre proteção de dados pessoais 32: (a) princípio da publicidade (ou da transparência), pelo qual a existência de um banco de dados com dados pessoais deve ser de conhecimento público; (b) princípio da exatidão, os dados armazenados devem ser fiéis à realidade; (c) princípio da finalidade, pelo qual qualquer utilização dos dados pessoais deve obedecer à finalidade comunicada ao interessado antes da coleta de seus dados; (d) princípio do livre acesso, pelo qual o indivíduo tem acesso ao banco de dados no qual suas informações estão armazenadas; (e) princípio da segurança física e lógica, pelo qual os dados devem ser protegidos contra os riscos de seu extravio, destruição, modificação, transmissão ou acesso não autorizado 33. Podem ser lidos no artigo 43 da Lei 8.078, de 11/09/1990 (CDC): no §4° (princípio da publicidade); no §3° (princípio da exatidão); no caput e no §1° (princípio do livre acesso); no §3º (princípio da segurança física e lógica). O princípio da finalidade pode ser lido via interpretação sistemática e teleológica destes enunciados normativos. Raciocínio parecido pode ser visto na Lei nº 12.414, de 09/06/2011 (Lei do Cadastro Positivo-LCP) e no seu regulamento, o Decreto 7.829 de 17/10/2012 (Dec. 7.829). Numa interpretação dialógica, pode-se ler o (a) princípio da publicidade no art. 4°, da LCP e no Capítulo I do Dec. 7.829; o (b) princípio da exatidão no art. 3° §§1° e 2°, da LCP e no art. 6° do Dec. 7.829; o (c) princípio da finalidade no art. 7º, da LCP, e no Capítulo V do Dec. 7.829; o (d) princípio do livre acesso no 31 ANDRADE, op. cit., p. 1052-1055. DONEDA, D. A proteção dos dados pessoais... op. cit., p. 100. 33 DONEDA, D. ibdem. 32 92 Processo e Conexões Humanas art. 3° § 1°, art. 5° e art. 6°, da LCP, e no Capítulo V do Dec. 7.829; e o (e) princípio da segurança física e lógica nos artigos 7°, 8°, 9° e 11, da LCP e nos Capítulos V e VI, do Dec. 7.829. Por oportuno, importantes são a Lei n° 12.527, de 18/11/2011 (Lei de Acesso à Informação - LAI) e o Decreto 7.724, de 16/05/2012 (Dec. 7.724). A LAI inclui “dado” no conceito de informação (art. 4°, I), e conceitua informação pessoal como sendo “aquela relacionada à pessoa natural identificada ou identificável” (art. 4°, IV). O Dec. 7.724 diz que informação pessoal é a “relacionada à pessoa natural identificada ou identificável, relativa à intimidade, vida privada, honra e imagem” (art. 3°, V). O inciso III, do artigo 6º da LAI protege a informação pessoal “observada a sua disponibilidade, autenticidade, integridade e eventual restrição de acesso”. A LAI no Capítulo IV (Das restrições de acesso à informação) dedica a Seção V para a proteção das informações pessoais. O Dec. 7.724 direciona o Capítulo VII para este fim. As duas normas responsabilizam o agente público ou militar que divulgar ou permitir a divulgação ou acessar ou permitir acesso indevido à informação pessoal (art. 32, IV, da LAI; art. 65, IV, do Dec.7.724). Além disso, a LAI prevê que os órgãos e entidades públicas respondem diretamente pelos danos causados em decorrência da divulgação não autorizada ou utilização indevida de informações pessoais, cabendo a apuração de responsabilidade funcional nos casos de dolo ou culpa, assegurado o respectivo direito de regresso. Aplica-se também este enunciado à pessoa física ou entidade privada que, em virtude de vínculo de qualquer natureza com órgãos ou entidades, tenha acesso a informação pessoal e a submeta a tratamento indevido (art. 34). Ainda que o inciso I, do art. 4°, da LAI inclua “dado” dentro do conceito de “informação”, a preferência da terminologia “proteção de dados pessoais” e não “autodeterminação informativa”, pode ser defendida porque “dado” seria uma informação em estado potencial (préformação), e “informação” alude a algo além da representação 93 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico contida no dado (cognição) 34. Nesta linha, Rodolfo Daniel Uicich (1999) distingue entre (a) dado anônimo: dado estatístico ou geral que não personaliza nem permite a personalização; (b) dado nominativo, referente a uma pessoa determinada, (b1) dado nominativo direto, quando permite a identificação sem necessidade de nenhum processo, (b2) dado nominativo indireto, quando permite a identificação com processamento de dados; (c) dado nominativo sensível, afeta ou pode afetar intimidade; (d) dado nominativo não sensível, é pessoal, está destinado a ser público (documento de identidade). Há leis setoriais donde se extrai a proteção de dados pessoais, tais como as Leis nº 9.296/96 e nº 10.217/01, que dispõem sobre a interceptação telefônica e a gravação ambiental e que tratam também dos dados aí envolvidos; a Lei Complementar nº 105/01, sobre o sigilo das operações de instituições financeiras e outras providências; a Lei nº 9.613/98 (modificada pela Lei n° 12.683/12), referente à lavagem de dinheiro; e o Código Civil, que em seus artigos 12 a 21 protege os direitos da personalidade. Ainda, cumpre anotar a Lei nº 12.737, de 30/11/2012 (Lei Carolina Dieckmann) que dispõe sobre a tipificação criminal de delitos informáticos e acrescenta ao Código penal os artigos 154-A e 154-B. Registra-se, ademais, a Lei 9.507/97, que regula o direito de acesso a informações e disciplina o rito processual do habeas data. Todavia, a exceção do artigo 7°, na maioria de seus artigos trata de aspectos processuais revelando pouco sobre o conteúdo semântico sobre o tema. Em trâmite no Congresso, dois dos principais projetos de lei merecem foco: o PL-4.060/2012 dispõe sobre o tratamento de dados pessoais e está apensado ao PL-3.558/2012 que versa sobre a utilização de sistemas biométricos. Sobre a coerência destes e que está redigido no Marco Civil é que agora se passa a expor. 34 Ibid., p. 94. 94 Processo e Conexões Humanas III. O MARCO CIVIL E A PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS: COERÊNCIAS COM OS PLS 4060/2012 E 3558/2012 A ideia embrionária da Lei 12.965/2014 procede do PL 2126/2011, que surgiu no X Fórum Internacional do Software Livre em 2009, como reação ao PL 84/99 que buscava, primordialmente, tipificar condutas na Internet. A Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (SAL-MJ) em parceria com Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getúlio Vargas (CTS-FVG) criaram um texto com potência colaborativa da chamada WEB 2.0 35, posto em discussão on-line no site Cultura Digital 36 em outubro de 2009. Em 45 dias, 800 comentários foram acolhidos e incorporados ao texto inicial. Foi submetido à discussão novamente por pouco mais de 50 dias, com 1200 comentários que formaram uma terceira redação, organizada e reunida pelo CTS/FGV e SAL-MJ. Após, encaminhou-se a redação final ao Congresso Nacional. Ao mesmo tempo em que a discussão on-line tomava dimensões maiores, debates presenciais e audiências públicas, organizados pela SAL-MJ, aconteciam em todo o Brasil para divulgar o Marco Civil e obter a opinião de diversos setores da sociedade 37. Até a sua publicação, várias considerações foram feita e algumas alterações substanciais realizadas, as quais aqui não cabem análise tão depurada. Entretanto, é inegável afirmar que é um texto fundamentalmente principiológico. Foi dividido em seis partes principais: (i) fundamentos, princípios e objetivos; (ii) 35 SOUZA, C. A. P.; MACIEL, M.; FRANCISCO, P. A. Marco civil na Internet: uma questão de princípio. In: FALCÃO, J.; FABRIS, L.; BOTTINO, T. [et. all]. Cadernos FGV DIREITO RIO: educação e Direito. Rio de Janeiro, FGV DIREITO RIO, 2011, p. 116. 36 MARCO CIVIL. Minuta de anteprojeto de lei para debate colaborativo, 2010. Disponível em: <http://culturadigital.br/marcocivil/debate/>. Acesso em 30 set. 2014. 37 FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito do Rio de Janeiro. Relatório de políticas de Internet: Brasil 2011. São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2012, p. 19-23. 95 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico direitos e garantias dos usuários; (iii) responsabilidades dos provedores; (iv) guarda de registros por provedores de Internet; (v) neutralidade de rede; (vi) a atuação do Poder Público. A lei 12.965/2014, pois, apresentou-se como a lei possível, e não a lei ideal, seguida de críticas e elogios, decorrente dos distintos interesses envolvidos em cada um de seus temas, o que deixa a cargo da doutrina e da jurisprudência o exame de sua efetividade, nos seus diversos pontos (BITELLI, 2014). Quanto ao tratamento especificamente do direito à proteção de dados pessoais, a lei 12.965/2014 o situou como um dos princípios que disciplina o uso da internet no Brasil (art. 3º, III). Logo no seu art. 7.º, VII e X, dispôs sobre utilização de dados pessoais fixando que só poderá ocorrer se os titulares manifestarem consentimento livre, expresso e informado, o qual poderá ser revogado a qualquer momento pelo próprio indivíduo, que tem direito à exclusão definitiva de todos os dados pessoais que tiver fornecido ao site. A lei cuidou de prever o direito dos indivíduos de consentir ou não com a transferência a terceiros de seus dados pessoais. A guarda e a disponibilização de dados pessoais teve amparo no art. 10 ao constar que tais condutas devem atender à preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das partes direta ou indiretamente envolvidas. Acrescentando a discussão, tramitam no Congresso Nacional dois projetos de lei que merece nossa atenção, são eles: PL 4060/2012 que dispõe sobre o tratamento de dados pessoais, e dá outras providências, de autoria do Deputado Milton Monti e o PL 3558/2012 que dispõe sobre a utilização de sistemas biométricos, a proteção de dados pessoais e dá outras providências, de autoria do Deputado Arman Vergílio. Considerando no que ambos versam sobre matéria comum, convém examinar a coerência protetiva entre eles no tocante à proteção de dados pessoais que resulta na Lei 12.965/2014. A determinação de que é indispensável o consentimento inequívoco do titular para o armazenamento de dados pessoais é compartilhado no art. 4º, § 1º, PL 3558/2012, no art. 12, PL 4060/2012 e no art. 7º, VII, IX, Lei 12.965/2014. Nesta última 96 Processo e Conexões Humanas acrescentando que em aplicações de internet é vedada a guarda de dados pessoais que sejam excessivos em relação à finalidade para a qual foi dado consentimento pelo seu titular (art. 16, II). Quanto à retificação, exclusão ou bloqueio na manutenção e/ou transmissão dos dados pessoais, os projetos de lei, bem como na Lei 12.965/2014 coadunam no mesmo sentido prevendo dispositivos que garantem ao indivíduo a retificação e livre permissão ao cancelamento quanto ao acesso aos seus dados pessoais (art. 6º, PL 3558/2012; art. 15, parágrafo único, PL 4060/2012; art. 7º, X, Lei 12.965/2014). Há também uma convergência quanto à aplicação da jurisdição nacional, no tocante à questão da territorialidade, pois no art. 11 da Lei 12.965/2014 há imposição de que deverão ser obrigatoriamente respeitados a legislação brasileira e os direitos à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas e dos registros quando qualquer operação de coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, de dados pessoais ou de comunicações por provedores de conexão e de aplicações de internet em que pelo menos um desses atos ocorra em território nacional, ainda que as atividades sejam realizadas por pessoa jurídica sediada no exterior, desde que oferte serviço ao público brasileiro ou pelo menos uma integrante do mesmo grupo econômico possua estabelecimento no Brasil. O artigo 4o, do PL 4060 estabelece que sua aplicação aos tratamentos de dados pessoais realizados em território nacional, por pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, ainda que o correspondente banco de dados, representado por arquivos, registros ou quaisquer outras bases de processamento, esteja, permanente ou provisoriamente, armazenado em território estrangeiro. E o artigo 3o, do PL 3558/2012 estatui que toda pessoa com domicílio no país, seja física ou jurídica, privada ou pública, tem direito à proteção de seus dados pessoais gerados em território brasileiro, ainda que armazenados no exterior. A grande incoerência surge no tocando a responsabilização daqueles que tratam os dados pessoais, em que pese, cada projeto de lei e a própria legislação terem adotado critérios e definições distintas à cerca da matéria. O projeto de lei 97 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico 3558/2012 prevê no seu artigo 7º, §2º, a responsabilidade objetiva estabelecida na legislação civil, por considerar que a proteção de dados pessoais é uma atividade de risco, inobstante não fazer referência a provedores de aplicações de Internet, e centrar-se na infrações administrativa que violam as regras jurídicas de uso e proteção ou vulneram a privacidade dos dados pessoais obtidos mediante a utilização de sistema biométricos (art. 7º, caput). O projeto de lei 4060/2012, relativiza o instituto da responsabilidade ao passo que invoca de maneira genérica o princípio da lealdade e boa fé (art. 9º) no tratamento de dados pessoais. Determina apenas que os responsáveis devem adotar medidas tecnológicas aptas a reduzir ao máximo o risco (art. 11). Não prevê sanções quando infringidas as suas determinações quanto ao trato de dados, e, por outro lado, garante o direito dos responsáveis pelo tratamento de dados pessoais de compartilhálos, inclusive para fins de comunicação comercial, com empresas integrantes de um mesmo grupo econômico, parceiros comerciais ou terceiros que ajam em conjunto (art. 14), e, ainda, que ao término ou bloqueio do tratamento dos dados pessoais, possa conservá-los ou compartilhá-los com terceiros para finalidades históricas, estatísticas ou de pesquisa científica (art. 16). Retira, desta forma, certa autonomia do titular dos dados em questão. Por sua vez, a lei 12.965/2014, trata da responsabilidade quanto à manutenção dos registros de conexão (art. 13, § 1º) determinando que não pode ser transferida inadvertidamente a terceiros. E ainda, na provisão de conexão, onerosa ou gratuita, veda a guarda dos registros de acesso a aplicações de internet. Atribui ao administrador de sistema autônomo respectivo o dever de manter os registros de conexão, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de 1 (um) ano, nos termos do regulamento. Faculta à autoridade policial ou administrativa ou o Ministério Público um requerimento cautelar para que os registros de conexão sejam guardados por prazo superior a um ano, mas pontua que a autoridade requerente terá o prazo de 60 (sessenta) dias, contados a partir do requerimento, 98 Processo e Conexões Humanas para ingressar com o pedido de autorização judicial de acesso aos registros. Nada obstante, disciplina que em qualquer hipótese, a disponibilização ao requerente dos registros está sob reserva de jurisdição e que as sanções pelo descumprimento ao disposto na Lei considerarão a natureza e a gravidade da infração, os danos dela resultantes, eventual vantagem auferida pelo infrator, as circunstâncias agravantes, os antecedentes do infrator e a reincidência. Nos artigos seguintes, dispõe que o provedor de aplicações de internet constituído na forma de pessoa jurídica e que exerça essa atividade de forma organizada, profissionalmente e com fins econômicos deverá manter os respectivos registros de acesso a aplicações de internet, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de 6 (seis) meses, nos termos do regulamento. A guarda dos registros de acesso a aplicações de internet, desde que se trate de registros relativos a fatos específicos em período determinado, pode ser ordenada por autoridade judicial, por tempo certo, a os provedores de aplicações de internet. O artigo 16 regula que na provisão de aplicações de internet, onerosa ou gratuita, é vedada a guarda dos registros de acesso a outras aplicações de internet sem que o titular dos dados tenha consentido previamente, respeitado o disposto no art. 7o; ou de dados pessoais que sejam excessivos em relação à finalidade para a qual foi dado consentimento pelo seu titular. Fixa que a opção por não guardar os registros de acesso a aplicações de Internet não implica responsabilidade sobre danos decorrentes do uso desses serviços por terceiros (art. 17) e ainda exime o provedor de conexão a internet de responsabilização civil por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros (art. 18). CONCLUSÕES 99 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico Apesar da sua incontestável importância, a proteção de dados pessoais é ainda um tema a ser melhor desenvolvido no Brasil. O exame realizado sobre os dois discursos (científico, normativo) demonstra que é necessária certa habilidade jurídica para que o cidadão tenha ciência deste direito e invoque sua proteção jurisdicional. Esta manifesta dificuldade de ubiquidade científica e normativa do direito à proteção de dados pessoais contrasta com o próprio logos do bem jurídico que se quer proteger: a informação/dados pessoais. Com efeito, sobre o discurso científico, apesar de não haver a distinção técnico-científica levantada por Pérez Luño e Murillo de la Cueva, é de se concluir ser mais coerente a expressão “direito à proteção de dados pessoais”. Por um lado, por ser mais abrangente, pois inclui a proteção de informações pessoais. Por outro, a “autodeterminação informativa” é utilizada em sistemas jurídicos com proteção jurídico-normativa consolidada (a exemplo de Portugal, Espanha e Alemanha). A importação desta expressão, por não corresponder à realidade jurídica brasileira, pode levar a um juízo de negação teórica e prática deste direito. Com a leitura do discurso normativo, é forçoso convergir que apesar de não se equiparar aos moldes estrangeiros, pode-se falar em um direito fundamental à proteção de dados pessoais (art. 1°, III c/c art. 5º, X, LXXII, CF-88). Tal direito pode ser lido na legislação esparsa (Lei 8.078/1990, Lei nº 12.414/2011, Decreto 7.829/2012, Lei n° 12.527/2011, Decreto 7.724/2012, Lei nº 9.296/1996, Lei nº 10.217/2001, Lei Complementar nº 105/2001, Lei nº 9.613/1998, Lei n° 12.683/2012, Lei 10.406/2002, Lei nº 12.737/2012, Lei 9.507/1997). Ainda no tocante ao discurso normativo brasileiro, a Lei 12.965/2014 – Marco Civil da Internet, com seu texto fundamentalmente principiológico, em que pese ter situado o direito a proteção de dados pessoais como um dos princípios que disciplina o uso da internet no Brasil, deixa a cargo da doutrina e da jurisprudência o exame de sua efetividade. Representa um grande avanço na consolidação deste direito ao passo que 100 Processo e Conexões Humanas salvaguardou o direito à preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem, bem como fixou a exigência da manifestação consciente e livre, expressa e informada do titular quanto a disponibilização de seus dados pessoais, e até a exclusão definitiva destes. Quanto ao exame do Marco Civil da Internet em contraponto com os projetos de lei 3558/212 e 4060/2012, estes apresentam coerência protetiva aos dados pessoais nos seguintes aspectos: (i) consentimento inequívoco do titular para o armazenamento de dados pessoais, (ii) retificação, exclusão ou bloqueio na manutenção e/ou transmissão dos dados pessoais e (iii) aplicação da jurisdição nacional, no tocante à questão da territorialidade. A incoerência entre a lei 12.965/2014 e os PLs reside na responsabilização daqueles que tratam os dados pessoais, em que pese a lei ter isentado o provedor de conexão à internet de responsabilização civil por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros, o PL 3558/212 prever a responsabilidade objetiva estabelecida na legislação civil, enquanto que o PL 4060/2012 relativiza o instituto da responsabilidade ao passo que invoca de maneira genérica o princípio da lealdade e boa-fé. REFERÊNCIAS ATHENIENSE, A. As transações eletrônicas e o direito de privacidade. Fórum Administrativo: Direito Público, Belo Horizonte, v. 2, n. 19, p. 1170-1177, set. 2002. BARRIENTOS-PARRA, J. D.; BORGES MELO, E. C. O Direito à Intimidade na Sociedade Técnica: rumo a uma política pública em matéria de tratamento de dados pessoais. Revista de Informação Legislativa, ano 45, v. 180, p. 197-214, out./dez. 2008. CADEMARTORI, L. H. U.; DUARTE, F. C. Hermenêutica e Argumentação 101 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico Neoconstitucional. 1.ed. São Paulo: Atlas, 2009. CANOTILHO, J. J. G.; MACHADO, J. E. M. “Reality shows” e Liberdade de Programação. Coimbra: Coimbra Editora, 2003. CARVALHO, A. P. G. O consumidor e o direito à autodeterminação informacional: considerações sobre os bancos de dados eletrônicos. Revista de direito do consumidor (RT), ano 12, n.46, p. 77-119, abril/jun. 2003. CASTELLS, M. A sociedade em rede. 7. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003. CASTRO, C. S. O direito à autodeterminação informativa e os novos desafios gerados pelo direito à liberdade e à segurança no pós 11 de Setembro. In: Congreso Iberoamericano de Derecho Constitucional: Derecho constitucional para el siglo XXI, 8., 2006, Sevilla (Epaña)/ Universidad de Sevilla, Actas..., Navarra: Aranzadi, 2006, p. 1639-1661. CUEVA, R. V. B. Há um direito a autodeterminação informativa no Brasil? In: MUSSI, J.; SALOMÃO, L. F.; MAIA FILHO, N. N. (Org.). Estudos jurídicos em homenagem ao Ministro Cesar Asfor Rocha. Ribeirão Preto: Migalhas, 2012, v.3, p. 220241. DONEDA, D. A proteção dos dados pessoais como um direito fundamental. Espaço Jurídico Journal of Law, Joaçaba-SC, v. 12, n. 2, p. 91-108, jul./dez. 2011. ______. Da privacidade à proteção dos dados pessoais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. 102 Processo e Conexões Humanas ______. Iguais mas separados: o Habeas Data no ordenamento jurídico brasileiro e a proteção de dados pessoais. Cadernos da Escola de Direito e Relações Internacionais (UniBrasil), v. 9, p. 14-32, 2008. DRUMMOND, V. Internet, privacidade e dados pessoais. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003. FARIÑAS MATONI, L. M. El derecho a la intimidad. Madrid: Editorial Trivium, 1983. FOLHA DE S. PAULO. Apple, Google e outras empresas pedem aos EUA para revelar dados sobre vigilância. 18 jul. 2013a. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ mundo/2013/07/1312990-apple-google-e-outras-empresaspedem-aos-eua-para-revelar-dados-sobre-vigilancia.shtml> Acesso em 30 de set. 2014. ______. Facebook pede permissão para divulgar mais dados sobre pedidos do governo dos EUA. 9 set. 2013b. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/tec/2013/09/1339243-facebookpede-permissao-para-divulgar-mais-dados-sobre-pedidos-dogoverno-dos-eua.shtml> Acesso em 30 de set. 2014. GEDIEL, J. A. P; CORRÊA, A. E. Proteção jurídica de dados pessoais: a intimidade sitiada entre o estado e o mercado. Revista da Faculdade de Direito (UFPR), Curitiba, v. 47, p. 141-153, 2008. GOUVEIA, J. B. Os direitos fundamentais atípicos. Aequitas Editorial Notícias: Lisboa, 1995. GUERRA, S. C. S. O direito à privacidade na internet: uma discussão da esfera privada no mundo globalizado. Rio de janeiro: América Jurídica, 2004. LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: 34, 1999. 103 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico LIMBERGER T. Da evolução do direito a ser deixado em paz, à proteção dos dados pessoais. Novos Estudos Jurídicos, v. 14, n. 2, p. 27-53, 2º Quadrimestre 2009. ______. Da evolução do direito a ser deixado em paz, à proteção dos dados pessoais. Revista do Direito (UNISC), v. 30, p. 138160, 2008. ______. A informática e a proteção à intimidade. Revista de Direito Constitucional e Internacional, v.8, n.33, p.110-124, out./dez 2000. LOPÉZ DÍAZ, E. El derecho al honor y el derecho a la intimidad: jurisprudencia y doctrina. Dykinson, Madrid: 1996. MAIA, F. J. F. O habeas data e a tutela da dignidade da pessoa humana na vida privada. Revista de Direitos e Garantias Fundamentais, Vitória-ES, n. 12, p. 269-303, jul./dez. 2012. MATOS, A. N. S. Privacidade e honra nas relações de consumo: uma análise a partir dos bancos de dados e da cobrança vexatória. Curitiba, PR: Universidade Federal do Paraná, Setor de Ciências Jurídicas e Sociais, 2007. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Paraná, 2007. Disponível em: <http://dspace.c3sl.ufpr.br:8080/dspace/bitstream/handle/18 84/11634/%28Microsoft%20Word%20%20DISSERTA.pdf?sequence=1>.Acesso em 30 set. 2014. MENDES, L. S. F. Transparência e privacidade: violação e proteção da informação pessoal na sociedade de consumo. Brasília, DF: Universidade de Brasília, 2008. Dissertação de Mestrado, Universidade de Brasília, 2008. Disponível em:<http://repositorio.bce.unb.br/bitstream/104 82/4782/1/DISSERTACAO%20LAURA.pdf>. Acesso em 3 set. 2014. MURILLO DE LA CUEVA, P. L. Derechos fundamentales y avances tecnológicos: Los riesgos del progreso. Boletín Mexicano de Derecho Comparado, nº. 109, p. 72-110, 2004. 104 Processo e Conexões Humanas ______. El derecho a la autodeterminación informativa. Tecnos: Madrid, 1990. ______. La construcción del derecho a la autodeterminación informativa. Revista de estudios políticos, nº 104, p. 35-60, 1999. ______. La primera jurisprudencia sobre el derecho a la autodeterminación informativa. Datospersonales.org: La revista de la Agencia de Protección de Datos de la Comunidad de Madrid, ISSN-e 1988-1797, nº. 1, 2003. Disponível em: <http://www.euskomedia.org/ PDFAnlt/azpilcueta/20/20043058.pdf >. Acesso em 30 set. 2014. ______. La protección de los datos de carácter personal en el horizonte de 2010, Anuario de la Facultad de Derecho (Universidad de Alcalá), nº. 2, p. 131-142, 2009. ______. Perspectivas del derecho a la autodeterminación informativa. IDP: revista de Internet, derecho y política = revista d'Internet, dret i política, nº. 5, 2007. Disponível em: <http://www.uoc.edu/idp/5/dt/esp/lucas.pdf>. Acesso em 30 set. 2014. NAVARRO, A. M. N. P. O Direito Fundamental à Autodeterminação Informativa. In: NASPOLINI SANCHES, S. H D. F.; DUARTE, F.; ALENCAR, M. L. P. (Coord.). CONPEDI/UFF. (Org.). Direitos fundamentais e democracia II. XXI Congresso Nacional do CONPEDI. FUNJAB, 2012, p. 429-458. NUNES JÚNIOR, V. S. Interpretação constitucional. In: DE LUCCA, N.; MEYER-PFLUG, S. R.; BAETA NEVES, M. B. (Org.). Direito Constitucional Contemporâneo: Homenagem ao professor Michel Temer. São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 301-311. 105 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico PÉRE LUÑO, A-E. La protección de los datos personales del menor en internet. Anuario Facultad de Derecho (Universidad de Alcalá), n 2, p. 143-175, 2009. ______. Derechos Humanos, Estado Constitución. Madrid: Tecnos, 2005. de Derecho y ______. Informática y libertad: Comentario al artículo 18.4 de la Constitución. Revista de estudios políticos, nº 24, p. 31-54, 1981. PÉREZ ROYO, J. Curso de Derecho Constitucional. rev. Manuel Carrasco Durán. Madrid: Marcial Pons, 2005. PEZZI, A. P. J. A necessidade de proteção dos dados pessoais nos arquivos de consumo: em busca da concretização do direito à privacidade. São Leopoldo, RS: Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2007. Dissertação de Mestrado (Universidade do Vale do Rio dos Sinos), 2007. Disponível em: <http://dominiopublico.mec.gov.br/download/teste/arqs/cp0428 24.pdf>. Acesso em 30 set. 2014. PINHEIRO, C. R. Cadastro Positivo: a possibilidade de acesso ao crédito como um dos caminhos para o desenvolvimento social. Rio de Janeiro: RJ, 2012. Dissertação de Mestrado, Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, 2012. Disponível em: <http://bibliotecadigital. fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/9792/Caroline%20da%20 Rosa%20Pinheiro.pdf?sequence=1>. Acesso em 30 set. 2014. RAMOS, A. C. O pequeno irmão que nos observa: os direitos dos consumidores e os bancos de dados de consumo no Brasil. Revista de Direito do Consumidor(RT), São Paulo, ano 14, n°53, p.39-53, jan./mar. 2005. REINALDO FILHO, D. A privacidade na Sociedade da Informação. In: REINALDO FILHO D. (Coord.). Direito da Informática, temas polêmicos. Bauru, SP: Edipro, 2002. 106 Processo e Conexões Humanas REVISTA CONSULTOR JURÍDICO. Novo iPhone protege usuário contra busca de dados no aparelho. 28 set. 2014a. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014-set-28/iphonebloqueia-acesso-grampo-autorizacao-judicial> Acesso em 30 set. 2014. ______. Sistema da Polícia Federal pode estar repassando aos EUA grampos feitos no Brasil. 27 set. 2014b. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014-set-27/eua-podem-estaracessando-autorizacao-grampos-feitos-brasil> Acesso em 30 set. 214. RUARO, R., RODRIGUEZ, D., FINGER, B. O direito à proteção de dados pessoais e a privacidade. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, n° 53, p. 45-66, 2011. Disponível em: <http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/direito/article/view/3076 8/19876>. Acesso em 30 set. 2014. SATO, S. T. Os bancos de dados cadastrais de proteção ao crédito após a sanção da Lei 8.078/90 e o cadastro positivo. Nova Lima, MG: Faculdade de Direito Milton Campos. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Direito Milton Campos, 2010. Disponível em: <http://www.mcampos.br/posgraduacao/Mestrado/dissertacoes/ 2010/saratoshiesatoosbancosdedadoscadastraisdeprotecaoaocre dito.pdf>. Acesso em 30 set. 2014. SOUZA, V. R. C. O acesso à informação na legislação brasileira. Revista da Seção Judiciária do Rio de Janeiro, v. 19, p. 161181, 2011. WATFE, C. G. C. A internet e a violação da intimidade e privacidade. Maringá. PR: Centro Universitário de Maringá, 2006. Dissertação de Mestrado, Centro Universitário de Maringá, 2006. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraFor m.do?sel ect_action=&co_obra=59555>. Acesso em 30 set. 2014. 107 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico MODELOS DE REGULACION DE PROTECCION DE DATOS PERSONALES. ÉNFASIS EN EL MODELO ADOPTADO POR COLOMBIA Claudia Milena Botero Giraldo1 RESUMEN: En la actualidad, la protección de datos personales ha tomado un gran auge en diversos países, en los cuales se han establecido regímenes que intentan resolver en parte la problemática del tratamiento indiscriminado de grandes volúmenes de información que se recopilan en diferentes trámites, transacciones o comunicaciones que se realizan, la mayoría de ellos, a través de medios electrónicos. ABSTRACT: At present, the protection of personal data has taken a boom in several countries, which have established regimes to partially solve the problem of indiscriminate treatment of large volumes of information collected in different procedures, transactions or communications that most of them are carried out by electronic means. PALAVRAS-CHAVES: Protección de datos personales Data protection I. INTRODUCCIÓN Cada día las personas están tomando más conciencia sobre la protección de sus datos personales, los cuales son recolectados en diferentes trámites, transacciones o actividades de cualquier índole. Es de anotar que la proliferación de datos personas en todos los ámbitos se ha debido en gran manera al auge del 1 Abogada / Magister en Derecho Empresarial / Especialista en Derecho Comercial. Especialista en Derecho de las Telecomunicaciones y del Comercio Electrónico 108 Processo e Conexões Humanas Internet, el comercio electrónico, el fenómeno de las redes sociales, entre otros aspectos relacionados con tecnología e información, que han permitido que los datos estén al alcance de un “clic”. Los gobiernos, preocupados por esta situación, han impulsado iniciativas para regular el tratamiento indiscriminado de los datos personales, logrando que en la actualidad muchos países en el mundo ya cuenten con una legislación sobre esta materia. Este artículo tiene por objeto hacer una breve revisión de los modelos de regulación de protección de datos personales en el mundo, haciendo especial énfasis en el modelo colombiano y destacando sus principales características. 1. ANTECEDENTES DERECHO A LA PERSONALES DE LA REGULACIÓN DEL PROTECCIÓN DE DATOS Los antecedentes del derecho a la protección de datos personales, surgen en torno al derecho a la intimidad, incluido en la Declaración Universal de los Derechos Humanos (ONU) de 1948, mencionando en su artículo 12 que “Nadie será objeto de injerencias arbitrarias en su vida privada, su familia, su domicilio o su correspondencia, ni de ataques a su honra o a su reputación. Toda persona tiene derecho a la protección de la ley contra tales injerencias o ataques”. El Diccionario de la Real Academia Española define la intimidad como la “zona espiritual íntima y reservada de una persona o de un grupo, especialmente de una familia”. Gils Carbó afirma que las leyes sobre tratamiento de datos personales nacieron en Europa para frenar el avance del poder público, por eso se desarrollaron principalmente en países 109 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico que habían transitado cruentos períodos de persecución política y discriminación 2. Diversos tratadistas 3 coinciden en afirmar que la primera ley de protección de datos fue dictadas en Alemania en el año 1970, a los pocos años Suecia dictó su primera ley “Data Act”, luego la Privacy Act nortemaricana en el año 1974 y así poco a poco fueron surgiendo otras normas relativas al tratamiento de datos personales. 2. MODELOS DE REGULACIÓN DE PROTECCIÓN DE DATOS PERSONALES Diferentes formas o modelos de regulación jurídica están adoptando los países con la finalidad de proteger los datos personales del mal uso o tratamiento de los mismos. Por un lado tenemos: (i) el modelo norteamericano que se destaca por contener leyes sectoriales en materia de protección de datos; y, por el otro, (ii) el modelo europeo que contempla leyes generales y sectoriales, con una autoridad de control. Al respecto, el profesor Remolina Angarita destaca como diferencias de uno y otro, que el sistema europeo concibe la protección de datos como un derecho fundamental, mientras que el enfoque norteamericano sobre esta materia no considera la protección de datos como un derecho fundamental, sino como un derecho del consumidor 4. 2.1. MODELO NORTEAMERICANO O SECTORIAL 2 Alejandra M. Gils Carbó. Régimen Legal de las bases de datos y habeas data. Pág. 3. Ed. La Ley (2001). 3 Alejandra Gils Carbó, Miguel A. Ekmekdjian y Pizzolo, entre otros (estos últimos citados por Freddy Osssio Onofre en Protección de Datos Personales. Pág. 60. Ed. M.V. (2009). 4 Nelson Remolina Angarita. Tratamiento de datos personales. Aproximación internacional y comentarios a la Ley 1581 de 2012. Pág.19. Ed. Legis (2013). 110 Processo e Conexões Humanas El primer modelo mencionado, está orientado a la protección de los datos personales en ámbitos especiales en las cuales se puede presentar un mayor riesgo en el tratamiento automatizado de datos personales que puede tener efectos perjudiciales para los titulares de los datos. Estados Unidos es uno de los países que ha implementado leyes de carácter sectorial, v. gr. en temas fiscales. Como lo afirma Palazzi 5, Estados Unidos se limitó a la aprobación de leyes de protección de datos personales, adoptando un enfoque casuístico y muy cauto, legislando sólo en ciertos sectores 6 y promoviendo la autorregulación como una supuesta alternativa eficiente a la regulación estatal. La legislación norteamericana propende por la protección de la libre circulación de información, siendo la excepción su control. Es de anotar que en el sector privado han cobrado importancia las buenas prácticas que han acogido las empresas de adoptar códigos de autorregulación, en especial de actividades industriales. Resulta de interés mencionar los denominados Safe Harbor Privacy Principles, traducido al español como Principios de Puerto Seguro, que deben observar las empresas o entidades estadounidenses para obtener el visto bueno de la Unión Europea, que permita garantizar un nivel de privacidad similar al europeo y pueda de esta forma presentarse transmisiones o transferencias de datos de los países miembros de la Unión Europea sin restricciones ni sanciones. 2.2. MODELO EUROPEO O GENERAL 5 Pablo A. Palazzi. La transmisión Internacional de Datos Personales y la Protección de la Privacidad. Pág. 25. Ed. Ad-Hoc. (2002) 6 Los Estados Unidos protegen la privacidad en sectores tales como: registros estatales, informes crediticios, registros de conducción, registros sobre alquileres de video, información sobre suscriptores de televisión por cable, entre otros. 111 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico Este modelo tiene como objetivo la protección general de los datos personales, frente a su tratamiento indiscriminado en los sectores público y privado. A inicios de la década del 70 los países europeos comenzaron a promulgar leyes en esa materia. 25 años después, la Unión Europea decidió unificar estas legislaciones mediante Directiva 95/46/CE del Parlamento Europeo y del Consejo, de 24 de octubre de 1995, relativa a la protección de las personas físicas en lo que respecta al tratamiento de datos personales y a la libre circulación de estos datos 7. Gran parte de los países latinoamericanos han acogido este modelo, el cual concibe el derecho a la privacidad como un derecho humano, siendo la protección de datos esencial para proteger ese derecho a través de un régimen bien articulado y de práctica aplicación. 3. EL MODELO ADOPTADO EN COLOMBIA EN MATERIA DE PROTECCIÓN DE DATOS PERSONALES En Colombia existe un modelo híbrido sobre protección de datos personales, el cual comprende la Ley 1581 de 2012, conocida como Ley General de Protección de Datos Personales; y la Ley 1266 de 2008 o Ley de Habeas Data que es una ley sectorial enfocada en la regulación del tratamiento del dato personal crediticio, financiero, comercial y de servicios. 3.1. ANTECEDENTES DEL RÉGIMEN JURÍDICO SOBRE PROTECCIÓN DE DATOS PERSONALES Para describir y explicar el régimen jurídico vigente en Colombia en materia de protección de datos personales, es necesario remitirse al artículo 15 de la Constitución Política el cual establece, en su primer inciso, dos derechos autónomos 7 Directiva 95/46/CE del Parlamento Europeo y del Consejo del 24/10/1995 relativa a la protección de las personas físicas en lo que respecta al tratamiento de datos personales y a la libre circulación de estos datos, publicada en Diario Oficial, no. l. 281, 23/11/1995, pp. 31 y ss. 112 Processo e Conexões Humanas como son el derecho a la intimidad y el derecho al habeas data, los cuales han sido objeto de desarrollo jurisprudencial por parte de la Corte Constitucional 8. 3.1.1. EL DERECHO A LA INTIMIDAD Sobre el derecho a la intimidad, el artículo 15 de la Constitución estipula que todas las personas tienen derecho a su intimidad personal y familiar y agrega que el Estado debe respetarlos y hacerlos respetar. Al respecto, la Corte Constitucional reiteradamente ha señalado que el derecho a la intimidad permite y garantiza a los asociados, el poder contar con una esfera o espacio de vida privada no susceptible de la interferencia arbitraria de las demás personas, que al ser considerado un elemento esencial del ser, se concreta en el derecho a poder actuar libremente en la mencionada esfera o núcleo, en ejercicio de la libertad personal y familiar, sin más limitaciones que los derechos de los demás y el ordenamiento jurídico 9. La doctrina, a su vez, ha definido este derecho como el espacio de personalidad de los sujetos que no puede llegar a ser por ningún motivo, salvo por su propia elección, de dominio público 10. Tradicionalmente, como lo sostiene Gils Carbó 11, el ejercicio del derecho a la intimidad implicaba la exclusión de las demás personas de la esfera privada. Sin embargo, los avances tecnológicos llevaron a cambiar esta visión individualista de la 8 Entre las sentencias que marcan la evolución jurisprudencial sobre la relación entre el derecho a la intimidad y el derecho al habeas data, se pueden consultar la T-414/92, T-022/93, SU-082/95, T-176/95 y T261/95. 9 Corte Constitucional. Sentencia T-517. (M.P. Alejandro Martínez Caballero; 21 de Septiembre de 1998). 10 Eduardo Novoa Monreal. Derecho a la vida privada y libertad de información: Un conflicto de derechos. Pág. 49. Ed. Siglo XX. (1971). 11 Alejandra M. Gils Carbó. Régimen Legal de las Bases de Datos y Hábeas Data. Pág. 13. Ed. La Ley. (2001). 113 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico protección de la intimidad, dando paso a un nuevo enfoque en el que el acceso lícito a información sobre las personas constituye una expresión más de la libertad en una sociedad moderna y democrática. 3.1.2. AUTODETERMINACIÓN INFORMÁTICA Consiste en la facultad de disponer de la información, de preservar la propia identidad informática, es decir, de permitir, controlar o rectificar los datos concernientes a la personalidad del titular de los mismos y que, como tales, lo identifican ante los demás 12. En criterio de la Corte Constitucional colombiana, la autodeterminación informática es uno de los elementos que componen la temática general del habeas data y que consiste en las facultades que tiene un titular para autorizar o controlar la conservación, uso y circulación de sus datos personales. 3.1.3. EL DERECHO AL HABEAS DATA En cuanto al derecho al habeas data 13, establece el mencionado artículo 15 de la Constitución Política que todas las 12 Corte Constitucional. Sentencia 414. (M.P. Ciro Angarita Barón: 16 de junio de 1992). 13 En principio, el derecho al habeas data fue considerado como una manifestación del derecho a la intimidad. Sin embargo, esta garantía estaba marcada por un matiz individualista destinada a proteger un espacio privado sin posibilidades de injerencias ajenas o del Estado, y por tanto, las limitaciones propias del derecho a la intimidad no son suficientes para responder a las necesidades del flujo de la información moderna. Por el contrario, se está ante el nacimiento de un nuevo derecho, el de habeas data, en el que la privacidad “no implica sencillamente la falta de información sobre nosotros por parte de los demás, sino más bien el control que tenemos sobre las informaciones que nos conciernen” Lusky, L., “Invasion of Privacy: a Clarification of Concepts. Palazzi por su parte, considera que el habeas data es una herramienta del derecho procesal constitucional que contempla derechos de acceso, rectificación y corrección de los datos sobre la persona y sus bienes, incluyéndose en algunos supuestos la posibilidad 114 Processo e Conexões Humanas personas tienen derecho a conocer, actualizar y rectificar las informaciones que se hayan recogido sobre ellas en bancos de datos y en archivos de entidades públicas y privadas 14. Varios fallos de la Corte Constitucional han interpretado el derecho al habeas data en forma generosa, precisando el carácter, contenido y alcance del habeas data 15, señalando que su núcleo esencial estriba en la defensa del derecho a la autodeterminación informática, en cuya virtud la persona a la cual se refieren los datos que reposan en un archivo público o privado está facultada para autorizar su conservación, uso y circulación 16. El derecho al habeas data 17, que como se mencionó es conocido también como el derecho a la autodeterminación de supresión de la información. En ciertos casos este derecho de acceso es visto como una extensión del derecho a la privacidad, como sucede en Guatemala, Nicaragua y Paraguay; en otros es una nueva acción constitucional, como ocurre en la Argentina, Brasil, Perú y Venezuela. (Pablo A. Palazzi. La transmisión Internacional de Datos Personales y la Protección de la Privacidad. Pág. 95. Editorial AD-HOC. (2002). 14 Las constituciones de Argentina, Brasil, Chile, México, Paraguay, Perú, Ecuador y Venezuela, entre otros, también incluyen principios constitucionales, relacionados con habeas data y privacidad. 15 Pablo A. Palazzi. La transmisión Internacional de Datos Personales y la Protección de la Privacidad. Pág. 66. Editorial AD-HOC. (2002). 16 Corte Constitucional. Sentencia SU-082. (M.P. Jorge Arango Mejía; 1º de Marzo de 1995). 17 De acuerdo con la sentencia C-1011 de 2008, la Corte nuevamente reconoció la autonomía del derecho al habeas data y lo conceptualizó así: “El hábeas data confiere, (…), un grupo de facultades al individuo para que, en ejercicio de la cláusula general de libertad, pueda controlar la información que de sí mismo ha sido recopilada por una central de información. En ese sentido, este derecho fundamental está dirigido a preservar los intereses del titular de la información ante el potencial abuso del poder informático.” 115 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico informativa o informática 18, a juicio de la Corte, está compuesto por 19: 1. El derecho de las personas a conocer la información que sobre ellas está recogida en bases de datos 20, lo que conlleva el acceso a las bases de datos donde se encuentra dicha información. 2. El derecho a incluir nuevos datos con el fin de que se provea una imagen completa del titular. 3. El derecho a actualizar la información, es decir, a poner al día el contenido de dichas bases de datos. 4. El derecho a que la información contenida en bases de datos sea rectificada o corregida, de tal manera que concuerde con la realidad. 5. El derecho a excluir información de una base de datos, bien porque se está haciendo un uso indebido de ella, o por simple voluntad del titular, salvo las excepciones previstas en la normativa. 3.1.4. PROTECCIÓN DE DATOS PERSONALES La protección de datos personales también se desprende del artículo 15 de la Constitución Política, el cual prescribe en su inciso 2º que “en la recolección, tratamiento y circulación de datos se respetarán la libertad y demás garantías consagradas en la Constitución”. 18 Esta denominación viene siendo utilizada para referirse a la facultad de toda persona para ejercer control sobre la información personal que le concierne y, en particular, sobre aquellos datos que son almacenados mediante medios informáticos (Herminia Campuzano Tomé. Vida Privada y Datos Personales. Pág. 54. Editorial Tecnos. 2000). 19 Corte Constitucional. Sentencia C-1011. (M.P. Jaime Córdoba Triviño; 16 de Octubre de 2008). 20 El literal b) del artículo 3º de la Ley 1581 de 2012, define base de datos como el conjunto organizado de datos personales que sea objeto de tratamiento. 116 Processo e Conexões Humanas Algunos autores 21 distinguen entre “derecho de la protección de datos” y “derecho a la protección de datos”; el primero se refiere al conjunto de normas y principios que son utilizados para la salvaguarda de los derechos de las personas que pueden verse afectadas por el tratamiento de sus datos22; mientras que el segundo es definido como la facultad conferida a la persona para actuar por sí misma y para exigir del Estado la protección de sus derechos que pueden verse afectados con ocasión del acceso, registro o transmisión a terceros de sus datos personales. Otros, como Puccinelli 23, consideran que la protección de datos personales es un derecho fundamental de las personas, un derecho de nueva generación que forma parte de lo que la doctrina ha denominado cuarta generación de derechos humanos, la cual se encuentra especialmente vinculada con las nuevas tecnologías y con la globalización, con la libertad de expresión en la red y la libre circulación de información, con el acopio vertiginoso de información, con el manejo o manipulación de la información y también con la democratización en el acceso a la información. Por su parte, De La Calle Restrepo, se refiere a la protección de datos como “la parte del derecho que estudia las normas o principios orientados a proteger los derechos de las personas que se pueden ver afectados por la administración, en cualquiera de sus formas (recolección, acopio, tratamiento, 21 Ana Brian Nougreres. De la protección de datos personales y la cooperación internacional. Anuario de Derecho Informático Nº VI. Montevideo. (2006). 22 En este mismo sentido, Nelson Remolina Angarita se refiere al término data protection para designar el conjunto de normas y principios que regulan el tratamiento de datos personales en todas sus etapas (recolección, almacenamiento, circulación, publicación y transferencia nacional e internacional). Nelson Remolina ET AL. Internet Comercio Electrónico & Telecomunicaciones. Grupo De Estudios en Internet Comercio Electrónico & Telecomunicaciones. Pág. 101. Ed. Legis. (2002). 23 Oscar Puccinelli. El Habeas Data en Indoiberoamérica. Pág. 65. Ed. Temis. (1999). 117 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico divulgación u otras actividades), de la información que le concierne a dicho titular de parte de otros organismos o personas y las normas y principios que buscan regular y fijar directrices para el ejercicio de los derechos de las empresas, organizaciones o personas que administran dicha información o que la usan para fines legítimos” 24. Con las anteriores definiciones, se puede advertir que no existe una conceptualización unificada en torno al término “protección de datos personales”, ya que por algunos es concebido como un derecho; y por otros como un régimen jurídico aplicable al tratamiento de datos personales. Sin embargo, teniendo en cuenta las consideraciones de la Corte Constitucional, al afirmar que el derecho fundamental del habeas data tiene como finalidad la protección de los datos en un mundo globalizado, en el que el acceso a la Sociedad de la Información y el conocimiento es cada vez mayor, protección esta que responde, además, a la importancia que tales datos revisten para la garantía de otros derechos como la intimidad, el buen nombre, el honor y la honra 25, se puede decir, entonces, que la protección de datos personales nace como una garantía tendiente a asegurar la aplicación práctica del derecho al habeas data. 3.1.5. EL DERECHO A LA INFORMACIÓN En contraste con los derechos a la intimidad, habeas data y protección de datos personales, se encuentra el derecho a la información, consagrado en el artículo 20 de la Constitución Política, el cual establece en su primer inciso que “se garantiza a toda persona la libertad de expresar y difundir su pensamiento y opiniones, la de informar y recibir información veraz e imparcial, y la de fundar medios masivos de comunicación”. 24 José Miguel De La Calle Restrepo. Autodeterminación Informativa y habeas data en Colombia. Pág. 127. Ed. Temis. (2009). 25 Corte Constitucional. Sentencia T-260. (M.P. Humberto Antonio Sierra Porto; 29 de Marzo de 2012). 118 Processo e Conexões Humanas El derecho a la información lo ha explicado la jurisprudencia constitucional, como la propensión innata del hombre hacia el conocimiento de los seres humanos con los cuales se interrelaciona y de su entorno físico, social, cultural y económico, lo cual le permite reflexionar, razonar sobre la realidad, adquirir experiencias e incluso transmitir a otros la información y el conocimiento recibidos 26. Agrega la Corte Constitucional, que el contenido del derecho a la información trasciende e implica la posibilidad de recibir, buscar, investigar, almacenar, procesar, sistematizar, analizar, clasificar y difundir informaciones, concepto éste genérico que cubre tanto las noticias de interés para la totalidad del conglomerado como los informes científicos, técnicos, académicos, deportivos o de cualquier otra índole y los datos almacenados y procesados por archivos y centrales informáticas 27. Con el avance de la tecnología que facilita el acceso a la información, en la actualidad se brinda una gran relevancia al derecho que tienen las personas a conocer información sobre diversos aspectos. Como sostiene De La Calle Restrepo, “así como se ha dado una notable evolución del concepto de intimidad, lo que ha permitido el nacimiento del derecho a la autodeterminación informativa o libertad informática, así mismo ha evolucionado significativamente la libertad de información, libertad que en la actualidad es también más amplia y compleja que en el pasado”28 Lo anterior, precisa el mismo autor, ha llevado a la doctrina y al legislador a analizar y aplicar ambos derechos de forma conjunta y a hacer un mayor esfuerzo por armonizar los 26 Corte Constitucional. Sentencia SU-056. (M.P. Antonio Barrera Carbonell; 16 de Febrero de 1995). 27 Corte Constitucional. Sentencia C-073. (M.P. José Gregorio Hernández; 1996). 28 De La Calle Restrepo. Ob. cit., pág. 25. 119 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico intereses en juego, ante lo cual los países han optado por expedir regulaciones especiales que permitan establecer directrices bajo las cuales debe funcionar cualquier actividad relacionada con el manejo de información personal, de tal forma que se amparen los derechos fundamentales de las personas titulares de datos personales, pero también los intereses y derechos de los usuarios o destinatarios de la información. 3.2. NORMATIVIDAD SOBRE PROTECCIÓN DE DATOS COLOMBIA HABEAS DATA Y PERSONALES EN Hasta hace poco el derecho al habeas data, en Colombia, estaba circunscrito al desarrollo jurisprudencial del mismo 29 y a la Ley 1266 de 2008 o llamada Ley de Habeas Data 30. Ante la necesidad de contar con una legislación más amplia al respecto 31, el Congreso colombiano expidió la Ley estatutaria 1581 de 2012, por la cual se dictan disposiciones generales para la protección de datos personales, cuyo ámbito de aplicación abarca los datos personales registrados en cualquier base de datos que los haga susceptibles de tratamiento por entidades de naturaleza pública o privada 32. 29 Algunas sentencias de la Corte Constitucional referidas a este derecho (antes de la expedición de la Ley 1266 de 2008), son: T414/92; SU-008/93; T-197/94, T-303/98, T-307/99; T-142/00; T578/01; T-1085/01 y T-257/02, entre otras. 30 Esta ley debe ser analizada teniendo en cuenta la sentencia de la Corte Constitucional C - 1011 de 2008 que la declaró exequible con algunas precisiones que hizo esa alta corporación; e igualmente la complementan los Decretos Reglamentarios Nos. 1727 de 2009 y 2952 de 2010. 31 En Colombia también se cuenta desde el año 2009, con la Ley 1273, conocida como ley de delitos informáticos, la cual adicionó al Código Penal, el título VII BIS denominado “De la Protección de la información y de los datos”, que incluye el artículo 269 F, que penaliza la violación de datos personales. 32 La Corte Constitucional emitió el 6 de Octubre de 2011, la sentencia de constitucionalidad C-748 de la citada Ley, cuyo texto fue dado a conocer el 25 de Julio de 2012. 120 Processo e Conexões Humanas La Superintendencia de Industria y Comercio, a través de la Delegatura para la Protección de Datos Personales, ejerce la vigilancia tendiente a garantizar que en el tratamiento de datos personales se respeten los principios, derechos, garantías y procedimientos previstos en las mencionadas leyes. 3.2.1. LEY 1266 DE 2008 - LEY DE HABEAS DATA La Ley 1266 de 2008 es catalogada como una ley sectorial que regula parcialmente el derecho fundamental al habeas data, concentrada en las reglas para la administración de datos personales de naturaleza financiera, crediticia, comercial, de servicios y la proveniente de terceros países con idéntica naturaleza, destinados al cálculo del riesgo crediticio, razón por la cual no puede considerarse como un régimen jurídico que regule, en su integridad, el derecho al habeas data. Esta ley aplica a todos los datos de información personal registrados en un banco de datos, sean estos administrados por entidades de naturaleza pública o privada, define el concepto de dato personal 33 y lo clasifica en público, semiprivado y privado, entre otros aspectos. Los principios que incluye esta ley para la administración de datos son 34: - Principio de veracidad o calidad de los registros o datos. La información contenida en los bancos de datos debe ser veraz, completa, exacta, actualizada, comprobable y comprensible. Se prohíbe el registro y divulgación de datos parciales, incompletos, fraccionados o que induzcan a error; 33 Es cualquier pieza de información vinculada a una o varias personas determinadas o determinables o que puedan asociarse con una persona natural o jurídica. Los datos impersonales no se sujetan al régimen de protección de datos de la ley. 34 Art. 4º Ley 1266 de 2008. 121 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico - Principio de finalidad. La administración de datos personales debe obedecer a una finalidad legítima de acuerdo con la Constitución y la ley. La finalidad debe informársele al titular de la información previa o concomitantemente con el otorgamiento de la autorización, cuando ella sea necesaria o en general siempre que el titular solicite información al respecto; - Principio de circulación restringida. La administración de datos personales se sujeta a los límites que se derivan de la naturaleza de los datos, de las disposiciones de la ley y de los principios de la administración de datos personales especialmente de los principios de temporalidad de la información y la finalidad del banco de datos. Los datos personales, salvo la información pública, no podrán ser accesibles por Internet o por otros medios de divulgación o comunicación masiva, salvo que el acceso sea técnicamente controlable para brindar un conocimiento restringido sólo a los titulares o los usuarios autorizados conforme a la ley; - Principio de temporalidad de la información. La información del titular no podrá ser suministrada a usuarios o terceros cuando deje de servir para la finalidad del banco de datos; - Principio de interpretación integral de derechos constitucionales. Esta ley se interpretará en el sentido de que se amparen adecuadamente los derechos constitucionales, como son el hábeas data, el derecho al buen nombre, el derecho a la honra, el derecho a la intimidad y el derecho a la información. Los derechos de los titulares se interpretarán en armonía y en un plano de equilibrio con el derecho a la información previsto en el artículo 20 de la Constitución y con los demás derechos constitucionales aplicables; - Principio de seguridad. La información que conforma los registros individuales constitutivos de los bancos de datos a que se refiere la ley, así como la resultante de las consultas que de ella hagan sus usuarios, se deberá manejar con las medidas técnicas que sean necesarias para garantizar la seguridad de los 122 Processo e Conexões Humanas registros evitando su adulteración, pérdida, consulta o uso no autorizado; - Principio de confidencialidad. Todas las personas naturales o jurídicas que intervengan en la administración de datos personales que no tengan la naturaleza de públicos están obligadas en todo tiempo a garantizar la reserva de la información, inclusive después de finalizada su relación con alguna de las labores que comprende la administración de datos, pudiendo sólo realizar suministro o comunicación de datos cuando ello corresponda al desarrollo de las actividades autorizadas en la ley y en los términos de la misma. 3.2.2. LEY 1581 DE 2012 – LEY GENERAL DE PROTECCIÓN DE DATOS PERSONALES La Ley 1581 de 2012 constituye el marco general de la protección de los datos personales en Colombia, que al coexistir con la Ley 1266 de 2008, ha dado paso a un sistema híbrido de protección en el que confluyen una ley de principios generales 35 con otras regulaciones sectoriales 36, que deben leerse en concordancia con la ley general, pero que introduce reglas específicas que atienden a la complejidad del tratamiento de cada tipo de dato 37. El 27 de Junio de 2013, la Ley 1581 de 2012 fue reglamentada a través del Decreto 1377, en aspectos tales como la autorización del titular de información para el tratamiento de sus datos personales, las políticas de tratamiento de los 35 Hace referencia a la Ley 1581 de 2012. Principalmente la Ley 1266 de 2008. 37 Corte Constitucional. Sentencia C-748. (M.P. Jorge Ignacio Pretelt Chaljub; 6 de Octubre de 2011). 36 123 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico responsables 38 y encargados 39, el ejercicio de los derechos de los titulares de información, las transferencias de datos personales y la responsabilidad demostrada frente al tratamiento de datos personales. La Ley General de Protección de datos establece una serie de principios para el tratamiento de datos personales 40, que se detallan a continuación: - Principio de legalidad en materia de tratamiento de datos: Según este principio, el tratamiento41 de datos personales es una actividad reglada que debe sujetarse a lo establecido en la Ley 1581 de 2012 y en las demás disposiciones que la desarrollen 42. - Principio de finalidad: se refiere a que el tratamiento de datos personales debe obedecer a una finalidad legítima de acuerdo con la Constitución y la Ley, la cual debe ser informada al titular. - Principio de libertad: el tratamiento sólo puede ejercerse con el consentimiento, previo, expreso e informado del titular 43. Los datos personales no podrán ser obtenidos o divulgados sin previa 38 El literal e) del artículo 3º de la Ley 1581 de 2012, define al responsable del Tratamiento como: persona natural o jurídica, pública o privada, que por sí misma o en asocio con otros, decida sobre la base de datos y/o el Tratamiento de los datos. 39 Encargado del Tratamiento es la persona natural o jurídica, pública o privada, que por sí misma o en asocio con otros, realice el Tratamiento de datos personales por cuenta del Responsable del Tratamiento (literal d) del artículo 3º de la Ley 1581 de 2012). 40 Art. 4º Ley 1581 de 2012 41 Se refiere a cualquier operación o conjunto de operaciones sobre datos personales, tales como la recolección, almacenamiento, uso, circulación o supresión (literal g) del artículo 3º de la Ley 1581 de 2012). 42 Literal a) del artículo 4º de la Ley 1581 de 2012. 43 Persona natural cuyos datos personales sean objeto de tratamiento (Literal f) del artículo 3º Ley 1581 de 2012). 124 Processo e Conexões Humanas autorización, o en ausencia de mandato legal o judicial que releve el consentimiento 44. Sobre el particular, la Ley 1581 de 2012 establece en su artículo 10º, los casos en los que no es necesaria la autorización del titular para el tratamiento de los datos y aclara que quien acceda a los datos personales sin que medie autorización previa deberá en todo caso cumplir con las disposiciones contenidas en dicha ley. - Principio de veracidad o calidad: La información sujeta a tratamiento debe ser veraz, completa, exacta, actualizada, comprobable y comprensible. Se prohíbe el tratamiento de datos parciales, incompletos, fraccionados o que induzcan a error. - Principio de transparencia: En el tratamiento debe garantizarse el derecho del titular a obtener del responsable del tratamiento o del encargado del tratamiento, en cualquier momento y sin restricciones, información acerca de la existencia de datos que le conciernan. Este principio lo ha explicado la jurisprudencia 45 como el derecho del titular de acceder, en cualquier momento a la información que sobre él reposa en una base de datos 46. 44 Este principio no fue incluido expresamente en la Ley 1266 de 2008, sin embargo, en la sentencia T-729 de 2002, en la cual se recopilan todos los principios de creación de la jurisprudencia, la Corte Constitucional se refirió al principio de libertad, mencionando que los datos personales sólo pueden ser registrados y divulgados con el consentimiento libre, previo y expreso del titular, de tal forma que se encuentra prohibida la obtención y divulgación de ellos de manera ilícita (ya sea sin la previa autorización del titular o en ausencia de mandato legal o judicial). 45 Corte Constitucional. Sentencia C-748. (M.P. Jorge Ignacio Pretelt Chaljub. 6 de octubre de 2011). 46 Sin embargo, debe precisarse que la información que debe ofrecerse al titular de los datos debe ser cualificada y por tanto cuando procese datos personales, el responsable o encargado del tratamiento de datos debe ofrecer, como mínimo, la siguiente información a la persona afectada: (i) información sobre la identidad del controlador de datos, 125 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico - Principio de acceso y circulación restringida: el tratamiento de los datos personales se sujeta a los límites que se derivan de la naturaleza de los datos personales, de las disposiciones de la ley y la Constitución. En este sentido, éste sólo podrá hacerse por personas autorizadas por el titular y/o por las personas previstas en la ley. Los datos personales, salvo la información pública, no podrán estar disponibles en Internet u otros medios de divulgación o comunicación masiva, salvo que el acceso sea técnicamente controlable para brindar un conocimiento restringido sólo a los titulares o terceros autorizados conforme a la ley. - Principio de seguridad: La información sujeta a tratamiento por el responsable del tratamiento o encargado del tratamiento, se debe manejar con las medidas técnicas, humanas y administrativas que sean necesarias para otorgar seguridad a los registros evitando su adulteración, pérdida, consulta, uso o acceso no autorizado o fraudulento. En el análisis de constitucionalidad de la Ley 1581 de 2012, la Corte enfatiza que de este principio se deriva la responsabilidad que recae en el administrador del dato. Agrega que el afianzamiento del principio de responsabilidad ha sido una de las preocupaciones actuales de la comunidad internacional, en razón del efecto “diluvio de datos” 47, a través del cual día a día la masa de datos personales existente, objeto de tratamiento y de ulterior transferencias, no cesa de aumentar. (ii) el propósito del procesamiento de los datos personales, (iii) a quien se podrán revelar los datos, (iv) cómo la persona afectada puede ejercer cualquier derecho que le otorgue la legislación sobre protección de datos, y (v) toda otra información necesaria para el justo procesamiento de los datos (Sentencia C-748 de 2011). 47 El término es utilizada por el Dictamen 3/2010 sobre el principio de responsabilidad, emitido por el Grupo de Protección de Datos de la Unión Europea. 126 Processo e Conexões Humanas - Principio de confidencialidad: Todas las personas que intervengan en el tratamiento de datos personales que no tengan la naturaleza de públicos están obligadas a garantizar la reserva de la información, inclusive después de finalizada su relación con alguna de las labores que comprende el tratamiento, pudiendo sólo realizar suministro o comunicación de datos personales cuando ello corresponda al desarrollo de las actividades autorizadas en la ley 1581 de 2012 y en los términos de la misma. CONCLUSIONES Es una realidad que nos encontramos frente a la problemática del tratamiento indiscriminado de datos personales en todos los ámbitos y que los gobiernos están haciendo esfuerzos por promover iniciativas que tiendan a regular dicho tratamiento en aras de proteger los derechos de los titulares de los datos. Hemos visto que los principales referentes de regulación han sido el modelo norteamericano y el modelo europeo, pero su adopción dependerá en cierta medida de los aspectos culturales, jurídicos y tecnológicos propios de cada país, pero lo que no se puede dejar de un lado es la necesidad de garantizarle a cada persona el ejercicio de los derechos que tiene sobre sus datos y en lo posible evitar un mal uso de los mismos. Colombia ha logrado complementar la regulación del derecho al habeas data con la expedición de la Ley 1581 de 2012, conocida como Ley General de Protección de Datos Personales, que coexiste con la Ley 1266 de 2008 que se trata de una ley sectorial enfocada al dato personal comercial, crediticio, financiero y de servicios. A pesar de que ya han transcurrido casi dos años desde la expedición de la Ley General de Protección de Datos Personales, muchas entidades públicas y privadas a las cuales les aplica la ley, se encuentran en la actualidad en proceso de implementación de las medidas técnicas y jurídicas que permitan dar cumplimiento a los requerimientos de la misma. 127 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico La Superintendencia de Industria y Comercio, autoridad en protección de datos personales en Colombia, ha estado adelantando jornadas de sensibilización de la normatividad sobre protección de datos, pero también tiene dentro de sus funciones, una importante labor de supervisión y control estando facultada para imponer sanciones que van desde un monto considerable de multa hasta el cierre de las operaciones que involucren el tratamiento de datos personales. Para este fin y en aras de dar publicidad a la existencia de bases de datos de carácter personal y servir de herramienta de supervisión para la efectiva protección de los derechos de los titulares, dicha Superintendencia se encuentra en proceso de implementación del Registro Nacional de Bases de Datos, el cual se encuentra reglamentado por el Decreto 886 de 2014 y en el cual se tendrán que inscribir las bases de datos que contengan datos personales cuyo tratamiento automatizado o manual se realice por personas naturales o jurídicas, de naturaleza pública o privada, en el territorio colombiano o fuera de él, en este último caso, siempre que al responsable del tratamiento o al encargado del tratamiento le sea aplicable la legislación colombiana en virtud de normas y tratados internacionales. REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS Alejandra M. Gils Carbó. Régimen Legal de las Bases de Datos y Hábeas Data. La Ley. (2001) Freddy Ossio Onofre. Protección de Datos Personales ¿Habeas Data o Sistema de Data Protection? Universidad Real Cámara Nacional de Comercio. (2010). Herminia Campuzano Tomé. Vida Privada y Datos Personales. Ed. Tecnos. (2000). José Miguel De La Calle Restrepo. Autodeterminación Informativa y Habeas Data en Colombia. Análisis de la Ley 1266 de 2008. Jurisprudencia y derecho comprado. Temis. (2009) Laura Nahabetián Brunet. Protección de Datos Personales y Acceso a la Información Pública ¿Derechos Fundamentales en Conflicto? Biblioteca Básica de Documentación (2012) 128 Processo e Conexões Humanas Lucrecio Rebolledo Delgado. María Mercedes Serrano Pérez. Introducción a la Protección de Datos. 2ª edición. Dykinson. (2008). Luis Joyanes. Cibersociedad. Los retos sociales ante un nuevo mundo digital. Ed. Mc Graw Hill. (1997). Nelson Remolina ET AL. Internet Comercio Electrónico & Telecomunicaciones. Grupo De Estudios en Internet Comercio Electrónico & Telecomunicaciones. Ed. Legis. (2002). Nelson Remolina Angarita. Tratamiento de datos personales Aproximación internacional y comentarios a la Ley 1581 de 2012. Ed. Legis (2013). Novoa Monreal, Eduardo. Derecho a la vida privada y libertad de información: un conflicto de derechos. Editorial Siglo XXI, México. (1979). Oscar Puccinelli. El Habeas Data en Indoiberoamérica. Temis. (1999). Pablo A. Palazzi. La transmisión internacional de datos personales y la protección de la privacidad. Ed. Adhoc. (2002). Tomás de Domingo. ¿Conflictos entre derechos fundamentales? Centro de Estudios Políticos y Constitucionales. (2001). 129 Processo e Conexões Humanas A DEFESA CONSTITUCIONAL DO CONSUMIDOR E A LEI N° 12.414/2011 (CADASTRO POSITIVO): BANCO DA DADOS, PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS E RELAÇÕES DE CONSUMO Afonso Carvalho de Oliva * Marco A. R. Cunha e Cruz ** RESUMO É inegável a importância dos dados pessoais na atualidade. Impactam decisivamente nas relações sociais, econômicas, jurídicas e políticas. E não estão imunes desta relevância os bancos de dados que concentram informações das relações de consumo. O presente artigo tem como objetivo o estudo da Lei nº 12.414/2011 (“Cadastro Positivo de Crédito”) e de sua relação com a proteção constitucional do consumidor. A análise baseia-se na ineficácia social desta lei (direito posto) quando comparada com as expectativas de proteção do consumidor brasileiro e de criação de leis com base no desenvolvimento social (direito pressuposto). É apresentado um breve histórico da Lei nº 12.414/2011, com a análise comparativa entre o que foi posto à população e o que se esperaria de uma lei de cunho consumerista. Após, é feita uma breve análise da proteção constitucional do consumidor, demonstrando o atual estado de desconexão existente entre a Lei nº 12.414/2011 e a referida proteção – que deve ser entendida de forma ampla e não apenas limitada – e os dispositivos legais específicos para a proteção consumerista. Em seguida, apresenta-se um diálogo entre a desconexão da Lei nº 12.414/2011 com a proteção constitucional do consumidor e o artigo "A desigualdade e a subversão do estado de direito", de autoria de Oscar Vilhena Vieira, apresentando-se uma comparação da subversão lá tratada, que se reflete na própria Lei do Cadastro Positivo de Crédito. Outrossim, apresenta-se uma revisão das três categorias sociais apresentadas por Vieira, invisíveis, demonizados * Mestrando em Direitos Humanos | Unit-SE, Especialista em Direito do Consumidor, Professor Universitário | Faculdade Pio Décimo | Faculdade de Negócios de Sergipe (FANESE), Advogado e Presidente da Comissão de Direito Eletrônico da OAB/SE. [email protected]. ** Doutor em Direito Constitucional | Universidad de Sevilla, Pesquisador Acadêmico Direito | Alfa (Faculdades Alves Faria-GO). [email protected] 130 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico e imunes, comparando-os com os atores sociais influenciados pela Lei do Cadastro Positivo de Crédito. PALAVRAS-CHAVE: Banco de Dados. Proteção do Consumidor. Ineficácia Social. Direitos Fundamentais. ABSTRACT Nobody can deny the importance of the personal data nowadays, once databases impacts on the social, economic, legal and political relationships. Besides, those are not immune to this relevancy, specifically when it comes to information about consumer relations. The present paper aims to study the Law n..12.414/2011 (“Positive Credit Register”) and its relationship with the constitutional safeguards of consumers. The examination is based on the social inefficacy of the law when compared to the expectation of the Brazilian consumer protection and the creation of laws based on the social development (law presupposition). It presents a brief background of Law nº. 12.414/2011 with the comparative analysis between what was laid to the population and what would be expected from an essentially consumerist law. In continue, it is made a brief analysis of the consumers constitutional protection, demonstrating the present state of disconnection between the Law nº. 12.414/2011 and the referred protection, which must be understood extensively and not only limited to the specific legal dispositions for the consumerist protection. Then, a dialogue will be developed between the disconnection of Law nº. 12.414/2011 and the constitutional protection of consumers to the paper “A Human Right to be Free from Poverty: Its Role in Politic”, authored by Oscar Vilhena Vieira, in which there is a comparison of subversion presented there, which is reflected in the Positive Credit Register Law itself, as well as it presents a review of the three social categories risen by Vieira, invisible, demonized and immune, by comparing them with the social actors affected by the Positive Credit Register. KEYWORDS: Database. Consumer Protection. Social Inefficacy. Fundamental Rights. 131 Processo e Conexões Humanas INTRODUÇÃO É inegável a importância dos dados pessoais na atualidade, uma vez que. impactam decisivamente nas relações sociais, econômicas, jurídicas e políticas. E não estão imunes desta relevância os bancos de dados que concentram informações das relações de consumo. Neste sentido, o presente artigo visa analisar a (des)conexão existente entre a Lei nº 12.414/2011 (“Lei do Cadastro Positivo de Crédito”) e a proteção constitucional do consumidor, traçando posteriormente um diálogo com o artigo "A desigualdade e a subversão do estado de direito", de autoria de Oscar Vilhena Vieira. Busca-se, como linha argumentativa, apresentar uma crítica à referida Lei, em razão da falta de racionalização social para sua elaboração. Defende-se que a “Lei do Cadastro Positivo” foi pensada e criada por um poder afastado do desenvolvimento social, razão pela qual se verifica sua total ineficácia no plano fático, comprovada pela baixa adesão da população aos bancos de dados criados, bem como a ausência dos resultados prometidos quando da edição da Medida Provisória, posteriormente convertida na Lei em análise. A metodologia do presente estudo é eminentemente bibliográfica, tendo-se realizado um levantamento histórico da criação da Lei no 12.414/2011. Observando-se seus antecedentes históricos e a motivação para o surgimento do texto legal, posiciona-se como uma crítica acerca de sua apresentação midiática e da indução do consumidor em erro – crítica fundada na diferenciação entre o direito posto pelo Estado e o direito pressuposto pela sociedade brasileira. Na primeira parte, discute-se sobre o impacto da informática e sua “apropriação” dos dados pessoais, os reflexos econômicos, sociais e jurídicos dos arquivos de consumo para ultimar uma divergência sobre o (mal) chamado “Cadastro Positivo de Crédito”. Ato contínuo, passa-se a uma breve análise acerca da defesa constitucional do consumidor, demonstrando-se a necessidade de reconhecimento desta proteção como um direito fundamental, que não pode ficar restrito à legislação protetiva representada pelo Código de Defesa do Consumidor. Em seguida, fundamenta-se acerca da ineficácia social da “Lei do Cadastro Positivo de Crédito”, partindo do conceito de ineficácia 132 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico social apresentada por Luís Roberto Barroso e por José Afonso da Silva, concatenando o estudo com a Teoria Crítica dos Direitos Humanos, de Herrera Flores, para demonstrar a necessidade do reconhecimento dos processos culturais de criação do Direito, o que não foi respeitado quando da criação da mencionada Lei. Voltando-se para a lição de Eros Grau sobre o direito posto e o direito pressuposto, demonstra-se, por fim, a forma como o poderio econômico influencia na tomada de decisões do Poder Público, o qual deixa de buscar a igualdade fática para a população, utilizando-se, tãosomente, do conceito de igualdade formal. Tenta-se, com isso, demonstrar uma imparcialidade na aplicação da lei. O resultado, em verdade, é a continuação da desigualdade preexistente e, lançando-se mão da lição de Bauman, a perpetuação do poder econômico a transformar o consumidor brasileiro em uma mercadoria a ser utilizada para a maximização dos lucros dos grupos econômicos. No último tópico, realiza-se uma comparação entre a crítica apresentada à Lei nº 12.414/2011 e o artigo "A desigualdade e a subversão do estado de direito", de autoria de Oscar Vilhena Vieira, primeiramente para demonstrar que a subversão do Estado de Direito pode ser verificada in concreto com a “Lei do Cadastro Positivo de Crédito”, uma vez que esta não representa um reclamo social, mas se direciona, como está, para grupos econômicos. Tal constatação pode distorcer o Estado de Direito, relacionando os atores sociais influenciados pela lei em análise nas categorias apresentadas pelo autor em seu artigo. Tem-se como principal objetivo a apresentação de um pensamento crítico acerca de uma lei que, após 3 anos de publicada, não alcançou os objetivos que foram expostos quando de sua criação e que também não foi objeto de análise pela doutrina brasileira quanto aos seus efetivos objetivos. Conforme análise realizada, percebe-se que a lei abre caminhos para diversos abusos contra os consumidores brasileiros, em claro desrespeito ao princípio constitucional da proteção do consumidor brasileiro. É de se salientar, ainda, que não se trata de um estudo exaustivo sobre a matéria, mas de linhas gerais para um posterior aprofundamento do tema, haja vista sua complexidade, a demandar profunda análise 133 Processo e Conexões Humanas epistemológica sobre o caso, intercalando conceitos sobre a privacidade dos dados pessoais, a autodeterminação informacional e a própria proteção do consumidor. 1. INFORMÁTICA, DADOS PESSOAIS E A LEI Nº 12.414/2011: o (mal) chamado “Cadastro Positivo de Crédito” A retórica midiática acerca da “Lei do Cadastro Positivo” – Lei nº 12.414/2011 (LCP) – busca apresentá-lo como uma forma de garantir uma posição de superioridade do consumidor perante as instituições financeiras, ao criar um banco de dados que seriam utilizados para garantir uma diminuição nas taxas juros dos “bons pagadores” quando da celebração de contratos de financiamento bancários. Esta questão foi explorada na exposição de motivos que fundamentou a criação da Medida Provisória de número 518/2010, posteriormente convertida na lei ora analisada. Em seu tópico de número dois, é apresentado o fundamento de que a criação dos cadastros positivos poderia efetivamente resultar em redução no risco da concessão de crédito aos consumidores brasileiros, representando um ganho não apenas para os comerciantes como para os próprios consumidores. Ainda em sua exposição de motivos, em seu tópico de número três, acrescenta-se que a criação do cadastro seria de utilidade ainda maior aos consumidores de baixa renda, uma vez que estes são, em regra, vistos como “investimento de alto risco”, razão pela qual, em geral, sofrem com as mais altas taxas de juros. Assim, aos que possuam um bom histórico de crédito seriam concedidas menores taxas de juros. Todavia, é necessário aprofundar a análise do referido diploma legal para que se façam descortinar algumas incoerências entre o que foi posto e o que fora pressuposto quando da apresentação da referida norma. Ponto crucial para o presente debate reside na diferenciação que se apresenta ao compararmos a nomenclatura midiática, “Lei do Cadastro Positivo de Crédito”, com o seu objeto, disposto em seu artigo 1º, “disciplina a formação e consulta a bancos de dados com informações de adimplemento”. Enquanto sua nomenclatura midiática trata de “cadastro”, o verdadeiro objeto da norma versa sobre “banco de dados”. 134 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico Muito embora ambos os termos guardem similitude entre si, não podemos confundi-los por sinônimos; a natureza deles pode-se ter como semelhante, porém, a forma de “abastecimento” e sua finalidade são por demasiado diversas, o que macula gravemente a retórica que se busca dar à norma em análise. E esta importante diferenciação transcende à proteção jurídica do objeto da lei: o uso dos dados pessoais nas relações de consumo. Victor Drummond (2003) observa que dado é uma informação em sua dimensão mais reduzida, isolada, destacada. Estará excluída de todo e qualquer contexto interpretativo que lhe possa atribuir algum valor. Quando há contextualização (primária), pode-se conferir a um dado pessoal característica de relevante. Não destoa desse sentido Danilo Doneda (2011), que afirma que “dado” seria uma informação em estado potencial (pré-formação), e “informação” alude a algo além da representação contida no dado (cognição). A confluência de dados, ainda que sem muita importância, gerando um banco que os reúna, informatize e sistematize, pode vir a traçar o perfil de pessoas. O tipo de tratamento que se dará aos dados pode ser primordial para o funcionamento de um banco de dados, bem como atentatório para a inviolabilidade da vida privada dos consumidores. Neste sentido, o benefício maior da informática é o armazenamento de conhecimento e de informações e a consequente transmissão destes dados de maneira célere. O maior risco: os direitos que podem ser violados, principalmente o direito à intimidade. O direito à intimidade evoluiu de um aspecto negativo a um positivo (DONEDA, 2006; LIMBERGER, 2000). Surgiu como o direito a não ser incomodado, até se configurar como um direito a exigir prestações concretas. In casu, o direito à intimidade e a informática apresentam, pois, dois âmbitos: um negativo e um positivo. O primeiro caracterizase com relação a resguardo geral de dados. O segundo, pelo direito de acesso e pela possibilidade de ver controlado o seu destino. A função da intimidade, portanto, no âmbito informático não é apenas a proteção da vida privada (que não seja violada) por meio da má utilização de seus dados. Pretende-se evitar, igualmente, que o consumidor seja transformado somente em números de um banco de dados. Um abrangente conceito de banco de dados é elaborado por Ana Paula Gambogi Carvalho (2003), que os considera, em sentido 135 Processo e Conexões Humanas amplo, como toda compilação de informações, obras e outros materiais organizados de forma sistemática e ordenados segundo determinados critérios e finalidades específicas, feitas por pessoa física ou jurídica, pública ou privada, sob a forma de fichas, de registros ou de cadastros, por processo manual, mecânico ou eletrônico, para uso próprio ou fornecimento a terceiros, de forma a facilitar o seu acesso e manuseio. A importância dos bancos de dados na atualidade ganha relevo com a exigência de informações das quais tanto o Estado como o mercado necessitam. No contexto brasileiro, a massificação das relações acentuou a dificuldade de os sujeitos participantes de um negócio jurídico se identificarem e, por consequência, de avaliarem o grau de confiabilidade e a capacidade creditícia da parte interessada. Entretanto, os bancos de dados vêm sendo utilizados para fins diversos, que vão desde o arquivamento de informações simples, como o nome e o endereço do usuário, para facilitar a sua identificação nas relações com fornecedores de bens e serviços, até a combinação de dados mais complexos para se traçar um perfil detalhado do usuário, de seus hábitos, gostos e preferências. A utilização de dados pessoais pode servir a variados propósitos, como publicitários, políticos e até persecutórios, podendo, pois, gravar de ilicitude o seu uso desvirtuado. Na sociedade do consumo, que tem como um de seus pilares a publicidade lucrativa, os dados dos consumidores podem ser dotados de um valor econômico (LIMBERGER, 2000). Podem servir de diretriz na hora de serem formuladas campanhas de marketing e estratégias de venda direcionadas, capazes, por conseguinte, de alcançar resultados mais efetivos. A necessidade de proteger o consumidor origina-se no valor econômico e em uma suposta comercialização dos dados referentes à sua personalidade. Tais informações podem revelar aspectos de comportamento, preferências e até contornos psicológicos, detectando hábitos de consumo que guardam relevância para o mercado (LIMBERGER, 2000; VIEIRA, 2002). Em sede legislativa sobre banco de dados, a Lei nº 5.534, de 14 de novembro de 1968, no seu art. 1º, obriga o cidadão a prestar as informações solicitadas pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia 136 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico e Estatística (IBGE) para a execução do Plano Nacional de Estatística 1. Afirma que as informações prestadas terão caráter sigiloso, serão usadas exclusivamente para fins estatísticos, e não poderão ser objeto de certidão, nem, em hipótese alguma, servirão de prova em processo administrativo, fiscal ou judicial, excetuado, apenas, no que resultar de infração a dispositivos da lei 2. O restante do texto normativo trata sobre as infrações e sobre o procedimento de recolhimento e execução das multas, nada relatando sobre os bancos de dados, públicos ou privados. A mesma mensagem pode ser encontrada no art. 6º, da Lei 5.878, de 11 de maio de 1973, a qual modificou a Lei 5.534/68 3. Essa Lei, em seu artigo 2º, aduz que constitui objetivo básico do IBGE assegurar informações e estudos de natureza estatística, geográfica, cartográfica e demográfica necessários ao conhecimento da realidade 1 O Decreto-lei 161, de 13 de fevereiro de 1967, institui a criação do IBGE, mas tal dispositivo trata, na maioria do seu texto, sobre questões orgânicas, não se referindo às normas informadoras dos bancos de dados. 2 Conferir também a Lei Nº 6.183 de 11 de dezembro de 1974. 3 O Decreto 73.177, de 20 de novembro de 1973, regulamenta a Lei nº 5.534, de 14 de novembro de 1968, modificada pela Lei nº 5.878, de 11 de maio de 1973, de que dispõe sobre a obrigatoriedade da prestação de informações necessárias ao Plano Nacional de Estatísticas Básicas e ao Plano Geral de Informações Estatísticas e Geográficas. Tal disposição normativa repete a mensagem de sigilo sobre os dados coletados e, em seu corpo, regula o procedimento de multa à não prestação de informações. O Decreto Nº 77.624, 17 de maio de 1976, dispõe sobre a utilização, pelo IBGE, de dados informativos de origem governamental na produção de informações e estudos de interesse do planejamento econômico e Social e da segurança nacional. Não há novidade normativa sobre o tema, destacandose o art. 2º que diz que caberá ao IBGE a expedição das normas que forem necessárias à uniformização de conceitos ao uso de classificação comum e à manutenção de metodologia uniforme de coleta, com vistas à compatibilização dos registros com os princípios da legislação em vigor sobre os Sistemas Estatístico e Cartográfico Nacionais e o Plano Geral de Informações Estatísticas e Geográficas. E no parágrafo 2º aduz que as normas a que se referem ao artigo serão desdobradas em projetos específicos e elaboradas pelo IBGE, em articulação com os órgãos, entidade e fundações interessados. Tal dispositivo, portanto, confere ao IBGE poderes para definir os princípios informadores da coleta e proteção de dados dos administrados. 137 Processo e Conexões Humanas física, econômica e social do País, visando especificamente ao planejamento econômico e social e à segurança nacional. Sobre os bancos de dados na Internet, Alexandre Atheniense (2002) cita o Art. 3º, parágrafo segundo da Lei 7.232/84, que dispõe sobre a Política Nacional de Informática e dá outras providências: “a estruturação do banco de dados será regulada em lei específica”. Infelizmente esta lei específica nunca foi publicada. A Lei 8.159 de 08/01/1991 dispõe sobre a gestão de arquivos públicos estatais. Nada que regule os princípios ou os requisitos para a criação de bancos de dados. Na verdade, a aludida Lei tem a intenção de disciplinar os arquivos públicos estatais que visam ao interesse cultural brasileiro, dando poderes ao Arquivo Nacional para a gestão e o recolhimento dos documentos produzidos e recebidos pelo Poder Executivo Federal 4. O Código Defesa do Consumidor (CDC), Lei 8.078 de 11 de setembro de 1990, é atualmente o principal texto legal no Brasil a regular expressamente os bancos de dados, ainda que de forma restrita às relações de consumo. BESSA (2003), traçando um contexto histórico, relata que os bancos de dados de proteção ao crédito surgiram com o objetivo de oferecer informações àqueles que pretendiam conceder empréstimo em dinheiro a alguém, parcelar o preço ou simplesmente adiar o pagamento para data futura. As informações se referem aos aspectos teoricamente úteis para permitir uma melhor avaliação dos riscos de se conceder crédito à referida pessoa. O crédito possui quatro características básicas: confiança, prazo, interesse ou juro e risco. Por estes motivos, o fornecedor constitui-se no legítimo interessado em obter algumas informações do próprio consumidor e de terceiros, com a finalidade específica de avaliar os riscos do negócio. A concessão de crédito ampara-se na crença de que o beneficiado irá, no futuro, cumprir as obrigações 4 Regulamentando esta lei foram emitidos vários decretos. Os vigentes são: o Decreto 4.073, de 03 de janeiro de 2002, que dispõe sobre a política nacional de arquivos públicos e privados; o Decreto 4553 de 27 de dezembro de 2002, que disciplina a salvaguarda de dados, informações, documentos e materiais sigilosos, bem como das áreas e instalações onde tramitam. Na mesma linha de intenção da Lei (como não poderia ser diferente), os Decretos não declaram normas ou princípios claros aplicáveis aos bancos de dados. 138 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico assumidas. Baseia-se especialmente no conhecimento de informações referentes à conduta do candidato ao crédito. Quanto mais conhecimentos se têm da pessoa, maior o crédito que se dá a ela. A própria palavra crédito provém do latim creditum, confiança, empréstimo. Ressalta BESSA (2003) que a concessão de crédito era demorada, trabalhosa e complexa. O candidato a crédito preenchia um longo cadastro de informações, entre elas indicando o armazém onde realizava as compras, o seu alfaiate e, eventualmente, outras lojas onde comprava a crédito. A loja, por sua vez, possuía um quadro de funcionários com a função chamada de informante, que percorriam, diária e pessoalmente, os locais indicados em busca de informações sobre o crédito da pessoa. O setor crediário dessas lojas pioneiras possuía cadastro de grande número de pessoas, o que fazia com que ficassem, no início de cada manhã, apinhados de informantes de outras lojas em busca de dados e informações dos clientes já por ela cadastrados. Intuiu-se, naturalmente, que a coleta de informações seria mais ágil, eficaz e barata se exercida por entidade voltada, com exclusividade, para tal fim. Em julho de 1955, 27 comerciantes reuniram-se em Porto Alegre, na sede da associação de classe, para fundar o “Serviço de Proteção ao Crédito”. Não havia objetivo lucrativo: a intenção era somente resguardar os interesses dos associados, possibilitando-lhes, com o conhecimento das informações, analisar melhor os riscos da concessão de crédito a determinada pessoa. Hoje há diversas empresas que exploram economicamente o setor de proteção ao crédito, investindo em novas tecnologias. Voltando a atenção ao CDC, é certo que o texto não faz distinção expressa quanto à sua incidência em relação a bancos de dados públicos ou privados. Os dados podem ser classificados em: a) públicos, relevantes para toda a sociedade, atendendo a sua divulgação ao direito de informar e de ser informado: acidentes, crimes, eleições, gastos públicos; b) pessoais de interesse público: nome, domicílio, estado civil, filiação; e c) sensíveis: determinados tipos de informação que, caso conhecidas e processadas, prestam-se a uma potencial utilização discriminatória ou particularmente lesiva (pensamentos, opiniões políticas, situação econômica, raça, religião, vida conjugal e sexual). 139 Processo e Conexões Humanas O CDC considera arquiváveis, independente da vontade do seu titular, somente os dados não sensíveis, pois relacionam-se diretamente com o funcionamento da sociedade de consumo. São dados relevantes para a caracterização da idoneidade financeira do consumidor. Nada obstante, a referência do art. 43, quando afirma que entidades de caráter público não têm a ver com a classe ou a natureza jurídica da administradora do banco de dados. Entende-se que o caráter público denota que os bancos de dados de consumo atuam em uma seara permeada pelo interesse público, não havendo que se falar em exclusão ou atenuação dos deveres impostos às entidades arquivistas. Seu funcionamento e administração apresentam interesse para a sociedade. O armazenamento dos dados sobre os consumidores não interessa apenas ao proprietário do arquivo, como também às pessoas nele inscritas. No que se refere à proteção de dados dos consumidores, não se pode olvidar que a Convenção de Strasbourg e as Guidelines da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) propuseram princípios básicos (Fair Information Principles) que passaram a ser encontrados em várias normativas sobre proteção de dados pessoais (DONEDA, 2011). Neste sentido, podem ser lidos no artigo 43 do CDC: no §4° (princípio da publicidade); no §3° (princípio da exatidão); no caput e no §1° (princípio do livre acesso); no §3º (princípio da segurança física e lógica). O princípio da finalidade pode ser lido via interpretação sistemática e teleológica destes enunciados normativos. Raciocínio parecido pode ser visto na LCP e no seu regulamento, o Decreto 7.829 de 17/10/2012 (Dec. 7.829). Numa interpretação dialógica, pode-se ler o (a) princípio da publicidade no art. 4°, da LCP e no Capítulo I do Dec. 7.829; o (b) princípio da exatidão no art. 3° §§1° e 2°, da LCP e no art. 6° do Dec. 7.829; o (c) princípio da finalidade no art. 7º, da LCP, e no Capítulo V do Dec. 7.829; o (d) princípio do livre acesso no art. 3° § 1°, art. 5° e art. 6°, da LCP, e no Capítulo V do Dec. 7.829; e o (e) princípio da segurança física e lógica nos artigos 7°, 8°, 9° e 11, da LCP e nos Capítulos V e VI, do Dec. 7.829. 140 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico Sobre o armazenamento dos dados, “arquivo de consumo” é o gênero do qual fazem parte os bancos de dados e os cadastros de consumidores. Os arquivos de consumo auxiliam na dinâmica das relações consumeristas, de modo que informações que não cumprem este propósito, que não acresçam qualquer benefício ao fim, não devem ser objeto de arquivamento sem expressa autorização. De todos os modos, os dados devem ser expostos de forma objetiva e transparente, isentos de avaliações subjetivas ou passionais, que invadam a privacidade do indivíduo. A característica comum entre os bancos de dados e os cadastros de consumidores é que coletam e armazenam informações de terceiros para uso em operações de consumo. Todavia, os bancos de dados têm aleatoriedade da coleta; organização permanente; transmissibilidade extrínseca e inexistência de autorização do conhecimento do consumidor. Nos cadastros de consumo, por sua vez, a permanência das informações é acessória, já que o registro não é um fim em si mesmo, estando a manutenção dos dados vinculada ao interesse comercial atual ou futuro. Não há aleatoriedade, pois o universo subjetivo que move o arquivista coincide com aquele da sua própria atuação empresarial. Os cadastráveis tendem a ser bem delimitados, normalmente associados a um grupo pequeno de consumidores, efetivos ou potenciais. Há preponderante benefício ao arquivista, concluindo-se pela transmissibilidade interna ou intrínseca. Com relação à diferenciação dos arquivos de consumo, Leonardo Roscoe Bessa (2011, pp. 77-78) aduz que: (...) a distinção (...) se faz a partir da fonte e do destino da informação. Os bancos de dados, em regra, coletam informações do mercado para oferecê-las ao próprio mercado (fornecedores). No cadastro, a informação é obtida diretamente do consumidor para o uso de um fornecedor específico, a exemplo do que ocorre em diversos estabelecimentos comerciais quando se solicitam dados pessoais (nome, endereços postal e eletrônico, telefone, data de aniversário, entre outros), independentemente de a compra ser 141 Processo e Conexões Humanas à vista ou mediante crediário. No Cadastro, objetiva-se estreitar o vínculo com alguns consumidores, intensificando a comunicação sobre ofertas, promoções e outras vantagens, de modo a fidelizá-los a uma marca ou estabelecimento. (...) Nos bancos de dados, (...) os dados são coletados para posterior disseminação entre inúmeros fornecedores com visas a alguma necessidade do mercado. De logo, percebe-se que as finalidades são bastante diversas: enquanto o simples “cadastro” busca, tão-somente, estreitar o vínculo existente entre o consumidor e um fornecedor específico, que recebeu estes dados diretamente de seu consumidor cadastrado, o banco de dados é criado por meio do repasse de informações oriundas de um terceiro ente na relação, que coleta os dados, em regra, com a anuência do consumidor, repassando-os para o mercado de consumo, de modo que outras empresas possam deles se utilizar para direcionar vendas ou analisar e melhor prever o comportamento de seus consumidores. Percebe-se, também, que a nomenclatura “Cadastro Positivo” foi acompanhada de uma enorme campanha midiática, sempre induzindo o consumidor a entender que, ao fornecer seus dados para as empresas mantenedoras dos bancos de dados, estes refletiriam uma melhor situação de concessão de crédito, sempre com termos que sugerem a ideia de valorização do consumidor. Podemos exemplificar a criação de sítios eletrônicos com os seguintes endereços: http://www.consumidorpositivo.net/, http://cadastropositivoserasa.com.br/, https://www2.boavistaservicos.com.br/consu midorpositivo/. Dessa forma, fica clara a indução do consumidor, ao apresentar uma campanha midiática diversa da fundamentação legal prevista pela lei nº 12.414/2011. Essa indução semântica abre caminho para a discussão jurídica sobre o necessário respeito à proteção constitucional do consumidor, sobre a ineficácia social do diploma legal em análise, permitindo realizar um paralelo entre a atual sociedade consumista, 142 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico com consumidores sendo transformados em mercadorias, e a situação de desigualdade que leva à subversão do Estado de Direito, no sentir de Oscar Vilhena Vieira. 2. BREVES APONTAMENTOS DA CONSTITUCIONAL DO CONSUMIDOR DEFESA A Constituição Federal de 1988 estabeleceu, em seu artigo 5º, inciso XXXII, a proteção constitucional do consumidor, reforçando-a no artigo 170, inciso V, ao eleger a defesa do consumidor como princípio básico sobre o qual se funda a ordem econômica brasileira. A proteção constitucional do consumidor é complementada por meio do CDC, que foi inspirado em modelos normativos de outros países, como o Projet de Code de la Consommation, a Resolução 39/248 da ONU; a Ley General para la Defensa de los Consumidores y Usuarios de España (Ley 16/1984); a Lei 29/81, de Portugal; a Ley Federal de Protección al Consumidor, de 05.02.1976, do México; a Loi sur la Protection du Consommateur, de 1979, Québec; as Diretivas 84/450 (publicidade) e 85/374 (responsabilidade civil pelos acidentes de consumo); o Federal Trade Commision Act; o Consumer Product Safety Act; o Truth Lending Act; o Fair Credit Reporting Act; e o Fair Debt Collection Practices Act. Um traço marcante no CDC é o seu caráter principiológico, que norteia o labor do intérprete. O caput do art. 4º refere-se à importância do respeito à dignidade, saúde, segurança e aos interesses econômicos do consumidor, bem como à melhoria da qualidade de vida, à transparência e à harmonia nas relações de consumo. O inciso I do art. 4º indica que a necessidade de proteção do consumidor decorre de sua vulnerabilidade. Aliado a este há mais sete incisos que expõem os princípios desta lei. O art. 6º proclama em 9 incisos alguns dos direitos básicos do consumidor. O CDC traça diretrizes básicas, buscando dar uma maior desenvoltura à proteção constitucional, ao apresentar definições acerca das relações de consumo, além de conceituar consumidor e fornecedor. O CDC, então, traz princípios, direitos e deveres para todas as partes envolvidas nas relações consumeristas. 143 Processo e Conexões Humanas Todavia, a proteção constitucional do consumidor não pode jamais ficar restrita ao CDC, pois se apresenta como direito e garantia fundamental, no seu mais amplo raio semântico. Tal proteção há de se imiscuir em toda e qualquer relação consumerista, principalmente na publicação de novas leis que tangenciam o tema, como é a lei objeto deste texto, de modo a garantir que não fujam da necessária proteção a ser conferida ao consumidor. Ao serem analisados, de forma detida, os preceitos apresentados pela LCP, é notório que não se busca uma efetivação da proteção constitucional do consumidor. Em que pese apresente, em seu bojo, diversas regulamentações sobre a forma de captação e de cessão dos dados, peca ao não explicitar, de forma definitiva, quais os usos que surgirão dos dados coletados. Em realidade, o que se pode inferir da “Lei do Cadastro Positivo de Crédito” é que se reveste em mais uma forma de proteção ao fornecedor de produtos ou de serviços, complementando o escopo da previsão do artigo 43 do CDC – Bancos de Dados de Proteção ao Crédito. Esta redação da LCP tende a guardar denotação claramente negativa, uma vez que pode apenas registrar dados referentes à falta de pagamento, por parte dos consumidores, referente aos bens e serviços por estes adquiridos, não sendo suficiente para formar um perfil de consumo. Não obstante, ao fomentar-se a criação de um “cadastro positivo”, no qual serão registrados todos os pagamentos realizados pelos consumidores, pode-se complementar seus perfis, sabendo-se o que consomem, o que é pago e o que não é pago. O déficit protetivo da mencionada “Lei do Cadastro Positivo de Crédito” também contraria a melhor leitura dos Direitos Humanos. Isso porque o ato de consumir, segundo Ricardo Henrique Weber (2013, p.75), nunca ostentou o destaque na sociedade como na atualidade. Neste sentido, a proteção constitucional do consumidor destina-se a atuar no exercício de proteção da pessoa que pratica o consumo, impondo limites ao livre mercado. É importante pensar na proteção constitucional do consumidor como forma de desenvolvimento de direitos humanos a serem efetivamente protegidos pelo poder público e não como um direito disponível, a ser tutelado da forma que melhor convenha aos detentores 144 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico do poderio econômico. Neste sentido é o entendimento de Herrera Flores (2009, p.195), ao afirmar que “os direitos humanos como produtos culturais antagonistas se situam no meio dessas propostas, evitando em todo momento ficar reduzidos a meras pautas jurídicas de decisão judicial ou elevar-se aos céus estrelados da ‘indecisão’ humana”. Enfim, não se pode permitir que a legislação brasileira seja utilizada em claro descompasso com a proteção constitucional do consumidor, sendo esta amesquinhada em favor dos interesses econômicos dominantes do mercado de consumo. 3. DA INEFICÁCIA SOCIAL DA LEI Nº 12.414/2011 – CADASTRO POSITIVO DE CRÉDITO Em abril de 2014, o IDEC – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor – divulgou notícia em sua revista, na qual, após investigação, constatou-se a ineficácia social da “Lei do Cadastro Positivo”, representada pelo total desconhecimento dos termos da lei, de sua utilidade e da forma de implementação, e por uma fatia ínfima de usuários que, sabendo do que se trata “Cadastro Positivo de Crédito”, efetivamente procederam ao seu cadastramento. A maior parte da população brasileira desconhece a existência do “Cadastro Positivo de Crédito” e, ainda assim, entre os que o conhecem, existem diversas dúvidas acerca do seu funcionamento, de como se dará a proteção dos dados pessoais armazenados nestes bancos de dados, etc. Não se verifica também, até o momento, nenhum benefício imediato ao consumidor, que continua sem poder usufruir de melhores taxas de juros ante a autorização de acesso aos seus dados pessoais. Não se questiona, no presente estudo, a validade jurídica da LCP, haja vista ser a mesma emanada de órgão competente, promulgada, publicada e, posteriormente, regulamentada, encontrando aplicabilidade no ordenamento jurídico brasileiro, tanto que já se verifica a criação dos bancos de dados lá previstos. Indaga-se, neste texto, sobre sua eficácia social, ou efetividade, adotada a concepção de Luís Roberto Barroso (2013, p.65): 145 Processo e Conexões Humanas [...] que se refere, como assinala Miguel Reale, ao cumprimento efetivo do direito por parte de uma sociedade, ou ao “reconhecimento” (AnerKennun) do direito pela comunidade ou, mais particularizadamente, aos efeitos que uma regra suscita através do seu cumprimento. Em tal acepção, eficácia social é a concretização do comando normativo, a sua força operativa no mundo dos fatos. (grifo nosso) Ou seja, ao ser avaliada a eficácia social, ou efetividade, da LCP, percebe-se o distanciamento existente entre os preceitos normativos, o princípio da proteção constitucional do consumidor e o conhecimento efetivo, pela população, acerca da “Lei do Cadastro Positivo de Crédito”, bem como de sua utilidade. Não se pode aceitar que uma lei possua tamanho distanciamento social. Trata-se, em realidade, de uma lei criada sem a necessária fundamentação social (pressuposto), baseando-se, tão-somente, em poderes econômicos, que buscam um maior controle sobre a população consumidora. Nesse sentir, é irrefutável socorrer-se, mais uma vez, dos argumentos de Herrera Flores (2009), que pugna pela necessidade de se entender o direito como um produto cultural da sociedade em que é aplicado. Nessa linha, podemos constatar o descompasso entre o direito pressuposto pela Sociedade e o direito posto pelo Estado. São as palavras de Eros Roberto Grau (1991), ao delinear o descompasso anteriormente apontado: “Legítimo será o Direito posto que consubstancie forma de desenvolvimento das forças sociais produtivas; ilegítimo, aquele que consubstancie entrave ao seu desenvolvimento”. O direito posto ora estudado (Lei do Cadastro Positivo de Crédito) é ilegítimo, pois em nada representa o direito pressuposto (produto cultural das relações de consumo baseadas na proteção constitucional do consumidor). O direito pressuposto pela sociedade alinha-se no sentido de questionar a atual forma do mercado de consumo, segundo a qual, em nome de uma suposta insegurança do mercado, apresentam-se taxas de juros cada vez maiores, envolvendo o consumidor numa verdadeira 146 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico “espiral de crédito e juros”, cujo fim somente se vislumbra com seu superendividamento, padecendo por completo ante os deleites do poder econômico dominante, que passa a definir o destino desse consumidor. Percebe-se que, da forma posta, o direito em questão não busca restabelecer a igualdade entre as partes envolvidas nas negociações de crédito, já tão severamente abaladas ante a discrepância econômica existente. O Estado fomenta, com isso, o desenvolvimento da desigualdade enquanto fator primordial do Estado de Direito, utilizando a lei para garantir o desequilíbrio. Garantindo-se a desigualdade, permanece a possibilidade de prevalência dos grupos políticoeconômicos. O Estado de Direito passa, então, a servir de ferramenta para a concretização das necessidades dos grupos de poder, travestindo de lei a vontade, tentando mostrá-la como algo necessário para a população. Sobre esse fato reforça FARIA (1994, p.18): “Com a progressiva concentração oligopolista dos setores produtivos, forjando mecanismos próprios para a auto-resolução de seus conflitos; com a transformação do Executivo num poder simultaneamente provedor, interventor, regulador e planejador [...]”. Ainda sobre o deturpação do Estado de Direito pelos poderes econômicos, Campilongo (in FARIA, 1994, p.37) admite que os grupos privados com peso nas negociações políticas – “algumas vezes, os ‘novos atores’; geralmente, os velhos beneficiários de uma estratificação social iníqua – ‘flexibilizam’ os ordenamentos e atribuem às normas, não raras vezes, significados absolutamente diversos dos originais”. Neste mesma linha de subversão interpretativa das normas jurídicas, Alaôr Caffé Alves (2011), reforça a função ideológica do Direito, com a qual, por meio das ferramentas postas pelo próprio Estado de Direito, promove-se a desigualdade, apelando justamente para uma igualdade formal na criação do Direito. Isso porque, na racionalização instrumental do Direito, as formas ideológicas de neutralidade, abstração e impessoalidade, todas elas encontradas na estrutura da LCP, pendem por dissimular os antagonismos sociais (Fornecedores-mercado x Proteção Constitucional do Consumidor), promovendo a ocultação hegemônica das relações internas de dominação política e de exploração econômica. Por isso, Caffé Alves (2011, p. 26) observa que a função ideológica do Direito é "uma forma 147 Processo e Conexões Humanas de controle social, onde se legitimam as relações sociais profundamente desiguais". Esse raciocínio se subsume na integralidade com a gênese da LCP. Constam como antecedentes no Legislativo o Anteprojeto de Lei n° 5.870/2005 e o Projeto de Lei (PL) 638/98. Este foi aprovado na Câmara dos Deputados (CD) e nominado no Senado Federal (SF) de Projeto de Lei n° 85 (PLS 85/26.05.2009). Registra-se ainda o PL 405/2007 (CD), que incluía um §6° no art. 43 da Lei 8.078/90 (CDC). Foi este aprovado pelo Senado Federal e enviado à sanção, mas restou vetado (art. 66, § 1°, CF-88). A MP-518, de 30.12.2010 (art. 62, CF88), foi editada pelo Executivo em substituição a tal projeto, e, após emendas do Congresso Nacional, foi convertida na Lei n° 12.414/2011 (COSTA, 2012, p. 25-30). Além de questionáveis os requisitos constitucionais da MP-518 in casu (relevância e urgência), sua edição reforça o déficit de legitimação democrática que transcende à sua lei de conversão: a Lei 12.414/2011. Utilizando a linha de pensamento de Caffé Alves (2011), a legalidade abstrata e o procedimento de sua constituição (ou melhor, de sua auto-constituição) racional e impessoal, são critérios de legitimidade do poder. O Estado, ao aplicar regras iguais a pessoas economicamente desiguais, não faz outra coisa senão reafirmar as desigualdades reais. A desigualdade real, in casu, subsidiada nas relações estruturais assimétricas e antagônicas (Fornecedores-mercado x Consumidores) forjou uma expressão ideológica da igualdade jurídico-formal (a LCP). Infere-se, pois, que o direito posto (Lei do Cadastro Positivo de Crédito) foi proposto por um poder asséptico nos limites estabelecidos pelo sistema normativo racional-formal, de forma a defender uma suposta eficácia social do direito posto, uma vez que foi criado por meio dos representantes eleitos nos moldes do Estado de Direito – representantes das forças sociais que, efetivamente, mostram-se desconsideradas quando da positivação do direito em análise. A “Lei do Cadastro Positivo de Crédito”, estabelecida no nível hegemônico do Estado, demonstra o seu ineficaz resultado, operacionalizando o sistema de mercado e a possibilidade da exploração econômica, mantendo essa operacionalização revestida sob 148 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico um manto de legalidade fundada em uma racionalidade estatal, inerente à própria condição do Estado de Direito, sendo capaz de explicar e justificar toda a realidade do direito (Alves, 2011, p.27). Ademais, submergem, no plano das aparências, as relações econômico-sociais antagônicas, reforçando a desigualdade fática e econômica já existente, precisamente no sentido de mantê-las e de reproduzi-las por meio de acesso aos dados pessoais dos consumidores, de modo a aprofundar o conhecimento dos fornecedores acerca de seus consumidores, não só como modo de oferecer outros produtos e serviços que possam se “encaixar” no perfil de consumo apresentado, como também de efetivar e de potencializar a transformação dos consumidores em mercadorias dos fornecedores, como adverte Zygmunt Bauman (2008, p.74): Bombardeados de todos os lados por sugestões de que precisam se equipar com um ou outro produto fornecido pelas lojas se quiserem ter a capacidade de alcançar e manter a posição social que desejam, desempenhar suas obrigações sociais e proteger a autoestima – assim como serem vistos e reconhecidos por fazerem tudo isso – , consumidores de ambos os sexos, todas as idades e posições sociais irão sentir-se inadequados, deficientes e abaixo do padrão a não ser que respondam com prontidão a esses apelos. Assim, fica claro o movimento econômico que vem se desenhando no sentido de, cada vez mais, orientar o mercado a dominar todas as informações/dados dos consumidores, utilizando como fundamento um suposto poder asséptico do Estado, que age nos limites de suas competências legislativas, sempre baseando-se em movimentos que possam garantir uma suposta igualdade de tratamento legislativo. Em realidade, a ilegitimidade do direito posto é consubstanciada ao revelar-se como um verdadeiro entrave ao desenvolvimento creditício da população brasileira, uma vez que representa mais uma forma de classificação e de estratificação da 149 Processo e Conexões Humanas sociedade, o que será explorado, a seguir, em um estudo comparativo com a obra de Oscar Vilhena Vieira, no qual, para que haja “pleno” poderio creditício, é necessário que se conceda acesso a toda sua vida de consumo econômico, de modo a não pairar dúvida quanto à segurança da concessão de crédito àquele consumidor. 4. A (DES)CONEXÃO ENTRE A DEFESA CONSTITUCIONAL DO CONSUMIDOR E A LEI N° 12.414/2011: um diálogo com Oscar Vieira Vilhena O artigo "A desigualdade e a subversão do Estado de direito", de autoria de Oscar Vilhena Vieira, analisa a forma como as diferenças socioeconômicas são capazes de subverter preceitos básicos do Estado de Direito, em especial, o conceito de igualdade, sendo tal fato ressaltado pela criação de três categorias de cidadãos: invisíveis, demonizados e imunes. Em que pese o fato de Vieira (2007) reconhecer a subversão do Estado de Direito com base no conceito econômico da sociedade, é possível aprofundar a desigualdade por ele apresentada, demonstrando como a mesma subversão pode ser observada especificamente no tratamento dispensado pelo Estado quando da proteção do consumidor. De fato, as categorias traçadas por Vieira podem ser lidas no trato existente entre os consumidores, os fornecedores de produtos e serviços e a relação destes com a “Lei do Cadastro Positivo de Crédito”. O texto de Vieira (2007) divide-se em duas partes. Na primeira, realiza-se uma análise da concepção do Estado de Direito e das razões que levam tanto os governantes quanto os governados a seguirem as leis. Já na segunda parte, é apresentada uma análise da subversão do Estado de Direito, culminando com a criação das três espécies explicitadas anteriormente. Vieira (2007, pp. 31-32), utilizando a definição de Hayek, conceitua o Estado de Direito como uma união dos seguintes elementos: (a) a lei deveria ser geral, abstrata e prospectiva, para que o legislador não pudesse arbitrariamente escolher uma pessoa 150 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico para ser alvo de sua coerção ou privilégio; (b) a lei deveria ser conhecida e certa, para que os cidadãos pudessem fazer planos – Hayek defende que esse é um dos principais fatores que contribuíram para a prosperidade no Ocidente; (c) a lei deveria ser aplicada de forma equânime a todos os cidadãos e agentes públicos, a fim de que os incentivos para editar leis injustas diminuíssem; (d) deveria haver uma separação entre aqueles que fazem as leis e aqueles com a competência para aplicá-las, sejam juízes ou administradores, para que as normas não fossem feitas com casos particulares em mente; (e) deveria haver a possibilidade de revisão judicial das decisões discricionárias da administração para corrigir eventual má aplicação do Direito; (f) a legislação e a política deveriam ser também separadas e a coerção estatal legitimada apenas pela legislação, para prevenir que ela fosse destinada a satisfazer propósitos individuais; e (g) deveria haver uma carta de direitos não taxativa para proteger a esfera privada. Todavia, na união acima apresentada, em conclusão apresentada por Vieira (2007), seguida no mesmo sentido por Alves (2011), é que o Estado de Direito acaba se tornando refém dos interesses políticos dominantes, que exaltam apenas as virtudes que sejam favoráveis ao grupo no poder, tal como anteriormente demonstrado, utilizando-se de umas suposta assepsia do poder legiferante para garantir a subsistência da desigualdade. Demonstra ainda Vieira (2007, p.35) que “a aplicação imparcial da lei, como virtudes internas do Estado de Direito, estão diretamente associadas à noção de igualdade perante a lei obtida pela expansão da cidadania” (sic). Tal entendimento busca legitimar a aplicação do direito e a obrigatoriedade do respeito à lei, demonstrando à população que foram elas criadas em consonância com uma força maior, de modo a ficar claro que não estão adstritas às vontades de 151 Processo e Conexões Humanas grupos economicamente dominantes. Porém, a aplicação imparcial da lei não é suficiente para garantir a igualdade, como reforça o autor (2007, p.36) “a igualdade formal proporcionada pela linguagem dos direitos não se converte em acesso igualitário ao Estado de Direito ou à aplicação imparcial das leis e dos direitos”. Ao analisar a “Lei do Cadastro Positivo de crédito”, percebe-se claramente a existência das características apontadas por Vilhena Vieira: a discrepância entre o valor social de uma norma e dos interesses econômicos existentes em planos não aparentes da mesma lei. Vieira (2007, p.40) seguindo Rousseau, apresenta como “causa do declínio da democracia [...] a distorção na aplicação de leis gerais feita por magistrados que tendem a defender seus próprios interesses privados em detrimento da vontade geral expressa pela lei”, desaguando na efetiva desigualdade entre as partes tuteladas, reforçada pela desigualdade econômica, que “mitiga a compreensão e o conhecimento de conceitos jurídicos básicos; ela subverte a aplicação das leis e o uso da coerção; e por fim atua contrariamente às construções de reciprocidade, tanto em termos morais, quanto em termos de mútua vantagem.” (VIERA, 2007, p.40). Reforça-se o caráter desigual da “Lei do Cadastro Positivo” quando se reconhece que a lei não passaria pelo teste de generalidade de Hayek (VIEIRA, 2007, p.41), uma vez que, como anteriormente demonstrado, não advém de um plano de valoração social e busca claramente beneficiar um determinado grupo econômico, inclusive, pela sua própria origem, que remonta a uma Medida Provisória do Poder Executivo e não a uma proposição do Poder Legislativo devidamente legitimado. Oscar Vilhena Vieira (2007) apresenta três categorias diferentes de cidadãos expostos à pobreza ou exclusão social e econômica: os “invisíveis”, aqueles cujo sofrimento não causa qualquer nenhuma reação social ou política dos demais grupos; os “demonizados”, aqueles considerados como inimigos públicos, os quais, por essa razão, não merecem proteção do Estado de Direito; e os “imunes”, que podem ser entendidos como aqueles que violam sistematicamente os direitos humanos, envolvidos em atos de corrupção, ou mesmo aqueles que possuem alguma vantagem econômica. 152 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico Ao aplicar essas três categorias com os atores sociais presentes na relação de consumo e na utilização da “Lei do Cadastro Positivo de Crédito”, os invisíveis seriam a coletividade dos consumidores que, uma vez incluídos na sociedade consumista, passam a ser vistos, tãosomente, como mais uma mercadoria à disposição dos fornecedores e que estariam dispostos a permitir livre acesso a seus dados pessoais em troca de inclusão nessa sociedade; os demonizados, aqueles consumidores que lutam contra o sistema posto, negando-se a serem parte dos cadastros de consumo, não permitindo o acesso aos seus dados pessoais; e os imunes, que seriam as empresas, que se colocam em patamar de superioridade superestrutural, em razão do seu poderio econômico, sendo capazes, inclusive, de influenciar na criação de normas específicas para proteção dos seus interesses, de modo a subverter o Estado de Direito. Seriam invisíveis todos os consumidores que nada questionam acerca de seu papel na sociedade consumista, aqueles que efetivamente já estão ali incluídos. Cada vez mais, esses consumidores são levados a compartilhar mais informações pessoais, garantindo o acesso pelos fornecedores a todos os seus dados. Como leciona Germaine (apud BAUMAN, 2008, p.21): “na era da informação, a invisibilidade é equivalente à morte”, ou seja, ao mesmo tempo em que se tornam visíveis por abrirem mão de suas informações mais íntimas, os consumidores passam a adotar o papel de invisibilidade, haja vista não serem mais levados em consideração quando da formulação das políticas públicas das relações de consumo, passando a serem peças meramente. Já os demonizados seriam aqueles que buscam combater a lógica do direito posto, no momento em que lutam e tentam se manter à margem da sociedade consumista estabelecida, buscando não abrir mão de todos os seus dados pessoais, de modo a terem algum controle sobre as suas decisões. Entretanto, são de imediato marginalizados, tidos como não dignos de receberem o mesmo tratamento dos invisíveis, que apenas concordam em seguir com as ordens postas para a “Lei do Cadastro Positivo de Crédito”, cuja participação não é obrigatória, frisese. Tornam-se demonizados aqueles que optam por se manterem fora destes bancos de dados, sendo vistos como párias que possuem algo a esconder, estando sujeitos a pagar taxas de juros mais altas do que 153 Processo e Conexões Humanas aqueles que optam por ceder seus dados pessoais para uso dos fornecedores de produtos e serviços. Por fim, temos a personificação dos imunes nas empresas que se utilizam dos bancos de dados de histórico de crédito, sejam os positivos, objeto do presente estudo, sejam os negativos, já regulamentados pelo Código de Defesa do Consumidor, pois estes sistematicamente conspurcam a proteção constitucional do consumidor. Para tanto, utilizam-se de sua posição de superioridade econômica, capaz de se refletir até mesmo nos caminhos legislativos adotados pelo Estado de Direito, que, em nome de uma suposta igualdade de tratamento, acaba por reforçar a ideia da desigualdade, de modo a sempre garantir as maiores vantagens aos imunes. Por meio da “Lei do Cadastro Positivo de Crédito”, em nome de uma suposta igualdade entre consumidores e fornecedores, em razão do que poderiam ser concedidas maiores vantagens econômicas aos consumidores, reforça-se a desigualdade inerente àqueles que não desejam expor seus dados pessoais de consumo perante aqueles que não questionam a eficácia da lei e acabam por abrir mão de informações essenciais sobre sua vida de consumo. CONCLUSÕES Conforme explicitado, o presente texto não exaure o estudo sobre a matéria, extremamente ampla e com influências em algumas áreas do conhecimento (Direito, Economia, Política, Filosofia e Sociologia). É necessário um pensamento crítico em relação aos atos aparentemente inocentes e até benéficos lançados pelo Poder Público, pois, como se buscou demonstrar nesse breve estudo, muitas vezes, acabam por revelar severas violações ou restrições a direitos fundamentais, na medida em que servem a objetivos escusos dos poderes econômicos, mitigando a proteção constitucional do consumidor. Todavia, desta parcial análise impende trazer algumas conclusões : (i) muito embora seja apresentada por um poder legítimo, a Lei nº 12.414/2011 não representa um reclamo da população brasileira, sendo posta em defesa de interesses econômicos alheios aos 154 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico consumidores, o que faz com que apresente um déficit de legitimação social; (ii) a “Lei do Cadastro Positivo de Crédito” reforça a “coisificação” do consumidor brasileiro, transformando-o em mercadoria dos fornecedores, uma vez que a negociação das suas informações/dados pessoais, por meio dos bancos de dados de crédito positivo, representa um rentável negócio; (iii) A defesa constitucional do consumidor, além de um direito fundamental (art. 5o, XXXII, CF-88) é um princípio da ordem econômica do Estado brasileiro (art. 170, V, CF-88). Não se limita apenas aos preceitos estabelecidos no Código de Defesa do Consumidor. Esta proteção deve ser pensada não somente em nível legislativo, mas também em nível principiológico, como fundamento imanente à sociedade brasileira, norteando todas as tomadas de decisões por parte do Poder Público no pertinente a este objeto; (iv) Em pese esta envergadura constitucional, a proteção constitucional do consumidor sofre grave golpe ao se permitir que os poderes econômicos definam a forma que o Estado de Direito irá tomar, uma vez que se prestigiam, ainda que em um plano não aparente, os interesses dos que possuem maior poder de barganha econômica, fazendo com que o Estado por meio do Direito mascare os antagonismos sociais e econômicos; e, por fim, (v) a visão de Oscar Vilhena Vieira acerca da subversão do Estado de Direito pode ser observada em diversos atos do Poder Público, não apenas em atos criminalizadores ou em violações explícitas aos Direitos Humanos. Compreende um conjunto de decisões orientadas para o mercado e para as grandes corporações, fazendo com que os consumidores e o próprio Estado acabem como reféns do mercado que ajudaram a criar: os invisíveis, os demonizados e os imunes. 155 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico REFERÊNCIAS ALVES, Alaôr Caffé. A função ideológica do Direito na Sociedade Moderna. In: CLÈVE, C. M.; BARROSO, Luís Roberto. Direito Constitucional: teoria geral do Estado. Coleção doutrinas essenciais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. 2 v. p. 25–34. ATHENIENSE, Alexandre. As transações eletrônicas e o direito de privacidade. Fórum administrativo, v.2, n.19, p.1170-1177, set. 2002. BARRETO. Luiz Paulo Teles Ferreira; MANTEGA. Guido. Exposição de Motivos Interministerial n° 171/2010 - MF/MJ. , 2010. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20072010/2010/Exm/EMI-171-MF-MJ-MPV-518-10.htm>. Acesso em: 6 jan. 2014. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 7a. ed. rev ed. São Paulo, SP: Editora Saraiva, 2009. BARROSO, Luís Roberto. O novo direito constitucional brasileiro: contribuições para a construção teórica e prática da jurisdição constitucional no Brasil. Belo Horizonte: Fórum, 2013. BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. BESSA, Leonardo Roscoe. Cadastro positivo: comentários à Lei 12,414, de 09 de junho de 2011. São Paulo, SP, Brasil: Editora Revista dos Tribunais, 2011. BESSA, Leonardo Roscoe. O consumidor e os limites dos bancos de dados de proteção ao crédito. São Paulo, SP, Brasil: Editora Revista dos Tribunais, 2003. 156 Processo e Conexões Humanas BRASIL. 8.078. Código de Proteção e Defesa do Consumidor. , 11 set. 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8078compilado.ht m>. Acesso em: 29 out. 2013. BRASIL. 12.414. Lei do Cadastro Positivo de Crédito. , 9 jun. 2011. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20112014/2011/Lei/L12414.htm>. Acesso em: 28 fev. 2014. CARVALHO, A. P. Gambogi. O consumidor e o direito à autodeterminação informacional: considerações sobre os bancos de dados eletrônicos. Revista de direito do consumidor, n.46, p.77-119, abr./jun., 2003. COSTA, Carlos Celso Orcesi Da. Cadastro positivo: Lei n. 12.414/2011 : comentada artigo por artigo. São Paulo: Saraiva, 2012.. CUNHA E CRUZ, Marco Aurélio Rodrigues da; OLIVA, Afonso Carvalho de. A (des)conexão entre a proteção constitucional do consumidor e a Lei n° 12.414/2011: a ineficácia social do direito posto quando cotejado com o direito pressuposto. Apresentação de Resumo (Tese Independente) apresentado em XII Congresso Brasileiro de Direito do Consumidor. Gramado/RS, 13 maio 2014. Disponível em: <http://brasilcon.org.br/brasilcon/apresentacao> DONEDA, D. A proteção dos dados pessoais como um direito fundamental. Espaço Jurídico Journal of Law, Joaçaba-SC, v. 12, n. 2, p. 91-108, jul./dez. 2011. DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. DRUMMOND, Victor. Internet, privacidade e dados pessoais. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003. EFING, Antônio Carlos. Bancos de dados e cadastro de consumidores. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. 157 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico FARIA, José Eduardo. Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. São Paulo: Malheiros Editores, 1994. GRAU, Eros Roberto. O direito pressuposto e o direito posto. Revista dos Tribunais v. 80, n. 673, p. 21–26 , nov. 1991. HERRERA FLORES, Joaquín. Teoria crítica dos direitos humanos: os direito humanos como produtos culturais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. LIMBERGER, T. A informática e a proteção à intimidade. Revista de Direito Constitucional e Internacional, v.8, n.33, p.110-124, out./dez., 2000. SILVA, J. A Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2008. TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. Um tal “Cadastro Positivo”. Revista do IDEC n. 186, p. 16–16 , abr. 2014. VIEIRA, Sônia Aguiar do Amaral. Inviolabilidade da vida privada e da intimidade pelos meios eletrônicos. São Paulo: J. de Oliveira, 2002. VIEIRA, Oscar Vilhena. A desigualdade e a subversão do Estado de Direito. Sur. Revista Internacional de Direitos Humanos v. 4, n. 6, p. 28–51 , jan. 2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S180 6-64452007000100003&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 4 jun. 2014. WEBER, Ricardo Henrique. Defesa do Consumidor: o direito fundamental nas relações privadas. Curitiba: Juruá, 2013. 158 Processo e Conexões Humanas INTIMIDADE E PRIVACIDADE NA INTERNET EM FACE DO MARCO CIVIL (LEI 12.965/14) Marcelo Xavier de Freitas Crespo 1 RESUMO. Orwell, Kafka, Big Data, Privacidade e Intimidade são temas correlacionados neste artigo que pretende comentar aspectos da lei 12.965/14 (Marco Civil da Internet). Desde uma introdução que contextualiza o leitor na perspectiva Orwelliana e Kafkiana em que vivemos, discorre-se sobre os fundamentos inspiradores do Marco Civil e suas principais disposições sobre a proteção de dados pessoais e da intimidade. Além disso, o texto questiona e comenta o conceito de dados pessoais, dados de conexão e dados de acesso a aplicações da Internet, sempre com vistas às normas protetivas da privacidade e intimidade veiculadas pelo Marco Civil. Afinal, em um mundo com contornos kafkianos é fundamental compreender as implicações da nossa exposição na Internet. PALAVRAS-CHAVE: Intimidade; Privacidade; Proteção de dados; Marco Civil ABSTRACT. Orwell, Kafka, Big Data, Privacy and Intimacy issues are correlated in this article which aims to discuss aspects of the Federal Law n.o 12.965/14 (Marco Civil da Internet). From an introduction that contextualizes the reader in Orwellian and Kafkaesque perspective in which we live, the article discusses about the inspiring fundamentals of Marco Civil da Internet and its main provisions on the protection of personal data and privacy. Furthermore, the article questions and comments on the 1 Doutor e Mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – FADUSP, possui Pós-graduação em Direito Penal e também em Segurança da Informação – CERTYRED – pela Universidade de Salamanca – USAL, leciona Direito Penal, Processual Penal e Direito Digital em cursos de graduação e pósgraduação, além de atuar como advogado nas áreas criminal, digital e de compliance. 159 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico concept of personal data, data connection and data access to Internet applications, all with a view to the protective standards of privacy and intimacy conveyed by the Marco Civil. After all, in a world with Kafkaesque contours is crucial to understand the implications of our exposure on the Internet. KEYWORDS: Intimacy; Privacy; Data Protection; Digital Bill of Rights 1. Orwell, Kafka e Big Data: ou como parecer um criminoso por tentar ter alguma privacidade na Internet Ao buscarmos um adjetivo para descrever o mundo amplamente conectado e vigiado, “Orwelliano” poderia ser o primeiro a ser pensado, especialmente em face da fiscalização e controle de nossas vidas pelo governo e empresas privadas, quase sempre com a utilização de nossos dados disponíveis na Internet. 2 No entanto, “Kafkiano” talvez seja ainda mais adequado porque remete a algo surreal, absurdo e de absoluta submissão ao imaginário, especialmente quando nos deparamos com uma força que não se presta para a maneira como se percebe o mundo. 3 2 O termo "Orwelliano" surgiu para se referir a qualquer reminiscência do regime ficcional do livro “1984” escrito por Eric Arthur Blair, mais conhecido pelo pseudônimo de George Orwell e que retrata a difusa fiscalização e controle de um determinado governo na vida dos cidadãos, além da crescente invasão sobre os direitos do indivíduo, a partir da narrativa de Winston Smith, um homem com uma vida aparentemente insignificante, que recebe a tarefa de perpetuar a propaganda do regime através da falsificação de documentos públicos e da literatura a fim de que o governo sempre esteja correto no que faz. Smith fica cada vez mais desiludido com sua existência miserável e assim começa uma rebelião contra o sistema. 3 A expressão “Kafkiano” ganhou popularidade especialmente no vernáculo inglês e significa algo complicado, labiríntico e surreal, como as situações encontradas nas obras de Franz Kafka, um dos escritores 160 Processo e Conexões Humanas Uma descrição sobre o contexto “Kafkiano” pode ser extraída da história de Janet Vertesi, professora na Universidade de Princeton e que, quando engravidou, decidiu iniciar uma das mais difíceis missões que se pode ter atualmente: evitar que os serviços de propaganda inferissem que estava grávida. É que no mundo conectado da atualidade uma simples aquisição de fraldas pela Internet seria suficiente para que as máquinas de pesquisa da Internet, aplicativos de redes sociais e serviços de propaganda direcionada deduzissem que estava grávida. E Janet não queria ser importunada pelas propagandas. O relato de Janet Vertesi compartilhado numa palestra proferida na conferência “Theorizing The Web 2014” (Teorizando/Discutindo a Rede 2014) é pertinente porque as mulheres grávidas são consideradas pelos anunciantes online como uma das entidades mais valiosas na rede, havendo, inclusive, alguns cálculos que apontam que os dados de uma mulher grávida podem valer até quinze vezes mais do que os de outras pessoas. 4 Isso porque uma mulher grávida está prestes a embarcar em uma série de decisões de compra que se estende para a vida de seu filho. Assim, a história de Janet é sobre o Big Data, mas ao contrário. 5 É um relato curioso e precioso do que foi necessário mais influentes do século XX, nascido em Praga, e que publicou obras como “Metamorfose” (publicado em 1915 e narra o caso de Gregor Samsa, que após acordar de um pesadelo, vê seu corpo transformado em um inseto daninho) e “O Processo” (publicado em 1925 e conta o caso de Josef K., envolto em um obscuro processo sobre um crime que lhe é desconhecido). 4 Existem algumas calculadoras online que projetam valores, em tese, referentes aos nossos dados, o que varia conforme o perfil de cada pessoa. Como exemplo, vide o “How much is your personal data worth?” (Quanto valem seus dados pessoais?) http://www.ft.com/intl/cms/s/2/927ca86e-d29b-11e2-88ed00144feab7de.html#axzz3ABNVBnKW, acesso em 12.08.14, às 10h03min. 5 Big Data é uma expressão que ganhou popularidade para descrever o crescimento, a disponibilidade e o uso exponencial de informações considerando o crescente volume, a variedade e a velocidade de informações produzidas a todo momento. O Big Data é fundamental 161 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico (e difícil) fazer para evitar ter dados coletados, ser localizada e encontrar-se inserida em bancos de dados sem seu consentimento. 6 Para tanto, em primeiro lugar, ela determinou que ninguém do seu relacionamento fizesse menção à sua gravidez nas redes sociais e, para que conseguisse isso, telefonou ou escreveu individualmente para amigos e familiares para lhes dar a boa notícia, e pediu-lhes para não falassem sobre o assunto. Apesar dos pedidos, um tio que morava na Austrália enviou-lhe uma mensagem com felicitações, o que a obrigou a bloqueá-lo e apagar todos os registros de conversas com ele nas redes sociais. Após os pedidos de que nada fosse comentado nas redes sociais, Vertesi passou a usar um serviço online denominado “TOR” para acessar as páginas que queria visitar na Internet, tudo com vistas a evitar que fosse rastreada por cookies e outras faixas digitais normalmente decorrentes do uso de navegadores tradicionais. 7 Sempre que pode, fez compras offline e pagando em dinheiro no lugar de usar cartões. Precisou até mesmo criar uma conta especifica para que suas encomendas fossem entregues num endereço específico, onde locava um armário para armazená-las, tudo com vistas a não permitir a associação das compras consigo mesma. O momento mais significativo, no entanto, surgiu ao tentar comprar um carrinho de bebê. Isso porque seu marido tentou o equivalente a quinhentos dólares em cartões-presente (gift cards) de uma porque ter informação é sinônimo de ter poder. Assim, se uma empresa souber como utilizar de forma organizada os dados que tem em mãos, poderá saber como melhorar seus produtos, serviços ou mesmo como criar uma estratégia de marketing mais eficiente, além de cortar gastos, produzir mais e evitar o desperdício de recursos, bem como superar os concorrentes, por exemplo. 6 Vídeo da palestra disponível em http://new.livestream.com/ttwconference/2014studioc/videos/4907325 1, acesso em 12.08.14, às 19h07min. 7 TOR é um software e plataforma de acesso à Internet que protege a privacidade dos usuários porque impede que registros de navegação e localização sejam coletados. Vide www.torproject.org, acesso em 12.08.14, às 19h14min. 162 Processo e Conexões Humanas conhecida loja, mas não obteve êxito porque isso desencadeou um alerta: os varejistas tem que informar esse tipo de operação para as autoridades porque pode significar “lavagem” de dinheiro. Outro aspecto que torna a conduta de Janet alvo de desconfiança pelas autoridades norte-americanas é o fato de ter utilizado o TOR como software de acesso a Internet. Certamente suas razões para utilizá-los eram legítimas, mas isso é visto pela Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos – NSA (National Security Agency) como um indicativo de alguém que deseja fazer algo ilícito porque o TOR ficou conhecido como ferramenta para a comercialização ilícita de medicamentos, além de ser um mercado de Bitcoins. 8 Sob este ponto de vista, aqueles que não querem deixar vestígios digitais obviamente pretendem fazer algo errado. Eis, portanto, a emblemática situação onde o (aparente) simples desejo de se manter tornou Janet um alvo de investigação das autoridades porque suas condutas amoldam-se em práticas indiciárias de ilícito. Assim, a experiência de Vertesi mostra que se tomarmos medidas para evitarmos ser rastreados, podemos até mesmo aumentar a probabilidade de que efetivamente sejamos, o que extrapola o limite Orwelliano, mostrando-se verdadeiramente Kafkiano. 2. O registro e guarda dos dados e metadados como parte de um modelo de negócio Há tempos o homem tem se esmerado em desenvolver a tecnologia de forma que as comunicações se tornem cada vez mais ágeis e constantes. Esse esforço nos trouxe à Era do Big Data, onde os dados que circulam na Internet mediante o uso de smartphones e de sistemas de geolocalização (especialmente nas 8 Bitcoin é uma moeda digital criada em 2009 por Satoshi Nakamoto. A expressão também se refere ao programa projetado para usar a citada moeda e, ainda, a rede ponto-a-ponto (peer-to-peer) que ele forma. Vide www.bitcoinbrasil.com.br, acesso em 12.08.14, às 20h01min. 163 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico redes sociais e nos correios eletrônicos) constituem verdadeira extensão de nós mesmos e, em seu conjunto, algo como uma inteligência coletiva digital. Algo formidável e inimaginável há alguns anos atrás. Reflitamos, a partir desta constatação, como individualmente considerados lidamos com estes dados para realizar tomar decisões cotidianas. Quanto poder teria quem pudesse fazer o mesmo com a Internet aplicada ao mundo político, financeiro, bélico e, porque não, pessoal? Quanto vale saber quem será o próximo presidente ou qual time de futebol tem mais possibilidade de ganhar o campeonato? Por conta disso é que já se afirmou que os dados pessoais são o novo petróleo. Ademais, os sistemas são construídos com base em arquiteturas que permitem a coleta de dados em massa e seu respectivo monitoramento e, por isso, pode-se dizer que a vigilância é o atual modelo de negócios da Internet. A Internet e a tecnologia mudaram as relações sociais, havendo até mesmo algumas situações incomuns (para não dizer estranhas) onde, por exemplo, dissidentes sírios usam o Facebook para organização ao passo que o governo usa o mesmo produto para prender seus cidadãos. Nesta perspectiva, o governo já têm uma grande quantidade de poder e quando se aproveita da tecnologia esse o poder é bastante ampliado. E nem é preciso que o próprio governo faça esse monitoramento, já que o modelo de negócios da Internet impõe que as próprias empresas o façam. Basta a Administração Pública pegue uma cópia. Veja que o governo não determinou que as pessoas devem carregar dispositivos de rastreamento, mas todos nós o fazemos com nossos tablets e celulares. A tecnologia mudou a extensão do que a vigilância pode fazer, e isso pode ser preocupante. Em uma comparação com o século XIX, momento em que a Revolução Industrial solenemente ignorou as consequências de sua ampla e rápida automação gerando sérias questões sobre a poluição, considerando-se os dias atuais, a privacidade e a segurança estão 164 Processo e Conexões Humanas sendo ignoradas de forma semelhante em favor de rápida inovação online na era digital. Conhecidos provedores de serviços da Internet que tem estado em voga nos últimos anos e que possuem um número estrondoso de usuários – o Google e o Facebook, mas não apenas estes dois – possuem modelos de negócios dependentes da utilização dos dados pessoais. Mais do que os dados, utilizam os metadados, que são são muito mais fáceis de armazenar, pesquisar e analisar do que real conteúdo, além de ter valor muito superior (não só para as empresas, mas também para as agências de inteligência). Metadados são informações sobre as informações, algo como o nome, o artista e o álbum sobre determinada música, o horário e a posição geográfica de uma foto, as informações sobre uma conversa online como quais os participantes, onde se encontram geograficamente e o horário que isso ocorreu. Os metadados são, portanto, fundamentalmente, dados de vigilância. Ao entregar os dados, os usuários têm uma expectativa de confiança que o Google, Facebook e outros corretores de dados irão fazer a coisa certa com eles. No entanto, a grande maioria das pessoas tem dificuldade em saber exatamente quem tem acesso aos dados que estão gerando em toda a Internet e, ainda, desconhecem, em absoluto, o quanto isso vale. Não há números disponíveis no Brasil sobre essa percepção pelos usuários e se entendem que, nesta perspectiva, geram riqueza em troca do uso dos serviços da Internet, muitos deles ditos “gratuitos”. Especialmente quando o serviço se apresenta como “gratuito” é certo que a contrapartida pela utilização são a obtenção e armazenamento dos dados pessoais com vistas a viabilizar o modelo de negócio. E, para exemplificar esse modelo, podemos citar o recente caso do jornalista que, por quarenta e oito horas dedicou-se apenas a curtir tudo o que aparecia na sua timeline do Facebook. 9 9 Timeline é a linha do tempo onde são dispostas as publicações ou posts (postagens) dos contatos do usuário e também aqueles patrocinados (publicidade sugerida pel rede social). 165 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico Tal experimento demonstrou que isso pode levar o usuário a uma espécie de ciclo constante de conteúdo relacionado, isto é, quando se curte algo no Facebook, links relacionados àquele curtido aparecem na timeline do usuário. Para por em prática o experimento o jornalista estabeleceu duas regras: (i) apenas os quatro primeiros itens relacionados seriam curtidos; (ii) não curtiria notícias de morte. De resto, estava tudo liberado. Após algum tempo, no celular do jornalista só havia postagens de marcas e anúncios publicitários, sem presence de interação dos seus amigos. Isso aconteceu porque a disposição do conteúdo na timeline não é aleatória, tudo é organizado por um poderoso algoritmo do Facebook que define o que aparece para cada um dos usuários com base no histórico de navegação e supostos interesses. O algortimo escondeu as atualizações de pessoas e exibiu apenas propagandas. Tais considerações põem em discussão o que se considera uma invasão à privacidade e à intimidade. Isso porque é comum de que a proteção constitucional à intimidade prevista no art. 5o, X da Constituição Federal seja dita como intransponível por intromissões externas. Em geral, a doutrina difere a vida privada da intimidade afirmando que são conceitos interligados mas de grandezas distintas, isto é, a vida privada é mais ampla, englobando em seu conceito a intimidade. Nesta perspectiva, a intimidade tem relação mais próxima com as conexões subjetivas e de trato íntimo da pessoa, suas relações de familiares e amizade ao passo que a vida privada envolve os outros relacionamentos, tais como asa relações comerciais, de trabalho e de estudo. 10 Vê-se, portanto, que as empresas e os governos não precisam necessariamente das informações reais, como o conteúdo de uma conversa telefônica ou de mensagens trocadas em aplicativo da Internet, mas dos metadados. E a consequência mais nefasta disso pode ser a aplicação da lei nos termos Kafkianos especialmente em casos inofensivos como o de Janet Vertesi. Por isso é fundamental regulamentar de alguma forma o 10 Por todos, vide MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 28a ed. São Paulo: Atlas, 2012, pg. 53-54. 166 Processo e Conexões Humanas acesso a tais dados e metadados, um dos pontos que o Marco Civil pretendeu tratar mas não o esgotou. 3. Os registros de acesso de aplicações O armazenamento de registros eletrônicos sempre foi uma questão presente nas discussões do Marco Civil da Internet, sendo que a redação original do PL n.o 2.126/11 previa as seguintes situações: a) a obrigatoriedade de armazenamento de registros de acesso à Internet (o registro do usuário quando este se conecta à rede) pelo período de um ano; b) a vedação por parte dos provedores de acesso a Internet de coleta e armazenamento de registros de acesso à aplicações de Internet (o provedor de Internet não pode registrar os serviços e aplicações que seus usuários acessam na Internet); e c) a faculdade de armazenamento dos registros de aplicações de Internet. À exceção da última situação, a redação não podia ser questionada. Dar aos provedores a faculdade de armazenar os registros dos usuários de aplicações significava que a eles caberia a plena escolha de fazê-lo ou não. Incialmente poder-se-ia pensar que o fato de não o fazerem poderia significar a manutenção da privacidade dos usuários, afinal, quanto menos dados coletados, menos informações seriam cruzadas e a extração de análises sobre o comportamento de cada um de nós restaria prejudicada. No entanto, um modelo de negócios sem o armazenamento de informações teria um efeito indesejável bastante significativo. Sem dados seria impossível formar um conjunto de evidências e provas que permitiria a solução de crimes praticados com o uso da tecnologia e mesmo os que não tenham tido a tecnologia como seu principal instrumento. Isso porque a metodologia de investigação de crimes digitais depende do registro de dados, especialmente os de conexão para que se possa identificar sua origem o que, na prática, representa saber geograficamente onde está o computador utilizado para praticar o ilícito. É bem verdade que nem sempre a identificação do computador não significa saber quem foi o autor, o que 167 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico dependeria, ainda, dos métodos tradicionais de investigação. Mesmo neste caso, o registro dos dados é fundamental para investigações de cunho criminal. Portanto, o ideal é que se alcançasse uma solução balanceada que não impedisse simplesmente a coleta de dados, mas que, ao mesmo tempo, impusesse alguma restrição ao que fosse armazenado. Ou seja, um mínimo de registros viabilizaria a identificação dos usuários, evitando-se, consequentemente, manifestações anônimas e, ao mesmo tempo, propiciaria a investigação de ilícitos praticados na rede. Esse conteúdo mínimo seriam os registros de acesso à aplicações. Não seriam armazenados, portanto, os registros de navegação do usuário após seu acesso à aplicação porque isso permitiria identificar hábitos de uso do serviço, portanto invadindo a individualidade do usuário nas suas atividades cotidianas. Isso –diga-se – limitaria de forma significativa o modelo de negócios baseado na coleta de dados, mas resguardaria um tanto quanto mais a privacidade dos usuários. Nessa perspectiva balanceada de armazenamento dos dados seria necessário, portanto, diferenciar os registros de mero acesso daqueles que, de alguma forma, pudessem revelar os hábitos do usuário enquanto conectado à aplicação. 11 Mas aqui cabem algumas rápidas considerações. Para que houvesse essa perspectiva balanceada, necessário seria a manutenção: a) do atual modelo de negócios da Internet (de registro e guarda de dados/logs); b) da privacidade e intimidade dos usuários; e c) do material necessário para compilação de conjunto probatório para apuração de ilícitos, tais como: c.1) os registros de acesso à aplicações de Internet para a única e exclusiva finalidade de identificação 11 Neste sentido, vide: LEONARDI, Marcel. Responsabilidade civil dos provedores de serviços de internet. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2005. P. 228. 168 Processo e Conexões Humanas da origem da conexão à Internet utilizada para a prática de ilícitos; c.2) os registros de navegação nas aplicações de Internet para fins de monitoramento de navegação (conteúdo) após determinação veiculada por ordem judicial. Em suma, os provedores de serviços devem utilizar os meios tecnológicos e equipamentos informáticos que permitam a identificação dos dados de conexão dos usuários de forma que tais dados sejam disponibilizados de forma atualizada a quem de direito em caso de serem vítimas de ilícitos civis ou penais. Concluindo, é necessária a guarda de registros de acesso a aplicações de Internet que possam identificar a origem da conexão. Neste sentido, apesar da redação original do projeto do Marco Civil, precisamente o art. 5o, VIII não fazer essa previsão, inclusive diferenciando os registros de conexão à dos de navegação nos aplicativos, a versão final do texto alterou essa situação, tornando obrigatório o armazenamento de registros de acesso a aplicações na Internet, além de outras previsões conforme se verá abaixo. 4. O Marco Civil – Lei 12.965/14 – e a proteção da privacidade e dos dados pessoais O projeto do Marco Civil foi apresentado em 24 de agosto de 2011 e tramitou no Congresso até o início de 2014 antes de ser aprovado e se tornar Lei Ordinária. Antes de sua aprovação o projeto recebeu nada menos que trinta e cinco emendas e um substitutivo, sempre no intuito de adequar interesses e ajustar imprecisões técnicas e redacionais. Algumas das mudanças foram justamente referentes à privacidade e proteção dos dados pessoais e tem íntima ligação com tudo o 169 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico quanto exposto acima. 12 Pode-se dizer, assim, que o Marco Civil buscou inspiração nos textos da Convenção Europeia de Direitos Humanos e na Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia que, embora não sejam textos que apresentem detalhes de como devem ser assegurados, deixam claro que todos tem direito ao respeito da sua vida privada e também à proteção aos dados de caráter pessoal. 13 12 Aliás, no que tange a privacidade e proteção de dados pessoais, não só o projeto do Marco Civil tratava da matéria mas também o Anteprojeto de Proteção de Dados Pessoais, especialmente após os fatos mundialmente divulgados sobre a utilização de programas de vigilância pelo governo dos Estados Unidos da América, algo que teria extrapolado a vigilância dos cidadãos, para atingir até mesmo a Presidência da República. Sobre o Anteprojeto de Proteção aos Dados Pessoais, vide http://www.culturadigital.br/dadospessoais/, acesso em 13.08.14, às 08h46min. 13 Na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, no Titulo I – Direitos e Liberdades, no art. 8o – Direito ao respeito pela vida privada e familiar – consta o seguinte: “1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência. 2. Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem – estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros.” O texto da Convenção Europeia dos Direitos do Homem encontra-se disponível em http://www.echr.coe.int/Documents/Convention_POR.pdf, acesso em 13.08.14, às 08h54min. Consta da mencionada Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, no Título II – Das liberdades, no Art. 8o dispõe sobre a proteção de dados pessoais nos seguintes termos: “1. Todas as pessoas têm direito à protecção dos dados de carácter pessoal que lhes digam respeito. 2. Esses dados devem ser objecto de um tratamento leal, para fins específicos e com o consentimento da pessoa interessada ou com outro fundamento legítimo previsto por lei. Todas as pessoas têm o 170 Processo e Conexões Humanas Não se poderia deixar de comentar, ainda, a inquestionável inspiração n Constituição Federal que trata da proteção insculpida basicamente no art. 5o, inciso X que dispõe serem “invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” e o inciso XII que dispõe ser “inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal” disposições estas que são fundamentais para interpretar o ordenamento jurídico em face da notória hierarquia constitucional em face da legislação ordinária. Com as devidas inspirações acima mencionadas, o Marco Civil teve, inicialmente, uma abordagem geral sobre as questões envolvendo privacidade e a proteção de dados, tratando do tema na forma de princípios gerais para o uso da Internet. Este cenário, no entanto, mudou significativamente após o episódio das revelações feitas por Edward Snowden, o que inspirou o legislador (certamente com pedido da Presidência da República) a incluir mais disposições específicas sobre a privacidade e proteção de dados. 14 direito de aceder aos dados coligidos que lhes digam respeito e de obter a respectiva rectificação. 3. O cumprimento destas regras fica sujeito a fiscalização por parte de uma autoridade independente.” O texto da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia encontra-se disponível em http://eurlex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:C:2010:083:0389:0 403:pt:PDF, acesso em 13.08.14, às 09h10min. 14 As revelações de Edward Snowden sobre a espionagem ter afetado até mesmo a Presidência da República levaram a Polícia Federal instaurar o IPF n.o 10/2013 (que tramitou pela Delegacia de Repressão aos Crimes Cibernéticos em Brasília) para investigar os fatos. As operadoras de telefonia e internet foram chamadas a colaborar explicando como se dá o funcionamento de suas atividades e, em especial, se havia alguma ordem ou subordinação do governo norte171 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico Antes de ingressar na análise do texto, todavia, é preciso ressaltar que o Brasil não tem uma lei geral de proteção de dados, sendo que as disposições existentes são, basicamente, de três ordens: princípios e direitos dos usuários, especificações sobre armazenamento dos dados e o acesso aos dados pessoais. Na redação final o Marco Civil segue com questões principiológicas parecidas com as inicialmente redigidas, mantendo-se a omissão conceitual do que sejam “dados pessoais”, o que parece ter sido feito propositalmente em face da existência de um Anteprojeto de Proteção de Dados Pessoais. 15 A ausência de uma definição, no entanto, não significa a impossibilidade de fazê-lo porque é possível inferir o conceito de decisões jurisprudenciais e da academia como sendo tudo aquilo que tem relação com cada indivíduo. Por outro lado, o texto foi suficientemente claro para definir alguns tipos de dados, como os de conexão e os de acesso às aplicações. Tendo-se em consideração as explicações acima, o Marco Civil relacionou os princípios da Internet brasileira (art. 3o) e, neste rol, mencionou expressamente a proteção da privacidade (inciso II) e a proteção dos dados pessoais, na forma da lei (inciso III). Uma leitura atenta do texto mostra que as proteções a privacidade e aos dados pessoais, apesar das similitudes e de se encontrarem intrinsecamente interligados, apresentam-se em incisos distintos, o que apresenta a ideia de que privacidade e dados pessoais são coisas distintas e com escopos de proteção distintos. Sobre o inciso III e a menção de que a proteção se dará nos termos da lei, temos que a proteção aos dados pessoais deverá ser tratada em lei específica, cabendo ao Marco Civil as disposições especificamente relacionadas às questões da Internet e suas peculiaridades. americano referente à captação de dados dos usuários e das autoridades públicas. 15 O texto pode ser acessado em http://www.acessoainformacao.gov.br/menu-de-apoio/recursos-passoa-passo/anteprojeto-lei-protecao-dados-pessoais.pdf/view, acesso em 13.08.14, às 14h53min. 172 Processo e Conexões Humanas Justamente nesta perspectiva de proteção da privacidade acima mencionada que o art. 7o do Marco Civil enumera os seguintes direitos assegurados aos usuários da Internet: “I – inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; II – inviolabilidade e sigilo do fluxo se suas comunicações pela Internet, salvo por ordem judicial, na forma da lei; III – inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas e armazenadas, salvo por ordem judicial; (...) VI – informações claras e completas constantes dos contratos de prestação de serviços, com detalhamento sobre o regime de proteção aos registros de conexão e aos registros de acesso a aplicações de Internet, bem como sobre práticas de gerenciamento da rede que possam afetar sua qualidade; (...) VII – não fornecimento a terceiros de seus dados pessoais, inclusive registros de conexão, e de acesso a aplicações de Internet, salvo mediante consentimento livre, expresso e informado ou nas hipóteses previstas em lei; VIII – informações claras e completas sobre a coleta, uso, armazenamento, tratamento e proteção de seus dados pessoais, que somente poderão ser utilizadas para finalidades que: a) justifiquem sua coleta; b) não sejam vedadas pela legislação; c) estejam especificadas nos contratos de prestação de serviços ou em termos de uso de aplicações de Internet; 173 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico IX – consentimento expresso sobre a coleta, uso, armazenamento e tratamento de dados pessoais, que deverá ocorrer de forma destacada das demais cláusulas contratuais; X – exclusão definitiva dos dados pessoais que tiver fornecido a determinada aplicação de Internet, a seu requerimento, ao término da relação entre as partes, ressalvadas as hipóteses de guarda obrigatória de registros previstos nesta Lei; (...) XIII – aplicação das normas de proteção e defesa do consumidor nas relações de consumo realizadas na Internet; Os incisos I a III do art. 7o, em termos gerais, repetem as garantias sobre privacidade que já eram tratadas na Constituição Federal no art. 5o, X e XII retro mencionadas, o que não deixa de ser uma redundância. Talvez se pudesse considerar uma novidade do inciso III do art. 7o a maior clareza sobre os limites de proteção à inviolabilidade das comunicações, isto é, no sentido de que não só o conteúdo da comunicação como também os dados cadastrais e metadados são merecedores de proteção na medida em que podem interferir na intimidade. 16 e 17 Ou seja, a 16 Metadados são informações sobre as informações, algo como o nome, o artista e o álbum sobre determinada música, o horário e a posição geográfica de uma foto, as informações sobre uma conversa online como quais os participantes, onde se encontram geograficamente e o horário que isso ocorreu. Os metadados são, portanto, fundamentalmente, dados de vigilância. 17 Não se ignora que houve questionamentos sobre o alcance do inciso XII do art. 5o da Constituição Federal sobre a possibilidade de interceptação telemática já que o mencionado inciso dispõe ser “inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”. Entendia-se que “no último caso” referia-se à interceptação telefônica e que, por isso, somente esta era admitida. Neste sentido: GRECO FILHO, Vicente. Interceptação telefônica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 17-18; DELMANTO, Roberto; DELMANTO JR., Roberto. “A 174 Processo e Conexões Humanas proteção estende-se aos dados armazenados não se limitando os que se encontram em trânsito. Verifica-se, ainda, que o inciso VI destina-se claramente aos regulamentos de privacidade que regem os serviços oferecidos pela Internet que deverão obrigatoriamente explanar como se dá a proteção de dados dos usuários e seu gerenciamento. Esta previsão deve ser interpretada em consonância com o disposto no inciso XIII que corrobora o entendimento já pacificado na jurisprudência que as normas de defesa do consumidor se aplicam às relações de consumo pela Internet e que, de alguma forma, já haviam sido prescritas no Decreto 7.962/12, que “Regulamenta a Lei no 8.078 (Código de Defesa do Consumidor), de 11 de setembro de 1990, para dispor sobre a contratação no comércio eletrônico.” Até mesmo porque Permissão Constitucional e a nova lei de interceptação telefônica”, Boletim do IBCCrim, n. 47, out. 96, p. 2; PITOMBO, Sérgio Marcos de Moraes. Sigilo nas comunicações. aspecto processual penal, Boletim IBCCrim São Paulo, nº 49, dez 1996, p. 8; AVOGLIO, Luis Francisco Torquato. Provas ilícitas – interceptações telefônicas e gravações clandestinas. 3 ed. São Paulo: RT, 2003, p. 173-174; GRINOVER, Ada Pellegrini. Liberdades Públicas e Processo Penal: as interceptações telefônicas. 2. ed. São Paulo: RT, 1982, p. 104. Aliás, insta salientar que a Lei Geral de Telecomunicações bem distingue a comunicação telefônica da comunicação de dados. Neste sentido, o §1º do art. 60 da Lei n. 9.472/97 define que “Telecomunicação é a transmissão, emissão ou recepção, por fio, radioeletricidade, meios ópticos ou qualquer outro processo eletromagnético, de símbolos, caracteres, sinais, escritos, imagens, sons ou informações de qualquer natureza”. No entanto, o parágrafo único do art. 69 distingue as formas de telecomunicações: “Forma de telecomunicação é o modo específico de transmitir informação, decorrente de características particulares de transdução, de transmissão, de apresentação da informação ou de combinação destas, considerandose formas de telecomunicação, entre outras, a telefonia, a telegrafia, a comunicação de dados e a transmissão de imagens.” Ocorre que a Lei 9.296/96 já previa a interceptação telemática e esta veio sendo aplicada na prática desde então. A discussão colocada neste texto, então, extrapola estas considerações analisar o alcance em face dos metadados. 175 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico protegendo os dados dos usuários, sua privacidade ficará resguardada de terceiros que não deveriam ter acesso a elas. Também devemos ressaltar que uma prática bastante comum pelas empresas que coletam dados é o compartilhamento destes com terceiros, seja porque praticam atividades em parceria, seja pelo próprio modelo do negócio. Neste ponto o Código de Defesa do Consumidor já determinava que o consumidor fosse informado todas as vezes em que seus dados fossem inseridos em base de dados de consumidores, embora não se impedisse que fossem distribuídos a partir de base de dados já existentes. Isso permitia o entendimento de que o comércio de banco de dados era permitido. O Marco Civil, no inciso IX do art. 7o impede tal prática, a menos que o consumidor tenha autorizado após consentimento livre, expresso e informado, ou nas hipóteses previstas em lei. Uma importante questão, portanto, reside no que pode configurar o consentimento livre, expresso e informado. Temos que “livre” remete à ideia de que o usuário não pode ser compelido a aceitar os termos da contratação. E, neste ponto, o mais adequado é que cada usuário pudesse se manifestar individualmente sobre este consentimento, mesmo que a contratação encontre-se pautada por contrato de adesão, com cláusulas impostas unilateralmente, sem negociação nem discussão pelas partes envolvidas. Em outras palavras, deveria o usuário ter a opção de rejeitar/não aceitar as cláusulas ou até mesmo o contrato como um todo, desde que seja informado das consequências possíveis, como, por exemplo, a eventual impossibilidade de utilizar o serviço todo devido ao modelo do negócio. Evidentemente isso dependeria, igualmente, da boa-fé dos provedores de serviços em apresentar, quando possível, versão limitada de utilização em face a eventual rejeição de alguma cláusula pelo usuário. Sabe-se, no entanto, que o dinamismo existente nas relações comerciais da atualidade dificultariam esta situação. Não obstante, parece-nos a opção mais garantista quanto aos direitos dos usuários. Retomando a questão do consentimento informado, também é preciso nos remete ao disposto no inciso VII, que 176 Processo e Conexões Humanas determina que o tratamento e o gerenciamento dos dados pessoais dos usuários só pode ocorrer se houver informação clara e completa sobre como se dará a coleta, o armazenamento e a proteção, justificando, ainda, as razões da coleta. Portanto, são exigências nos mesmos termos daqueles constantes no inciso IX e, que devem ocorrer de foram similar ao contido no Código de Defesa do Consumidor no art. 54, §3o (“Os contratos de adesão escritos serão redigidos em termos claros e com caracteres ostensivos e legíveis, cujo tamanho da fonte não será inferior ao corpo doze, de modo a facilitar sua compreensão pelo consumidor.”). Conclui-se, quanto ao consentimento livre, expresso e informado, que se trata daquele em que o usuário não é forçado a anuir com os termos da contratação e, as cláusulas que discorrerem sobre qualquer tipo de tratamento de dados (incluindo-se aí o fornecimento a terceiros) deverão ser redigidas de forma destacada e, preferencialmente, separadas das demais. Nesta perspectiva, a utilização dos check boxes não é obrigatória mas recomendável para o aceite dos termos de uso e privacidade. Fica claro, portanto, que o Marco Civil exige que as empresas provedoras de serviços e aplicações na Internet adequem-se, reescrevendo ou aditando seus termos de uso e privacidade, detalhando como os dados serão tratados. Por seu turno, o inciso X parece ter pretendido trazer ao ordenamento pátrio o conceito de purpose limitation, que é a limitação do uso dos dados para a finalidade que motivou originalmente a coleta, determinando-se, ainda, que os mesmos sejam permanentemente excluídos ao fim do propósito. Ou seja, pretendeu-se inserir uma cláusula de direito ao esquecimento, mas embora o texto pareça ter tratado do assunto, não o fez. 18 18 Direito ao esquecimento é algo ainda bastante polemico e discutível a cada caso porque envolve, em muitas situações, o direito de informar e o de resguardar a privacidade e intimidade de cada indivíduo. Recentemente uma decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia reconheceu o “direito ao esquecimento” no caso de um cidadão espanhol. Sobre a notícia, vide: Direito ao esquecimento” esquece o quê: privacidade ou liberdade de expressão? Disponível em http://www.publico.pt/mundo/noticia/direito-ao-esquecimento177 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico Isso porque o inciso X apenas exige que os dados sejam apagados com o fim da relação usuário/provedor de serviços. Ou seja, mesmo que o fim pelo qual os dados foram coletados venha a cessar, o provedor de serviços poderá continuar a armazenar e tratar os dados até o momento em que o usuário requisitar a sua exclusão ou cancelar seu contrato. Na prática, a imensa maioria dos dados seguirá armazenada vez que muito raramente os usuários cancelam suas relações com os serviços, quase sempre deixando-os de utilizar. Alguns contornos sobre o que sejam os dados podem ser obtidos pela leitura do inciso VII do art. 7o, que parece não considerar os registros de conexão e de acesso a aplicações como dados pessoais, além disso, diferenciando-os (os registros de conexão e de acesso a aplicações). Este entendimento é reforçado pelo art. 10 que também diferencia os dados de conexão dos dados pessoais e o conteúdo das comunicações ao mencionar que “A guarda e a disponibilização dos registros de conexão e de acesso a aplicações de Internet de que trata esta Lei, bem como de dados pessoais e do conteúdo de comunicações privadas, devem atender à preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das partes direta ou indiretamente envolvidas.” Veja-se, mais uma vez, que o texto individualiza os registros de conexão e os dados pessoais, denotando serem mesmo distintos. Além disso, como nada se menciona sobre os metadados, parece que o legislador não os quis incluir no âmbito dos dados pessoais, muito embora, como dito acima, não haja seque uma definição legal do que sejam dados. Fato é que essa dicotomia (dados pessoais e registros de conexão) e a omissão quanto aos metadados acaba por limitar a proteção dos direitos e garantias dos usuários, devendo ser objeto de melhor regulamentação. Ainda sobre os registros e dados pessoais, insta comentar, ainda, aspectos relacionados à sua proteção, o que se faz com base nos arts. 3o e 7o. Nestes artigos a lei delineia regras gerais de proteção e retenção dos registros de conexão, de esquece-o-que-privacidade-ou-liberdade-de-expressao-1637145, acesso em 14.08.14, às 12h06min. 178 Processo e Conexões Humanas aplicações e a requisição destes. Verifica-se, porém, que a regra geral é que qualquer registro ou dado, a exceção dos dados cadastrais requisitados por autoridades competentes, somente pode ser fornecido após ordem judicial específica (incisos II e III, art. 7o), embora o texto possa levar a entendimento distinto, talvez pelo fato de ter se transformado numa verdadeira “colcha de retalhos” após tantos anos de trâmite. Neste sentido, o art. 10 determina que “a guarda e a disponibilização dos registros de conexão e de acesso a aplicações de Internet de que trata esta Lei, bem como de dados pessoais e do conteúdo de comunicações privadas, devem atender à preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das partes direta ou indiretamente envolvidas.”. Ou seja, o art. 10 reitera os princípios elencados no art. 3o que, por seu turno, já estavam insculpidos no Código Civil e na Constituição Federal mas dá a entender que os metadados estão inseridos no âmbito da privacidade e intimidade. É justamente o §1o do art. 10 que pode levar ao entendimento de que não seria necessária ordem judicial para a obtenção de registro quando determina que “o provedor responsável pela guarda somente será obrigado a disponibilizar os registros mencionados no caput, de forma autônoma ou associados a dados pessoais ou a outras informações que possam contribuir para a identificação do usuário ou do terminal, mediante ordem judicial, na forma do disposto na Seção IV deste Capítulo, respeitado o disposto no art. 7o.”. Além disso, o Marco Civil, apesar de trazer alguns conceitos no art. 5o, não definiu o que se entende por “servidor”, o que pode causar questionamentos sobre quem se enquadra neste conceito. Por exemplo, um comércio qualquer que forneça Internet wi-fi gratuitamente para seus clientes, pode ser considerado um provedor de acesso? Um mero proxy? 19 Ou um servidor de aplicações? Uma leitura compartimentada, sem 19 Proxy é um servidor intermediário que atende as requisições repassando os dados do cliente à frente. Assim, um usuário (denominado cliente) conecta-se a ele (proxy) requisitando um serviço (arquivo, conexão, página web, etc) disponível no outro servidor. 179 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico considerar todo o texto do Marco Civil poderia levar ao entendimento de que o provedor poderia, ao seu bel-prazer, fornecer os registros aos quais o caput do art. 10 se refere, incluídos aí os dados pessoais. Caso se negasse, estaria obrigado mediante ordem judicial. Justamente por essa razão é que o art. 10 deve ser interpretado conjuntamente com o art. 7o, III e 15, §3o, que determinam que os registros estáticos só podem ser fornecidos após ordem judicial específica. Relativamente ao conteúdo das mensagens, sejam elas estáticas ou estejam em fluxo, a proteção de dá com base no §2o do art. 10, nos seguintes termos “O conteúdo das comunicações privadas somente poderá ser disponibilizado mediante ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer, respeitado o disposto nos incisos II e III do art. 7.o.” A exceção encontra-se no §3o que determina que o disposto no caput do art. 10 não impede o acesso aos dados cadastrais que identifiquem a qualificação pessoal, filiação e endereço pelas autoridades administrativas que detenham competência legal para sua requisição. Este disposto é importante porque tais dados podem ser necessários a investigações criminais e que, muitas vezes, eram negadas pelos provedores sob o fundamento de que eram informações protegidas pelo sigilo, somente podendo ser fornecidas por ordem judicial. 20 20 Em diversos Estados Brasileiros houve situações em que a Polícia e o Ministério Público requisitavam, especialmente das operadoras de telefonia, os dados cadastrais de determinados usuários para que pudessem investigar diversos crimes. Quase sempre as operadoras negavam o fornecimento de tais dados, o que forçava o pedido judicial. Ocorre que alguns juízos entendiam que como se trata apenas de dados cadastrais, não era preciso a ordem judicial e, sob esse fundamento, a negavam. Tinha-se, então, uma situação muito complicada para a Polícia e o Ministério Público. A solução foi a propositura, pelo Parquet, de Ações Civis Públicas pleiteando que fosse determinado às operadoras fornecer os dados cadastrais mediante simples requisição. Em complemento às informações sobre as Ações Civis Públicas, em 2012 adveio a lei 12.683 que alterou a Lei no 9.613, de 3 de março de 1998 e ficou conhecida como “nova lei de lavagem de dinheiro.” No seu art. 17-B determinou que “A autoridade policial e o Ministério Público terão acesso, exclusivamente, aos dados cadastrais do investigado que informam qualificação pessoal, filiação e endereço, independentemente de autorização judicial, mantidos pela Justiça 180 Processo e Conexões Humanas Assim, reforçando a ideia das provisões dos arts. 3o, 7o e seu §2o, e consoante já sedimentado na legislação e jurisprudência, é vedado qualquer acesso ao conteúdo de comunicações privadas sem ordem judicial prévia, exceto se as informações disserem respeito apenas a qualificação pessoal, filiação e endereço, que poderão ser requisitadas pelas autoridades competentes. Pois bem. Aliado a essa proteção de que os dados só podem ser fornecidos por ordem judicial, existe a disposição do §4o do art. 10 de que determina que o provedor deve informar de forma clara as medidas e os procedimentos de segurança e sigilo, respeitados o direito de confidencialidade sobre segredos empresariais. Há uma grande preocupação das empresas provedoras de serviços em revelar seus modelos de negócio e segredos industriais, mas o §4o traz uma possibilidade de balanceamento sobre as salvaguardas adotadas e a segurança adotada pelas empresas. Outra norma importante é a disposta no art. 11, que determina que “Em qualquer operação de coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, de dados pessoais ou de comunicações por provedores de conexão e de aplicações de Internet em que pelo menos um desses atos ocorra em território nacional, deverão ser obrigatoriamente respeitados a legislação brasileira e os direitos à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas e dos registros.” Isto significa dizer que a exemplo de leis estrangeiras que obrigam seu cumprimento mesmo por empresas de outro país, o Marco Civil também exige que as empresas estrangeiras cumpram suas normas ainda que não atuem com foco no público brasileiro mas admitam-nos como consumidores. Os §§1o e 2o dispõem, ainda, que as regras aplicam-se “aos dados coletados em território nacional e ao conteúdo das comunicações, desde que pelo menos um dos terminais esteja localizado no Brasil”, ainda que “as atividades sejam realizadas por pessoa jurídica Eleitoral, pelas empresas telefônicas, pelas instituições financeiras, pelos provedores de internet e pelas administradoras de cartão de crédito.” 181 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico sediada no exterior, desde que oferte serviço ao público brasileiro ou pelo menos uma integrante do mesmo grupo econômico possua estabelecimento no Brasil.” Após as revelações de Edward Snowden, o governo brasileiro tentou obrigar que os provedores de serviço mantivessem os servidores com dados dos usuários em território nacional, prática conhecida como “localization” porque constatou que era impossível, neste momento, aplicar medidas de contrainteligência suficientes para evitar o monitoramento do próprio governo brasileiro. No entanto, tal tentativa, feita repentinamente e sem que se compreendesse melhor as ferramentas de espionagem norte-americanas não tinha qualquer garantia de resultado e, porque poderia se tornar inócua, foi retirada do texto. Então o art. 11 e seus parágrafos foram a maneira que se entendeu adequada para lidar com a situação. Ainda no âmbito do art, 11, mas agora do seu §3o, o Marco Civil determina que os relatórios de transparência (que normalmente informam o número de requisições de dados, remoção de conteúdo e ordens judiciais contra os provedores) deverão conter informações de como o processamento de registros e dados pessoais destas empresas no Brasil é realizado. Assim, será possível verificar se estas estão obedecendo a legislação local e garantindo a privacidade dos seus usuários. No entanto, conforme dispõe o §4o, tal fiscalização dependerá de regulamentação por Decreto. Já o art. 12 e seus incisos trazem sanções aplicáveis aos provedores caso descumpram as normas previstas nos arts. 10 e 11. As penalidades a serem impostas variam desde advertência com prazo para adoção de medidas corretivas (I), passando por multa de até dez por cento do faturamento do grupo econômico (II) e pela suspensão temporária das atividades (III), até mesmo culminando na proibição de exercício das atividades (IV). Por fim o parágrafo único do art. 12 determina que as filiais, sucursais, escritórios ou estabelecimentos de empresas estrangeiras estabelecidas no país respondam solidariamente pelo pagamento da multa imposta no caput. Justifica-se esta disposição porque é prática comum de várias empresas de 182 Processo e Conexões Humanas Internet que oferecem seus serviços a usuários localizados no Brasil e que dispõem de representações estabelecidas em território nacional, utilizar o argumento de que estas não poderiam responder por violações de direitos ocasionados nas plataformas gerenciadas pela empresa matriz. Afirmam, em suma, que por serem apenas representações comerciais ou escritórios que lidam com propagandas, não tem qualquer ligação ou ingerência no serviço provido. Tais argumentos já vinham sendo derrubados, portanto não aceito pelos tribunais, mas ainda é utilizado nas defesas das empresas. O parágrafo único pretende acabar com esta prática e estabelece que qualquer representação da matriz em território nacional responde solidariamente com a empresa estrangeira. 5. Considerações a título de conclusões A evolução tecnológica é, definitivamente, um caminho sem volta e que, aliada à criatividade humana e à dinâmica negocial da sociedade capitalista, sempre desenvolverá modelos de negócios que poderão ser questionados em face das suas repercussões nem sempre positivas para os cidadãos. Foi justamente esse contexto que propiciou o surgimento dos computadores, dos celulares e dos tablets, tornando a geração de dados colossal e, nessa perspectiva, fazendo com que o armazenamento e a gestão desses dados crucial. O modelo de negócios da Internet impõe, então, que cada usuário seja mais do que conhecido, praticamente “dissecado” ao utilizar os provedores de serviços e fornecer dados durante a essa utilização. Daí a importância dos metadados, que se inserem num contexto limítrofe de violação da privacidade e até mesmo da intimidade. O principal problema disso é que a consequência mais nefasta pode vir a ser a aplicação da lei em termos Kafkianos, até mesmo colocando pessoas comuns e que praticam atos cotidianos em uma perspectiva criminosa, especialmente em casos inofensivos como o de Janet Vertesi. Por isso é fundamental regulamentar de alguma forma o acesso a tais dados e metadados, preferencialmente delineando, 183 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico colocando em termos gerais, o que se entende por violação à intimidade. Pelo que foi analisado as premissas de vigilância em massa e do modelo de negócios da Internet tiveram importante influência na elaboração do texto do Marco Civil e, a despeito disso, a lei não é clara o suficiente, sendo até mesmo contraditória e obscura em questões relacionadas à proteção da privacidade e proteção de dados pessoais. No entanto, atitudes práticas como um maior detalhamento da regulamentação relacionada à proteção da privacidade e dos dados pessoais; um reforço da atuação da Agência Nacional de Telecomunicações na fiscalização dos provedores; e, possivelmente a edição da lei de proteção de dados pessoais poderão esclarecer e encerrar as dúvidas sobre o armazenamento e utilização dos dados pessoais. Enquanto isso, caberá ao Judiciário e à academia as interpretações respectivas para caso em concreto até mesmo porque – como uma “não conclusão” – as inovação tecnológica e criatividade humana parecem não ter limites, podendo criar situações imprevisíveis para que se proceda a alguma regulamentação. 6. Referências bibliográficas AVOGLIO, Luis Francisco Torquato. Provas ilícitas – interceptações telefônicas e gravações clandestinas. 3a ed. São Paulo: RT, 2003. DELMANTO, Roberto; DELMANTO JR., Roberto. A Permissão Constitucional e a nova lei de interceptação telefônica. Boletim do IBCCrim, n. 47, p. 2-3, out. 96. DONEDA, Danilo. Privacy and data protection in the Marco Civil da Internet (Brazilian Civil Rights Framework for the Internet Bill). Disponível em 184 Processo e Conexões Humanas www.privacylatam.com/?239, acesso em 13.08.14, às 20h00min. GRECO FILHO, Vicente. Interceptação telefônica. 2a. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. GRINOVER, Ada Pellegrini. Liberdades Públicas e Processo Penal: as interceptações telefônicas. 2a. ed. São Paulo: RT, 1982. HOW much is your personal data worth? Financial Times. 12 de Junho de 2013, 20h11min, disponível em http://www.ft.com/intl/cms/s/2/927ca86e-d29b-11e2-88ed00144feab7de.html#axzz3ABNVBnKW, acesso em 12.08.14, às 10h03min. HOW companies learn your secrets (Psst, You in Aisle 5). The New York Times. 19 de Fevereiro de 2012, página MM30. Também disponível em http://www.nytimes.com/2012/02/19/magazine/shoppinghabits.html?pagewanted=all&_r=0, acesso em 13.08.14, às 20h08min. LEONARDI, Marcel. Responsabilidade civil dos provedores de serviços de internet. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2005. MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 28a ed. São Paulo: Atlas, 2012. 185 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico PITOMBO, Sérgio Marcos de Moraes. Sigilo nas comunicações. aspecto processual penal, Boletim IBCCrim São Paulo, nº 49, p. 7-8, dez 1996. SOLOVE, Daniel J., 'I've Got Nothing to Hide' and Other Misunderstandings of Privacy. San Diego Law Review, Vol. 44, p. 745, 2007; GWU Law School Public Law Research Paper No. 289. Disponível na Social Science Research Network: http://ssrn.com/abstract=998565, acesso em 13.08.14, às 20h03min. VERTESI, Janet. Theorizing Big Data. Theorizing The Web 2014, 25 e 26 de Abril de 2015. Nova Iorque/EUA. Vídeo disponível em http://new.livestream.com/ttwconference/2014studioc/vide os/49073251, acesso em 12.08.14, às 19h07min. 186 Processo e Conexões Humanas OS DESAFIOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO ÂMBITO DAS RELAÇÕES PROCESSUAIS Lucas Bafi Ferreira Pinto 1 RESUMO: Não há como negarmos a influência do avanço tecnológico na vida social. Não é de hoje que percebemos sinais de que essa "invasão digital" tomou conta das mais distintas áreas (social, econômica, política, jurídica), nos importando aqui, primordialmente, a influência dessas novas tecnologias no âmbito das relações processuais. O presente artigo pretende, de forma breve, expor o avanço das novas tecnologias no âmbito processual e sua relação com a questão do acesso à Justiça. Além disso, serão abordadas algumas vantagens e desvantagens do processo eletrônico. Por fim, o artigo nos remete à problemática desse esforço do Judiciário para que tenhamos um processo eletrônico moderno, da mesma forma que temos o processo eleitoral mais moderno do mundo. PALAVRAS-CHAVE: Processo - Justiça - Tecnologia - Processo Eletrônico ABSTRACT: There is no denying the influence of technological advances in the social life. Not today we perceive signs that this "digital invasion" took account of the different areas (social, economic, political, legal) matter in here, primarily, the influence of these new technologies in the context of procedural relations. This article intends to briefly expose the advancement of new technologies in the procedural framework and its relation to the issue of access to justice. In addition, we shall discuss some advantages and disadvantages of the electronic process. Finally, the article brings us to the issue of this effort of the judiciary so that we have a modern electronic process, as we have the most modern election process in the world. KEYWORDS: Case - Justice - Technology - Electronic Process 1 Mestrando pela Universidade Católica de Petrópolis 187 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico INTRODUÇÃO Seria um equívoco falarmos em processo eletrônico e avanços tecnológicos no âmbito processual sem entendermos o que está (ou que deveria estar) por trás desses avanços no campo do direito. É necessário que esses mecanismos possam garantir o acesso à Justiça e a dignidade humana, conceitos que são fundamentais em nosso ordenamento jurídico pautado no Estado Democrático de Direito. O presente artigo foi desenvolvido durante pesquisa realizada na disciplina "Processo e Justiça" do programa de Mestrado da Universidade Católica de Petrópolis e se propõe a apresentar, de forma breve, um histórico do avanço das novas tecnologias no campo das relações processuais e relações sociais, sob uma perspectiva geral. Para tanto, além desse breve histórico, vamos tecer algumas considerações em relação ao acesso à Justiça de forma ampla e o enquadramento dessas novas tecnologias no meio jurídico a partir das "ondas" defendidas por Mauro Cappelletti e, também, traçar algumas vantagens e desvantagens do processo eletrônico, que foram retiradas de um artigo e que são abordadas por outros doutrinadores e operadores do direito de um modo geral. Integra o presente artigo, ainda, o questionamento, com certo tom de desconfiança, em relação ao fato do Brasil possuir o sistema mais moderno no mundo em matéria de eleição de seus representantes e todo esse avanço é buscado, sobretudo através do processo eletrônico, no âmbito do processo judicial e das relações processuais. I. AVANÇO E INFLUÊNCIA DE NOVAS TECNOLOGIAS NO ÂMBITO PROCESSUAL Inicialmente, após breve introdução sobre o que propõe o presente artigo, trazemos a proposição do Prof. José Carlos de Araújo quando distingue "Ideia de Sociedade e a Sociedade da Informação", defendendo uma separação pelo fato do avanço tecnológico, especialmente o caso da internet, que rompe com um dos elementos constitutivos do Estado: o território. Destacase, ainda, "estamos no território virtual, com quebras de barreiras 188 Processo e Conexões Humanas geofísicas (através da informática) e comunicações velozes, quase que imediatas“ (ALMEIDA FILHO, 2007, p. 9). Essa questão das novas tecnologias no âmbito do processo decorre do desafio do mundo contemporâneo em adaptar os avanços tecnológicos às diversidades sociais, sobretudo após a invasão tecnológica que o mudou sofreu a partir dos anos 90, com destaque para o avanço promovido pela internet. Em uma época na qual a dinâmica das relações empresariais e a agilidade proporcionada pelos novos meios de comunicação importam em um número cada vez maior de processos que clamam por soluções mais rápidas, é necessário pensar em reformas legislativas e jurisprudenciais e, sobretudo, na criação de novas estruturas organizacionais e planejamentos estratégicos no âmbito do Poder Judiciário (VALENTINI, 2012, p. 133). No âmbito da prestação jurisdicional não poderia ser diferente. O avanço tecnológico no âmbito processual deve estar acompanhado da releitura da lógica do processo judicial para adaptá-lo ao séc. XXI, ou seja, com a compreensão de que a padronização de procedimentos possibilita conciliar a celeridade processual e a segurança jurídica... (VALENTINI, 2012, p. 134). Jamais devemos nos esquecer que a celeridade processual deve ser vista com observância dos outros princípios 189 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico que norteiam a prestação jurisdicional, uma vez que não podemos ser céleres, porém injustos com aquele que submete seu conflito para ser solucionado pelo Poder Judiciário. Se assim fizermos, estaremos desrespeitando a própria dignidade humana, citada no início deste artigo, quando defendemos a ideia de que os avanços tecnológicos no campo do direito devem estar a serviço do acesso a Justiça e da garantia da dignidade humana. Ao longo do tempo a evolução tecnológica e as grandes descobertas, têm um impacto, um alcance, cada vez maior na vida social e na realidade judicial, vejamos, assim, o caso da internet e a rápida expansão dessa rede mundial de computadores. II. PRINCIPAIS MARCOS DA EVOLUÇÃO TECNOLÓGICA NAS RELAÇÕES PROCESSUAIS A popularização da internet ocorreu na década de 1990 “e, desde então, teve lugar uma revolução nos costumes, diante do impacto causado em todos os setores da vida social.” Essa nova tecnologia possibilitou amplo acesso à legislação e jurisprudência “mediante consulta direta nas bases de dados e informações, sobretudo com o auxílio do Google no ano de 1996” (CARVALHO, 2012, p. 105). Essa ferramenta poderosa abriu espaço para algo jamais imaginado anteriormente, fazendo com que as consultas jurisprudenciais, por exemplo, fossem drasticamente modificadas. No que tange ao avanço da internet e das tecnologias de um modo geral na sociedade devemos considerar a questão da influência desses novos meios no espaço público. No passado esse espaço era influenciado pela política e pela imprensa escrita (principalmente os jornais), ao passo que, após essa invasão tecnológica, as formas de comunicação e interação sofreram significativas mudanças, nascendo o papel do mundo virtual. Esse novo ambiente proporcionou o acesso à informação de uma forma jamais imaginada no passado. A influencia das novas tecnologias podem ser percebidas em outras áreas, como no comércio (principalmente o internacional), educação (como poderíamos imaginar, há 190 Processo e Conexões Humanas algumas décadas, a educação à distância, tele presencial). Além disso, para alcançarmos a excelência na prestação jurisdicional por meios eletrônicos, devemos avançar na pesquisa para melhor entendermos esse "território virtual", analisando os efeitos dessas novas práticas nas relações processuais e nos sujeitos que as integram. Devemos encarar esse avanço tecnológico como um movimento irreversível (o que de fato é), como algo positivo, seja na ampliação ao acesso às informações de um modo geral, seja na busca de uma melhor efetivação da prestação jurisdicional. Não há como nos afastarmos da idéia de que essa invasão tecnológica” na realidade processual tenha sido causada, em parte, pela necessidade do Estado em prestar a atividade jurisdicional de forma mais eficaz, trazendo um “novo conceito do tempo razoável do processo (CARVALHO, 2012, p. 107). Com a evolução do Estado Democrático de Direito, com uma ampla proteção e garantia aos cidadãos, foi necessário estabelecer um Judiciário forte, presente e mais célere. À ciência do Direito compete acompanhar a evolução da sociedade, sobretudo a evolução tecnológica, a fim de que possa efetivar a prestação jurisdicional de forma eficiente. O que podemos perceber com esse avanço tecnológico é que não há mais espaço para a resistência e apego aos métodos tradicionais (antigos) de tramitação processual, uma vez que, negando a implementação de novas tecnologias nas relações processuais, estamos negando o direito a uma justiça mais eficaz e segura aos jurisdicionados. As ferramentas eletrônicas são acessíveis ao cidadão médio e estão presentes nos mais diversos lugares, sendo certo 191 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico que esse avanço continua na busca do melhor atendimento aos integrantes desse novo "território virtual" proporcionado pelas novas tecnologias, especialmente a internet. No passo seguinte, vamos abordar, de forma breve, um histórico desse avanço da tecnologia no âmbito das relações processuais. Estabelecemos como marco a promulgação da Lei 8.245 de 1991 - Lei do Inquilinato – que previu no art. 58 a possibilidade de citação por meio do fac-símile. Percebe-se que, à época, a inserção desse art. 58 trouxe uma novidade no que se refere ao uso da tecnologia para prática de atos processuais, demonstrando que o legislador, no início da década de 90, já estava atento às modernas tecnologias de comunicação. No ano de 1999, avançamos com a Lei do Fax – Lei nº 9.800 – permitindo a “transmissão de peças por meio do aludido sistema ou similar” (ALMEIDA FILHO, 2007, p. 10). A partir desse momento, passamos a ter a possibilidade de utilizarmos sistemas de transmissão de dados para a prática de atos processuais. Ressalta-se aqui a questão polêmica da utilização do e-mail para a prática de ato processual, que não foi considerado pela jurisprudência como meio similar ao fax e até hoje há discussão sobre o tema, prevalecendo na jurisprudência o entendimento de que o envio de petição por email não é reconhecido como similar ao fax. Passadas essas etapas, destaca-se a edição da Lei nº 10.259 de 2001, que instituiu os Juizados Especiais Federais, garantindo pela primeira vez um processo totalmente eletrônico, com destaque para o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (Região Sul). Algumas considerações merecem ser feitas a respeito das inovações trazidas pela Lei 10.259 de 2001. A proposta do legislador foi desafogar as varas federais e, também, ampliar o acesso à Justiça, uma vez que os Juizados Especiais Federais passaram a julgar casos de menor complexidade, pequenas violações, podendo ser considerado um importante passo na busca de um acesso à Justiça. Importante citar, ainda, que a medida tomada no âmbito da Justiça Federal foi inspirada nos Juizados Especiais Estaduais, 192 Processo e Conexões Humanas criados pela Lei 9.099 de 1995, que buscavam, entre outros objetivos, mitigar o excessivo formalismo na tramitação processual, impondo mais celeridade à casos de menor complexidade. Mesmo com os avanços, a tramitação de um processo no ordenamento jurídico brasileiro era prejudicada pela morosidade da Justiça e “grande parte da população, por razões de ordem social, econômica ou exclusão não tem acesso à prestação jurisdicional.” (ALMEIDA FILHO, 2007) Em 2004, destaca-se o texto da Emenda Constitucional nº 45 que estabeleceu a celeridade processual (duração razoável do processo) como princípio da administração, estabelecendo que “meios ultrapassados e ineficientes devem, necessariamente, ceder a novas práticas administrativas que permitam a entrega célere e eficaz da prestação jurisdicional” (ALMEIDA FILHO, 2007, p. 23). Podemos extrair algumas considerações a respeito desses conceitos inseridos pela Constitucional nº 45 de 2004. Não bastava que a "simples" alteração no texto constitucional fosse necessária para que se pudesse imprimir mais celeridade à marcha processual. Para dar efetividade à celeridade processual, à duração razoável do processo, destacamos a medida do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) ao estabelecer as metas para julgamentos de processos, de acordo com o ano em que foram iniciados e a matéria envolvida. Nesse sentido, no intuito de se imprimir agilidade na tramitação processual, buscando uma razoável duração na prestação jurisdicional, a Lei nº 11.419 de 2006 ampliou as hipóteses de utilização dos meios eletrônicos para prática de atos processuais. Podemos afirmar que esse movimento, que visa aperfeiçoar a prestação jurisdicional, integra a tendência do chamado sincretismo processual, de modo a mesclar procedimentos processuais na busca de uma tutela jurisdicional mais efetiva, para que, através da decisão judicial, possamos obter resultados sociais práticos. Não podemos deixar de citar a importante distinção entre processo e procedimento. Processo, de uma forma geral, podemos considerar toda a sistemática processual. Dentro dessa sistemática encontra-se o procedimento, que está relacionado aos atos praticados, aos instrumentos, mecanismos que compõem essas sistemática. Essa distinção é importante pois se torna 193 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico necessária a compreensão de que o Processo Eletrônico e qualquer outra tecnologia utilizada no âmbito processual, deve ser vista como um procedimento, como um instrumento para a prática de determinados atos processuais. De toda sorte, como bem assevera, “só o tempo poderá dizer se os caminhos escolhidos para implantação e a expansão foram os corretos e, caso contrário, apontar outras soluções,” (CAVALCANTE, 2012, p. 117) sempre visando o objetivo de realização da Justiça. No mesmo sentido, vale destacar: Pode-se antever que, em razão deste seu poder modificativo, ou especialmente modificador, ou, do que será alcançado pela simbiose pioneira dos seus elementos-integrantes, o processo eletrônico atingirá pilares maiores que os ligados à composição em si dos litígios. Irá afetar as próprias causas geradoras dos conflitos. O direito (material) terá, abaladas, como repercussão do fenômeno, suas estruturas, ligadas diretamente à vida social. Esse, o poder (mutante) da tecnologia, da inovação tecnológica, que irá atuar agora dentro do âmbito institucional do estado-jurisdição, sobre traços fundamentais da vida humana. (BOTELHO, 2006, p. 2) III. ACESSO À JUSTIÇA E O PROCESSO ELETRÔNICO Avançando no desenvolvimento da temática proposta no presente artigo, vamos tratar, de forma ampla, a questão do 194 Processo e Conexões Humanas direito processual e o acesso a Justiça, sem perdemos de vista a contextualização dessas novas tecnologias no âmbito das relações processuais. O direito processual, em uma de suas funções, exerce o papel de pacificar os conflitos, através do qual o Estado desempenha sua função jurisdicional. A ideia de que a sistemática processual está a serviço da justiça social encontra-se presente em nosso ordenamento jurídico-legislativo. Essas ideias foram defendidas por Cappelleti e Garth, de modo a buscarem soluções para que tenhamos uma Justiça acessível a todos, ou ao maior número possível de pessoas. A questão do acesso à justiça está intimamente ligada aos acontecimentos sociais e políticos surgidos ao longo tempo e à democracia. Essa relação consiste justamente na igualdade frente à proteção de direitos, garantindo, assim, a aplicação de seus preceitos aos cidadãos de forma indistinta. Trataremos, brevemente, sobre o acesso à Justiça de forma ampla, “analisando a função social do processo, com mecanismos de facilitação de acesso à Justiça" (ALMEIDA FILHO, 2007, p. 12), como defendiam Cappelletti e Garth. Não há como falarmos em acesso à justiça, de forma ampla, e não citarmos Mauro Cappelleti e Bryan Garth. Os professores italianos apresentam algumas soluções práticas para os problemas de acesso à Justiça através do que chamam de “três ondas”: A chamada primeira onda visa uma assistência judiciária gratuita, garantindo o acesso à justiça aqueles que necessitam do amparo jurídico não podem arcar com as custas judiciais e os honorários. O que se pretende nesse primeiro movimento é que todos os cidadãos, independente da sua situação econômica, tenham acesso à tutela jurisdicional. No movimento da chamada segunda onda, essa tutela dos direitos é ampliada, uma vez que passou a haver uma preocupação com a proteção dos interesses difusos e coletivos da sociedade, ampliando aquela visão individualista proposta no movimento anterior. Nesse sentido, a fim de exemplificar esse momento, podemos destacar a ferramenta da Ação Civil Pública. 195 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico No último movimento, considerada a terceira onda, a visão do acesso e a representação em juízo é vista sob uma nova concepção, agora de forma ainda mais ampla. Nesse momento, percebeu-se que a ideia de submissão do conflito para que o Estado resolvesse, já não era suficiente para a pacificação social, era preciso um aprimoramento dessa prestação jurisdicional, melhor aparelhamento do Estado, além de investimentos em meios alternativos de solução de conflitos. Sem perder o tema central deste texto, destaca-se que as novas tecnologias no âmbito do processo judicial, como forma de ampliação ao acesso à Justiça, estão inseridas na terceira onda, uma vez que visam aprimorar, dar efetividade à prestação jurisdicional. É preciso olharmos com novos olhos para a visão de acesso a Justiça defendida na primeira onda, uma vez que a grande demanda de conflitos fez com que fosse necessário pensarmos em novos métodos para garantirmos o direito material de forma efetiva. Dessa forma, podemos afirmar que o processo eletrônico e qualquer outra tecnologia utilizada como instrumento para a prática de um ato processual, visa a prestação de uma justiça mais simples e acessível ao jurisdicionado. Podemos afirmar, também, que essa ferramenta tecnológica visa a facilitação no acompanhamento do trâmite processual de modo a buscar os parâmetros necessários à razoável duração do processo. Não podemos, porém, colocar a efetividade em primeiro plano, sob pena de colocarmos em risco a prestação jurisdicional de qualidade, em outras palavras, devemos buscar a celeridade processual, mas não a qualquer custo, sob pena de praticar injustiça e violar a dignidade humana. O processo eletrônico é visto como uma necessidade de um Poder Judiciário mais eficiente, mais célere, sem perder de vista a justiça, se apresentando como adequado e eficaz para enfrentar este novo momento impulsionado pelo avanço tecnológico no âmbito processual. Não há dúvida de que a principal mudança é de natureza cultural, “diante das inúmeras possibilidades propiciadas pelo progressivo avanço tecnológico. Ninguém pode predizer como estará o processo judicial nos próximos anos.” (BRANDÃO, 2013, p. 77). Algumas tecnologias já são utilizadas, como 196 Processo e Conexões Humanas audiências gravadas, sustentação oral à distância, decisões proferidas de outros países, onde se encontram magistrados em cursos de aperfeiçoamento, entre outras. É necessário que todos os usuários/operadores do direito estejam preparados e abertos para essa nova realidade, principalmente para, em primeiro lugar, não esquecer que, antes do sistema, está o processo enquanto série de atos ordenados objetivando a solução da controvérsia trazida a apreciação do Poder Judiciário (BRANDÃO, 2012, p. 121) IV. ALGUMAS VANTAGENS E ESVANTAGENS DO PROCESSO ELETRÔNICO Não podemos deixar de citar, num segundo momento, que ainda há uma certa resistência à implementação das novas tecnologias no âmbito do processo judicial, sendo certo que essa parcela de pessoas, que é contra, é reduzida gradativamente ao longo do tempo, fazendo com que cada vez mais o processo por meio eletrônico seja aceito pela comunidade jurídica. Adiante trataremos das vantagens e desvantagens do processo eletrônico, que são abordadas pela doutrina e operadores do direito de um modo geral. Contudo, vamos abordar, brevemente, algumas críticas que são feitas em relação ao uso de novas tecnologias no processo judicial. O primeiro ponto a ser destacado é: “a ideia da inserção de um processo eletrônico tende a provocar nos mais resistentes a taxação de elitização do processo – o que não é o caso” (ALMEIDA FILHO, 2007, p. 46). Nesse ponto, não há como negarmos que a crítica tem certa razão, eis que é notória a dificuldade para acompanhamento eletrônico de um processo em determinadas localidades. Essa dificuldade se dá por inúmeras razões, dentre 197 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico elas destacamos a velocidade da internet e a potência do computador, fazendo com que haja significativo investimento por parte daquele que opera o processo por meio eletrônico. Em conexão com essa elitização defendida por alguns, destacamos a questão da exclusão digital. Esse movimento que buscou maior acessibilidade à Justiça, sobretudo pela inserção das ferramentas tecnológicas nas relações processuais, deve ser estudado com cautela, a fim de que eventuais problemas de grande vulto possam surgir em decorrência das implementações dessas ferramentas. Nesse ponto, destacamos, especificamente, a questão da exclusão digital. Entendemos por exclusão digital, nesse contexto, aquelas pessoas menos favorecidas que, em decorrência da situação econômica, cultural, por exemplo, ficam impedidas de terem acesso à internet. Não se pretende aqui defender que o processo judicial eletrônico é elitizado por causar a exclusão dos menos favorecidos. Defendemos que é necessário ficarmos atentos para que os avanços dos meios tecnológicos na sociedade e as inovações que buscam aprimorar a qualidade da prestação jurisdicional, não tenham o efeito contrário em relação aos mais necessitados. Não podemos permitir que esse avanço tecnológico acabe por gerar mais uma barreira à obtenção de informações e garantia do acesso à Justiça. Nesse momento, o papel do governo, em parceria com os tribunais, é fundamental de modo à promover políticas de inclusão dos jurisdicionados que ainda estão à margem do avanço tecnológico. Outra barreira encontrada, segundo os críticos do assunto, é em relação à segurança, a integridade dos documentos anexados ao processo eletrônico. Existem defensores da ideia de que os dados podem facilmente ser alterados sem deixar vestígio, facilitando uma possível fraude. Tal argumento é altamente combatido pelos defensores do processo eletrônico, que alegam que qualquer adulteração é visível e deixa sua marca. Nesse ponto, a assinatura digital busca evitar essa violação do documento, uma vez que, quando há alteração, a assinatura é excluída, deixando evidente que o documento foi alterado. Trataremos nos parágrafos seguintes um pouco mais sobre as críticas dessa invasão tecnológica, sendo importante destacar que o objetivo do presente artigo é trabalhar esse avanço no âmbito processual, não somente criticar, eis que o processo 198 Processo e Conexões Humanas eletrônico é uma realidade inevitável. Devemos lidar da melhor forma com essa realidade, a fim de extrairmos o que de melhor o processo eletrônico tem a nos oferecer. Assim, as críticas presentes ao longo do trabalho devem ser vistas como forma de ajudar a identificar possíveis falhas e distorções, com objetivo de evitar que, posteriormente, outras venham a surgir ao longo de sua implementação em todo o país. Muito se debate em relação às vantagens ou desvantagens da implementação do processo judicial totalmente eletrônico. Discussões a parte, fato é que o processo eletrônico é uma realidade, ainda em implementação, mas já é uma realidade em diversas comarcas do Brasil, sobretudo no âmbito da Justiça Federal comum e do Trabalho, que estão bem avançadas no que tange à tramitação eletrônica de processo judicial. Deste modo, cabe-nos analisar alguns pontos positivos e negativos dessa avanço tecnológico no âmbito processual. A fim de ilustrar o presente artigo, vale trazer algumas vantagens e desvantagens apontadas por Gustavo Carvalho Chehab em seu artigo para a Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região - julho/dezembro do ano de 2012, cujo título é: "O Processo Judicial Eletrônico da Justiça do Trabalho: vantagens, desvantagens e algumas novidades" A primeira vantagem apontada é em relação a ampliação do acesso à Justiça, eis que o processo fica disponível 24 horas por dia (ressalvadas as manutenções de rotina, que visam o melhor funcionamento dos sistemas) e pode ser acessado de qualquer lugar do mundo, desde que atendidos os requisitos necessários como internet banda larga, certificado digital, entre outros. A desvantagem apontada se refere à dificuldade de acesso aos sistemas PJe nos locais sem internet de alta velocidade e também para quem não tem condições de adquirir o certificado digital ou computador que atenda as exigências técnicas mínimas de acesso ao sistema. A segunda vantagem que destacamos é a eliminação de etapas burocráticas da secretaria, como juntada de peças, de mandado, autuação, numeração de fls., entre outras, o que permite mais agilidade e praticidade no peticionamento. A desvantagem é eventual perda de tempo com dificuldades encontradas durante a operação do sistema, como erros, 199 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico travamentos ao anexar arquivos, etc. Podemos afirmar que essa desvantagem está entre as mais apontadas pelos profissionais que já utilizaram o processo eletrônico de forma geral. A terceira vantagem apontada trata da redução do desmatamento para a produção de papel utilizado nos processos judiciais físicos e, ainda, a redução do espaço físico das instalações das serventias judiciais, com a respectiva diminuição de obras de construção civil para possibilitar novas instalações. Como desvantagem destaca-se o aumento do consumo de energia elétrica, causado pelo aumento do uso de equipamentos eletrônicos (que não se restringe a computadores). Como quarta vantagem podemos destacar, especialmente na Justiça do Trabalho, a rapidez com que o processo eletrônico está sendo implantado, o que "torna o PJe-JT um caminho sem volta, consolidando-o" (CHEHAB, 2012, p. 125). Essa rapidez na implantação do sistema processual eletrônico "acelera o desenvolvimento de novas funcionalidades e a correção de bugs" (CHEHAB, 2012, p. 125). Em contrapartida, destaca-se a dificuldade do "Conselho Superior da Justiça do Trabalho em atender todas as queixas, unidades e advogados de maneira célere e eficiente "(CHEHAB, 2012, p. 126). Além disso, não podemos deixar de apontar a deficiência no treinamento e aperfeiçoamento de advogados, magistrados e servidores, e ainda, devido à rápida expansão na implantação dos sistemas, podemos perceber que as equipes da área de tecnologia da informação estão sobrecarregadas, uma vez que a contratação de novos servidores não avança no mesmo ritmo da implantação do sistema, o que acaba sobrecarregado os profissionais da área. Para reforçar algumas vantagens, destacamos, ainda, a questão da formação de autos complementares, como no caso do agravo de instrumento. Não será mais necessária a criação desses autos, tendo em vista que o processo já estará inteiramente disponível na internet, entre outras vantagens apontadas por especialistas do assunto. Em relação às desvantagens, destacamos a questão do interrogatório de preso por videoconferência. Grande parte da doutrina, sobretudo os defensores dos direitos humanos, são radicalmente contra a utilização dessa ferramenta para interrogar um acusado, uma vez que a distância entre acusado e magistrado 200 Processo e Conexões Humanas prejudica a percepção do juiz em relação aos fatos imputados ao interrogado. Além disso, o interrogatório por videoconferência, que retira o contato físico do juiz com o interrogado, prejudica a defesa do réu, segundo a corrente contrária ao uso dessa ferramenta na sistemática processual penal. No que tange as vantagens desse avanço tecnológico nas relações processuais, podemos destacar a efetivação da penhora online, através do convênio feito entre os tribunais e o Banco Central do Brasil, resultando na ferramenta chamada Bacen Jud. Por essa ferramenta poderosa, o magistrado, através da ordem judicial, requisita informações, bloqueios, desbloqueios e outros, que são repassadas às instituições financeiras e disponibilizadas ao juiz que as requereu. Destaca-se também, a ferramenta do Leilão Eletrônico, trazendo uma nova dinâmica para prática desse ato, uma vez que possibilita que um arrematante localizado em outro estado possa arrematar determinado bem que integra o leilão, o que era difícil quando o leilão somente ocorria na modalidade presencial. Importa-nos destacar a crítica feita em relação à falta de padronização e interação entre os distintos sistemas de tramitação de processo eletrônico, sendo um dos principais pontos de resistência dos operadores do direito. Tudo indica que estamos caminhando no sentido de uma padronização, porém, para que isso ocorra, diversos órgãos e poderes deverão cooperar. Se pensarmos sob uma visão ampla e otimista, podemos vislumbrar no futuro (ainda que distante) uma interação, conexão, entre os processos eletrônicos judiciais em âmbito internacional. CONCLUSÃO Antes de adentramos na parte final do artigo, é importante destacar, sem nos preocuparmos com o enquadramento em vantagem ou desvantagem, a questão do princípio da publicidade no processo eletrônico. O artigo não aborda os princípios processuais sob a perspectiva do processo eletrônico, porém vamos trazer algumas considerações acerca do princípio da publicidade. Podemos perceber que há conflito de princípios constitucionais, uma vez que o processo que tramita de forma eletrônica deixa de ser acessível a qualquer pessoa. De 201 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico um lado temos a publicidade do processo, que garante o acesso à informação e do outro temos a preservação da intimidade das pessoas. Ocorre que, essa restrição é permitida em alguns casos uma vez que, por força do art. 93, IX da Constituição Federal, os atos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos e somente em alguns casos, poderá ser requerido o sigilo, sob pena de violação do interesse público à informação, como se depreende do próprio texto da Carta Maior. Assim, o que se pretende, nesse momento, é que devemos observar o princípio da publicidade dos atos judiciais com outros olhos, após a implementação das ferramentas de tramitação eletrônica. Quando há choque de princípio, um deverá ser mitigado para a prevalência do outro e, pelo rumo em que o avanço do processo eletrônico está seguindo, a publicidade dos atos dos órgãos do Poder Judiciário pode sofrer limitação em face das novas tecnologias, que visam, entre outros objetivos, a celeridade processual e a segurança na prestação jurisdicional. Encaminhando para a parte final do artigo, trazemos a seguinte indagação proposta por Cesar Marques de Carvalho, a fim de refletirmos a respeito desse movimento de modernização do processo judicial brasileiro: “Por que outros países mais desenvolvidos não adotaram o processo eletrônico e o Brasil resolveu inovar ?” Cesar Marques de Carvalho, desembargador do TRT do Rio de Janeiro (1ª Região), propõe essa indagação no artigo que escreveu para a Revista (julho/dezembro 2012 - nº 52) do respectivo Tribunal Regional do Trabalho em que atua. Esse ponto do artigo visa fazer-nos pensar sobre essa questão da busca pela modernização do sistema processual brasileiro. Antes de trazermos a resposta do próprio Cesar Marques de Carvalho dada à sua indagação, vale ressaltar que o Brasil, além de um processo judicial moderno, é detentor do mais moderno sistema de eleição dos representantes democráticos do povo. Essa modernização nos setores eleitoral e judicial causam uma certa desconfiança. É notório que o Brasil, de um modo geral, está atrasado em inúmeros setores, como transporte, infraestrutura, segurança, saúde, etc. Assim, podemos nos perguntar: O que faz com que as autoridades se esforcem para 202 Processo e Conexões Humanas avançarmos em matéria de eleição e processo judicial e deixem de lado outros setores também importantes? A justificativa para essa modernização decorre, justamente, do fato de estarmos atrasados em diversos setores da sociedade, como infraestrutura, saúde, transporte, educação, etc. Para tanto, Cesar Marques de Carvalho expõe um breve histórico do crescimento da imigração no Brasil a partir do século XIX. Como principais causas desse crescimento de imigrantes, à época, podemos destacar a ampliação do desenvolvimento da agricultura no país, a Primeira Guerra Mundial e, ainda, a gripe espanhola. De fato, o Brasil nesse período era "desprovido de legislação que tratasse dos direitos de trabalhadores, até por conta da mão de obra escrava, que, não por coincidência, passou, desde ali, a ser reduzida" (CARVALHO, p. 106). A Constituição Imperial de 1824 foi um passo importante para reverter esse quadro, garantindo a liberdade de trabalho e regulamentando, entre outras matérias, a contratação de estrangeiros. Ocorre que tal regulamentação não foi suficiente para evitar conflitos entre trabalhadores e donos de fazendas e indústrias. Assim, esses conflitos eram submetidos ao Poder Judiciário que, "sem estrutura alguma para apreciação das demandas" (CARVALHO, p. 106), julgava esses conflitos entre empregados e empregadores. Percebe-se, nesse momento, "um esboço do que seria a Justiça do Trabalho, com representantes dos trabalhadores e dos donos da produção, mediados por um magistrado". (CARVALHO, p. 106). Posteriormente, no contexto da quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque, o avanço tecnológico chegava ao Brasil pelos estrangeiros que aqui desembarcavam e tal fato aliado ao crescimento das cidades e farta disponibilidade de recursos naturais, fizeram com que o Brasil se tornasse atraente aos investimentos estrangeiros. Assim, com esses novos investimentos financeiros, principalmente na indústria, novos conflitos seriam submetidos ao Poder Judiciário, sendo necessária a criação da Justiça do Trabalho. Avançando para o século XXI, passando pela globalização, destacamos o avanço político do Brasil. Nesse contexto, novos aspectos entraram em cena, como a preocupação com o meio ambiente e poluição, segurança pública, mobilidade 203 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico urbana, entre outros. E porque fazermos essa exposição histórica? Para defendermos a ideia de que o judiciário não acompanhou o crescimento da sociedade de uma forma geral e, paralelamente, faltam investimentos em diversos setores, criando um campo fértil para novos conflitos que acabam desaguando no Poder Judiciário. Nesse sentido, vale trazer a posição de Cesar Marques de Carvalho sobre a questão: Em países mais desenvolvidos, o volume de demandas é muito menor e há maior rapidez na entrega da prestação jurisdicional, fatores que tornam desnecessária a preocupação com inovações como o processo judicial eletrônico, o que não ocorria no Brasil. (CARVALHO, 2012, p. 107) Uma das maiores dificuldades de investimentos no Brasil decorria justamente da falta de transparência do Poder Judiciário e da falta de clareza dos julgados, uma vez que, principalmente os estrangeiros, não conseguiam entender como era possível a Constituição Federal estabelecer uma regra, a lei interpretar de forma diversa, o decreto fixar outros limites e, no fim, o juiz julgar contrário a tudo isso. Assim, podemos concluir defendendo a ideia de que esse movimento de inserção de novas tecnologias no processo judicial é reflexo da falta de investimento em outros setores da sociedade, fazendo com que essa falta de investimento gere grande número de conflitos que terão que ser dirimidos pelo Poder Judiciário, necessitando, assim, de investimentos para aprimorar a prestação jurisdicional brasileira. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: 204 Processo e Conexões Humanas ALMEIDA FILHO, José Carlos de Araújo. Processo Eletrônico e Teoria Geral do Processo Eletrônico. Editora Forense. 1ª Edição, 2007. BOTELHO, Fernando Neto. O Processo Civil Escrutinado (Parte I), disponível em: Brasil, < http://www.iabnacional.org.br/IMG/pdf/doc-992.pdf>, acesso em 16 de setembro de 2010. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Tradução: Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988. DINAMARCO, Cândido Rangel. Vocabulário de Processo Civil, 1ª Edição. Ed. Malheiros, São Paulo, 2009, p. 11. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região. Processo Judicial Eletrônico, nº 52 (jul/dez), 2012. Revista LTR – Legislação do Trabalho. Edição: março/2013 – nº 77 205 Processo e Conexões Humanas REPRESENTAÇÕES SOCIAIS E A VIOLÊNCIA DE GÊNERO NAS REDES SOCIAIS Salete Casali Rocha 1 Daniela E. Urio Mujahed 2 RESUMO: Este texto objetivou discutir as representações sociais estabelecidas nas redes sociais no que diz respeito à violência de gênero. Foi abordado o conceito de representações sociais, violência de gênero nas redes sociais com o intuito refletir sobre os danos causados às vítimas quando suas imagens, vídeos, slogans, ou cenas do cotidiano descontextualizadas são lançados nas redes sociais com a intenção de denegrir a imagem ou ferir a honra feminina. O estudo contemplou o gênero feminino por considerar a parte mais frágil e exposta da relação. Destacou-se que a mulher, ao longo da história, foi e continua sendo a parte submissa e de empoderamento masculino, inclusive nas redes sociais. Destacou-se que a violência de gênero praticada nas redes sociais causa danos irreparáveis à mulher que se vê vulgarizada, desprezada, ameaçada e comentada nas redes sociais e no mundo real sem condições de exigir reparação do dano. O direito invocado nem sempre consegue reparar o mal causado. Palavras-chave: Representações sociais; Violência de Gênero. Redes sociais. ABSTRACT: This paper aimed to discuss the social representations established social networks with regard to gender violence. he concept of social representations of gender violence in the social networks in order to reflect on the damage done to victims when their images, videos, slogans, or scenes of everyday life are thrown decontextualized in social networks 1 Professora de Antropologia e História do Direito da Faculdade de Direito de Francisco Beltrão – PR. Mestre em História. 2 Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Francisco Beltrão – PR. 206 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico with the intent to denigrate or was approached hurt the female honor. The study included female gender by considering the most fragile and exposed part of the relationship. It was highlighted that women, throughout history, has been and remains the submissive male and empowerment, including the social networking part. It was stressed that gender violence practiced on social networks cause irreparable damage to the woman who sees widespread, despised, threatened and commented on social networks and in real world conditions without requiring repair of the damage. The right claimed was not always able to repair the harm caused. Keywords: Social representations; Gender Violence. Social networks. INTRODUÇÃO Convive-se com profundas e velozes transformações sociais provocadas pela rápida difusão da Internet nos mais diversos espaços. De um lado a difusão e o acesso às redes sociais apresenta-se como benéfico a disseminação da informação, por outro, favorece o aumento da violência em todos os setores. A rede destitui as fronteiras fixas do estado nação, criou novos territórios, globalizou a informação e o conhecimento bem como virtualizou a vida privada. A rápida difusão das informações com a rede coloca o ser humano em contato com as mais diversas realidades sociais. No entanto, por mais democratizada que se apresente - a rede as questões de direitos ainda não estão resolvidas e diariamente deparamo-nos com cenas que ferem o direito à vida privada e à intimidade. Os agressores ficam impune e a mulher impotente no momento de recorrer a tutela do estado para reparação do dano. As representações sociais e a violência de gênero nas redes sociais aumentam diariamente com a rapidez com que as imagens, os vídeos, os slogans e as cenas cotidianas são compartilhadas. E nesta difusão, cada internauta ou grupo de 207 Processo e Conexões Humanas sujeitos que recebem as imagens e contribuem para sua difusão interpretam de acordo com o interesse e a leitura que fazem das cenas. Assim, pretende-se com a pesquisa discutir quais as representações sociais e a violência de gênero, no caso a mulher, disseminadas na rede, bem como, a não punição dos agressores. As interpretações das imagens lançadas na rede corroboram para a violência de gênero. I. AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS O termo representação social, emprestado da sociologia durkheimiana e esquecido por muito tempo, foi retomado por Moscovici, a partir de 1961, com o objetivo de olhar para os múltiplos fenômenos observados e estudados de acordo com sua complexidade na proporção individual ou coletiva, psicológica ou social. Para Durkheim a representação social é compreendida como produto de síntese o que lhe concede certa autonomia em relação a sua base mas, que, ao atingir a coletividade ganha diferentes ramificações, ou seja, interpretações pois “[...] o sistema de conceitos que traduz é produto da elaboração coletiva. O que exprime é a maneira pela qual a sociedade, no seu conjunto, concebe os objetos da experiência [...] (Durkheim, 1989, p. 513). Quando um determinado ato ou fato ocorre na intimidade e/ou na vida privada ela assume certa dimensão que apenas o indivíduo pode interpretar e pensa-la a partir do que viveu, sentiu ou constatou. Porém, este mesmo ato ou fato ao entrar no espaço público ou coletivo ganha novas interpretações e rumos diversos, provocando, na maioria das vezes, danos irreparáveis. Para Durkheim (1989) a maneira de pensar e interpretar o ato ou fato em diferente dimensão no seio social, pode ser compreendido como [...] abstrações que só ganhariam realidade nas consciências particulares, mas representações tão 208 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico concretas quanto aquelas que o indivíduo pode ter do seu meio social: elas correspondem à maneira pela qual esse ser especial, que é a sociedade, pensa as coisas de sua própria existência (Durkheim, 1989, p. 513). Considerar as representações sociais na violência de gênero 3 possibilita compreender a maneira como a sociedade, através do meio virtual, constrói um conjunto de representações a respeito de uma determinada realidade através do compartilhamento de imagens, frases, slogans, cenas de filmes descontextualizadas, cenas da vida privada e da intimidade e, na maioria das vezes, para denegrir a imagem profissional, social e moral da vítima. “As representações sociais orientam a conduta e a comunicação social e estabelecem uma realidade sociocultural comum” (Assis, et al, 2004, p. 10). Neste contexto a Internet, criada para democratizar a informação e formação, passa a ser utilizada como instrumento e ferramenta de criminalização. Neste planeta cibernético as questões de gênero encontram espaço natural para se expressarem, nem sempre de forma adequada ou agradável, principalmente, quando verificamos que nós mulheres somos alvo de um terrorismo milenar por conta das conquistas nem sempre aceitáveis por homens e também por mulheres, que buscam naturalizar e reduzir ao 3 Gênero compreendido como “o elemento constitutivo das relações sociais, baseadas em diferenças percebidas entre os sexos, e como sendo um modo básico de significar relações de poder” (Scott, 1990, p. 15). 209 Processo e Conexões Humanas biológico as condições de igualdade entre os sexos (Cascaes, 2010, p. 2). A sociedade, composta pelos usuários da rede, proporciona a formação de conceitos e das matizes com as quais pensam e constroem suas representações compostas por imagens e linguagens que simbolizam atos e fatos que irão converter-se em informações de senso comum dando forma coletiva às cenas da vida privada e da intimidade, remodelando e reconstituindo elementos particulares em interpretações coletivas, criminalizando e ridicularizando as vítimas. As representações sociais construídas, a partir das redes sociais abertas e irrestritas, fazem parte do cotidiano humano que devido a liberdade de pensamento e expressão e, ainda, por atos inconsequentes acabam revelando o seu eu ou de outra pessoa de maneira incondicional. Quando estas postagens, inocentes ou não, chegam aos perfis de pessoas mal intencionadas acabam sendo reproduzidas e compartilhadas com sentidos diversos destruindo o outro que nem sempre toma conhecimento de imediato o que dificulta a reparação do dano, o bloqueio da informação e a identificação do criminoso. Quem está na rede recebe diariamente spams, piadas, textos, filmes, power points e imagens enviadas “de autoria desconhecida indefinida, mas sempre com teores depreciativos em relação às mulheres, de todas as classes e profissões” (Cascaes, 2010, p. 2). O gênero feminino torna-se alvo constante e preferencial dos deboches, das piadas, das charges e brincadeiras típicas de um universo machista e predominantemente preconceituoso. Assim, as mulheres são submetidas ao arsenal imagético e de representações socais sem poder se defender. Quando o conjunto de elementos distribuídos na rede atingem determinados grupos a interpretação e o pensamento destes assume diferentes matizes passando da forma humorística para a forma destrutiva, agressiva e degradante da imagem feminina. Aquilo que deveria ser partilhado de forma saudável como parte da vida cotidiana socializada assume o caráter de agressividade e depreciação da imagem feminina. 210 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico “As representações sociais são uma modalidade específica de conhecimento que tem por função a elaboração de comportamentos e a comunicação entre indivíduos (MOSCOVICI, 1978, p. 19). O conjunto de elementos que compõem as representações sociais não são fixas e imutáveis. Assumem diferentes formas de pensar a realidade a partir do interesse de cada um. Então uma representação social “[...] é simultaneamente coisa diferente já que resulta de uma síntese nova e sui generis em que essas modificações entram como elementos, mas onde são transformadas pelo simples fato de sua fusão” (Durkheim, 1988, p. 199). Em uma representação social encontra-se o envolvimento de um objeto e de um sujeito, a necessidade de decifrar, predizer e antecipar atos individuais e coletivos bem como a absorção da ciência pelo senso comum direcionando a interpretação para os interesses particulares e coletivos. O conteúdo que circula na rede pode apresentar [...] conteúdo de pensamento cotidiano, e do conjunto de ideias que dá coerência as nossas crenças religiosas, ideias políticas e as conexões que criamos espontaneamente, assim como respiramos. Ele nos torna possível classificar pessoas e objetos, comparar e explicar comportamentos e objetivá-los como parte de nosso contexto social (Moscovici, 1988, p.214). Segundo a teoria das representações sociais ao ser captado os fenômenos cotidianos e pessoal quando compartilhado através da comunicação virtual ou real gera representações que revelam o interesse dos membros de determinado grupo. Na tentativa de representar os fenômenos sociais as interpretações nem sempre são racionais e procuram 211 Processo e Conexões Humanas mostrar apenas recortes da vida social favorecendo a apropriação de cenas experimentadas por pessoas ou grupos e as difundem de acordo com o jogo de interesse que é conveniente no momento. “Todas as mediações sociais nas suas mais variadas formas que constituem o tecido de qualquer grupo ou comunidade, geram as representações sociais” (Jodelet, 1996, p.197). Para Oliveira (2002) as funções primordiais das representações sociais são: função saber que possibilita compreender e explicar a realidade, possibilita trocas de experiências, transmite e difunde este saber ingênuo e primordial para que haja comunicação; função identitária, ou seja, identifica e permite a proteção das especificidades dos grupos; função de orientação, isto é, direciona os comportamentos e práticas, distingue o lícito, o tolerável, o aceitável em dado contexto social; função justificadora procura justificar as posições tomadas e os comportamentos bem como preservar e justificar a diferenciação social porém, pode estereotipar as relações entre grupos, contribuir para a discriminação ou para a manutenção da distância social entre eles. Assim, A representação funciona como um sistema de interpretação da realidade que rege as relações dos indivíduos com o seu meio físico e social, ela vai determinar seus componentes e suas práticas. A representação é um guia para a ação, ela orienta as ações e as relações sociais (Abric, 1998, p. 28). A representação sempre será de alguém, de alguma situação ou fato. Porém, ressalta-se que nem todos os objetos da realidade concreto são possíveis de representações e nem todos os grupos elaboram representações. A teoria das representações 212 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico está diretamente relacionada ao pensamento e ao conhecimento que os sujeitos compartilham (Oliveira, 2002, p. 60). Quando se trata de violência de gênero é necessário observar as relações que se estabelecem entre o fato e o sujeito agredido ou agressor. II. A VIOLÊNCIA DE GÊNERO A desigualdade entre homem e mulher que historicamente se estabeleceram no meio social e familiar não se limita às questões biológicas mas, ao “jogo de significações e das relações sociais, hierarquizando sexualmente os indivíduos, estabelecendo lugares na sociedade, e categorizando-os segundo constituições biológicas” (Soares, 2011, p. 2). As condições históricas, culturais, políticas, sociais e econômicas fazem a mulher ser mulher e o homem ser homem num determinado tempo e espaço como parte do jogo de poder. A categoria gênero foi introduzida nos debates acadêmicos, no Brasil, a partir da década de 1980, pelos estudos feministas de viés social e que afirma que a desigualdade de gênero foi histórica e socialmente construída (Rocha e Mujahed, 2014, p. 316). Mesmo não sendo um fato novo na História nacional, a desigualdade a violência de gênero ganha reconhecimento e visibilidade pública no momento que se percebe o fenômeno como problema social, pois, “a violência de gênero é a violência que pode padecer qualquer mulher pelo mero fato de sê-lo” (SANMARTÍN, 2002, p. 16). O predomínio de um sexo sobre o outro foi, histórica e socialmente, justificado no meio social impedindo o desenvolvimento de valores igualitários e equitativos afetando a dignidade da mulher enquanto pessoa humana. Neste ínterim foram sendo criados estereótipos sexistas e representações sociais de que a mulher sendo violentada física, psicológica e sexualmente estava sendo educado pelo homem para se colocar no seu verdadeiro lugar. 213 Processo e Conexões Humanas A formação de opiniões, crenças e atitudes visando justificar a dominação dos homens com as mulheres formam o conjunto das representações sociais sobre o gênero feminino e que coloca a mulher na condição de submissão masculina. A posição da mulher na sociedade não foi ditada pela premissa biológica, natural ou sexual mas, por uma questão política e social que ao longo do tempo estigmatizou a condição de mulher enquanto dona de casa, mãe, e mulher disposta a servir o homem. A vitimização da mulher pela violência é um fato passível de questionamento pois, de um lado têm-se a tutela do estado na proteção da pessoa humana e, de outro, têm-se a questão do condicionamento social em que, a mulher aprendeu a ser submissa desde a infância, e que o rompimento com esta condição exige romper com estruturas amalgamadas no decorrer de sua existência e cultura. As questões de violência de gênero ganham novas configurações enquanto forma de regulação social e normatização a partir do sistema heterossexual vigente que classifica os sujeitos em homens e mulheres. Tal classificação determina, inclusive, os espaços de atuação, comportamentos, funções e responsabilidades femininas e masculinas. Por muito tempo foi utilizado a expressão “a mulher em seu devido lugar” adjetivando a condição feminina como mulher mãe, dona de casa, esposa e honrada. As agressões físicas, o espancamento são formas de violência contra mulheres que se tornam visíveis e de fácil identificação. Porém, é no âmbito psicológico que a violência se agrava e mais difícil de ser identificada. Estereótipos atribuídos às mulheres ainda são comuns como “sérias”, “levianas”, “abusadas”, “não merece o marido que tem”, “vulgar”, “boa mulher” entre outros são agressões que vão sendo realizadas cotidianamente por homens e por mulheres que, culturalmente, habituadas com tais xingamentos reproduzem a classificação feminina de submissas ao homem. A violência de gênero, em especial a violência contra as mulheres, torna-se questão de saúde pública e impacta de forma negativa o PIB, pois as mulheres agredidas faltam ao 214 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico trabalho e diminuem a produtividade. Mesmo com a promulgação da Lei Maria da Penha, Lei n° 11.340/2006, criada para coroar a trajetória de luta e de busca por direitos fundamentais e de proteção os índices de agressões continuam alarmantes. A Lei Maria da Penha significa um avanço na conquista de direitos e de combate à violência doméstica e de gênero. Mostra a participação feminina nas intervenções judicias através de criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, bem como, a prisão em flagrante, o aumento da pena de detenção e trabalhos de sensibilização e educação de gênero para agentes policiais e judiciais. No Brasil homens exercem sobre as mulheres e crianças um poder socialmente construído e legitimado pela sociedade patriarcal instituída. A violência é a agressão física, psicológica e sexual que se desenvolve no interior da família e do ambiente familiar. “É exatamente essa legitimação social da violência dos homens contra as mulheres que responde pelo caráter tão marcadamente de gênero desse fenômeno” (Saffioti, 1994, p. 153). A violência de gênero integra o cotidiano familiar e revela mais do que a dominação do homem sobre a mulher, mas na legitimidade de sua ação. Inserida no contexto de dominação/exploração está fundamentada na cultura do poder. A violência entendida como ruptura de qualquer forma de integridade da vítima, seja de forma física, psíquica, sexual ou moral (Saffioti, 2004, p. 17). Até recentemente o domicilio era o lócus privilegiado para o exercício e a prática da violência desencadeada pelo “macho” sobre a mulher. No entanto, na contemporaneidade o lócus ganha novas configurações “as redes sociais”. As representações sociais construídas em relação a violência, na maioria das vezes, foi carregadas de estigmas sociais como: homens violentos pertencentes as classes menos favorecidas, agem sob forte emoção, apresentam como monstros e de baixo nível de escolarização. No entanto, o que se constata no mundo contemporâneo é que a violência extrapolou o viés econômico 215 Processo e Conexões Humanas para atingir os diferentes níveis sociais, econômicos e culturais. “o mito do homem violento oculta os privilégios obtidos pelos homens, ou seja, os homens capazes de praticar violência está calcado pelo ordenamento social patriarcal e nutre, através de suas práticas sociais, este tipo de relações de gênero” (Saffioti, 1994, p.164). Nas relações de gênero, homens e mulheres, construídas a partir do imaginário social estipulam a rua e o bar como espaços eminentemente masculinos e o espaço doméstico o lócus feminino. É dentro do espaço feminino que a violência se desenvolve. O espaço privado tonou-se o espaço das agressões, dos abusos sexuais cometidos pelos homens em relação às mulheres. A violência de gênero é “qualquer ato de violência baseada na diferença de gênero, que resulte em sofrimento e danos físicos, sexuais e psicológicos da mulher; inclusive ameaças de tais atos, coerção e privação da liberdade, seja na vida pública ou privada” (Soares, 2005, p. 14). A violência doméstica é considerada violação dos direitos humanos, e a violência contra as mulheres acontece em todos os países, e em qualquer classe social e étnico-racial. Deixou de ser um problema de classes pobres, alcoolizados e drogados. Apesar de todas as declarações de direitos humanos ela continua existindo no interior da família e no espaço reservado à convivência familiar. A violência de gênero é desencadeada entre homens e mulheres que já experimentaram algum tipo de intimidade física e sexual. Na maioria das vezes, o uso da violência é intencional, ou seja, tem a função de intimidar a mulher, de torna-la submissa e, em especial, que torne-se a serviçal e satisfaça seus desejos bem como assegure ao homem o controle da situação. É pela intimidade vivenciada que o agressor age sobre a vítima e consegue atingi-la deixando-a vulnerável aos seus ataques. Os atos contínuos de violência acabam tornando-se rotina e incidem sobre as mesmas vítimas. Os agressores – maridos, companheiros, ex-companheiros, ex-maridos – atingem diretamente a autoestima da vítima que com a reincidência acaba apresentando problemas de saúde e sem 216 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico reagir tornam-se vítimas frágeis e passam a viver em estado de pânico e temor. As formas de violência podem tomar diferentes dimensões: agressões físicas, abuso psicológicos como menosprezo, intimidações e humilhações constantes, coerção sexual, comportamentos de controle, como por exemplo, proibição de contato com a família e amigos, usar os filhos para fazer chantagem, vigilância constante e restrição de acesso e recursos variados. Esse tipo de violência traz consequências gravíssimas para as vítimas, que vão muito além das lesões corporais. Elas podem apresentar diversos problemas de saúde, ginecológicos, psicológicos (decorrentes das ameaças sofridas), depressão, suicídio, baixo peso dos filhos ao nascer, entre outros ( Scardueli, 2012, p. 3-4). Nesta relação de gênero - homem e mulher – o papel de agressor é ocupado pelo homem, dominador, disciplinador e poderoso. “A violência contra a mulher no âmbito doméstico tem sido documentado em todos os países e ambientes socioeconômicos e as evidências existentes indicam que seu alcance é muito maior do que se supunha” (TELES e MELO, 2003, p. 12). O enraizamento da violência, de caráter social e cultural, dificultam a denúncia e a implantação de medidas preventivas para combater e exterminar este tipo de crime. As mobilizações, sociais e estatais, para impedir este tipo de delito estão acontecendo, mesmo incipiente, através da criação das delegacias de polícia especializada no atendimento à mulher, a implantação de centros de atendimento psicossocial às vítimas, a promulgação da Lei Maria da Penha, os portais na Internet, a inclusão no mercado de trabalho, a produção de material didático e informativo como cartazes, vídeos, slogans, bem como a inclusão da temática nos debates acadêmicos. Porém, acima de qualquer tentativa e de qualquer preocupação social a mudança precisa acontecer a partir da mulher que sofreu a violência. A promulgação da Lei Maria da Penha, Lei n° 11.340, e que passou a vigorar a partir de 22 de setembro de 2006, com o intuito de coibir a violência doméstica e familiar contra mulher não resolveu o problema que continua fazendo centenas 217 Processo e Conexões Humanas de vítimas diariamente. A Lei só cumprirá com sua função se a mulher romper com o silêncio e denunciar o que significa romper com a cultura da submissão. II.1 A VIOLÊNCIA DE GÊNERO NAS REDES SOCIAIS A violência de gênero tornou-se assunto polêmico e cotidiano inserido nos discursos midiáticos bem como assunto de preocupação do governo e das instituições civis preocupadas com a questão. No entanto, a violência de gênero nas redes sociais continuam aumentando e fogem do controle pela rapidez com que se disseminam e os rumos que tomam. Trata-se de uma relação desigual, discriminatória e delituosa que fica impune pela falta de meios e recursos capazes de controlar a propagação virtual. O paradigma da violência de gênero – violência contra a mulher – encontra-se cristalizado nas relações sociais como algo natural e incluído no cotidiano sem que haja necessidade de forçar a sua disseminação. O modelo paradoxal vivido pela sociedade contemporânea reproduz os estigmas do passado e continua submetendo a mulher a situações constrangedoras e submissa. O homem continua mantendo o poder de mando e de posição privilegiada. A mulher, parte hipossuficiente da relação, continua cedendo as pressões internas e externas do agressor no mundo real e virtual. É obvio que a sociedade considera normal e natural que homens maltratem suas mulheres, assim como que os pais e mães maltratem seus filhos, ratificando deste modo a pedagogia da violência, efetivamente, a questão se situa na tolerância e até no incentivo da sociedade para que os homens exerçam sua força-potênciadominação contra as mulheres, em detrimento de uma virilidade doce e 218 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico sensível, portanto mais adequada ao desfrute do prazer (Saffioti, 2004, p. 74 - 75). Há muito tenta-se combater a violência porém os resultados ainda são insipientes. Um dos primeiros passos firmes rumo ao combate foi a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, art. 12 que assegura: “Ninguém será sujeito à interferência em sua vida privada, em sua família, em seu lar ou em sua correspondência, nem a ataque à sua honra e reputação. Todo ser humano tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques”. O Brasil, Estado Democrático de Direito, seguiu os passos da Declaração Universal dos Direitos do Homem, e procurou minimizar as desigualdades assegurando, na Constituição Federal de 1988, o princípio da Dignidade da Pessoa Humana no Art. 1°, Inciso III, e o Princípio da Isonomia no Art. 5°, Caput “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza [...]”. A condição de igualdade – homem e mulher- assegurado pela Carta Magma precisa ser garantida de fato na contemporaneidade em que a desigualdade se propaga de forma veloz através da Internet. A redução das desigualdades definidas pela Constituição Federal de 1988 foi reforçada pela Lei Federal nº 9.799, de 26 de maio de 1999 a qual regulamenta o acesso da mulher ao mercado de trabalho, e de programas próprios do Governo Federal, com destaque para a criação em 2003, da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres - SPM, a qual integra o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher – CNDM. O movimento feminista brasileiro foi um ator fundamental nesse processo de mudança legislativa e social, denunciando desigualdades, propondo políticas públicas, atuando junto ao Poder Legislativo e, também, na interpretação da lei. Desde meados da 219 Processo e Conexões Humanas década de 70, o movimento feminista brasileiro tem lutado em defesa da igualdade de direitos entre homens e mulheres, dos ideais de Direitos Humanos, defendendo a eliminação de todas as formas de discriminação, tanto nas leis como nas práticas sociais. De fato, a ação organizada do movimento de mulheres, no processo de elaboração da Constituição Federal de 1988, ensejou a conquista de inúmeros novos direitos e obrigações correlatas do Estado, tais como o reconhecimento da igualdade na família, o repúdio à violência doméstica, a igualdade entre filhos, o reconhecimento de direitos reprodutivos, etc. (Barsted, 2001, p. 35). A violência de gênero enraizada no meio social encontrou um campo fértil para disseminação, a Internet e as redes sociais. Percebe-se diariamente na rede a propagação de vídeos e imagens femininas sendo divulgadas sob a égide do interesse de quem as compartilham. As imagens são montagens, baratas, e que denigrem a imagem e a honra da pessoa. Da mesma forma, percebe-se que vídeos gravadas em momentos íntimos também são reproduzidos e lançados na rede. O que chama a atenção é que dificilmente a imagem masculina aparece. A ênfase dada é o rosto, o corpo e as atitudes das mulheres no momento íntimo e privado. A Lei Carolina Dieckmann, Lei n° n12.737, de 30 de novembro de 2012 e entrando em vigor em 3 de abril de 2013 apresentou-se como uma alternativa de punir os agressores cibernéticos. Porém, quando se trata de violência de gênero nas redes sociais, o preceito constitucional não conseguia chegar ao 220 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico agressor pela demora e dificuldade de identifica-lo pela velocidade com que a informação se propagava. Visando frear e combater a fragilidade da rede o Brasil promulgou a Lei n° 12.965 de 23 de abril de 2014 disciplinando o uso da Internet e, de forma extensiva, espera-se que discipline o uso da mesma para agredir e violentar as mulheres no mundo virtual. No art. 2°, II, da referida Lei, a disciplina sobre questões de direitos humanos e o exercício da cidadania são imprescindíveis para que os direitos das mulheres sejam respeitados. O artigo 3°, II, da Lei n° 12.965/2014, garante a “proteção da privacidade” reforçando a regulamentação dada pelo Código Civil de 2002 que defende a privacidade como componente essencial da formação humana. A violência de gênero praticada e disseminada na rede através do uso de imagem de mulheres em momentos privados e, muitas vezes, íntimos são crescentes e podem ser freados caso a aplicação da legislação existente seja efetiva e de fato venha coibir os agressores de continuarem praticando tais delitos. O uso da Internet e suas diferentes formas de postagens como Youtube, Facebook, Twiter, blogs incluindo, recentemente o Watsapp apresentam-se como recursos envolventes e atraentes pelas diferentes possibilidades de uso. Porém, favorecem a rápida difusão de cenas cotidianas isoladas como forma de agredir pessoas. Neste caso as maiores vítimas são mulheres que possuem suas imagens distorcidas com as ferramentas tecnológicas e logo publicadas nas redes causando danos a honra feminina. As imagens ou vídeos ao serem recebidas e compartilhadas pelo público diverso são interpretadas de acordo com o nível cultural, social e econômico bem como pelo conjunto de elementos disponíveis que são reproduzidos. Assim surgem diferentes representações sociais que, na maioria das vezes, afetam diretamente a honra das pessoas que tornam-se alvo de chacotas e comentários não apenas nas redes sociais mas, no mundo concreto. A violência simbólica se institui por intermédio da adesão que o dominado 221 Processo e Conexões Humanas não pode deixar de conceder ao dominante (e, portanto à dominação) quando ele não dispõe, para pensá-la e para pensar, ou melhor, para pensar sua relação com ele, mais que de instrumentos de conhecimento que ambos têm em comum e que não sendo mais a forma incorporada da relação de dominação, faz essa relação ser vista como natural (Bourdieu, 1999 p.47). O conjunto de interpretações realizadas por quem recebe as imagens e vídeos constituem-se nas representações sociais. O problema maior é que as montagens bem feitas tornam real as cenas adulteradas do cotidiano. A exemplo destaca-se que: No ano de 2013 foi veiculado diversos acontecimentos sobre a divulgação de vídeos e fotos com intimidades sexuais na internet de mulheres de diferentes faixas etárias, incluídas as crianças e as adolescentes. Alguns dos crimes cometidos contra a mulher no ambiente virtual são: ameaça, calúnia, difamação e injúria. A sexualidade feminina ainda sofre formas específicas de repressão, para além da repressão sexual geral. A mulher exposta nessa cena sexual ou de nudismo virtual sofre uma maior rejeição social e afetiva do que o homem no mesmo tipo de situação (Bezerra, 2014, p. 1). Normalmente os agressores são ex-maridos, excompanheiros, ex-namorados ou pessoas vingativas por 222 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico situações cotidianas acabam, divulgando a intimidade como forma de se vingar pela rejeição da mulher. O comportamento de revanche afetiva (ou revenge porn) provoca um intenso sofrimento emocional à vítima quando tem a imagem expostas ao público na Internet e nas redes sociais. Os homens sabem que a sexualidade feminina será recriminada. Os julgamentos das mulheres expostas em cenas íntimas são humilhantes, degradantes e vexatórios.Destacamos também que a nova geração de jovens experimenta uma facilidade na divulgação de conteúdos sem autorização dos envolvidos, age como se a Internet fosse terra de ninguém (Bezerra, 2014, p. 1). Diante de tais situações e das representações sociais já constituídas as mulheres acabam perdendo seu espaço no meio social, muitas ficam sem emprego, a família se coloca contra e a sociedade condena. O homem, quando identificado e o fato provado é penalizado porém, ainda é visto como a vítima do processo. A mulher sempre será a parte vulnerável e acusada por ser ter se deixado filmar ou então ter enviado fotos, ter postado momentos de sua privada. Atualmente conta-se com os mecanismos jurídicos de proteção à mulher o previsto no Código Penal, a Lei Maria da Penha, a Lei Carolina Dieckann e, aguardando uma possível regulamentação que surja com o Marco Civil da Internet. . Os crimes cometidos na Internet são previstos pela legislação penal e o autor pode ser punido criminalmente, porém o difícil é materializar o delito da autoria, ou seja, formalizar as 223 Processo e Conexões Humanas provas necessárias para incriminar o autor. No Código Penal aplicam-se os crimes contra a honra e na Lei Maria da Penha, o artigo 5.º conceitua a violência doméstica e familiar contra a mulher. No art. 7.º, prevê 5 espécies de violência, com destaque para o inciso II, que trata da ‘violência psicológica’. O art. 22 relata as medidas protetivas de direito. Quando o crime é praticado contra crianças e adolescentes, aplica-se a regra do art. 241/A, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que considera crime grave a divulgação de fotos, vídeos ou imagens de crianças ou adolescentes em situação pornográfica ou de sexo explícito. A exposição, das imagens e vídeos, causa lesões irreparáveis, destruindo a vida da mulher. A autoestima, o bem estar, o conforto da família e os amigos dificilmente se restabelecem no mesmo local e no mesmo nível de intensidade. A denúncia é necessária porém, muitas mulheres temem com receio de retaliações. Determinados momentos, fetiches e fantasias expondo, através de fotografias e filmagens, a sexualidade feminina e/ou momentos íntimos quando chegam em mãos de pessoas desiquilibradas e vingativas podem provocar momentos de desespero e de grande transtorno para a mulher. As vítimas fáceis dos agressores são mulheres, e em especial, adolescentes e pessoas solitárias, que se deixam seduzir por possíveis namorados virtuais e aos poucos vão se deixando filmar e fotografar em sua intimidade. E muito rápido percebem que estão sendo vítimas e suas imagens já estão compartilhadas. A inviolabilidade a intimidade e a vida privada estão preceituadas no Marco civil da Internet no: 224 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico Art. 7o O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são assegurados os seguintes direitos: I - inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; II - inviolabilidade e sigilo do fluxo de suas comunicações pela internet, salvo por ordem judicial, na forma da lei; III - inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas armazenadas, salvo por ordem judicial; Porém, diante da recente promulgação da Lei do Marco Civil ainda não tem-se dados efetivos de que a violência de gênero tenha reduzido. O que se percebe é que as cenas de ódio e revolta continuam no meio virtual e nas redes sociais pois, A intimidade é o âmbito do exclusivo que alguém reserva para si, sem nenhuma repercussão social, nem mesmo ao alcance de sua vida privada que, por mais isolada que seja, é sempre um viver entre os outros (na família, no trabalho, no lazer em comum). Já a vida privada envolve a proteção de formas exclusivas de convivência. Trata-se de situações em que a comunicação é inevitável (em termos de alguém com alguém que, entre si, trocam mensagens), das quais, em princípio, são excluídos terceiros (Ferraz Junior, 1992, p. 79). 225 Processo e Conexões Humanas A intimidade não apresenta qualquer meio de repercussão social porém, a vida privada encontra-se envolvida em situações que requer comunicação. Algumas situações da intimidade tornam-se públicas quando as mulheres em momentos íntimos deixam-se filmar por seus parceiros e num possível rompimento os vídeos são lançados na rede como vingança ou inclusive com a intenção de denegrir a imagem da vítima para que esta não encontre outra pessoas. CONCLUSÃO As representações sociais da violência de gênero nas redes sociais se constituem em um conjunto de interpretações elaboradas pelos internautas que recebem as imagens, vídeos, slogans e comentários e partir destas criam um estereótipo da pessoas cuja imagem foi veiculada. O direito a intimidade e a vida privada são bens jurídicos tutelados pelo Estado através de ampla legislação porém, falta condições técnicas e humanas para conseguir chegar aos agressores e puní-los. Diante dos transtornos causados pelas imagens e vídeos divulgados nas redes sociais aconselha-se que as mulheres não se deixem fotografar e filmar nos momentos íntimos; que mesmo apaixonadas, não exponham sua intimidade na web ou ferramentas como Facetime, Skype, celulares e outros recursos; não compartilhem fotos em whatsapp, viber ou semelhantes de seus momentos privados e íntimos; não deixem armazenados em seus computadores cenas íntimas. Quando for vítima da violência organize as provas como: a impressão do material; ir ao cartório fazer ata notarial; registrar ocorrência na delegacia da mulher ou delegacia mais próximo de sua residência; encontre testemunha se possível; conte aos parentes, amigos e vizinhos; denuncie rapidamente; procure um advogado. Em casos de violência de gênero nas redes sociais o papel do judiciário é muito importante no julgamento dos casos levando em consideração não apenas o crime e a presença dos 226 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico elementos que comprovem a sua ocorrência, mas que busque dispositivos extralegais como o comportamento das vítimas e seus agressores. Nos conflitos de gênero os papéis sociais são importantes pois, normalmente, estão envolvidos família além da sexualidade feminina e masculina. O fenômeno da violência de gênero é emblemático e não pode ser tratado apenas como mais uma matéria criminal. Prevenir a violência de gênero nas redes sociais é questão de romper com a cultura do egoísmo e do individualismo. A prevenção passa pelas questões culturais, sociais, econômicas e familiares mas, acima de tudo, por uma questão de consciência da mulher em não se deixar seduzir e embriagar-se com a paixão virtual deixando-a vulnerável. A violência de gênero nas redes sociais pode ser evitada quando a mulher tomar consciência que além da tutela do estado ela é a principal responsável pelos seus atos. Mas, quando tornar-se vítima a denúncia e a apuração do crime são imprescindíveis. REFERÊNCIAS ABRIC, J. C. A abordagem estrutural das representações sociais. In: MOREIRA, A., S. & OLIVEIRA, D. C. de (Org.). Estudos interdisciplinares em Representação Social. Goiânia: AB, 1998, p.27-46. ASSIS S.G, Avanci J.Q, Santos NC, Malaquias J.V, Oliveira R.V.C. Violência e representação social na adolescência no Brasil. Rev Panam Salud Publica; 16 (1), 2004, 43–51. BARSTED, Leila Linhares. Lei e realidade social: igualdade x desigualdade. In: As mulheres e os direitos humanos. Coletânea Traduzindo a Legislação com a perspectiva de gênero. Rio de Janeiro: Cepia, 2001. 227 Processo e Conexões Humanas BEZERRA, Alyne Andrade de Oliveira. A violência psicológica contra mulher na internet. Disponível em: http://www.ibdi.org.br/site/artigos.php?id=280. Acesso em: 05 de out. de 2014. BRASIL. Lei nº 9.799, De 26 de Maio De 1999. Insere na Consolidação das Leis do Trabalho regras sobre o acesso da mulher ao mercado de trabalho e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L9799.htm>. Acesso em: 9. Out. 2009. ________. Ministério Da Justiça. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_univ ersal.htm>. Acesso em: 12. Out. 2009. ________. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. São Paulo, Saraiva, 2009. ________. Lei n° 12.965, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20112014/2014/lei/l12965.htm. Acesso em: 05 de out. de 2014. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. CASCAES, Tânia Rosa Ferreira. Representações do Feminino em Mensagens Via Internet: Analisando Conteúdos Subliminares de Violência de Gênero. In: VIII Congresso Iberoamericano de Ciência, Tecnologia e Gênero. 5 a 9 de abril de 2010. Disponível em: http://files.dirppg.ct.utfpr.edu.br/ppgte/eventos/cictg/conteudo_ cd/E11_Representa%C3%A7%C3%B5es_do_Feminino.pdf. 228 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico Acesso em: 13 de set. de 2014. Durkheim, Emélli. As formas elementares de vida religiosa. São Paulo: Paulinas, 1989. ________. Pragmatismo e sociologia. Porto: RES, 1988. FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Sigilo de dados: o direito à privacidade e os limites à função fiscalizadora do Estado. Revista dos Tribunais, Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política. São Paulo, ano 1, p. 77-90, 1992. JODELET, D. “Representações Sociais: Um domínio em expansão”. In: As representações sociais. Rio de Janeiro: Edurj, 2001, p. 17-44. Lílian Ulup (Trad). Moscovici, S. Representação Social da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. ________. Notes towards a description of Social Representations. European Journal of Social Psychology. V. 18, 211-250.107, 1988. ________ Prefácio. In: GUARESCHI, P. e JOVCHELOVITCH, S. Textos em Representação Social (pp. 7-16). Petrópolis:Vozes, 1994. OLIVEIRA, Juliana Prudente de. Representação Social e violência na escola. Goiânia, 2002. 122 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Departamento de Psicologia, Universidade Católica de Goiás. ROCHA, Salete Casali Rocha; MUJAHED, Daniela e. Urio. Violência nas relações de gênero e hipossuficiência feminina. In: COELHO, Luiz Fernando; ALVES, Roseli Teresinha Michaloski; ROCHA, Salete Casali (Coords). Direitos humanos e novos direitos na contemporaneidade. Francisco Beltrão: Grafisul, 2014. SAFFIOTI. Heleieth I.B. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004. 229 Processo e Conexões Humanas ____. Violência doméstica ou a lógica do galinheiro. In: KUPSTAS, Márcia (org). Violência em debate. São Paulo: Moderna, 1997. SANMARTÍN, J. “Violencia contra las mujeres: causas y efectos”. En: San Martín, J. Actas de la II Conferencia Internacional sobre Violencia Contra las Mujeres. Madrid: Ayuntamiento de Madrid. 2002. SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Porto Alegre: Educação e Realidade, 1990. SCARDUELI, Márcia Cristiane Nunes. Relações de gênero em campanha sobre a violência contra a mulher: submissão feminina mantida. XII ANPED SUL – Seminário de Pesquisa da Regão Sul. 2012. Disponível em: http://www.ucs.br/etc/conferencias/index.php/anpedsul/9anpeds ul/paper/viewFile/1222/825. Acesso em: 10 de ago. 2014. TELES, Maria Amélia de Almeida; MELO, Mônica de. O que é violência contra a mulher. Coleção Primeiros Passos. São Paulo: Brasiliense, 2003. 230 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL, FRATERNIDADE E CONSUMISMO VIRTUAL Tatiana Fernandes Dias da Silva 1 e Ana Paula Bustamante 2 RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo analisar o consumismo virtual como um antagonismo ao desenvolvimento sustentável e ao princípio da fraternidade. Para tanto se estudou através da doutrina pátria, artigos científicos e periódicos o conceito de desenvolvimento sustentável através do relatório de Burndtland (1987), que aponta para a incompatibilidade entre desenvolvimento sustentável e os padrões de produção e consumo, a Conferência da Organização das Nações Unidas sobre Meio Ambiente de 1992 onde a comunidade política internacional admitiu claramente que era preciso conciliar o desenvolvimento socioeconômico com a utilização dos recursos da natureza, a Constituição Cidadã de 1988, que elevou o Desenvolvimento Sustentável a categoria de princípio constitucional ambiental e a industrialização e o consumismo, principalmente, no caso em análise, o consumo virtual globalizado como um obstáculo na busca da preservação do meio ambiente para as presentes e futuras gerações. Nesse viés, também é abordado o princípio da fraternidade como instrumento indispensável dentro desse processo, uma vez que se apresenta como elemento central para a estruturação de um compromisso comum em prol da 1 Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense – UFF, na linha de pesquisa: Conflitos Socioambientais, rurais e urbanos. Professora do curso de Direito da Universidade Estácio de Sá – UNESA/RJ. 2 Mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá – UNESA/RJ, na linha de pesquisa: Acesso à Justiça e Efetividade do Processo; Pós-graduada em Processo Civil pela UNESA/RJ; Professora Assistente da UFRRJ; Professora da UNESA/RJ. 231 Processo e Conexões Humanas preservação ambiental, gerador de responsabilidade social e econômica fundamentada num ideal de bem coletivo. PALAVRAS CHAVES: desenvolvimento ambiente, fraternidade e consumismo virtual. sustentável, meio ABSTRACT: This study aims to analyze the virtual consumerism as an antagonism to sustainable development and the principle of fraternity. For both been studied by Homeland doctrine, scientific journals and articles the concept of sustainable development through the Burndtland (1987) report, which points to the incompatibility between sustainable development and the patterns of production and consumption, the Conference of United Nations on Environment 1992 where the international political community clearly admitted that it was necessary to reconcile socioeconomic development with the use of nature's resources, the Citizen Constitution of 1988, which raised the Sustainable development category environmental constitutional principle and the industrialization and consumerism, especially in this case, the global virtual consumption as an obstacle in the pursuit of preserving the environment for present and future generations. This bias is also discussed the principle of fraternity as an essential tool in this process, since it presents as a central element in the economic structure of a common commitment to environmental protection, social responsibility and generator based on an ideal of collective good. KEYWORDS: sustainable development, environment, fraternity and virtual consumerism. INTRODUÇÃO A preocupação mundial com a preservação e proteção do meio ambiente é recente e fruto de problemas ambientais e da escassez dos recursos naturais frente ao imenso ritmo de produção e consumo gerado pela industrialização e, mais recentemente, pela globalização. 232 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico No início da década de 70, fenômenos como a diminuição da camada de ozônio, chuva ácida e inversão térmica fizeram com que os governantes das principais economias capitalistas do mundo se reunissem na primeira Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano, realizada na cidade de Estocolmo, Suécia, em 1972, que contou com a participação de 113 países e trouxe a preocupação universal sobre o uso saudável e sustentável do planeta e de seus recursos naturais, além de abordar a necessidade de “inspirar e guiar os povos do mundo para a preservação e a melhoria do ambiente humano” (ONU). Nesta Conferência se atentou à necessidade de critérios e princípios comuns que ofereceriam a população mundial inspiração e guia para preservar e melhorar o meio ambiente humano. Proclamouse que o homem é ao mesmo tempo obra e construtor da natureza que o cerca; que a sua proteção é questão fundamental que afeta o bemestar dos povos e o desenvolvimento econômico do mundo e que para chegar à plenitude de sua liberdade dentro da natureza, e, em harmonia com ela, o homem deve aplicar seus conhecimentos para criar um meio ambiente melhor. Mesmo após a Conferência de Estocolomo, diante da economia capitalista mundial, pautada no consumismo e industrialização, os problemas ambientais continuaram crescente, uma vez que para garantir este modelo econômico de produção é necessário retirar matéria prima da natureza o que vem a degradar o meio ambiente, com a destruição de matas, florestas, rios, poluição do ar, água, solo e o comércio ilegal da fauna. Em abril de 1987, o Relatório Brundtland denominado Nosso Futuro Comum, elaborado para a Organização das Nações Unidas (ONU) por Gro Harlem Brundtland, mestre em saúde pública e ex Primeira Ministra da Noruega, destacou problemas ambientais como o aquecimento global, a destruição da camada de ozônio e a preocupação com o descompasso entre a velocidade com que as mudanças ecológicas estão ocorrendo e a capacidade científica e tecnológica de avaliar e propor soluções. O documento aponta ainda para a incompatibilidade entre desenvolvimento sustentável, que tem como objetivo satisfazer as 233 Processo e Conexões Humanas necessidades presentes, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades, e os padrões de produção e consumo. Vinte anos depois da primeira conferência realizada pela Organizações das Nações Unidas pautada na preservação e proteção ambiental, em junho de 1992, a cidade do Rio de Janeiro, sediou a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD), conhecida como Rio-92, Eco-92 ou Cúpula da Terra. A intensão da conferência foi à busca de meios que permitissem o desenvolvimento socioeconômico aliado à conservação da natureza, visando introduzir o conceito de desenvolvimento sustentável como um modelo econômico menos voltado para o consumismo, mais focado no equilíbrio ecológico e nas necessidades ambientais. O desenvolvimento sustentável se consolidou como o princípio orientador das iniciativas voltadas para a relação entre desenvolvimento e meio ambiente. O encontro, composto por representantes de 176 países, reafirmou e aperfeiçoou os princípios da Declaração de Estocolmo, reconheceu o conceito de desenvolvimento sustentável agregando-o aos componentes econômicos, ambientais e sociais, com vistas a garantir a sustentabilidade do desenvolvimento e gerou alguns acordos como a Carta da Terra, Declaração do Rio sobre Ambiente e Desenvolvimento, Agenda 21, Declaração de Princípios sobre Florestas e as Convenções da Biodiversidade, Desertificação e Mudanças Climáticas. Desses acordos, tanto na Declaração do Rio quanto na Agenda 21, o desenvolvimento sustentável adotou-se como uma meta a ser respeitada por todos os países signatários. Na Declaração do Rio ficou estabelecido que: “Os seres humanos estão no centro das preocupações com o desenvolvimento sustentável. Têm direito a uma vida saudável e produtiva, em harmonia com a natureza”. Não menos importante, o quarto princípio destaca que: “Para alcançar o desenvolvimento sustentável, a proteção ambiental constituirá parte integrante do processo de desenvolvimento e não pode ser considerada isoladamente deste” e na Agenda 21 apontou-se como relevante o consumo como causador de diferentes impactos ambientais e sociais. Nela foi apresentada uma série de ações (política econômica, cooperação internacional, combate à pobreza, controle demográfico, proteção da atmosfera, mudança de padrão de consumo) que foram 234 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico consolidadas a partir dos princípios do desenvolvimento sustentável e a criação de estratégias para estimular hábitos de consumo que ajudem a preservar o meio ambiente e os recursos naturais. Em junho de 2012, a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio+20), também realizada no município do Rio de Janeiro, renovou o compromisso dos líderes mundiais com o desenvolvimento sustentável, na erradicação da pobreza e na economia verde, que é a soma de vários processos produtivos (industriais, comerciais, agrícolas e de serviços) que ao serem aplicados em uma determinada região criam um desenvolvimento socioeconômico sustentável, com o objetivo de buscar a igualdade social e melhoria do bem-estar dos seres humanos, reduzindo os impactos ambientais negativos e a escassez ecológica. No Brasil, A Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938), instituída em 1981, ratifica em seu artigo 2° a necessidade de preservar o meio ambiente criando-se condições de promover o desenvolvimento socioeconômico, à proteção da dignidade da vida humana, tendo como princípio ser um patrimônio público a ser necessariamente assegurado e protegido, tendo em vista o uso coletivo (artigo 2°, inciso I). Em 1988, com a promulgação da Constituição da República, o meio ambiente galgou patamar constitucional, disciplinado em capítulo próprio (artigo 225, caput e seus parágrafos), além de aparecer presente em vários outros artigos. A parte final da redação do artigo 225 reafirma o compromisso sustentável da preservação do meio ambiente para as presentes e futuras gerações: Artigo 225 caput: Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendêlo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Na integração entre atividade econômica, valorização do trabalho e livre iniciativa a Constituição ainda consagra, no Título Da Ordem Econômica e Financeira, capítulo sobre os Princípios Gerais da 235 Processo e Conexões Humanas Atividade Econômica, no artigo 170, a responsabilidade das atividades econômicas na defesa do meio ambiente, dispondo que: Artigo 170: A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação. A economia que gera emprego e circulação do dinheiro através do salário dos trabalhadores, não deve se fundar nela própria, mas na busca de uma melhor qualidade de vida para a coletividade, pautada no princípio do desenvolvimento sustentável e da dignidade da pessoa humana, consagrado no artigo 1°, inciso III da Constituição Federal. Como escreve Sirvinskas (2010), “essa relação passa a ser mais harmoniosa quando o sistema econômico se aproxima mais do social, afastando-se do sistema capitalista, do sistema liberal e do sistema neoliberal”. Para o desenvolvimento sustentável os governos devem adotar políticas públicas eficazes de saneamento, educação ambiental, fiscalização e cumprimento das normas ambientais, diminuição do consumismo, eliminação da pobreza e da poluição. “Ele não deve pôr em risco a atmosfera, a água, o solo e os ecossistemas, fundamentais à vida na terra” (PENNA, apud MILARÉ. 2013, p.60). Deve-se exigir “sempre que necessário, a intervenção dos governos nos campos social, ambiental, econômico, de justiça e de ordem pública, de modo a garantir democraticamente um mínimo de qualidade de vida para todos”. Durante a Revolução Industrial, no século XVIII, a população mundial somava cerca de 750 milhões de habitantes, hoje são 6,8 bilhões e, segundo dados levantados pela ONU, até 2030, a população mundial chegará a 8,9 bilhões de seres humanos. No Brasil, em 2011, éramos 192 milhões, a perspectiva é que em 2020 a 236 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico população brasileira chegue a 117 milhões. O aumento da população mundial, naturalmente proporciona um aumento no consumo dos recursos naturais do planeta, no entanto, esse consumo é extremamente desigual, pois enquanto uns consomem muito mais do que suas necessidades básicas, outros sofrem com a falta de recursos e exploração da mão de obra. O consumo e a industrialização fortalecem a economia capitalista global dos países desenvolvidos e é replicada pelos países em desenvolvimento, todos voltados para a geração de riquezas, pouco preocupados com um consumismo em harmonia com o meio ambiente, a saúde humana e com os reais anseios da população. A globalização aliado ao avanço tecnológico no campo da informática e das telecomunicações, intensificaram este processo ao elevarem ao patamar internacional a concorrência, forçando os agentes econômicos a reduzirem os seus custos e preços das mercadorias, sob pena de não se tornarem competitivos e assim verem diminuídos seu lucros e riquezas. O avanço tecnológico tem grande parcela de contribuição nesse modelo de capitalista, as facilidades geradas pelo consumo virtual, os chamados e-commerce, tem crescido assustadoramente sendo um agente intensificador deste processo. Para o prestador de serviço ou fornecedor de produto, o negócio virtual pode render muitas vantagens no mercado competitivo, uma vez que possibilita a disponibilidade por não existir a limitação de horário e de locomoção; um estoque funcional, pois em uma loja virtual é possível oferecer produtos através da experiência digital sem ainda possuir fisicamente em estoque, bastando para isso uma interligação junto aos fornecedores, garantido assim o mínimo quando da execução da venda; e a redução do custo operacional, uma vez que as despesas direitas com vendedores e estrutura física são reduzidas. Para o consumidor permite que este, sem sair de casa e a qualquer hora do dia, procurar em sites nacionais e internacionais produtos e serviços além de efetuar pesquisas de preços. O que parece ser inofensivo é na verdade um grande vilão no que tange ao consumo desenfreado. Em 2008 iniciou nos Estados Unidos a compra coletiva pela internet, que é a venda baseada no conceito de oferecer preço muito menor para ganhar no volume de compradores, no Brasil este 237 Processo e Conexões Humanas consumo virtual iniciou-se em 2010 possuindo em 2012, 12 sites em funcionamento, espalhados por 10 cidades brasileiras, esse novo modelo de e-commerce intensificou o consumismo virtual. Como admite Pedro Guimarães, um dos sócios do site Imperdível, o conceito do negócio é conceder um forte desconto para gerar a compra por impulso. Estatisticamente no Brasil, em que pese o crescimento das vendas virtuais de 250% em cinco anos, este resultado ainda é tímido se compararmos com os países desenvolvidos, entretanto, com o crescimento econômico e a melhoria do acesso à internet, os ecommerce em breve atingirão receitas impressionantes à custa, cada vez mais, da redução de recursos naturais, bastando para tanto a utilização de um computador e internet. Essa sociedade de consumo exagerado dos bens e serviços em que se vive, foi moldada no valor social e elitizado do “ter”, que é um verdadeiro ciclo vicioso, onde se deve consumir para produzir e produzir cada vez mais para consumir. Este modelo econômico leva à exploração excessiva dos recursos naturais, interferindo diretamente no equilíbrio do planeta. Dados publicados pelo relatório Planeta Vivo 2008, que é uma publicação bianual da Rede World Wildlife Fund - Brasil (WWF - Brasil), organização ambiental não governamental brasileira, aponta que “caso o modelo atual de consumo e degradação ambiental não seja superado, é possível que os recursos naturais entrem em colapso a partir de 2030, quando a demanda pelos recursos ecológicos será o dobro do que a Terra pode oferecer” (WWF, 2008). O trabalho apresentado, em 2010, pelo World Watch Institute (WWI), intitulado o Estado do Mundo Transformando Culturas – Do Consumismo a Sustentabilidade, destaca que extraímos anualmente 60 bilhões de toneladas de recursos naturais, o que representa 50% a mais do que extraíamos há 30 anos. Neste sentido, diante de um possível colapso global é imperiosa a mudança de cultura, de novas formas de proteção do meio ambiente que promovam um consumo sustentável com o objetivo de garantir um meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, não só para o presente, mas também e principalmente para as próximas gerações. Assim, inevitável o resgate da fraternidade, que surgiu com os ideais da Revolução Francesa, de 1789, de “Liberdade, igualdade e 238 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico fraternidade” e que aos poucos foi excluída, ficando em evidência aos olhos do mundo somente a “liberdade e a igualdade”. A fraternidade restou como um princípio esquecido, “a parente pobre, a prima do interior, em relação aos temas mais nobres e urgentes da igualdade e depois da liberdade” (RESTA, 2004, p. 9). A retomada da fraternidade possibilita sua abordagem sobre várias conotações 3, entretanto, o presente estudo será no sentido de analisá-la juntamente com a amizade. Eligio Resta, em sua obra “O Direito Fraterno”, desenvolve este conceito apontando tal direito como aquele que abandona a fronteira fechada da cidadania e olha em direção à nova forma de cosmopolitismo que é representada pela necessidade de respeito aos direitos humanos, afirmando que a fraternidade: [...] recoloca em jogo um modelo de regra da comunidade política: modelo não vencedor, mas possível. É um trecho do direito vivo que não deve ser visto sempre como o direito vencedor. [...] Através daquele binômio – direito e fraternidade- retorna um modelo convencional de direito, retorna-se um modelo convencional de direito, “jurado conjuntamente” entre irmãos e não imposto como se diz pelo “pai senhor da guerra”. Jurado conjuntamente, mas não produzido por um “conluio”. Por isso é decisivamente não violento – isto é, capaz de não apropriarse daquela violência que diz querer combater [...] (RESTA, 2004, p. 15). 3 A fraternidade pode ser analisada também numa conotação religiosa, uma vez que pode ser encontrada na Bíblia Sagrada, também pode ter uma conotação de “ligação sectária, no âmbito de organizações secretas, ou que colocam níveis de segredo ao lado de outros de caráter público – como a maçonaria – e que buscam fortalecer sua própria rede de poder econômico e político”, também pode ter uma interpretação como “fraternidade de classe”, proclamada em alguns regimes políticos que negaram aos outros a liberdade ou, até mesmo, os invadiram, reafirmando uma fraternidade formal. (BAGGIO, 2008, p. 20). 239 Processo e Conexões Humanas Há uma necessidade de se buscar a compreensão de que a humanidade possui uma única casa, que é o mundo habitado, e que atingir um direito ambiental sustentável é fazer com que toda a humanidade se reconheça como integrante deste mundo e se reconheça como igual perante os demais, respeitando cada qual sua cultura. Esta nova proposta acena para um novo paradigma que ante ao já afirmado cosmopolitismo, possibilita a “integração entre povos e nações, [..] onde as necessidades vitais são suprimidas pelo pacto jurado conjuntamente” (VIAL, 2005, p. 1482), deve-se olhar as relações entre as pessoas no mesmo sentido com que olhamos e aceitamos o mundo globalizado, analisando outros fundamentos que possam servir para uma nova reflexão sobre o papel dos sistemas sociais, substituindo o ciúme pela colaboração, pelo pacto entre iguais, isto é, por novas formas fraternas e inclusivas. 4 Eligio Resta entende que há a necessidade de se pensar em um novo direito, que será fundamentado na obrigatoriedade de respeito aos direitos humanos, uma vez que estes direitos podem ser ameaçados pela humanidade, mas que também será esta própria humanidade que lhes fornecerá força, valor. Assim, afirma que: “[...] o direito fraterno pode ser a forma mediante a qual pode crescer um processo de auto-responsabilização, desde que o reconhecimento do compartilhamento se libere da rivalidade destrutiva típica do modelo dos ‘irmãos inimigos’.[...].”(RESTA, 2004, p. 14) É fato que nossa vivência no mundo representa uma convivência, ou seja, um “viver com”, o que evidencia a necessidade da existência de um outro, de um mundo compartilhado. Há, portanto, na fraternidade uma responsabilidade pelo ‘outro’ de tal forma que se condiciona inevitavelmente à própria existência ou morada no mundo. Esta responsabilidade com o ‘outro’, é o que caracteriza ser o direito ambiental fraterno, de fazer 4 Neste sentido importante ressaltar que na classificação em dimensões dos direitos fundamentais, para Ingo Sarlet os direitos da fraternidade ou de solidariedade, são denominados direitos fundamentais de terceira dimensão, sendo estes os direitos que se desprendem do individuo e focam na proteção de grupos humanos, povos/nação, isto é, são direitos de titularidade transindividual (coletiva ou difusa), não se referindo à pessoa individual como seu titular. (SARLET, MARINONI, MITIDIERO, 2012, p. 262-263). 240 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico com que a própria humanidade se reconheça como igual, sem com isso abdicar de suas diferenças culturais (BAGGIO, 2009, p. 130). A fraternidade tem como objetivo a humanidade, sendo, portanto, um direito que é de todos, não se limitando à fronteiras, tornando cada indivíduo copartícipe nesta busca por um bem comum, o que consequentemente acarreta na sensação de pertencimento a uma comunidade global. Neste contexto, os pressupostos do direito fraterno se apresentam como fundamentais para uma compreensão da inserção deste direito, com a identificação de seu caráter inclusivo e transdisciplinar, “em que os direitos à Paz e a Dignidade da Pessoa Humana, conjuntamente com a sustentabilidade são contemplados por um paradigma que remeta além da mera lógica da necessidade” (SILVA; VEIGA JUNIOR, 2011, p. 38). O ordenamento jurídico pátrio faz previsão da fraternidade no preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil de 05 de outubro de 1988, quando menciona que um dos valores supremos de uma sociedade é a fraternidade, sendo esta um princípio facilitador dos direitos do homem garantidos pela Carta Magna. Este é o teor do preâmbulo: Nós representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático de Direito, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. O Supremo Tribunal Federal já se posicionou não só 241 Processo e Conexões Humanas quanto a afirmação de ser o direito ambiental como um direito de terceira geração (RTJ 155/206), mas também de forma expressa quanto a adoção da fraternidade em suas decisões, é o que se verifica nas decisões proferidas na ADI nº 2649-6/DF, ADI 3510/DF e RMS 26071-1/DF. Diferentemente da liberdade e da igualdade, os postulados do direito fraterno conduzem a novos caminhos a serem percorridos pelo direito na busca de uma reestruturação da comunidade, na qual o pensamento egoístico do individualismo é deixado de lado para dar lugar ao bem coletivo, a um olhar para o outro 5. A análise da fraternidade sob esta perspectiva leva à conclusão de que ela possibilita uma relação de reciprocidade, na qual simultaneamente há um dar e receber, uma ida ao encontro do outro possibilitando uma abertura para escutá-lo, uma responsabilidade pelo outro e consequentemente pelo bem estar da comunidade. Promove ainda, uma responsabilidade social por parte de cada indivíduo que como participante da comunidade atuará não só em sua própria defesa, mas também na defesa do bem comum. Neste sentido, pode-se afirmar que a fraternidade capacita o homem de forma a buscar a efetivação de seus direitos, sem que fique a espera de toda e qualquer atuação do Poder Estatal (AQUINI, 2008, p. 138-139). Logo, a fraternidade, deve ser interpretada e entendida como o alcance do bem estar em uma sociedade globalizada, na qual todos, convergem seus esforços na busca e manutenção de união e paz, promovendo uma mudança comportamental que repercutirá em prol do meio ambiente, resgatando a confiança no ser humano e enaltecendo uma consciência ecológica essencial para perpetuação da vida no planeta, combatendo o consumo desenfreado e destrutivo que predomina no planeta. 5 Fica claro que a ideia de fraternidade é de desvinculação dos laços de sangue para uma “luta” para “laços mais amplos e tendencialmente universais. Este é o grande desafio que os Direitos Humanos enfrentam no século XXI, no mundo globalizado, esta é a nova grande tarefa a ser realizada no século XXI: a superação de uma lógica meramente identitária, em direção a um reconhecimento efetivo da alteridade, da diversidade e da reciprocidade.”(TOSI, 2008, p. 59). 242 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico Assim, para superar a crise ambiental existente, faz necessária a intervenção dos Estados, juntamente com as mudanças individuais de comportamento. A lógica dos mercados ao determinar o consumo exagerado deve ser modificada para um consumo sustentável, pautado em comprar aquilo que realmente é necessário tendo por objetivo a escolha de produtos que utilizem menos recursos naturais em sua produção e que possam ser reaproveitados ou reciclados, assim como o olhar sobre os valores da sustentabilidade e justiça social deve fazer parte da consciência coletiva com o abandono de práticas nocivas de alto consumo e desperdício. Neste aspecto a fraternidade aparece como um princípio facilitador e mobilizador de toda a humanidade em prol do bem comum, o meio ambiente. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ANTUNES; Paulo de Bessa. Manual de Direito Ambiental. 3° edição. Rio de Janeiro. 2011. Ed. Lumen Juiris. BAGGIO, Antônio Maria. A redescoberta da fraternidade na época do “terceiro 1789”, in: BAGGIO, Antônio Maria (Org.). O Princípio Esquecido 1. Tradução Durval Cordas, Iolanda GASPAR, José Maria de Almeida. Vargem Grande Paulista, SP: Cidade Nova, 2008. _____ . Fraternidade e reflexão politológica contemporânea. In: BAGGIO, Antonio Maria (Org.). O Princípio Esquecido/2: Exigências, recursos e definições da fraternidade na política. Tradução: Durval Cordas, Luciano Menezes Reis. Vargem Grande Paulista, SP: Cidade Nova, 2009. BRASIL. Lei 6.938, 31 de agosto de 1981. _______. Conselho Nacional do Meio Ambiente. Resolução n° 306, de 05 de julho de 2002. _______. Banco Nacional de Desenvolvimento Social. Disponível em: http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/bndes/bndes_pt/Institucional/B NDES_Transparente/Responsabilidade_Social_e_Ambiental/ Acesso em: 12. Out. 20123. _______. Senado Federal. Disponível em: ˂http://www.senado.gov.br/noticias/Jornal/emdiscussao/rio20/confere ncia-das-nacoes-unidas-para-o-meio-ambiente-humano-estocolmo-rio92-agenda-ambiental-paises-elaboracao-documentos-comissao243 Processo e Conexões Humanas mundial-sobre-meio-ambiente-e-desenvolvimento.aspx˃ Acesso em: 5. Jun. 2013. ______ Ministério do Meio Ambiente. Disponível em: ˂http://www.mma.gov.br/responsabilidade-socioambiental/producaoe-consumo-sustentavel/conceitos/consumo-sustentavel˃. Acesso em: 10. Set. 2014. ______. Serviço Brasileiro de Apoio as Micros e Pequenas Empresas SEBRAE. Vantagens e Desvantagens do comércio eletrônico. Disponível em: ˂http://meuatendimento.sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/artigos/Vant agens-e-desvantagens-do-com%C3%A9rcio-eletr%C3%B4nico˃. Acesso em: 12. Set. 2014. ______. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988. Disponível em: ˂http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoComp ilado.htm˃. Acesso em: 12. Set. 2014. CARDOSO; Ana Paula. Compras coletivas: a nova febre de consumo da internet. 2010. Disponível em: ˂ http://oglobo.globo.com/economia/compras-coletivas-nova-febre-deconsumo-da-internet-2977391#ixzz3Fz09ODzP˃. Acesso em: 12. Set. 2014. COMISSÃO DAS COMUNIDADES EUROPÉIAS. Livro Verde. Bruxelas. 2001. Disponível em: ˂http://eurlex.europa.eu/LexUriServ/site/pt/com/2001/com2001_0366pt01.pdf˃ Acesso em: 12. Out. 2013. COSTA; Lucio Augusto Villela da e IGNÁCIO; Rozane Pereira. Relações de Consumo x Meio Ambiente: Em busca do Desenvolvimento Sustentável. Disponível em: ˂http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos%20_leitura&artigo_id=1 0794&revista_caderno=5˃. Acesso em: 10. Set. 2014. MILARÉ; Édis. Direito do Ambiente. 8° edição. São Paulo. 2013. Ed. Revistas dos Tribunais. MUDANÇAS CLIMÁTICAS; Relatório de Brundtland e a Sustentabilidade. Disponível em: ˂http://www.mudancasclimaticas.andi.org.br/node/91˃. Acesso em: 10. Set. 2014. O GLOBO. 67% dos brasileiros não fazem compras pela internet, diz pesquisa. Disponível em: ˂http://g1.globo.com/economia/noticia/2014/07/67-dos244 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico brasileiros-nao-fazem-compras-pela-internet-diz-pesquisa.html˃. Acesso em: 13. Set. 2014. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Disponível em: ˂http://www.onu.org.br/rio20/img/2012/01/estocolmo1972.pdf˃. Acesso em: 05 jun. 2013. ______. Disponível em: ˂http://www.onu.org.br/rio20/img/2012/01/rio92.pdf˃. Acesso em: 6. Jun. 2013. ______. Disponível em: ˂http://www.onu.org.br/a-onu-em-acao/aonu-e-o-meio-ambiente/˃. Acesso em 10. Set. 2014. ______. Senado Federal. Disponível em: ˂http://www.senado.gov.br/noticias/Jornal/emdiscussao/rio20/temasem-discussao-na-rio20/agenda-21-meio-ambiente-desenvolvimentosustentavel-e-padroes-de-consumo.aspx˃. Acesso em: 12. Out. 2013. QUEIROZ; Tais. Consumo e meio ambiente. 2010. Disponível em: ˂http://www.recicloteca.org.br/consumo/consumo-e-meio-ambiente/˃. Acesso em: 10. Set. 2014. RESTA, Eligio. O Direito Fraterno. Tradução de Sandra Regina Martini Vial. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2004. SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. SIMÕES; Alexandre Gazetta. A transindividualidade do direito fundamental a um meio ambiente ecologicamente equilibrado. 2013. Disponível em: ˂http://jus.com.br/artigos/24451/atransindividualidade-do-direito-fundamental-a-um-meio-ambienteecologicamente-equilibrado˃. Acesso em: 05. Jun. 2013. SIRVINSKAS; Luís Paulo. Tutela Constitucional do Meio Ambiente. 2° Edição. Rio de Janeiro. 2010. Ed. Saraiva. SILVA, Ildete Regina Vale da; VEIGA JUNIOR, Celso Leal da. Sustentabilidade e Fraternidade: algumas reflexões a partir da proposta de um direito ambiental planetário. Veredas do Direito: Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável, 2011, v.8, n. 15. Disponível em: <http://www.domhelder.com.br/ revista/index.php/veredas/article/view/204/0>. Acesso em: 10. Set. 2013. SILVA; José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 9° edição. São Paulo. 1993. Ed. Malheiros. 245 Processo e Conexões Humanas SILVA; Thomas de Carvalho. Considerações Gerias acerca do Direito Ambiental. Disponível em: ˂http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/consid_gerais_direi to_ambiental.pdf˃ Acesso em: 5. Jun. 2013. VIAL, Sandra Regina Martini. O direito fraterno: uma análise da inclusão/exclusão na sociedade hodierna. In: REIS, Jorge Renato dos; LEAL, Rogério Gesta. (Org.). Direitos sociais e políticas públicas: desafios contemporâneos. Tomo 5. Santa Cruz do Sul-RS: EDUNISC, 2005, p. 1479- 1494. World Wildlife Fund; Relatório Anual WWWF – BRASIL 2008. Disponível em: ˂http://www.wwf.org.br/informacoes/bliblioteca/relatorioanual/?1966 0/Relatrio-Anual-WWF-Brasil-2008˃ Acesso em: 10. Set. 2014. World Watch Institute (WWI); Estado do Mundo Transformando culturas – Do Consumismo a sustentabilidade. 2010. Disponível em: ˂http://wwiuma.org.br/estado_2010.pdf˃ Acesso em: 10. Set. 2014. 246 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico O DIREITO AO ESQUECIMENTO FRENTE AOS MECANISMOS DE BUSCA DENTRO DA INTERNET Guilherme Tomizawa 1 RESUMO: O presente artigo científico tem a intenção de evidenciar o problema dos motores de busca dentro da Internet, vinculados ao direito de esquecimento do cidadão. Analisaremos brevemente sobre a origem da Internet, e o conflito de princípios constitucionais do direito à privacidade e o direito à liberdade do acesso à informação, exemplificando-os com alguns casos emblemáticos. Trataremos de um capítulo em especial, no que tange o conceito de direito do esquecimento e um outro dedicado aos mecanismos de busca dentro da Internet. Pretende-se ainda indagar essa zona limítrofe de até quando uma informação poderá ser disponibilizada na rede das redes no Estado Brasileiro e como a legislação local regula hodiernamente tal instituto. PALAVRAS-CHAVE: Colisão de princípios constitucionais, direito ao esquecimento, direito à privacidade, direito à informação, motores de busca. ABSTRACT: This research paper intends to highlight the problem of search engines within the Internet, linked to the citizens right to oblivion. We will briefly on the origin of the Internet, and the conflict with constitutional principles of privacy rights and the right to freedom of access to information, illustrating them with some emblematic cases. We discuss one chapter in particular, regarding the concept of law of forgetting 1 Professor adjunto de Direito Eletrônico da OPET. Mestre em direito pela UGF. Aluno do curso regular de Doutorado em Direito Civil pela UBA e membro do IBDE. 247 Processo e Conexões Humanas and another dedicated to the search engines within the Internet. Another objective is to investigate the area adjoining to when information may be available on the net as in the Brazilian state and local laws governing such institute in our times. KEY WORDS: Collision of constitutional principles, the right to oblivion, right to privacy, right to information, search engines. INTRODUÇÃO Entramos para a era da informação, ou era da tecnologia como já profetizava Alvin Toffler (1972, p.5) 2:"O choque do futuro é um fenômeno relacionado com o tempo, um produto do ritmo grandemente acelerado das transformações que ocorrem na sociedade". Em meados de 1990 com o advento da globalização somados a mundialização da Internet no Brasil, iniciou-se um processo revolucionário sem volta. Desde a invenção dos meios de comunicação tais como o telégrafo, o telefone, o rádio, e a televisão, nenhum teve um alcance tão revolucionário como a Internet 3, esse processo de internacionalização e disseminação do conhecimento é o atual estágio inexorável do ser humano. Superada as revoluções no âmbito rural, industrial acabou-se por culminar num verdadeiro ciclo tecnológico de bits e bytes. 2 TOFFLER, Alvin. O Choque do Futuro. 4ª ed. Tradução: Marcos Aurélio de Moura Matos. Editora Arte Nova, 1972. p. 5. 3 A internet resultou de um projeto de comunicação global encomendado pelos EUA à Ran Corporation denominado ARPANET durante o período da guerra fria (EUA X Ex-Rússia), quando uma das principais metrópoles sofresse algum ataque nuclear as comunicações não cessariam. Com a interveniência da academia (MIT) e de estudos científicos acabou chegando no que a Internet é hoje in CASTELLS, Manuel. La Galáxia Internet. 1. ed. Barcelona: Areté, 2001, p. 31 e CREMARES, Javier, (coord.), FERNANDÉZ-ORDOÑEZ, Miguel Ángel y ILLESCAS, Rafael. Historia de Internet, VV.AA., Régimen Jurídico de Interent. Madrid: La Ley, 2001, p.88. 248 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico A sociedade da informação é hoje definida como uma nova forma de organização social, político e econômica que recorre ao uso intensivo uso da informação para coleta, produção, processamento, transmissão e armazenamento de informações 4. Todavia a par das vantagens tais como a inexistência de barreiras de distância, tempo, ou volume de informações nesse novo meio que se desponta, algumas desvantagens também proliferam nesse meio, tal qual, a perda parcial ou total da privacidade ou de sua intimidade. Analisaremos a seguir esse confronto de direitos. I. CONCEITUAÇÕES PARADOXAIS DO DIREITO À PRIVACIDADE E O DIREITO AO LIVRE ACESSO À INFORMAÇÃO NA ERA GLOBALIZADA George Orwell 5, Jeremy Bentham 6, e Alvin Toffler 7 demais escritores visionários e futuristas vislumbraram a sociedade totalitarista monitorada por aparatos tecnológicos ou dispositivos de vigilância, e que a informação seria o maior bem ou produto existente na virada do terceiro milênio 8. 4 MARQUES, Garcia, Martins, Lourenço. Direito da Informática. Coimbra: Almedina, 2000, p.43. 5 ORWELL, George. 1984. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1978, 11ª Edição. 6 BENTHAM, Jeremy. O Panóptico. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. (Organização e tradução de Tomaz Tadeu da Silva). 7 TOFFLER, Alvin. A terceira onda. 16. ed. Rio de Janeiro: Record, 1980. 8 “Na Primeira Onda, ou sociedades agrárias, a principal forma de capital era a terra. Se eu cultivasse a minha terra, você não podia cultivar a sua plantação na mesma terra ao mesmo tempo. Era ou você ou eu, nunca ambos. O mesmo era - e ainda é - verdade para o capital nas economias industriais da Segunda Onda. Você e eu não podemos 249 Processo e Conexões Humanas Outrossim, em se tratando desse paradoxo enunciado nesse capítulo, Alexandre de Moraes 9 uniu os dois conceitos de liberdade de informação e vida privada, de maneira indissociável quando tratarmos desses mesmos direitos e garantias conjuntamente, sob pena de consequências jurídicas advindas de atos irresponsáveis: A manifestação do pensamento, a criação, a expressão, a informação e a livre divulgação dos fatos, consagradas constitucionalmente pelo inciso XIV do art. 5º da Constituição Federal, devem ser interpretadas em conjunto com a inviolabilidade à honra e à vida privada (CF, art 5º, X), bem como a proteção à imagem (CF, art. 5º, XXVII, a), sob pena de responsabilização do agente divulgador por danos materiais e morais (CF, art. 5º, V e X). Seguindo essa esteira de pensamento, no que tange à colisão de princípios constitucionais, tais como a privacidade e a intimidade (art. 5º incisos X e XII, da CF/88) e o acesso à informação e a liberdade de expressão (art. 5º, incisos IV, IX, XIV, XXXIII, e art. 220 da CF/88), vislumbramos que ambos possuem a mesma hierarquia normativa e não podem ser facilmente solucionados pele conflito de normas aparente bem usar a mesma linha de montagem ao mesmo tempo. Tudo isso se inverte nas economias da Terceira Onda, nas quais o conhecimento é a principal forma de capital. Você e eu podemos usar o mesmo conhecimento ao mesmo tempo e, se o usarmos com criatividade, podemos até mesmo gerar mais conhecimento”. In: TOFFLER, Alvin. A terceira onda, 16 ed. Rio de Janeiro: Record, 1980. 9 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 18ª. Edição. Atualizada até a EC nº 47/05. São Paulo. Editora Atlas S.A. 2005. p. 739. 250 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico retratado por Maria Helena Diniz 10 já que se tratam de leis de mesma categoria, já consagrados pela doutrina mundial e definidos por Robert Alexy com a qual anuímos. Devemos nesses casos como tratado em trabalho anterior 11 recorrermos ao princípio dos princípios seguindo a corrente doutrinária da especialista no tema, dra. Suzana de Toledo Barros 12, e como bem ressaltou Willis Santiago Guerra Filho 13 em seu trabalho acadêmico: (...) O princípio da proporcionalidade, que determina a busca de uma “solução de compromisso”, na qual se respeita mais, em determinada situação, um dos princípios em conflito, procurando desrespeitar o mínimo ao(s) outro(s), e jamais lhe(s) faltando minimamente com o respeito, isto é, ferindo-lhe seu “núcleo essencial”, em que encontra entronizado o valor da dignidade humana. Esse princípio, embora não se esteja explicitado de forma individualizada em nosso ordenamento jurídico, é uma exigência inafastável da própria fórmula política adotada por nosso constituinte, a do “Estado Democrático de Direito”, pois sem a sua utilização não se concebe 10 DINIZ, Maria Helena. Conflito de Normas. São Paulo: Saraiva, 1987. 11 Verificar o capítulo 2.9 que trata da colisão de Direitos Fundamentais, p. 78-83. In: TOMIZAWA, Guilherme. A Invasão de Privacidade Através da Internet. JM Livraria Jurídica, Curitiba, 2008. 12 BARROS, Suzana de Toledo. O Princípio da Proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. Editora Brasília Jurídica, 3ª. Edição, 2003. 13 FILHO GUERRA, Willis Santiago. Direito das obrigações e direitos fundamentais: sobre a projeção do princípio da proporcionalidade no direito privado. Del Rey, Belo Horizonte, 2003. p. 535. 251 Processo e Conexões Humanas com bem realizar o mandamento básico dessa fórmula, de respeito simultâneo dos interesses individuais, coletivos e públicos. Alexy, Perelman e Dworkin já trataram nessa mesma linha de raciocínio quando nos referimos à colisão de direitos fundamentais, sendo assim, a ponderação ao caso concreto deve ser utilizada como uma ferramenta ao intérprete, principalmente se tratando de hard cases. No estudo em comento, estaremos tratando do direito à vida privada e à intimidade e a liberdade de expressão e acesso à informação, mais especificamente na Internet. Sabemos que quando uma mídia sensacionalista publica uma reportagem, temporariamente aquela imagem ou o conteúdo que foi ao ar pode trazer danos de diversos tipos a vítima. Logicamente que nenhum direito pode ser levado aos extremos. O abuso do direito é repudiado pela doutrina brasileira, não podemos também ser demais policialescos (censura) nem libertinos (anarquia) ao extremo. Devemos impor limites e barreiras contra os excessos praticados na imprensa ou na mídia em geral. Pinto Ferreira 14 define os limites entre a censura prévia e abusos perpetrados por veículos midiáticos que podem responder por publicações injuriosas na imprensa, tendo o dever de controlar e vigiar o conteúdo que divulga, senão vejamos: O Estado democrático defende o conteúdo essencial da manifestação da liberdade, que é assegurado tanto sob o aspecto positivo, ou seja, proteção da 14 FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição brasileira. São Paulo: Saraiva, 1993. p. 68 252 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico exteriorização da opinião, como sob o aspecto negativo, referente à proibição de censura. Com relação à liberdade de expressão e de manifestação de pensamento o constitucionalista Alexandre de Moraes 15 propôs o seguinte: O texto constitucional repele frontalmente a possibilidade de censura prévia. Essa previsão, porém, não significa que a liberdade de imprensa é absoluta, não encontrando restrições nos demais direitos fundamentais, pois a responsabilização posterior do autor e/ou responsável pelas notícias injuriosas, difamantes, mentirosas sempre será cabível, em relação a eventuais danos materiais e morais. Aqui se ratifica o pensamento que no catálogo de direitos fundamentais, não existem direitos absolutos, e sim relativizados de per si. O prof. dr. Gustavo E. L. Garibaldi 16 também acentua essa preocupação: La tutela de la libertad de prensa (arts. 14 y 32, C.N.) por un lado de la vida privada de los posibles afectados por aquélla (arts. 19 y 33, C. N.; 11, CADH y 17, PIDCP), plantea um delicado problema. Cualquier propuesta que quiebre um equilíbrio razonable entre uno y outro derecho puede acarretar 15 MORAES, op. cit. p. 46. GARIBALDI, Gustavo E. L. Las Modernas tecnologias de control y de investigación del delito – Su incidência em el derecho penal y los princípios constitucionales. Editorial Ad-hoc. 1ª. Edição. Buenos Aires, 2010. p. 284-285. 16 253 Processo e Conexões Humanas daños y evidenciar que los limites diseñados son inconvenientes. Se há entendido que la confrontación entre libertad de prensa y derechos de la personalidad se debe llevar a cabo trás tener em cuenta la posición prevaleciente de aquélla, com motivo de su doble carácter de libertad individual y garantia constitucional, em atención especialmente a si existe um interes público general, sin dejar vacíos de contenido a los derechos fundamentales de los afectados em su honor, imagen, intimidad o sentimiento religiosos. Las noticias tienen trascedencia em razón de la persona de que se trata, por el lugar em que se encuentra o por el hecho que involucra. La cuestión no es sencilla de se resolver frente a conflictos concretos que permiten valoraciones diversas con fundamentos em todo caso respetables. É mister trazer à lume jurisprudência abaixo que toca bem nesse ponto antagônico, onde direitos fundamentais de mesmo valor se colidem, senão vejamos, em negrito e sublinhadas pelo autor, que é relevante ao presente estudo: CONSTITUCIONAL E CIVIL – LIBERDADES DE IMPRENSA VERSUS DIREITO À HONRA E À IMAGEM DAS PESSOAS – INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL – NOTÍCIA DIFAMATÓRIA E INJURIOSA – DEVER DE INDENIZAR 1. Sé é certo que a carta de outubro proclama, reconhece e protege o direito à liberdade de imprensa, menos verdade não é que este direito não é ilimitado e por isto deve ser exercido com responsabilidade e 254 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico em harmonia com outros direitos, especialmente com o direito que todos temos à honra e à boa imagem, não se prestando, portanto, a informação jornalística como instrumento para denegrir ou macular a honra das pessoas. 2. Doutrina. José Afonso da Silva. O texto constitucional repele frontalmente a possibilidade de censura prévia. Essa previsão, porém, não significa que a liberdade de imprensa é absoluta, não encontrando restrições nos demais direitos fundamentais, pois a responsabilização posterior do autor e/ou responsável pelas notícias injuriosas, difamantes, mentirosas sempre será cabível, em relação eventuais danos materiais e morais. Como salienta Miguel Angel Ekmekdjian, a proibição à censura prévia, como garantia a liberdade de imprensa, implica forte limitação ao controle estatal preventivo, mas não impede a responsabilização posterior em virtude do abuso no exercício desse direito. O autor, inclusive, cita julgado da corte suprema de justiça argentina no qual se afirmou: apesar de no regime democrático a liberdade de expressão ter um lugar eminente que obriga particular cautela enquanto se trata de decidir responsabilidades por seu desenvolvimento, pode-se afirmar sem vacilação que ela não se traduz no propósito de assegurar a impunidade da imprensa. A liberdade de imprensa em todos os aspectos, inclusive mediante a vedação de censura prévia, deve ser exercida com a necessária responsabilidade que se exige em um estado democrático de direito, de modo que o desvirtuamento da mesma para o cometimento de fatos ilícitos, civil ou penalmente, possibilitará aos prejudicados plena e integral indenização por danos materiais e morais, além do efetivo direito de resposta. 255 Processo e Conexões Humanas 2.1. Alexandre de Moraes. O texto constitucional repele frontalmente a possibilidade de censura prévia. Essa previsão, porém, não significa que a liberdade de imprensa é absoluta, não encontrando restrições nos demais direitos fundamentais, pois a responsabilização posterior do autor e/ou responsável pelas notícias injuriosas, difamantes, mentirosas sempre será cabível, em relação a eventuais danos materiais e morais. 3. Ao publicar ou noticiar qualquer fato deverá o veículo de comunicação social proceder a um juízo acerca do conteúdo da matéria, não se esquecendo que a liberdade que lhe é conferida pela carta magna tem limites e que outros direitos, de igual envergadura, ali também se encontram tutelados. 4. Nesta ordem de idéias, a vítima de uma lesão a algum daqueles direitos sem cunho patrimonial efetivo, mas ofendida em um bem jurídico que, em certos casos, pode ser mesmo mais valioso do que os integrantes de seu patrimônio deve receber uma soma que lhe compense a dor ou o sofrimento, a ser arbitrada pelo juiz, atendendo às circunstâncias de cada caso, e tendo em vista as posses do ofensor e a situação pessoal do ofendido. 2.1. Nem tão grande que se converta em fonte de enriquecimento, nem tão pequena que se torne inexpressiva. 3. Sentença modificada para julgar-se parcialmente procedente o pedido. (TJ/DF – 3ª T. Cív., Ap. Cív. nº 20020150078482, Rel. Des. João Egmont Leôncio Lopes, DJ 27.05.2004, p. 40) Tal julgado serve de referência ao artigo em comento, pois trata de direitos fundamentais, de mesmo valor hierárquico, devendose sopesar em cada caso concreto quais direitos devem prevalecer em detrimento de outros. Mas não descartando o 256 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico outro princípio ou direito de plano, assim como bem doutrinado por Alexy 17: Cuando dos princípios entran en colisión (...) un de los dos princípios tiene que ceder ante el otro pero, esto no significa declarar inválido al principio desplazado ni que en el principio desplazado haya que introducir una cláusula de excepción. Más bien lo que sucede es que, bajo ciertas circunstancias, la cuestión de la precedencia puede ser solucionada de manera inversa. Esto es lo que se quiere decir cuando se afirma que en los casos concretos los principios tienen diferente peso y que prima el principio con mayor peso O professor Antonio Enrique Perez Lunõ 18 também segue a mesma linha de entendimento: (...) De igual modo, el proprio processo hermeneutico actúa como um cauce abierto a las distintas exigências y alternativas prácticas, es decir, como uma instancia crítica capaz de ‘ponderar los bienes’, afin de resolver y canalizar los conflictos que puedan darse entre los diversos valores e intereses tutelados por la normativa constitucional 17 ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madri: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 1993, p.89. 18 PEREZ LUÑO, Antonio Enrique. Los Derechos Fundamentales. Madrid: Tecnos, 1995. p. 134-135. 257 Processo e Conexões Humanas Deve-se dar, sempre, nesse entendimento, primazia ao princípio de maior peso no referido caso concreto. Passaremos agora a tratar do direito ao esquecimento antes de adentrarmos no núcleo em discussão. II. O DIREITO APAGAMENTO AO ESQUECIMENTO OU AO O ilustre professor René Ariel Dotti 19, um dos pioneiros no Brasil em matéria de direito de privacidade com sua expertise no tema, conceituou o “direito ao esquecimento” da seguinte forma: (...) consiste na faculdade de a pessoa não ser molestada por atos ou fatos do passado que não tenham legítimo interesse público. Trata-se do reconhecimento jurídico à proteção da vida pretérita, proibindo-se a revelação do nome, da imagem e de outros dados referentes à personalidade. Ainda lapidando e aprofundando o conceito do direito ao esquecimento ou “ao apagamento” a estudiosa em direito à privacidade, Dr. Tatiana Malta Vieira endossou o seguinte com relação ao lapso temporal e destino final das informações onde: 19 DOTTI, René Ariel. O Direito ao esquecimento e a proteção do hábeas data. In: Wambier, Teresa Arruda Alvim (org.). Habeas Data. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 300. 258 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico estabelece que os dados devem ser apagados assim que se atingirem os objetivos para os quais foram colhidos. Assim, dados coletados para celebração de um contrato devem ser imediatamente apagados após a prescrição das obrigações estipuladas. Proíbe-se, desta forma, o armazenamento de dados pessoais além do tempo necessário ao cumprimento da finalidade para a qual foram coletados. Mais a frente completa seu raciocínio anunciando o “princípio da caducidade”, com supedâneo no pensamento da dra. Catarina Sarmento Castro 20: Decorre, portanto, do princípio da caducidade o chamado direito ao apagamento ou direito ao esquecimento. O referido direito faculta ao indivíduo exigir o apagamento de seus dados pessoais, após o período necessário ao cumprimento das finalidades determinantes da coleta, especialmente diante dos novos recursos da tecnologia da informação “que não esquecem” e que não possuem “limites físicos” ao armazenamento de tais informações. Jean François Revel 21, completa esse raciocínio lógico entre a livre manifestação de pensamento e o direito de ser informado, 20 CASTRO, Catarina Sarmento. Direito da Informática, privacidade e dados pessoais. Coimbra: Almedina, 2005, p. 239-240. 259 Processo e Conexões Humanas apontando que a primeira deve ser conhecida inclusive aos mentirosos e loucos, enquanto o segundo, diferentemente, deve ser objetivo, proporcionando informação exata e séria. O pensamento do autor retrocitado é importante para estabelecer freios e contra-pesos enaltecendo a garantia fundamental do direito ao esquecimento a fim de indicar que a informação deve ser divulgada de forma atual, imparcial e pública, e não inoportunamente, inexoravelmente, ad eternum, sem quaisquer tipos de limitações. Na ausência de um dispositivo constitucional, literis, acerca do direito ao esquecimento coadunamos com a diretiva estabelecida (art. 6º, alínea “e”, 94/46/CE) pela Comunidade Européia a fim de aclarar o princípio da caducidade encampado por diversos doutrinadores renomados 22, a seguir: os dados pessoais serão conservados de forma a permitir a identificação das pessoas em causa apenas durante o período necessário para a prossecução das finalidades para que foram recolhidos ou para que foram tratados posteriormente. E a Diretiva nº 2002/58/CE, item 23, no seu preâmbulo que disponibiliza: “(...) a comunicação registrada deve ser eliminada o mais rapidamente possível e, em todo o caso, o mais tardar até ao termo do período em que a transacção pode ser legalmente impugnada”. 21 REVEL, Jean François. El conocimiento inútil. Barcelona: Planeta, 1989, p. 207. 22 Nesta esteira de entendimento o professor René Ariel Dotti e a dra. Tatiana Malta Vieira no Brasil e a dra. Catarina Sarmento Castro em Portugal. 260 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico O Direito ao esquecimento se encontra indiretamente em quatro momentos na nossa lei brasileira: primeiramente na Carta Magna de 1988 em seu artigo 5º, inciso XXXIV, alínea “b” c/c com a Lei 9.507/97 (Habeas-Data). Num segundo momento, dentro do direito penal inserido no artigo 748 do CPP 23, e na esfera civil em seu artigo art. 43 § 1°do CDC 24, que retrata sobre informações negativas sobre consumidores. Por fim, existe, também o decreto 3.505/2000 que trata da Política de Segurança da Informação nos órgãos e entidades da Administração Pública Federal. É interessante trazer nesse estudo interessante julgado do Sistema SPC que vem aclarar essa questão do direito ao esquecimento: (...) Em primeiro lugar, é preciso admitir que tal registro só pode ser feito com o conhecimento do interessado, a fim de habilitá-lo a tomar as medidas cabíveis, fundadas na defesa que tiver, inclusive da inexistência do débito. Depois, impende que tal registro não seja perpétuo. O nosso sistema jurídico não autoriza a indefinida permanência dos registros negativos nem para as sentenças criminais condenatórias, cujos efeitos desaparecem pelo simples efeito do tempo (...) No caso dos autos, o cancelamento dos registros feitos há mais de cinco anos, como ficou 23 Art. 748 do CPP: “A condenação ou condenações anteriores não serão mencionadas na folha de antecedentes do reabilitado, nem em certidão extraída dos livros do juízo, salvo quando requisitadas por juiz criminal.“ 24 Art. 43 § 1° do CDC: ”Os cadastros e dados de consumidores devem ser objetivos, claros, verdadeiros e em linguagem de fácil compreensão, não podendo conter informações negativas referentes a período superior a cinco anos.” 261 Processo e Conexões Humanas reconhecido no acórdão, está de acordo com a regra do art. 43, § 1º do CDC. E os casos específicos no Brasil, como ficam? Quantas Cicarellis 25 ou políticos, esportistas e profissionais que atuam na mídia terão sua privacidade preservada? Passaremos a tratar dos motores de busca, uma questão mais técnica que vai elucidar pontos importantes para o desfecho do direito ao esquecimento dentro da Internet. III. MECANISMOS DE BUSCA DENTRO DA INTERNET Existem, atualmente, diversos sites de busca ou procura, tais como google 26, yahoo 27, altavista 28, cadê 29, e mais recentemente o ask 30 ou o bing 31 a fim de rastrear e localizar os endereços e sítios dos mais diversos interesses e gostos. O grande problema desses motores de busca, e, involuntariamente dentro da Internet, ocorre quando os mesmos 25 Ver link contendo caso notório e considerado um marco referencial dentro da Internet em matéria de direito do esquecimento no Brasil. http://www.conjur.com.br/2006-setDisponível em: 28/justica_confirma_veto_video_cicarelli_internet Acessado em 15 abr. 2011. 26 Disponível em: https://encrypted.google.com/ Acessado em: 15 abr. 2011. 27 Disponível em: http://br.yahoo.com/ Acessado em: 15 abr. 2011. 28 Disponível em: http://br.altavista.com/ Acessado em: 15 abr. 2011 29 Disponível em: http://cade.search.yahoo.com/ Acessado em: 15 abr. 2011. 30 Disponível em: http://www.ask.com/ Acessado em: 15 abr. 2011. 31 Disponível em: http://www.bing.com/?cc=br Acessado em: 15 abr. 2011 262 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico não esquecem do que publicam dentro da rede das redes. Todo conteúdo que é fornecido ou toda informação que circula ou é disponibilizada pode ser passível de ser lida, acessada ou absorvida por um olhar mais curioso ou por algum interesse específico, coincidente ou louvável. Os motores de busca, motores de pesquisa ou máquinas de busca podem ser definidos pelo Wikipedia (2011) como: “um sistema de software projetado para encontrar informações armazenadas em um sistema computacional a partir de palavraschave indicadas pelo utilizador, reduzindo o tempo necessário para encontrar informações” 32. Funcionam por grau de 32 Segundo o mesmo site, podemos ainda definir um motor de busca como: ”um programa feito para auxiliar a procura de informações armazenadas na rede mundial (WWW), dentro de uma rede corporativa ou de um computador pessoal. Ele permite que uma pessoa solicite conteúdo de acordo com um critério específico (tipicamente contendo uma dada palavra ou frase) e responde com uma lista de referências que combinam com tal critério, ou seja é uma espécie de catálogo mágico. Mas, diferentemente dos livros de referências comuns, nos quais está acessível a informação que alguém organizou e registrou, o catálogo do motor de busca está em branco, como um livro vazio. Ao se realizar uma consulta, a lista de ocorrências de assuntos é criada em poucos segundos por meio de um conjunto de softwares de computadores, conhecidos como spiders, que vasculham toda a Web em busca de ocorrências de um determinado assunto em uma página. Ao encontrar uma página com muitos links, os spiders embrenham-se por eles, conseguindo, inclusive, vasculhar os diretórios internos - aqueles que tenham permissão de leitura para usuários - dos sites nos quais estão trabalhando. Os motores de busca usam regularmente índices actualizados para funcionar de forma rápida e eficiente. Sem maior especificação, ele normalmente refere-se ao serviço de busca Web, que procura informações na rede pública da Internet. Outros tipos incluem motores de busca para empresas (Intranets), motores de busca pessoais e motores de busca móveis. De qualquer forma, enquanto diferente seleção e relevância podem aplicar-se em diferentes ambientes, o utilizador provavelmente perceberá uma pequena 263 Processo e Conexões Humanas relevância e números de acesso buscado. Quanto mais o usuário ou internauta acessar a internet naquele site em específico, mais aumenta a sua relevância e conseqüentemente o seu ranking dentro dos mecanismos de busca. Os mecanismos de busca podem ser classificados como naturais ou patrocinados. Os naturais são realizados sem o conhecimento técnico de algum expert ou perito em informática. Já os motores pagos ou patrocinados facilitam e incrementam o seu ranking dentro da internet, de acordo com as palavras-chaves que o interessado insere como relevantes e de quanto é o valor do lance de cada palavra. Dependendo de quanto o usuário “investe” nos termos de seu interesse ou sugeridos pelo próprio mecanismo de busca, tais como uma empresa ou uma loja virtual que gostaria de aumentar o seu número de buscas e relevância a fim de expandi-las e melhorar o seu marketing internético. A indagação é: existem limites para tanto? IV. LIMITES DOS MOTORES DE BUSCA DENTRO DA INTERNET diferença entre as operações neles. Alguns motores também extraem dados disponíveis em grupos de notícias, grandes bancos de dados ou diretórios abertos como a DMOZ.org. Ao contrário dos diretórios Web, que são mantidos por editores humanos, os serviços de busca funcionam algoritmicamente. A maioria dos sites que chamam os motores de busca são, na verdade, uma "interface" (front end) para os sistemas de busca de outras empresas”. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Motores_de_busca. Acessado em: 15 abr. 2011. 264 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico Antes de adentrar no cerne da questão, de onde se origina todo o imbróglio desse estudo, recorro novamente as sábias palavras da Dra. Tatiana Vieira: O poder que a tecnologia atualmente atingiu eleva-se a patamares tais que se recomenda seja estipulado um limite temporal ao armazenamento de informações pessoais, sob pena de permanecerem registradas indefinidamente; o que afetaria não só a privacidade informacional, mas especialmente o poder de autodeterminação do titular de dados. Como poderíamos resolver o limite temporal para que algo disponibilizado na Internet seja publicado e conhecido por todos? Até quando seria um prazo razoável, 5 anos como reza a lei consumerista? Até que o réu cumpra a sua pena e pague pelos seus crimes, devendo a partir daí ser excluído de qualquer motor de busca existente? Será que a saída teria que ser sempre pela via processual, através de uma ação de obrigação de fazer ou uma tutela inibitória aos provedores? Existem diversos julgados processuais penais 33 que podem servir de referência no nosso país, onde o direito ao esquecimento foi privilegiado em prol de outros interesses escusos. Houveram também decisões emblemáticas tais como o assassinato dos soldados de Le 33 EMENTA. RECURSO ORDINÁRIO. PENAL. INQUÉRITO POLICIAL. ARQUIVAMENTO. EXCLUSÃO DE DADOS DOS TERMINAIS DO INSTITUTO DE IDENTIFICAÇÃO. SIGILO DAS INFORMAÇÕES. Por analogia ao art. 748 do CPP – que assegura ao reabilitado o sigilo das condenações criminais anteriores na sua folha de antecedentes -, esta Corte Superior tem entendido que devem ser excluídos dos terminais dos Institutos de Identificação Criminal os dados relativos, de modo a preservar a intimidade do indivíduo.” Precedentes. Recurso conhecido e provido. 265 Processo e Conexões Humanas Bach 34 que evidenciaram e reforçaram que o tempo e a informação podem servir como aliados ou inversamente como violadores de direitos fundamentais. Vamos nos ater aos momentos decisivos da Corte Constitucional Alemã (BVerfGE 35, 203) no referido caso: (...) A divulgação posterior de notícias sobre o fato é, em todo caso, ilegítima, se se mostrar apta a provocar danos graves ou adicionais ao autor, especialmente se dificultar a sua reintegração na sociedade. É de se presumir que um programa, que identifica o autor do fato delituoso pouco antes da concessão do seu 34 “Já as colisões de direitos fundamentais em sentido amplo ocorrem entre direitos fundamentais individuais e interesses fundamentais coletivos, sendo que não há uma relação de precedência incondicionada. Como exemplo, o famoso caso LeBach julgado pelo Tribunal Constitucional Alemão, onde quatro soldados do grupo de guarda de um depósito do Exército haviam sido assassinados, e armas haviam sido subtraídas, na cidade de LeBach, e, após vários anos cumprindo pena, um dos condenados pelo crime estava para sair da prisão quando o Programa de Televisão alemão (ZDF) anunciou a projeção de um documento intitulado “o assassinato dos soldados de LeBach”. O preso pretendeu uma ordem proibitória de exibição do documentário, argüindo que seu direito individual à personalidade seria ferido, prejudicando sua ressocialização. O Tribunal Constitucional decidiu que, diante das circunstâncias fáticas e jurídicas, o principio da proteção da personalidade, de índole individual, obteve melhor ponderação do que o principio da liberdade de informação, de índole coletiva”. In: JÚDICE, Mônica Pimenta. Conflitos no Direito - Robert Alexy e a sua teoria sobre os princípios e regras.. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2007-mar02/robert_alexy_teoria_principios_regras?pagina=3#autores. Acessado em: 15 abr. 2011. (nosso grifo) 266 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico livramento condicional ou mesmo após a sua soltura, ameaça seriamente o seu processo de reintegração social. O referido caso demonstra claramente que não devemos “pagar” eternamente pelos nossos erros, o direito é imposto por limites, e esses mesmos limites devem regulamentar situações imprevisíveis ao homem mediano. Na Internet os efeitos dessa falha ou ofensa podem ter proporções gigantescas e preocupantes. Só para argumentar, se uma pessoa física, em tese, tem o seu nome e imagens denegridos em um blog ou um site de um desafeto, e os números de acesso começam a ser relevantes a ponto de os motores de busca localizarem com mais rapidez e mais vezes em links dentro da rede das redes, seria um prejuízo moral ou material ao mesmo? Quanto tempo poderia ficar exposto tal ofensa? Há regras ou normas para tal afronta constitucional ou abuso de direito na legislação hodierna? O que poderia ocorrer com uma empresa de reputação e renome que tendo seu nome comercial exposto e achincalhado por interesses escusos, supostos concorrentes ou internautas de máfé? Poderia macular ou denegrir a reputação desses sócios? E muito pior, se uma pessoa física é indiciada ou acusada injustamente, ou ainda sem provas suficientes para sua autoria, e descobre-se ao final que ela era inocente, como reagiriam os mecanismos de busca perante a falha humana? Infortunamente o estrago já foi feito. A inteligência artificial ou a máquina em seu estado bruto conseguem detectar essas lacunas? Ou ainda seriam capazes de absorver a perversidade do homem ou de um ser humano racional? Até o presente momento não dispomos de um projeto de lei que regule o direito ao esquecimento ou ao apagamento pontualmente em nosso ordenamento jurídico pátrio, a não ser a 267 Processo e Conexões Humanas legislação retrocitada anteriormente 35, mas haveria necessidade para tanto? Para o desfecho desse capítulo, prezo pelas palavras do prof. Alexandre de Moraes 36 que essencialmente refletem esse antagonismo de princípios, da liberdade de expressão e da privacidade, mais especificamente o esquecimento: A proteção constitucional às informações verdadeiras também engloba aquelas eventualmente errôneas ou não comprovadas em juízo, desde que não tenha havido comprovada negligência ou má-fé por parte do informador. A Constituição Federal não protege as informações levianamente não verificadas ou astuciosas e propositadamente errôneas, transmitidas com total desrespeito à verdade, pois as liberdades públicas não podem prestar-se à tutela de condutas ilícitas. A proteção constitucional à informação é relativa, havendo a necessidade de distinguir as informações de interesse público, da vulneração de condutas íntimas e pessoais, protegidas pela inviolabilidade à vida privada, e que não podem ser devassadas de forma vexatória ou humilhante. CONCLUSÃO 35 Artigo 5º, inciso XXXIV, alínea “b”, da CF/88 c/c com a Lei 9.507/97; artigo 748 do CPP; art. 43 § 1°do CDC e Decreto 3.505/2000. 36 MORAES, op. cit. p. 739. 268 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico Num verdadeiro Estado Democrático de Direito, todas as pessoas e cidadãos que compõe essa mesma sociedade de direito têm direito à informação, ao acesso à Internet como conceito esse já bem trabalhado em duas oportunidades pelo prof. Ivar Alberto Martins Hartmann 37. Deve-se ter em mente que a internet não esquece, as pessoas com o auxílio da internet podem se relembrar ou armazenar dados (esses classificados como informações de texto, imagem, voz, vídeo). Até quando o ser humano num viés pejorativo deve ser perpetuado entre os demais? O tempo, como já dito, é inexorável, ele não perdoa, ele avança, e em alguns casos retrocede, podendo ser momentâneo, como perpétuo. As pessoas esquecem, mas os sistemas e softwares informáticos não, e enquanto não houver uma legislação ou uma nova forma arquitetônica de se difundir os mecanismos de busca no mundo, a humanidade ainda continuará a ser objeto de monitoração como já abordado em outro estudo 38, e “o direito ao esquecimento” será um produto raro, quase que escasso ao homem, pois sempre existirá uma forma de armazenar (HD físico ou virtual, Cd, DVD, e-mails, etc.) ou divulgar tal informação dentro da Rede das redes ou fora dela. 37 HARTMANN, Ivar Alberto Martins. O acesso à Internet como direito fundamental. Revista de Derecho Informático, n. 118, maio 2008. Disponível em: http://www.alfa-redi.org/rdi-articulo.shtml?x= 10359. Acessado em: 15 abr. 2011. e HARTMANN, Ivar Alberto Martins. Ecodemoracia – a proteção do meio ambiente no ciberespaço, Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010. 38 TOMIZAWA, Guilherme. O Direito à privacidade e a intromissão estatal através dos sistemas de inteligência e ferramentas de espionagem dentro da Internet. ANIMA V – Revista de Direito Eletrônico do Curso de Direito da OPET. ISSN 2175-7119, Volume 5, série 5, págs. 302-316. Disponível em: site http://www.animaopet.com.br/anima_5.html. Acessado em: 15 abr. 2011. 269 Processo e Conexões Humanas O jurista argentino prof. Gustavo E. L. Garibaldi 39, elucida com muita propriedade no assunto que lhe é peculiar, sobre a perda da intimidade com o uso de computadores: Los avances tecnológicos em matéria de comunicaciones son particularmente aptos para afectar la intimidad de las personas y generar toda clase de conflitctos. El riesgo de exposición abarca, nada menos, la suerte de toda exteriorización del pensamiento destinada a outro que, a partir de la evolución tecnológica em cuanto a medios de transmisión y captación, pone em riesgo de no deseada divulgación la mayor parte de las cosas que se dicen o se dijeron, que se escriben o se escribieron. O Professor Doutor Marcelo Cardoso Pereira 40, especialista em informática e privacidade ressalta a importância dessas informações pessoais, a fim de concluirmos o presente estudo: Esse tipo de informação (pessoal) sempre foi objeto de armazenamento para os mais variados fins, não sendo uma atividade fruto do surgimento da Internet. No presente momento, o problema atual reside no fato de que essas bases de dados estão deixando o âmbito das empresas e organizações (governamentais ou não), passando a estar disponíveis na Rede das redes. Já dissemos, anteriormente, que da navegação pela Internet ficam “rastros” (informações e dados 39 GARIBALDI, op. cit. p. 183-184. 40 PEREIRA, Marcelo Cardoso. Direito à Intimidade na Internet. Curitiba: Juruá Editora, 2004. p. 240-241. 270 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico acerca do internauta e de seu sistema informático). Partindo dessa premissa, não é difícil concluir que, quanto mais ativo (participativo) for o indivíduo na Rede, mais “rastros” deixará. A problemática centrase em que tipo de informações o usuário deixou na Rede das redes, bem como onde estão e quais as condições de armazenamento delas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS LIVROS E PERIÓDICOS: ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madri: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2001. BARROS, Suzana de Toledo. O Princípio da Proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. Editora Brasília Jurídica, 3ª. Edição, 2003. BENTHAM, Jeremy. O Panóptico. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. (Organização e tradução de Tomaz Tadeu da Silva). CASTELLS, Manuel. La Galáxia Internet. 1 ed. Barcelona: Arete, 2001. CASTRO, Catarina Sarmento. Direito da Informática, privacidade e dados pessoais. Coimbra: Almedina, 2005. DINIZ, Maria Helena. Conflito de Normas. São Paulo: Saraiva, 1987. 271 Processo e Conexões Humanas DOTTI, René Ariel. O Direito ao esquecimento e a proteção do habeas data. In: Wambier, Teresa Arruda Alvim (org.). Habeas Data. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição brasileira. São Paulo: Saraiva, 1993. FILHO GUERRA, Willis Santiago. Direito das obrigações e direitos fundamentais: sobre a projeção do princípio da proporcionalidade no direito privado. Del Rey, Belo Horizonte, 2003. GARIBALDI, Gustavo E. L. Las Modernas tecnologias de control y de investigación del delito – Su incidência em el derecho penal y los princípios constitucionales. Editorial Adhoc. 1ª. Edição. Buenos Aires, 2010. HARTMANN, Ivar Alberto Martins. Ecodemoracia – a proteção do meio ambiente no ciberespaço, Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010. MARQUES, Garcia, Martins, Lourenço. Informática. Coimbra: Almedina, 2000. Direito da MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1998. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 18ª. Edição. Atualizada até a EC nº 47/05. São Paulo. Editora Atlas S.A. 2005. ORWELL, George. 1984. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1978, 11ª Edição. PEREIRA, Marcelo Cardoso. Direito à Intimidade na Internet. Curitiba: Juruá Editora, 2004. 272 Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico PEREZ LUÑO, Antonio Enrique. Fundamentales. Madrid: Tecnos, 1995. Los Derechos REVEL, Jean François. El conocimiento inútil. Barcelona: Planeta, 1989. TOFFLER, Alvin. O Choque do Futuro. 4ª ed. Tradução: Marcos Aurélio de Moura Matos. Editora Arte Nova, 1972. _________. A terceira onda. 16. ed. Rio de Janeiro: Record, 1980. TOMIZAWA, Guilherme. A Invasão de Privacidade Através da Internet. JM Livraria Jurídica, Curitiba, 2008. VIEIRA, Tatiana Malta. O Direito à Privacidade na Sociedade de Informação. Efetividade desse direito fundamental diante dos avanços da informação. Porto Alegre Sergio Antonio Fabris Editora, 2007. SITES: ALTAVISTA. Disponível Acessado em: 15 abr. 2011. em: http://br.altavista.com/ ASK. Disponível em: http://www.ask.com/ Acessado em: 15 abr. 2011. BING. Disponível em: http://www.bing.com/?cc=br Acessado em: 15 abr. 2011. 273 Processo e Conexões Humanas CADE. Disponível em: http://cade.search.yahoo.com/ Acessado em: 15 abr. 2011. GOOGLE. Disponível em: Acessado em: 15 abr. 2011. https://encrypted.google.com/ HARTMANN, Ivar Alberto Martins. O acesso à Internet como direito fundamental. Revista de Derecho Informático, n. 118, maio 2008. Disponível em: http://www.alfa-redi.org/rdiarticulo.shtml?x= 10359. Acessado em: 15 abr. 2011. JÚDICE, Mônica Pimenta. Conflitos no Direito - Robert Alexy e a sua teoria sobre os princípios e regras. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2007-mar02/robert_alexy_teoria_principios_regras?pagina=3#autores. Acessado em: 15 abr. 2011. TOMIZAWA, Guilherme. O Direito à privacidade e a intromissão estatal através dos sistemas de inteligência e ferramentas de espionagem dentro da Internet. ANIMA V – Revista de Direito Eletrônico do Curso de Direito da OPET. ISSN 2175-7119, Volume 5, série 5, págs. 302-316. Disponível em: site http://www.anima-opet.com.br/anima_5.html. Acessado em: 15 abr. 2011. YAHOO. Disponível em: http://br.yahoo.com/ Acessado em: 15 abr. 2011. WIKIPEDIA. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Motores_de_busca. Acessado em: 15 abr. 2011. 274