1 A utilização de imagens como mecanismo de manipulação de poder Paulo Gilberto Mossmann Sobrinho * Resumo O presente artigo tem por objetivo demonstrar o poder estabelecido por Júlio de Castilhos no Estado do Rio Grande do Sul, durante a implantação do regime republicano, através da prática de construção simbólica de sua imagem difundida em todo território sul-rio-grandense. A partir dessas imagens (retratos ou bustos) se criou um político idolatrado, numa alusão maquiavélica em que esse “ídolo” era amado e temido, o que se perpetua até hoje no imaginário político sul-rio-grandense. Palavras-chave: Imagem. Júlio de Castilhos. Partido Republicano Rio-Grandense. Positivismo. Simbolismo. Analisar, estudar, investigar uma imagem, a partir do viés histórico, requer mais do que um momento de apreciação da referida imagem. É necessário que se estabeleçam critérios científicos para dar sentido e valor histórico para tal documento. Apesar de não possuir ainda uma teoria própria para a análise de imagens, constata-se que é necessário a utilização de multidisciplinaridade para analisar esses documentos. Ou seja, diversos campos devem ser levados em conta para obtenção de um resultado da imagem estudada. Nesse sentido, se deve considerar, além das condições técnicas do equipamento (limitações ou melhorias que este propicia), os interesses de quem retirou a fotografia, ou registrou uma imagem, além das possíveis alterações e manipulações para a feição desta. Devido a esse aspecto, compreende-se o estudo da imagem através dos estudos históricos do fato registrado; da memória oral - das próprias pessoas que vivenciaram o momento ou da memória de momentos que estão perpassando na família através dela; além do auxílio da psicologia ao estudar o interesse do indivíduo em construir ou modificar a sua imagem. Tantas possibilidades na interpretação de imagens demonstram que um olhar ingênuo sobre estas pode criar uma realidade não existente, ou uma realidade deturpada. Sendo assim, cabe ao historiador fazer uso da multidisciplinaridade antes referida a fim de transformá-las em documentos históricos e, dessa forma, valorizar as imagens como instrumentos de perpetuação da memória. * Licenciado em História pelas Faculdades Integradas de Taquara – FACCAT e Especialista em História do Rio Grande do Sul pela Universidade Federal de Rio Grande – FURG. 2 A composição da política sul-rio-grandense no período de transição do Império para a República teve como referência Júlio de Castilhos, com a implantação do Partido Republicano Rio-grandense (PRR) no poder. Júlio de Castilhos, pessoa de carisma reconhecida e seguidor das ideias positivistas 1 de Augusto Comte, teve neste filósofo francês a base para a sua ideologia política que foi adotada no PRR e no Estado do Rio Grande do Sul. Contudo, não se pode descrever o positivismo posto em prática em sua plenitude e sim como uma adaptação de suas ideias às necessidades políticas administrativas locais. No Rio Grande do Sul, nota-se a utilização de ideias que contrariam a doutrina comtiana em sua essência. Um belo exemplo dessa contrariedade está no aspecto intervencionista do Estado na economia. Enquanto Comte prega o liberalismo absoluto da sociedade no “pensamento econômico, religioso, profissional” (Pesavento, 1979, p. 209), ocorria na administração sul-rio-grandense medidas opostas ao liberalismo, com o Estado intervindo fortemente na economia e na sociedade. Pode-se então, sugerir que a nomenclatura mais adequada para a filosofia posta em prática no Rio Grande do Sul é o “castilhismo”, visto que o termo “positivismo” representa a fonte de inspiração, mas não foi aplicada, em sua plenitude, no Estado sul-rio-grandense. O Estado do Rio Grande do Sul historicamente se caracterizou pelo autoritarismo da classe dominante presente no poder e da elite dirigente. Mesmo que essas, por vezes, não estivessem sempre em pleno acordo, muitas vezes foi tracejado um arranjo social entre tais classes, a fim de estabelecer assim um Estado autoritário: O modelo conservador-autoritário deita raízes nos fundamentos ideológicos do grupo mais representativo da propaganda republicana no Rio Grande do Sul que se inspira no ideário positivista. O Partido Republicano RioGrandense organiza-se, por iniciativa do clube republicano de Porto Alegre, em fevereiro de 1882, que convoca uma convenção regional na qual é eleita a primeira comissão executiva provisória formada por Ramiro Barcellos, Demétrio Ribeiro, Luis Leiseigneur, João Pedro Alves e Apolinário Porto Alegre. (TRINDADE, 1979, p.122). 1 Positivismo doutrina filosófica desenvolvida pelo francês Augusto Comte baseada na cientificidade, segundo a qual a ciência é considerada o único conhecimento possível e a empiria o único caminho metodológico válido. Através da ciência, Comte vislumbra o progresso e a ordem social, pilares de sua filosofia e religião positivista. 3 Júlio de Castilhos, apesar de não estar na relação inicial dos membros da comissão executiva do PRR, tornou-se um destacado filiado ao partido. Sua influência começa a se intensificar perante a sociedade gaúcha a partir do jornal “A Federação”, que serviu como instrumento de divulgação e propagação dos ideais republicanos e positivistas. A filosofia positivista tem, em maior evidência, o seu caráter autoritário, principalmente a partir da Constituição “Castilhista”, de 1891 2, na qual ficaram outorgados princípios como: Ausência da divisão de poderes e conseqüente concentração de poderes nas mãos do Presidente do Estado; ausência da Assembléia Legislativa por uma Assembléia de Representantes com atribuições exclusivamente orçamentárias; atribuições originais na organização municipal; substituição da proclamação liberal em torno de direitos e deveres dos cidadãos por garantias gerais de ordem e progresso. (TRINDADE, 1979, p. 123/124). Estava assim estabelecida a “ditadura científica” desejada por Júlio de Castilhos, que dava ao Presidente do Estado amplos poderes na sua administração numa tentativa de enfraquecer uma oposição que, nesse período, era constituída pela maioria do eleitorado. Tal contradição de uma lógica política “democrática”, onde a maioria tende a se estabelecer no poder, passa a ser compreendida através da seguinte análise, que vai do campo da ideologia político-social à capacidade de organização partidária: Se a doutrina positivista do PRR foi, em grande medida, responsável pelo tipo de posição tomada pelo partido em relação à sua forma de atuar no contexto político de que participou, deve-se creditar ao grupo que fundou e trabalhou no partido esta capacidade de organização e firmeza ideológica. Neste sentido, o Partido Republicano Rio-Grandense, embora minoritário (se comparado com o poderoso Partido Liberal, de Silveira Martins), compensou sua debilidade numérica através de uma disciplinada estruturação partidária combinada com forte coesão ideológica, definida nos Congressos Republicanos e expressa de forma combativa na propaganda e na imprensa partidária.(TRINDADE, 1979, p.125, Grifo meu). 2 A Constituinte, reunida a 25 de julho, recebeu do Governo o projeto elaborado por uma comissão integrada por Assis Brasil, Ramiro Barcelos e Castilhos. Segundo afirmaram os dois primeiros, o projeto, que não assinaram por discordarem da orientação positivista do mesmo, foi obra exclusiva de Castilhos. Tudo quanto não conseguiu introduzir na Constituição Federal, logrou transportar para a Rio-grandense. Promulgada a 14 de julho de 1891, a Assembléia Constituinte encerrou seus trabalhos com a eleição do Presidente do Estado, que recaiu em Júlio de Castilhos. Estava plenamente consolidada sua condição de chefe, que iria manter até o fim de seus dias, mesmo fora do poder (SOARES: 1998 p. 137). A partir dessa afirmação de SOARES, define-se a Constituição de 1891 como Constituição Castilhista pelo fato de ela ter sido elaborada exclusivamente por Júlio de Castilhos. 4 Uma das formas que Júlio de Castilhos utilizou para estabelecer-se no poder foi estabelecida através da propaganda e do simbolismo utilizado pelo PRR, verificase, na imagem a seguir (figura 1), a questão do estabelecimento de amplos poderes ao chefe do executivo, já que se tem, na imagem, um significado do ideal do poder de Júlio de Castilhos, representando com ele, simbolicamente, o próprio Estado. Figura 1: Busto de Júlio de Castilhos no centro do Brasão do Rio Grande do Sul, foto feita no acervo do Museu Júlio de Castilhos. Porto Alegre/RS. Buscando essa hegemonia no Estado, o PRR passa, após o conturbado período de estabelecimento da República, a almejar conquistas de influências no poderio partidário local: A preocupação principal era, neste momento, estabelecer sua base política de baixo para cima através do controle do poder político local. Tornava-se indispensável, para fortalecer-se enquanto partido, bem como para iniciar o processo de conquista do aparelho do Estado, que os lideres da propaganda, articulada nos clubes republicanos acoplassem o domínio partidário com a dominação política local. (TRINDADE, 1979, p.129). Como forma de estabelecer esta base política através do poder político local, Júlio de Castilhos estabeleceu a estratégia de construção da mitificação de sua imagem. Conforme já referimos, construiu sua imagem a partir da análise maquiavélica de ser amado e temido, ou ainda através da análise de Raoul Girardet, onde se pode fazer um conjecturação da construção do sagrado contra o profano, ou seja, ele representaria o sagrado e sua oposição o profano. Assim, diversas 5 imagens de Júlio de Castilhos foram espalhadas pelo Estado do Rio Grande do Sul, sejam estas imagens retratos ou bustos. Selecionou-se algumas imagens para fazer-se alguns comentários e demonstrar a maneira como Júlio de Castilhos era representado nessas imagens. Figura 2: Monumento a Júlio de Castilhos na Praça da Matriz em Porto Alegre/RS. Disponível em: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/c/c0/Julio-decastilhos_monument.jpg/200px-Julio-de-castilhos_monument.jpg Acesso em 27/09/2009 Figura 3: Retrato de Júlio de Castilhos, do qual se encontra uma cópia emoldurada na Prefeitura de Taquara/RS. Disponível em: http://4.bp.blogspot.com/_pOQUhaGzx4/SNZC2zG0kxI/AAAAAAAADr8/WuIDXtrO4HA/s400/julio+de+castilhos.jpg Acesso em 27/09/2009 Na figura dois está o pomposo monumento homenageando-o, erigido, logo após a sua morte, em 1903, na Praça da Matriz, em frente ao palácio do Governo Sul-rio-grandense. Dessa forma, o líder do poder sul-rio-grandense estaria se eternizando não só no imaginário, mas também “fisicamente” junto ao poder do Estado do Rio Grande do Sul. 6 Já a figura três, é uma réplica do retrato de Júlio de Castilhos, que até hoje se encontra em museus municipais espalhados pelo Estado do Rio Grande do Sul, pelo fato de ter sido distribuído em todos os municípios para que as pessoas passassem a reconhecer e “venerar” o político mais influente do Estado. Além dessas imagens, poder-se-ia destacar uma série de bustos, monumentos ou imagens que se encontram em diversas localidades no Rio Grande do Sul. Todavia, como já foi referido, este processo de utilização de imagens faz parte do processo de veneração e mitificação de políticos que foram implantados no Estado Sul-rio-grandense com o advento do PRR no poder (início do período republicano no Brasil 1889). Essa tendência de mitificação política foi tão presente durante o período em que o PRR esteve no poder no Rio Grande do Sul (cerca de três décadas), que seu sucessor, Borges de Medeiros, continuou a usar a mesma estratégia como forma de mitificar-se politicamente. Inclusive, o próprio Júlio de Castilhos foi homenageado post mortem por Borges de Medeiros em diversas localidades do Rio Grande do Sul. Considerações finais Buscou-se, neste breve artigo, reconstituir um pouco da vida política de Júlio de Castilhos, numa análise que visou demonstrar como a utilização da imagem, por parte deste político, possuía um caráter que ia além do reconhecimento de sua imagem “física”. Procurou-se evidenciar que as imagens estabelecidas de Júlio de Castilhos tinham como função primordial estabelecer o reconhecimento de seu poder, através da análise dos campos históricos e da construção de um imaginário que beira ao campo da psicologia em alguns aspectos. Desse modo, se percebe que houve a tentativa de transformá-lo num político de aspecto mitificado (amado e temido) e ao mesmo tempo sendo a imagem do bem (sagrado) contra o mal (profano), e que os políticos ou correntes políticas eram contrários ao seu poder e à expressão desse poder. Referências FÉLIX, Loiva Otero, Coronelismo, borgismo e cooptação política. 2. ed. Porto Alegre/RS: Ed. UFRGS, 1996. 7 MESQUITA, Zila; SILVA, Valéria Pereira da. Lugar e imagem: desvelando significados. Disponível em http://www.uab.furg.br/mod/resource/view.php?id=7391 acesso em 21/09/2009 MONTEIRO, Rosana Horio. Arte e ciência no século XIX: um estudo em torno da descoberta da fotografia no Brasil. 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