Universidade do Estado da Bahia Departamento de Ciências Humanas Campus IV Componente Curricular: Estudo da Ficção Brasileira Contemporânea Docente: Adriano Menezes Discente: Jamille Araujo Sirlane Santos Silva “Os ratos já estão sobre controle. Sem detalhes, enfatize apenas isto, que os ratos já estão sob inteiro controle.” (Lygia Fagundes Telles) O conto surgiu, primeiramente, através da criatividade de Bocácio – contista da literatura ocidental. Mesmo naquela época, essas narrativas já possuíam cunho crítico acerca da sociedade vigente. Suas descrições e reflexões prendiam a atenção do leitor conduzindo-o ao tema central da narração. O tempo evoluiu e o gênero narrativo do tipo conto foi criando espaço na literatura. “No Brasil, atualmente, pode considerar o conto como a mais promissora forma, pelo fato de ser de leitura mais rápida, e de concentrar em suas poucas páginas toda a riqueza própria da arte literária narrativa.” (ARAGÃO, 1985, p.86). Com base nesse contexto situacional, podemos classificar um elemento crucial dentro da literatura em gêneros: o fator história, que se faz presente no estilo narrativo. Nos contos, a história é apresentada ao leitor por meio da intervenção, da mediação de um narrador, podendo ser o próprio personagem. Podemos perceber que todo o viés literário cerca-se de aspectos históricos e contribuem entre si para o compreendimento do sistema no qual os homens estão inseridos. Conforme Aragão, “[...] toda obra literária se origina de uma determinada cultura, isto é, é gerada num certo tempo e num certo espaço, filiando-se a uma determinada classe ou espécie ou inaugurando um novo horizonte através de um conjunto próprio de regras.” (op. cit., p.64). No ano de 1977 o Brasil vivia um momento de repressão política e Lygia Fagundes Telles, com toda a sua audácia, lança o livro “Seminário dos Ratos”, composto por vários contos, dentre eles o homônimo „Seminário dos ratos‟, ganhando destaque sob a nossa ótica, visto que a narrativa vem tecer uma sutil crítica ao sistema brasileiro. A autora, de modo bastante perspicaz, através da escrita, satiriza a lógica racional dos seres humanos introduzindo o absurdo através da política. A leitura atenta permite observar que a autora deseja transmitir uma mensagem e, de fato, os textos têm essa função. Como nos diz Brait, (2006, p.36) “o texto, em Bakhtin, é uma unidade de manifestação: manifesta o pensamento, a 1 emoção, o sentido, o significado.” O entendimento da trama se dá por vários fatores e, conforme Aragão (1985, p. 84), “por ser um tipo de narrativa voltada para objetivos bem determinados, a sua forma acompanhará o conjunto dos elementos específicos a esse tipo de narrativa. A chave para o entendimento do conto como gênero está na concentração de sua trama.” Uma análise superficial não daria conta das críticas realizadas metaforicamente pela autora. É preciso que se tenha conhecimento de mundo, histórico e, principalmente, de linguagem para compreender sue jogo de palavras e demais figuras de linguagens utilizadas. Conforme Eagleton (1983), nossas percepções e reações aos acontecimentos à nossa volta costumam se tornar apagadas e até mesmo automatizadas, daí surge a importância da literatura para expandir a nossa visão e tornar-nos cidadãos críticos. Um conto, visto como uma simples narrativa pode esconder em suas entrelinhas sentidos diversos em relação à situações que passam despercebidas aos nossos olhos e críticas a fatos recorrentes da sociedade. “Seminário dos Ratos”, em primeira análise, evoca um evento, como o próprio título faz entender. A princípio tem-se a ideia de algo engraçado, pois, seminário relaciona-se a evento acadêmico, formal, onde são debatidos assuntos de relativa importância e como tal, pela lógica racional, impossível de ser realizado por ratos. O título criado por Telles causa certa ambigüidade, não se sabe se o seminário tratará de assuntos relacionados aos camundongos ou será realizado pelos animais, reafirmado por meio da epígrafe de Drummond de Andrade em que os ratos fazem um pronunciamento, rompendo assim, com a realidade racional. No geral, “o conto geralmente trata de uma determinada situação e não de várias e acompanha o seu desenrolar sem pausas, nem digressões, pois seu objetivo é levar o leitor ao desfecho, que coincide com o clímax da história, com o máximo de tensão e o mínimo de descrições.” (ARAGÃO, 1985, pp. 84-85). No conto encontramos aspectos da intertextualidade e interdiscursividade marcados pela multiplicidade dos discursos. De imediato temos a representação textual de Drummond no discurso de Lygia Fagundes Telles; seguindo pela letra da música “Lata d‟água”, para dar ênfase ao dialogismo, reafirmando que “[...] todo discurso dialoga com outros discursos, toda palavra é cercada de outras palavras.” (BAKHTIN, 1992, p.319 apud BRAIT, 2006, p. 39). Posteriormente dar-se espaço à conversação entre discursos, onde um age como resposta ou se refere ao outro. Os enunciados são representados por distintas vozes marcadas pelo discurso 2 direto, composto por elementos linguísticos como os dois pontos e o travessão. Tais aspectos fazem a nítida separação entre a voz do personagem e a voz do narrador observador. A narrativa apresenta-se por meio de diálogo que ocorre em curto período, criando poucas cenas em um espaço na casa de campo. Caracteriza-se pelo tempo histórico ou cronológico, uma vez que os fatos são lineares, transcorrendo numa sequência de “antes” e “depois”. “O tempo e o espaço geralmente são reduzidos ao mínimo indispensável para a elaboração da trama, assim como são poucos os protagonistas.” (ARAGÃO, 1985, p. 85). A literatura não é objetiva, não tem o desejo de explicar, ela quer o além, o oculto, as entrelinhas. O texto literário trabalha com o além das coisas ditas, e para degustar esse mistério, o leitor necessita mergulhar no “não dito”. A pressa em satisfazer-se com a culminância do texto, faz com que o leitor passe muito rápido as entrelinhas e não alcance o “prazer do texto”, descrito por Barthes. Para ele, texto de prazer é aquele que contenta, dá euforia e está ligado à práticas confortáveis de leitura. (Barthes, 1987). A compreensão desse sentido pretendido pela autora é alcançada através da situacionalidade do enunciado no diálogo com outros enunciados para se captar o dialogismo. A linguagem empregada, apesar de compreensível e objetiva, requer do leitor certo conhecimento vocabular para que se compreenda o sentido e o motivo de tais palavras estarem empregadas em determinado contexto. Nota-se ainda, a introdução de expressões de outro idioma. Para Culler (1999), “o sentido é uma noção inescapável porque não é algo simples ou simplesmente determinado. É simultaneamente uma experiência de um sujeito e uma propriedade de um texto. É tanto aquilo que compreendemos como o que, no texto, tentamos compreender.” (p. 69). As figuras de linguagem estão presentes para dar ao conto maior dramaticidade e amenizar as críticas tecidas. Diríamos que o uso dessas metáforas constitui uma abordagem sutil, irônica, que tem o intuito de representar indignação sem ofender ou ser estúpido. Inicialmente para apresentar alguns símbolos utilizados por Lygia Telles, observamos a caracterização de um dos personagens, nesse caso, o Chefe das Relações Públicas “um jovem de baixa estatura, atarracado, sorriso e olhos extremamente brilhantes [...] gravata vermelha [...]” (TELLES, 1984, p. 171). Uma entre as inúmeras descrições realizadas por Lygia Fagundes Telles em o “Seminário dos Ratos”. Assim ela descreve características físicas e algumas psicológicas dos personagens principais e ambientais retratados no conto. Vale ressaltar que, por se tratar de uma narrativa curta, as descrições 3 também são feitas de forma sucinta. Os personagens da trama não são determinados por nomes e sim por suas funções: Chefe das Relações Públicas e Secretário do Bem-Estar Público e Privado (protagonistas), evocando reflexões sobre os papéis sociais desempenhados por cidadãos da ordem pública. A autora utiliza-se de símbolos de maneira bastante direta. Sendo que há constantemente ambiguidade presente no texto, um “confronto” entre homens e ratos, ou seja, um ser racional e outro irracional, a questão é discutível. Por que dentre tantos animais a autora utiliza como símbolo justamente o rato? Percebemos certa alegoria nesse momento. Observamos que o rato é um ser pequeno, porém, possui grande velocidade; come de tudo, no entanto, deposita algumas “coisas” em seus ninhos, local que somente eles sabem onde estão. Assim são muitas das vezes os seres humanos, se demonstram tão pequenos diante de alguns momentos da vida e tão ágeis frente a outros, guardam segredos em suas mentes que somente eles sabem onde encontrar. Podemos também perceber no texto uma menção ao estrangeirismo que se caracteriza como um vício de linguagem. No conto, fica explícito no momento em que o Chefe das Relações Públicas de forma discreta “murmurou um “bueno” e apalpou os bolsos. (...) Bueno, é do conhecimento de Vossa Excelência (...) por que instalar o VII Seminário dos Roedores numa casa de campo, completamente isolada?” (TELLES, 1984, p. 173). O vocábulo bueno, podemos considerar como um dos empréstimos que tomamos de uma outra língua, forma de assimilação de cultura ou mesmo espaço geográfico. Outro traço bastante interessante que a autora proporciona ao leitor são as supostas interpretações em relação à cor da ala que o Diretor das Classes Conservadoras Desarmadas e Armadas ficaram instalados, ocupando a suíte de cor cinzenta. Uma cor que não proporciona nenhuma definição de identidade, diferentemente dos demais, que teve a cor destinada de acordo com o perfil que os mesmos possuíam. “Escolhi as cores pensando nas pessoas (...) a suíte do Delegado Americano, por exemplo, é rosa- forte, eles gostam das cores vivas” (TELLES, 1984, p. 172). A todo o momento a autora utiliza-se de elementos para fazer críticas à realidade. Por trás de tantos símbolos e de certa forma um “humor negro”, segue também toda uma hierarquia de poder, ou seja, há presença daquele que manda e do que obedece. É o que nos deixa transparecer no fragmento do enredo quando mencionado que “os ratos já se encontram sob controle. Sem detalhes, enfatize apenas isto” (TELLES, 1984, p. 177). Uma ordem é designada e para tal existe um que a execute. 4 Diante da proposta apresentada pela a autora no conto Seminário dos Ratos, fica explícito que estamos frente a uma temática social, fatores que estão dentro da política de nosso país, como gastos desnecessários, falta de organização e má administração dos recursos públicos. É o que apresentado no seguinte fragmento: “gastamos demais para tornar esta mansão habitável, um desperdício quando podíamos dispor de outros locais já prontos” (TELLES, 1984, p. 173). De maneira sutil, a autora tece uma crítica a postura de muitos representantes políticos, que investem em reformas supérfluas, que não visa o bem comum e sim individual. 5 RFERÊNCIAS ARAGÃO, Maria Lúcia. Gêneros Literários. In: Manual da Teoria Literária. (org.) Rogel Samuel. Petrópolis: Vozes, 1985. BARTHES, Roland. O prazer do Texto. São Paulo: Perspectivas, 1987. BRAIT, Beth. Bakhtin: outros conceitos-chave. Beth Brait, (org.). São Paulo: Contexto, 2006. CULLER, Jonathan. Teoria literária: uma introdução. Tradução: Sandra Vasconcelos. São Paulo: Beca produções Culturais Ltda, 1999. EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. Tradução: Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes, 1983. TELLES, Lygia Fagundes. Seminário dos ratos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. 4.ed. p. 171-185. 6