o choque de civilizações? ~
Samuel P. Huntington
opróximo
padrão dos conDitos
"A política mundial está a entrar numa nova fase e os intelectuais não têm hesitado em
multiplicar as visões do que esta seria - o fim da história, o regresso às tradicionais
rivalidades entre Estados-nações e o declínio do Estado-nação a partir das tendências
em conflito do tribalismo e do globalismo, entre outras. Cada uma destas visões capta
aspectos da realidade emergente. No entanto, todas elas esquecem um aspecto crucial,
mesmo central, do que, provavelmente, a política global pode vir a ser nos anos
vindouros.
A minha hipótese é a de que a fonte fundamental de conflito neste novo mundo não
seja prevalentemente ideológica ou predominantemente
econômica. As grandes
divisões existentes na humanidade e a fonte dominante de conflito serão culturais. Os
Estados-nações continuarão a ser os atores mais poderosos nas questões mundiais, mas
os principais conflitos da política global ocorrerão entre nações e grupos de diferentes
civilizações. O choque de civilizações dominará a política global. As guerras
civilizacionais serão as batalhas do futuro.
O conflito entre civilizações será a última fase na evolução do conflito no mundo
moderno. Durante um século e meio, após a emergência do moderno sistema
internacional com a Paz de Westefália, os conflitos do mundo moderno ocorreram
majoritariamente entre príncipes - imperadores, monarcas absolutos e monarcas
constitucionais, que tentavam expandir as suas burocracias, os seus exércitos, o seu
poder econômico mercantilista e, principalmente, o território que governavam. Neste
processo criaram os Estados-nações, mas com a revolução francesa as principais linhas
de conflito começaram a verificar-se mais entre nações do que entre príncipes. Em
1793 R. R. Palmer dizia que «as guerras entre reis acabaram; começaram as guerras
entre povos». Este padrão do século xix durou até ao fim da primeira guerra mundiaL
Depois, como resultado da revolução russa e da reação contra ela, o conflito das nações
conduziu ao conflito das ideologias, primeiro entre o comunismo, o nazi-fascismo e a
democracia liberal e depois entre o comunismo e a democracia liberal. Durante a
guerra fria, este último conflito foi corporificado na luta entre as duas superpotências,
nenhuma delas um Estado-nação no sentido clássico europeu do termo, masTada uma
delas com as suas identidades definidas em termos das respectivas ideologias.
Estes conflitos
entre
príncipes,
Estados-nações
e ideologias ocorreram
predominantemente dentro da civilização ocidental, «guerras civis ocidentais», como
William Lind os classificou. Tal foi tanto verdade em relação à guerra fria como o foi
em relação às antecedentes guerras dos séculos xvii, xviii e xix. Com o fim da guerra
fria, a política internacional sai da fase ocidental e o seu centro passa a ser a interação
entre o Ocidente e as civilizações não ocidentais e entre estas. Na política das
civilizações, os povos e os governos das civilizações não ocidentais já não são mais os
objetos da história como alvos do colonialismo ocidental, mas juntam-se ao Ocidente
como motores e modeladores da história.
A natureza das civilizações
Durante a guerra fria, o mundo estava dividido em primeiro, segundo e terceiro
mundos. Estas divisões já não têm qualquer relevância. É agora muito mais
significativo agrupar os países, não em termos dos seus sistemas políticos ou
econômicos ou dos seus níveis de desenvolvimento econômico, mas segundo a sua
cultura e civilização.
O que queremos dizer quando falamos de uma civilização? Uma civilização é uma
entidade cultural. Aldeias, regiões, grupos étnicos, nacionalidades, grupos religiosos,
todos têm culturas distintas em diferentes níveis de heterogeneidade cultural. A
cultura de uma aldeia na Itália meridional pode ser diferente da de uma aldeia no
Norte, mas ambas compartilham uma cultura italiana comum que as distingue das
aldeias alemãs. As comunidades européias, por seu lado, partilharão traços culturais
que as distinguem das comunidades árabes ou chinesas. No entanto, os Árabes, os Chineses e os Ocidentais não são parte de qualquer entidade cultural mais ampla.
Constituem civilizações. Assim, a civilização é o mais elevado agrupamento cultural
de pessoas e o nível mais amplo de identidade cultural que possuem e que distingue os
humanos das outras espécies. Define--se quer por elementos objetivos comuns, como a
língua, a história, a religião, os costumes e as instituições, quer pela auto-identificação
subjetiva das pessoas. As pessoas têm níveis de identidade diferentes: um residente em
Roma pode definir-se, em vários graus de intensidade, como romano, italiano,
católico, cristão, europeu, ocidental. A civilização a que pertence é o nível mais amplo
de identificação a que se sente ligado. As pessoas podem redefinir, e redefinem, as suas
identidades e, consequentemente,
mudam a composição e as fronteiras das
civilizações.
As civilizações podem englobar uma grande quantidade de pessoas, como a da China
(<<umacivilização que pretende ser um Estado», como disse Lucian Pye), ou um
número muito reduzido de pessoas, como a das Caraíbas anglófonas. Uma civilização
pode incluir vários Estados-nações, como é o caso das civilizações ocidental, latinoamericana ou árabe, ou apenas um, como acontece com a civilização japonesa.
Obviamente, as civilizações misturam-se e sobrepõem-se e podem conter subdivisões.
A civilização ocidental tem duas variantes principais, a européia e a norte-americana,
tal como o islão tem várias subdivisões: árabe, turca e malaia. No entanto, as
civilizações são entidades com significado e, embora as linhas entre elas não sejam
nítidas, são reais. As civilizações são dinâmicas, progridem e tombam, dividem-se e
fundem-se. E, como qualquer estudante de História sabe, há civilizações que
desaparecem e ficam enterradas nas areias do tempo.
Os Ocidentais tendem a considerar que os Estados-naçõessão os principais atores nos
assuntos globais. De fato, têm-no sido, mas apenas há alguns séculos. A história das
civilizações tem sido a história humana com maior alcance. No livro A Study of
History Arnold Toynbee identificou 21 grandes civilizações; apenas seis continuam a
existir no mundo contemporâneo.
Por que haverá choques de civilizações
No futuro, a identidade civilizacional será cada vez mais importante e o mundo será
moldado, em grande medida, pelas interações entre sete ou oito grandes civilizações.
Nestas incluem-se a ocidental, a confucionista, a japonesa, a islâmica, a hindu, a
eslavo-ortodoxa, a latino-americana e, possivelmente, a africana. Os conflitos mais
importantes do futuro ocorrerão ao longo das linhas que separam estas civilizações
umas das outras.
Por que será assim?
Em primeiro lugar, as diferenças entre as civilizaçõesnão são apenas reais, são básicas.
As civilizações distinguem-se urnas das outras pela história, língua, cultura, tradição e,
especialmente, pela religião. Pessoas de civilizações diferentes têm pontos de vista
diferentes sobre as relações entre Deus e o homem, o indivíduo e o grupo, o cidadão e
o Estado, os pais e os filhos, o marido e a mulher, assim como perspectivas diferentes
sobre a importância relativa dos direitos e das responsabilidades, a liberdade e a
autoridade, a igualdade e a hierarquia. Estas diferenças são o produto do trabalho de
séculos. Não desaparecerão brevemente. São bem mais importantes do que as
diferenças entre ideologiaspolíticas e regimes políticos. AB diferenças não significam,
necessariamente, conflitos, tal como estes não significam, necessariamente, violência.
No entanto, ao longo dos séculos, as diferenças entre civilizações têm gerado os
conflitos mais prolongados e mais violentos.
Em segundo lugar, o mundo está a transformar-se num lugar pequeno. As interações
entre povos de civilizações diferentes estão a aumentar; estas interações crescentes
intensificam a consciência civilizacional e a constatação das diferenças entre as
civilizações e das similitudes existentes dentro delas. A imigração norte-africana em
França gera hostilidade entre os Franceses enquanto, simultaneamente, aumenta a
receptividade à imigração dos «bons» polacos católicos europeus. Os Americanos
reagem bastante mais negativamente ao investimento japonês do que aos muito
maiores investimentos do Canadá e dos países europeus. Analogamente, como notou
Donald Horowitz, «um ibo pode ser [...] um ibo owerri ou um ibo ollÍtsha na região
leste da Nigéria. Em Lagos é, simplesmente, ibo. Em Londres é nigeriano. Em Nova
Iorque é africano.» As interações entre povos de civilizações diferentes fazem
aumentar a consciência civilizacional das pessoas e, por outro lado, acentuam as
diferenças e as animosidades que estão radicadas, ou assim se pensa, bem fundo na
história.
Em terceiro lugar, os processos de modernização econômica e de mudança social
através do mundo estão a afastar as pessoas das ancestrais identidades locais. Também
enfraquecem o Estado-nação como fonte de identidade. Em muitas partes do mundo a
religião tem procurado preencher esse vazio, frequentemente sob a forma de
movimentos que são etiquetados de «fundamentalistas». Tais movimentos encontramse no cristianismo ocidental, no judaísmo, no budismo e no hinduísmo, assim como no
íslamismo. Na maior parte dos países e das religiões as pessoas ativas nestes
movimentos fundamentalistas são jovens, educadas, técnicos de classe média,
profissionais e homens de negócios. A «dessecularização do mundo», apontou George
Weigel, «é um dos fatos sociais dominantes de finais do século xx». O renascimento da
religião, «Ia revanche de Dieu», como Gilles Kepelo intitulou, fornece uma base para a
identidade e para o empenhamento que transcende as fronteiras nacionais e une as
civilizações.
Em quarto lugar, o crescimento da consciência civilizacional é aumentado pelo duplo
papel do Ocidente. Por um lado, o Ocidente está no auge do poder. No entanto, ao
mesmo tempo e talvez como resultado disso, está a ocorrer um fenômeno de retomo
às origens entre as civilizações não ocidentais. Ouvem-se cada vez mais referências a
tendências em direção a uma virada para dentro e à «asianização» no Japão, ao fim do
legado de Nehru e à «hinduização» da Índia, ao fracasso das ideias do socialismo e do
nacionalismo ocidentais e, consequentemente, à «reislamização» do Médio Oriente e,
agora, a um debate sobre a ocidentalização versas russianização no país de Boris
Ieltsine. Um Ocidente no auge do seu poder confronta-se com um poder não ocidental
que, crescente mente, tem desejo, vontade e recursos para moldar o mundo em modos
não ocidentais.
No passado, as elites de sociedades não ocidentais eram, normalmente, as pessoas que
mais estavam envolvidas com o Ocidente, tinham sido educadas em Oxford, na
Sorbona ou em Sandhurst e tinham absorvido as atitudes e os valores ocidentais. Ao
mesmo tempo, a população nos países não ocidentais frequentemente permanecia
profundamente imbuída da cultura indígena. Todavia, atualmente, estas relações estão
a ser invertidas. Está a ocorrer uma desocidentalização e uma indigenização das elites
em muitos países não ocidentais ao mesmo tempo que a cultura, os estilos e os hábitos
ocidentais, principalmente americanos, se tomam mais populares entre as massas.
Em quinto lugar, as características e as diferenças culturais são menos mutáveis e,
consequentemente,
menos facilmente comprometidas e transformadas do que as
políticas e econômicas. Na antiga União Soviética os comunistas podem tomar-se
democratas, os ricos podem tornar-se pobres e os pobres ricos, mas os Russos não
podem tomar-se estonianos e os Aze-rÍS não podem tornar-se armênios. A questão
principal nos conflitos ideológicos e de classe consistia em «de que lado estás?» e as
pessoas podiam escolher, e escolhiam, o lado e mudavam depois de campo. Nos
conflitos entre civilizações a questão que se coloca pretende saber «o que é és?»
Refere-se a um dado que não pode ser alterado. E, como todos sabem, da Bósnia ao
Cáucaso e ao Sudão, uma resposta errada a esta pergunta pode significar uma bala na
cabeça. Ainda mais do que a etnia, a religião discrimina as pessoas. Um indivíduo pode
ser meio-francês e meio-árabe e, simultaneamente, até cidadão dos dois países. É mais
difícil ser meio-católico e meio-muçulmano.
Finalmente, o regionalismo econômico está a aumentar. As percentagens em relação
ao total do comércio intrar-regional subiram, entre 1980 e 1989, de 51% para 59% na
Europa, de 33% para 37% no Extremo Oriente e de 32% para 36% na América do
Norte. É provável que a importância dos blocos econômicos regionais continue a
aumentar no futuro. Por um lado, o regionalismo económico reforçará a consciência
civilizacional. Por outro, o regionalismo econômico só pode ter sucesso quando estiver
radicado numa civilização comum. A Comunidade Européia assenta numa criação
partilhada da cultura européia e do cristianismo ocidental. O sucesso da Área de
Comércio Livre Norte-Americano depende da convergência em curso das culturas
mexicana, canadense e americana. Em contrapartida, o Japão enfrenta dificuldades na
criação de uma entidade econômica comparável no Extremo Oriente porque o Japão é,
em si mesmo, uma sociedade e uma civilização únicas. Por muito forte que seja o
comércio e o investimento que o Japão possa desenvolver com outros países da Ásia
oriental, as diferenças culturais com esses países inibem e talvez excluam a promoção
da integração econômica regional, como acontece na Europa e na América do Norte.
Pelo contrário, uma cultura comum está a facilitar claramente a rápida expansão das
relações econômicas entre a República Popular da China, Hong-Kong, Taiwan,
Singapura e as comunidades de chineses ultramarinos em vários outros países da Ásia.
Finda a guerra fria, as similitudes culturais ultrapassaram crescentemente as diferenças
ideológicas e a China continental e Taiwan aproximaram-se mutuamente. Se a
comunhão cultural for um pré-requisito para a integração econômica, o principal
bloco econômico do futuro no Extremo Oriente ficará, provavelmente, centrado na
China. De fato, este bloco já existe. Como observou Murray Weidenbaum:
Apesar do atual domínio japonês na região, a economia de base chinesa na Ásia está a
emergir rapidamente como um novo epicentro para a indústria, o comércio e a área
financeira. Esta área estratégica contém uma quantidade substancial de tecnologia e de
capacidade manufatureira (Taiwan), excelente espírito empresarial e o expoente
máximo no que toca a marketing e serviços (Hong-Kong), uma rede ótima de
comunicações, uma tremenda pool de capital financeiro (os três) e um enorme dote de
terra, de recursos e de trabalho (China continental) [...] De Guangzou a Singapura, de
Kuala Lumpur a Manila, esta influente rede - frequentemente baseada em extensões
dos clãs tradicionais - tem sido descrita como a espinha dorsal da economia da Ásia
orientall.
A cultura e a religião formam também a base da Organização de Cooperação
Econômica, que reúne dez países muçulmanos não árabes: Irão, Paquistão, Turquia,
Azerbaijão, Cazaquistão, Quirguistão, Turcomenistão, Tajiquistão, Usbequistão e
Afeganistão. O ímpeto para o renascimento e expansão desta organização, fundada
inicialmente pela Turquia, Paquistão e Irão nos anos 60, deriva da percepção dos
dirigentes políticos de vários destes países de que não têm grandes hipóteses de
penetração na Comunidade Européia. Analogamente, o Caricom, o mercado comum
da América Central, e o Mercosul assentam em bases culturais comuns. No entanto,
até à data os esforços feitos para construir uma entidade econômica mais ampla que
abranja as Caraíbas e a América Central, ultrapassando a divisão anglo-Iatina, têm
falhado.
Como as pessoas definem a sua identidade em termos étnicos e religiosos, é provável
que vejam que existe um «nós» versus «eles» em relação a povos de uma etnia ou
religião diferentes. O fim de Estados ideologicamente definidos na Europa de Leste e
na antiga União Soviética permite que identidades e animosidades étnicas tradicionais
venham ao de cima. Diferenças na cultura e na religião criam diferenças sobre
questões de política, que vão dos direitos humanos à imigração e do comércio ao
ambiente. A proximidade geográfica origina reivindicações e conflitos de território
desde a Bósnia até Mindanau. Mas, acima de tudo, os esforços do Ocidente para
promover como valores universais os seus valores de democracia e de liberalismo, para
manter a sua predominância militar e para colocar à frente os seus interesses
econômicos originam contra-respostas das outras civilizações. Os governos e os
grupos, cada vez menos capazes de mobilizarem apoio e de formarem coligações na
base da ideologia, tentam mobilizar progressivamente o apoio apelando à religião
comum e à identidade civilizacional.
O choque das civilizações ocorrerá, assim, em dois níveis: ao nível micro, grupos
adjacentes que vivem ao longo das linhas divisórias das civilizações lutam entre si,
frequentemente com violência, pelo controle do território; ao nível macro, os Estados
de civilizações diferentes entram em competição pelo poder militar e econômico,
lutam pelo controle de instituições internacionais e de terceiras partes e, em
concorrência, promovem os seus valores políticos e religiosos específicos.
As linhas divisórias entre civilizações
As linhas divisórias entre civilizações estão a substituir as fronteiras políticas e
ideológicas da guerra fria como pontos quentes para crises e para o derramamento de
sangue. A guerra fria começou quando a cortina de ferro dividiu política e
ideologicamente a Europa. A guerra fria terminou com o fim da cortina de ferro.
Quando desapareceu a divisão ideológica da Europa, reapareceu a divisão cultural da
Europa entre o cristianismo ocidental, por um lado, e o cristianismo ortodoxo e o
islamismo, por outro. A linha divisória mais significativa na Europa, como sugeriu
William Wallace, pode bem ser a fronteira oriental do cristianismo ocidental de 1500.
Esta linha segue ao longo das atuais fronteiras entre a Finlândia e a Rússia e entre os
Estados bálticos e a Rússia, passa pela Bielorúsia e pela Ucrânia, separando os católicos
da Ucrânia Ocidental dos ortodoxos da Ucrânia Oriental, curva para ocidente,
separando a Transilvânia do resto da Romênia, e continua através da Iugoslávia, quase
exatamente ao longo da linha que separa, actualmente, a Croácia e a Eslovênia do
resto da Iugoslávia. Nos Balcãs, claro está, esta linha coincide com a fronteira histórica
entre o império Habsburgo e o otomano. A norte e a ocidente desta linha, os povos são
protestantes ou católicos, partilham experiências comuns da história européiafeudalismo, Renascimento, Reforma, as luzes, a revolução francesa, a revolução
industrial; em geral, estão economicamente melhor do que os povos a leste, parecendo
agora esperar ansiosamente por um maior envolvimento numa economia européia
comum e pela consolidação dos sistemas políticos democráticos. A oriente e a sul desta
linha, os povos são ortodoxos ou muçulmanos; historicamente, pertenciam ao império
otomano ou ao czarista e apenas levemente eram tocados pelos acontecimentos
modeladores do resto da Europa; são, regra geral, economicamente menos avançados;
parece muito menos provável que desenvolvam sistemas políticos democraticamente
estáveis. A cortina de veludo da cultura substituiu a cortina de ferro da ideologia como
a mais significativa linha divisória na Europa. Como mostram os acontecimentos na
Iugoslávia, não é apenas uma linha de diferença, é também uma linha de conflito
sangrento.
O conflito ao longo das linhas de separação entre as civilizações ocidental e islâmica
tem prosseguido desde há 1300 anos. Depois da criação do islão as vagas árabe e moura
para ocidente e para norte só terminaram em 732 em TOUIS. Entre os séculos xi e xiii
os cruzados tentaram, com um sucesso temporário, trazer de volta o cristianismo e a
lei cristã à Terra Santa. Entre os séculos xiv e xvii, os Turcos Otomanos inverteram a
relação de forças, estenderam o seu domínio sobre o Médio Oriente e os Balcãs,
conquistaram Constantinopla e, por duas vezes, cercaram Viena. No século xix e em
princípios do século xx, enquanto o poder otomano declinava, a Grã-Bretanha, a
França e a Itália estabeleceram o controle ocidental sobre a maior parte do Norte de
África e o Médio Oriente.
Depois da segunda guerra mundial, o Ocidente, por sua vez, começou a recuar; os
impérios coloniais desapareceram; irrompeu, primeiro, o nacionalismo árabe e, depois,
o fundamentalismo islâmico; o Ocidente tornou-se fortemente dependente dos países
do golfo Pérsico por causa da sua energia; os países muçulmanos ricos em petróleo
tornaram-se ricos em dinheiro e, posteriormente, ricos em armamento. Ocorreram
várias guerras entre Árabes e Israel (criação do Ocidente). A França travou uma guerra
sangrenta e cruel na Argélia durante grande parte dos anos 50; forças britânicas e
francesas invadiram o Egito em 1956; forças americanas entraram no Líbano em 1958;
posteriormente,
forças americanas voltaram ao Líbano, atacaram a LI'bia e
empenharam-se
em vários confrontos militares com o Irão; terroristas árabes e
islâmicos, apoiados, pelo menos, por três governos do Médio Oriente, empregaram a
arma dos fracos e fizeram explodir aviões e instalações ocidentais e seqüestraram
reféns ocidentais. Esta guerra entre Árabes e o Ocidente culminou quando, em 1990,
os Estados Unidos enviaram um poderoso exército ao golfo Pérsico para defender
alguns países árabes da agressão de um outro. Como resultado, o planejamento da
NATO está cada vez mais dirigido para potenciais ameaças e instabilidade ao longo do
seu «flanco sul».
É pouco provável que esta interação militar de séculos entre o Ocidente e o islão
diminua. Pode tornar-se mais virulenta. A guerra do Golfo deixou alguns árabes
orgulhosos por Saddam Hussein ter atacado Israel e afrontado o Ocidente. Também
deixou muitos humilhados e ressentidos devido à presença militar do Ocidente no
golfo Pérsico, ao esmagador domínio militar do Ocidente e à sua aparente
incapacidade para modelarem o seu próprio destino. Muitos países árabes, juntamente
com os exportadores de petróleo, estão a atingir níveis de desenvolvimento econômico
e social em que as formas autocráticas de governo se tomam inadequadas e os esforços
para introduzir a democracia são cada vez mais fortes. Já se verificaram algumas
aberturas em certos sistemas políticos árabes. Os principais beneficiários destas
aberturas têm sido os movimentos islâmicos. Em resumo, no mundo árabe a
democracia ocidental fortalece as forças políticas anti-ocidentais. Este fenômeno pode
ser passageiro, mas, seguramente, complica as relações entre os países islâmicos e o
Ocidente.
Estas relações são também complicadas pela demografia. O espetacular crescimento
populacional nos países árabes, principalmente no Norte de África, conduziu a uma
crescente migração para a Europa ocidental. As alterações dentro da Europa central
em direção ao esbatimento das fronteiras internas têm aguçado as sensibilidades
políticas no que respeita a este desenvolvimento. Na Itália, na França e na Alemanha o
racismo está a crescer abertamente e as reações políticas e a violência contra os
imigrantes árabes e turcos têm-se tomado mais intensas e disseminadas desde 1990.
A interação entre o islão e o Ocidente tem sido vista por ambas as partes como um
choque de civilizações. A «próxima confrontação» do Ocidente, observa M. J. Akbar,
escritor muçulmano indiano, «está a caminhar claramente para que tenha origem no
mundo muçulmano. É no espaço das nações islâmicas, do Magreb ao Paquistão, que a
luta por uma nova ordem mundial começará.» Bernard Lewis chega a uma conclusão
semelhante:
Estamos perante um estado de espírito e um movimento que transcende em muito o
nível de questões e de políticas e os governos que as prosseguem. Nada menos do que
um choque de civilizações - a reação talvez irracional, mas seguramente histórica, de
uma antiga rivalidade contra a herança judaico--cristã, a nossa presença secular e a
expansão mundial de ambas2.
Historicamente, a outra grande interação antagônica da civilização islâmica árabe tem
sido com os povos negros do Sul, pagãos, animistas e agora, crescentemente, cristãos.
No passado, este antagonismo estava bem espelhado na imagem do árabe mercador de
escravos e dos escravos negros. Tem estado refletido na guerra civil em curso no Sudão
entre árabes e negros, na luta no Chade entre os insurrectos apoiados pela Llbia e o
governo, nas tensões entre os cristãos ortodoxos e os muçulmanos na África e nos
conflitos políticos, nos freqüentes tumultos e na violência comunal entre muçulmanos
e cristãos na Nigéria. É provável que a modernização da África e a expansão do
cristianismo aumentem a probabilidade de violência ao longo desta linha divisória
civilizacional. O discurso que o Papa João Paulo II proferiu em Cartum em Fevereiro
de 1993 é sintomático da intensificação deste conflito por ter atacado a ação do
governo islamita do Sudão contra a sua minoria cristã.
Na fronteira setentrional do islão, o conflito tem irrompido, cada vez mais, entre
povos ortodoxos e muçulmanos, incluindo a carnificina da Bósnia e de Sarajevo, a
ebulição da violência entre Sérvios e Albaneses, as frágeis relações entre Búlgaros e a
sua minoria turca, a violência entre Ossetas e Inguches, o interminável massacre
mútuo de Armênios e de Azeris, as relações tensas entre Russos e muçulmanos na Ásia
central e o posicionamento de tropas russas para proteger interesses russos no Cáucaso
e na Ásia central. A religião reforça o renascimento das identidades étnicas e estimula
os receios russos acerca da segurança das suas fronteiras meridionais. Esta preocupação
foi bem captada por Archie Roosevelt:
Grande parte da história russa ocupa-se da luta entre os povos eslavos e turcos nas suas
fronteiras, que data do tempo da fundação do Estado russo, que ocorreu há mais de um
milênio. No confronto milenar dos eslavos com os seus vizinhos do Leste jaz a chave
para a compreensão não só da história da Rússia, como também do carácter do seu
povo. Para compreender as realidades russas de hoje há que ter conhecimento do
conceito do grande grupo étnico turco que preocupou os Russos ao longo dos séculos3.
O conflito das civilizações está profundamente enraizado em qual- quer parte da Ásia.
O confronto histórico entre muçulmanos e hindus no subcontinente indiano
manifesta-se não só na rivalidade entre o Paquistão e a Índia, mas também na
intensificação da luta religiosa no interior deste último país entre os cada vez mais
numerosos grupos militantes hindus e a considerável minoria muçulmana da Índia. A
destruição da mesquita de Ayodhya em Dezembro de 1992 levantou a questão de
saber se a Índia permanecerá um Estado democrático secular ou se se transformará
num Estado hindu. No Extremo Oriente a China tem importantes disputas territoriais
com a maior parte dos seus vizinhos. Tem prosseguido uma política impiedosa contra
o povo budista do Tibet e está a intensificar uma política semelhante em relação à sua
minoria turco-muçulmana. Finda a guerra fria, as subjacentes divergências entre a
China e os Estados Unidos reapareceram em áreas como os direitos humanos, o
comércio externo e a proliferação de armamentos. É improvável que estas
divergências se atenuem. Consta que Deng Xiaoping afirmou em 1991 que estava em
curso uma «nova guerra fria» entre a China e a América.
O mesmo termo tem sido aplicado às cada vez mais difíceis relações entre o Japão e os
Estados Unidos. Aqui as diferenças culturais exacerbam o conflito econômico. As
pessoas de cada um dos lados acusam-se mutuamente de racismo, mas, pelo menos da
parte americana, as antipatias não são raciais, mas culturais. Dificilmente podiam ser
mais diferentes os valores básicos, as atitudes e os padrões de comportamento das duas
sociedades . .As questões econômicas entre os Estados Unidos e a Europa não são menos
sérias do que entre os Estados Unidos e o Japão, mas não têm a mesma importância
política e intensidade emocional, porque as diferenças entre a cultura americana e a
européia são muito menores do que as existentes entre a civilização americana e a
Japonesa .
.As interações entre civilizações variam grande mente na medida da probabilidade de
serem caracterizadas pela violência. A competição econômica predomina claramente
entre as subcivilizaçôes americana e européia do Ocidente e a existente entre estas e o
Japão. No entanto, a proliferação do conflito étnico no continente euro-asiático,
retratado em extremo na «limpeza étnica», não tem acontecido totalmente ao acaso.
Tem sido mais freqüente e mais violento entre grupos pertencentes a civilizações
diferentes. Na Eurásia as grandes fronteiras históricas entre civilizações estão uma vez
mais em chamas. Tal é particularmente verdade ao longo das fronteiras em forma de
crescente do bloco de nações islâmicas que vai desde a protuberância africana até à
Ásia central. A violência também ocorre entre, por um lado, os muçulmanos e, por
outro, os Sérvios ortodoxos nos Balcãs, os judeus em Israel, os hindus na Índia, os
budistas em Burma e os católicos nas Filipinas. O islão tem fronteiras sangrentas.
o
agrupamento civilizacíona1: a síndrome
dos países-irmãos
Grupos de Estados pertencentes a uma mesma civilização que se envolveram numa
guerra com povos de outra civilização tentam, naturalmente, conseguir o apoio dos
outros membros da própria civilização. Enquanto evolui o mundo pós-guerra fria, a
comunidade civilizacional, que H. D. S. Greenway intitulou de «síndrome do paísirmão», está a substituir as considerações relacionadas com a ideologia política e o
tradicional equilibrio de poderes como a principal base para a cooperação e coligações.
Pôde assistir-se, gradualmente, ao seu aparecimento nos conflitos pós-guerra fria no
Golfo Pérsico, no Cáucaso e na Bósnia. Nenhum deles foi uma grande guerra entre
civilizações, mas cada um deles continha alguns elementos do agrupamento
civilizacional que pareceram tomar-se mais importantes à medida que o conflito
continuava e que pode fornecer a amostra do futuro.
Em primeiro lugar, na guerra do Golfo, um Estado árabe invadiu outro, tendo-se
formado depois uma coligação de Estados árabes, ocidentais e outros. Enquanto um
pequeno número de governos muçulmanos apoiava abertamente Saddam Hussein,
muitas elites árabes elogiavam-no em privado, sendo altamente popular entre vastos
sectores das populações árabes. Os movimentos fundamentalistas islâmicos apoiaram
mais o Iraque do que os governos do Kuwait e da Arábia Saudita, apoiados pelo
Ocidente.
Saddam Hussein, pondo de lado o nacionalismo árabe, lançou
explicitamente um apelo islâmico. Ele e os seus partidários tentaram caracterizar a
guerra como uma guerra entre civilizações. «Não é o mundo contra o Iraque», como
declarou Safar Al-Hawali, deão dos Estudos Islâmicos na Universidade Umm Al-Qura,
em Meca, numa gravação que circulou amplamente pelo mundo, «é o Ocidente contra
o islão.» O principal líder religioso iraniano, ignorando a rivalidade entre o Irão e o
Iraque, convocou uma guerra santa contra o Ocidente: «A luta contra a agressão, a
avidez, os planos e a política americanos será considerada uma Jihad e quem for morto
nesse caminho será um mártir.» «Esta é uma guerra», declarou o rei Hussein da
Jordânia, «contra todos os árabes e todos os muçulmanos e não apenas contra o
Iraque».
O agrupamento de consideráveis frações de elites e de populações árabes em volta de
Saddam Hussein obrigou os governos árabes envolvidos na coligação anti-Iraque a
moderarem as suas atividades e a atenuarem as suas declarações públicas. Os governos
árabes opuseram-se ou distanciaram-se dos esforços ocidentais subseqüentes para
exercerem pressão sobre o Iraque, incluindo a imposição de uma zona de interdição
aérea no Verão de 1992 e o bombardeamento do Iraque em Janeiro de 1993. A
coligação ocidental-soviética-turca-árabe
anti-Iraque de 1990 tomou-se, em 1993,
praticamente uma coligação do Ocidente e do Kuwait contra o Iraque.
Os muçulmanos comparavam as ações ocidentais contra o Iraque com a incapacidade
de proteger os Bósnios dos Sérvios ou com a imposição de sanções a Israel pelas
violações das resoluções das Nações Unidas. Alegavam que o Ocidente estava a usar
duas medidas. No entanto, um mundo de civilizações em choque é, inevitavelmente,
um mundo de duas medidas: as pessoas aplicam uma medida aos países-irmãos e uma
medida diferente aos outros.
Em segundo lugar, a síndrome do país-irmão também apareceu nos conflitos da antiga
União Soviética. Os sucessos militares armênios em 1992 e 1993 estimularam a
Turquia a tomar-se cada vez mais defensora dos seus irmãos de religião, etnia e língua
do Azerbaijão. «Temos uma nação turca que tem os mesmos sentimentos que os
azeris», disse um funcionário turco em 1992. «Estamos sob pressão. Os nossos jornais
estão cheios de fotografias de atrocidades e perguntam-nos se ainda estamos a tomar a
sério a continuação da nossa política de neutralidade. Talvez pudéssemos mostrar à
Arménia que existe uma grande Turquia na região.» O presidente Turgut Õzal
concordou, observando que a Turquia devia, pelo menos, «assustar um pouco os
Arménios». A Turquia, ameaçou Õzal de novo em 1993, deveria «mostrar os seus
dentes». Jactos da Força Aérea turca fizeram vôos de reconhecimento ao longo da
fronteira arménia; a Turquia interrompeu os carregamentos de comida e os vôos para a
Arménia; a Turquia e o Irão anunciaram que não aceitariam o desmembramento do
Azerbaijão. Nos últimos anos da sua existência, o governo soviético apoiou o
Azerbaijão porque o governo era dominado por antigos comunistas. No entanto, com
o fim da União Soviética, as considerações políticas deram lugar às religiosas. As tropas
russas lutaram ao lado dos Armênios e o Azerbaijão acusou «o governo russo de rodar
180 graus» em relação ao apoio dado à Armênia cristã.
Em terceiro lugar, no que diz respeito às lutas na ex-Iugoslávia, a opinião pública
ocidental mostrou simpatia e apoio aos muçulmanos Bósnios pelos horrores que
sofreram às mãos dos Sérvios. No entanto, foi manifestada pouca preocupação pelos
ataques desencadeados pelos Croatas contra os muçulmanos e pelo seu papel no
desmembramento da Bósnia--Herzegovina. A Alemanha, nas primeiras fases da
fragmentação iugoslava, numa pouco habitual exibição de iniciativa e músculo
diplomáticos, convenceu os outros onze membros da Comunidade Européia a
seguirem o seu exemplo, reconhecendo a Eslovênia e a Croácia. Como conseqüência
da determinação do Papa em proporcionar uma forte ajuda aos dois países católicos, o
Vaticano procedeu ao seu reconhecimento ainda antes de a Comunidade o ter feito.
Os Estados Unidos seguiram o exemplo europeu. Deste modo, os principais atores da
civilização ocidental congregaram--se por detrás dos seus correligionários. Foi
noticiado, posteriormente, que a Croácia estava a receber consideráveis quantidades
de armamento da Europa central e de outros países ocidentais. Por outro lado, o
governo de Boris Ieltsin tentou seguir uma via intermédia em que, sendo simpático
com os Sérvios ortodoxos, não alienasse a Rússia do Ocidente. No entanto, os russos
conservadores e os grupos nacionalistas, incluindo muitos legisladores, atacaram o
governo por não ser mais rápido a apoiar os Sérvios. Em princípios de 1993 havia
várias centenas de russos, aparentemente, a servir nas forças sérvias e circulavam
notícias de que estavam a ser fornecidasarmas russas à Sérvia.
Por outro lado, governos e grupos islâmicos criticavam o Ocidente por não ir em
socorro dos Bósnios. Os dirigentes políticos iranianos apelavam aos muçulmanos de
todos os países para que oferecessem ajuda à Bósnia;o Irão forneceu armas e homens
aos Bósnios, violando o embargo de armas das Nações Unidas; grupos libaneses,
apoiados pelo Irão, enviaram guerrilhas para treinar e organizar as forças bósnias.
Circularam notícias de que em 1993havia 4000 muçulmanos, de cerca de duas dúzias
de países islâmicos, a lutar na Bósnia.Os governos da Arábia Saudita e de outros países
foram sujeitos a uma crescente pressão de grupos fundamentalistas nas suas próprias
sociedades para que fornecessem um apoio mais vigoroso aos Bósnios. Em finais de
1992 foi noticiado que a Arábia Saudita tinha fornecido importantes fundos para a
aquisição de armas e abastecimentos aos Bósnios,o que lhes permitiu aumentar a sua
capacidade militar perante os Sérvios.
Nos anos 30 a guerra civil espanhola provocou a intervenção de países que,
politicamente, eram fascistas, comunistas e democráticos. Nos anos 90 o conflito
iugoslavo está a provocar a intervenção de países que são muçulmanos, ortodoxos e
cristãos ocidentais. O paralelismo não passou despercebido. «A guerra na BósniaHerzegovina tomou-se o equivalente emocional da luta contra o fascismo na guerra
civil espanhola», observou um editor saudita. «Aqueles que morreram são olhados
como mártires que tentaram salvar os seus irmãos muçulmanos.»
Também ocorrem conflitos e violência entre Estados e grupos pertencentes à mesma
civilização. No entanto, é provável que tais conflitos sejam menos intensos e com
menor probabilidade de expansão do que os conflitos entre civilizações. O fato de
pertencerem a uma mesma civilização reduz a probabilidade de violência que noutras
condições ocorreria. Em 1991 e 1992 muita gente estava alarmada pela possibilidade
de um conflito violento entre a Rússia e a Ucrânia por causa do território,
principalmente o da Criméia, da frota do mar Negro, das armas nucleares e das
questões econômicas. No entanto, se o que conta é a civilização, a probabilidade de
violência entre Ucranianos e Russos deve ser baixa. Ambos os povos são eslavos,
predominantemente ortodoxos, e têm mantido um relacionamento estreito há muitos
séculos. De fato, logo em princípios de 1993, apesar de todas as razões para o conflito,
os dirigentes políticos dos dois países estavam efetivamente prontos para negociar as
questões existentes entre os dois países. Enquanto houve combates pesados entre
muçulmanos e cristãos em muitas partes da antiga União Soviética e muita tensão e
algumas lutas entre cristãos ocidentais e ortodoxos nos Estados bálticos, não se
verificou praticamente qualquer violência entre Russose Ucranianos.
O agrupamento civilizacional, até à data, tem sido limitado, mas tem estado a
progredir e contém, nitidamente, potencial para se expandir muito mais. À medida
que os conflitos no golfo Pérsico, no Cáucasoe na Bósniacontinuavam, as posiçõesdas
nações e as clivagens entre elas foram aumentando ao longo dos limites civilizacionais.
Políticos populistas, dirigentes religiosos e os meios de comunicação social
encontraram um potente meio para arregimentarem o apoio das massas e
pressionarem os governos hesitantes. Nos próximos anos os conflitos locais com maior
possibilidade de degenerarem em guerras maiores serão aqueles que se travam ao
longo das fronteiras civilizacionais, como o da Bósnia e o do Cáucaso. A próxima
guerra mundial, se ocorrer, será uma guerra entre civilizações.
o Ocidente
contra o resto
O Ocidente está atualmente num pico de poder em relação às outras civilizações. A
outra superpotência sua opositora desapareceu do mapa. Os conflitos militares entre
Estados ocidentais são impensáveis e o poder militar ocidental não tem rival. O
Ocidente não encontra desafio econômico à altura, exceto o do Japão. Domina as
instituições políticas e de segurança internacionais e, com o Japão, as instituições
econômicas internacionais. As questões globais de política e de segurança são,
efetivamente, resolvidas por um diretório constituído pelos EstadosUnidos, pela GrãBretanha e pela França, e as questões econômicas mundiais por um diretório formado
pelos Estados Unidos, pela Alemanha e pelo Japão, os quais mantêm relações
extraordinariamente estreitas entre si, das quais são excluídos os Estados pequenos e
majoritariamente não ocidentais. As decisões tomadas no Conselho de Segurança das
Nações Unidas ou no Fundo Monetário Internacional refletem os interesses do
Ocidente, apresentados ao mundo como refletindo os interesses da comunidade
internacional. A própria frase «comunidade internacional» tornou-se o eufemístico
nome coletivo (substituindo «mundo livre») para dar legitimidade global às acçõesque
refletem os interesses dos Estados Unidos e de outras potências ocidentais4. O
Ocidente promove os seus interesses econômicos e impõe às outras nações as políticas
econômicas que julga apropriadas através do FMI e de outras instituições econômicas
internacionais. Em qualquer sondagem feita em povos não ocidentais o FMI ganharia,
indubitavelmente, o apoio dos ministros das finanças e de poucos mais, mas alcançaria
uma votação esmagadoramente desfavorável de quase todos os outros, que concordam
com a caracterização feita por Georgy Arbatov de os funcionários do FMI serem
«neobolcheviques que adoram ficar com o dinheiro dos outros, impondo regras de
conduta econômica e política, não democráticas e estranhas, que sufocam a liberdade
econômica».
O domínio ocidental do Conselho de Segurança da ONU e das suas decisões,
moderado somente pela abstenção ocasional da China, provocou a legitimação das
Nações Unidas para o uso da força pelo Ocidente para expulsar o Iraque do Koweit e
para a eliminação das armas sofisticadas do Iraque e da sua capacidade para produzir
tal tipo de armas. Também produziu a ação sem precedentes dos Estados Unidos, da
Grã-Bretanha e da França de levarem o Conselho de Segurança a exigir que a Líbia
entregasse os suspeitos do atentado ao avião do vôo da Pan Am 103 e de imporem
sanções quando a Líbia recusou. Depois de derrotar o maior exército árabe o Ocidente
não hesitou em lançar o seu poder sobre o mundo árabe. Com efeito, o Ocidente está a
usar as instituições internacionais, o poder militar e os recursos econômicos para gerir
o mundo de modo a manter o predomínio ocidental, a proteger os interesses
ocidentais e a promover os valorespolíticos e econômicos ocidentais.
Pelo menos, é desta forma que os não ocidentais vêem o novo mundo e há muito de
verdade na sua visão. Deste modo, as diferenças de poder e as lutas pelo poder militar,
econômico e institucional são uma fonte de conflitos entre o Ocidente e as outras
civilizações. As diferenças de cultura, isto é, crenças e valores básicos, são uma
segunda fonte de conflito. V. S.Naipaul tem argumentado que a civilizaçãoocidental é
uma «civilização universal» «ajustada a todos os homens». De fato, a um nível
superficial, grande parte da cultura tem-se espalhado pelo resto do mundo. No
entanto, a um nível mais básico, os conceitos ocidentais diferem profundamente dos
prevalecentes nas outras civilizações. As idéias ocidentais de individualismo,
liberalismo, constitucionalismo, direitos humanos, igualdade, liberdade, primado da
lei, democracia, mercado livre, separação da Igreja do Estado, têm, frequentemente,
pouca ressonância nas culturas islâmica, confucionista, japonesa, hindu, budista ou
ortodoxa. Os esforços ocidentais para propagarem tais idéias .produzem antes uma
reação contra o «imperialismo dos direitos humanos» e a reafirmação dos direitos
indígenas, como pode ser visto no apoio aos fundamentalismos religiosos pelas
gerações mais jovens das culturas não ocidentais. A própria noção de poder haver uma
«civilização universal» é uma idéia ocidental, imediatamente em choque com o
particularismo de grande parte das sociedades asiáticas e da ênfase que colocam
naquilo que distingue um povo de outro. Com efeito, o autor de uma análise de 100
estudos comparados de valores em diferentes sociedades concluiu que «osvalores mais
importantes no Ocidente são os de menor importância no resto do mundo»5. Claro
está que na esfera política estas diferenças são mais manifestas nos esforços que os
Estados Unidos e outras potências ocidentais desenvolvem para induzirem os outros
poYOSa adotarem as idéias ocidentais que dizem respeito à democracia e aos direitos
humanos. O governo democrático moderno teve origem no Ocidente. Quando
desenyolvido em sociedades não ocidentais, tem normalmente sido o produto do
colonialismo ou de imposição ocidental.
É provável que, no futuro, o eixo central da política mundial seja, na expressão de
Kishore Mahbubani, o conflito entre «o Ocidente e o resto» e as respostas das
civilizações não ocidentais ao poder e aos valores ocidentais6. Geralmente, estas
respostas utilizam uma de três formas ou uma combinação delas. Num extremo, os
Estados não ocidentais podem, como é o caso de Burma ou da Coréia do Norte, tentar
seguir um percurso solitário, isolando as suas sociedades de qualquer penetração ou
«corrupção» pelo Ocidente, e excluir-se de participarem na comunidade global
dominada pelo Ocidente. No entanto, os custos desta opção são elevados e poucos
Estados a têm seguido em. exclusivo. Uma segunda alternativa consiste em tentar
seguir o Ocidente e aceitar os seus valores e instituições. A terceira alternativa tenta
equilibrar o poderio ocidental, desenvolvendo o poder econômico e militar e
cooperando com outras sociedades não ocidentais contra o Ocidente, enquanto
preserva os valores e instituições indígenas; em resumo, modernizar, mas não
ocidentalizar.
Países dilacerados**
No futuro, enquanto as pessoas se diferenciarão pelas civilizações, os países com
grande número de povos de civilizações diferentes, como a União Soviética e a
Iugoslávia, serão candidatos ao desmembramento. Alguns outros países têm um claro
grau de homogeneidade cultural, mas estão divididos sobre a questão de a sua
sociedade pertencer a uma civilizaçãoou a outra. Estes são países dilacerados. Os seus
dirigentes políticos desejam, tipicamente, seguir uma estratégia "seguidista" e tornam
os seus países membros do Ocidente, mas a história, a cultura e as tradições desses
países são não ocidentais. A Turquia é o protótipo mais óbvio de um país dilacerado.
Os dirigentes políticos turcos de finais do século xx têm seguido a tradição de Ataturk
e definido o país como um Estado-nação moderno, secular e ocidental. Aliaram a
Turquia ao Ocidente na NATO e na guerra do Golfo; requereram o estatuto de
membro da Comunidade Européia. No entanto, ao mesmo tempo, outros elementos da
sociedade turca têm apoiado um ressurgimento islâmico e argumentam que a Turquia
.é, basicamente, uma sociedade muçulmana do Médio Oriente. Além disso, embora a
elite da Turquia tenha definido o país como uma sociedade ocidental, a elite do
Ocidente recusa aceitá-Ia como tal. A Turquia não se tornará membro da Comunidade
Europeia e a verdadeira razão, como disse o presidente Õzal, «é que nós somos
muçulmanos e eles são cristãos, mas isso não dizem». Tendo rejeitado Meca e tendo
sido rejeitada por Bruxelas, para onde olha a Turquia? Tashkent pode ser a resposta. O
fim da União Soviética dá à Turquia a oportunidade de se tomar líder de uma
civilização turca renascida que englobe sete países desde a fronteira da Grécia à da
China. A Turquia, encorajada pelo Ocidente, está a desenvolver esforços enérgicos
para criar esta nova identidade para si própria.
Durante a passada década o México assumiu uma posição de certo modo semelhante à
da Turquia. Tal como este país abandonou a sua oposição histórica à Europa e tentou
juntar-se a ela, o México parou de se definir pela sua oposição aos Estados Unidos e,
em vez disso, tentou imitar este país e aderir à NAFfA*. Os dirigentes políticos
mexicanos estão empenhados na imensa tarefa de redefinirem a identidade mexicana e
têm introduzido reformas econômicas fundamentais que, eventualmente, conduzirão
a uma mudança política fundamentaL Em 1991 um dos principais conselheiros
políticos do presidente Carlos Salinas de Gortari descreveu--me extensamente todas as
mudanças que o governo de Salinas estava a fazer. Quando acabou, comentei: «Isso é
extremamente impressionante. Basicamente, parece-me que pretendem transformar o
México de um país latino-americano num país norte-americano.» Ele olhou para mim
surpreendido e exclamou: «Exatamentel É precisamente o que estamos a tentar fazer,
mas, claro está, nunca poderemos dizê-Io publicamente.» Como o seu comentário
indicou, quer no México, quer na Turquia, um significativo número de elementos da
sociedade resiste à redefinição da identidade do seu país. Na Turquia os líderes de
orientação pró-européia têm feito certos gestos na direção do islão (a peregrinação de
Õzal a Meca); do mesmo modo os líderes de orientação norte-americana têm de fazer
certos gestos na direção dos que pretendem manter o México como país latino-americano (a cimeira ibero-americana de Salinas em Guadalajara).
A Turquia tem sido, historicamente, o país mais profundamente dilacerado. Para os
Estados Unidos, o México é o país dilacerado mais imediato. A Rússia é, globalmente,
o país dilacerado mais importante. A questão de saber se a Rússia é parte do Ocidente
ou líder da civilização eslavo-ortodoxa tem sido um debate recorrente na história
russa. Esta questão foi ocultada pela vitória comunista na Rússia, que importou uma
ideologia ocidental, adaptada às condições russas, tendo, posteriormente, desafiado o
Ocidente em nome dessa ideologia. A dominação do comunismo cortou o debate
histórico sobre ocidentalização versus russificação. Com o comunismo desacreditado,
os Russos enfrentam de novo esta questão.
O presidente Ieltsin está a adotar princípios e objetivos ocidentais e a procurar
transformar a Rússia num país «normal» e parte do Ocidente. Contudo, a elite e a
opinião pública russas estão divididas acerca desta questão. Sergei Stankevich, entre os
mais moderados discordantes, argumenta que a Rússia devia rejeitar a via «atlantista»,
que a encaminharia «a tomar-se européia, a tomar-se parte da economia mundial de
uma forma rápida e organizada, a tomar-se o oitavo membro dos sete e a colocar uma
ênfase particular na Alemanha e nos Estados Unidos como os dois membros
dominantes da Aliança Atlântica». Todavia, embora também rejeitando uma política
exclusivamente euroasiática, Stankevich defende que a Rússia devia dar prioridade à
proteção dos russos noutros países, enfatizando as suas ligações turcas e muçulmanas e
promovendo «uma considerável redistribuição dos nossos recursos, das nossas opções,
dos nossos laços e dos nossos interesses em favor da Ásia, na direção oriental». As
pessoas desta opinião criticam Ieltsin por subordinar os interesses russos aos do
Ocidente, por reduzir a capacidade militar russa, por falhar no apoio aos amigos
tradicionais, como a Sérvia, e por empurrar a reforma política e econômica em termos
injuriosos para o povo russo. Um indicativo desta tendência é a nova popularidade das
idéias de Petr Savitsky, que, nos anos 20, argumentava que a Rússia era a única
civilização euro-asiática7. Existem vozes discordantes muito mais extremistas que
advogam pontos de vista abertamente nacionalistas, anti-ocidentais e anti-semitas e
pedem insistentemente que a Rússia desenvolva o seu poder militar e estabeleça laços
mais estr~itos coma China e com os países muçulmanos. A população da Rússia está
tão dividida quanto as suas elites. Uma sondagem realizada na Rússia européia na
Primavera de 1992 revelou que 40% da opinião pública tinha atitudes positivas em
relação ao Ocidente e que 36% tinha atitudes negativas. A Rússia, como tem
acontecido durante largos períodos da sua história, em princípios dos anos 90, é
verdadeiramente um país dilacerado.
Para redefinir a sua identidade civilizacional, um país dilacerado deve satisfazer três
requisitos. Em primeiro lugar, a sua elite política e econômica tem de ser, de um modo
geral, defensora e entusiástica deste movimento. Em segundo, a sua opinião pública
tem de mostrar vontade acerca desta redefinição. Em terceiro, os grupos dominantes
na civilização recipiente têm de mostrar vontade de abraçar o convertido. Os três
requisitos existem, em grande parte, no que diz respeito ao México. Os dois primeiros,
em grande parte, existem no respeitante à Turquia. Não é muito claro se existirá algum
deles no que concerne à adesão da Rússia ao Ocidente. O conflito entre a democracia
liberal e o marxismo-leninismo foi um conflito entre ideologias que, apesar das suas
grandes diferenças, partilhavam metas derradeiras de liberdade, igualdade e
prosperidade. Uma Rússia tradicional, autoritária e nacionalista podia ter objetivos
bem diferentes. Um democrata ocidental podia manter um debate intelectual com um
soviético marxista. Seria virtualmente impossível fazê-Io com um russo tradicionalista.
Se os Russos deixarem de se comportar como marxistas, mas rejeitarem a democracia
liberal e começarem a comportar-se como russos e não como ocidentais, as relações
entre a Rússia e o Ocidente poderão, de novo, tornar-se distantes e conflituosas8.
A ligação islâmico-confuciomsta
Os obstáculos para que países não ocidentais se unam ao Ocidente variam
consideravelmente. São menores para os países latino-americanos e da Europa de
Leste. São maiores para os países ortodoxos da antiga União Soviética. São ainda
maiores para as sociedades muçulmanas, confucionistas, hindus e budistas. O Japão
colocou-se numa posição única de membro associado do Ocidente: está no Ocidente
nalguns aspectos, mas não é claramente do Ocidente em dimensões importantes.
Aqueles países que por razões de cultura e de poder não desejam, ou não podem, unirse ao Ocidente entram em competição com ele, desenvolvendo os seus próprios
poderes econômico, militar e político. Fazem-no promovendo o seu desenvolvimento
interno e cooperando com outros países não ocidentais. A forma mais proeminente
desta cooperação é a ligação islâmico-confucionista, que surgiu para desafiar os
interesses, valores e poderes ocidentais.
Os países ocidentais, quase sem exceção, estão a reduzir o seu poder militar; o mesmo
acontece com a Rússia sob a liderança de Ieltsin. No entanto, a China, a Coréia do
Norte e vários Estados do Médio Oriente estão a expandir significativamente as suas
capacidades militares. Estão a fazê-Io quer importando armamento de fontes
ocidentais e não ocidentais, quer desenvolvendo indústrias de armamento nacionais.
Uma consequência é a emergência do que Charles Krauthammer denominou de
«Estado-arma», mas os Estados-armas não são Estados ocidentais. Outra conseqüência
é a redefinição do controle de armamentos, que é um conceito ocidental e um objetivo
ocidental. Durante a guerra fria, a principal finalidade do controle de armamentos
consistia em estabelecer um equilíbrio militar estável entre os Estados Unidos e os
seus aliados e a União Soviética e os seus aliados. No mundo pós--guerra fria a
principal finalidade do controle de armamentos é impedir o desenvolvimento em
sociedades não ocidentais de capacidades militares que possam ameaçar os interesses
ocidentais. O Ocidente procura fazê-Io através de acordos internacionais, pressão
econômica e controle da exportação de armamentos e de transferência de tecnologia.
O conflito entre o Ocidente e os Estados islâmico-confucionistas está focado
principalmente, embora não exclusivamente, nas armas nucleares, químicas e
biológicas, nos mísseis balísticos e noutros meios sofisticados de lançamento e de
direção, nas informações e noutras capacidades eletrônicas capazes de atingirem o
objetivo. O Ocidente promove a não proliferação como norma universal e os tratados
de não proliferação e as respectivas inspeções como forma de concretizar essa norma.
Também ameaça com uma panóplia de sanções contra aqueles que promovam a
disseminação de armas sofisticadase propõe alguns benefícios para aqueles que o não
façam. Naturalmente que a atenção do Ocidente foca-se nas nações que, real ou
potencialmente, são hostis ao Ocidente.
Por outro lado, as nações não ocidentais reivindicam o direito de adquirirem e de
posicionarem qualquer tipo de armas que julguem necessárias para a sua segurança.
Também interiorizaram completamente a verdade da resposta do ministro da Defesa
indiano quando lhe foi perguntado que lição tinha retirado da guerra do Golfo: «Os
Estados Unidos só podem ser combatidos por quem possua armas nucleares.»As armas
nucleares e químicas e os mísseis são vistos, talvez erroneamente, como o potencial
igualitário do superior poder convencional do Ocidente. A China já possui, com
certeza, armas nucleares; o Paquistão e a Índia têm capacidade para as posicionarem. A
Coréia do Norte, o Irão, o Iraque, a unia e a Argélia parecem estar a tentar adquiri-Ias.
Um funcionário superior iraniano declarou que todos os Estados muçulmanos
deveriam adquirir armas nucleares, tendo, em 1988, sido noticiado que o presidente
do Irão difundiu uma diretiva apelando ao desenvolvimento de «armas ofensivas e
defensivas químicas, biológicase radiológicas».
De importância crucial para o desenvolvimento de capacidades militares antiocidentais é a sustentada expansão do poder militar da China e dos seus próprios meios
para criar poder militar. A China, confiante no seu espetacular desenvolvimento
econômico, está a aumentar rapidamente as suas despesas militares e a seguir com
vigor a modernização das suas forças armadas. Está a adquirir armas aos antigos
Estados da União Soviética; está a desenvolver mísseis de longo alcance; em 1992
testou um engenho nuclear de uma megatonelada. Está a desenvolver a sua capacidade
de projeção de poder, a adquirir tecnologia de reabastecimento aéreo e a tentar
comprar um navio porta-aviões. O seu crescimento militar e a sua determinação sobre
a soberania do mar do Sul da China estão a provocar uma multilateral e regional
corrida aos armamentos no Extremo Oriente. A China é também um grande
exportador de armamento e de tecnologia militar. Tem exportado para a Líbia e para o
Iraque materiais que poderiam ser usados para fabricar armas nucleares e gás de
nervos. Tem ajudado a Argélia a construir um reator ajustado à investigação e à
produção de armas nucleares. A China tem vendido ao Irão tecnologia nuclear que os
especialistas americanos acreditam que só podia ser usada para o fabrico de armas e,
aparentemente, tem exportado componentes de mísseis com um alcance de 500 km
para o Paquistão. A Coréia do Norte tem em curso, há já algum tempo, um programa
de armamento nuclear e tem vendido mísseis avançados e a respectiva tecnologia à
Síria e ao Irão. O fluxo de armas e de tecnologia de armamento tem-se verificado, em
geral, do Extremo Oriente para o Médio Oriente. No entanto, há alguns movimentos
em sentido contrário: a China tem recebido mísseis Stinger do Paquistão.
Surgiu uma ligação militar islâmico-confucionista concebida para promover a
aquisição pelos seus membros de armas ou tecnologias de armamento necessárias para
se opor ao poder militar do Ocidente. Aquela ligação pode ser ou não duradoura.
Todavia, atualmente, é, como disse Dave McCurdy, «um pacto de ajuda mútua de
'renegados', gerido pelos proliferadores e seus defensores». Está, assim, a verificar-se
uma nova forma de competição no campo dos armamentos entre os Estados islâmicos-confucionistas e o Ocidente. Numa corrida armamentista à moda antiga cada parte
desenvolvia as suas próprias armas para equilibrar ou alcançar a superioridade em
relação à outra parte. Nesta nova edição de competição armamentista, enquanto um
lado está a desenvolver as suas armas, o outro está atentar, não o equilíbrio, mas a
limitação e o impedimento de que o crescimento se verifique, procurando,
simultaneamente, a redução das suascapacidadesmilitares.
Implicações para o Ocidente
Este artigo não defende que as identidades civilizacionaÍs substituirão todas as outras
identidades, que os Estados-nações desaparecerão, que cada civilização se tomará uma
única entidade política coerente, que os grupos dentro de uma civilização não entrarão
em conflito ou virão mesmo a lutar uns com outros. Este ensaio avança com hipótese:
as diferenças entre civilizações são reais e importantes; a consciência civilizacional
está a aumentar; o conflito entre civilizações suplantará o ideológico e outros tipos de
conflito e será a sua forma global dominante; as relações internacionais,
historicamente um jogo do campo da civilização ocidental, desocidentalizar-se-ão cada
vez mais e tomar-se-ão um jogo em que as civilizações não ocidentais serão atores e
não simplesmente objetos; será mais provável que instituições políticas, de segurança e
econômicas de sucesso se desenvolvam no interior das civilizações e não entre elas; os
conflitos entre grupos de civilizações diferentes serão mais freqüentes, mais apoiados e
mais violentos do que os conflitos entre grupos da mesma civilização; os conflitos
violentos entre grupos de civilizações diferentes serão a mais provável e mais perigosa
origem de escalada para guerras globais; o mais importante eixo da política mundial
será o das relações entre «o Ocidente e o resto»; em alguns países dilacerados não
ocidentais as elites tentarão fazer com que esses países façam parte do Ocidente, mas
na maioria dos casos enfrentarão grandes obstáculos à sua concretização; o foco
central do conflito no futuro imediato será entre o Ocidente e vários Estados islâmicoconfucionistas.
Tudo isto não advoga o desejo de conflitos entre civilizações. Avança com hipóteses
descritivas do que poderá vir a ser o futuro. No entanto, se forem hipóteses plausíveis,
é necessário considerar as suas implicações para a política ocidental. Estas implicações
podiam e deviam ser divididas entre vantagens de curto prazo e compromissos de
longo prazo. No curto prazo é claramente do interesse do Ocidente: promover uma
maior cooperação e unidade dentro da sua civilização, principalmente entre as
componentes européia e norte-americana; incorporar no Ocidente as sociedades da
Europa de Leste e da América Latina, cujas culturas são próximas das do Ocidente;
promover e manter relações de cooperação com a Rússia e o Japão; impedir a escalada
de conflitos locais intercivilizacionais em grandes guerras desse mesmo tipo; limitar o
aumento do poder militar dos Estados islâmicos e confucionistas; moderar a redução
das capacidades militares ocidentais e manter a superioridade militar no Sueste
asiático e no Extremo Oriente; explorar as diferenças e os conflitos entre Estados
confucionistas e islâmicos; apoiar os grupos simpatizantes dos valores e interesses
ocidentais existentes nas outras civilizações; fortalecer as instituições internacionais
que reflitam e legitimem os interesses e valores ocidentais e promovam o
envolvimento de Estados não ocidentais naquelas instituições.
A longo prazo, outras medidas deveriam ser tomadas. A civilização ocidental é,
simultaneamente, ocidental e moderna. As civilizações não ocidentais têm tentado
tornarem-se modernas sem se tornarem ocidentais. Até à data apenas o Japão
conseguiu ter pleno sucesso nessa procura. As civilizações não ocidentais continuarão
a tentar adquirir riqueza, tecnologia, proficiência, maquinaria e armamento, que
fazem parte do estatuto de ser moderno. Tentarão também conciliar essa modemidade
com a sua cultura e valores tradicionais. Os seus poderes econômico e militar
aumentarão em relação aos do Ocidente. Assim o Ocidente terá de se acomodar cada
vez mais a estas civilizações modernas não ocidentais cujo poder se aproxima do seu,
mas em que os valores e interesses diferem significativamente dos do Ocidente. Isto
tudo requererá que o Ocidente mantenha os poderes econômico e militar necessários
para proteger os seus interesses em relação aos dessas civilizações. No entanto, tal
também requererá que o Ocidente desenvolva uma compreensão mais profunda dos
pressupostos religiosos e filosóficos básicos subjacentes às outras civilizações e do
modo como as pessoas dessas civilizações vêem os seus interesses. Tal requererá um
esforço para identificar os elementos comuns existentes nas civilizações ocidentais e
nas outras. No futuro que importa não haverá uma civilização universal, mas antes um
mundo de civilizaçõesdiferentes, cada uma das quais terá de aprender a coexistir com
as outras."
Choque de civilizações é uma teoria proposta pelo cientista político norteamericano Samuel P. Huntington segundo a qual as identidades culturais e religiosas
dos povos serão a principal fonte de conflito no mundo pós-Guerra Fria. A teoria foi
originalmente formulada em 1993, num artigo da Foreign Affaírs denominado The
Clash of Civilizations? (do inglês O Choque de Civilizações), como reação ao livro de
Francis Fukuyama, The End of History and the Last Man, publicado em 1992.Samuel
Huntington expandiu sua tese num livro de publicado em 1996 intitulado The Clash
of Civilizations and the Remaldng of World Order (do inglês O Choque de
Civilizações e a Nova Ordem Mundial). Cabe acrescentar que a expressão "choque de
civilizações" não é original em Huntington, mas foi usada pela primeira vez por
Bernard Lewis - académico britânico de família judaica e professor emérito do
Cleveland E. Dodge de Estudos do Próximo Oriente na Universidade de Princeton.
Este texto foi traduzido do inglês.
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o choque de civilizações e a recomposição da nova ordem mundial