Grupo de trabalho II – Cidadania de Direitos Humanos no MERCOSUL
BOLSA FAMÍLIA: Um Programa dividido entre a lógica do Direito e da
ajuda
Viviane Rodrigues Pires, Bacharel em Serviço Social pela UFRJ, Assistente Social da
Coordenação do Cadastro Único/ Bolsa Família na Prefeitura de Resende-RJ.
Resumo
Este estudo busca discutir o programa de transferência de renda
Bolsa Família não somente como uma generosidade do estado ou
uma política de governo, mas apontar como a entrada dessas
famílias para o Programa contribuiu para o mercado, atendendo
desta forma ao capital-neoliberal. Para além dessa configuração já
apresentada, nos interessa explorar o Programa sob a ótica do
Direito. Foi analisado o Programa Bolsa Família e sua relação com a
política de educação vinculada as condicionalidades do programa e
esta com o acompanhamento familiar socioassistencial. Utilizando
para isto a metodologia qualitativa, na busca de uma reflexão
dialética, no campo da teoria crítica.
Introdução
O interesse por este estudo partiu da percepção da importância que o
Programa Bolsa Família alcançou na sociedade brasileira, seja pela transferência de
renda, seja pelo aquecimento econômico gerado por ele. Além disso, o objeto de
estudo também é meu objeto de trabalho, por estar lotada na função de Assistente
Social na coordenação do Cadastro Único/ Bolsa Família no município de Resende/
RJ. O tema proposto tem relevância a medida que não resume o assunto ao aspecto
da transferência de renda somente, mas discute sua relação com as políticas sociais
e a efetivação de direitos.
Entender que a transferência de renda não acontece por simples generosidade
do estado, mas porque este precisa atender uma exigência capitalista neoliberal
para inserção desses indivíduos na sociedade enquanto consumidores e atenuando
os efeitos mais severos da pobreza. Uma substituição do Estado de bem-estar,
contribuindo para o aumento cada vez maior da concentração de renda e a
manutenção de uma economia centrada na informalidade.
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Apresentaremos o Programa Bolsa Família, seus critérios, condicionalidades,
valores de benefícios, a distinção entre pobreza e extrema pobreza e sua evolução
desde o Bolsa Escola até o ano de 2013.
Discutiremos a política educacional vinculada as condicionalidades do
Programa Bolsa Família, a desproporção entre o acesso e a qualidade do ensino
prestado.
E por fim, apresentaremos os efeitos dessas condicionalidades e sua relação
com o acompanhamento familiar socioassistencial, as alterações que ocorreram em
relação a esses efeitos e o acompanhamento.
Para a realização deste estudo utilizou-se a análise qualitativa na busca de
uma reflexão dialética, no campo da teoria crítica, onde apresentarei uma análise do
material coletado sobre o assunto em questão, sem a pretensão, no entanto, de
esgotar a discussão sobre tal tema, que é tão polêmica e complexa. Uma das
funções desse método “diz respeito à descoberta do que está por trás dos
conteúdos manifestos, indo além das aperências do que está sendo comunicado”.
(Minayo, ET. AL, 1993, p. 74). Para tanto buscou-se analisar material teórico, fontes
como jornais, censos educacionais, demográficos, planilhas de gatos públicos, entre
outros. Associando as unidades de registro às unidades de contexto, seguindo a
ordem cronológica de pré-análise, exploração material e interpretação dos dados
obtidos.
Transferência de renda: autonomia ou dependência?
A princípio nos interessa problematizar a transferência de renda sob dois
aspectos: o da autonomia, como condição de cidadania, ou da dependência como
peculiaridade do processo de focalização.
Citando os objetivos fundamentais de nossa Carta Magna em seu artigo 3º que
diz:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o
desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a
marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV –
promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo,
cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. (BRASIL,
1988, P. 01).
2
Entendemos dessa forma que as transferências de renda não acontecem por
acaso, ou porque o governo decidiu ser “generoso” com os pobres. E não somente
por ser uma obrigação governamental descrita em lei, mas também, e
principalmente, porque passa a ser exigido e necessário a criação desses tipos de
Programas de transferência de renda mínima1 para a manutenção do sistema
capitalista neoliberal.
O debate internacional tem apontado para os Programas de Transferência de
Renda como possível solução para o enfrentamento da pobreza, crise do emprego.
E de acordo com a perspectiva liberal/ neoliberal o programa de transferência de
renda é considerado como mecanismo compensatório e residual funcionando como
política substitutiva dos programas e serviços sociais e como mecanismo
simplificador dos Sistemas de Proteção Social. São mantedores dos interesses do
mercado.
Têm como objetivos garantir a autonomia do indivíduo enquanto
consumidor, atenuar os efeitos mais perversos da pobreza e da
desigualdade social, sem considerar o crescimento do desemprego e
a distribuição de renda, tendo como orientação a focalização na
extrema pobreza, para que não ocorra desestímulo ao trabalho. O
impacto é, necessariamente, a reprodução de uma classe de pobres,
com garantia de sobrevivência no limiar de uma determinada Linha
de Pobreza. (Silva, ET. AL., 2004, p. 37).
A perspectiva progressista/ distributivista considera os programas de
transferência de renda como forma de redistribuição da riqueza socialmente
produzida e como uma política de complementação aos serviços sociais básicos já
existentes com o objetivo de alcançar a autonomia dos sujeitos. O caminho seria a
focalização positiva capaz de incluir todos que necessitam do benefício ou os
cidadãos em geral, vislumbrando a garantia de uma vida digna para todos, gerando
um impacto de inclusão social.
O que percebemos no Brasil é uma mistura dessas duas vertentes, com
enfoque maior e acentuado para a primeira. Apesar do investimento nos gastos
sociais terem aumentado consideravelmente a partir de 2006 estes ainda não são
Alguns autores utilizam o conceito de “Programas de transferência de Renda”, tais como
Silva (2004) e outros utilizam o conceito de “Programa de Renda Mínima” como Lavinas
(2000) que também trabalha com a idéia de Programas de Transferência de renda
focalizados (Lavinas, 2007).
1
3
suficientes e nem empregados de forma a garantir uma total autonomia dos sujeitos.
O que temos é programa de transferência de renda em substituição a política de
bem-estar social.
No caso de um Estado de bem-estar altamente desenvolvido, que
oferece quase tudo gratuitamente aos cidadãos (educação,
assistência de saúde, seguro-desemprego, auxílio para moradia
etc.), uma baixa renda não implicaria necessariamente uma vida sem
confortos, na qual as necessidades básicas permanecem não
satisfeitas. Por outro lado, se o Estado não garante os serviços
mencionados, até uma renda relativamente elevada pode não ser
suficiente para proteger os indivíduos dos riscos normalmente
ligados a pobreza. (Rego & Pinzani, 2013, p. 149).
O gráfico a seguir foi extraído do Jornal Folha de São Paulo de 20/10/2013 e
demonstra a trajetória desses gastos públicos à título ilustrativo.
Figura 1 – A evolução das principais despesas federais
Fonte: www.dinheiropublico.blogfolha.uol.com.br, acesso em 14/02/2014.
Como é tratado por Behring (2007) antes de comemorarmos os resultados
referentes aos gastos públicos com a assistência social ilustrada no gráfico acima é
necessário compreender que tal investimento traz embutido os próprios Programas
de Transferência de Renda. Não correspondendo, por tanto, um crescimento
significativo para um investimento no Sistema Descentralizado e Participativo,
conforme o espírito da LOAS. Esses benefícios irão consumir mais de 93,8% deste
orçamento, enquanto os serviços e outros consumirão o restante.
4
A saúde praticamente permaneceu estagnada e a educação só recebeu um
salto no investimento a partir de 2008. Reflexos da opção do sistema econômico
adotada pelo Estado.
A opção do Estado pelo sistema econômico moldado dentro da lógica
neoliberal gerou conseqüências para o mundo do trabalho como, desemprego
massificado, subemprego, trabalho informal, excluindo os trabalhadores do Sistema
de Proteção Social, obtidos por meio da carteira assinada estabilidade e segurança
no trabalho. E como forma de atenuar os efeitos causados por essa lógica - o
aumento da pobreza e da miséria no país – ganham destaque os programas sociais
orientados
por
políticas
compensatórias
desvinculadas
das
políticas
de
desenvolvimento econômico que faz aumentar cada vez mais a concentração de
renda e a manutenção de uma economia centrada na informalidade.
Dessa forma, o debate sobre a transferência de renda é de suma importância
para compreendermos o mais expressivo programa dessa natureza no cenário
brasileiro – O Bolsa Família.
O Programa Bolsa Família
O Cadastro Único2, criado em 2001 e regulamentado pelo Decreto nº
6.135/2007, aceita inscrição de famílias3 com renda bruta de até 3 salários-mínimos
ou per capta de meio salário-mínimo, sendo que para recebimento do Bolsa Família
esta família deverá estar em margens de pobreza ou extrema pobreza. (BRASIL,
2007)
O Programa Bolsa Família foi lançado em 2003 por meio da Medida provisória
nº 132 como Política de Governo de combate a fome e a miséria no país. Em 2004 é
convertida na Lei Nº 10836 e regulamentada pelo Decreto Nº 5.209/2004 que vem
sendo aprimorado por legislações complementares.
O Cadastro Único é um instrumento de identificação e caracterização socioeconômica
das famílias de baixa renda. Suas informações podem ser utilizadas pelo governo para
obter o diagnóstico socioeconômico das famílias cadastradas, possibilitando a análise
das suas principais necessidades.
3 O Decreto 6135/2007 que regulamenta o Cadastro Único considera família como:
unidade nuclear composta por uma ou mais pessoas, eventualmente ampliada por
outras que contribuam para o rendimento ou tenham suas despesas atendidas por ela,
todas moradoras do mesmo domicílio.
2
5
Criado com o propósito de unificar no Cadastro Único ações e programas de
transferência de renda do Governo Federal: Vinculados a Educação (Bolsa Escola);
Saúde (Bolsa Alimentação) e o Programa Auxílio Gás. Apresentando três principais
eixos sendo a transferência de renda para alívio imediato da pobreza; as
condicionalidades para acesso a direitos sociais básicos de saúde e educação e
ações e programas complementares objetivando a superação de vulnerabilidade das
famílias. (BRASIL, 2004).
Para fins de Bolsa Família será caracterizado como extremamente pobre a
renda mensal per capta de até R$ 70,00 (setenta reais), inicialmente (ano de 2004)
esse valor era de R$ 50,00 (cinquenta reais). Essas famílias, identificadas como
extremamente pobres, recebem o benefício básico no valor de R$ 70,00 (setenta
reais) independente de sua composição familiar. Para ser caracterizada como pobre
a família deverá apresentar renda mensal per capta entre R$ 70,01 (setenta reais e
um centavo) e 140,00 (cento e quarenta reais), inicialmente (ano de 2004) este valor
não poderia ultrapassar os R$ 100,00 (cem reais). Nesse caso, além da per capta a
família pobre para receber o benefício deverá ter filhos menores de 18 anos, ser
gestante ou nutriz. (BRASIL, 2004).
Sendo dividido da seguinte forma:
Tabela 1 – Valores dos Benefícios Variáveis no Bolsa Família
Benefícios variáveis (valor = 32,00)
Máximo de 5
Crianças de 0 à 15 anos
Gestante
Nutriz
Benefício variável Jovem (valor = Máximo de 2
38,00)
Fonte: Elaboração própria, (2014).
Adolescentes de 16 à 17 anos
Em 2012 o Governo Federal lança o BSP (Benefício para superação da
pobreza extrema) no âmbito da ação Brasil carinhoso, que passa a ser
regulamentado pelo Decreto 7.931/2013. Tem como objetivo garantir renda mínima
de R$ 70,00 (setenta reais) por pessoa da família beneficiária que mesmo
recebendo outros benefícios do programa ainda permanecem em pobreza extrema.
O valor recebido não é fixo como os anteriores ele varia de família pra família, pois
trata-se de uma complementação, a fim de que a família saia da situação de
extrema pobreza. (BRASIL, 2013).
6
Todos esses valores se somam e se combinam, podendo a família receber o
benefício básico + 5 variáveis + 2 BVJ + o BSP, lembrando que quanto maior é o
grau de vulnerabilidade que a família esteja exposta, maior será o valor do benefício
recebido pela família. Visto que, uma família que se encontre na linha de pobreza
com apenas um filho até 15 anos, receberá apenas R$ 32,00 (trinta e dois reais) de
benefício, outra família que esteja na linha de extrema pobreza e que possua
apenas um filho receberá R$ 70,00 + 32,00, podendo ainda receber o BSP se na
soma dos benefícios sua renda per capta não atingir o valor de R$ 70,00 (setenta
reais).
Para fins de distinção entre pobreza e extrema pobreza, podemos entender
que:
Os pobres extremos são as pessoas que não possuem um nível de
nutrição suficiente, o qual incide em um desempenho físico e mental
deficiente, que não lhes permite participar do mercado de trabalho,
nem em atividade intelectuais como a educação. Além do mais, a
condição de pobreza extrema praticamente impede qualquer
mobilidade social... Por outro lado, os pobres moderados são os que,
devido ao grau de desenvolvimento de um país em um momento
dado, não satisfazem as que se consideram como necessidades
básicas. Diferenciam-se dos pobres extremos por terem a
capacidade, porém não as oportunidades, de participar de atividades
econômicas e intelectuais. (F. Vélez apoud Diertelen, 2003, p. 27; in
Rego & Pinzani, 2013, p. 152).
Para garantir a manutenção do benefício, a família deverá cumprir as
condicionalidades de educação4 e saúde5 e assistência social6.
Formalmente o PBF avança no sentido de caracterizar a política como direito,
criando uma lei específica para ela (lei 10836/2004), tendo seu próprio ministério,
formuladores estatísticos e interligando-a a outras legislações e políticas como as de
As crianças de 06 à 15 anos deverão estar matriculadas em sistema regular de ensino
público (municipal, estadual ou federal) ou privado cumprindo frequência mínima de
85%. Para os adolescentes de 16 à 17 anos a frequência exigida é de 75 %.
5 Em relação à saúde o acompanhamento é feito semestralmente e serão realizados pelas
unidades básicas de saúde – SUS consistindo na manutenção do calendário vacinal em
dia, o acompanhamento do desenvolvimento das crianças de 0 a 07 anos, o
acompanhamento do pré-natal (só receberá o benefício variável gestante, a gestante
identificada no acompanhamento da saúde) e de mulheres na faixa etária entre 14 à 44
anos.
6 Para crianças e adolescente de até 15 anos em risco ou que foram retiradas do trabalho
infantil e que devem apresentar frequência mínima de 85% nos serviços
socioeducativos.
4
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Segurança Alimentar, Saúde e Educação. Coloca-se assim como protagonista no
debate político.
E mesmo tendo derivado de programas de governo anterior (como bolsa escola
e vale gás) ele é diferenciado e apresenta um salto qualitativo, pois segundo Rego &
Pinzani além de unificar os programas federais, estaduais e municipais existentes,
coloca-se como um programa de inclusão social, econômica e cidadã e não somente
um apoio a indivíduos em idade escolar (Bolsa Escola) ou uma ajuda para os gastos
domésticos (Vale Gás), dando a esta renda em dinheiro uma nova configuração na
relação do pobre com a sociedade.
Neste contexto o Bolsa Família e o SUAS (Sistema Único de Assistência Social)
7
apresentam-se como verdadeiros avanços para a Política Social brasileira.
Por outro lado, na prática, o programa não garante a emancipação dos sujeitos,
pois as políticas que deveriam garanti-las (educação, trabalho e renda) são de baixa
qualidade e com isso os beneficiários do programa perpetuam-se em condições de
dependência e miserabilidade.
Além disso, a população que o recebe ainda não consegue perceber este
benefício como direito, como demonstra Rego e Pinzani em sua pesquisa: “Uma
maioria relevante das entrevistadas (cerca de 75%) afirmou que a bolsa é um favor
do governo. Só poucas afirmaram que o governo tem o dever de ajudar os pobres e
apenas 5 usaram a palavra direito”. (Rego & Pinzani, 2013, p. 87-88).
Como a educação seria um viés para emancipação desses sujeitos faremos no
próximo tópico uma breve discussão sobre o tema e se essa política educacional é
capaz de emancipar os cidadãos e fazê-los se perceberem como sujeitos de direito.
A Política educacional no contexto neoliberal
No Brasil existe um descompasso entre acesso a educação e a qualidade de
ensino prestada. Enquanto as taxas de matrícula tiveram um aumento expressivo
7
É importante destacar um momento de retrocesso do Governo anterior ao de Lula que
apresentou como o “carro chefe” da política social do governo: o Comunidade Solidária
como política social ligada ao 3º setor, voltada para responsabilidade social, benesse,
ajuda ao próximo e uma desresponsabilização do Estado no que tange estas questões.
Silva, Yazbek & Giovanni em A Política Social Brasileira no Século XXI colocam que a
lógica adotada pelo Estado brasileiro, justificada pela ideologia da modernidade, faz com
que se tenha um Estado que rebaixa ainda mais sua responsabilidade social. Essa
responsabilidade vem sendo transferida para a sociedade, ficando esta responsável pela
solução dos problemas sociais mediante práticas de parcerias e de solidariedade.
8
nas últimas décadas, os indicadores de qualidade não cresceram na mesma
proporção.
De acordo com os dados do IBGE 2010, a taxa líquida de matrícula no Ensino
Fundamental no Brasil foi de 91,1%, no que poderíamos chamar de uma quase
universalização do acesso. Em relação ao Ensino Médio, apesar de apresentar uma
taxa bem menor de acesso, em relação ao Fundamental, teve em 10 anos uma
elevação em seu índice, passado de 32,7% em 1999 para 50,9% em 2009. Há
diferença no acesso também quando comparamos a renda familiar: para os
adolescentes entre 15 e 17 anos com renda familiar mais abastada a inserção é de
32% já para as famílias com renda mais elevada esse número chega a 77,9%. E a
desigualdade no acesso a educação acaba se reproduzindo na qualidade do ensino,
pois as nota média no SAEB das escolas públicas são bem inferiores as da escola
privada, mais agravante ainda é o fato de 90% dos alunos matriculados na educação
básica estarem inseridos na rede pública de ensino.
Logo, garantir a matrícula do aluno, infelizmente não significa garantir sua
permanência na escola e ensino de qualidade que possibilitem a ele inserção no
mercado formal de trabalho, salários dignos e ascensão social.
Esses dados apontam para a mercantilização da educação. “O avanço de um
movimento de privatização das políticas sociais mediatizado por nefasta articulação
do Estado com o setor privado lucrativo, principalmente no que se refere às políticas
de educação, saúde e habitação.” (Silva, ET. AL., 2004, p. 23). Tornar o que é
público obsoleto reafirmando a eficiência e a qualidade do que é privado.
A condicionalidade da educação foi pensada como forma de romper o ciclo
intergeracional de pobreza. “Ao garantir a permanência dessas crianças na escola,
elas desenvolveriam habilidades/competências essenciais para a obtenção de
trabalhos qualificados e melhor remunerados no mercado de trabalho.” (Fahel, ET.
AL., 2011, p.05) deveria, então, ser um ponto explorado para a mobilidade social,
melhoria da qualidade de vida e para superação da dependência do Bolsa Família.
Ao não garantir uma educação pública de qualidade, essas famílias ficam fadadas a
manterem sua condição social e sua dependência no bolsa família ou qualquer
auxílio para sua subsistência. É o que a literatura chama de humilhação dos
cidadãos pelo Estado:
9
Ora: enquanto a alfabetização da população representa um dever
incondicionado do Estado, a oferta de uma formação qualificante
nem sempre é considerada um dever desse tipo. Pode-se dizer que
um Estado que não ajude seus cidadãos a melhorar sua condição
social por meio de uma educação e formação adequadas está
humilhando-os? É evidente que tal Estado não está minimamente
interessado nas Capabilities8 dos seus cidadãos (ou de certas
categorias de cidadãos), e isso representa uma foram de
humilhação. (Rego & Pinzani, 2013, p. 64).
Dessa forma, é possível entender que a política educacional no contexto
neoliberal se configura como uma educação para alienação, a serviço da ordem do
capital, pois se a educação é instrumento para fornecer conhecimento e legitimar
valores ela não poderia ficar fora da lógica da acumulação a permitir o consenso da
reprodução do sistema de classes.
Sendo assim, percebemos que este Estado não está nem um pouco
interessado em emancipar esses sujeitos investindo em um sistema educacional de
qualidade que permita aos indivíduos capacidades de escolhas, mas sim os
mantenha presos a esta condição de humilhação.
Esta humilhação se agrava quando o governo vincula a educação (esta
educação apresentada) como uma condicionalidade para o Bolsa Família. A fim de
compreender como essa vinculação à condicionalidade agrava esta humilhação
discutiremos no tópico a seguir as condicionalidades do Programa.
As Condicionalidades do Programa Bolsa Família
Ao descumprir alguma das condicionalidades impostas pelo programa o
benefício familiar sofre efeitos (sanções) gradativos:
Tabela 2 – Relação entre efeito e suas repercussões sobre o benefício no Bolsa
Família
Efeito
Advertência
Bloqueio
Suspensão
8
Repercussão sobre o benefício
Não incide no recebimento do benefício, família apenas é advertida
sobre o descumprimento.
O pagamento do benefício fica retido por um mês, sendo liberado no
mês seguinte.
O pagamento do benefício fica retido por 2 meses sem pagamento de
retroativo. Pode ocorrer mais de uma vez, à medida que for constatado
Segundo Armatya Sen (apud, Rego & Pinzani) Capabilites são chances ou
oportunidades de liberdade de escolhas e quanto maior é seu leque de opções mais alto
é seu nível de liberdade e de bem-estar ao mesmo tempo.
10
descumprimento.
Cancelamento
Só será cancelado o benefício das famílias que estiverem em fase de
suspensão, em acompanhamento socioassistencial e registro no
SICON cumulativamente e ainda assim por um período de 12 meses
permaneçam em situação de descumprimento.
Fonte: Elaboração própria, (2014).
Até 2012 esses efeitos eram diretos e com duração de 18 meses, ou seja, ao
descumprir a condicionalidade uma vez, a família levaria 18 meses para ter sua
“ficha limpa” novamente.
A partir de 2013 foram empregadas algumas mudanças nesse processo e a
mais significativa delas foi a alteração para o cancelamento do benefício que só
acontecerá mediante acompanhamento socioassistencial por prazo de 12 meses.
Outra mudança é sobre a duração dos efeitos que passaram de 18 meses para 6
meses.
Essas
alterações,
segundo
Marcos
Maia
Coordenador
Geral
de
condicionalidades do MDS geraram efeitos positivos, pois em março de 2012, antes
da alteração, foram registrados 21.000 cancelamentos de benefícios por
descumprimento. Em 2013, nenhuma família teve o benefício cancelado por este
motivo. (BRASIL, 2014).
Apesar de desde 10 de setembro de 2009, ter sido publicado, por meio da
Resolução CIT n° 07, o Protocolo de Gestão Integrada de Serviços, Benefícios e
Transferências de Renda no âmbito do Sistema Único de Assistência Social (Suas)
que estabelece procedimentos necessários para garantir o atendimento e
acompanhamento prioritário de famílias do Programa Bolsa Família nos serviços
socioassistenciais de acompanhamento familiar, especialmente as que apresentam
sinais de maior vulnerabilidade e risco social. Neste sentido, assume que o
descumprimento de condicionalidades no PBF pode revelar situações de alto grau
de vulnerabilidade das famílias e, portanto, orienta que as famílias em
descumprimento de condicionalidades sejam priorizadas no que se refere ao
atendimento e acompanhamento pelos serviços socioassistenciais ofertados nos
Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e nos Centros de Referência
Especializados de Assistência Social (CREAS).
Conforme menciona o Protocolo:
11
A garantia de renda mensal articulada com a inclusão de famílias em
atividade de acompanhamento familiar no âmbito do SUAS, bem
como em serviços de outras políticas setoriais, é compreendida como
a estratégia mais adequada para se trabalhar a superação das
vulnerabilidades sociais que dificultam que a família cumpra as
condicionalidades previstas no programa. (BRASIL, 2009).
Somente em 2013 o acompanhamento socioassistencial passa a ter ênfase e
prioridade na agenda das discussões e metas a serem alcançadas pelos municípios.
Ao não permitir esse acompanhamento, o Estado intensifica a humilhação,
como dito anteriormente, desprotegendo estas famílias.
Se muitas nem se quer sabem o que são condicionalidades e como devem
atendê-las, sabem até que seus filhos devam ir à escola, mas desconhece o limite
de faltas permitido para não cair em descumprimento. A condicionalidade, como era
pensada até 2012, agia apenas como ferramenta de punir os sujeitos, sem ao
menos deixar a eles o direito de ampla defesa ou de escolha, sendo uma cruel
desproteção do estado que deveria proteger seus cidadãos.
Considerações finais
Realmente o Programa Bolsa Família adquiriu uma importância, alcance, e
magnitude expressivas na sociedade brasileira, e até mesmo reconhecimento
internacional, o que não me causa muito espanto, uma vez que atende com presteza
as exigências do sistema econômico globalizado. Mas também atende a
sobrevivência de milhares de famílias excluídas deste sistema, que por muitas vezes
se submeteram (e algumas ainda se submetem) ao trabalho escravo, danoso e
penoso com remuneração quase nula (quando não nula). Trouxe uma modesta
autonomia e dignidade para vida dessas pessoas. Permitindo a sobrevivência da
democracia política que não é compatível com altos graus de desigualdade de
miséria e requer, assim, um limite no nível destas.
Desde a sua criação em 2003 até o cenário atual houve muitas mudanças que
faz do programa uma importante ferramenta de alcance dos sujeitos em pobreza e
extrema pobreza, como mudanças nos valores para o acesso ao benefício e nos
valores dos benefícios, o aumento na quantidade de variáveis que podem ser
recebidos e a criação do BSP.
12
É necessário um sistema público educacional de qualidade, que não preveja
somente o acesso, mas uma modalidade de ensino capaz de, além de acesso ao
mercado de trabalho, possibilitar ao sujeito ter um conhecimento sobre cidadania,
política e direitos. Isso não só romperia com o ciclo intergeracional de pobreza como
seria o início do caminho para aquisição da autonomia mais ampla.
Colocar a condicionalidade para o Programa, sem antes prevê uma melhoria
na educação, saúde, assistência social e sem garantir um acompanhamento
socioassistencial para essas famílias é fadá-las novamente à exclusão, levando a
perda de um direito por não ter sido garantido um anterior. Logo, a condicionalidade
deve
ser
entendida
como
uma
obrigatoriedade
para
o
Estado,
sendo
subseqüentemente extensiva a família beneficiária do programa.
Por fim, percebemos que o Programa Bolsa Família teve uma grande evolução
desde o chamado ainda bolsa escola, melhorando no sentido de efetivar a inclusão
social, mas ainda é frágil no que tange a autonomia dos sujeitos e o direito
propriamente dito, sendo utilizado com fins eleitoreiros, dando a ele características
assistencialistas, paternalistas, que não solucionam a pobreza e a miséria, apenas
amenizam o seu fardo.
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13
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BOLSA FAMÍLIA: Um Programa dividido entre a lógica