Linhas setembro ‘05 Ana Paula Canha em odemira há jovens investigadores graças a bióloga formada pela ua O entusiasmo e dedicação que Ana Paula Canha, 40 anos, imprime às mil e uma actividades em que se envolve é impossível de descrever em apenas duas páginas. Licenciou-se em Biologia pela Universidade de Aveiro, em 1986. Logo depois aceitou o desafio do pai e partiu para Vila Nova de Milfontes, onde começou por converter salinas de pequena dimensão em pisciculturas. A determinada altura, o gosto pelo ensino falou mais alto e hoje dedica a maior parte do tempo à Escola Secundária de Odemira, onde para além de professora é coordenadora do Clube BIGEO. Foi sob a sua orientação que este Clube de Ciências da Escola desenvolveu um projecto de investigação várias vezes premiado, que já teve honras de publicação na National Geographic Magazine – Portugal. linhas4_01|68 20 9/13/05, 4:32 PM 20 21 Dois dos alunos de Ana Paula Canha estavam envolvidos num projecto que visava comparar a alimentação da coruja das torres em diferentes locais do concelho de Odemira, quando descobriram que uma das corujas estudadas comia mais Microtus cabrerae (ratos de campo) que qualquer outro rato que encontrasse. Este estranho resultado foi suficiente para logo os entusiasmar a estudar esta espécie rara de ratos de campo. Ao fim de três anos de investigação em campo, as descobertas que fizeram sobre este micromamífero, que apenas existe na Península Ibérica, mereceram a atenção do país, a publicação do artigo “Microtus cabrerae em Odemira” na National Geographic Magazine – Portugal e a atribuição de vários prémios em Portugal e no estrangeiro. Orgulhosa pelo feito, Ana Paula Canha diz, contudo, ter de admitir não ter sido este, o projecto profissional que gostaria de destacar quando questionada sobre o que mais gozo lhe dá realizar. “O desafio que considero mais interessante, ninguém vê nem avalia, só vale mesmo para meu gozo pessoal. É transformar o bolo intragável que todos estamos habituados a ouvir falar (programas muito extensos, pouco tempo para os dar, alunos com falta de bases, salas de aula desajustadas, falta de meios…) e conseguir, simultaneamente, que os alunos: (1) aprendam sem fazer aquele ar de “quando é que toca para isto acabar”; (2) o façam num ambiente animado e bem-disposto; (3) sempre com uma componente prática indispensável. Isto é mais difícil que desenvolver os projectos com que temos ganho prémios, mas dá-me um gozo enorme sair de casa mais cedo para ir à Ribeira do Torgal apanhar umas planarias ou umas hidras para as aulas ou chegar à sala com umas flores fantásticas para dissecarmos…” linhas4_01|68 21 carreiras bem sucedidas Um desafio diferente cada dia Depois de ter estado sete anos no Colégio de Milfontes e um na EB 2/3 Damião de Odemira, Ana Paula Canha está há 10 a dar aulas de diferentes disciplinas da área de Biologia, na Escola Secundária de Odemira, uma escola que diz estimular e apoiar quem trabalha. Ao mesmo tempo, coordena o Clube de Ciências da Escola e dirige as instalações dos laboratórios de Biologia. Passa, por isso, os dias inteiros na escola, não deixa de ir frequentemente com os alunos para o campo para acompanhar as actividades do BIGEO, e ainda tem tempo para outras quantas actividades e, claro, para a família. Seja como for, Ana Paula não se arrepende da opção que tomou quando abandonou o trabalho nas pisciculturas para se dedicar ao ensino. Logo que se licenciou na UA foi viver para Vila Nova de Milfontes, onde o pai tinha umas salinas. Na altura tinham surgido apoios comunitários e incentivos à conversão de salinas de pequena área (pouco rentáveis) em pisciculturas. Entretanto casou com um Químico, também formado pela UA, e ao mesmo tempo que desenvolviam e tentavam aprovar os projectos para a piscicultura, ela dava umas aulas e ele estagiava na Petrogal. “Na época, a piscicultura em água salgada, ao contrário da de água doce, dava os primeiros passos em Portugal. Em 1992 já tínhamos dois projectos de estações de crescimento executados e na manga uma maternidade (estação de reprodução de peixes). O trabalho começou a apertar e contratámos mais uma bióloga. Não tinha sentido continuar a dar aulas com tanto trabalho nas pisciculturas e na estação de reprodução. Com o nascimento do primeiro dos meus três filhos repensei a minha vida. O trabalho na empresa era demasiado absorvente e implicava saídas frequentes para o estrangeiro. Por outro lado, estava completamente apaixonada pelas aulas… De repente, não conseguia admitir a ideia de deixar a escola. Foi uma opção que me custou tomar mas da qual nunca me arrependi: deixei a empresa e dediqueime só à Escola.” Ana Paula Canha confessa que nunca tinha pensado seguir uma carreira ligada ao ensino. “Sempre gostei de três coisas: literatura, desenho e biologia. A literatura é a minha companheira indispensável em férias, viagens e tempo livre; o desenho o meu hobby, embora ilustrações minhas já tenham sido publicadas. Restou a Biologia que acabei por tirar na UA porque vivia em Aveiro. Até hoje acho que foi a escolha mais acertada. A UA deu-me uma excelente preparação, a nível de conhecimentos e competências práticas, e as amizades que fiz na Universidade revelaram-se importantes também a nível profissional. Não tenho dúvida que a minha turma foi a mais fantástica que já passou pela Universidade de Aveiro. Éramos meia dúzia de gatos-pingados, mas muito unidos, muito interessados no curso e cheios de energia. Também os professores me marcaram pela positiva e o modelo de ensino, muito prático, experimental, inovador e exigente, deu-me uma excelente preparação. A UA é hoje uma universidade muito aberta para o exterior (empresas, instituições), inovadora, sempre na linha da frente em novas tecnologias. Está instalada num campus lindíssimo, sem paralelo em Portugal, tem um corpo docente fantástico e excelentes condições de trabalho. Não me canso de a aconselhar aos meus alunos.” 9/13/05, 4:32 PM Linhas setembro ‘05 Os feitos do BIGEO – Clube de Ciências da Um resultado surpreendente feito importante. Entre Outubro de 2001 e Agosto Escola Secundária de Odemira Conta Ana Paula que em 2001 teve um grupo de de 2002 iniciámos ciclos regulares de armadilhagem O BIGEO promove uma série de actividades alunos que estava a estudar regurgitações de (quatro dias e noites consecutivos de dois em dois regulares. Entre elas estão as saídas de campo coruja das torres. “Eram apaixonados por aves mas meses). Usámos dois tipos de armadilhas. Os ratos orientadas por Ana Paula Canha, sobre temáticas acabaram a estudar mamíferos… É que entretanto capturados foram anestesiados, medidos e tão variadas como a fauna, a flora, a conservação descobriram que uma das corujas que estavam a pesados. Foram registadas as características da natureza…. Com base no que aprendem nestas estudar comia mais Microtus cabrerae que relativas ao sexo e estado de actividade sexual. saídas de campo, os alunos de Ana Paula orientam qualquer outro rato, o que era no mínimo estranho, Depois foram libertados no mesmo local”. Terminada depois saídas de campo com crianças, desde o uma vez que este micromamífero é raro. esta primeira fase do projecto, premiada com o 1º Infantário até ao 6º ano, para transmitirem o que Contactámos a Universidade de Évora, onde eu lugar em dois concursos (Concurso Europeu para aprenderam. Outra das actividades em que o sabia que se estudava este rato. O Doutor António Jovens Cientistas e Concurso Europeu para Jovens Clube se envolve regularmente é o jornal de parede Mira veio cá verificar estes dados estranhos e Investigadores na Área do Ambiente) e com um e o Museu de História Natural “nome pomposo que animou-nos a estudar o local à volta do poiso da prémio de Melhor Defesa e Apresentação do damos a um conjunto de vitrinas com alguns dos coruja, porque devia haver colónias abundantes Projecto na Feira de Ciência em Viena de Áustria), tesouros que encontramos nas nossas saídas: deste rato. O local era um palheiro num monte, no os alunos entusiasmaram-se para continuar com plumadas, ninhos, esqueletos montados…”, meio de uma herdade plantada com montado de um novo método: telemetria. Isto implicava esclarece Ana Paula. sobro e pastagens para gado ovino. Armámo-nos comprar transmissores para aplicar aos ratos e um Mas o Clube tem também uma outra vocação: de tendas de campismo e pedimos autorização receptor para os podermos seguir. Pedimos apoios apoiar os alunos (todos com mais de 15 anos, a aos rendeiros da herdade para montarmos a mais de dez entidades e empresas porque se maioria pré-universitários) que queiram desenvolver acampamento por ali. A Universidade de Évora tratava de material muito caro. Graças a algumas um projecto mais sério de investigação. emprestou-nos armadilhas e ensinou-nos os empresas, mas sobretudo à Fundação Calouste Foi um destes trabalhos que saiu na National procedimentos a fazer com os ratos. Gulbenkian, foi possível realizar mais um ano de Geographic Magazine. Logo no primeiro acampamento descobrimos dez estudo com telemetria. colónias e capturámos seis ratos, o que parece pouco para quem não sabe que esta espécie é tão rara e difícil de capturar, mas na realidade foi um linhas4_01|68 22 9/13/05, 4:32 PM 22 23 carreiras bem sucedidas Os resultados comprovaram que o Microtus Feita a descoberta e apresentados os resultados, Ana Paula adianta ainda que no momento estão a cabrerae, ao contrário do que se pensava antes, Ana Paula Canha lembra os momentos que passou dar início a dois projectos novos, um de campo pode percorrer grandes distâncias (pelo menos nas investigações que duraram cerca de dois anos. (sobre sobreiros) e outro mais de laboratório 3Km) à procura de locais com erva verde e alta, “As condições de vida no campo eram mínimas, (microbiologia). “Não posso deixar de dizer que condição indispensável à instalação de uma tomávamos banho turco dentro das tendas, à noite tenho recorrido várias vezes a antigos colegas colónia. Comparando com outra espécies de uma fogueira dava luz e aquecia,… mas depois, meus que estão a trabalhar no Departamento de micromamíferos, Microtus cabrerae mostra com o tempo, fomos melhorando a logística dos Biologia da UA, para tirar dúvidas, etc. A Rosinha marcados hábitos diurnos, com predominância acampamentos. De qualquer maneira o ânimo do Pinho, do Herbário, tem sido uma ajuda preciosa para o amanhecer. Algumas condições descritas na grupo de alunos foi sempre excepcional. Como na Botânica. A todos eles agradeço o apoio e bibliografia como essenciais para a sobrevivência fazíamos acampamentos regulares, calhava ir para amizade.” desta espécie não existem na zona estudada, o campo com temperaturas abrasadoras mas como é o caso de zonas de elevada humidade também com um frio terrível. Uma vez, em Abril de edáfica durante todo o ano. Descobriram que os 2002, havia uma chuva imparável, os campos ratos encontram soluções alternativas: por estavam todos alagados e montar tendas era exemplo, migração para o leito da ribeira durante o impossível. Telefonei ao grupo de alunos e tentei Verão. Comprovaram ainda que, ao contrário do adiar o acampamento. Resposta intransigente: que acontece em Espanha, em Portugal esta “vamos, vamos e vamos, a professora arranja espécie permanece sexualmente activa entre sempre solução para tudo, não é desta que nos vai Outubro e Junho. falhar. Nós temos de ver o que fazem os ratinhos nestas circunstâncias…” Bem, lá tive que arranjar uma solução: pedi emprestada a escola primária de um lugar ali perto (Bicos) e foi lá que pernoitámos. Fizemos o trabalho de campo durante três dias debaixo de chuva; foi dos acampamentos mais animados que tivemos!” linhas4_01|68 23 9/13/05, 4:32 PM