DINÂMICAS SOCIOCOMUNITÁRIAS NO ESPAÇO URBANO Julio Francisco Alves Fernandes – UFMS ([email protected]) Lais Cristina de Oliveira – UFMS ([email protected]) Sérgio Ricardo Oliveira Martins – UFMS ([email protected]) Resumo: O romantismo da comunidade traz na essência o refúgio da sociedade em meio ao caos dos sentimentos individualistas. O fenômeno sociocomunitário se apresenta no espaço urbano com grande plasticidade, assumindo múltiplas formas e dinâmicas. Para dar conta de tal plasticidade adota-se aqui o conceito de performance sociocomunitária, um arranjo socioespacial dinâmico de relacionamentos e coabitação territorial. Como casos analisados, tem-se o bairro Maria Aparecida Pedrossian e o condomínio Village Parati, ambos em Campo Grande/MS. O objetivo foi analisar tais casos como arranjos associativos em que princípios comunitários e societários se mesclam e oscilam no cotidiano relacional dos moradores. A análise contou com dados quali-quantitativos secundários, gerados por levantamentos em estudos anteriores. A fundamentação teórica parte de autores clássicos como Ferdinand Tönnies e Martin Buber, que fundam os princípios axiológicos do fenômeno comunitário; passa em Durkheim, sobre a relação comunidade e sociedade; e chega a Zygmunt Bauman, que discute as (im)possibilidades da vida em comunidade no mundo atual. Entende-se que aspectos significativos da vida urbana atual – como a insegurança, a “correria” e isolamento espaço-relacional – representam barreiras e forças contrárias aos relacionamentos primários, fundados na compartilha e na intimidade relacional e simbiótica. Verificou-se que em ambos os casos os relacionamentos formam performances sociocomunitárias, a partir dos seguintes fatores indutores: proximidade, comunicação/participação e insegurança. No bairro Maria Aparecida Pedrossian, a necessidade de enfrentar os problemas e melhorar as condições de moradia levou à ação coletiva e organizada, formando um sentido cada vez mais claro de vizinhança. No condomínio Village Parati, a proximidade espacial tem induzido relacionamentos que se estreitam na coabitação. Nos dois casos, a convivência e comunhão de problemas e objetivos tem levado a alguma dose de aproximação social. Palavras-chave: Comunidade; Sociedade; Urbano. Resumen: La visión romántica de la comunidad trae en su esencia el refugio de la sociedad en medio del caos de los sentimientos individualistas. El fenómeno sociocomunitario presenta gran plasticidad en el espacio urbano, asumiendo múltiples formas y dinámicas. Comprender esta plasticidad requiere el concepto de performance sociocomunitaria, un arreglo socioespacial dinámico de las relaciones territoriales y de la convivência humana. Los casos analizados ha sido el barrio y Maria Aparecida Pedrossian y el condomínio Village Parati, ambos en Campo Grande/Mato Grosso do Sul/Brasil. Este trabajo examina estos casos como arreglos asociativos, en los quales los principios societarios y comunitarios se mezclan y oscilan en la vida cotidiana de los residentes. Un análisis secundario incluyó datos cualitativos y cuantitativos generados por las encuestas realizadas en estudios anteriores. El marco teórico de autores clásicos como Ferdinand Tönnies y Martin Buber, que fundó los principios axiológicos de la comunidad; en Durkheim se observa la relación dicotómica entre comunidad y sociedad. En Zygmunt Bauman, se discute las (im)posibilidades de la vida comunitaria en el mundo de hoy. Se entiende que los aspectos negativos importantes de la vida urbana contemporánea como la inseguridad, la carrera diaria y el aislamiento en el espacio - representan barreras a las relaciones primarias, basadas em el compartir, la intimidad y La convivência afectiva y simbiótica. Se encontró que en ambos casos las relaciones forman performances sociocomunitarias, inducidas por los siguientes factores: la proximidad, la comunicación/participación y la inseguridad. Em el barrio Maria Aparecida Pedrossian la necesidad de enfrentar los problemas y mejorar las condiciones de vida llevó a la acción colectiva organizada, la formación de un sentido cada vez más claro de vecindad. En el condominio Village Parati, La proximidad espacial ha inducido y reforzado las relaciones. En ambos casos, la convivencia y el comunión de problemas y objetivos han dado lugar a un cierto grado de aproximación social. Palabras clave: Comunidad; Sociedad; Espacio Urbano. Introdução O individualismo e o isolamento social marcantes no espaço urbano contemporâneo não favorecem a consciência e o sentido de interdependência e vizinhança, que poderiam advir da convivência e coabitação territorial. Os princípios da vida em comunidade, em meio à vida urbana pressionada por formas de violência, insegurança e medo, parecem resistir em ressurgências na tessitura dos relacionamentos humanos. De fato, o fenômeno sociocomunitário se apresenta no espaço urbano com grande plasticidade e dinamismo, assumindo múltiplas formas e configurações. Para dar conta de tal plasticidade adotou-se aqui o conceito de performance sociocomunitária, um arranjo socioespacial de relacionamentos e convivência resultante do processo de comunitarização. Como casos analisados, foram selecionados o residencial Maria Aparecida Pedrossian e o condomínio Village Parati, ambos em Campo Grande/MS. O objetivo foi analisar tais casos como arranjos associativos em que princípios comunitários e societários se mesclam e oscilam no cotidiano relacional dos moradores. Em ambos os casos, a análise se baseia em dados e observações secundários resultantes de pesquisas qualiquantitativas. Neste sentido, este texto é muito mais uma aproximação ao cotidiano urbano, com o propósito de identificar e compreender o fenômeno sociocomunitário em sua dinâmica e manifestações. Espaço Urbano e o fenômeno comunitário Da dinâmica relacional humana, diante dos desafios colocados pela modernidade, resulta que os fenômenos societários se (re)configuram em arranjos socioespaciais diversos. No espaço urbano, sobretudo na atualidade, em que comportamentos, atitudes e valores individualistas cada vez mais orientam as relações humanas, esmaecendo e sufocando o sentido de vizinhança, persistiria com alguma relevância o fenômeno comunitário? Pressupõe-se neste trabalho que a comunidade sobrevive em seus princípios, que se presentificam na tessitura dos relacionamentos interpessoais cotidianos em espaços de moradia na cidade. A comunidade é um fenômeno societário mais complexo do que sua oposição dicotômica à sociedade faz crer. Sua natureza orgânica e fraterna a definiria como oposta à impessoalidade e artificialidade que marcam as relações na sociedade (TÖNNIES, 1947). Esta distinção axiomática entre comunidade e sociedade é, pois, mais teórica do que prática. Na sociedade a ligação entre seus membros seria orgânica, decorrente da divisão social do trabalho, enquanto na comunidade a ligação entre as pessoas é mecânica, direta e sem intermediação (DURKHEIM, 1978). Assim, os relacionamentos primários são marcados pela intimidade, já os secundários, intermediados por papéis ou funções sociais desempenhadas por indivíduos “anônimos”. Em uma visão atual, a comunidade seria caracterizada pelo predomínio dos relacionamentos primários sobre os secundários (ÁVILA ET AL, 2000). Sociedade e comunidade marcam dinamicamente o balanço entre os dois tipos de relacionamentos. No cotidiano, comunidade e sociedade não são fenômenos isolados ou delimitados com precisão e clareza. Relacionamentos primários e secundários se imbricam nas relações entre as pessoas, na formação, evolução e desintegração de grupos societários, processo dinâmico que, na cidade, pode ser favorecido ou obstado por variáveis espaciais como proximidade e localização. Considera-se aqui que os princípios comunitários perfazem a vida em grupo, com base na interação, coabitação territorial e na reciprocidade de relações, em que se compartilham objetivos e meios comuns (FERNANDES, 1973 e BUBER, 1987). Caberia perguntar que chances tem o fenômeno comunitário de subsistir na atualidade em meio ao espaço urbano? Para Bauman (2003), a comunidade não pode se constituir na atualidade, diante das tensões da vida urbana moderna, que oscilam entre a liberdade e o medo. Para Spinelli Júnior (2006), sociologicamente ante a modernidade atual, a comunidade perdeu seu caráter delimitado, assumindo significativa plasticidade, ou seja, variações de forma e conteúdo conforme os contextos e circunstâncias socioespaciais em que (res)surge. Albuquerque (1999) discute os efeitos da “modernidade”, em especial da crença no progresso material e ilimitado, sobre os comportamentos e sentimentos das pessoas, que desta forma experimentam o medo da violência e a insegurança da vida urbana, os “custos humanos da modernidade”. Em Simmel (1987), a modernidade é simbolizada pela metrópole e pelo dinheiro, que juntos reproduzem e diversificam as relações cada vez mais individualizadas e impessoais, eis o que caracteriza essencialmente o modo de vida urbano e moderno. Neste contexto, as necessidades humanas ocorrem para muito além das fundamentais1, pois ampliadas pela indução onipresente ao consumo e mediadas por um “livre” exercício da subjetividade. Comportamento individualizado e relações cada vez mais impessoais teriam orientado a vida urbana moderna para um sentido oposto ao sentido agregador, moralmente comprometido, pessoal e íntimo da comunidade. Eis porque, para Tönnies (1947), a sociedade moderna teria emergido sobre a vida comunitária (fatual ou idealizada) cada vez mais sufocada pelos “prazeres” e “negócios” da vida urbana moderna. Tal visão dicotômica, de uma sociedade moderna e vitoriosa sobre uma comunidade arcaica e decadente, desvia de uma questão mais importante e mais pertinente, qual seja a persistência dos princípios comunitários na convivência humana em um contexto claramente adverso. Entende-se que decadente é o ideal comunitário, de um idílico desejado, que de fato não pode ser mais que uma abstração teórica. Durkheim (1978) parece ter percebido que a comunidade subsistiria na interdependência da vida social moderna e urbana, que individualiza e interliga em uma trama funcionalizada pela divisão social do trabalho. O sentido comunitário estaria então nos “cantos” familiares e íntimos da vida cotidiana, mas ainda assim 1 Na ótica do desenvolvimento a escala humana, há nove necessidades humanas fundamentais: subsistência, procriação, proteção, comunicação, entendimento, participação, ócio, identidade e liberdade. Todas seriam inerentes ao ser humano e independentes de qualquer aspecto que os diferencie. (Cf: MAX-NEEF, M., ELIZALDE, A., HOPENHAYN, M. Desarrollo a Escala Humana: una opción para el futuro. Londres: CEPAUR, 1986). como fenômeno controverso e confrontado, por isso mesmo resistente e real, representativo de valores pautados pela amizade, confiança, interdependência e proximidade física e relacional. A formação e manutenção de relações afetivas no espaço urbano atual, sem embargo, parece pouco ultrapassar o âmbito familiar. A busca por relações de amizade e confiança, todavia, estão associadas a necessidades tão fundamentais quanto a própria subsistência, como a identidade, comunicação, afeto e, claro, a proteção. Esta última, especialmente, se expressa na busca por segurança e certamente constitui um imperativo cotidiano à vida urbana. Neste sentido, na convivência e coabitação territoriais, que se dinamizam em bairros e condomínios da cidade (neste caso, Campo Grande), os relacionamentos humanos assumem múltiplas formas, configurações e delimitações societárias, nas quais se incluem os princípios comunitários. Não significa dizer que bairros e condomínios sejam comunidades, mas de verificar como, em meio aparentemente tão desfavorável, os princípios comunitários subsistem e ressurgem no cotidiano urbano. Não são, todavia, resquícios de um modus vivendi ultrapassado e fadado a desaparecer, mas expressões socioespaciais do como as pessoas se agrupam e se arranjam (em uma dinâmica societária de afastamentos e aproximações sociais e espaciais – ou sejam, performances sociocomunitárias), para atender a necessidades e interesses ante os desafios e dificuldades da vida urbana e moderna. A seguir, “voos panorâmicos” sobre um condomínio e um bairro de Campo Grande. Moradia e relacionamentos em chão urbano compartido: os condomínios O urbano, mais amplo e complexo, tornou-se o espaço sui generis da mercantilização, em que a vida e as relações são mediadas pela produção e consumo de mercadorias. Carlos (2007) mostra que é essencialmente na mercantilização do espaço urbano, sobretudo o acesso e uso deste para fins de moradia, que residem as distintas formas de segregação. Os condomínios fechados são precisamente espaços segregados de moradias valorizadas por infraestruturas e equipamentos de conveniência lazer e segurança. Mediadas pela individualidade que caracteriza a satisfação das necessidades, via capacidade (desigual) de consumo de mercadorias, as referências e os valores relacionais no cotidiano urbano sofreram um deslocamento de consciência e práticas: do sentido da existência coletiva e interdependente à vida individualizada e independente. É nesta atomização da vida urbana que reside a sensação de medo e insegurança, explorado por Bauman (2003) em sua crítica à comunidade idealizada e desejada. Para este autor, esta dependência do indivíduo, em meio a uma coletividade de “estranhos”, de desconhecidos que moram ao lado, em relação à sua (in)capacidade financeira acaba por produzir ou reforçar a insegurança da qual ele deseja escapar. Uma forma “moderna” e mercantil de explorar esse medo e insegurança que marcam a vida urbana atual é oferecer “recantos de segurança”. Neste sentido, a construção de condomínios residenciais fechados, “fortificados” e cada vez mais afastados, materializa e territorializa a pretensão de viver com segurança e tranquilidade. Em tal situação, supõe-se aqui que a proximidade física e comunhão de necessidades e interesses condominiais favoreçam, em alguma medida, a formação de laços de amizade e relacionamentos do tipo primários. Um condomínio fechado, ainda que se entenda como forma de segregação residencial, constitui uma vizinhança espacial, implicando compartilha territorial. Entendemos que a proximidade espacial propicie entre os moradores (não em sua totalidade, nem com a mesma intensidade) a formação de relacionamentos mais estreitos, primários. Em meio ao medo contemporâneo a sociedade busca lugares que sejam favoráveis aos seus anseios. O espaço se torna mercantilizado e é oferecido àqueles que podem pagar pela sua segurança, lazer e infraestrutura. Apesar das adversidades encontradas dentro da divisão territorial em um condomínio, os moradores que ali residem estão em constante contato, estabelecem contatos físicos ou visuais diariamente. A convivência e compartilha territorial, estabelecida pelos muros de um condomínio, favorece o reconhecimento e aproximação dos moradores. Afirma-se que a vizinhança espacial induz a vizinhança social. Tal processo, porém, é controverso e conflituoso. No condomínio, atitudes e comportamentos individualistas, de moradores que buscam no isolamento social maior sensação de segurança, se confrontam com comportamentos sociáveis e interdependentes de outros moradores que buscam a mesma coisa que os primeiros, porém a partir tessitura de novas amizades e relacionamentos. São estes últimos que suscitam uma vizinhança social em um território compartido. A racionalidade social viceja o território como uma porção de interesses comuns, e isso não é diferentes dentro dos condomínios. Os laços sociais estabelecidos no intramuros condominial se orientam para necessidades e interesses comuns, como a vigilância interna, as regras de conduta e normas de utilização dos espaços coletivos. O Condomínio Village Parati está situado em Campo Grande/MS, possui um total de 2.256 casas, das quais 1826 vendidas, em uma área de 412.908 m 2, sendo considerado o maior condomínio horizontal de casas conjugadas da América Latina. Levantamento realizado verificou que apesar da “fortificação” e extenso espaço territorial, os moradores do Condomínio Village Parati possuem rendas bem diversificadas, o que pode geral em sua totalidade certa proximidade dentro de seu âmbito de convivência. Pesquisa realizada a partir de entrevistas com moradores desse condomínio (GOMES et al, 2014) revelou que não há diferenciação socioeconômica muito significativa entre eles, já que os que ganham até 5 salários mínios perfazem 82,5% dos entrevistados. Este é um dado importante, na perspectiva da performance sociocomunitária, uma vez que uma maior desigualdade entre os moradores tenderia a anular o efeito vizinhança propiciado pela proximidade espacial. Neste sentido, para Ribeiro (2008), em situações de coabitação entre pessoas socialmente muito distintas ocorre uma combinação entre proximidade física e distanciamento social. Para o autor, a proximidade espacial não gera necessariamente proximidade social, podendo até mesmo aprofundar a relação de dominação comum entre “socialmente distantes”. Assim, proximidade (vizinhança espacial) favorece a tessitura de relacionamentos pessoais diretos, sobretudo considerando que a coabitação condominial significa a compartilha de necessidades, recursos e objetivos. Neste sentido, a mesma pesquisa verificou que a quantidade de moradores conhecidos pelos entrevistados aumenta com o tempo de moradia. É claro que um maior tempo de moradia resulta em maior conhecimento e relação com os vizinhos. Em que pese a personalidade do morador, que pode apresentar maior ou menor disposição e facilidade de se relacionar e criar novas amizades, é coerente afirmar que a proximidade espacial tem um peso importante na tessitura, quantidade e qualidade, das relações com a vizinhança. Outro dado importante, que reforça a importância da proximidade, conjugada ao tempo de moradia, está no fato de que a quase totalidade dos moradores com os quais os entrevistados tem maior contato pessoal é formada por vizinhos. Sem dúvida, um maior contato pessoal com vizinhos atende ao desejo de mais segurança e tranquilidade. Não é por outra razão que 62,5% dos entrevistados afirmaram manter contato diário com seus vizinhos mais próximos, aqueles que moram ao lado. O condomínio em análise revela em seu interior a tessitura incipiente de laços sociais pautados na confiança recíproca. Tais laços se estabelecem com poucos moradores, em média 1 ou 2 que moram no entorno adjacente. A formação desses laços é, sobretudo, induzida por necessidades tão importantes quanto recorrentes à residência urbana, qual seja a segurança, comunicação e participação. De fato, conhecer e conversar com os vizinhos mais próximos, sobretudo os que moram ao lado, amplia a sensação de segurança, além de garantir um interlocutor acessível e identificado na mesma situação. No Village Parati, a segurança foi o motivo mais importante para 70% dos entrevistados optarem pela moradia em condomínio fechado. Está claro que a busca por segurança, no contexto urbano contemporâneo, tem sido apontada como a principal motivação pela compra da moradia em condomínios. Mesmo que se considere o discurso “antiurbano” do medo da violência, verifica-se que a busca por segurança e tranquilidade pesa nesta decisão. Low (2001) vê no consumo dos gated communities (condomínios fechados) um meio de segregação social. No mesmo sentido, Mendes e Viana (2009) questionam a real segurança nos condomínios, que seriam adquiridos muito mais pela “distinção social” que representam. Por segurança ou distinção social, a opção crescente pela moradia isolada ou segregada em condomínios fechados se expressa na reprodução cada vez maior e variada deste segmento imobiliário em Campo Grande2. Condomínio não é uma comunidade, senão por uma acepção genérica ( e por isso mesmo com sentido esvaziado) do termo. Não obstante, trata-se de um arranjo socioespacial de moradias, infraestruturas, expectativas e necessidades em que, contraditoriamente, relacionamentos pautados pela amizade e confiança são formados. 2 Não constitui comunidade, mas uma incipiente performance A forte e recente expansão de condomínios verticais e horizontais em Campo Grande pode ser dimensionada por números como: 5 a 6 mil unidades residenciais lançadas somente a partir de 2011. Ademais, tal “explosão residencial” ocorre a olhos vistos (fonte: Rede de Obras, revista digital disponível em: <http://www.aecweb.com.br/cont/m/rdo/a-explosao-do-residencial-em-campogrande_5677>. sociocomunitária. Bairro Maria Aparecida Pedrossian O Parque Residencial Maria Aparecida Pedrossian (MAP) fica localizado na porção oeste de Campo Grande, em contato com a área rural. De acordo com o último censo do IBGE (2010), o bairro Maria Aparecida Pedrossian contava com 9.326 moradores divididos em 3.496 domicílios. Neste residencial, fatores fundamentais da coesão sociocomunitária vem sendo apresentados desde sua fundação. Devido à distância dos centros sociais e comercias da cidade, a união dos moradores em prol dos seus objetivos e necessidades se fez primordial. A compartilha desses fez com que alguns moradores se organizassem a favor da solução dos problemas. Essa organização no pensamento, ação e sentimento de coletividade resultou na estruturação da AMAPE, Associação dos Moradores do Residencial Maria Aparecida Pedrossian, protagonista da organização e mobilização social no bairro. A distância do centro da cidade se apresenta como um dos maiores fatores de implicação da ligação entre os moradores, a segregação diante da malha urbana e a partilha dos mesmos objetivos definiu que esse grupo de pessoas e famílias se unissem. No Maria Aparecida Pedrossian, o fator “segregação” aponta para um desenvolvimento de um arranjo societário orientado por princípios sociocomunitários dentro da sociedade contemporânea. Marques (2007) trata esse fator como isolamento social de grupos internamente homogêneos. Estabelecendo outro olhar à segregação de grande escala, a qual não representa apenas um fator de exclusão social dentro da sociedade capitalista, mas soma características comuns às relações cotidianas. Marques (2007) explica que a distância do centro às áreas periféricas urbanas caracteriza a “desigualdade de acesso” e a segregação, sendo essas classificações recíprocas, uma vez que “não é apenas a segregação que especifica acesso desigual, mas também (e ao mesmo tempo) a desigualdade de acesso que especifica e reproduz a segregação”. A união dos moradores mobilizados e organizados pela associação (AMAPE), fortalecendo a ação coletiva em prol de conquistas para o bairro diante do poder público municipal, se estabelece no cotidiano, resultando em um progressivo sentimento de pertença e identidade com o lugar. A coesão se manifesta em ligações de caráter afetivo, familiar e de amizade, os relacionamentos primários. Este é um ponto fundamental do desenvolvimento local, fundado no protagonismo sociopolítico e em um progressivo sentimento topofílico. Num conjunto habitacional que foi planejado, sem sucesso, para abrigar servidores públicos, o nível de qualidade de vida era superior ao dos demais bairros da cidade à época, o que despertou interesse nos futuros moradores. Em sua fundação, em 1983, o parque residencial já contava com local para abrigar uma delegacia, local para abrigar um centro comercial e a associação de moradores, asfalto, iluminação pública, rede própria de água tratada, e uma linha de transporte coletivo “que atendia aos moradores de forma um tanto precária” (GUIMARÃES, 2012). A AMAPE tomou para si a responsabilidade social do bairro, a partir de sua estruturação e formação. Manteve-se então com recursos provenientes do aluguel dos boxes do centro comercial, o que fez com que se estruturasse e se organizasse rapidamente. A associação cumpriu, pois, um importante papel ao promover e mediar a relação entre os moradores. Considerando a comunidade como um grupo de pessoas que coabitam e interagem com base na reciprocidade de relações, compartilhando objetivos comuns, a AMAPE concretiza esse sentido comunitário, fomentando o contato mais próximo entre os moradores, base para a tessitura de novos laços de amizade e fortalecimento da ação coletiva. Os moradores do bairro viam-se nesse contexto como atores sociais, participando de um protagonismo sociopolítico que produz espaço social dentro da cidade (GUIMARÃES, 2012). A performance sociocomunitária, enquanto arranjo societário em processo, aparece mais evidente ante ao protagonismo da AMAPE, que resulta em conquistas coletivas, de vez que supre necessidades humanas fundamentais, como a de comunicar-se, tomar parte e identificar-se com um grupo e seus objetivos; amplia-se a satisfação e o bem estar, além da topofilia. Atualmente no bairro, os moradores continuam a demonstrar o sentido sociocomunitário, como demonstra Guimarães (2012): Tem chamado atenção, nos dias atuais, o grau de mobilização e organização atingido pelos moradores desse bairro no exercício da função social da propriedade. Ela pode ser apreciada no Parque Residencial Maria Aparecida Pedrossian por meio do bem-estar social e da qualidade do ambiente urbano já conquistado coletivamente, em direção da promoção das condições e da dignidade de vida (GUIMARÃES, 2012, p. 53). Outras ações e projetos promovidos pela AMAPE no bairro reforçam o sentido sociocomunitário. Há, por exemplo, atividades extraescolares oferecidas às crianças da escola estadual do bairro. Podem ser frequentadas apenas por alunos que apresentam bom desempenho escolar. Dentre os projetos desenvolvidos no residencial, Guimarães (2012), destaca ainda oficinas sobre o uso social dos espaços públicos, como o uso de áreas verdes e praças para uma comunicação e maior interação dos moradores. Em 2012, a associação de moradores (AMAPE) “concentrava cerca de 30 projetos de interesse social que envolve oficinas, cursos e outras práticas profissionalizantes, culturais, esportivos e recreativos, assim como disponibilização de alguns serviços”, prevalecendo o uso do espaço publico em sua “função social”. Outra conquista importante dos moradores foi a instalação de uma Unidade Básica de Saúde (UBS) / Programa de Saúde da Família (PSF) que oferece médicos, dentistas, psicólogos e vários outras especialidades da área de saúde, proporcionando-lhes melhor qualidade de vida. Reitera-se que a mobilização dos moradores para resolver problemas do bairro acaba por fortalecer as ligações e a coesão, delineando um processo de comunitarização em ascensão. Considerações finais O fenômeno comunitário sobrevive, desaparece e ressurge nas relações humanas, mesmo na cidade, onde a mercantilização e funcionalização das ações, necessidades e interesses marca o tom da produção e reprodução do espaço urbano. O lugar, enquanto condicionante e resultado da apropriação afetivo-simbólica de ações e objetos espaciais, presentifica-se na essência da territorialidade em meio urbano. No lugar, o fenômeno comunitário parece resistir e se sustentar, replicandose em articulações e conexões constituídas para enfrentar os problemas inerentes à vida urbana moderna. Neste sentido, tanto o bairro Maria Aparecida Pedrossian quanto o condomínio Village Parati podem ser vistos como performances sociocomunitárias, isto é, como arranjos socioespaciais em que princípios comunitários e societários se mesclam e oscilam no cotidiano relacional dos moradores, diante da convivência e compartilha de problemas e objetivos comuns. Afirmar que a comunidade sobrevive em princípios de socialização e ação coletiva, que geram e estreitam laços entre moradores de um bairro ou de um condomínio fechado, é verificar que a dinâmica urbana, especialmente quanto aos relacionamentos humanos, é certamente rica em contradições. A presentificação do fenômeno comunitário no espaço urbano atual, sem dúvida, reforça tais contradições diante de um modo de vida, do cotidiano urbano, pautado no consumo e em comportamentos cada vez mais individualistas. No Maria Aparecida Pedrossian, a performance sociocomunitária se evidencia no âmbito das ações coletivas, com vistas ao atendimento de demandas dos moradores, sendo eles movidos por interesses comuns que, em última análise, estão voltados para a melhoria das condições de vida no bairro. No caso do condomínio, é importante ressaltar que não se considera aqui que a proximidade espacial seja fator suficiente de comunitarização, ou seja, de formação de uma comunidade. De fato, relações primárias podem até mesmo prescindir da proximidade espacial entre as pessoas. Acredita-se, tal como Santos (2006, p. 216), que a proximidade em um “[...] território compartido impõe a interdependência como práxis”, que leva ao sentido da existência comunitária. Um condomínio fechado não pode ser considerado uma comunidade em si, senão por um reducionismo conceitual. Todavia, a convivência com base na proximidade espacial, ainda que seja esta imposta pelas circunstâncias condominiais, favorece os relacionamentos primários sem nenhuma pretensão de torná-los predominantes. Referências ALBUQUERQUE, L. M. B. Comunidade e sociedade: conceito e utopia. Raízes, Campina Grande, v. 18, n. 20, p. 50-53, nov. 1999. ÁVILA, V. F. Pressupostos para formação educacional em desenvolvimento local. In: Interações - Revista Internacional de Desenvolvimento Local, Campo Grande, v. 1, n. 1, p. 63-76, set./2000. BAUMAN, Z. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Trad. 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