AC PR GUOMP O F I A AN ES DO HA SO R almanaque histórico A Luta pelos Direitos Humanos A Luta pelos Direitos Humanos Almanaque Histórico Fundação Banco do Brasil João Cândido – A luta pelos Direitos Humanos Presidente Coordenação Geral Jacques de Oliveira Pena Elizabete Braga Diretores Executivos Coordenação de Produção Elenelson Honorato Marques Flávia Diab Jorge Alfredo Streit Assessoria de Produção Gerente de Educação e Cultura Stanley Whibbe Marcos Fadanelli Ramos Coordenação de Administração Assessor Ruy Godinho Claudio Alves Ribeiro Brennand Textos Paulo Corrêa Barbosa Petrobras Schuma Schumaher Presidente Consultoria de Conteúdos e Finalização de Texto Marco Morel Equipe de Pesquisa Coordenadores José Sergio Gabrielli Gerente Executivo de Comunicação Institucional Wilson Santarosa Gerente de Responsabilidade Social Luis Fernando Nery Marco Morel Tânia Bessone Auxiliares Gerente de Patrocínios Eliane Costa Gabriel Labanca Rodrigo Cardoso Gerente de Patocínios Culturais Silvia Capanema Tais Wohlmuth Reis Revisão de Textos Coordenador de Tecnologias Sociais Adriane Lorenzon Lenart Nascimento Projeto Gráfico e Diagramação Miriam Lerner Associação Cultural do Arquivo Nacional (ACAN) Editorial Diretoria Executiva Flávia Diab Licio Ramos de Araujo (Presidente) Oscar Boëchat Filho (Vice-presidente) Capa Fernando João Abelha Salles Lula Ricardi – XYZ Design Jose Gomes de Almeida Netto Produção Presidente do Conselho Fiscal Abravídeo Wanderlei Pinto de Medeiros Presidente do Conselho Consultivo Hans Jürgen Fernando Dohmann Sumário Apresentação, 5 I. Primeiros passos 1. Dos pampas para o mar, 2. Do mar para o mundo, 7 10 II. Adulto, contra a chibata 3. Explode a revolta no mar, 4. Explode a repressão em terra, 17 35 III. A longa vida de um homem do povo 5. Um pescador artesanal, 6. João Cândido vive nas memórias, Bibliografia básica, 63 Cronologia, 64 41 57 Apresentação E m sua 11ª edição, o Pro- se apagou a página da histó- Durante 15 anos navegou jeto Memória apresenta ria que eles escreveram com pelas águas doces e salgadas a você, professor(a), a traje- seus próprios corpos, pala- de todo o Brasil, percorreu tória do marinheiro negro vras e gestos. quatro continentes, aprendeu João Cândido, que esteve à Criado em 1997, o Projeto técnicas e ofícios, foi instru- frente de importante episó- Memória (iniciativa da Fun- tor de marujos iniciantes, dio de nossa história na defe- dação Banco do Brasil em encharcou-se das paisagens sa dos Direitos Humanos. Em parceria com a Petrobras) exuberantes, das realidades 22 de novembro de 1910, consolidou uma trajetória de sociais e suas contradições, cerca de 2.300 marujos – valorização da cultura e da acompanhou personagens e homens pobres, entre os história do país, homena- episódios políticos importan- quais muitos negros e pardos geando que tes – até ser expulso da cor- – rebelaram-se, tomaram à colaboraram para a transfor- poração, por causa da rebelião força os mais possantes na- mação social e construção de em que participou com desta- vios de guerra da Marinha nossa identidade – contri- que, defendendo a dignidade brasileira e exigiram o fim dos buindo, assim, para o fortale- da condição humana. castigos corporais que so- cimento da cidadania e das friam (chibatadas). Se não liberdades. personagens A partir daí, João Cândido viveu por quatro décadas co- fossem atendidos, bombar- Mas quem foi mesmo João mo pescador artesanal, na deariam o Rio de Janeiro, en- Cândido Felisberto, reconhe- mesma condição de milhões tão capital do país. Gritavam cido como principal líder da de trabalhadores pobres: lu- vivas à liberdade. Saíram vi- Revolta da Chibata? Filho de tando com dificuldade e criati- toriosos em suas reivindica- escravos, nasceu em 1880 vidade para ganhar o pão de ções e, assim, mudaram para (nove anos depois da chama- cada dia, sentindo na carne a melhor a sociedade ainda da lei do Ventre Livre, que “chibata” do transporte precá- marcada pela escravidão, ex- não considerava cativos os rio, do preconceito racial, da tinta apenas 22 anos antes. filhos de escravos nascidos a moradia sem saneamento bá- Logo depois, os mesmos re- partir dali) numa fazenda em sico, das escolas com poucos beldes sofreriam duras re- Encruzilhada do Sul, interior recursos para os filhos e da pressões: demissões injustas, gaúcho. Entrou para a Ma- falta de assistência médica de prisões arbitrárias, torturas e rinha de Guerra aos 14 anos, qualidade, enfim, dos Direitos até assassinatos. Porém, não onde teve carreira exemplar. Humanos básicos. No fim da João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos 5 colas nhecido por seus feitos, rece- todo o Brasil, é beu homenagens e faleceu composto por: pobre e altivo, aos 89 anos. um públicas em Autor desconhecido/CPDOC JB longa vida, voltou a ser reco- Almana- João Cândido e seus com- que Histórico, panheiros de revolta foram um Guia do anistiados em 1910, mas o go- Professor verno desrespeitou o perdão um DVD–ROM que concedera, violando os que inclui todas direitos de cidadãos brasilei- as outras peças do ros. Somente agora, quase Projeto Memória – um um século (1910–2008) de- vídeo documentário, um livro pois, receberam anistia pós- fotobiográfico, uma expo- além da oportunidade de co- tuma: o governo atual reco- sição e um site. Todas unifica- nhecer os homenageados em nhece os valores de dignida- das sob o mesmo tema: João edições anteriores do Projeto de e justiça pelos quais os Cândido e a luta pelos Direi- Memória. Sua opinião e ava- rebeldes lutaram. Ainda as- tos Humanos. É um convite liação sobre o material são sim, esta nova anistia é par- para conhecer as possibilida- muito importantes e você po- cial, pois ficaram de fora as des de abordar, em sala de derá fazê-las chegar até nós. promoções e indenizações aula, o episódio da Revolta da Repare que também está que seriam recebidas por Chibata, suas conseqüências recebendo uma ficha de ava- seus descendentes. e significados atuais, ligando- liação, no formato de carta- Este conjunto pedagógico, o com outras histórias e si- resposta. Basta colocá-la no distribuído a quase 18 mil es- tuações, ao cotidiano de seus Correio, pois já está selada. e alunos, às atitudes, perspecti- É responsabilidade coleti- vas e projetos de vida que va garantir que os Direitos construímos a cada dia, sem- Humanos sejam realidade pa- pre a partir de variadas áreas ra todos, independentemente do conhecimento. de posição social, nível de Além disso, no endereço Alberto Ferreira/ CPDOC JB eletrônico www.fundacao- gião, cor da pele e opção po- bancodobrasil.org.br (Pro- lítica. Nesse campo, o papel gramas e Ações/ Educação/ da escola é importante. A vi- Projeto Memória) você en- da de João Cândido traz mui- contra mais informações so- tas lições para aprendermos bre João Cândido que po- e ensinarmos. derão ser úteis no desenvolvimento de seu trabalho – 6 Projeto Memória instrução, sexo, gênero, reli- Parte I Primeiros passos 1. DOS PAMPAS PARA O MAR O mundo, na época em que e severa, tinha muitos sabe- João Cândido nasceu (na res: parteira conhecida na re- fazenda Coxilha Bonita, En- gião, fazia nascer também fo- cruzilhada do Sul, RS, a 24 de lhas e frutas, conhecedora de junho de 1880), apresentava ervas e plantas medicinais. muitos desafios e passava por Além dos próprios filhos (três importantes transformações. meninos e quatro meninas), No caso do Brasil, sociedade vários foram “os de peito”, fundada em mais de três sé- como considerava aqueles a culos de escravidão, justa- quem amamentou e ajudou mente o escravismo estava a criar, fertilizando a vida a em crise, mas teimava em per- seu redor. manecer, enraizado. Sobre João Cândido Velho, o pai, de quem o futuro maru- ˆ voce sabia que... o minuano é um vento frio que tem origem em uma massa de ar que vem do pólo Sul? Ele chega ao Brasil pelo Rio Grande do Sul e, algumas vezes, consegue até mesmo atingir os estados da Amazônia e Nordeste. Em meio a este vento, vivia o menino João Cândido: ajudava os pais nos trabalhos da fazenda. E, ele mesmo recordou: quando criança era um “potro bravio”. Corria pelos campos, nadava em rios, subia em árvores, conhecia animais e aves e aprontava traquinagens comuns na sua idade. Álbum de família jo herdou o nome, sabemos João Cândido (um dos sete que lutara na sangrenta Guerra filhos de Inácia e João Cân- do Paraguai (1864–1870) e era dido Velho, escravos da fa- tropeiro, isto é, conduzia tro- entre os cativos no Sul do país. zenda da família de Vicente pas de gado, atividade comum Apesar dos limites e controles, Simões Pereira) veio ao mun- os escravos tropeiros tinham do numa choupana em que maior possibilidade de loco- seus pais moravam, nas pro- moção e certa autonomia na- ximidades da casa-grande, quela sociedade opressora. mas fora da senzala. No pe- João Cândido, então menino, ríodo de infância (os “causos” acompanhava o pai, percor- contados mais tarde por Jo- rendo os pampas largos e lon- ão Cândido a sua filha Zeelândia1), ele sentia forte o minuano, vento típico do Sul do país. Inácia, sua mãe, honesta gínquos, com sua típica vege1 Entrevista concedida por Zeelândia Cândido de Andrade, em 2002, a Carla Araújo e Cláudio Estevam, por ocasião da pesquisa Personalidades e Imagens da Baixada Fluminense. tação rasteira e ondulante, embalado pelo mugido dos animais e coberto pelo vasto João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos 7 céu, alimentando-se de char- Por dentro da história que e arroz-de-carreteiro, movimentando-se com agilidade entre os pesados animais, repetindo as cantigas de tra- “(...) até a idade de doze balho que alimentavam a soli- anos as crianças (...) apenas dão dos descampados. limpam os feijões e outros cereais destinados à ali- O chão muda de nome mentação dos escravos ou O local de nascimento de cuidam dos animais e executam pequeninos trabalhos domésticos. Mais tar- João Cândido mudou de nome várias vezes, mas foi e é Igreja Matriz em Rio Pardo, RS de, as moças e os rapazes sempre o mesmo: ainda hoje são encaminhados para os existem restos da choupana. O território de Rio Pardo, campos. Quando um me- A origem desse território é o inicialmente o maior município nino mostra disposições município de Rio Pardo, cida- do Rio Grande do Sul ao ser de principal da região e que o criado em 1809, foi dividido e marujo considerava como seu subdividido ao longo do tem- berço natal, por ter passado po: existem hoje mais de 300 (Rugendas, pintor alemão que boa parte da infância ali, sua municípios em sua área origi- esteve no Brasil entre 1821 e 1825, primeira porta para transpor nal. Em todo o Brasil surgiu sobre as crianças escravas nas os limites locais. Aliás, em mui- uma tendência à municipaliza- grandes plantações) RUGEN- tos lugares do Brasil aconte- ção, ou seja, criação de novas ceu coisa parecida. Milhões administrações locais. Desse de brasileiros vivem em cida- modo, quando João Cândido des e estados que já altera- nasceu, a fazenda Coxilha Bo- ram o nome, fazendo com nita não ficava mais em Rio que os mapas em que estuda- Pardo e, sim, em Encruzilhada mos não sejam eternos e ne- do Sul, emancipada desde cessitem de atualização. 1849. Logo, ele era na realida- especiais para determinado ofício, é-lhe este ensinado, a fim de que o pratique na próxima fazenda”. DAS, J. M. Viagem pitoresca através do Brasil. 7. ed. São Paulo/ Brasília: Martins/INL, 1976. de um encruzilhadense, embora rio-pardense de criação e coração. Hoje, após nova divisão, a mesma choupana da fazenda encontra-se no município de Dom Feliciano, criaA cidade de Dom Feliciano, RS Roberto Jesinski 8 Projeto Memória do em 1963. Assim é a vida, como a história e a ocupação humana das áreas: dinâmica, enterro do baú com toda a com mudanças. Se até os ter- fortuna na praça Barão de ritórios alteram suas identida- Santo Ângelo; do Homem da des e registros, vale uma inda- Capa Preta; da Carroça e de gação para pensarmos: os Nossa Senhora do Rosário; problemas sociais, que tam- do Lobisomem, da Mula-sem- bém parecem imutáveis e cabeça, e assim por diante. eternos, não podem se trans- De todas, porém, a preferida formar pela ação humana? de João Cândido era a do Negrinho do Pastoreio que Contadores de histórias muitos anos depois contava Contar histórias para crianças aos filhos e filhas. é muito bom e importante: Por dentro da história O primeiro Censo Demográfico realizado no Brasil, em 1872, contou 10 milhões de habitantes, incluindo escravos e escravas. O analfabetismo estava presente em cerca de 80% da população. Mas isso não signi- toda. Os “causos” escutados Nascimento, novos tempos nesse começo da vida por Na época em que João Cân- João Cândido traziam uma dido nasceu, a escravidão literatura oral tão importante estava morrendo. deixa lembranças pela vida ficava falta de cultura ou desinformação generalizada: a transmissão pela oralidade atravessava todos os setores sociais e as identidades quanto a escrita. E alguns de Se em 1660 o Brasil tinha culturais, mesmo quando arrepiar os cabelos, alimen- uma população estimada de não reconhecidas como tais, tando a imaginação e vindas 184.000 habitantes (dos quais permitiam estratégias de da tradição regional: a mu- 74.000 brancos e índios em resistência e sobrevivência. lher enorme, com um vestido contato com estes e 110.000 branco bem comprido, que escravos), em 1890, dois anos assombrava os acendedores ˆ voce sabia que... de lampião, saindo da fortaleza e andando para a ponte Negrinho do Pastoreio é uma lenda tradicional do Rio Grande do Sul? De origem africana, fala de um estancieiro que mandou castigar seu escravo, um menino, porque havia deixado fugir um de seus cavalos. Após a surra, teve de sair à noite pelos campos para encontrar o animal. Enfrentou a escuridão com um toco de vela e uns pavios de fogo. Retornou para a fazenda sem o animal e após ser novamente espancado, foi atirado, por ordem do fazendeiro, dentro de um formigueiro. No dia seguinte, para surpresa de todos, o menino estava bem, vivo e feliz ao lado do animal perdido. Desde então, ficou sendo o “achador de coisas”. Basta fazer o pedido e acender um toquinho de vela. sobre o rio; do escravo morto pelo dono, condenado por Jakared uma doença, logo após o (Adaptado de Mitos e Lendas do Rio Grande do Sul de Antonio Augusto Fagundes. Porto Alegre: Martins Livreiro Editor, 1996. Capturado em http://www.paginadogaucho.com.br/lend/negr.htm) João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos 9 1794–1870) e o advogado e deputado Antonio Pereira Rebouças (1798–1880), ambos baianos. Abolição feita por muitas mãos Os homens e mulheres escravizados sofreram muito e enfrentaram desafios duros, mas não foram apenas vítimas. Como agentes históricos, participavam e interferiam, dentro de suas possibilidades, nos rumos da sociedade e em depois da proclamação da do de senhores brancos e seus próprios destinos. Vale República (João Cândido es- uma multidão de escravos ne- chamar atenção para um pon- tava na primeira década de gros. A mestiçagem sempre to: a Abolição, oficializada vida), a população total já foi uma realidade, embora pela Lei Áurea em 13 de maio ultrapassava 14 milhões. E o não eliminasse o racismo, a de 1888, não se realizou ape- perfil dos brasileiros mudou violência e as desigualdades nas “por cima”, isto é, pela ini- muito nesses 200 anos. Os sociais. Tanto que no começo ciativa das elites parlamenta- dois principais grupos da do século XIX calcula-se que res, de abolicionistas ilustres, população eram os chama- um terço da população na- dos proprietários “esclareci- dos pardos e brancos (se é cional era composta pelos dos” e da Coroa Imperial (ou possível falar de tantos bran- chamados pardos livres. Mui- mais simplesmente da prince- cos numa sociedade mestiça tos negros haviam conquis- sa Isabel). Foi, na verdade, um como a brasileira), o que in- tado alforria (liberdade) e longo e penoso processo de cluía os imigrantes europeus seus descendentes imediatos embates no qual participaram, e seus descendentes que che- atuavam nos diversos traba- também, setores variados da gavam em levas crescentes e lhos artesanais, nas irmanda- população, como as camadas iam para as lavouras de café. des religiosas, em milícias médias, pobres livres, libertos Apesar do escravismo ter (tropas militares não regula- e os próprios cativos. De for- sido a relação social marcan- res) e alguns poucos até ma direta ou indireta, as ações te durante três séculos, des- integravam as elites políticas, individuais ou coletivas dos de meados do século XVIII o como o senador e visconde escravos ajudaram a minar o Brasil já não estava mais divi- de Jequitinhonha (Francisco sistema escravista, por meio dido apenas entre um punha- Gê de pequenos e grandes qui- 10 Projeto Memória Acaiaba Montezuma, lombos, fugas coletivas ou individuais, cometendo violên- As diferentes faces dos escravos cias contra a violência opres- Não é possível falar de um sora, enfim, com variadas ati- tipo único de escravo. A con- tudes de resistência. dição do cativeiro era bem ˆ voce sabia que... Na primeira Constituição brasileira, de 1824, não havia sequer referência aos escravos e aos índios, embora se falasse de passagem nos libertos (ex-cativos)? A categoria indígena só foi incluída na Constituição de 1988 e no Censo Demográfico de 1991, mesmo que a investigação da cor estivesse presente desde o primeiro recenseamento. O Censo mais recente, de 2000, leva em conta a autoproclamação (como cada um se declara) étnica e divide a população em cinco categorias: branco, preto, amarelo, pardo e indígena. Além do enfrentamento variada. Havia os escravizados direto, muitos cativos opta- urbanos e os rurais. No meio vam por sobreviver abrindo urbano, alguns ficavam no ser- espaços de negociação com viço doméstico no interior das seus senhores ou com a so- residências. Outros, os chama- ciedade da época, buscan- dos escravos de ganho, traba- do – e às vezes conseguindo lhavam para fora e davam – melhor qualidade de vida renda a seus senhores, não no interior de um sistema raro recebendo remuneração injusto. Eram freqüentes, (jornal, ou pagamento por jor- aliás, os exemplos de cati- nada). Atuavam em ofícios vos que, conseguindo a li- artesanais (ferreiro, marcenei- berdade, tornavam-se eles ro, sapateiro, alfaiate, etc.) ou próprios donos de escravos. no comércio (como quitandei- escravas prostituídas pelos Era a lógica de uma estrutu- ras, doceiras, vendedores am- donos (ou donas) como forma ra que predominou durante bulantes, prestadores de ser- de rendimento. muito tempo. viço, entre outros), sem contar No meio rural, a maioria era de escravos do eito, isto é, que trabalhavam nas grandes plantações, em geral em condições desumanas, com grande índice de mortalidade. Mas existiam nas fazendas escravos artesãos, domésticos e também capatazes, que vigiavam o serviço dos demais. A grande agricultura monocultora e exportadora, baseada nos trabalhadores escravizados, deu a tônica no país por mais de três séculos e deixa suas marcas ainda Alguns escravos atuavam em ofícios artesanais ou no comércio hoje. Porém, havia brechas, João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos 11 Viajantes Centenas de pesquisadores estrangeiros percorreram o Brasil ao longo do século XIX fazendo levantamentos, desenhos e publicando livros sobre os mais diferentes aspectos da sociedade. Eram os viajantes naturalistas, a vanguarda científica da época. Um destes foi Charles Darwin (1809–1882), que elaborou a teoria da evolução das espécies. Numa viagem para os lados de Cabo Frio (RJ), em 1832, Darwin vivenciou episódio que lhe impressionou. Estava numa canoa conduzida por um negro escravo alto e corpulento quando, numa tentativa de comunicar-se com o cativo, o inglês começou a gesticular e falar com ênfase. Foi o bastante para que o canoeiro se encolhesse apavorado, supondo que seria espancado pelo viajante. Darwin ficou chocado com a postura de submissão de uma pessoa muito mais forte que ele e desabafou em seu diário: “Esse homem havia sido treinado para suportar uma degradação mais abjeta do que a escravidão do animal mais indefeso”. ja, venda de escravos entre as sos por onde a população ca- províncias. Isso causou um tiva transitava. Nas pequenas crescimento da mão-de-obra propriedades rurais, que fo- cativa nas grandes áreas es- ram se acentuando no Brasil a cravistas exportadoras do partir do século XVIII, em geral principal produto, o café (com pela economia de subsistência destaque para São Paulo, Rio e abastecimento de alimentos, de Janeiro e Minas Gerais) e, os cativos também trabalha- ao mesmo tempo, um dese- vam duro, mas não havia ca- quilíbrio nas áreas periféricas sa-grande e há inúmeros tes- desta região do poder eco- temunhas, como o viajante nômico e político. inglês Henry Koster e o franque presenciaram pequenos As Abolições e suas conseqüências proprietários e escravos mo- Tal situação permitiu o surgi- rando na mesma habitação. mento de movimentos aboli- cês Auguste de Saint-Hilaire, Antes de ocorrer a Aboli- cionistas regionais. Assim, no ção oficial, o panorama da Ceará, em março de 1884, foi escravidão no Brasil já estava decretada bem mudado. Encerrado o Abolição da escravidão, de- tráfico atlântico (os escravos pois de uma luta de três anos que vinham da África) em envolvendo jangadeiros, pes- 1850, acentuou-se depois o cadores, homens negros li- tráfico interprovincial, ou se- vres e libertos, ao lado de oficialmente O jangadeiro José Nascimento, apelidado Dragão do Mar, lutou pela liberdade 12 Projeto Memória a Fundação Casa de Rui Barbosa/Arquivo Por dentro da história contradições e espaços diver- mulheres pobres e, também, com expressiva presença feminina das camadas médias, além da adesão de setores das elites locais. Também no Rio Grande do Sul, em 1884, foi proclamada a Abolição em Porto Alegre, todo o litoral gaúcho e alguns municípios do interior. Do mesmo modo e época, no Amazonas. A Lei Áurea, tardia, foi antecedida de tais iniciativas. E se a escravidão foi extinta sem indenizar os proprietários, como estes reivindicavam, também não se criaram condições de inserir os ex-cativos na sociedade: não houve, apesar das demandas, distribuição de terras nem outras formas de apoio ou assistência que poderiam dar um novo rumo ao Brasil. ˆ voce sabia que... Cuba (em 1886) e Brasil foram os dois últimos países das Américas a acabar com a escravidão? Que São Domingos, colônia francesa no Caribe, foi a primeira nas Américas a abolir a escravidão (1794) e a segunda a proclamar a Independência (1804), tornando-se o Haiti? O caso haitiano apresentou Abolição e Independência originais. Pela única vez na história da humanidade uma rebelião de escravos chegou ao poder: transformou-se em revolução e, após guerras sangrentas, eliminou a escravidão, exterminaram-se os donos de escravos e a dominação colonial, formando uma nação, ainda que com paradoxos e injustiças que se acentuaram nos dias atuais. O principal líder e símbolo da Revolução do Haiti foi o ex-cativo Toussaint Louverture, chamado de Napoleão Negro. Dessa forma, na província em que João Cândido nasceu, a escravidão estava abalada. o marujo pode perceber, ao Em sua infância e mocidade, lado dos demais habitantes C omo resultado da Abolição com tais características, apesar de avanços que podem ser percebidos, as desigualdades ainda persistem. Segundo o estudo Desigualdade Racial no Brasil, elaborado pelo economista Mario Theodoro, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e divulgado na data dos 120 anos da Abolição (13 de maio de 2008), sobre escolaridade, renda e pobreza da população negra, que inclui negros e pardos (conforme a classificação do IBGE), registram-se melhoras entre 1996 e 2006, mas as condições de vida continuaram inferiores quando comparadas às da população não classificada como negra. A vida de hoje Por dentro da história Recebido com música, e da boa! Por ocasião do nascimento de João Cândido, década de 1880, surgiam nos botequins e quintais dos subúrbios do Rio de Janeiro os primeiros conjuntos de “chorões” que se reuniam para tocar “de ouvido”, já que não sabiam ler as partituras vindas da Europa. Considerado por muitos como a primeira música brasileira tipicamente urbana, o choro ou chorinho, como é carinhosamente chamado, tem fortes influências africanas e mistura elementos das danças de salão européias e da música popular portuguesa. Dentre seus mais famosos compositores estavam Ernesto Nazareth, Pixinguinha, Zequinha de Abreu, Jacob do Bandolim, Anacleto de Medeiros, Joaquim Callado e Patápio Silva. Destacava-se entre eles uma mulher: Chiquinha Gonzaga. Filha de uma negra e de um oficial do Exército Imperial sofreu vários preconceitos. Foi autora da primeira marcha carnavalesca (Ô Abre Alas, 1899) e também a primeira mulher, no Brasil, a reger uma orquestra. (Acessado em http://pt.wikipedia.org/wiki/Orquestra) João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos 13 ˆ voce sabia que... gaúchos, que a dominação Dois jornalistas e escritores famosos e decisivos na campanha abolicionista nasceram escravos? José de Patrocínio (1854–1905) e Luis Gama (1830–1882), filhos de cativas com seus senhores, foram alforriados ainda crianças. Publicaram livros, manifestos, redigiram e dirigiram importantes jornais engajados na luta contra o escravismo, criaram entidades e participaram de ações diretas para libertar escravizados. Tornaram-se figuras destacadas entre as elites culturais e políticas. José de Patrocínio escravista não era in-questionável nem eterna. Esse foi o berço histórico do futuro líder da Revolta da Chibata. A economia baseava-se principalmente na exportação de açúcar, algodão, couros, borracha, cacau, mate, fumo e, sobretudo, café. Suas lavouras foram responsáveis pelo deslocamento do centro ˆ voce sabia que... Os meios de comunicação sempre tiveram atuação política no Brasil? Isso ocorreu desde os primeiros jornais impressos no país, a partir de 1808 (ano da chegada da Corte portuguesa), como a Gazeta do Rio de Janeiro e o Correio Braziliense (editado em Londres). Os meios de comunicação não são inocentes e têm a tradição de interferir no destino de todos. Parte da imprensa desempenhou importante papel no processo de Independência, mas outros jornais eram contra. Na Abolição ocorreu o mesmo: jornais apoiavam a escravidão, outros o combatiam. Nos anos 1830 surgiram pequenos periódicos que discutiam a questão racial, entre eles O Homem de Cor, considerados precursores dos jornais abolicionistas que surgiram meio século depois. financeiro do país, das áreas agrícolas do Nordeste para o Brasil em busca de melhores século XX proliferaram mo- Centro-Sul e, também, pelo condições de vida. Ao mes- vimentos operários, por meio grande fluxo de imigrantes mo tempo, nessas áreas mais de associações e sindicatos, europeus que vieram para o desenvolvidas, surgiam con- com grande presença do tingentes Imigrantes chegam ao Brasil no início do século XIX de anarquismo. Ocorreram, en- classes trabalhadoras. Nas expressivos tão, greves locais e mesmo duas primeiras décadas do greves gerais que afetaram parcialmente a vida urbana e a produção industrial que se desenvolvia, movimentos que vinham dos primeiros anos do século e se acentuaram depois da Revolução Soviética (1917). Saíam de cena os últimos escravos e entravam os primeiros operários. 14 Projeto Memória A difícil conquista da liberdade Com respaldo legal, a população negra e parda, por intermédio das irmandades religiosas (existentes desde o século XVII e se expandindo no século seguinte), passou a arrecadar fundos para comprar a libertação dos escravizados. Essa ação antiescravista consentida conquistou, aos pou- O que canta a história O centenário de abolição do cativeiro foi tema do samba-enredo do Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, do Rio de Janeiro, no carnaval de 1998. 100 Anos de Liberdade – Realidade ou Ilusão?, perguntavam os compositores. cos, adesão de outros segmentos sociais. Tais grupos rais, bem como assistência eram estimulados pelas auto- jurídica. Entre as irmandades ridades como espaço de asso- que se espalhavam por várias ciação ao catolicismo pela localidades do país, construin- população negra. A maioria do suas próprias igrejas, esta- das irmandades acabou ser- vam as devotas de Nossa Se- vindo como espaço de resis- nhora do Rosário, Santa Ifi- tência e sobrevivência das gênia e São Benedito. populações de origem africasincretismo cultural. De cará- Quilombos por todo o país ter beneficente, prestavam Enquanto existiu a escravi- auxílio aos enfermos e fune- dão, existiram quilombos. na, muitas vezes praticando o por dentro da história Por dentro da história Quilombo dos Palmares Localizado na Serra da Barriga, em Alagoas. Formado por escravos fugidos, principalmente, dos engenhos de açúcar pernambucanos, contava com inúmeros mocambos (abrigos de fugitivos, habitação rústica): Andalaquituche, Subupira, Dambrabanga, Zumbi, Tabocas, Arotirene, Aqualtene, Amaro e Macaco – que acabou tornandose uma espécie de capital. Considerado como um “estado africano no Brasil”, surgiu em fins do século XVI e sobreviveu até 1694, quando foi destruído pelas tropas enviadas pela Coroa portuguesa. Zumbi, seu principal líder, conseguiu escapar. Capturado um ano depois, foi esquartejado e sua cabeça exposta na cidade de Olinda. João Cândido nos Palmares Mendes Fradique (pseudônimo de José Madeira de Freitas, 1893–1944), um dos mais famosos humoristas do Brasil no início do século XX, em sua História do Brasil pelo Método Confuso (1920), ao abordar a organização militar do Quilombo dos Palmares confunde propositalmente as épocas e afirma: “As forças do mar eram comandadas por João Cândido”. Fazia, assim, a ligação simbólica entre os dois momentos históricos. João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos 15 E m 2007 existiam 3.524 comunidades quilombolas identificadas no Brasil. Segundo dados divulgados pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), quase 91% dos descendentes de quilombos viviam em domicílios com renda familiar inferior a R$ 424,00 por mês e, 57,5%, em lares com renda inferior a R$ 207,00. Apenas 3,2% das crianças moravam em residências com esgoto, enquanto 28,9% dispunham de acesso à fossa higiênica2. Somente no Rio Grande do Sul de João Cândido existem 37 comunidades já reconhecidas oficialmente como remanescentes de quilombos. A vida de hoje 2 http://www.pnud.org.br/raca/reportagens/index.php?id01=2736&lay=rac Na ponta da língua Quilombo dos Palmares Desde o grande Quilombo dos Palmares, que por um século desafiou o sistema dominante, até os milhares de pequenos e médios quilombos que se espalharam por todo o Brasil du- Dentre as possíveis origens da palavra gaúcho (quem nasce no Rio Grande do Sul), destaca-se a que teria vindo do árabe Chaouch (tropeiro) e na Espanha se adaptado para “Chaucho”, até ganhar no Brasil a forma como a conhecemos. Sua origem pode ser ainda, Guahú, que quer dizer “canto dos índios”. rante o século XIX. ˆ voce sabia que... Charqueada era o nome das estâncias (fazendas) gaúchas onde, escravos e também homens livres, preparavam o charque? Embora sejam todos de carne bovina, existem diferenças para a elaboração do charque, da carne seca e da carne de sol? A carne de sol, que necessita de um clima muito seco, é típica do Nordeste. Depois de cortada, e ligeiramente salgada, é colocada em locais cobertos e bem ventilados. A secagem é rápida e cria um tipo de casca protetora que conserva macia a parte interna. A carne seca, também conhecida como jabá, recebe maior quantidade de sal sendo empilhada em lugares secos e depois estendida em varais, ao sol. O charque, típico da região Sul, é preparado de modo parecido ao da carne seca. A diferença é que recebe ainda mais sal e a exposição ao sol, que lhe garante uma maior durabilidade. No século XIX, vários quilombos trocavam ou vendiam ção, enfrentando especula- mercadorias nas cidades pró- ção imobiliária e invasores. ximas. Nas últimas décadas, Em meio àquela sociedade tornaram-se comuns aqueles onde as mudanças conviviam constituídos por escravos de com injustiças que permane- uma mesma fazenda, não ciam, João Cândido viveu mo- raro instalados em terras do mento importante em sua vi- próprio senhor. Após a Aboli- da. Superada a escravidão no ção, muitos quilombolas per- país, o jovem gaúcho saiu da maneceram nos mesmos lo- área rural e, em Porto Alegre, cais – um solo pelo qual ainda alistou-se na Marinha. Nave- hoje lutam seus descenden- gando pelos mares e rios, ele tes para garantir a regulariza- descobriria um grande mundo. 16 Projeto Memória (Adaptado de http://www.sic.org.br/perguntasfrequentes.asp) A cidade de Porto Alegre no início do século XX 2. DO MAR PARA O MUNDO e lutou numa guerra que provavelmente mal conhecia o motivo. Esteve nas tropas governistas que reprimiram a Ba r dido foi alistado à força b o quiv Ar a/ s o enviado em janeiro de 1895 para o Rio de Janeiro, tornan- dação Casa de Ru Fun i A os 13 anos, João Cân- do-se grumete (iniciante) da 16ª Companhia da Marinha. A partir de então, passou a levar vida de marinheiro, sobre as Revolta Federalista no Rio águas do Brasil e de outras Grande do Sul, em 1893. Esta partes do mundo. é uma realidade presente no Brasil de hoje, sobretudo nas grandes cidades: crianças e adolescentes envolvidos com A entrada para a Marinha e Pinheiro Machado, comandante da primeira tropa servida por João Cândido, quando tinha apenas 13 anos. as viagens consecutivas representaram para João Cândido, a explosão definitiva do Aí fui nascendo, fui crescendo, fui crescendo até que o milho deu a espiga desejada. “ “ João Cândido, depoimento ao Museu da Imagem e do Som, 1968 armas e violência, inclusive nas áreas mais pobres. Alistado em seguida no Arsenal de Guerra do Exército, em Porto Alegre (1894), Fon Fon / Fundação Biblioteca Nacional em janeiro do ano seguinte João Cândido foi transferido, como aluno, para a Escola de Aprendizes de Marinheiros, também em Porto Alegre. Aí permaneceu 11 meses. Devido à falta de pessoal pela expulsão de muitos marinheiros após a Revolta da Armada (1893–1894), João Cândido foi Grumetes (ao centro) na porta da Igreja Candelária, no Rio de Janeiro João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos 17 mundo rural e escravista em João Cândido percorreu que nasceu. Segundo suas todo o litoral brasileiro, as palavras: “Eu entrei na Mari- principais bacias hidrográfi- nha com 14 anos e entrei cas (Prata e Amazônica) e bisonho. Toda luz que me navegou por quatro conti- iluminou, que me ilumina, nentes (África, Europa, Amé- graças a Deus, que é pouca, rica do Norte e América do foi adquirida, posso dizer, na Sul). Conheceu e presenciou Marinha”. Bisonho, não cus- personagens e eventos histó- ta lembrar, significa pouco ricos. Instruiu-se e instruiu adestrado, novato, recruta nas artes militares; recebeu inexperiente. elogios, promoções, rebaixa- ˆ voce sabia que... João Cândido sofria de tuberculose pulmonar, a forma mais comum da doença, que é típica de países pobres? No Brasil, ela mata cerca de seis mil pessoas por ano. O tratamento é feito gratuitamente por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), nos postos e hospitais. Contudo, por ser longo, acaba muitas vezes sendo abandonado pelo paciente, com sérios riscos à sua saúde, pois os sintomas da doença diminuem, mas ela continua se alastrando. O dia 24 de março, mesma data em que o médico alemão Robert Koch descobriu, em 1882, o bacilo da tuberculose, foi instituído como o Dia Mundial de Luta Contra a Tuberculose. Para mais informações sobre essa e outras doenças presentes no país, o Ministério da Saúde disponibiliza o telefone do DISQUE SAÚDE: 0800 61 1997. 18 Projeto Memória Na ponta da língua OS SABERES DE UM TRABALHADOR Cada ser humano, em seu trabalho, possui saberes e técnicas. João Cândido, nascido “embaixo” na hierarquia social, acumulou muitos conhecimentos. Na Marinha, foi instrutor na Escola Naval (RJ), na Escola de Aprendizes de Marinheiros de Recife (PE) e na Divisão de Instrução dos naviosescola Benjamin Constant e Primeiro de Março. Exerceu, ainda, as seguintes funções a bordo das embarcações em que serviu: Artilheiro – Marinheiro da artilharia (conjunto de canhões e outras bocas-de-fogo para lançar projéteis à grande distância). Faroleiro – Encarregado do farol, lanterneiro a bordo de uma embarcação. Gajeiro – Marinheiro que tem a seu cargo um dos mastros, zela por ele e dirige os trabalhos que nele se executam, e a quem outrora competia, também, subir ao cesto de gávea, nas proximidades de terra, a fim de procurar avistá-la antes dos demais elementos da tripulação. Maquinista – Aquele que opera as máquinas do navio. Sinaleiro – Indivíduo incumbido de dar sinais a bordo. Timoneiro – Aquele que governa o timão da embarcação; o homem do leme. Por dentro da história Amazônia e escravidão O contato com a Bacia Amazônica (que percorreu durante sete meses, ocasião em que viajou por rios do Amazonas até o Acre) marcou profundamente João Cândido. Em depoimento já no fim da vida ao Museu de Imagem e do Som ele diria: “Eu conheci o Amazonas em criança e é a mesma coisa de hoje, escravatura, escravidão aqui na mão dos seringueiros”. Impressionou-se ainda, ao presenciar em 1903, no Acre, a luta do gaúcho Plácido de Castro, que mesmo não sendo militar ou contando com o apoio do governo brasileiro, organizou um exército improvisado para defender a permanência dessa parte do território ao Brasil, obtendo sucesso na iniciativa. “ O mar é meu amigo “ João Cândido, depoimento ao Museu da Imagem e do Som, 1968 mentos e punições. Aprendi- mares do Norte e Báltico e zados múltiplos, marcados várias cidades, como São pela presença das águas, pre- Petersburgo (Rússia). sença soberana do mar. Em julho de 1909 o maru- Em 1906 João Cândido jo gaúcho partiria em outro partiria para outras longitu- itinerário europeu, dessa des: esteve em Cabo Verde, vez para acompanhar o fim no continente de seus ances- da construção e compor a trais africanos, no dia 1º de tripulação do encouraçado junho. Nessa viagem, conhe- Minas Gerais, em Newcastle- ceu os canais de Kiel (Ale- on-Tyle, Inglaterra. Viajou por manha) e da Mancha, os terra de Marselha até Paris, Cidade Luz, no esplendor da Em suas viagens João Cândido pôde conhecer as mais diferentes realidades pelo mundo. Nas fotos, França e Cabo Verde, países que o marinheiro passou João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos 19 ˆ voce sabia que... A revolta dos marinheiros russos em 1905, contra as condições de vida nas embarcações impostas pelo governo do czar Nicolau II e no âmbito do “ensaio geral” da Revolução Soviética (1917), foi tema em 1925 do filme O Encouraçado Potemkin, de Sergei Eiseinstein, e tornou-se um clássico do cinema mundial? João Cândido esteve nos mares russos um ano após esta rebelião. ˆ voce sabia que... Joaquim Nabuco (1849–1910) além de político, diplomata, historiador, jurista, jornalista, foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras? Além de sua intensa campanha contra a escravidão nas tribunas parlamentares e na imprensa, fundou, em 1878, a Sociedade Brasileira Antiescravidão. Ao falecer, era diplomata em Washington. Belle Époque. Em feverei- dentro de suas convicções e ro de 1910, o Minas Gerais peculiaridades. O corpo de faria sua viagem inaugural Nabuco seria sugestivamente até Hampton Roads, EUA, seguido pelos marinheiros para acompanhar o traslado que, nove meses depois, aca- ao Brasil dos restos mortais bariam com a chibata na Ma- de Joaquim Nabuco, um dos rinha, um dos resquícios do grandes líderes abolicionistas, escravismo no Brasil. Acervo Casa de Rui Barbosa O encouraçado Minas Gerais 20 Projeto Memória A vida de hoje Salvar oceanos, preservar vidas P ara João Cândido, o mar era um amigo. Mas nós somos amigos do mar? E do planeta? João Cândido amou o mar, por toda a vida! Nele cresceu, fez amigos, conheceu o mundo, fez história e se fez homem. Mais tarde, expulso da Marinha, dele continuou sustentando a família. A humanidade e os oceanos caminham juntos há milhões de anos. A vida terrestre veio de lá, como resultado do processo de evolução pelo qual passaram as espécies no planeta. Planeta chamado Terra, mas que é conhecido como planeta azul, justamente por causa das águas que lhe formam 3/4 do total da superfície – das quais, 97% são salgadas. Pois é. Apesar da imensidão, as águas dos oceanos vêm sofrendo com a poluição que produzimos e que já atinge o Ártico e a Antártida, onde já é possível perceber sinais de degradação. Mares e oceanos vêm, há tempos, sendo utilizados como depósitos de detritos o que, combinado com a poluição do ar, causada pela espécie humana, provoca mudanças climáticas na atmosfera como o degelo dos pólos, com o conseqüente aumento do nível do mar. Se medidas urgentes não forem tomadas, segundo o relatório In Dead Water (Em Águas Mortas), elaborado por cientistas do Programa da ONU Para o Meio Ambiente (Pnuma), em poucas décadas a vida marinha, em grande parte responsável pela alimentação e sustento de milhões de pessoas em todo o mundo, poderá sofrer extinção em massa. Algumas espécies já estão ameaçadas e outras desapareceram. O mar de João Cândido e de todos nós pede socorro! O meio ambiente como um todo também! Medidas já estão sendo adotadas por países que entendem que não apenas a destruição do mar, mas também das florestas, da fauna e dos recursos hídricos (água) representa nossa destruição enquanto espécie. Entretanto, na contramão dessa luta, algumas nações ainda insistem em desafiar os limites da Terra. E o caso era este. Nós que vínhamos da Europa, em contato com outras Marinhas, não podíamos admitir que na Marinha do Brasil ainda o homem tirasse a camisa para ser chibateado por outro homem. “ “ João Cândido, depoimento ao Museu da Imagem e do Som, 1968 João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos 21 A vida de hoje Da preocupação do século XIX, uma Agenda 21 desde o século XX A degradação ambiental passou a chamar atenção e exigir cuidado, principalmente a partir do século XIX. A natureza não acompanhava mais o ritmo de destruição que nossa espécie causava ao meio ambiente. Era possível perceber que, mantida a superexploração dos recursos naturais e o contínuo crescimento da população, as gerações do futuro enfrentariam sérios problemas de sobrevivência. Era o preço do progresso, defendiam alguns! A desigualdade torna-se visível: poucas regiões com uma população desfrutando de conforto, saneamento, saúde, alimentação e educação enquanto outras, a maior parte do mundo, convivendo com a miséria e a destruição e poluição do meio ambiente. Crescimento econômico e melhoria de vida da população não andam necessariamente juntos. Afinal, muitas nações se desenvolveram e grande parte do povo permaneceu em condições precárias. Era preciso repensar a questão, investir em propostas que permitissem um desenvolvimento regional sustentável, ou seja, crescer economicamente sem destruir as culturas locais, o meio ambiente e o futuro. Não tem sido fácil, mas aos poucos esta ten- 22 Projeto Memória dência vem se fortalecendo e aumentando. A ECO 92, ocorrida no Rio de Janeiro, no ano de 1992, foi um desses momentos em que muitos se reuniram. Eram pessoas de todas as partes do mundo, movimentos sociais organizados e representantes de governos de 175 países. Um dos principais resultados desse encontro foi a criação da Agenda 21, documento que estabeleceu a importância de que cada país se comprometa a refletir, global e localmente, sobre a forma pela qual governos, empresas, organizações não governamentais e todos os setores da sociedade podem cooperar no estudo de soluções para os problemas socioambientais. A Agenda 21 foi adotada pelo governo brasileiro e incorporada como um dos programas do Plano Plurianual (PPA) para os períodos 2004–2007 e 2008–2011. O PPA é o instrumento onde são estabelecidos objetivos, diretrizes e metas do governo e, por sua importância, define o destino de toda uma geração. Entre nós, é importante a participação da sociedade na discussão da Agenda 21, na qual se encontra a indicação de políticas públicas. Ainda há muito para fazer e monitorar! Parte II Adulto, contra a chibata 3. EXPLODE A REVOLTA DO MAR prensa e desprezados pelo rança de João Cândido no a Revolta da Chibata? governo, meio deles? a se tornarem O que levou milhares de os principais protagonistas A nova esquadra brasileira, marinheiros, até então anô- da História naquele mo- fabricada na Inglaterra, ficou nimos, ignorados pela im- mento? Como surge a lide- pronta em 1910. O mais pos- por dentro da história sante era o encouraçado Minas A República recuou Inicialmente, o governo da República aboliu os castigos físicos na Marinha em 17 de novembro de 1889, dois dias depois da sua Proclamação. Mas logo tratou de reintroduzi-los, em 1890, tornando-os novamente legais. Junto ao enorme poderio bélico e da modernização tecnológica do Brasil pelos mares, o código disciplinar de bordo tinha origem nos tempos coloniais, com o uso da chibata e outras punições, como prisão solitária, diminuição da comida e ficar “a ferros” (acorrentado). milhares de lenços brancos Gerais, com seus 34 canhões, recebido em clima festivo por acenados pela multidão que se espremia no cais do Rio de Janeiro. Nos meses seguintes vieram o encouraçado São Paulo (também de grande porte) e o cruzador-ligeiro Bahia. Proporcional ao tama- O cais Pharoux (hoje Praça XV, no Rio de Janeiro) era um porto estratégico João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos 23 Fundação Casa de Rui Barbosa/Arquivo E m que situação surgiu ˆ 24 Projeto Memória O Rio de Janeiro modernizava-se. Na imagem a atual Avenida Rio Branco nho das embarcações, foi o a prefeitura do Rio de Janei- valor da dívida contraída junto ro, iniciou-se o que a popu- aos bancos internacionais. lação chamou de política do Com a nomeação do en- bota abaixo: ampliação do genheiro Pereira Passos para porto, remoção de morros, Acervo Museu da Imagem e do Som Capital vem do latim, capitale, relativo a cabeça? O Rio de Janeiro, como capital colonial, Imperial e republicana (desde 1763 até 1960) do Brasil, era a “cabeça” de uma sociedade multifacetada, complexa, autoritária e centralizadora. Por um lado, expressava de modo intenso as desigualdades sociais, misturando, num mesmo espaço urbano, luxo, riqueza e pobreza. Por outro, além de sediar os poderes políticos e econômicos dominantes, apresentava também uma espécie de síntese das várias faces do país, do ponto de vista cultural, étnico e político. Assim, no Rio capital, sentia-se de modo agudo a miséria e as injustiças, como também se presenciava de forma mais evidente a presença das classes pobres e o espetáculo do progresso tecnológico. Fundação Casa de Rui Barbosa/Arquivo voce sabia que... Acervo Museu da Imagem e do Som Mulheres elegantes passeiam pelo Rio de Janeiro urbanizado abertura de praças, demoli- parada à avenida Champs- ção de antigos quarteirões Elysées, em Paris (França). com seus cortiços e sobra- Empurrada para fora do dos, alargamento de ruas e Centro da cidade, a popula- abertura de novas avenidas, ção pobre começou a subir entre elas a avenida Central, os morros, surgindo as pri- atual avenida Rio Branco, com- meiras favelas. por dentro da história Considerada a primeira favela carioca, o Morro da Favela, nas proximidades da Estação Central do Brasil, ainda existe e ˆ voce sabia que... A palavra República significa “coisa pública” e tem origem no latim? A primeira Constituição brasileira republicana é de 1891. A partir dela se instituiu a eleição direta para Presidente da República. Embora tenha acabado com a exigência de uma renda mínima para direito ao voto – o chamado voto pecuniário –, manteve a proibição às mulheres, mendigos e soldados. Só podiam votar os homens a partir de 21 anos. Entretanto, por excluir também os analfabetos, deixava fora do processo eleitoral grande parte da população masculina, sobretudo aquela composta por negros e pobres. Como resultado, sabe-se que, em 1910, cerca de 3% da população, apenas, puderam comparecer às urnas. Na Constituição de 1988 é que se deu direito de voto aos analfabetos – e aos jovens, a partir de 16 anos, se cadastrarem como eleitores. chama-se Morro da Providência. Faz parte de um conjunto de favelas que hoje se espalha por todos os bairros do Rio de Janeiro. Nas grandes e médias cidades do Brasil também a Acervo Museu da Imagem e do Som situação de miséria e pobreza leva ao crescimento de favelas. O que canta a história Inspirada na Campanha de Oswaldo Cruz para erradicar a peste bubônica, transmitida pelos ratos e fazendo vítimas fatais, os cantores Casemiro Rocha e Manuel da Costa gravaram o grande sucesso do carnaval do Rio de Janeiro, em 1904: “Rato, Rato... por que motivo tu roeste meu baú?...” João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos 25 Acervo Museu da Imagem e do Som e Gamboa. Alguns desses encontros aconteceram em casas de cômodo, ou cortiços, típica habitação popular urbana daquele momento. Na madrugada, um grito de dor No fundo da Guanabara, ainda madrugada do dia 21 de novembro de 1910, Marcelino Rodrigues Menezes, marinheiro, recebia no con- 1910, o ano em que o açoite terminou zando um Comitê Revolucio- Os marujos conspiraram em pobres da cidade, como os encontros secretos, organi- bairros de Saúde, Santo Cristo Marinheiros rebelados do navio Bahia esperam momento de arriar a bandeira vermelha Careta / Fundação Biblioteca Nacional nário que se reunia nas áreas 26 Projeto Memória Serviço de Do cumentação da Marinha Careta / Fundação Biblioteca Nacional Marinheiros do cruzador Bahia mobilizados na revolta Marcelino Rodrigues Menezes foi o último marinheiro a ser castigado antes do levante vés do Minas Gerais, 250 chi- Cerca de 2.300 marinhei- exigiram o fim dos castigos batadas na frente de toda a ros, entre os dias 22 e 27 de corporais vigentes na Marinha. tripulação. Castigo que con- novembro de 1910, tomaram O movimento, que ficaria co- tinuou, apesar do desfaleci- cinco possantes navios de nhecido por Revolta da Chi- mento da vítima. Foi a gota guerra (Minas Gerais, São Pau- bata, trouxe para a cena públi- d’água que faltava! Ou, me- lo, Bahia, Timbira e Deodoro) lhor, a gota de sangue! Tanto e, apontando os canhões so- Apicuim como Alípio, apeli- bre a então capital do Brasil, dado de O Carrasco do Minas Gerais, eram velhos conheci- ˆ voce sabia que... dos da marujada. O primeiro era famoso por sua meticulosidade na elaboração do instrumento de tortura, que preparava com agulhas de aço. O uso de açoite em réus escravos foi proibido por lei em 1886? Portanto, quando João Cândido tinha apenas seis anos de vida – e 24 anos antes da Revolta da Chibata. S egundo o Programa Habitat, da Organização das Nações Unidas (ONU), criado em 1976, e que tem como missão promover social e ambientalmente o desenvolvimento sustentável dos assentamentos humanos, no ano de 2005, cerca de 52,3 milhões de brasileiros viviam em favelas (28% da população)? A informação está presente no documento O estado das cidades do mundo 2006–2007. A vida de hoje (Fonte: http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=386537) “Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.” Artigo 5º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, Assembléia Geral das Nações Unidas – ONU, 1948 João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos 27 por dentro da história Ilustração Brasileira / Fundação Biblioteca Nacional “Pensamos no dia 15 de novembro. Acontece que caiu forte temporal sobre a parada militar e o desfile naval. A marujada ficou cansada e muitos rapazes tiveram permissão para ir a terra. Ficou combinado então que a revolta seria entre 24 e 25. Mas o castigo de 250 chibatadas no Marcelino precipitou tudo. O Comitê Geral resolveu, por unanimidade, deflagrar o movimento no dia 22. O sinal seria a corneta das 22 horas (...) Às 22h50, quando cessou a luta no convés, mandei disparar um tiro de canhão, sinal combinado para chamar à fala os navios comprometidos.” (João Cândido em relato ao jornalista Edmar Morel, publicado no livro A Revolta da Chibata, 4ª edição, Rio de Janeiro: Graal/Paz & Terra, 1986). Castigos, violenta tradição brasileira ca setores oprimidos da popu- bela caligrafia, apresentavam- lação, como agentes históri- se como “cidadãos brasilei- cos transformadores. ros e republicanos” e exigiam: Os marujos enviaram um “desapareça a chibata”. Caso manifesto em forma de carta não fossem atendidos, esta- e vários telegramas ao gover- vam dispostos a bombardear no com suas reivindicações. a capital do país e as embar- No manifesto, manuscrito em cações que os hostilizassem. Careta / Fundação Biblioteca Nacional A Ilustra Brasileira/ Fundaçãõ Biblioteca Nacional Ao lado: Marinheiros exigiam o fim dos castigos 28 Projeto Memória Por dentro da história Careta / Fundação Biblioteca Nacional Trecho da carta dos marinheiros da Revolta da Chibata “Ilmo. Exmo. Sr. Presidente da República brasileira. Cumpre-nos, comunicar a V. Excia. como chefe da Nação Brasileira: Nós, marinheiros, cidadãos brasileiros e republicanos, não Além das atitudes e das falas, lista Gilberto Amado registrou podendo mais suportar a é importante verificar que os no jornal O Paiz: “Na minha rua escravidão na Marinha Bra- marujos se expressaram tam- quase não ficou ninguém; hou- sileira, a falta de proteção bém por escrito, colocando ve lágrimas, ataques, soluços no papel seus propósitos. ruidosos e o berreiro alarmado Uma parte da população fu- das crianças, que viam na face giu, apavorada com a possibilidade da cidade ser bombar- Careta / Fundação Biblioteca Nacional deada. O então famoso jorna- que a Pátria nos dá; e até então não nos chegou; rompemos o negro véu, que nos cobria aos olhos do patriótico e enganado A bandeira vermelha (mastro à direita) manteve-se hasteada no São Paulo e nas demais embarcações. Abaixo: Marinheiros, com as armas nas mãos, conseguem dar fim à chibata ma Marinha povo(...)”. (Trecho da carta enviada pelos rebeldes ao presidente da República) João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos 29 O Malho / Fundação Biblioteca Nacional nal oteca Nacio ndação Bibli O Malho / Fu Jornal O Malho publica charge ilustrando a fuga de parte da população. Já alguns cariocas preferiram admirar a evolução dos navios no cais materna a consternação e o fim do mundo”. Outras pes- pasmo. Vez em vez, atulhados soas, em vez de se afastarem, de bagagens e de pessoas, foram para a beira do cais, cu- automóveis fuzilavam nervosa- riosas, assistir à movimenta- mente numa velocidade im- ção dos navios – e não faltou prevista. Era o pavor; parecia o quem aplaudisse. “ Vale é saber que as carnes de um servidor da pátria só serão cortadas pelas armas dos inimigos, mas nunca pela chibata de seus irmãos. A chibata avilta. “ João Cândido, em entrevista ao Correio da Manhã durante a rebelião em 1910 por dentro da história Surge uma liderança O marinheiro de 1ª classe João Cândido, da 16ª Companhia da Marinha nacional foi, sem dúvida, o principal líder da Revolta da Chibata, seja pela atividade que exerceu durante a rebelião, seja pelo reconhecimento de seus comno, parlamentares, imprensa e a população em geral o viam nessa condição, ainda na época do episódio. Foi escolhido pelos companheiros por vários motivos: era um dos mais velhos e com mais tempo de serviço, considerado um excelente marinheiro, bem-visto por marujos e oficiais, construiu ao longo dos anos uma liderança sólida em sua posição de marujo. Intitulado Almirante-em-chefe da esquadra rebelde, logo a população e os jornais da época o apelidaram de Almirante Negro. 30 Projeto Memória Fundação Biblioteca Nacional panheiros da Armada que o aclamaram como chefe. Também oficiais, gover- Por dentro da história Surgem várias lideranças Dentre os 2.300 marujos rebelados, formou-se uma “oficialidade rebelde” para comandar as embarcações nhã / Correio da Ma nal blioteca Nacio Fundação Bi durante a revolta, composta por 28 homens. No navio São Paulo destacaram-se o cabo Gregório do Nascimento, músico e cozinheiro, e o cabo André Avelino Santana, baiano. No Bahia, o comandante rebelde foi o marinheiro cearense Francisco Em cinco dias o marujo placáveis ódios, vinganças e gaúcho transformou-se, de difamações que o acompa- ilustre na nhariam por toda vida. Ates- Ribas. A bordo do Deodoro maior celebridade do Brasil tam isso a quantidade de fo- a liderança ficou com os ma- naquele momento, atraindo tos, charges e artigos publica- rujos Antonio Alves Lessa e sobre ele não só entusiasmo e dos em destaque nos princi- José Alves de Sousa. admiração, mas também im- pais jornais, os discursos na desconhecido, Dias Martins, ao lado de Ricardo Freitas e Adalberto Câmara Federal e no Senado, diálogos registrados nas ruas, al nhã / da Ma Nacion Correio o Biblioteca ã ç a d Fun O que canta a história casas e cafés. “E combinaram / uma revolta na surdina / se lançaram / nessa sina e saíram triunfantes. / Por ser o líder / que assume, que ensina / os marujos com estima / lhe fizeram almirante.” (Música Nobre Almirante, da peça teatral do Grupo Mambembe, encenada em 1983, durante a ditadura civil-militar no Brasil) João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos 31 O que canta a história (Canção entoada por marinheiros e relatada por Zeelândia Cândido, em entrevista à Silvia Capanema P. de Almeida, em 2002) Anistia vem do grego Amnistia e significa esquecimento. Segundo o Dicionário Aurélio é o “ato pelo qual o poder público declara impuníveis, por motivo de utilidade social, todos quanto, até certo dia, perpetraram determinados delitos, em geral, políticos, seja fazendo cessar as diligências persecutórias, seja tornando nulas e de nenhum efeito as condenações”. O Malho / Fundação Biblioteca Nacional O que canta a história: “No tempo da revolta / João Candido era almirante / Avelino imediato / E Gregório comandante. / João Cândido almirante / ainda deve se lembrar / que tem seu nome gravado / no barco Minas Gerais...” Na ponta da língua “ “rendição” das lideranças go- É bem doloroso para um país forte e altivo ter de sujeitar-se às imposições de 700 ou 800 negros e pardos que, senhores dos canhões, ameaçaram a Capital da República. vernamentais brasileiras. Po- Fanfulla, jornal de São Paulo, em 1910 A notícia correu o mundo, transformou-se em manchete nos principais jornais brasileiros (e, também, argentinos, uruguaios, parisienses, italianos, alemães e ingleses, entre outros) que enfatizavam a “ O Paiz / Fundação Biblioteca Nacional O Malho / Fundação Biblioteca Nacional líticos, membros do governo 32 Projeto Memória João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos 33 Fundação Biblioteca Nacional Manifesto dos marinheiros: contra a “Escravidão na Marinha” O Malho / Fundação Biblioteca Nacional Jornal O Malho divulga foto em que João Cândido discute o texto da anistia com o comandante Pereira Leite Abaixo: Na charge de oposição à Revolta dos marinheiros, o marechal Hermes da Fonseca assina a anistia e, sobretudo, os altos oficiais da Marinha sentiram-se profundamente irritados com o desfecho do episódio. Além de exigirem o fim da chibata os rebeldes pediam, também, anistia. O governo do marechal Hermes da Fonseca (empossado há uma semana como oitavo Presidente da República no Brasil) O Malho / Fundação Biblioteca Nacional e o Congresso Nacional, acuados, aceitaram rapidamente todas as condições. 34 Projeto Memória A nistiados, os marinheiros devolveram os na- vios e largaram as armas em 27 de novembro de 1910. Doze dias depois, ocorre outra rebelião, dessa vez envolvendo as guarnições do Batalhão Naval (na Ilha das Cobras) e do cruzador-ligeiro Rio Grande do Sul. Os combates foram rápidos, porém Correio da Ma nhã /Funda ção Bibliotec a Nacional 4. EXPLODE A REPRESSÃO EM TERRA mais violentos do que na insurreição de novembro, pois o governo partia para esmagar os rebeldes, dos quais 24 foram mortos, além do falecimento de soldados do Exército fiéis ao governo beneditino) atingidos por dis- Revolta da Chibata não tive- aquartelados no mosteiro de paros na cidade, que levaram ram qualquer participação São Bento e de oito civis 132 feridos aos hospitais. Os nesse segundo episódio. Mas (entre os quais um monge navios com os marujos da o governo se aproveitou do pretexto para fazer uma perseguição das mais violentas. O saldo final da repressão: 1.216 expulsões da Marinha (dados oficiais), ou seja, número equivalente a quase metade dos participantes da Acervo do Arquivo Nacional Revolta da Chibata; seiscentas pessoas presas, inclusive os líderes do movimento (que sofreram maus-tratos); degredo e trabalho escravo para centenas. E número ainda não contabilizado de assassinatos, João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos 35 lências mais fortes. Os detidos ficaram assim, amontoados e sem poderem se mexer direito ou mesmo respirar durante quatro dias, sem receber água ou alimentos. Ilustração Brasileira / Fundação Biblioteca Nacional Ao abrirem as portas, havia 18 mortos lá dentro, alguns já inchados e apodrecendo. João Cândido foi um dos que sobreviveram. ˆ voce sabia que... Centenas de marinheiros (inclusive os anistiados) foram detidos dos quais cerca de 30 são denominação do local – soli- conhecidos os nomes e o tária – foram a seguir colo- modo como foram mortos. cados na “jaula” (expressão do carcereiro) mais 17 maru- João Cândido preso jos. Na “solitária” ao lado Acusado de participar da ficaram outros 13 marinhei- nova rebelião, João Cândido ros. Ao todo, 31 detidos, des- foi preso no dia 24 de pidos, num espaço onde mal dezembro, véspera de Natal cabiam duas pessoas. Eram de 1910, e conduzido à Ilha os considerados “elementos das Cobras, onde ficava o perigosos”, no linguajar ofi- Batalhão Naval. Sob pretex- cial. Ocorreu aí uma das vio- to de que todas as cadeias da cidade estavam lotadas, foi o pri- io te ca l na io ac N meiro a ser jogado Fund açã oB ibl numa cela solitá- A população carcerária no Brasil é composta por 440 mil pessoas? Os dados constam do relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Sistema Carcerário e tem por base levantamento do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), do Ministério da Justiça. A preocupação com os Direitos Humanos inclui ainda, a necessidade, segundo a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad), do Ministério da Educação, de implementação do Plano Nacional de Educação no Sistema Prisional. Atualmente, cerca de 22 mil presos são analfabetos, 56 mil apenas alfabetizados, e 145 mil têm somente o ensino fundamental completo. (Adaptado de http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2008/06/20/materia.2008-0620.4618774042/view e http://noticias.terra.com.br/brasil/interna/0,,OI2044669-EI306,00.html de 03/11/2007) ria, encravada na rocha, úmida, de aspecto tenebroso e apertada. Apesar da 36 Projeto Memória O controle psiquiátrico Diante das brutalidades sofridas e presenciadas na Ilha das Cobras, João Cândido, nos primeiros momentos, ficou traumatizado e tinha visões dos companheiros Por dentro da história ˆ voce sabia que... Na primeira metade do século XIX existiram no Brasil os navios-prisões, chamados de presigangas? Eram centros de detenção flutuantes onde ficavam soldados estrangeiros prisioneiros de guerra, soldados brasileiros punidos por alguma falta, escravos condenados, índios destribalizados, presos políticos e outros detidos por crimes variados. Nessas embarcações havia constantes maus-tratos, torturas e não raro os presos morriam a bordo. Tais navios foram trazidos por D. João VI ao Brasil e serviram no reinado de D. Pedro I (1822–1831) e durante as Regências (1831 – 1840). O jornalista Cipriano Barata que esteve preso numa dessas embarcações escreveu, em 1829, uma longa denúncia sobre as torturas. mortos, que reapareciam em dos, no bairro da Urca, próxi- O navio da morte sua memória gritando e ago- mo à praia Vermelha (hoje no Também na véspera de nizando, deformados e so- prédio oitocentista funciona Natal de 1910 foram embar- frendo. Examinado por uma um campus da Universidade cados no navio mercante junta médica, rapidamente Satélite, do Lóide brasileiro, concluíram que estava louco com destino ao desterro na Amazônia, 441 presos assim qualificados em relató- e resolveram enviá-lo para o Ficha de João Cândido no Hospital Nacional dos Alienados Hospital Nacional dos Aliena- rio oficial: 105 ex-marinheiros, 292 vagabundos e 44 mulheres. O grupo ia escoltado por tropas do Exército. No trajeto, 14 marinheiros foram fuzilados, a pretexto de que tentaram promover uma rebelião, e os corpos jogados ao mar. Entre estes, vários participantes da Revolta da Chibata, como Vitalino José Ferreira, que presidira o Comitê RevoAmazônia, os presos foram entregues aos donos dos seringais para trabalhos forçados. Sabe-se de poucos sobreviventes. nal blioteca Nacio Fundação Bi lucionário. Ao chegarem na João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos 37 A vida de hoje ˆ voce sabia que... E m 1990, o Brasil assinou a Declaração de Caracas comprometendo-se a reestruturar a assistência aos portadores de necessidades especiais na área da psiquiatria? A atual Política de Saúde Mental originou-se na Lei Federal 10.216, de 2001. Tem como objetivo substituir as internações de longa permanência (nas quais o paciente é isolado do convívio familiar e social) por meio da desativação dos antigos manicômios, substituindo-os pela implantação dos Centros de Atendimento Psicossocial (CAPS) e utilização de leitos em hospitais gerais. Dados do Ministério da Saúde indicam que, em 2007, havia 841 CAPS em todo o país. Contudo, ainda existiam 228 hospitais psiquiátricos tradicionais. Apesar das mudanças, o novo tipo de atendimento ainda é insuficiente. A demora para marcar consultas é um dos obstáculos na execução da política de desinternação, segundo conclusões apresentadas durante o XXV Congresso Brasileiro de Psiquiatria, realizado em outubro de 2007, em Porto Alegre (RS). Federal do Rio de Janeiro). En- Durante a estada no hospi- tretanto, os médicos logo tal, João Cândido resolveu co- constataram que João Cândi- locar no papel suas memórias, do apresentava “perfeita orien- com destaque para os recentes tação autopsíquica”. O marujo acontecimentos. O manuscrito ficou quase dois meses inter- desse livro, que ele intitulara nado, ocasião em que pode se A vida de João Cândido ou O refazer dos maus-tratos que Sonho da Liberdade, está desa- sofrera na Ilha das Cobras. parecido. Mas uma versão re- A Biblioteca Mário de Andrade tem o segundo maior acervo do Brasil, atrás apenas da Biblioteca Nacional (RJ)? Seu nome é uma homenagem ao escritor Mário Raul de Morais Andrade (1893–1945), nome destacado no Movimento Modernista brasileiro que se inaugurou com a Semana de Arte Moderna em 1922. Um de seus principais livros é Macunaíma (1928), romance que utiliza mitos indígenas, lendas, provérbios e registra alguns aspectos da cultura do país até então pouco conhecidos, na busca de traçar o “caráter” (identidade) nacional. Para saber mais sobre o autor e a biblioteca acesse http://www.prefeitura.sp.gov.br/c idade/secretarias/cultura/bma/. Mário de Andrade João Cândido tem alta do hospital. Os psquiatras concluiram que não estava louco. sumida foi publicada em 12 artigos na Gazeta de Notícias Serv iço d e Do cum enta ção da M arinh a entre dezembro de 1912 e janei- 38 Projeto Memória ro de 1913. Os textos vinham assinados pelo autor, com alguma intervenção de jornalistas do periódico, entre eles o famoso Paulo Barreto (João do Rio) e hoje fazem parte do acervo da Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo. Julgamento e liberdade Ao ter alta do hospital, João Cândido foi novamente preso e assim ficou por quase dois anos, até ser julgado pelo Conselho de Guerra em fins de 1912, ao lado de mais nove marujos que haviam participado da Revolta da Chibata. Fundação Biblioteca Nacional Eram acusados de atuação no segundo levante, ocorrido em dezembro de 1910. Os advogados de defesa foram chamados pela Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, antiga agremiação criada por escravos alforriados e que se ca- João Cândido sai do carro-prisão para ser julgado no Conselho de Guerra. Abaixo: Charge de O Malho retrata o marinheiro como um bandido teger cativos na época da e Jerônimo José de Carvalho escravidão. Evaristo de Mo- aceitaram com entusiasmo a raes, Caio Monteiro de Barros causa e se recusaram a rece- O Malho/Fundação Biblioteca Nacional racterizou por abrigar e pro- ber qualquer honorário. João Cândido absolvido, ainda é vigiado por um guarda Monteiro de Barros, apontando a vingança executada pelo governo, chamou atenção para a situação de um dos presos, o grumete Al- Fundação Biblioteca Nacional fredo Maia: “(...) conta 16 anos; A vida de hoje A tualmente, apesar das conquistas e da promulgação em maio de 1990 do Estatuto da Criança e do Adolescente, a sociedade brasileira ainda precisa garantir a cidadania desses futuros cidadãos, combatendo a falta de escolarização, exploração sexual, violência e o trabalho infantil. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), 11% das crianças brasileiras são usadas como mão-de-obra nas cidades e no campo. João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos 39 de Andrade oteca Mário tícias / Bibli Gazeta de No Ao final do julgamento, veio com essa idade (...) essa crian- a sentença: absolvidos por ça, foi bárbara e impiedosa- unanimidade. Pela primeira mente encerrada em mas- vez desde que fora preso, Jo- morras terríveis, imundas, ão Cândido chorou, de emo- onde cumprem penas crimi- ção, enquanto os demais co- nosos da pior espécie”. memoravam efusivamente. A juventude está cada vez mais atenta aos problemas atuais da sociedade brasileira, como educação, meio ambiente, violência, trabalho e doenças sexualmente transmissíveis, dentre vários outros. E, mais que isso, envolvida e buscando formas de participar. As conclusões estão na pesquisa Adolescentes e jovens do Brasil: participação social e política, publicada pelo Unicef3, em 2007. Ao todo foram entrevistados 3.010 jovens, entre 15 e 19 anos, residentes nas capitais e interior de todas as regiões do país. Um grupo complementar formado por 210 jovens adolescentes indígenas de 15 municípios, também foi entrevistado para que se pudesse apontar as peculiaridades dessa população. A pesquisa deu continuidade ao estudo A Voz dos Adolescentes, lançado em 2002, pelo Unicef. A vida de hoje 40 Projeto Memória ˆ voce sabia que... Tem aumentado a mortalidade entre os jovens brasileiros de 15 a 29 anos, não-brancos, homens e pouco escolarizados? Isso ocorre principalmente pelo uso de armas de fogo e acidentes de trânsito entre os moradores das áreas mais pobres das grandes cidades. Os dados estão presentes no 15º Boletim de Políticas Sociais, publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em 21/05/08. (Acessado em http://www.ipea.gov.br/003/00301009.jsp?t tCD_CHAVE=4653) Parte III A longa vida de um homem do povo 5. UM PESCADOR ARTESANAL A o sair da prisão em 30 grama cheio de novidades e de dezembro de 1912, atrações.” Tratava-se do gru- João Cândido, sentindo o po circense do famoso palha- gosto da liberdade, teve notí- ço negro, Benjamim de Oli- cia ruim (embora não sur- veira, que empolgava e fazia preendente): acabava de ser rir as multidões. neiro, espalhou Benjamin Chaves (1870–1954), depois conhecido como Benjamin de Oliveira, nasceu em Pará de Minas, no estado de Minas Gerais? Escravo, como a mãe Leandra, fugiu com um circo aos 12 anos. É considerado o primeiro palhaço negro do Brasil e, segundo o pesquisador Brício de Abreu, o primeiro palhaço negro do mundo. Ao longo da vida atuou ainda como ator teatral, cantor, instrumentista, compositor e foi um dos principais atores do cinema brasileiro que surgia. Apresentava-se com o rosto pintado de branco. Sua trajetória de vida será enredo do carnaval da Escola de Samba São Clemente, do Rio de Janeiro, em 2009. cartazes pela ci- (Adaptado de http://www.acordacultura.org.br) excluído dos quadros da Um cineasta pioneiro no Marinha de Guerra do Brasil. Brasil, Alberto Botelho, este- Foi o último dia em que usou ve a bordo do encouraçado a farda. Surgia assim mais um Minas Gerais durante a Revol- trabalhador civil, desempre- ta da Chibata e captou ima- gado naquele momento. gens de João Cândido e de João Cândido, que outros marujos. Em janeiro de 1912, Ca re t lioteca Naci ona Menos de um mês ação Bib l d n Fu após ser solto, a / uma sala de ci- passara nema na rua por verdadei- Marechal Flo- ro círculo de riano, Centro horrores, presenciou do Rio de Ja- ex- pressiva homenagem, assim noticiada por O Paíz: “Circo Spinelli – Companhia ˆ voce sabia que... dade anunciando a João Cândido, que aqui lê a anistia concedida, é expulso da Marinha Eqüestre estréia de A vida de João Cândido, dirigido por Botelho. Mas Nacional da Capital Federal – o chefe da polícia, Belizário Grandiosa função em benefí- Távora, censurou a fita, proi- cio do ex-marinheiro nacional bindo a exibição e até apre- João Cândido com um pro- endendo os cartazes de pro- João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos 41 por dentro da história “Os circos chegavam em lombos de burro e carros de boi, de tempos em tempos, passavam pela minha aldeia, Pará de Minas (MG), naquele tempo não era mais que uma aldeia. E a única atração que existia para a imaginação das crianças eram precisamente aqueles circos que vinham de longe em longe, com palhaços que percorriam as estradas, de costas, em cavalos enfeitados, berrando: ‘Hoje tem espetáculo? Tem, sim sinhô! O palhaço, o que é? É ladrão de mulher!’” (Benjamim de Oliveira, depoimento para Brício de Abreu, Esses populares tão desconhecidos, Rio de Janeiro, Editora R. Carneiro, 1963) paganda. Esse material pas- Cândido morou na rua Ipi- sou décadas esquecido e, ranga, no então bucólico antes que o assunto voltasse bairro de Laranjeiras, Zona a chamar atenção, a única Sul carioca. Foi abrigado pe- cópia da película foi destruí- lo carpinteiro naval Freitas, da num incêndio na Filmo- que lhe ofereceu um quarto. teca do Museu de Arte Mo- Por essa época, o ex-marujo derna, São Paulo, em 1957. ainda conseguia emprego na Nos primeiros tempos de- Marinha Mercante e em bar- pois de sair da prisão, João cos particulares. Trabalhou ˆ voce sabia que... O cinema foi inventado pelos irmãos Auguste e Louis Lumière e a primeira sessão pública ocorreu em Paris, em 28 de dezembro de 1895? Cerca de seis meses depois já acontecia a exibição cinematográfica (chamado de cinematographo) inaugural no Brasil, por meio do projetor omniographo, no Salão Paris, rua do Ouvidor, Centro do Rio de Janeiro, em 8 de julho de 1896. Nas primeiras décadas o cinema era mudo, isto é, sem som – e as salas de exibição providenciavam música (ao vivo ou em gramofones) para acompanhar as imagens. A partir de 1927, começaram a ser feitos os “filmes falados”. O cinema tornou-se rapidamente um veículo de massas, perdendo uma parte do público com o advento da televisão nos anos 1950. “ Depois da revolta caí na penúria, no ódio. Quando houve a epidemia espanhola [que causou 50 milhões de mortes em todo o mundo], em 1919, estive a serviço dos navios ingleses que estavam aqui, no momento da limpeza, desinfecção, enterrando ingleses. “ João Cândido, em entrevista ao Correio da Manhã durante a rebelião em 1910 42 Projeto Memória Honestidade, a viga mestra de João Cândido. Apesar das necessidades que passava com a família, diante da dificuldade para conseguir trabalho, João Cândido, coerente com os princípios de liberdade e justiça que manteve ao longo da vida, prosseguiu buscando biscates e vendendo peixes na praça XV. Ele recusou convite para integrar os Cravos Vermelhos, apelido da polícia de repressão política na ditadura Vargas (1937–1945), perseguindo aqueles que eram contra o governo – conforme narrou ao jornalista Edmar Morel. M anifesto do Movimento dos Pescadores contra a Privatização do Mar e dos Rios “Não aceitamos o discurso de inviabilidade da pesca artesanal como argumento para legitimar um investimento maciço em aqüicultura de grande escala. De fato existe uma diminuição nos estoques pesqueiros nas áreas utilizadas pelos pescadores artesanais. Contudo, a pergunta que não quer calar é: porque estes estoques estão diminuindo? Identificamos como causas desta diminuição de pescado um modelo de desenvolvimento insustentável, que despreza a cultura das populações tradicionais, concentra renda e território, é marcado pelo racismo ambiental e desrespeita a legislação.” A vida de hoje (Fonte: MOPEBA, 1/8/2008 http://www.politicaspublicasbahia.org.br/spip.php?article176) sucessivamente em diversos pressão de oficiais da Marinha navios, voltando a percorrer sobre os patrões. A persegui- as águas. O trabalho excessi- ção continuava, implacável. vo e pesado na carga acabou Foi então que, em 1919, jun- por prejudicar sua saúde e tando o dinheiro que restava, teve que baixar hospital. Sem o líder da Revolta da Chibata esquecer que, de todos esses comprou o modesto caíque empregos, foi demitido por Três Marias para pescaperto dali, no mercado do cais Pharoux (Praça XV). Em condição de pobreza, mas perto dos elementos entre os quais ficava mais à vontade (cais, navios, marinheiros, o mar) e no meio de sua gente, viveu por quatro décadas, sem salário fixo e garantias sociais, como os demais pescadores pobres em todo o Brasil. Em 1930, às vésperas do Acervo Arquivo Nacional Retratos de uma vida movimento que levaria Getulio Após sua expulsão da Marinha, João Cândido trabalhou como pescador no cais Pharoux (Praça XV, no Rio de Janeiro) João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos 43 Após essa prisão extempo- voce sabia que... São João de Meriti, com 449.476 mil moradores (IBGE, 2000) é a cidade com mais habitantes por metro quadrado da América Latina? São 12.897,81 pessoas por km2. Localizada na região do Grande Rio e considerada “cidade dormitório”, fica na Baixada Fluminense (RJ), distante 20 km da capital do estado. rânea, João Cândido mudouse para São João de Meriti, na Baixada Fluminense – em busca de um local mais retirado para preservar a ele e seus filhos das perseguições, mas também por dificuldades financeiras, já que longe do Fundação Biblioteca Nacional ˆ Centro a moradia era mais barata. Passou a sair de casa por volta das 23 horas para Vargas ao poder, João Cân- pegar o trem da Central e dido foi detido pela polícia, encarar o batente no entre- acusado de conspirar com posto de pesca de madruga- os integrantes da Aliança Li- da, enfrentando a cada dia beral (formada por grupos uma longa e penosa trajetória que apoiavam a candidatura de ida e volta. Morava num Vargas). Tal acusação era in- local sem luz elétrica e calça- dos na sociedade brasileira, fundada, fruto da imagina- mento e não tinha assistência como: trabalhadores sem vín- ção de um delegado. Mas o de saúde constante. culo empregatício formal, João Cândido passou a sobreviver da pesca calejado marujo percebeu Deste modo, na vida do sem direitos trabalhistas e que estava por demais mar- ex-marujo, a batalha agora previdenciários, sistema de cado e qualquer pretexto era outra – semelhante a que transporte coletivo descon- seria válido para importuná- era (ainda é) encarada por fortável e demorado, falta de lo, 20 anos depois da Re- milhões de trabalhadores po- apoio sistemático à terceira volta da Chibata. bres. Desafios hoje enfrenta- idade, moradias urbanas nas periferias afastadas do local de trabalho, precariedade de A situação dos 400 mil pescadores artesanais no país ainda hoje é difícil, devido à baixa renda, pouca estabilidade, concorrência da pesca industrial de grande escala e degradação do meio ambiente. Em 2008 foi aprovado na Câmara dos Deputados projeto que concede direitos aos pescadores artesanais, como o de receber segurodesemprego nas temporadas de interdição de pesca para preservação de pescados. Também tais pescadores começam a receber títulos de cessão de uso das águas da União. A transformação da Secretaria da Pesca em Ministério, em 2008, aponta a preocupação do governo em tratar da questão e expressa as lutas dos pescadores artesanais. A vida de hoje saneamento (falta de energia elétrica regularizada, esgoto, água encanada e calçamento), ausência de atendimento de saúde adequado. Nessa luta cotidiana e anônima, o líder da Revolta da Chibata também mostrou fôlego, eficiência e capacidade de resis- 44 Projeto Memória tência. As formas de dominação e desigualdade que ele enfrentou na rebelião e na sobrevivência podem ter mudado, mas não desapareceram e em boa dose permanecem ainda hoje, apesar das conquistas e avanços de direitos humanos e garantias sociais. Mesmo depois da Revolta da Chibata, João Cândido não ficou totalmente afastado das lutas políticas. Durante o longo governo Vargas ˆ voce sabia que... O integralismo foi um movimento de inspiração fascista criado no Brasil sob a liderança do escritor Plínio Salgado, em 1932, por intermédio da Ação Integralista Brasileira (AIB)? Extinguiu-se após uma fracassada tentativa de golpe armado contra o governo Vargas seis anos depois. Calcula-se que chegou a contar entre seiscentos mil e um milhão de adeptos de variados segmentos sociais. Por dentro da história Aliança Nacional Libertadora (ANL) foi criada em janeiro de 1935 sob hegemonia do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Abrigava socialistas independentes, democratas, cristãos e nacionalistas de esquerda, além de variados setores sociais, chegando a (1930–1945), o ex-marujo te- ser um movimento de mas- ve contato com as principais sas de âmbito nacional, com participação em sindi- correntes políticas, mas optou catos, em associações civis, nitidamente por uma, o inte- estudantes e militares. Ti- gralismo. João Cândido en- nha um programa de refor- controu-se várias vezes com mas profundas na socieda- Plínio Salgado, o líder de, como reforma agrária e controle do capital estran- Plínio Salgado e a propaganda integralista geiro. Foi colocada na ilegalidade em julho e esteve à frente do fracassado levante de novembro do mesmo ano, sob a liderança máximo dessa ten- de Luiz Carlos Prestes. dência: vestiu a camisa verde que caracterizava o grupo, repetia a saudação “Anauê!” com o braço erguido. Tal opção de João Cândido era coerente com as- Luiz Carlos Prestes pectos de sua João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos 45 Na ponta da língua vida: seja pela formação tradicional militar e até militarista (que incluía a valorização de uma autoridade forte), seja pela presença massiva Fascismo... Regime político instaurado por Benito Mussolini na Itália, entre 1922 e 1943. Caracterizou-se pela ditadura e totalitarismo, onde há subordinação dos indivíduos aos interesses do Estado, que pretende ter poderes absolutos sobre a vida política, social, cultural, religiosa e econômica do país, com perseguição aos opositores. de integrantes da Marinha que o atraíam neste movimento (sobretudo oficiais, mas também marujos, além de soldados e operários). O líder da rebelião de 1910 participou, em 1º de novembro de 1937, da marcha integralista coordenada pelo escritor Nazismo... Regime político instaurado em 1934, na Alemanha, por Adolf Hitler. Além das características fascistas, prometia prosperidade ao povo alemão, a quem exaltava a superioridade diante dos demais povos. Defendia também o anti-semitismo (ódio aos judeus) e o racismo e foi responsável pela morte de milhões de pessoas, sobretudo nos campos de concentração. O que canta a história Gustavo Barroso, com cerca de 50 mil pessoas (inspirada Através do samba 2000 – Trabalhadores do Brasil: a época de Getulio Vargas, o Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela, do Rio de Janeiro, abordou o período em que Getulio Vargas esteve no poder. A censura, a industrialização, os trabalhadores e a era do rádio foram tratados pelos compositores. As contradições da paixão que despertou Getulio, também estão presentes na melodia. na Marcha sobre Roma comandada por Benito Mussolini). Acabou decepcionando-se pela “falta de iniciativa e coragem” dos líderes integralistas e pela predominância de oficiais entre eles. Na Comunismo... O comunismo tem várias tendências e definições, mas pode ser compreendido por um conjunto de propostas sociais, políticas e econômicas para a implantação de uma sociedade sem classes sociais. Indústrias, terras e meios de produção deixariam de ser privados – ter um dono –, transformando-se em bens públicos. No campo político, o comunismo defende, como objetivo final, a ausência do Estado. Entretanto, as sociedades que se organizaram baseadas nessa ideologia, no século XX, caracterizaram-se por ter um Estado forte. 46 Projeto Memória verdade, João Cândido teve atuação periférica nestes episódios. Antes de aderir ao integralismo, João Cândido chegou a freqüentar de modo esparso a Aliança Nacional Libertadora, apenas assistindo a alguns comícios. Guardou, sobretudo, a ligação com Octávio Brandão, um dos principais teóricos marMarcha integralista, em 1937, reúne cerca de 50 mil pessoas xistas da época, que escreveu sobre a Revolta da Chi- romper a produção. E seria por esse motivo que colocou na porta da redação do jornal a placa: “Entre sem bater”. Fora da Marinha, João Cândido buscou estruturar família. Foi casado três vezes e ficou viúvo nos dois primeiFundação Biblioteca Nacional ros matrimônios (com Marieta e Maria Dolores). Teve 11 filhos, dos quais dois são vivos e moram no Rio de Janeiro, Arnaldo e Adalberto (Candinho), ambos da terceira esposa, Ana do NasciJoão Cândido com filhos e sua terceira esposa, Ana do Nascimento, em São João de Meriti, RJ. mento. Ela foi a mais longa ligação afetiva do marujo: foram casados durante 39 bata em seu livro O Caminho do A insurreição dos mari- (1950). No campo das es- nheiros de 1910, valorizando Durante muitas décadas querdas surgiram outras ini- a atitude dos rebeldes. O não era fácil escrever sobre ciativas de se escrever a his- humorista foi seqüestrado e João Cândido. Alguns jornais tória da rebelião dos ma- espancado por oficiais da e revistas publicavam de vez rujos. O médico Adão Pe- Marinha, tendo que inter- em quando matérias sobre anos, até o falecimento dele. reira Nunes, militante comunista, publicou clandestino, sob pseudônimo de Benedito de Paulo, o livreto A revolta de João Cândido, em 1934, apreendido pela polícia. Ainda em 1934, no mês de outubro, o humorista Aparício Torelly, conhecido por Barão de Itararé, publica em PERSEGUIÇÃO Hélio Silva: Nos arquivos da Marinha não consta absolutamente o nome de João Cândido, como se ele não tivesse existido. João Cândido: Foi sonegado, foi sonegado mesmo. HS: Mas pelo fato da sua exclusão ou por um outro fato? JC: Pelo fato de haver tomado a posição que tomara na revolta, pelo ódio. Muitos oficiais da Marinha não conseguiram comandar o Minas Geraes, e eu tive o sobejo poder de dominálo, fazer o que ele jamais faria na baía do Rio de Janeiro. seu jornal de orientação comunista, Folha do Povo, uma série de pelo menos dez ca- (Revista de História da Biblioteca Nacional – 01/04/06. Trecho de entrevista com João Cândido feita em 1968. http://www.revistadehistoria.com.br/v2/home/?go=detalhe&id=962&pagina=4) pítulos do folhetim intitula- João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos 47 ele. Porém, o ex-marujo saíra Por dentro da história de evidência e vivia na pobreza e no ostracismo: as décadas iam passando e a O Almanhaque – O gaúcho oficiais da Marinha contra Aparício Torelly (1895–1871) quem escrevesse ou valori- foi um dos mais famosos e zasse o tema criou um véu de combativos humoristas do silêncio em torno do persona- Brasil no século XX. Publi- gem. Mesmo que presentes na constante perseguição de cou em 1949 e 1955 o seu Almanhaque (almanaque da manha, sátira a essas memória coletiva de setores da população, as lembranças tradicionais publicações) iam se diluindo. Salvo alguns que se apresentava com o marinheiros, jornalistas, mili- patrocínio da Sociedade tantes políticos e amigos pes- Gráfica Ltda., cuja abrevia- soais, poucas pessoas ainda ção era SOGRA. O material foi escrito, segundo o autor, “sob a carinhosa e permanente vigilância das lembrariam de seus feitos, praticamente desconhecidos das novas gerações. exmas. autoridades federais e internacionais da or- O adeus a velhos amigos dem política e social”. Entre De seus companheiros de seus “títulos” militares esta- revolta, que jamais o aban- va o de Marechal, Almirante e Brigadeiro do Ar-Condicionado. O Barão de Itararé donaram, despediu-se em 1946, quando faleceu Fran- (a batalha que não houve, cisco Dias Martins e, em no Movimento de 1930) 1954, de Marcelino Rodri- definia a ditadura varguista gues, o das 250 chibatadas. do Estado Novo como “o Em 1953, foi a hora de despe- estado a que chegamos”. dir-se do encouraçado Minas Gerais. João Cândido soube pelos jornais que, depois de 43 anos e algumas reformas, seria vendido como sucata, já despojado de todos os seus equipamentos. Sobre o adeus, contou o jornalista Aor Ribeiro: numa 48 Projeto Memória ˆ voce sabia que... João Belchior Marques Goulart, conhecido como Jango, nasceu em 1919 no Rio Grande do Sul, e foi o único presidente brasileiro a morrer no exílio, em 1976, no Uruguai, impedido de retornar ao Brasil? Com a renúncia de Jânio Quadros, Goulart, que era vicepresidente, assumiu o governo em 1961. Em janeiro de 1964, Jango assinou lei que limitava a remessa dos lucros das empresas estrangeiras para fora do país. Em 13 de março, participou de um comício que reuniu 200 mil pessoas na Central do Brasil, em frente ao então ministério da Guerra, no Rio de Janeiro. Na ocasião anunciou medidas para iniciar a reforma agrária, desagradando os grandes proprietários de terras, além de anunciar a estatização das refinarias de petróleo. Em 31 de março de 1964, por meio de um golpe de Estado, grupos civis e militares depuseram o governo eleito e assumiram o comando do país. A ditadura civil militar durou de 1964 a 1985: foi implantada a censura aos meios de comunicação e muitos brasileiros resultaram como perseguidos, exilados, presos e mortos. As eleições diretas para presidente só foram restabelecidas em 1989. Retratos de uma vida Fundação Biblioteca Nacional A luta pelos direitos de cidadão acompanhou João Cândido por toda a vida. Certa vez comprou um coco na quitanda e ao chegar em casa percebeu que estava estragado. Voltou para trocá-lo, o que foi recusado pelo dono do estabelecimento. Inconformado, avisou que ia à delegacia reclamar e dirigiu-se ao ponto para pegar um ônibus. Foi então atendido e conseguiu trocar o artigo. Naquela época, João Cândido não podia contar com o Código de Defesa do Consumidor, aprovado em 1990. Atualmente, em todos os estados existe o Procon, órgão responsável pela coordenação e execução da política de proteção, amparo e defesa do consumidor. Primeira edição de A Revolta da Chibata Acervo Marco M orel Edmar Morel e João Cândido autografam A Revolta da Chibata para gráficos e trabalhadores que produziram o livro sou por algumas mudanças. madrugada de março, sur- O tema, abafado durante dé- preendeu João Cândido su- cadas, causava inquietação e bindo em um pequeno bar- curiosidade – e o autor, Edmar co, no cais do mercado e Morel, era jornalista conheci- rumando para o ancoradouro do, com o nome presente onde estava parado o antigo Homenagens em vida desde a década anterior nos gigante. Beijou orgulhosa- Com a publicação do livro A principais meios de comuni- mente o casco enferrujado e Revolta da Chibata, Editora cação. Daí que centenas de não conteve as lágrimas en- Irmãos Pongetti, em 1959, a notícias e críticas literárias quanto o acariciava. vida de João Cândido pas- saíram em jornais e revistas João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos 49 de todo o país, colocando o ex-marujo no foco das atenções, algo que só havia ocorrido na época da rebelião, quase meio século antes. A segunda edição de A Revolta da Chibata foi lançada em 1963, em pleno governo João Goulart. Entre 1958 e 1964, o Brasil viveu clima de liberdade democrática que possibilitou a ampliação de manifestações em vários seFundação Biblioteca Nacional tores da sociedade. João Cândido, que continuava a vender peixes na praça XV, recebera diversas vezes Edmar Morel, prestara depoimentos e esclarecimentos. Agora o Almirante Negro considerava o livro como “minha história” e literalmente assinou embaixo, partici- Edmar Morel e João Cândido autografam a 2 a edição de A Revolta da Chibata, no IV Festival do Escritor Brasileiro. Abaixo à esquerda, João Cândido, ao lado de seu filho Adalberto Nascimento Cândido (Candinho), faz sua única viagem aérea para receber uma homenagem O ministério da Previdência Social lançou em abril de 2008 a cartilha Idoso – Cidadão Brasileiro: informações sobre serviços e direitos – Destinada aos aposentados com mais de 60 anos, apresenta os serviços e políticas do governo voltados à terceira idade. Como João Cândido, (ainda que por razões diferentes) muitos brasileiros ainda envelhecem sem direito à aposentadoria. E muitos trabalharam duro a vida inteira. Entretanto, por atuarem por conta própria, ou não terem sido registrados pelos patrões, acabaram ficando excluídos. A situação começou a mudar a partir da Constituição de 1988, quando todos, da cidade e do campo, acima de 65 anos e que não tinham nenhuma fonte de aposentadoria, passaram a ter direito a receber mensalmente do governo federal um salário mínimo, por intermédio do Benefício de Prestação Continuada de Assistência Social (BPC). Para mais informações sobre a Cartilha do Idoso e aposentadorias, o governo federal disponibiliza o telefone 135 ou o site www.previdencia.gov.br. Acervo Arquivo Nacional A vida de hoje 50 Projeto Memória por dentro da história A censura prévia esteve imposta a todos os jornais, rádios, estações de tevê, bem como ao teatro, música e cinema, até 1977. onde foi recebido pelo prefeito, vereadores e autoridades locais, o mesmo ocorrendo em Cachoeira do Sul. A Assem- Deste ano até o fim da ditadura em 1985, ainda vigorou a perse- bléia Legislativa gaúcha con- guição (oficial ou oficiosa) às expressões culturais, cujos autores cedeu-lhe pensão de um salá- ou produtores poderiam sofrer processo e prisão. Sem contar os rio mínimo, com apoio do en- atentados à bomba praticados por grupos paramilitares contra tão governador Leonel Brizola entidades políticas e culturais (como Associação Brasileira de (PTB) que, entretanto, cance- Imprensa –(ABI) e Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e contra bancas de jornais entre fins dos anos 1970 e início dos 1980. lou o encontro que teria com o marujo, em virtude dos protestos de oficiais da Marinha. veu pernoitar perto dali, no grafos junto com o autor. Na Centro da cidade: passou por noite de autógrafos dessa dez hotéis e em todos foi re- edição, no IV Festival do Es- cusado, sob pretexto de falta critor Brasileiro, o velho ma- de vaga. O impiedoso racis- rujo foi cumprimentado por mo continuava presente na escritores como Jorge Ama- sociedade brasileira. Depois do, Clarice Lispector, Vinicius das tentativas, foi aceito no de Morais, Rubem Braga e pequeno Hotel Globo, na rua Manuel Bandeira. Riachuelo. Na mesma noite, quando Entre as homenagens que autografava livros, o líder da recebeu, o marujo gaúcho foi Revolta da Chibata viu che- ao Rio Grande do Sul, em sua gar um grupo barulhento e única viagem aérea, para uma empolgado de jovens mari- sessão promovida pela Socie- nheiros fardados que, can- dade Floresta Aurora. Na oca- tando o Cisne Branco, joga- sião, retornou a Rio Pardo Logo a seguir, o governador Alberto Ferreira/CPDOC JB pando de sessões de autó- ram os gorros para o alto gritando o seu nome. Mesmo voltando a ser reconhecido por sua história, João Cândido não estava livre de sentir na pele o preconceito. Como a noite de autógrafos em 1963 foi até tarde, o velho marujo resol- João Cândido passou os últimos anos de sua vida em sua casa, em São João de Meriti João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos 51 A vida de hoje Quantos são os leitores no Brasil? O hábito de leitura João Cândido, pobre, perse- É comum a referência ao pouco hábito de leitura no Brasil. Existem dados diferentes sobre o assunto. Para a Câmara Brasileira do Livro (CBL), cada brasileiro lia em média 1,8 livros por ano em 2007. Quantidade considerada baixa para a média de outras localidades: cinco livros por habitante nos EUA e, de cinco a oito na Europa, variando em cada país. Dos 189 milhões de brasileiros, 26 milhões (14%) são considerados leitores ativos (mais de três títulos por ano), sobrando, portanto, 163 milhões (86%) sem esse hábito. Já a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil – encomendada ao Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (IBOPE) pelo Instituto Pró-Livro do Ministério da Cultura (MINC) em 2008 – chegou à conclusão de que o brasileiro lê, em média, 4,7 livros por ano. Segundo esses dados, 55 % da população são leitores, enquanto 45 % foram classificados como não-leitores. Porém, ambas as pesquisas apontam que a leitura vem aumentando no Brasil, em comparação a levantamentos anteriores. guido e filho de escravos numa sociedade desigual, sempre demonstrou interesse pela leitura. Era leitor ávido e atento: sabia escrever, falava bem espanhol e grego, além de ter noções de inglês e francês. O escritor João do Rio, depois de entrevistá-lo, ficou bem impressionado: “É um homem imensamente inteligente, com João Cândio lê à luz do lampião do estado do Rio de Janeiro, Roberto Silveira (PTB), recebeu João Cândido e entregoulhe um auxílio financeiro para que pudesse terminar a construção de sua nova casa, em Coelho da Rocha, também em São João de Meriti. Em 1959, ao completar 79 anos de idade (dos quais 40 como pescador artesanal), com os filhos criados, João Cândido enfim parou de trabalhar e desejou passar os últimos anos usufruindo de sua ta, ainda que no alto de um barranco, sem calçamento e luz elétrica. Foi procurado por emissoras de televisão: concedeu entrevistas e compareceu aos estúdios de gravação. 52 Projeto Memória Fundação Biblioteca Nacional modesta casa que ficara pron- uma inteligência muito supe- veu bilhetes e cartas e não cionando-se a respeito. Esteve rior à de vários sujeitos que consta que tenha pedido na redação da Gazeta de passam por notabilidade”. ajuda para tal. Notícias, em 1913, para fazer Quanto à leitura, as referên- uma correção na publicação cias são numerosas: desde a de suas memórias, do mesmo como iletrado: sem instrução, foto em que aparece lendo o modo que em entrevista ao analfabeto, semi-analfabeto, decreto de anistia no Diário jornal O Dia, em 1959, criticaria entre outros. Seja por seus Oficial, durante a revolta, às com clareza autores como adversários, do ponto de vis- anotações de sua ficha no Vivaldo Coaracy e o almirante ta conservador, para desqua- Hospital dos Alienados sobre a Luis Autran de Alencastro lificá-lo, seja, ao contrário, leitura diária de três jornais, Graça que investiam contra por seus admiradores para hábito, aliás, que manteria nos ele. Anote-se, ainda, que ne- valorizar a autenticidade de últimos anos de vida, quando nhum de seus filhos ficou sem sua condição popular. lia diariamente, na Baixada alfabetização, como assinalou Fluminense, a filha Zeelândia. As supostas provas de seu o Correio da analfabetismo são discutíveis. Manhã. Em sua mesa de cabe- O fato de ser negro no perío- ceira sempre havia livros, em do Pós-Abolição não o colo- geral emprestados por ami- ca automaticamente na con- gos: romances policiais, a dição de analfabeto, o que Bíblia e obras do nacionalismo. seria repetição de surrados João Cândido sabia de tudo preconceitos. Sua dificuldade que se escrevia sobre ele, posi- Alberto Ferreira/CPDOC JB Surgiram referências ao líder da Revolta da Chibata na escrita se explica pela amputação da falangeta de seu dedo indicador direito, durante o serviço na Marinha. O jornalista Edmar Morel testemunhou que a caligrafia do marujo era ruim e que o trauma no dedo o atrapalhava. Mas ainda assim, João Cândido participou ao lado do escritor de várias noites de lançamento e um de seus autógrafos está guardado na Fundação Biblioteca Nacional (RJ). Há muitos registros de que João Cândido escre- Até o fim de sua vida, João Cândido dedicou-se à leitura. Na imagem, detalhe da cômoda em seu quarto, com livros e jornais João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos 53 “ Estou no fim da vida. Pobre e doente. Mas repetiria tudo que fiz, se a Marinha, mais uma vez, precisasse de mim. “ João Cândido em entrevista ao jornal O Dia, 21/12/1958 Ditadura rima com censura gularmente os cultos na Igreja hábito de fumar, levaram o ex- Metodista do Brasil, em São marujo a ser internado às pres- Com a ditadura civil-militar João de Meriti. Em sua mesa sas num precário hospital pú- implantada a partir de 1964, o de cabeceira acumulavam-se blico. Diagnosticaram câncer nome de João Cândido não fi- livros, papéis, recortes de jor- em estado avançado e, nesta cou mais em evidência, ao nais e outros materiais que ele mesma noite, 6 de dezembro contrário, era perigoso men- constantemente lia. de 1969, falecia o líder da Re- cioná-lo. Tanto que ele conce- Os pulmões, enfraquecidos volta da Chibata, aos 89 anos. deria de forma clandestina o pela antiga tuberculose e pelo Ainda assim, não deixaram seu depoimento ao Museu da corpo em paz. Apesar de ser Imagem e do Som, em uma típica “morte de causa 1968. Edmar Morel natural”, enviaram-no para teve seus direitos autópsia. A morte foi noticiada políticos cassados e nos principais jornais, mas ao não pode mais so- enterro compareceram poucas breviver da profissão pessoas. Vivia-se um dos pe- de jornalista devido, sobretudo, à perseguição de oficiais da Marinha. Últimos momentos Sempre morando na casa nada e com uma varanda onde gostava de ficar), em rua de terra batida, cercado de filhos e netos, o líder da Revolta da Chibata tornou-se evangélico e freqüentava re- 54 Projeto Memória João Cândido em sua casa, em São João de Meriti. Albert o Ferr eira/C PDOC JB nova (arejada, limpa, orde- Acervo Marco Morel torrencialmente; no céu, espo- Almirante Negro, por Aurora, cavam relâmpagos, a lama do esposa de Edmar Morel, foram cemitério grudava nos sapa- carregadas pelo temporal. Um tos, as águas encharcavam a grupo de policiais à paisana todos. As chuvas do verão ca- vigiava o local e fotografava rioca, que ainda hoje paralisam ostensivamente os presentes. a cidade, acentuavam a deso- O autor do livro A Revolta da lação do momento. As únicas Chibata pronunciou apenas flores levadas no enterro do uma frase à beira do túmulo: “Adeus, João Cândido, você Edmar Morel, biógrafo de João Cândido dignificou a espécie humana”. “ Em meio de todas as tristezas de sua vida humilde e trabalhosa, das perseguições e dos tormentos que passou, teve João Cândido pelo menos o consolo de uma longa vida, que lhe permitiu, já octogenário, ver que há no Brasil de hoje quem o veja com outros olhos, com alguma simpatia e compreensão. “ Historiador, jornalista e teatrólogo Raimundo Magalhães Jr., em artigo no Diário Carioca, 13/9/1963 ríodos mais violentos da ditadura, com perseguições, prisões e assassinatos. O medo pairava no ar. No sepultamento estavam apenas familiares, o pastor Lucas Manzon da Igreja Metodista e um pequeno grupo de jornalis- Arquivo/Agência O Dia tas dirigentes da ABI. Chovia À frente, segurando o caixão, o filho caçula Adalberto Cândido e o jornalista Gumercindo Cabral (de paletó) e, atrás deste, parcialmente encoberto, Edmar Morel João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos 55 O que canta a história Os compositores João Bosco e Aldir Blanc transformaram em música, em 1975, a saga de João Cândido e companheiros da Revolta da Chibata. Cantada por Elis Regina, a letra sofreu várias modificações impostas pela censura, o que não impediu que a canção fizesse grande sucesso, até hoje. Comparando as duas letras, percebemos as mudanças sofridas: O Almirante Negro (Letra original antes da censura) João Bosco e Aldir Blanc Há muito tempo nas águas da Guanabara O dragão do mar reapareceu Na figura de um bravo marinheiro A quem a história não esqueceu Conhecido como almirante negro Tinha a dignidade de um mestre-sala E ao acenar pelo mar, na alegria das regatas Foi saudado no porto Pelas mocinhas francesas Jovens polacas e por batalhões de mulatas Rubras cascatas Jorravam das costas dos negros Entre cantos e chibatas Inundando o coração De toda tripulação Que a exemplo do marinheiro gritava: não! Glória aos piratas, às mulatas, às sereias! Glória à farofa, à cachaça, às baleias! Glória a todas as lutas inglórias Que através da nossa História .........................................Não esquecemos jamais... Salve o almirante negro Que tem por monumento As pedras pisadas do cais (Mas, salve ...) Salve o almirante negro Que tem por monumento As pedras pisadas do cais! 56 Projeto Memória O Mestre-Sala dos Mares (letra censurada e divulgada) João Bosco e Aldir Blanc Há muito tempo nas águas da Guanabara O dragão do mar reapareceu Na figura de um bravo feiticeiro A quem a história não esqueceu Conhecido como navegante negro Tinha a dignidade de um mestre-sala E ao acenar pelo mar, na alegria das regatas Foi saudado no porto Pelas mocinhas francesas Jovens polacas e por batalhões de mulatas Rubras cascatas Jorravam das costas dos santos Entre cantos e chibatas Inundando o coração Do pessoal do porão Que a exemplo do feiticeiro gritava, então: Glória aos piratas, às mulatas, às sereias! Glória à farofa, à cachaça, às baleias! Glória a todas as lutas inglórias Que através da nossa História .........................................Não esquecemos jamais... Salve o navegante negro Que tem por monumento As pedras pisadas do cais (Mas, salve ...) Salve o navegante negro Que tem por monumento As pedras pisadas do cais 6. JOÃO CÂNDIDO VIVE NAS MEMÓRIAS A memória de João Cândido se mantém viva e palpitante. Aproximando-se o centenário da Revolta da Chibata (2010), ampliam-se o interesse e as manifestações de pessoas e grupos que reconhecem, na figura dele, a Acervo Adalberto Cândido imagem de suas próprias lutas e esperanças. Ele tornouse um típico herói da plebe, esquecido, atacado ou questionado por grupos mais conservadores e admirado pelos movimentos sociais e outros setores da sociedade que der da Revolta da Chibata. buscam um país mais justo. Seu rosto aparece reproduzi- João Cândido recebe título post mortem de cidadão honorário de São João de Meriti Relembrar João Cândido do em faixas, camisetas, li- hoje significa compreender vros, agendas e pôsteres. que seus gestos trazem à Uma exposição de fotos so- desses movimentos e da Se- tona problemas ainda inquie- bre a Revolta da Chibata foi cretaria Municipal de Cultura tantes para a sociedade bra- organizada por integrantes do Rio de Janeiro, no saguão sileira, como o racismo, a desigualdade social, a violência cotidiana do Estado sobre as camadas pobres da população e a democratização das Forças Armadas – sem esquecer o mito de que existe uma tradição ordeira e pacífica na história do Brasil. Movimentos contra a desigualdade racial e em defesa da consciência negra fazem C erca de mil marinheiros expulsos da corporação, presos ou perseguidos durante a ditadura civilmilitar (1964–1985), organizados em duas entidades, consideram João Cândido como Patrono dos Marinheiros do Brasil. A Unidade de Mobilização Nacional pela Anistia (UMNA, criada em 1983) e o Movimento Democrático pela Anistia e Cidadania (MODAC, criado em 2002 por ex-integrantes da UMNA), ao mesmo tempo em que lutam para conseguir os direitos de seus associados a uma reparação justa pelas arbitrariedades que sofreram, fazem o mesmo em relação a João Cândido e sua memória. Promovem diversos atos nesse sentido, sendo os principais responsáveis pela inauguração da estátua do marujo nos jardins do Palácio do Catete. Alguns integrantes dessas associações conheceram pessoalmente João Cândido e o homenagearam em vida. A vida de hoje constantes referências ao lí- João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos 57 da Central do Brasil, em 1989. Atualmente existe o movimento Conexão Zumbi – João Cândido. Em 20 de novembro de 2005 ocorreu uma marcha com 10 mil participantes em Brasília, ocasião em que Zeelândia Cândido, filha do marujo, foi recebida pelo Presidente da República, A pesar de superado o sistema escravista, existem permanências de longa duração. Uma delas é o chamado trabalho escravo, que ainda aprisiona milhares de brasileiros em condições desumanas, sem liberdade de locomoção, sem direitos trabalhistas e remuneração. O Plano Nacional Para Erradicação do Trabalho Escravo, coordenado pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos, em ação conjunta com outros órgãos (Polícia Federal, ministérios da Saúde e do Meio Ambiente, autoridades estaduais e entidades da sociedade civil, como a Comissão Pastoral da Terra), tem resultado em medidas nesse sentido, como a elaboração de um Cadastro de Proprietários (“lista suja”) e a proibição de crédito oficial para os condenados por tal crime. A vida de hoje Luiz Inácio Lula da Silva. “ João Cândido existiu e seu nome jamais sairá da história do Brasil. “ Crônica de Rubem Braga, Diário de Notícias, 23/12/1958 Ainda criança, ao sair do meio rural em busca de melhores condições de vida após a Abolição, seguindo os pais libertos, João Cândido faria um movimento de migração ainda hoje repetido por milhares de famílias pobres. A questão agrária está nas origens de vários desafios da sociedade brasileira atual, que dizem respeito não só ao campo, mas às cidades. Uma estátua-monumento Acervo Adalberto Cândido de João Cândido, com três metros de altura, foi inaugu- Uma estátua de três metros de altura homenageia o Almirante Negro, no Museu da República (Rio de Janeiro) 58 Projeto Memória rada nos jardins do Museu da toridades tramaram a san- Entre as homenagens pós- República (Palácio do Catete, grenta repressão ao movi- tumas, João Cândido mere- Rio de Janeiro) em 22 de mento. O líder da Revolta da ceu o título de Cidadão Ca- novembro de 2007. De costas Chibata não tem mais por rioca em 1984. Confirmava-se para o palácio que abrigava a monumento apenas “as pe- o tributo daquela que ele sede do poder central, a está- dras pisadas do cais”, como considerava sua “cidade má- tua de João Cândido está na música O Mestre-Sala dos tria” e na qual viveu e freqüen- voltada para o mar. Ele agora Mares. Um busto de marujo tou durante 74 anos. Já não ocupa lugar destacado no es- também foi erguido em Porto era mais a capital federal dos paço onde o marechal Her- Alegre, no ano de 2001, no palacetes e cortiços que ele mes da Fonseca e outras au- Parque da Marinha. poupou do bombardeio em “ Ninguém mais do que esse lutador negro mostrou aos brasileiros que todos os sacrifícios se justificam no combate pela dignidade básica do homem: o direito inalienável de ser respeitado. “ Escritor e crítico literário Antonio Candido, no prefácio do livro João Cândido do Brasil – A Revolta da Chibata, Teatro Popular União e Olho Vivo Acervo Adalberto Cândido P osse da terra. A concentração da propriedade fundiária, herdada dos tempos coloniais e com perfil modificado em diversas conjunturas, permanece em doses altas: 1,6% dos proprietários controlam 47% das terras do país, segundo dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). As grandes propriedades (área superior a 2 mil hectares) são responsáveis por apenas 2,5% dos empregos gerados no campo. Daí resultam em torno de 4 milhões de famílias de trabalhadores sem-terra no Brasil, de acordo com dados oficiais do 2º Plano Nacional de Reforma Agrária (2003). Até início de 2008, o governo federal informou que existiam 824.483 famílias assentadas. Portanto, mais de 3 milhões de famílias pobres rurais ainda aguardam pela terra prometida. Pelos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), existem 120 milhões de hectares de terras improdutivas e mais 130 milhões de hectares de terras devolutas. Diante desse quadro, surgem iniciativas como os movimentos de trabalhadores sem-terra, que buscam soluções para o problema. A vida de hoje Busto de João Cândido inaugurado em Porto Alegre João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos 59 1910, mas ainda guardava do exibições nas ruas, praças, lembranças e traços da pre- periferias e, também, em sin- sença do gaúcho que chega- dicatos, associações de mo- ra aos 14 anos, sozinho, para radores e movimentos so- ser grumete. Também São ciais, além dos teatros con- João de Meriti, onde o maru- vencionais. Os integrantes jo morou por quatro décadas, concedeu-lhe o mesmo título. Nas telas e palcos Ainda não existe um filme de longa-metragem sobre a Revolta da Chibata, mas três curtas já circularam em salas de exibições: o documentário/ficção João Cândido, um Almirante Negro, 1987; João Cândido e a Revolta das Chibatas, 2004, documentário; Memórias da Chibata, de 2005, ficção. No teatro, o Grupo Mambembe, de Minas Gerais, encenou em vários estados, durante a ditadura (em 1983), a peça musical A Revolta da Chibata. E, desde 2001, o grupo Teatro União e Olho Vivo (TUOV), de São Paulo, já fez mais de mil apresentações de Revolta da Chibata em muitas partes do país. O União e Olho Vivo tem quatro décadas de experiência em apresentar teatro para populações que não estão acostumadas a freqüentá-lo, fazen- 60 Projeto Memória João Cândido e a Revolta da Chibata foram tema de inúmeras publicações. Acervo Adalberto Cândido João Cândido do Brasil – a C hico Mendes, por sua atuação ao lado de outros seringueiros e, também, com os índios, tornouse um símbolo mundial na mobilização em favor da justiça social, preservação do meio ambiente e defesa da Amazônia? O conflito entre as propostas e lutas de Chico Mendes e os interesses dos que defendem a devastação das florestas (e expulsão de povos que nela habitam) causou seu assassinado no Acre em 1988. Acervo Adalberto Cândido A vida de hoje reitos dos cidadãos torturados durante a ditadura civilmilitar de 1964 e para denunciar e investigar os crimes praticados no período pelas forças repressivas, como os “desaparecidos” políticos e, ainda, para lutar Acervo Adalberto Cândido Grupo Teatro Olho Vivo: mais de mil apresentações sobre João Cândido e a Revolt a da Chibata. pela defesa dos Direitos Humanos na atualidade. desse grupo cênico verificam Duas escolas de samba já que muitas das pessoas que desfilaram na avenida usando assistem à peça nunca ti- a Revolta da Chibata e João nham visto uma apresenta- Cândido como temas: a Uni- ção teatral antes. ão da Ilha (RJ), em 1985, com O Grupo tortura Nunca Mais fez homenagem post mortem ao líder da Revolta da Chibata, por meio da Medalha Chico Mendes de Resistência O líder da Revolta da Chi- o enredo descaracterizado bata mereceu, em 2006, ou- por pressão de oficiais da tra homenagem póstuma: a Marinha, embora exibisse um Medalha Chico Mendes de carro alegórico com enorme Resistência, do Grupo Tortu- busto de João Cândido, não Camisa Verde e Branco (SP), ra Nunca Mais, entidade citava seu nome nem uma no Carnaval de 2003, desfilou criada para garantir os di- vez no samba; já a escola com enredo mais claro: A revolta da chibata. Sonho, coragem e bravura. Minha His- A vida de hoje Nome de escolas E tória: João Cândido, um so- m São João de Meriti, onde o líder da rebelião de 1910 morou durante 39 anos, foi inaugurada uma escola CIEP (Centro Integrado de Educação) com o nome de Marinheiro João Cândido. Há também a Escola Marinheiro João Cândido, no bairro de Santa Cruz, município do Rio de Janeiro. nho de liberdade. Em ambos os casos, milhões de brasileiros puderam assistir, ao vivo ou pela televisão, a saga dos marujos de 1910. João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos 61 Também nas vozes da poesia de cordel a vida e o nome de João Cândido se perpetuam. No Brasil de antigamente Vivia-se a lei do cão O negro pobre não tinha Direitos de cidadão Privilégios não teria Conceito ou cidadania Liberdade ou posição... A vida de hoje Anistia. Os marujos lutaram pela justiça A anistia póstuma a João Cândido e aos demais marinheiros da Revolta da Chibata foi sancionada (Lei 11.756) pelo Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, em 23 de julho de 2008, no Palácio do Planalto. Em nota oficial, a presidência da República afirmou “reconhecer os valores de justiça e igualdade pelos quais lutaram os revoltosos”. O projeto, de autoria da senadora Marina Silva (PT/AC) e do ex-deputado Marcos Afonso (PT/AC), fora aprovado no Senado por unanimidade e, também da mesma forma, na Câmara dos Deputados, em 13 de maio de 2008, data dos 120 anos da Abolição da escravatura. Não houve qualquer crítica ou restrição da parte de representantes de todos os partidos. Aprovado pelo Senado também de modo unânime, ainda tramita na Câmara projeto do senador Paulo Paim (PT/RS) que inscreve o nome de João Cândido no Livro dos Heróis da Pátria. E hoje só recordação Deste herói negro ficou Que a lei seca da chibata Junto à marinha acabou Os seus feitos e sua história Todos guardamos em memória A tua fibra e valor (Trecho do cordel A Revolta A vida de hoje Alunos que não sabem ler O Brasil ainda tem 2,4 milhões de analfabetos com idade entre 14 e 17 anos em 2008, dos quais 2,1 milhões (87%) freqüentavam a escola no ano anterior. Ou seja, estudantes que não sabem ler e escrever. Os dados são do IBGE (Síntese de Indicadores Sociais). Constata-se também que entre os jovens de 21 anos, 8% dos negros estão nas universidades, cifra que corresponde a 24% entre os brancos da mesma idade. da Chibata, de Jota Rodrigues) De lá para cá muito cresceu a consciência dos direitos humanos, fazendo com que um homem não possa prevalecerse de sua posição superior para se tornar senhor e amo de seu subordinado. Afinal, já escreveu Nietzsche que a revolta é a nobreza do escravo, por isso mesmo, sendo legítima e justa a repulsa contra a tirania e os abusos do poder. “ “ Jurista e sociólogo Evaristo de Moraes Filho, da Academia Brasileira de Letras, no prefácio ao livro de Edmar Morel, A Revolta da Chibata 62 Projeto Memória ALMEIDA, Sílvia Capanema P. LOPES, Moacir C. O Almirante de. O Almirante Negro: glória a Negro: revolta da chibata, a vin- uma luta inglória. História Viva, gança. Rio de Janeiro: Quartet, ano II, n. 27, Duetto Editorial, p. 2000. Fundação Biblioteca Nacional Bibliografia básica 74–80, janeiro 2006. Museu da Imagem e do Som ARlAS NETO, José Miguel. Em (MIS), João Cândido, o Almirante Busca da Cidadania: praças da Negro. Rio de Janeiro: Gryphus, Armada Nacional 1867–1910. Tese 1999. de Doutorado. Departamento de História, Faculdade de Filosofia, MAESTRI, Mário. Cisnes Negros: Letras e Ciências Humanas, uma história da revolta da chiba- Universidade de São Paulo, ta. São Paulo: Moderna, 2000. 2001. NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. Do Convés ao Porto: a experiência dos marinheiros e a revolta MARTINS, Hélio Leôncio. A CARVALHO, José Murilo de. Os Revolta dos Marinheiros: 1910, Bordados de João Cândido, em São Paulo: Editora Nacional; Rio Pontos e Bordados: escritos de de Janeiro: Serviço de história e política. Belo Documentação Geral da Horizonte, Editora UFMG, 1998. Marinha, 1988. FERREIRA, Maria Luci Corrêa. MENEZES, Nilza. Os sobreviven- Tributo a João Cândido: o rei do tes do barco Satélite, in Primeira farol da liberdade. Encruzilhada Versão, n. 54, Porto Velho, outu- do Sul (RS): Evangraf, 2002. bro de 2001. GRANATO, Fernando. O Negro MORAES, Paulo Ricardo de. da Chibata. Rio de Janeiro: João Cândido, 2ª ed., Porto Objetiva, 2000. Alegre: União de 1910. Tese de Doutorado. Departamento de História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, 2002. _______. 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João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos 63 Cronologia 1880 – Nasce na fazenda Coxilha Bonita, em Encruzilhada do Sul, atualmente município de Dom Feliciano, RS. 1895 – Aos 14 anos, entra para a Escola de Aprendizes de Marinheiros do Rio Grande do Sul. 1904 – Interna-se no Hospital da Marinha para tratamento de tuberculose. 1910 – É enviado à Inglaterra para conduzir o encouraçado Minas Gerais ao Brasil. Lidera a Revolta da Chibata, contra as punições corporais na Marinha de Guerra. É preso e sobrevive a tentativa de assassinato na Ilha das Cobras. 1946 – Morre seu companheiro de Revolta, Francisco Dias Martins, o Mão Negra. tia post mortem a João Cândido e seus companheiros da Revolta da Chibata. 1953 – Despede-se do navio Minas Gerais, vendido como sucata à Itália. 2005 – Acontece a “Marcha dos 10 Mil”, em que líderes e integrantes de movimentos pelos direitos humanos e pela inclusão racial rumam a Brasília reforçando o pedido de anistia. 1961 – Volta à terra natal para receber homenagem, cancelada por ordem da Marinha. 1969 – Morre em 8 de dezembro, no Hospital Getulio Vargas. É sepultado no Cemitério do Caju, no Rio de Janeiro. Deixa uma herança de coragem e dignidade, além de esposa e filhos. 2008 – Em 23 de julho de 2008, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei 11.756, que concede anistia post mortem a João Cândido e outros marujos participantes da revolta. 2002 – A Senadora Marina Silva e o ex-deputado Marcos Afonso apresentam um projeto de anis- 1911 – É internado no Hospital Nacional de Alienados, na praia Vermelha, no Rio de Janeiro (RJ). 1913 – Emprega-se no veleiro Antonico. Conduz a embarcação dos portos do Sul do país ao Rio de Janeiro como comandante. No mesmo ano, casa-se pela primeira vez na Igreja Nossa Senhora da Glória, em Laranjeiras, no Rio de Janeiro, RJ. 1930 – Muda-se com a família definitivamente do Rio de Janeiro para São João de Meriti, na Baixada Fluminense. 64 Projeto Memória Fundação Biblioteca Nacional 1912 – Volta à prisão e é absolvido em seu julgamento, em 29 de novembro.