3.3 Saúde e doença na Idade Média: o pecado, a salvação e o merecimento A Idade Média na Europa (séculos V - XV), pode ser compreendida pela subdivisão temporal histórica: pela Alta Idade Média (início marcado pelas invasões germânicas - os considerados bárbaros) e a Baixa Idade Média (finalizada pela retomada comercial e pelo renascimento urbano). Muitas batalhas e crises assolaram a Europa durante a Idade Média, mas o que marcou profundamente esse período refere-se às epidemias e a situação econômica deplorável enfrentado pelos camponeses motivados pelos conflitos, como lembra Schneeberger (2006). De extrema dominação dos pensamentos da Igreja cristã, muitas batalhas foram vivenciadas “em nome de Deus” resultando em grandes massacres e destruições, agregados a muitas enfermidades que surgiam nesse contexto. No século XIV, uma série de crises atingiu a Europa. Foi o século das guerras, da peste e da fome. A Peste Negra teve origem na Ásia, tendo alcançado a Europa, trazida pelos comerciantes italianos. Esta epidemia alastrou-se rapidamente, pois as más condições de higiene nos burgos favoreciam a proliferação de ratos, hábitat da pulga portadora do vírus. Era uma epidemia bubônica, pulmonar e intestinal. Como a contaminação caminhava pelas rotas comerciais que uniam as cidades europeias, milhões de pessoas morreram e povoados inteiros desapareceram. Estima-se que cerca de um terço de toda a população europeia tenha desaparecido, entre 1347 e 1350, fase de maior incidência. Em Portugal, mais da metade da população foi dizimada. Os campos se esvaziaram e a produção agrícola declinou. Por todo lado a fome se tornava constante (SCHNEEBERGER, 2006, p. 124125). Durante o período medieval, a crença predominante cristã retratava a doença como resultado do pecado e a cura só era alcançada mediante a fé em Deus. A forte imposição da Igreja em fazer a população aceitar o poder de Deus como o julgador da saúde e das doenças intimidava a população a obedecer aos mandamentos preditos por esse órgão. Logo, a doença e o desconforto eram vistas como inevitáveis, porquanto se constituem como castigo pelos pecados cometidos e somente a aproximação com Deus era a salvação dos pecados. Schneeberger (2006) afirma que, o misticismo atribuía a peste a um castigo divino, caçavam- se principalmente os pecadores e os judeus, muitos mortos a pauladas e queimados, numa tentativa desesperada de aplacar a ira de Deus. Logo, Bento (2013) complementa que a mentalidade profundamente cristã desta época levava à aceitação do destino à procura da clemência divina, pois a vida terrena não era importante, valorizava-se a preparação para a vida eterna. Nessa seara, a compreensão de saúde/doença no período medievo correspondeu basicamente ao bem e ao mal, pelos mandamentos impostos pela igreja cristã que determinava através das ordens de Deus, as doenças e as misérias como frutos do homem pecador. Para amenizar ou curar o estado de enfermidade, Tubiana (2000) descreve que a luta para curar a doença dava-se pela oração, pelo exorcismo e peregrinação, uma vez que a fronteira entre o real e o divino é tênue e a medicina voltase para o sobrenatural. Assim, compreender saúde na Idade Média resultava na crença e no temor perante a divindade: Para a maioria da gente comum, a doença podia, pois, resultar de influências malignas comandadas por bruxos e feiticeiros, ao passo que a saúde se mantinha com a ajuda dos anjos, e se restabelecia por intercessão dos santos [...] o corpo humano era um campo onde forças invisíveis se digladiavam em luta permanente, ameaçando perturbar o seu equilíbrio (sendo) preciso recorrer a meios sobrenaturais para manter a saúde, conforme aponta Bento (2013). Durante a Alta Idade Média (séc. V ao X) marcada pela desintegração do Império Romano do Ocidente, pelas invasões Bárbaras, pela descentralização do poder político, pelo aparecimento da “ruralização” e formação dos Feudos (extensas propriedades de terras), pela economia de subsistência, pelo trabalho servil centrados na agricultura e as poucas trocas comerciais, e pela organização social distinguida por estamentos (Nobreza, Clero e Servos), ocorre principalmente nesse período à alta religiosidade e a expansão do Cristianismo. A Europa vivia nesse período em clima de profunda religiosidade, tendo Deus como causa de tudo. Por conseguinte, as grandes calamidades e crises econômicas, culturais, ambientais e sociais modificavam-se e interferiam na condição de vida das pessoas e agravavam as condições de saúde e a disseminação da doença, como descreve Schneeberger (2006): As crises afetaram profundamente a atividade agrícola. Além das guerras e da epidemia, a crise era agravada pelas más condições atmosféricas. Anos de seca seguidos por anos de muita chuva. Mal alimentada, a população mais facilmente contraía doenças. Estabelecia-se um verdadeiro ciclo vicioso. A escassez da mão de obra rural provocava queda na produção. Os preços dos produtos agrícolas aumentavam à medida que a produção decaía. A população subnutrida era fácil vítima da peste. A Europa se livrava do perigo da superpopulação, mas à custa de milhões de mortos. Scliar (2007) reflete que, mesmo assim as ideias de Hipócrates de temperança na comida e na bebida, de contenção sexual e das paixões mantiveram-se pela Idade Média, porém, a relação entre doença e meio ambiente não se perdeu nesse período de intensa religiosidade. Nesse período, surgem algumas aproximações para um novo olhar de saúde. É interessante lembrar, como explica Najmanovich (2006) em Córdoba, na Espanha surge a figura de Maiamônides1 na identidade medieval que atribui alguns elementos para a conciliação entre a filosofia grega e a tradição judaica e questões relacionadas à saúde e doença. Maiamônides afirma que, se uma pessoa está alterada emocionalmente ou se encontra em um estado de agitação mental, seu bem estar-físico sofre e eventualmente pode chegar a ocasionar doenças. Segundo ele, a lucidez do espírito depende da manutenção da saúde física e do vigor, pois é impossível compreender as ciências e meditar sobre elas quando se está enfermo ou faminto (NAJMANOVICH, 2006). Cabe ressaltar que durante a Idade Média, as contribuições para o conhecimento foram prejudicadas para a anatomia, fisiologia e patologia, uma vez que a dissecação era vedada, pois o corpo humano era considerado sagrado, não podendo ser alvo de investigação, acontecendo o mesmo com os animais, por se crer que eram criaturas com alma, como aponta Ballester (1997). Porém, Najmanovich (2006) ressalta que, na Idade Média o homem da ciência judaica combinava estudos religiosos e leigos, que incluíam filosofia, matemática, astronomia, astrologia e medicina. Não se estranhava que um 1 O principal objetivo de Maimônides em seus escritos era realizar a conciliação entre a razão e a fé. De fato, ele não foi o primeiro nessa tentativa de aproximar religião e filosofia, pois era uma tendência já presente no pensamento judaico medieval desde o século X. No entanto, seus escritos foram aqueles que deram mais vigor ao diálogo entre filosofia grega e tradição judaica, o que resultou em diversas polêmicas e dificultou a aceitação imediata de suas concepções pelos círculos judaicos mais tradicionalistas, os quais não compreendiam esse diálogo (ROSADO, 2013, p. 14). Maiamônides (1135-1204) considerou três divisões da medicina: preventiva, curativa e a que atendia aos convalescentes, inválidos e idosos. Dentre seus principais escritos sobre temas médicos, cabe destacar “Extratos de Galeano” uma seleção do que Maimônides considerava mais relevante dentre os 100 livros escritos por Galeano. É destinada aos estudantes de medicina grega. E também Comentários sobre os aforismos de Hipócrates, onde o autor polemiza e adota um ponto de vista contrário à tradição clássica; Aforismos médicos de Moisés é o compêndio maior e contém mais de 1.500 aforismos baseados principalmente em medicina grega. Divididos em 25 capítulos segundo diferentes áreas da medicina. Como exemplos: fala da apoplexia na enfermidade cérebro muscular e do prognóstico; descreve o enfisema obstrutivo, no capítulo de enfermidades respiratórias; dá a conhecer com exatidão os sinais e o sintoma da pneumonia; descreve oito fases da hepatite: febre alta, sede, anorexia, língua vermelha que se torna negra, vômito biliar, dor no lado direito, tosse leve e peso no lado direito. No Tratado sobre Hemorroidas, descreve as medidas higiênicodietéticas, para sua prevenção e tratamento higiênico. É contra a sangria e ou a cirurgia, exceto nos casos graves. Tratado sobre relações sexuais foi escrito para um sobrinho de Saladino que queria aumentar sua potência sexual. Descreve alimentos e drogas que atuam como afrodisíaco ou antiafrodisíaco. Aconselha moderação na atividade sexual e descreve a fisiologia sexual. Tratado sobre a asma com regimes dietético e climático apropriados para os asmáticos onde o ar puro é a regra mais importante para a preservação da saúde do corpo e do espírito; Seu Tratado sobre venenos e seus antídotos foi usado por toxicológicos durante toda a Idade Média. Nele, faz recomendações para a picada de serpente, descreve o período longo de incubação da raiva, afirmando que se deve deixar aberta a ferida por quarenta dias, fala sobre os sintomas de envenenamento por beladona e mostra distinção entre venenos quentes e frios; no Regime da Saúde existem grandes variedades de recomendações higiênico-dietéticas e do uso de medicamentos, do clima, domicílios, ocupação, banhos, atividade sexual, vinho, dieta e doenças respiratórias (NAJMANOVICH, 2006, p. 41-43). judeu fosse, ao mesmo tempo, médico e rabino. A combinação de rabino e doutor era similar à do médico e sacerdote. Nesse período, Tubiana (2000) reforça que novas doenças foram descritas e novos remédios foram introduzidos e a medicina medieval, especialmente durante o primeiro renascimento nos séculos XII e XIII, introduziu dois componentes até então afastadas do campo médico: a compaixão e a caridade, demonstrando, com a medicina laica, que o estudo do mundo natural é possível, baseando-se na observação e especulação. Batistella (2007) lembra que é válido retomar o retrocesso enfrentado no período medieval, sob o poder da igreja, onde foram desautorizadas todas as iniciativas de avanço no conhecimento das causas das doenças e até mesmo de sugestão de qualquer explicação que estivesse além da fé. Aqueles que insistissem enfrentariam os tribunais da Inquisição. Assim, durante a Idade Média Baixa os conceitos de higiene sofrem um retrocesso, os banhos públicos são encerrados por razões morais, decorrentes da influência da Igreja Católica. O enfraquecimento da religião coloca novamente o homem no centro do mundo, deixando-o só e responsável perante o seu destino e a sua morte, explica Bento (2013). Durante os séculos XI ao XIV, Schneeberger (2006) explica que é vivenciado na Europa a Baixa Idade Média que compreendeu a crise do modo de produção feudal e relações econômicas, sociais e culturais relacionadas. Nesse momento, ocorre a diminuição das invasões bárbaras, culminando em momentos de paz para a Europa, ocasionando um surto demográfico provocado pela fase de estabilidade. Com esse excedente populacional, surgem algumas consequências como: a marginalização dos servos e nobres, o surgimento das Cruzadas desencadeadas pela Guerra Santa, o Renascimento comercial-urbano, o fortalecimento de cidades e do poder centralizado nas mãos de monarcas, o nascimento da burguesia, o Fim do Império Romano do Oriente e a Queda de Constantinopla, que em 1453 é tomada pelos turcos. A partir dessas transformações, a história presencia um novo momento, e passamos a vivenciar novas experiências a partir da Idade Moderna, conforme descrito a seguir.