PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ
CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
LETÍCIA BORGES DA SILVA
MULTICULTURALISMO E BIODIVERSIDADE – UM
DESAFIO AO DIREITO VIGENTE
CURITIBA
2007
Letícia Borges da Silva
Multiculturalismo e biodiversidade – um desafio ao
direito vigente
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Direito
Econômico e Social da PUCPR como requisito parcial para obtenção
do título de Mestre em Direito.
Orientador: Profº Drº Carlos Frederico Marés de Souza Filho
Curitiba
Janeiro de 2007
Letícia Borges da Silva
Multiculturalismo e biodiversidade – um desafio ao
direito vigente
Dissertação apresentada como requisito
parcial para obtenção do grau de Mestre
pelo Programa de Pós-graduação em
Direito Econômico e Social da PUCPR.
Aprovada pela Comissão Examinadora
abaixo assinada.
__________________________________
Profº Drº Carlos Frederico Marés de Souza Filho
Orientador
Centro de Ciências Jurídicas e Sociais - PUCPR
_________________________________________
Profª Drª Claudia Maria Barbosa
Centro de Ciências Jurídicas e Sociais - PUCPR
________________________________________
Profª Drª Alejandra Leonor Pascual
UNB
Curitiba, 14 de Fevereiro de 2007.
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total
ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, da
autora e do orientador.
Letícia Borges da Silva
Graduou-se em Direito pela Pontifícia Universidade
Católica do Paraná em 2005. Desenvolveu projetos de
pesquisa vinculados ao Programa Institucional de Bolsas
para a Iniciação Científica. É advogada.
Ficha Catalográfica
S586m
2007
Silva, Letícia Borges da
Multiculturalismo e biodiversidade : um desafio ao direito vigente / Letícia
Borges da Silva ; orientador, Carlos Frederico Marés de Souza Filho. – 2007.
122 f. ; 30 cm
Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Paraná,
Curitiba, 2007
Inclui bibliografia
1. Nativos – Estatuto legal, leis, etc. – América Latina. 2. Multiculturalismo.
3. Diversidade biológica. 4. Direito. 5. Capitalismo. 6. Democracia. I. Souza Filho,
Carlos Frederico Marés de. II. Pontifícia Universidade Católica do Paraná.
Programa de Pós-Graduação em Direito. III. Título.
Dóris 4. ed. – 341.1234098
CDD 20. ed. – 306. 446
575.2
A Carlos Henrique, Joselice, Adilton e Rodrigo
pelo amor, carinho e confiança.
Agradecimentos
A Deus, pela dádiva de uma vida saudável e exuberante.
Ao insigne orientador, Professor Carlos Frederico Marés de Souza Filho, pela
atenção, empenho e competência emprestados, tornando possível vivenciar,
em cada contato, um momento de crescimento e aprimoramento pessoal.
À CAPES e à PUCPR, nas pessoas dos Professores Carlos Marés, Claudia
Barbosa e Antônio Carlos Efing, integrantes da Comissão de bolsas, pelos
imprescindíveis apoios concedidos.
À minha valiosa família Carlos Henrique, Joselice, Adilton, Rodrigo, Elbio
(in memoriam) Mara, Ricardo, Odilon e Helena que souberam suportar
paciente e incondicionalmente as exigências do processo intelectivo e de
pesquisa.
Às Professoras Claudia Barbosa e Alejandra Pascual pelas imprescindíveis e
brilhantes colaborações dadas ao presente trabalho.
Aos amigos, professores e funcionários da PUCPR pela ajuda.
A Eva Curelo, Isabel Rosa, Flávia Barossi, Mariângela Ohrem, Clarissa
Wandscheer, Paulo Pankararu, Janaína Paim, Karine Finn, Patrícia Carvalho,
Patrícia Piazzaroli, Ana Luiza Piva, Leonardo Serafini, Mariana Castro, Ana
Paula Liberato pelo carinho e amizade de sempre.
A todos aqueles que direta ou indiretamente contribuíram para minha
formação como ser humano.
Muito Obrigada!
Resumo
Borges da Silva, Letícia; Souza Filho, Carlos Frederico Marés.
Multiculturalismo e biodiversidade – um desafio ao direito
vigente. Curitiba, 2007. 122p. Dissertação de Mestrado – Programa
de Pós-graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica do
Paraná.
O multiculturalismo e a biodiversidade são conceitos novos para o
direito moderno, que foi concebido dentro de uma visão individual e
positivista, centrada na propriedade, posto que fruto da consolidação do
sistema capitalista. Na América Latina, os povos indígenas, assim como
outras comunidades culturalmente diferenciadas, não compartilham do
mesmo direito, vivem conceitos e estruturas próprias sociais e de justiça. O
Estado e o direito passam por uma crise. Uma das formas de superá-la é
consolidar a aceitação do pluralismo jurídico, ao invés de pretender controlar
todas as dinâmicas sociais complexas da atualidade, que sempre conviveram
com o pretensioso monismo jurídico, ainda que não reconhecido por ele. No
presente trabalho, através do método indutivo, faz-se uma análise crítica do
sistema jurídico vigente, no âmbito nacional e internacional, propondo uma
abertura, a um só tempo, política, jurídica e ideológica, no sentido de
viabilizar a concretização dos valores do multiculturalismo de modo efetivo,
aliado à biodiversidade, numa perspectiva de sustentabilidade humana e
socioambiental aliada à necessidade de trilhar caminhos que conduzam à
convivência pacífica e à felicidade coletiva, parâmetros edificadores da paz
mundial.
Palavras-chave
Diversidade
cultural;
América
Latina;
povos
indígenas;
biodiversidade; Estado; direito moderno; capitalismo; democracia; pluralismo
jurídico; direitos socioambientais.
Abstract
Borges da Silva, Letícia; Souza Filho, Carlos Frederico Marés
(Advisor). Multiculturalism and biodiversity – a challenge for law
in vigor. Curitiba, 2007. 122p. MSc. Dissertation – Programa de Pósgraduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica do Paraná.
Multiculturalism and biodiversity are new concepts for modern law
that had your basis on an individual and positivist view centered in the
property right to suport the capitalism system. In Latin America, indigenous
people and others culturally differentiated communities use to have their own
concepts, justice and social structures. Thus, they do not share the others
people´s usual law. There is a crisis of State and law. A way to surpass this
crisis is to perform juridical pluralism actions instead of intending to control
all the nowadays complex social dinamics, that always lived together with the
pretencious juridical monism, in despite of not recognized by it. In the
present work the juridical system in vigor, as national as international, was
analysed by an in inductive method. The propose is a political, juridical and
ideologic change able to realize the multiculturalism value and the associated
biodiversity , in order to provide a human and social environmental
sustainable perspective to guide all in the rhumb of pacific convivence and
colective happiness, builder parameters of world-wide peace.
Keywords
Cultural diversity; Latin America; Indigenous people; biodiversity;
State; modern law; capitalism; democracy; juridical pluralism; social
environmental rights .
Sumário
1. Introdução
13
2. Do individual ao coletivo: relação entre capitalismo, Estado,
multiculturalismo e biodiversidade
17
2.1 O direito moderno ocidental atrelado ao sistema
econômico liberal e capitalista
19
2.1.1 A origem do capitalismo e as transformações sociais
21
2.1.2 Propriedade privada e a visão contratualista do direito
26
2.2 Uma mudança paradigmática
27
2.3 - A conquista dos novos direitos coletivos
29
2.4. Povos Indígenas: desrespeito e reconhecimento de direitos
32
2.5 Multiculturalismo nas constituições latino-americanas
34
2.6. Panorama internacional
36
2.6.1 O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos,
o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais
e Culturais e a Convenção Internacional
sobre a Eliminação de todas as formas de
Discriminação Racial
37
2.6.2 A Organização Internacional do Trabalho e a
Convenção 107
2.6.3 A Convenção 169 da OIT
2.6.3.1 A redefinição do conceito de povos
39
41
42
2.6.3.2 O princípio da autodeterminação dos povos 44
2.7. Multiculturalismo relacionado à biodiversidade
46
3. Realidade multicultural: globalização,
democracia e sistemas jurídicos diversos
51
3.1 Multiculturalismo: um desafio contemporâneo
51
3.2 Globalização contra-hegemônica
54
3.3 Democracia e diversidade na sociedade contemporânea
55
3.3.1 Lutas democráticas entrelaçadas: o movimento
socioambiental
58
3.4 Para além do direito positivo
60
3.5. A sociedade e o sistema jurídico tukano
62
3.5.1 Poder, ética e direito
3.5.1.1 Autoridades tukano
3.5.2 Relações com a terra, herança e produção
3.5.2.1 Meio ambiente e biodiversidade
63
64
65
66
3.5.3 Obrigações, contratos e comércio
67
3.5.4 Direito de família
69
3.5.5 Questão penal e processo
69
3.6. Sociedade e autonomia kuna
3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia
72
74
3.6.1.1 Autoridades tradicionais e Congresso Local 74
3.6.1.2 Congresso Geral
75
3.7. Apontamentos sobre experiências multiculturais
76
4. Pluralismo Jurídico para a afirmação
da sociobiodiversidade
80
4.1 Um direito estatal e monista
80
4.1.1 O Império Romano e a Idade Média
82
4.2 A crise do monismo jurídico
84
4.3 Pluralismo Jurídico
85
4.3.1 Um direito social
86
4.3.2. Pluralismo jurídico e povos indígenas
88
4.3.2.1 Direito consuetudinário
92
4.4 Pluralismo jurídico formal unitário versus igualitário
4.4.1 Autonomia indígena
93
96
4.5 Para a construção de um Estado pluriétnico e multicultural
99
4.5.1 Multiculturalismo na Constituição Federal de 1988
100
4.5.2 Bolívia: uma transformação multicultural
104
4.5.3 As possibilidades reais de um sonho
107
4.5.4 Estado-Nação ou Nações-Estado?
110
5. Conclusão
113
6. Referências Bibliográficas
117
Siglas
Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB)
Constituição Federal de 1988 (CF/88)
Fundo das Nações Unidas para a infância (Unicef)
Instituto Latinoamericano de Servicios Legales Alternativos (ILSA)
Instituto Socioambiental (ISA)
Medida Provisória (MP)
Organização Internacional do Trabalho (OIT)
Organização Mundial do Comércio (OMC)
Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI)
Organizações Não-Governamentais (ONGs)
Organização das Nações Unidas (ONU)
Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura
(UNESCO)
Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP)
Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
(PIDESC)
Proposta Indígena, Originária e Campesina (PIOC)
Trade Related Intellectual Property Rights (TRIPS)
Lista de Figuras e Tabelas
Tabela 1 – Aumento do impacto humano
33
Figura 1 - Foto aérea: André Vilas-Boas, s/d, ISA.
49
Figura 2 - Foto aérea: Pedro Martineli, 1999, ISA.
49
Figura 3 - Maloca Kuebi do Rio Kuduari, Kock-Grünberg,
1904, ISA.
62
1
Introdução
“Tendes, pois, do futuro este temor salutar, que faz velar e combater e não este terror mole e
ocioso que abate e enerva os corações.”
Alexis de Tocqueville
Diferença. Talvez, seja este um dos mais intrigantes dilemas da
existência humana. O diferente, nem sempre se quer conhecer, é desafiador,
pode até gerar insegurança e temor... Porém, numa outra perspectiva, é
estimulante, fugaz e belo. Os pontos de vista a respeito da diferença variam
muito, não raras vezes, eles se opõem. O fato é que as diferenças existem, o
que muda, tão somente, é a forma como a tratamos.
A diferença cultural que se faz presente na variedade do “como
viver”, inerente a cada um dos grupos de representantes da espécie humana
espalhados pela superfície do Planeta, e a infinidade de organismos vivos
diversos presentes na flora e na fauna, com quem compartilhamos a vida
neste mundo, fazem surgir o que denominamos de multiculturalismo e
biodiversidade, respectivamente.
Tais conceitos, no entanto, tiveram ao longo do tempo uma conotação
meramente descritiva das situações multifacetadas, no processo de adaptação
de nossos ancestrais às condições ambientais, ao se espalharem pelo mundo,
chegando aos nossos dias, sem muita influência ou implicação no que
respeita à melhor convivência e integração da sociedade como um todo em
busca da felicidade.
O direito, por seu turno, instrumento de equilíbrio das relações
sociais, teve sua construção histórica totalmente dissociada dos conceitos
acima referidos, particularmente, nos últimos quatro séculos em que se
verificou o surgimento e a consolidação do Estado moderno.
Entretanto, refletindo sobre as transformações tão rápidas e profundas
por que passa o mundo de hoje, não há como negar a forte modificação que o
direito moderno sofreu, e como não poderia deixar de ser, atingiu diretamente
o pensamento a respeito da diversidade cultural e biológica.
Um bom exemplo, a propósito, é a situação dos povos indígenas que
vivem em meio à biodiversidade, manejando a riqueza natural de forma a
preservá-la para as presentes e futuras gerações, mas que, no entanto, foram
por tanto tempo considerados como inferiores pelo sistema capitalista, cujo
modo de produção e de consumo apresentam-se já por demais insustentáveis.
O presente estudo tem como objetivo destacar o fato de que é
necessário ampliar a noção do direito, passando de único e centralizado para
coletivo e plural, libertando-se das amarras do individualismo exacerbado e
do acúmulo de capital, para admitir outras formas de ordenamento social, não
necessariamente codificadas.
Na medida em que essa postura seja consolidada, criar-se-á condições
para que cada cultura, em especial a indígena, atue de forma independente,
autêntica e coordenada, conduzindo a uma preservação efetiva da riqueza
cultural e natural.
No primeiro capítulo, apresentamos um esboço histórico sobre o
sistema capitalista, sua vinculação ao direito individual de propriedade e o
papel do Estado. Em seguida, faz-se uma apreciação das transformações
ocorridas, à luz dos movimentos sociais que se seguiram, conferindo uma
nova racionalidade ao direito, que passou a dar ênfase aos direitos coletivos,
culturais, ambientais e outros.
Deste contexto, destaca-se a atuação dos povos indígenas da América
Latina, cujas reivindicações passam a figurar nas constituições nacionais e
convenções internacionais, as quais lhes atribuem direitos, considerando o
modo de viver de suas comunidades, intimamente relacionado com a
preservação da riqueza cultural, recursos naturais e biodiversidade.
No segundo capítulo, busca-se apresentar uma realidade multicultural
diante do fenômeno da globalização, do fortalecimento e consolidação da
democracia no mundo do pós-guerra, através de uma amostra das múltiplas
faces que se apresentam no mundo contemporâneo, registrando as formas de
vida dos povos tukano e kuna, inseridos cada qual no seu ambiente
geopolítico, e a necessária reflexão sobre os caminhos que podem levar à
consolidação de uma nova cultura jurídica voltada ao pluralismo.
Por fim, no terceiro capítulo propõe-se um necessário ajuste do
sistema de direito consagrado, discorrendo sobre a exigência de uma
reapreciação dos conceitos de soberania, nação e Estado, a fim de que o ideal
do pluralismo jurídico igualitário possa ser absorvido no plano fático.
Descreve-se, ainda, a fase que passa a Bolívia, atualmente, na sua luta pela
consolidação de um Estado multicultural.
É de suma importância ter em mente, que o direito não há de servir
como obstáculo às transformações sociais. Contemporaneamente, vive-se
uma variada gama de novas possibilidades, fomentadas, inclusive, pelo
ambiente democrático.
Quem pretenda preocupar-se com temas dessa natureza, intimamente
relacionados com as ciências jurídicas, políticas e sociais, há de fazê-lo com
muito senso crítico sobre os valores que permeiam a convivência harmônica
em sociedade, principalmente, aqueles que se apresentam compatíveis com o
fim do individualismo apregoado pelo capitalismo monopolista.
Assim, é que o presente estudo, classificado como interdisciplinar,
valeu-se de técnicas do método indutivo, cujo recurso da associação de
idéias, permitiu, por um lado, exercitar o livre pensar, e, por outro, imaginar
modificações possíveis que venham abrir uma perspectiva renovadora, a um
só tempo dinâmica e desafiadora em torno do tema proposto.
Nessa linha de raciocínio, acha-se a concepção de uma sociedade
plural que precisa superar o conteúdo de dominação, indo além da idéia
assimilacionista proveniente da colonização, e caminhar para uma igualdade
de possibilidades, visando garantir a dignidade de todas as culturas num
mesmo nível.
Claro está que daí emerge uma nova lógica em cena, uma
racionalidade completamente diversa da que vinha sendo adotada no curso da
história do direito. Surgem mecanismos de proteção a interesses supraindividuais.
Na América Latina, os povos indígenas se organizam para lutar por
direitos há tanto tempo esquecidos e violados.
Os povos que até então eram considerados inferiores recuperam seu
valor, e demonstram sua importância cultural e ambiental para o mundo. Os
organismos internacionais e os Estados vão se abrindo ao debate; aparecem
documentos jurídicos que permitem a proteção do coletivo, inserindo a noção
de diversidade cultural e biológica.
Cada realidade multicultural poderá exigir diferentes soluções acerca
do relacionamento com a sociedade envolvente, o que é inerente à própria
diversidade. A formatação ou uniformização jurídica desta relação acarreta
interferências culturais profundas e muitas perdas também. Daí, a
necessidade de reformulação do direito, permitindo o diálogo de igual para
igual entre todos os povos e a manutenção de suas estruturas organizativas.
2
Do individual ao coletivo: relação entre capitalismo,
Estado, multiculturalismo e biodiversidade
“O homem é o capital mais precioso.”
Karl Marx
O direito, por força das exigências sociais em um mundo onde as
transformações acontecem continuamente, passa por diversas crises no afã de
se adaptar às novas situações estabelecidas. A partir do século XX, por
exemplo, o direito moderno de mero garantidor das relações entre Estado e os
indivíduos, assumiu outros espaços, ganhando incumbências inovadoras, tais
como a regulação da economia e a intervenção em questões sociais.
O direito individual era o mais importante, sendo tratado em um
código próprio e com uma riqueza de detalhes incrível, tais como: a
propriedade existente sobre as terras de um rio que secou, ou sobre os frutos
de uma árvore que caiu em terreno alheio1.
Era a supremacia do direito individual, tendo como representação
mais importante, o direito de propriedade. Todos os demais direitos eram
considerados públicos, mas, simplesmente, no sentido de serem estatais, e
não, coletivos.
Hoje, já não é mais assim, o individualismo vem cedendo pouco a
pouco, perdendo a importância solar no sistema. A propriedade é relativizada,
e somente garantida caso cumpra uma função socioambiental.
A propósito, contemporaneamente, o direito vem sendo revisto,
passando de uma concepção clássica, individualista e liberal, para uma
perspectiva supra-individual, na medida em que há o fortalecimento e a
consagração dos direitos coletivos perante a sociedade.
A crise por que passa o direito, porém, é diferente das outras, e nunca
fora vivenciada em toda sua história, porque agora ela atinge o âmago, o
1
SOUZA FILHO, C. F. M. Os direitos invisíveis. In: OLIVEIRA, F.; PAOLI, M. C. Os
Sentidos da democracia: políticas do dissenso e hegemonia global, p. 308.
cerne da estruturação jurídica que é o direito privado e individual. Da
sociedade, emergiram reivindicações determinantes, considerando os
desequilíbrios gerados pela economia de mercado e a concentração de
riquezas.
O poderio econômico extrapolou sua influência de atuação na vida
das pessoas, até então mais marcante no nível individual, para fazer com que
toda uma coletividade fosse atingida pelos seus efeitos nocivos. Não foi por
outra razão, que surgiram mecanismos para, num processo evolutivo e
gradual, tutelar os chamados interesses difusos e coletivos, como forma de
reação ao modo de produção capitalista concentrador.
Essa mudança de perspectiva que o direito vem enfrentando é um
fenômeno que ocorre, na medida em que as desigualdades sociais provocadas
pelo liberalismo econômico vêm sendo contestadas. As questões trabalhistas,
ambientais, os direitos do consumidor, os direitos culturais etc., fizeram com
que as relações sociais se tornassem cada vez mais complexas.
Poder-se-ia configurar uma situação descontrolada na qual a
sociedade tenderia para um caos, onde a superestimação do direito de
propriedade privada, a liberdade de contratação e a autonomia da vontade
fomentariam cada vez mais a possibilidade de que uns poucos chegassem a
possuir enormes quantidades de bens em detrimento dos demais.
Alguém tinha que interceder como agente moderador: o EstadoProvidência ou do Bem-Estar social foi conseqüência dessa postura de maior
regulação social.
As Duas Grandes Guerras Mundiais, o movimento socialista, a crise
ambiental e o domínio da economia por grandes corporações, trouxeram
problemas que os princípios individualistas do direito não mais bastavam
para atender as demandas da sociedade que se transformava. Criou-se um
impasse, já que o direito acreditava que nada haveria entre o Estado e os
cidadãos, portanto, tudo aquilo que não fosse privado era público.
A dicotomia privado versus público era bem definida, ou seja,
considerava direitos individuais de um lado e todos os demais do outro.
As coisas que tivessem um certo tom de coletividade (como as
pessoas jurídicas e a massa falida) eram reduzidas ainda à individualidade, ou
eram apenas provisórias ou fictícias2. Para a resolução das questões, através
da simplicidade da indenização, era preciso não só haver um titular individual
e específico para tudo aquilo que fosse objeto do direito, como também, ser
passível de avaliação econômica. Essa lógica não concebia um direito
coletivo que não fosse, tão somente, a soma de direitos individuais. Os
direitos
coletivos
eram simplesmente
invisíveis3
ao
sistema,
cuja
racionalidade individualista não permitia enxergar a coletividade como
sujeito, como titular de direitos.
Dessa
forma,
o
direito
simplesmente
desconsiderava
o
multiculturalismo e a biodiversidade, enquanto interesses coletivos,
relegando-os ao espaço do abandono ou da exploração alienígena, pois não
cabiam dentro da formatação jurídica moderna; encontravam-se numa zona
intermediária; não eram nem públicos nem privados, portanto, ocultos.
Toda essa estrutura jurídica patrimonialista, no entanto, tinha uma
forte razão de ser. As bases nas quais foi construído o direito moderno estão
ligadas fortemente à legitimação de um sistema econômico determinado que
então passara a vigorar: o capitalismo.
2.1 O direito moderno ocidental atrelado ao sistema econômico
liberal e capitalista
A história nos mostra que as transformações sociais por que passava a
Europa e o fortalecimento político da burguesia exigiram do direito uma
resposta, ou seja, era preciso assegurar a estabilidade do novo comércio
nascente. Isto nos permite afirmar que o sistema capitalista incipiente teve
origem temporal e geográfica. “Estado e direito modernos começam a surgir
2
SOUZA FILHO, C. F. M. Os direitos invisíveis. In: OLIVEIRA, F.; PAOLI, M. C. P. Os
Sentidos da democracia, p.311.
3
Ibid., p.311.
na Europa lá por volta do século XIII, talvez, antes, teorizados a partir do
século XVI...” 4
É por demais familiar o fato de que o direito moderno foi estruturado
tendo por fundamento as correntes naturalistas e positivistas, baseadas em
padrões culturais centrais, desconsiderando a diversidade social fática e até
mesmo buscando negá-la.
Num primeiro momento, ênfase foi dada ao jusnaturalismo,
considerando o homem detentor de direitos naturais que o acompanhavam
desde o seu nascimento, pelo simples fato de ser pessoa humana.
Assim, sendo naturais, os princípios e as regras de direito
independiam de convenção ou legislação, cabendo ao Estado, apenas,
garanti-los.
Num segundo momento, o positivismo jurídico entendeu que a
sociedade deveria ser organizada por regras do “dever ser”, provenientes das
“exigências organizatórias e das solicitações de natureza ética que daquela
realidade promanam” 5.
A norma jurídica criava o direito, e necessário se fazia escrever e
codificar os direitos naturais. Kelsen6 menciona, claramente, a vinculação do
direito como sendo norma jurídica, ao dizer que: “apreender algo
juridicamente não pode, porém, significar senão apreender algo como
Direito, o que quer dizer: como norma jurídica ou conteúdo de uma norma
jurídica(...)”
Os direitos naturais foram, então, positivados, ou seja, escritos e
garantidos por uma ordem institucional e organizada, a que se convencionou
chamar de Estados nacionais. As constituições foram os documentos políticos
criados para legitimar e dar sustentação a este sistema.
Dessa forma, o processo de positivação dos direitos considerados
naturais confunde-se com o da formação dos Estados que hoje conhecemos.
Para que houvesse organização e paz social era necessária uma entidade
4
Id., A função social da terra, p. 16.
LIMA, H. Introdução à Ciência do Direito, p. 45.
6
KELSEN, H. Teoria Pura do Direito. p. 79.
5
superior aos indivíduos para garanti-las. Traduz-se, então, a idéia
rosseauniana de contrato social, firmado entre as pessoas e o Estado.
Por trás de toda essa evolução na concepção jurídica, estava a força
motriz, representada pela profunda modificação que ocorria nas relações
econômicas durante esse período: a sociedade saía da Idade Média,
libertando-se das amarras feudais e costumeiras, para ingressar num período
moderno, baseado na propriedade privada e no trabalho assalariado e livre.
2.1.1 A origem do capitalismo e as transformações sociais
Ellen Wood7 esclarece que, embora a origem do sistema capitalista
tenha sido atribuída às cidades, isso não retrata a verdade factual, não
passando de mera afirmação com o objetivo definido de, intencionalmente,
obscurecer sua característica especificamente agrária.
Por milênios, os homens sobreviveram do trabalho da terra, dos
recursos naturais, e dividiam-se, basicamente, em: produtores diretos
(camponeses) e apropriadores do trabalho dos outros8. Havia o acesso direto
aos meios de produção, e a apropriação do excedente dava-se por meios
“extra-econômicos” (coerção: uso da força de fato, política, militar etc.).
A característica essencial do capitalismo não está no comércio, este já
existia há séculos, o que o distingue são as relações de propriedade entre
produtores diretos e apropriadores do trabalho, seja na agricultura ou na
indústria.
A base da sua consolidação é a expropriação dos camponeses,
relegando-os à condição única de vendedores da sua força de trabalho,
retirando desse contexto a mais-valia que proporciona os lucros. Assim
sendo, o capital não precisa utilizar-se da coerção direta, como fazia os
senhores feudais ou as monarquias, o excedente é concentrado pela própria
engenhosidade do sistema, condicionando os trabalhadores a não terem
escolha, visto não possuírem mais os bens de produção, a matéria-prima e,
7
8
WOOD, E. M. As origens agrárias do capitalismo, p.12.
Ibid, p.13.
principalmente a terra que, na maioria das vezes, lhes foi violentamente
retirada.
Isso é possível pelo poder regulador do mercado, que nunca, antes,
tivera uma função tão importante como tem no capitalismo. Tudo pode virar
mercadoria: os meios de produção, a força de trabalho, a matéria-prima... O
mercado é determinante na regulação da produção e reprodução social, ele
comanda todas as coisas: do alimento e o básico, ao supérfluo e o luxuoso.
Os imperativos do capitalismo, tais como, competição, acumulação e
maximização do lucro, diferentemente de qualquer outro modo de produção
existente na história, quase sempre, e com maior intensidade, subjugam os
seres humanos e a natureza.
Lígia Osório Silva menciona na introdução ao texto de Ellen Wood9,
que a referida autora quer desmistificar a afirmação de que o capitalismo é
um sistema natural, ou o “equívoco da sua identificação simplista com o
impulso inato da ‘busca pelo lucro’”.
Não se pode garantir que o ser humano teria dentro de si uma prédisposição à apropriação individual dos bens, como querem alguns
pensadores do sistema, a exemplo de David Ricardo e Adam Smith, no afã de
considerar o capitalismo uma conseqüência natural da história da
humanidade.
Na Europa, até o século XVII, o comércio orientava-se pela simples
transferência de um mercado para outro, comprando barato e vendendo caro.
O mercado não era unificado, e pendia para os artigos de luxo.
Esses são considerados alguns princípios não-capitalistas de
comércio, que coexistiam, na época, com outras formas de acumulação de
capital, como a renda advinda do sobretrabalho - uma maneira graciosa de
obtenção de riqueza - até então extraído de cargos públicos ou de privilégios
das classes dominantes. Nem os produtores nem as elites dependiam do
mercado para a sua reprodução. Isto mudou completamente no cenário
9
WOOD, E.M. As origens agrárias do capitalismo, p. 09.
capitalista, em que o mercado ganhou tamanha força que tanto produtores
quanto apropriadores tornaram-se dele dependentes.
A Inglaterra se sobressaiu em todo esse processo, pois era, dos países
europeus, o mais unificado, e isso facilitou a consolidação de um Estado
central forte10.
A base material da economia inglesa era a agricultura, mas, ao
contrário do que ocorrera em outros países como a França, a atividade estava
centralizada nas mãos de poucos latifundiários, os quais detinham alta
concentração de terra.
A adoção dos institutos de cercamento e melhoramento permitiu o
incremento da aplicação capitalista no campo. O primeiro foi uma forma de
apropriação individual da terra, antes comunal e coletiva. O segundo
correspondia ao aumento da produtividade, visando a competição e o lucro,
constituindo-se num dos fundamentos da propriedade e o alicerce da
exploração capitalista, sendo defendido pelos intelectuais da época como
John Locke.
Baseados
no
desenvolvimento
de
técnicas
agrícolas,
os
melhoramentos não só permitiram o aumento, mas também a concentração de
riquezas, e acirrou a competitividade entre os proprietários. O aumento da
riqueza foi se sobrepondo ao princípio da preservação das comunidades
camponesas e da distribuição eqüitativa dos recursos naturais. Paralelamente,
veio, também, a imposição cultural da lógica de mercado.
Houve um sistemático movimento, por parte dos novos proprietários,
no sentido de que não houvesse qualquer empecilho ao uso lucrativo da terra.
As práticas costumeiras e coletivas das comunidades locais interferiam
nitidamente na acumulação capitalista, pois se orientavam por outros
princípios que não o lucro, como por exemplo, limitações ao uso da terra em
prol de um benefício comunitário. O capital, então, optou por negar a
diversidade social e impor um padrão de produção e consumo único e
monocultural.
10
Ibid., p. 16.
A concepção tradicional e coletiva de propriedade restava superada, e
foi gradativamente substituída por um novo conceito de propriedade:
privada, excludente e altamente produtiva.
Tudo isso foi teoricamente concebido e disseminado, de forma a criar
um falso consenso sobre a idéia de que não passava de um processo natural
de absorção pela sociedade em evolução.
Como bem definiu Locke,11 a propriedade era um direito natural,
assim como o era torná-la produtiva e lucrativa. O direito à melhoria da terra,
no sentido de aumentar a produção e o lucro, foi ganhando cada vez mais
espaço, em detrimento dos direitos costumeiros que perderam seu valor, e dos
quais muitas pessoas dependiam para sobreviver.
Além das comunidades, essa desvalorização atingiu também a
natureza:
o
valor
estava,
simplesmente,
no
trabalho
humano.
A
biodiversidade não possuía nenhum valor, senão, quando modificada pelo
homem.
Observe-se que, para Locke, a proporção entre natureza e trabalho é
de 1 (um) para 100 (cem). Ele utiliza como exemplo os povos da América,
mencionando serem ricos em natureza e “pobres em todos os confortos da
vida.”12 O valor está na indústria humana. A natureza raramente é computada
na avaliação. O trabalho é o que agrega maior parte do valor, sem ele, a terra
não valeria quase nada, é apenas a matéria-prima, e bem menos valiosa.
Nos séculos XVI e XVII houve diversas revoltas por causa dos
cercamentos e dessa nova concepção acerca do uso da terra. Porém, as
classes dominantes venceram, e com a Revolução Gloriosa de 1688, foi
consolidado o triunfo do capitalismo agrário com as seguintes características:
maximização do valor de troca por meio da redução de custos e pelo aumento
da produtividade, através da especialização e da inovação (melhoramento);
processo de acumulação e expansão bem diferente do padrão antigo, que era
comunitário; e a criação de uma massa de camponeses expropriados.
11
12
LOCKE, J. Segundo Tratado sobre o governo civil e outros escritos, p. 105.
LOCKE, J. Segundo Tratado sobre o governo civil e outros escritos , p.107.
Surge, enfim, o capitalismo sob vestes dominantes, massacrando as
racionalidades coletivas.
Percebe-se que dele não fazia parte a noção de bem comum. Ao
contrário, buscava a desintegração das comunidades de bases tradicionais,
para sua posterior integração no sistema industrial, que se instalava
paralelamente nas cidades, já agora como pessoas individuais, transformando
os camponeses em trabalhadores livres.
A tríade marxista de proprietários de terras vivendo da renda da terra
capitalista; de arrendatários capitalistas, vivendo do lucro; e de trabalhadores,
vivendo de salários, corresponde às mudanças nas relações sociais que
resultou na transformação do comércio e da indústria na Inglaterra.
A acumulação primitiva de que fala Marx13 corresponde à separação
do produtor dos meios de produção. Essa é a pré-história do capitalismo. E
tudo isso foi ideologicamente concebido.
No feudalismo, os camponeses trabalhavam num regime de servidão,
submetidos ao poder e à proteção de seu senhor. A enganosa proposta do
capital era libertar esses trabalhadores da servidão feudal e transformá-los em
assalariados livres.
Essa liberdade, no entanto, lhes custou a expropriação dos bens de
produção, o que escravizou economicamente os camponeses.
A dependência do mercado foi causa da proletarização em massa. Os
expropriados, sem chances de adentrar na competição da agricultura
“melhorada”, viram-se obrigados a trocar sua força de trabalho por salário
nos grandes centros urbanos. Lá, era necessário consumir bens essenciais,
como alimentos e roupas, haja vista não mais possuírem os bens de produção.
Esse fator impulsionou a industrialização inglesa que, com o passar dos
tempos, sentiu a necessidade de expandir os mercados, através da
colonização de outras partes do mundo.
Analisando profundamente todo esse processo de consolidação do
capitalismo, é possível afirmar que, na Inglaterra, em virtude das condições
13
MARX, K. O capital, p. 261-284.
favoráveis daquele país, que já contava com infra-estrutura de comunicação e
de transporte já adiantada, houve uma evolução diferenciada dos outros
países.
Assim, a ética do “melhoramento” marcou a expansão capitalista por
grande parte do mundo: por um lado, a exploração máxima da terra
(natureza) e a concentração de riquezas, e, contraditoriamente, o aumento da
pobreza e o desamparo total dos trabalhadores, por outro.
Tudo isso nos leva a inferir que a diferenciada situação inglesa torna
visível que o capitalismo, como vimos, não representa uma conseqüência
histórica, comum a todas as sociedades, ele foi exportado ou copiado, como
uma idéia supostamente pura e natural. A lógica da alta exploração e
subjugação dos povos e da natureza veio a reboque.
Refletindo mais detidamente sobre a essência do capitalismo, e tendo
em mira sua crença em constituir-se num instrumento de felicidade e bemestar, o que dizer dos reflexos nefastos produzidos na sociedade como um
todo, presentes até os dias atuais, através das mais variadas formas de
carência e de exclusão?
Não seria, talvez, pelo capitalismo ter-se desenvolvido na contra-mão
da natureza, e em vista disso, ter exigido um trabalho persuasivo árduo e
persistente de seus pensadores, no sentido de forçar um falso consenso a esse
respeito?
Seria um exagero, ou excesso de imaginação afirmar que nem todas as
comunidades, nem todos os povos terão que passar pelo capitalismo, como
uma fase irremediavelmente necessária de sua evolução?
Há povos indígenas e outras comunidades tradicionais, cujo estilo de
vida comprova essa não-natureza humana de lucrar e acumular.
E, ainda assim, caso fosse julgado necessário, é possível pensar-se na
reformulação de tal sistema, o capitalismo, incluindo nele o respeito à
diversidade biológica e ao multiculturalismo, considerando que a sua lógica
interna de exploração contínua e ininterrupta do homem e da natureza é
insustentável, e dificilmente conduzirá à almejada paz mundial.
2.1.2 Propriedade privada e a visão contratualista do direito
Como se percebeu, o direito de propriedade surge como a ferramenta
mais importante, na época, para o desenvolvimento do sistema capitalista. Ao
Estado coube garantí-lo,14 regulando suas formas de aquisição e transmissão.
Assim, o contrato ganha força, como o instrumento de legitimação e
garantia do direito de propriedade. Somente se discutia as condições de
validade, não importando seu conteúdo, efeitos e conseqüências para as
partes e, menos ainda, para a sociedade.
Os contratantes deveriam ser livres e iguais para poderem celebrar um
acordo válido. Nesse sentido, os princípios de igualdade e liberdade
assumiram vestes meramente formais, falaciosas, e não refletiam a realidade
fática. Serviam apenas à retórica e ao discurso jurídico do liberalismo.
Liberdade e igualdade estavam garantidas pelo Estado, apenas, como
requisitos da propriedade privada e dos contratos que a legitimavam, sem
qualquer preocupação comunitária ou coletiva.
Na esteira dessa concepção, os princípios de segurança jurídica,
autonomia da vontade e pacta sunt servanda, são esculpidos fortemente pela
doutrina jurídica moderna, segundo os ditames privados e interesses
individuais, ignorando a diversidade social fática, considerando, apenas, os
interesses econômicos preponderantes.
Simplesmente, aquilo que não pudesse ser apropriado individualmente
e não estivesse na esfera de disposição contratual, não teria importância para
o direito, e não foi outra a razão pela qual a proteção dos povos tradicionais e
da natureza, enquanto direitos coletivos, foram sumariamente excluídos.
O direito preocupava-se mais com a forma do que com o conteúdo de
suas disposições e, certamente, tal estado de coisas provocou grande
distorção: a exploração contínua do homem pelo homem e da natureza.
14
LOCKE, J. Segundo Tratado sobre o governo civil e outros escritos, p. 110.
2.2 Uma mudança paradigmática
Com o advento da Revolução Industrial, a sobreexploração capitalista
superveniente desencadeou importantes transformações que se fizeram sentir
no final do século XVIII e começo do século XIX.
As comunidades tradicionais do campo, como visto, foram
desintegradas e expulsas de seus territórios para servirem de mão-de-obra nas
cidades. Tornaram-se trabalhadores individuais e assalariados, desprovidos
do meio de produção (terra), e possuindo apenas sua força de trabalho para
oferecer às fábricas. E assim, embora “livres como pássaros”
15
para o
trabalho industrial, na verdade, os trabalhadores eram escravos da aquisição
mercantil de bens de consumo essencial, como comida, vestimenta, etc.
A classe trabalhadora se organiza e surgem os sindicatos, quebrando a
supremacia do contrato individual de trabalho, exigindo melhores condições
ao operariado, e derrotando a falsa idéia liberal de que nada poderia existir
entre o Estado e os cidadãos.
A “mão invisível”, que exerceria uma auto-regulação do sistema,
concebida pelo economista Adam Smith, que a tudo proveria no campo
social, não prosperou, provocando, ao contrário, muitos conflitos e
desigualdades. Sucessivas crises e revoluções ocorrem por todo mundo, e a
função do Estado diante dessa realidade passa a ser questionada
profundamente. Este, de mero espectador da economia é chamado para nela
intervir, regulando, assim, as atividades sociais de maneira geral.
A crise assumiu tamanha dimensão e forma que não havia outra saída
ao liberalismo: tinha que se reestruturar e atender algumas daquelas
demandas, para assim, poder continuar existindo como sistema econômico
viável.
Surge, então, o Estado de bem-estar social, ou Welfare state, até
mesmo como uma resposta ao desenvolvimento e expansão do socialismo por
todo o mundo.
15
MARX, K. O Capital, p. 269.
Há, nesse contexto, uma mudança fundamental de paradigma com
relação à função do Estado. Sua postura de abstenção é substituída pela de
intervenção. Ele ganha espaço, assume mais responsabilidades, e passa a
garantir outros direitos não apenas individuais.
É o que Norberto Bobbio16 denomina de: “a segunda geração de
direitos”, isto é, os direitos sociais, baseados não apenas no indivíduo e sim
no interesse da sociedade.
Ao contrário das constituições que enalteciam o direito absoluto de
propriedade, como a francesa de 1793, a portuguesa de 1822 e a brasileira de
1824, surgem as constituições cidadãs do século XX, que condicionaram o
direito de propriedade ao cumprimento de uma função social, e reconheceram
novos direitos sociais e coletivos.
A Revolução Mexicana do começo do século XX proporcionou a
primeira delas em 1917. Era a primeira vez que uma constituição protegia
direitos coletivos. Em seguida, veio a Soviética (1918), abolindo a
propriedade privada e, posteriormente, na Alemanha, a de Weimar (1919)
estabeleceu obrigações ao proprietário. O sistema jurídico cede à realidade
social.
2.3 A conquista dos novos direitos coletivos
Diante desse ambiente de mudanças, muitos foram os direitos
conquistados. Uns mais rapidamente, pois essenciais à continuidade do modo
de produção capitalista, como os direitos dos trabalhadores; outros foram
mais tarde alcançados, ou ainda estão sendo construídos.
A dinâmica dos movimentos sociais que se seguiram ocorreu de
maneira diferenciada ao redor do mundo. Em particular, na América Latina,
onde
é
inegável
a
diversidade
cultural,
calcada
justamente
na
multidimensionalidade17 das relações sociais aqui existentes, tais movimentos
16
17
BOBBIO, N. A era dos direitos, 1992.
SANTOS, B.S. Pela mão de Alice, p. 263.
foram mais miscigenados e não tão homogêneos como se observou nos países
europeus.
Assim é que, manifestações de classes trabalhistas, de raças e de
gêneros
humanos,
de
minorias
excluídas
(desempregados,
artistas,
transformistas, homo-sexuais etc.), de ativistas do meio ambiente, dos povos
da floresta (indígenas, seringueiros, castanheiros etc.), e demais segmentos da
sociedade, foram se integrando de forma tal que o todo constituído, baseado
na compreensão das diferenças, tornou-se maior do que a soma das partes, e
alcançaram uma nova dimensão e racionalidade: a jurídica.
Não tardou para que toda essa gama de reivindicações exigisse, de
pronto, uma mudança de postura do direito: da individual para a coletiva.
Embora se apresentem como direitos ainda muito recentes no contexto
do sistema, já se encontram presentes no ordenamento jurídico clássico, e
representam veículos concretos de emancipação social.
Antes da abertura da lei para o coletivo, tais direitos eram
considerados meros interesses sociais e/ou políticos. A propósito, o fato de
terem sido só agora consolidados não significa que sejam de construção
recente, muito pelo contrário, não é nenhuma novidade para nós o fato de que
os povos indígenas habitam seus territórios desde tempos remotos, anteriores
à formação dos próprios Estados e, obviamente, da degradação da
biodiversidade ocorrida a partir dos primórdios do sistema capitalista. O que
se vislumbra agora, no entanto, é uma espécie de renascimento dos povos18
em questão, e um despertar do interesse coletivo de cada comunidade
tradicional específica, com possibilidades jurídicas reais e concretas de verem
transformados em realidade seus sonhos, acalentados há séculos e sufocados
ao sabor de muita luta e sangue derramado.
Com as constituições democráticas e cidadãs da América Latina19, os
direitos coletivos começam a se tornar factíveis. Ganharam o status de
18
19
SOUZA FILHO, C. F. M. O renascer dos povos indígenas para o Direito, 1998.
Entre os anos 80 e 90, novas constituições foram promulgadas na América Latina, pois o
continente saía de um longo período marcado pelas ditaduras. Em quase todas essas
constituições - outras mais, outras menos, logicamente - é possível perceber a proteção e a
discussão jurídica, possível de ser travada em ações judiciais, na doutrina, nas
faculdades, nas políticas públicas, enfim, nos diversos setores sociais.
O direito à cultura, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, à
saúde, à educação, à assistência social, os direitos indígenas, de afrodescendentes e demais minorias étnicas, dentre outros, foram alguns dos
direitos reconhecidos a partir dessa mudança de perspectiva no campo
jurídico e social.
As
constituições
latino-americanas
passam
a
reconhecer
a
sociodiversidade de seus respectivos países: a Colômbia protege a
diversidade étnica e cultural (1991); o México (1992) assume ser detentor de
uma "composição pluricultural"; o Paraguai (1992) reconhece a existência
dos povos indígenas, e ainda, se declara como um país multicultural e
bilíngüe etc. Aos poucos, o direito foi se aproximando da realidade,
reconhecendo e protegendo a diversidade cultural.
Ao lado da proteção ao multiculturalismo veio também a preocupação
com o meio ambiente e a biodiversidade. A América Latina ostenta boa parte
da riqueza biológica mundial e isso provocou o interesse e a necessidade de
proteção. Houve a consagração do direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, não somente no nível mais alto do ordenamento jurídico de
diversos países, mas também nas legislações ordinárias.
A constatação do déficit ambiental fez com que o mundo se
preocupasse mais com a preservação da biodiversidade, haja vista a
dependência humana dos insumos por ela providos: fibras têxteis, alimentos,
remédios, inseticidas, etc. Assim, vários países se reuniram, a fim de criar
uma legislação internacional para a proteção ecológica.
A Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente, realizada
em Estocolmo (Suécia), no ano de 1972, foi a primeira de abrangência
mundial. Esta reunião foi um marco para o então emergente direito ambiental
internacional.
importância dada aos novos direitos coletivos. Para citar alguns exemplos têm-se as
constituições da Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Nicarágua, Peru e Venezuela.
Vinte anos mais tarde, realizou-se a Conferência das Nações Unidas
sobre Meio ambiente e Desenvolvimento, na cidade do Rio de Janeiro, no
período de 3 a 14 de junho de 1992, conhecida como “Eco 92”.
Como a própria denominação sugere, veio munida da intenção
desafiadora de conciliar o desenvolvimento econômico com a preservação
ecológica, consolidando a famosa expressão: “desenvolvimento sustentável”.
Diante de toda essa mudança social, o capitalismo teve que ceder e se
deixar permear por novas reivindicações. O multiculturalismo e a
biodiversidade inserem-se, respectivamente, nesse contexto, como campos de
resistência à uniformidade doentia e à dominação criminosa do meio
ambiente; duas mazelas que tanto apregoa o sistema.
Na Europa, a tentativa de coesão e construção de uma identidade
atrelada ao capital se deu com muita violência em relação às comunidades
tradicionais; a mesma e talvez pior atrocidade fora aplicada em território
latino-americano com relação aos povos indígenas e à biodiversidade.
Nenhum povo da América deixou de sentir a chegada dos europeus. A
guerra estabelecida com os povos do litoral rapidamente se estendia pelo
interior. Os povos sucumbiam ou fugiam. Ao fugir, não encontravam
territórios desocupados, mas outros povos com quem tinham de guerrear
para disputá-los . Espremido entre dois inimigos, cada povo precisou fazer,
a cada momento, sua escolha: lutar ou sucumbir.20
Os povos culturalmente diferenciados que ainda resistem no
continente americano são os remanescentes de uma avassaladora devastação
física e cultural, provocada pelos colonizadores, associada a uma igual
violência com relação à natureza, o que redundou em intensa perda de
biodiversidade.
20
SOUZA FILHO, C.F.M. Multiculturalismo e direitos coletivos. In: SANTOS, B.S.(org.).
Reconhecer para libertar, p.75.
2.4. Povos indígenas: desrespeito e reconhecimento de direitos
É sobejamente conhecido o processo desumano de dominação,
subjugo, cristianização e de apresamento para servirem de escravos que
foram vítimas os povos indígenas. Como se não bastasse, ainda hoje sofrem
com a violação de sua dignidade, principalmente, devido a um monopólio
cultural ocidental devastador, que insiste em desconsiderar sua cultura e
tradição. Assim, é que, com o objetivo de reverter ou minimizar os prejuízos
sofridos, vem tomando força a cada dia, um movimento indígena que
emergiu nos âmbitos nacionais e internacionais.
A América Latina, em particular, tem uma história indígena bastante
conturbada, marcada por violentos processos colonizatórios, que têm sua
origem na época das conquistas, quando foram covardemente retirados de
suas terras, quer através do extermínio generalizado, fruto do confronto direto
em contundente desvantagem com os colonizadores mais fortemente
armados, ou pela fuga inopinada de seus territórios originais para escaparem
das armas de fogo. Certamente, que a luta era desigual. Sem alternativas,
foram se dispersando e, ao adentrarem em outras terras, conflitos com
diferentes povos ocorriam, provocando ainda mais perda do contingente
indígena.
Estima-se que a população indígena nas Américas seja de
aproximadamente 41.977.600 (quarenta e um milhões novecentos e setenta e
sete mil e seiscentos) habitantes, o que corresponde a aproximadamente
6,33% da população total21. Em alguns países, a porcentagem indígena é
quase zero (Ex: Uruguai com 0,016%), quando na verdade são eles os
habitantes originários dos territórios, hoje chamados de Estados nacionais.
Os povos indígenas detêm modos de produção diferenciados, que se
baseiam na sustentabilidade ecológica dos recursos manipulados. Ao longo
dos tempos, as comunidades indígenas desenvolveram-se através de um
profuso contato com o meio ambiente, e assim, puderam apreender métodos
21
GOMÉZ, M. Derechos Indígenas – Lectura comentada del Convenio 169 de la
Organización Internacional del Trabajo, p. 45.
de integração total com a natureza e de utilização da biodiversidade,
desenvolvendo processos artesanais de construção de móveis, utensílios e
artefatos de uso comum, de obtenção e sintetização de remédios, cosméticos
e alimentos etc. Tudo isso, manejando os recursos naturais de forma a
contribuir para a manutenção da riqueza biológica, representando uma
importante função na preservação ambiental. Em conseqüência, mantêm em
seus territórios uma alta concentração de biodiversidade.
Com o crescimento capitalista e a busca pelo desenvolvimento
econômico a qualquer custo, muitos países, como o Brasil e os Estados
Unidos, expandiram suas economias, e a procura por terras e recursos
naturais (madeira, água, plantas, animais) aumentou progressivamente.
Para se ter uma idéia, a tabela abaixo mostra o aumento do impacto
humano22:
Indicador mundial
1950
1995
Produção de soja em milhões de
toneladas
Produção de carne em milhões de
toneladas
Pesca em milhões de toneladas
de peixes
Terras irrigadas em milhões de
hectares
Uso de fertilizantes em milhões
de toneladas
Produção de Petróleo em milhões
de toneladas
Produção de carros em milhões
de unidades
Produção de bicicletas em
milhões de unidades
População humana em milhões
17
125
44
192
21
109
94
248
14
122
518
3.301
3
36
11
114
2.555
5.732
Tabela 1 – aumento do impacto humano
Certamente, essa demanda atingiu os territórios indígenas, devido à
vasta riqueza biológica neles contida. Com o decorrer do tempo, o problema
se agravou, pois a população indígena aumentava ao passo que os recursos
22
Tabela utilizada por BENSUSAN, N. O impacto humano. In:____, (org). Seria melhor
mandar ladrilhar? Biodiversidade como, para que, por quê, p. 23.
naturais
diminuíam,
comprometendo
então
a
sobrevivência
e
a
autosustentabilidade desses povos.
Como não poderia deixar de ser, suas condições de vida foram
piorando, fazendo emergir uma série de reivindicações. Sendo assim, as
populações indígenas se organizaram, formaram lideranças e passaram a lutar
na defesa de seus direitos, por tantos séculos desrespeitados.
Uma melhor qualidade de vida; a demarcação de seus territórios; o
respeito à sua cultura, língua e tradições; um desenvolvimento econômico
autônomo e sustentável; programas de bem-estar social e possibilidades
efetivas de manutenção da sua diversidade cultural são algumas de suas
bandeiras.
No Brasil, as organizações começaram a se formar a partir da década
de 70, e, com a redemocratização do País, aumentaram significativamente,
incrementando a participação indígena na vida política nacional23.
O tratamento estatal meramente assistencialista, de cima para baixo,
não satisfazia as necessidades desses povos, que cansaram de ser tratados
como pertencentes a uma cultura inferior, transitória, tendente a desaparecer.
Em algumas ocasiões, inclusive, foram legalmente considerados como
incapazes24.
Os povos indígenas começaram, então, uma luta efetiva em busca de
reconhecimento de direitos e libertação da opressão que vieram sofrendo por
tantos anos.
O cenário de mudanças globais com a mundialização da economia, ao
mesmo tempo em que criou espaços de dominação, também impulsionou o
surgimento de concepções multiculturais, a articulação de movimentos
sociais, e favoreceu a transformação da perspectiva individualista.
23
Dados gentilmente cedidos pelo Advogado Indigenista Dr. Paulo Celso de Oliveira
Pankararu.
24
Haja vista o Código Civil brasileiro de 1916 (já revogado) no seu art. 6º, inc. III, que
previa o silvícola como incapaz e o art. 16 do Código Penal do Estado de Michoacán no
México, que previa ser indígena e analfabeto como causas de inimputabilidade.
2.5 Multiculturalismo nas constituições latino-americanas
Uma das principais vitórias do multiculturalismo foi ver consagrados
nas constituições os direitos sócio-culturais indígenas e, também, de outras
comunidades tradicionais. Isso ocorreu em vários países, principalmente nos
da América Latina, onde proliferaram, uma após outra, constituições
democráticas precedidas de períodos ditatoriais.
A Constituição brasileira de 1988 representa um marco jurídico no
cenário nacional e regional, abrindo espaço para a preservação cultural
indígena, o que nunca antes tinha sido observado numa constituição
brasileira.
O art. 231 menciona que: “são reconhecidos aos índios sua
organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos
originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à
União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.
Os parágrafos do art. 231 delineiam a aplicação dos direitos
indígenas, definindo o que são terras tradicionalmente ocupadas. Os índios
detêm a posse permanente, enquanto que o domínio é da União, cabendo-lhes
o usufruto exclusivo de todas as riquezas nelas existentes. O § 4.° determina,
ainda, que os direitos indígenas sobre suas terras são imprescritíveis,
inalienáveis e indisponíveis.
Em 1991, a Constituição colombiana apresenta dentre os princípios
fundamentais, a proteção da diversidade étnica e cultural, e destina no art.
171 uma cota para senadores eleitos pelos povos indígenas. Ainda o art. 246
reconhece a existência do direito indígena e suas funções jurisdicionais no
âmbito territorial.
Por outro lado, a Constituição Argentina de 1994, no seu art. 75,
inciso 17, menciona a garantia ao respeito e identidade cultural, o direito à
educação bilíngüe, reconhece a personalidade jurídica das comunidades
indígenas e a posse e propriedade sobre as terras que tradicionalmente
ocupam.
A Bolívia, também, em 1994, e após décadas de omissão acerca dos
direitos culturais, mesmo sendo um país de maioria indígena, registra na sua
Constituição (Art. 171) o reconhecimento e o respeito aos direitos sociais,
econômicos e culturais dos povos indígenas. Ademais, a constituição foi
além, e declarou-se um Estado multi-étnico, uma coragem que muitos países
vizinhos não tiveram.
Em se tratando de constituições, pode-se citar a da Costa Rica, do
Chile, da Guatemala, do Peru, do Panamá, dentre outras, que mencionam e
garantem a diversidade cultural e a preservação dos direitos indígenas.
2.6 Panorama internacional
Na esfera internacional tem havido uma participação indígena
crescente nos debates e foros colegiados, tanto no âmbito da Organização das
Nações Unidas, da Organização dos Estados Americanos, quanto em fóruns
sociais e nas Conferências de partes de algumas convenções (a exemplo da
CDB – Convenção sobre Diversidade Biológica ou Biodiversidade).
A ONU, em 1982, formou um grupo de trabalho sobre populações
indígenas que impulsionou o Fundo de Contribuições Voluntárias, com o fim
de possibilitar a participação de representantes indigenistas nas deliberações
do grupo. Nesse âmbito, encontra-se em discussão, há mais de uma década,
um projeto para a formulação de uma Declaração de Direitos dos Povos
Indígenas. Recentemente, ela teve seu texto aprovado e deve seguir os
trâmites necessários para a sua implementação em nível mundial. Uma
declaração, embora não tenha caráter obrigatório, representa um documento
contendo as intenções dos Estados partes e, geralmente, impulsiona o
processo de legislação internacional.
Na Conferência de Direitos Humanos celebrada em Viena - Áustria,
no ano de 1993, foi recomendada a criação de uma instância específica para o
tratamento da questão indígena, em sede da ONU. E assim foi feito. No ano
de 2002, criou-se o Foro Permanente dos Povos Indígenas, e já na primeira
reunião houve convergências entre os setores educacional, ambiental e
cultural, com a participação ativa da Unesco, da Unicef e de outras
instituições governamentais, não governamentais e indígenas. O Foro
Permanente tem sido um importante local de discussão estratégica mundial
dos povos indígenas.
O ano de 1993 foi declarado pela ONU como o “Ano Internacional
dos Povos Indígenas”, e o período até 2004 a “Década Internacional dos
Povos Indígenas”. Nesse interregno houve oportunidades nunca antes
concedidas aos membros dos povos indígenas na esfera internacional:
negociar em organismos internacionais e dirigir-se aos governantes em
assembléias gerais e conferências da ONU. A questão indígena começa a
figurar no cenário político mundial, ocupando um lugar que lhe faltava, e
que, desde muito tempo, deveria estar reservado25.
Na esteira de toda essa movimentação seguiram-se diversos
documentos internacionais que abarcaram direitos culturais de maneira geral.
O setor indígena soma-se a outros direitos de minorias étnicas e raciais que se
integram na luta e privilegiam o fortalecimento do multiculturalismo.
2.6.1 O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, o Pacto
Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e a
Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas
de Discriminação Racial
Em 27 de junho de 1989 foi celebrada a Convenção 169 Relativa aos
Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes da OIT, um dos mais
significativos documentos internacionais de proteção do multiculturalismo.
Adotada em substituição a antiga Convenção 107 de 1957, a Convenção 169
atualizou o assunto, considerando a evolução do direito internacional
ocorrida e as mudanças sobrevindas na situação dos povos indígenas e tribais
ao redor de todo o mundo26.
25
ARAÚJO, A.V; LEITÃO, S. Socioambientalismo, direito internacional e soberania. In:
BORGES DA SILVA, L.; OLIVEIRA, P.C. Socioambientalismo: uma realidade p. 39-40.
26
O Brasil adotou a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho por meio do
Decreto nº 5.051, promulgado em 19 de Abril de 2004.
No preâmbulo da Convenção 169, faz-se referência à Declaração
Universal dos Direitos Humanos e, conseqüentemente, aos Pactos
Internacionais dos Direitos Civis e Políticos e dos Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais, documentos que incorporaram os preceitos da
Declaração, sob a forma de direitos obrigatórios e vinculantes no contexto
internacional.
Os Pactos têm por objetivo a não discriminação entre os povos e
buscam uma igualdade de condições entre todos para o alcance da dignidade
humana. Por outro lado, eles têm um forte cunho ocidental e não consideram
profundamente o princípio do multiculturalismo, no entanto, são aberturas
importantes dentro do sistema jurídico em que, a partir deles, pode-se ampliar
a noção dos direitos, caminhando em sentido do coletivismo.
O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, embora tenha um
viés mais liberal e individualista, não deixou de tratar sobre o direito das
minorias étnicas, ainda que de forma superficial. O art.27 menciona que:
“Nos Estados em que haja minorias étnicas, religiosas ou lingüísticas, as
pessoas pertencentes a essas minorias não poderão ser privadas do direito de
ter, conjuntamente com os outros membros de seu grupo, sua própria vida
cultural, de professar e praticar sua própria religião e usar sua própria
língua”.
Mais especificamente, o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais, vai além da noção do individual para abarcar os direitos coletivos.
Visa garantir os direitos à educação, à saúde, ao trabalho, à previdência e ao
seguro social e, também, o direito à cultura.
O art. 13.1 prevê que a educação deve favorecer a “compreensão, a
tolerância e a amizade entre todas as nações e entre todos os grupos raciais,
étnicos ou religiosos(...) em prol da manutenção da paz”.
Os povos indígenas, assim como todos os demais, têm o direito à
dignidade humana, que somente será um fato quando forem tratados com
devido respeito a suas tradições e direitos coletivos. Sendo assim, para que se
preserve a diversidade cultural, ainda restante, não se pode considerar os
direitos humanos separados em individuais ou coletivos. Em se tratando dos
direito culturais, eles não existem isoladamente, mas refletem uma construção
social conjunta que aos poucos vai firmando suas bases, levantando paredes,
moldando suas formas, o chão, o teto. A afirmação desses direitos ocorre
gradativamente, num processo de conquistas e superando a dicotomia
individual versus coletivo.
Os
direitos econômicos,
nesse
contexto, tornam-se bastante
importantes, pois através deles os povos indígenas e comunidades
tradicionais poderão viver por si sós e, assim, preservarem melhor suas
culturas. A garantia da manutenção de suas atividades econômicas ou a
criação de alternativas sustentáveis, quando aquelas já não sejam mais
possíveis (devido à devastação e a falta de recursos naturais nos seus
territórios), permite, ainda, a conservação do meio ambiente e o manejo
adequado da diversidade biológica, pois atividades por eles realizadas são de
baixo impacto ambiental.
Os direitos sociais e econômicos devem ser interpretados à luz do
direito cultural, visando impedir qualquer forma de imposição ou restrição,
interferindo o mínimo possível na estrutura social desses povos.
Outro documento internacional importante para a fundamentação dos
direitos ao multiculturalismo é a Convenção Internacional sobre a Eliminação
de todas as formas de Discriminação Racial de 1965.
Adotada pela ONU, ela busca uma maior aproximação entre as raças,
diminuindo as diferenças abismáticas existentes. Está prevista, inclusive, a
adoção de medidas positivas e/ou ações afirmativas para tornar mais rápida a
eliminação das desigualdades sociais acumuladas ao longo de muitos séculos,
entre brancos, negros, índios, etc.
Entretanto, por mais que esses documentos tratem da proteção dos
direitos humanos, e possam ser utilizados em favor dos povos culturalmente
diferenciados, nenhum deles é tão significativo quanto a Convenção 169 da
OIT. Este é o principal documento que embasa as discussões internacionais
em torno do multiculturalismo, por tratar-se do único instrumento jurídico
internacional de caráter vinculante, aplicado especificamente para os povos
indígenas e tribais.
2.6.2 A Organização Internacional do Trabalho e a Convenção
107
A OIT surgiu em 1919, após a Primeira Guerra Mundial, com a
finalidade de promover a justiça social, o direito à livre associação sindical e
o direito à negociação coletiva.
Sua principal função tem sido elaborar
normas internacionais que sirvam de diretrizes às autoridades nacionais para
a adoção de políticas mais adequadas na questão trabalhista.
Desde a década de vinte, a Organização se preocupava com a questão
do trabalho rural. Sendo assim, diversas regras foram destinadas à situação
dos trabalhadores do campo.
A atenção voltada para o campo permitiu que se enxergassem alguns
problemas da ocupação rural, evidenciando fenômenos sociais que se
aproximavam dos campesinos, mas que eram derivados de grupos distintos.
A partir daí, verificou-se a situação dos povos indígenas, e também numa
tentativa de integração pelo trabalho, foram assinadas algumas convenções
como a de número 50, sobre o recrutamento dos trabalhadores indígenas, e
outras (64, 65, 104).
No ano de 1957, adotou-se uma convenção de maior amplitude: a
Convenção 107, conhecida como a Convenção sobre Populações Indígenas e
Tribais. Foi um documento muito importante naquele momento, pois era a
primeira vez que um organismo internacional formulava normas vinculantes,
quer dizer, obrigatórias, a respeito dos diferentes problemas enfrentados pelas
comunidades indígenas. E melhor ainda, não abordava apenas questões
referentes ao trabalho, mas delineava um rol de direitos que eram fruto de
intensas reivindicações.
Por outro lado, a grande falha da Convenção 107 da OIT era a
manutenção do pensamento paternalista e integracionista, como reflexo direto
das políticas que estavam sendo aplicadas em alguns países da América
Latina.
A Convenção 107, em consonância com quase toda a política
dominante no período em que ela surgiu, considerava a transitoriedade dos
povos indígenas. A visão marcante era a de que eles desapareceriam com o
decorrer do tempo, e deviam ser buscados meios adequados para assimilá-los
ou integrá-los à sociedade nacional.
Não restam dúvidas, no entanto, que a OIT buscava impulsionar uma
política favorável com relação aos povos indígenas, ainda que de forma
incipiente. E, nesse sentido, desempenhou a missão de influenciar alguns
países que eram mais reticentes e atrasados no reconhecimento desses
direitos. Assim, não se pode negar o mérito de ter dado partida à discussão, e
de fazer adentrar algumas práticas e políticas relevantes, já consideradas em
países mais avançados nas negociações internas.
Sendo assim, passando a se constituir num instrumento jurídico
recorrente, tornava possível e menos tortuosa a defesa de políticas
condizentes com as demandas indígenas, na medida em que a discussão sobre
o assunto foi ganhando espaço e abrindo os caminhos.
O conceito de população indígena, como uma coletividade, fora
estabelecido pela primeira vez em nível internacional, através da Convenção
107, e, ainda, determinou o direito de igualdade aos seus membros, no
mesmo nível de qualquer outro cidadão nacional. Além disso, o documento
albergou uma série de direitos específicos, como o direito coletivo à terra e o
direito à língua materna.
Não se pode deixar de mencionar o passo importante dado por ela, ao
fazer menção e reconhecer a existência do direito consuetudinário, ou seja,
dos costumes e as formas tradicionais pelas quais as comunidades resolviam
seus conflitos.
Para a época, reconhecer esses direitos de forma explícita era bastante
avançado.
2.6.3. Convenção 169 da OIT
Já no preâmbulo, a Convenção Relativa aos Povos Indígenas e Tribais
em Países Independentes, como assim é chamada a Convenção 169, declara
que estabelece uma revisão da Convenção 107, após os membros da OIT
terem decidido adotar diversas propostas de revisão parcial discutidas em
pautas anteriores.
Como quase toda convenção internacional, a 169 tem o intuito de ser
aplicada em diversas partes do mundo, América Latina, Ásia, África e,
portanto, teve que ser flexível, contendo disposições mais genéricas,
considerando a amplitude das diversas situações nacionais. Um tratamento
muito detalhado ou pormenorizado poderia comprometer a aplicação e a
efetivação dos direitos nela previstos, além de complicar ainda mais a
negociação.
Sendo assim, a Convenção 169 procurou delinear alguns termos e/ou
instrumentos, com alcance necessário para conduzir a interpretação favorável
aos direitos indígenas em cada país, mas não foi contundente, deixando
sempre uma margem de possibilidade entre fazer ou não fazer. A expressão
“na medida do possível”, reiteradamente utilizada no texto, reflete justamente
essa postura suave que a convenção adotou.
Ao serem reconhecidos os direitos dos povos indígenas, não bastava
a reafirmação de garantias e liberdades individuais, tendo por base tão
somente os princípios de liberdade e igualdade. Era necessário avançar para
uma perspectiva coletiva dos direitos de uma forma específica.
O estilo de vida diverso imprime em cada um dos povos indígenas
uma identidade própria, e, portanto, não há como equipará-los às demais
pessoas que vivem na sociedade de consumo e capitalista. Quando se tratar
da defesa dos direitos humanos indígenas, é preciso ter em mente a idéia de
prevalência da diversidade cultural. Em outras palavras, tratá-los com
igualdade não significa querer integrá-los à sociedade envolvente, mas
garantir condições de promoção do bem-estar social, segundo seus próprios
paradigmas.
A Convenção 169 da OIT tem o intuito de afirmar os direitos
indígenas e tribais nessas condições, considerando suas peculiaridades
culturais. E, para isso, é preciso reformular alguns princípios de extrema
importância na condução de uma interpretação favorável, como ocorre com
as noções de povo e de autodeterminação.
2.6.3.1 A redefinição do conceito de povos
O artigo 1º da Convenção 169 foi um dos mais debatidos na época de
sua aprovação, porque mencionava a expressão “povos”, e conferia uma nova
definição destinada e específica para aquela situação.
Pode parecer muito natural falar em povos indígenas atualmente, mas
este conceito desperta muita preocupação.
No âmbito do direito internacional, a expressão povos está
diretamente ligada à noção de soberania dos Estados. Ou seja, reflete a idéia
de nação, com território, governo, idioma, organização política e social que,
dentro da concepção cultural reinante, é única e indivisível.
Talvez, seja este um dos motivos pelo qual a Convenção 107, anterior,
preferiu utilizar a expressão “Populações Indígenas”, para evitar a polêmica
em torno da utilização do termo “povos”.
Por isso, a Convenção 169, procurou uma redefinição da expressão,
em busca de uma alternativa para a forma como é utilizada no âmbito do
direito internacional.
Assim, o art. 1.3 menciona que “a utilização do termo "povos" não
deverá ser interpretada no sentido de ter implicação alguma no que se refere
aos direitos que possam ser conferidos a esse termo no direito internacional
”.
Não se pode levar em consideração, a priori, que os povos indígenas
buscam a autonomia política, no sentido de separar-se dos Estados aos quais
pertencem geograficamente, até porque prescindem deles para continuarem
existindo, enquanto povos. O reconhecimento da identidade específica de
suas organizações, distintas das demais existentes na sociedade, é para ser
encarado no sentido de terem a liberdade de determinar seu futuro e tomar
decisões, por si próprios, sobre aquilo que lhes afetam.
Almejam, portanto, conduzirem-se de acordo com suas organizações
sociais, econômicas e culturais, sem ingerências externas, bem como o direito
de viver em seus territórios e a garantia da sustentabilidade do habitat que os
circunda, considerando a relevância do meio ambiente para a conservação de
suas tradições, culturas e modos de viver. Na sua essência, os povos
indígenas, tribais e comunidades tradicionais necessitam desse grau de
autonomia, caso contrário, passarão a figurar como mais um item no rol das
“espécies em extinção” e, dificilmente, continuarão existindo enquanto
culturas diferenciadas.
Fica claro, portanto, que ao se utilizar a terminologia de povos
indígenas, não significa que sejam excluídos da política nos países em que se
encontram. Participam da vida nacional, mas não compartilham dos
processos tradicionais de desenvolvimento econômico e social, ou dos
programas de integração comunitária em geral, pois estes são direcionados
para a população dominante, em geral de característica cristã e capitalista.
Por isso, há necessidade de reformulação do conceito de povos, e,
também, de soberania, uma vez que, esses conceitos jamais deveriam retratar
unidade nem indivisibilidade, em se tratando de Estados multiculturais, como
os latino-americanos. Ao contrário do que possa parecer, a legitimidade
estatal pode ser mais facilmente alcançada, caso seja reconhecida a
pluralidade cultural, ao invés de uma retórica falsa de identidade única.
A Convenção 169, no art. 2.1, menciona que os governos devem
desenvolver ações coordenadas com vistas a proteger os direitos e a garantia
do respeito e integridade dos povos. Mas, para tanto, é necessário que estes
sejam enquadrados nos critérios de definição do que seja povos indígenas e
tribais, preconizados pelo art. 1.1, a e b., constituindo cada qual, de per si, a
sua consciência de identidade própria, indígena ou tribal (art. 1.2)
Dessa forma, chega-se até a prevenir a atribuição de privilégios
inescrupulosamente reivindicados por outros grupos, não abrangidos por
estas categorias, como pode ocorrer com relação a grileiros de terras ou
invasores ilegítimos, etc.
2.6.3.2 O princípio da autodeterminação dos povos
Diante da consolidação do termo povos indígenas no contexto
mundial, é possível sustentar, também, que a eles é cabível o direito à
autodeterminação.
Por certo, tal interpretação leva sempre em conta a ressalva do art.
1.3, ou seja, o uso da expressão é aceito desde que não represente soberania
política, no intuito de segregação dos povos indígenas do resto da
comunidade nacional.
O art. 1º do Pacto de Direitos Civis e Políticos e o mesmo artigo do
Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais mencionam: “Todos os
povos têm direito à autodeterminação. Em virtude desse direito determinam
livremente seu estatuto político e asseguram livremente seu desenvolvimento
econômico, social e cultural”.
Segundo Magdalena Gómez27, como esses pactos estabelecem direitos
humanos, pode-se dizer que o direito à autodeterminação é também um
direito humano.
A mesma autora aponta para o problema de se considerar que os
direitos humanos são de exercício individual, e os direitos dos povos
indígenas são coletivos. Os direitos individuais são aqueles que se exercem
independentemente da sociedade, e são inerentes a toda pessoa humana sem
qualquer distinção de raça, gênero, língua ou religião. Exemplos: o direito à
vida, à liberdade de expressão, a saúde física, dentre outros.
Já os direitos coletivos realizam-se no seio de uma coletividade, não
existem sozinhos ou podem ser exercidos individualmente. Eles dependem da
comunidade como um todo para se concretizar. São aqueles direitos
indispensáveis para que os povos subsistam, como o direito ao território, ao
27
GOMÉZ, M. Derechos Indígenas – Lectura comentada del Convenio 169 de la
Organización Internacional del Trabajo, p. 56.
uso da língua, à cultura própria, o direito de se autogovernarem ou praticarem
suas próprias normas de organização e controle.
Considera-se que, quando os direitos indígenas coletivos não são
respeitados, torna-se muito difícil que os direitos humanos dos integrantes
desses povos sejam efetivados28.
Assim, podemos perceber o quão importante é a abertura dos direitos
humanos para abranger, também, os direitos coletivos e, dentre eles, o da a
autodeterminação, para que assim se tornem efetivos os direitos indígenas. A
dignidade humana desses povos, por exemplo, somente será atingida quando
se permitir que eles sejam quem realmente são.
Mas, como a adoção do princípio da autodeterminação na prática
internacional remete, também, à idéia de soberania, os Estados integrantes da
OIT consideraram que isso poderia ser um risco. Novamente, a atenção
estava voltada para o perigo de que os povos indígenas pretendessem formar
um Estado à parte, quer dizer, separado dos atuais, e isso fez com que a
Convenção 169 não tratasse da autodeterminação de maneira explícita.
Mais uma vez, nunca é demais lembrar, que não se busca uma
interpretação nesse sentido, ao se defender os direitos indígenas.
Independente do uso que se dê comumente à autodeterminação no direito
internacional, aqui, sua abrangência está no reconhecimento de uma
identidade
própria,
de
que
são
culturas
diferentes,
organizadas,
historicamente, antes mesmo da “descoberta” espanhola e portuguesa, em se
tratando da América Latina. Estão além de meros grupos de pessoas com
costumes diferentes e inferiores, como quiseram defender no passado.
Por outro lado, embora a Convenção não fale diretamente em
autodeterminação, ela a deixa subentendida nas entrelinhas. Durante as
discussões para sua elaboração, estabeleceu-se que seriam criados
mecanismos ou procedimentos para atingir tal objetivo gradualmente.
Como em cada Estado a situação indígena varia, até mesmo dentro do
mesmo país, mudando de região para região ou de comunidade para
28
GÓMEZ, M. Derechos Indígenas – Lectura comentada del Convenio 169 de la
Organización Internacional del Trabajo, p. 56.
comunidade, a Convenção buscou adotar uma postura mais flexível, para
alcançar o reconhecimento gradativo desses direitos. Desde o preâmbulo, ela
trata da necessidade de os povos indígenas e tribais controlarem suas
instituições próprias, mesmo dentro do país onde vivem. E, ainda, ressalta
que deve haver por parte do Estado, a participação e consulta aos povos, nas
tomadas de decisões que os afetem, acerca de seu desenvolvimento social e
cultural.
A Convenção menciona no art. 7.1 que os povos têm o direito de
escolher suas próprias prioridades, no que tange ao processo de
desenvolvimento, porém ressalva que esse autocontrole ocorrerá somente “na
medida do possível”.
Em resumo, a Convenção deixa nas mãos dos Estados o poder de
decisão e controle, em última instância, mas cria mecanismos capazes de
conquistar a autodeterminação dos povos indígenas pouco a pouco, como já
foi referido acima.
Além disso, não se deve esquecer que a Convenção 169, assim como
os tratados de direitos humanos em geral, estabelece patamares mínimos de
proteção. Ela define princípios básicos, um nível abaixo do qual os direitos
não podem cair, mas não representa um teto, isto é, o máximo de direitos que
se pode alcançar.
2.7. Multiculturalismo relacionado à biodiversidade
A biodiversidade tem profunda influência na variedade dos povos.
Formada pela riqueza de organismos vivos existentes no planeta Terra, ela é
o produto da evolução de milhões de anos, dividindo-se em três categorias: os
genes, as espécies e os ecossistemas.
A variedade genética provém da multiplicidade de códigos presentes
nos cromossomos de todos os organismos vivos, desde as bactérias aos seres
humanos, podendo gerar diferenças dentro das mesmas espécies, como por
exemplo, a diversidade de fenótipos do ser humano, os diversos tipos de
milho e assim por diante. A variedade de espécies corresponde à pluralidade
de seres vivos numa dada região e o inter-relacionamento que ocorre entre
eles. Está representada nas diferentes categorias taxonômicas pertencentes ao
reino animal e vegetal. Já a diversidade de ecossistemas é resultado de
interações bióticas, tais como animais, plantas, bactérias; e abióticas como
clima, solo, salinidade e outros.
A diversidade biológica ou a biodiversidade - termos sinônimos - não se
espalhou de forma uniforme pelo Planeta, de modo que existem ecossistemas
específicos, adaptados às condições peculiares, nas quais se desenvolveram, e
regiões onde se concentra mais a riqueza natural, como é o caso da América
do Sul e Central.
Com o desenvolvimento do pensamento voltado para a preservação
ambiental, que ganhou mais notoriedade a partir dos anos 70, percebeu-se
que, muito da natureza ainda preservada no Planeta, devia-se ao estilo de vida
tradicional, ao modo de produção sustentável e ao manejo ambiental de
povos
culturalmente
diferenciados.
Portanto,
a
riqueza
biológica
remanescente não seria apenas natural, mas também fruto da interferência
antrópica. Em outras palavras, os povos nativos se integram com o meio
ambiente, observam, reagem, apreendem e transmitem ensinamentos de
forma intuitiva e naturalista, os quais chegam a ser compartilhados por nós
através de seus ritos e histórias.
A Convenção sobre Diversidade Biológica29 reconheceu este fato, e deu
especial atenção às populações tradicionais que colaboraram e continuam
trabalhando pela manutenção da biodiversidade.
Prova disso é o seu art. 8 j:
[...] cada parte signatária deve:
“em conformidade com sua legislação nacional, respeitar, preservar e manter o
conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e populações indígenas
com estilo de vida tradicionais relevantes à conservação e à utilização sustentável da
diversidade biológica e incentivar sua mais ampla aplicação com a aprovação e a
participação dos detentores desse conhecimento, inovações e práticas; e encorajar a
29
Assinada por ocasião da ECO 92, contou com a assinatura de mais de 162 países e tem por
objetivo direto a proteção da diversidade biológica mundial. Aprovada no Brasil pelo
Decreto nº 2 de 3 de fevereiro de 1994.
repartição eqüitativa dos benefícios oriundos da utilização desse conhecimento,
inovações e práticas.”
O Brasil é um dos signatários da Convenção e, portanto, está obrigado
a colocá-la em prática. Além disso, foi o país onde se realizou a Conferência,
na qual a Convenção foi assinada, e recentemente sediou a 8ª Conferência das
Partes da CDB (COP8), ocorrida na cidade de Curitiba, entre os dias 13 e 31
de março de 2006, com a presença dos delegados de 188 países.
A biodiversidade brasileira é uma das maiores do Planeta, provocada,
principalmente, por fatores como o clima e a grande extensão territorial.
É o primeiro país do mundo no total de espécies, bem como em
diversidade de mamíferos, anfíbios30, plantas, peixes de água doce e
insetos31; ocupa o terceiro lugar em diversidade de aves e o quarto em répteis.
Isso faz do Brasil um dos países chamados de megabiodiversos, ao lado de
Costa Rica, Colômbia, Índia e outros.
Com esse perfil, o País encerra significativa parcela da riqueza
biológica existente no mundo, logo, tem o dever de se responsabilizar por ela.
Aliada a essa diversidade natural está intimamente ligada a
sociodiversidade. São mais de 220 povos diferentes32, que somam mais de
300.000 pessoas, falando algo em torno de 180 línguas, vivendo em mais de
quinhentas terras reconhecidas e atingindo uma área superior a 100 milhões
de hectares33.
A análise de fotos aéreas de reservas indígenas, como as que se pode
ver abaixo, é uma fonte de constatação da inter-relação entre o
multiculturalismo e a biodiversidade, onde claramente se percebe a riqueza
natural que ainda se faz largamente presente em seus territórios e duramente
ameaçada pela degradação.
30
MESQUITA, A. Biopirataria: fauna e flora brasileira ameaçada pela ação dos traficantes,
p.16.
31
BENSUSAN, N. O impacto humano. In:____, (org). Seria melhor mandar ladrilhar?
Biodiversidade como, para que, por quê, p. 18.
32
Disponível em: www.funai.gov.br,
www.socioambiental.org/pib/portugues/quonqua/qoqindex.shtm. [01/08/2006]
33
Correspondente a 12 % do território nacional.
Nessas imagens, percebe-se que a floresta dentro dos limites do Parque
Indígena do Xingu34, importante região biológica da Amazônia, vem sendo, a
duras penas, preservada pelos povos indígenas, diante da gritante devastação
nos seus arredores, provocada por queimadas e pela expansão das fronteiras
agrícolas.
Figura 1 - Foto aérea: André Vilas-Boas/ISA
Figura 2- Foto aérea: Pedro Martineli, 1999
Dessa forma, a defesa do multiculturalismo vê-se fortemente atrelada à
preservação ambiental, e corresponde a uma via de mão dupla. Se por um
lado, o meio ambiente ecologicamente equilibrado é condição para a
manutenção da cultura e da qualidade de vida dos povos, por outro, a
proteção do estilo de vida tradicional beneficia a preservação da
34
O Parque Indígena do Xingu localiza-se no Mato Grosso e abriga 14 povos indígenas,
somando 4.043 indivíduos (2002). Atualmente há uma grande preocupação relacionada
com a ocupação desordenada que vem ocorrendo no entorno do parque.
http://www.socioambiental.org/pib/epi/xingu/parque.shtm
biodiversidade. São paradigmas que não cabem dentro de uma formatação
individualista
de
direito,
concebida
para
atender
essencialmente
conveniências capitalistas.
Não devemos esquecer que, na perspectiva do filósofo Fritjof Capra,
vivemos numa teia da vida, onde o conhecimento de nossa função específica,
como co-habitantes de um só planeta e não como consumidores vorazes, tem
sido preservado e ensinado por muitos desses povos tradicionais, com
destaque para os índios nativos das Américas.
A diversidade cultural dos povos indígenas e das demais populações
tradicionais, portanto, está intimamente relacionada com a preservação da
biodiversidade, que, em conjunto, representam um vasto patrimônio a
oferecer para as presentes e futuras gerações.
3
Realidade multicultural: globalização, democracia e
sistemas jurídicos diversos
“Nuestra producción se llama artesanía, y la de ustedes es industria. Nuestra
musica es folklore y la de ustedes es arte, nuestras normas son costumbres y las de
ustedes son derecho.”
De acordo com o exposto no capítulo anterior, pode-se dizer que o
direito moderno fez uma opção clara no sentido de excluir não só os povos
culturalmente diferenciados, como também a biodiversidade existente no
planeta. No entanto, isso não significou o fim, pois ambos resistiram e,
embora com perdas, foi-se estabelecendo uma ponte de diálogo com o
sistema jurídico dominante.
A abordagem nas constituições nacionais, a realização das convenções
e reuniões internacionais sobre o tema foram resultados das ferramentas que
os povos indígenas e tradicionais utilizaram para penetrar no sistema jurídico
moderno.
Na pós-modernidade eles buscam um reconhecimento mais efetivo de
seus direitos, pois apesar das importantes conquistas já referidas e analisadas,
persiste um déficit de cumprimento daquilo que se encontra escrito nos
papéis.
Diversos povos indígenas e outras comunidades tradicionais
mantiveram, e, ainda, mantêm sua estrutura social e, porque não dizer,
jurídica. Um dos dilemas atuais é fazer valer essas instituições, e caminhar
para a concretização real do valor do multiculturalismo, e não uma
acomodação superficial e formal de interesses, tão somente.
3.1 Multiculturalismo: um desafio contemporâneo
O termo multiculturalismo passou a ser utilizado a partir da década de
1970,35 e significa a diversidade cultural existente na sociedade moderna em
contexto mundial. Embora tenha sido esculpido dentro do período moderno,
ele não está apegado ao seu tempo de formulação, de modo que é reflexo de
uma dinâmica entre presente, passado e futuro.
O passado do multiculturalismo, dentro do enfoque ora abordado,
pode ser caracterizado pelo processo de colonialismo, e correspondente à
exploração das Américas. A origem de muitos conflitos e de situações
vividas ainda hoje remete à questão da violência cultural provocada por tais
processos.
O presente multicultural, por sua vez, poderia corresponder à
conquista de vê-lo reconhecido como um valor para o sistema jurídico atual.
Por fim, o futuro, está diretamente relacionado às atitudes em prol da
concretização efetiva desse princípio na esfera social e política mundial.
Apresenta-se, portanto, como um processo dinâmico e interativo, mesclando
diferentes dimensões e contextos temporais.
Bartolomé36 assevera que o multiculturalismo é, ao mesmo tempo,
uma realidade empírica e, também, as valorações e práticas produzidas por
essa realidade.
Resulta imposible uma reflexión social sobre uma configuración
multicultural, que no se interrogue sobre los procesos sociales involucrados
y sus perspectivas de futuro. A la vez, la multiculturalidad no es ajena a las
distintas posiciones de poder que manejam los diferentes grupos culturales,
por lo que muchas veces la diferencia fue considerada sinónimo de
desigualdad, y se creyó que suprimiendo la diferencia se aboliría la
desigualdad, cosa que por supuesto jamás ocurrió.
Na sua essência, a sociedade corresponde a uma fábrica de
diversidade cultural, pois algo peculiar do ser humano é o desenvolvimento
35
JORNAL FOLHA DE SÃO PAULO de 17 de setembro de 2006. O racha do
multiculturalismo. Artigo originalmente publicado no jornal francês “Le monde”.
Tradução de Clara Allain.
36
BARTOLOMÉ, M.A. Processos interculturales, p. 116 e 119.
de sua vida de diferentes formas, que se interpenetram e coexistem - segundo
Gray,37 isto é um fato inalterável. Quanto maiores e mais complexas se
tornam as sociedades, mais aumentam os contatos culturais e suas tensões,
decorrentes da miscigenação e do intercâmbio existentes. Os conflitos de
valores são tipicamente humanos e não podem ser superados, e sim,
ajustados.
Assim sendo, a diferença apresenta-se como um componente
estrutural da vida social, um dado fático, e não uma etapa que deve ser
ultrapassada como se fosse uma anomalia ou uma doença. Reconciliar-se
com
o
multiculturalismo,
talvez,
seja
um
dos
maiores
desafios
contemporâneos.
...deberemos acostumbrarnos a lo particolare, a vivir con y en la divesidad,
la aceptemos o no como un valor. Y es este mismo aserto lo que hace
asombroso que el pensamiento político se haya llevado tan mal con la
diversidad cultural. En el caso de la teoria política de raigambre liberal que
se ha extendido sobre esa gran porción de la humanidad que llamamos
Occidente, la relación con la diversidad ha sido francamente desastrosa: una
historia de negación y menosprecio de la primera hacia la segunda.
Evidentemente, se requiere una visión política distinta, reconciliada con la
diversidad.38 (grifos no original)
A proposta de igualdade forçada, ou a proclamação de um único
modo de vida para a humanidade não prosperou; o multiculturalismo, ao
invés de ser encarado como um problema, deve ser assumido enquanto tal, e
impulsionar a construção de um novo paradigma para as relações sociais. No
entanto, esse movimento se dá dentro de uma postura emancipatória, e não
como mais uma forma de assimilação capitalista.
O multiculturalismo que pretende descrever as diferenças culturais,
nem sempre está ligado a uma noção libertária. Pode muito bem ser
interpretado, e assim muitas vezes o é, por concepções eurocêntricas39 de
cultura, segundo parâmetros estéticos e valores econômicos, morais, sociais
37
Apud DÍAZ-POLANCO, H. Elogio de la diversidad, p. 15.
DÍAZ-POLANCO, H. Elogio de la diversidad p. 17.
39
Expressão utilizada por NUNES, J. A.; SANTOS, B.S. Introdução: para ampliar o cânone
do reconhecimento, da diferença e da igualdade. In: SANTOS, B.S. (org.). Reconhecer
para libertar, p. 27.
38
ou cognitivos universais, que classificam e elegem a importância de uma
determinada cultura em detrimento da outra. Nessa seara, é preciso refletir
não somente acerca de se realizar ou não o multiculturalismo, mas,
principalmente, em como concretizá-lo.
As discrepâncias de desenvolvimento econômico em escala global
provocam muitos debates acerca da possibilidade ou ameaça de assimilação
da cultura pelo fator econômico. A mercadorização do elemento cultural,
através da inserção de uma lógica neocolonial, deve ser lembrada como mais
uma provável reprodução das desigualdades e a manutenção da subordinação,
por tanto tempo vivenciada pelos povos culturalmente diferenciados.
3.2 Globalização contra-hegemônica
Se por um lado, a globalização provoca a uniformização da cultura e
mecanismos de pressão econômica sobre os povos, ela também pode ser
utilizada em prol da consagração de novos paradigmas emancipatórios.
A promessa de que a globalização significaria a generalização do
bem-estar econômico e da equidade social não se confirmou e, ao contrário,
as desigualdades em diversos âmbitos aumentaram ao longo das últimas
décadas, colocando em risco a própria sustentabilidade humana40. Ao lado
disso, há um forte processo de uniformidade cultural e a proclamação de
padrões culturais únicos e superiores, de forma que se chega a afirmar que a
globalização não passaria de um termo inventado pelos países ricos,
economicamente, com a finalidade de dissimular suas práticas de avanço
econômico em outros países41.
Nessa perspectiva, há uma tendência em escala mundial, no sentido de
caminhar-se
para
uma
noção
alternativa
e
contra-hegemônica
de
globalização,
“constituída pelo conjunto de iniciativas, movimentos e organizações que,
por intermédio de vínculos, redes e alianças locais/globais, lutam contra a
40
41
DÍAZ-POLANCO, H. Elogio de la diversidad, p. 9.
Ibid., p. 10.
globalização neoliberal mobilizados pelo desejo de um mundo melhor, mais
justo e pacífico que julgam possível e a que sentem ter direito.” 42
Assim, o processo de globalização, cria novas demandas provenientes
da transnacionalização econômica, colocando as culturas em maior contato
umas com as outras. Se por um lado ocorre a dominação hegemônica, por
outro há o diálogo e o questionamento do modelo de imposição monocultural
e a homogeneidade capitalista. São fatos paralelos que ocorrem
simultaneamente e vão redesenhando o sistema. A identidade coletiva é
reacendida diante das ameaças de suprimi-la, o que proporciona uma
construção contra-hegemônica da globalização.
Da mesma forma, como os países desenvolvidos influenciam o modo
de vida dos demais povos, através do mercado, o efeito inverso também
acontece, e ainda que não tenha a mesma potência do capital, um pensamento
diverso do dominante vem sendo estabelecido. Observe-se que até mesmo a
aceitação contemporânea do termo multiculturalismo foi, também, fruto do
processo social de migração planetária Sul-Norte, em que a suposta
homogeneidade cultural do império foi ameaçada pela chegada de
contingentes populacionais provenientes de países empobrecidos
43
, algo
comum e muito marcante nos grandes centros urbanos mundiais.
Os movimentos em prol da preservação ambiental e da diversidade
cultural, em âmbito mundial, têm se articulado na defesa de uma globalização
não-hegemônica, e são importantes elementos num cenário de abertura do
direito e da política. Mas, essa nova concepção, voltada ao coletivo, somente
tem lugar num âmbito democrático e participativo.
3.3 Democracia e diversidade na sociedade contemporânea
Embora a tendência capitalista de homogeneização sociocultural
tenha prevalecido em algumas partes do mundo, ela não conseguiu abafar por
42
NUNES, J.A.; SANTOS, B.S. Introdução: para ampliar o cânone do reconhecimento, da
diferença e da igualdade. In: SANTOS, B.S. (org.). Reconhecer para libertar, p. 13-14.
43
BARTOLOMÉ, M.A. Processos interculturales, p.115.
completo as diferenças, e a utopia igualitária44 não logrou seu objetivo final,
o que, na verdade, significara uma imposição cultural.
Apesar de todo o esforço do poder dominador, a sociedade
contemporânea é essencialmente complexa e diversa. Sua compreensão
implica na aceitação do pluralismo em vários planos.
Constata-se a olhos nus, que a diversidade existe e sempre existiu em
todos os setores, quer da vida humana ou da natureza. São cinco raças
humanas, de diferentes cores, que possuem diferentes sentidos (visão, tato,
olfato...), e se espalham por cinco grandes continentes, os quais contêm uma
infinidade de relações, baseadas em diferenças (religiões, climas, solos,
idiomas, animais, plantas, máquinas, ideologias, etc).
Por essa razão, conclui-se, que parece existir uma certa racionalidade
no universo, que tem por base uma diversidade intrínseca, contra a qual seria
inútil relutar. Talvez, seja por isso que o mito simplista da igualdade entre
todos tenha falhado. O princípio foi reavaliado diante do reconhecimento
gradativo da diversidade na sociedade pós-moderna.
Atualmente, busca-se a edificação de “uma igualdade que reconheça
as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza
desigualdades” 45.
A diversidade, no entanto, nem sempre é aceita na sua plenitude.
Principalmente, em se tratando dos direitos culturais, percebe-se que as
sociedades toleram a diferença, a existência do “outro”, mas não o aceita
verdadeiramente como ele é.
Dentro do espírito liberal de respeito e tolerância, em que o direito à
liberdade e à igualdade de todos perante a lei é meramente formal, há uma
recusa em aceitar o “outro” por completo. Nesse sentido, existe uma lógica
de violência implícita no seu aspecto político 46.
44
CITTADINO, G. Pluralismo, direito e justiça distributiva, p. 75.
NUNES, J.A.; SANTOS, B.S. Introdução: para ampliar o cânone do reconhecimento, da
diferença e da igualdade. In: SANTOS, B.S. (org.). Reconhecer para libertar, p. 43.
46
KOZICKI, K. A política na perspectiva da filosofia da diferença. In: OLIVEIRA, M.
(org.). Filosofia Política Contemporânea, p. 142.
45
Essa conjuntura gera a necessidade de estabilização, através de regras,
convenções e atos de poder, para que assim, o almejado controle social seja
concretizado. Mas, efetivamente, essas tensões existem, são fáticas, e, não
raras vezes, elas se chocam em interesses, não somente diversos, mas
opostos.
Nessa seara, o direito entra em cena, exercendo um duplo papel: o
primeiro, de regulação social ou resolução de conflitos; e o segundo, de
possibilidade para a concretização de novas reivindicações.
A sociedade plural não permite mais uma única voz, uma estrutura
centralizada e dominante.
Talvez, uma das principais conseqüências da derrota socialista, foi
uma crença superficial de que não é possível construir algo para além do
capitalismo.
O socialismo utópico teve a missão e o mérito de desejar um mundo
melhor, superar a razão do capital frio e explorador. Então, ele se vê
derrotado, mas o capitalismo se reformula, socializa-se, um pouco que seja.
Viu-se, então, o surgimento do Estado-Providência, período que o
sociólogo Boaventura de Sousa Santos47 chama de “a segunda fase do
capitalismo” ou “capitalismo organizado”. Em seqüência, num terceiro
momento, ele vai se desorganizando, enfrenta diversas e sucessivas crises,
criando, assim, um campo fértil para o afloramento dos movimentos sociais
em busca da afirmação de novos direitos. A falsa crença que surgiu com a
queda do bloco socialista, de fim das lutas e da história, não se realizou, e
houve apenas uma mudança qualitativa dos conflitos que passaram a ser
ainda mais étnicos e culturais.
Vale ressaltar, entretanto, que por mais erros que tenham cometido os
liberais, a democracia triunfou junto com eles. E ela, certamente, é o palco
onde, atualmente, se podem sustentar idéias multiculturais. A democracia
corresponde ao espaço que permite o debate para o seu próprio e contínuo
aperfeiçoamento.
47
SANTOS, B.S. Pela mão de Alice, p. 86.
Isto implica, entretanto, numa abertura total da democracia, que não
pode mais se dar ao luxo de encerrar-se na mera representatividade, baseada
apenas no conquistado direito ao voto. É preciso ir mais além, ou seja,
necessário se faz radicalizar a democracia.
Nesse sentido Boaventura de Sousa Santos48 assevera que:
O capitalismo não é criticável por não ser democrático, mas por não ser
suficientemente democrático (...) A renovação da teoria democrática assenta,
antes de mais, na formulação de critérios democráticos de participação
política que não confinem esta ao acto de votar. Implica, pois, uma
articulação entre democracia representativa e a democracia participativa.
Para que tal articulação seja possível é, contudo, necessário que o campo do
político seja radicalmente redefinido e ampliado. (grifo nosso)
É preciso agir em prol de direitos supra-individuais, provocando um
pluralismo social realmente combativo. Antes de ser visto como uma ameaça,
ele deve ser entendido como a própria condição de existência de uma
democracia participativa49. Combativo, no sentido de lutas emancipatórias,
que não cabem mais dentro da formatação capitalista, ocidental e
pretensamente universalista.
A América Latina corresponde a um celeiro para experiências
democráticas e plurais, tendo em vista sua rica miscigenação cultural, ao lado
de uma imensa natureza ainda preservada.
Sendo assim, percebe-se que as lutas democráticas podem ser aqui
facilmente coordenadas: os movimentos étnicos (indígenas, de afrodescendentes, etc), o movimento ambiental, de gênero humano e outros. Toda
essa gama de lutas demonstra que, tanto a dominação quanto a resistência, se
fazem através de diversos eixos, e reflete-se em condições que permitem o
debate acerca de uma renovação da teoria democrática.
O Direito apresenta-se como uma ferramenta que permite a
consolidação desse novo projeto de sociedade, mas para isso ele precisa
também ser repensado à luz de um horizonte transformador.
48
49
Ibid., p. 270 e 271.
MOUFFE, C. O regresso do político, p. 23.
3.3.1 Lutas democráticas
socioambiental
entrelaçadas
–
o
movimento
O panorama de uma sociedade plural e democrática permite que
diversos segmentos encontrem os seus espaços na forma de lutas
emancipatórias e, não há como negar que o direito é um norte para todas elas.
Mas, para a concretização desses novos ideais, muitas vezes, é preciso a
articulação política entre eles, como propôs Chantal Mouffe50.
Essa união de movimentos permite que ganhem mais força e que suas
vozes sejam facilmente ouvidas, uma vez que o capital é organizado
globalmente e a esfera econômica encontrou formas de dominação
intercontinentais.
Um exemplo dessa articulação conjunta é a união dos movimentos
social e ambiental no Brasil.
O socioambientalismo brasileiro – tal como reconhecemos e identificamos –
nasceu na segunda metade dos anos 80, a partir de articulações políticas
entre os movimentos sociais e o movimento ambientalista. O surgimento do
socioambientalismo pode ser identificado com o processo histórico de
redemocratização do país, iniciado com o fim do regime militar, em 1984, e
consolidado com a promulgação da nova Constituição, em 1988, e a
realização de eleições presidenciais diretas, em 1989. (...) A consolidação
democrática no país passou a dar à sociedade civil um amplo espaço de
mobilização e articulação, que resultou em alianças políticas estratégicas
entre o movimento social e ambientalista. Na Amazônia brasileira, a
articulação entre povos indígenas e populações tradicionais, com o apoio de
aliados nacionais e internacionais, levou ao surgimento da Aliança dos
Povos da Floresta51, um dos marcos do socioambientalismo.52
No engajamento pela defesa dos povos culturalmente diferentes
percebeu-se a existência de um importante fator nesse contexto: o direito ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado, como uma das condições para a
manutenção da cultura e da qualidade de vida das comunidades tradicionais.
Assim, as reivindicações emancipatórias se completaram.
50
MOUFFE, C. O regresso do político, p. 33.
Chico Mendes foi o principal líder deste movimento do qual também se destacou Marina
Silva, a atual Ministra do Meio Ambiente.
52
SANTILLI, J. Socioambientalismo e os novos direitos, p. 31.
51
A proteção do meio ambiente destaca-se entre os principais
movimentos dos últimos tempos, e representa uma importante arma na luta
pela criação de uma sociedade plural, mais justa e solidária. Por confrontar o
pensamento liberal clássico de exploração dos recursos naturais, alia-se
constantemente às demandas por novos direitos sociais, tais como os direitos
culturais. Unidos, visam contrapor-se ao estado de coisas atual e surge a
concepção dos novos direitos socioambientais.
Como bem salienta Souza Filho53, “as questões ambientais e culturais
se misturavam de forma célere, na compreensão de que a cultura não
subsiste num ambiente hostil, e não há nada melhor para preservar o
ambiente do que uma cultura a ele adequada”.
Os direitos socioambientais são todos aqueles bens ou interesses
essenciais para a manutenção da vida de todas as espécies (biodiversidade) e
de todas as culturas humanas (sóciodiversidade)54. Portanto, traz uma noção
de sustentabilidade da vida de uma maneira geral: seja a vida natural ou
biológica como também as formas de vida humana que se desenvolvem
através da cultura.
A luta por esse novo direito, inscreve-se numa dimensão coletiva,
baseada no pluralismo, na tolerância, nos valores locais, e também, rompe
com a lógica excludente do Estado moderno e a pretensão de um direito
único que, nitidamente, serve ao sistema econômico dominante.
3.4 Para além do direito positivo
O direito, nesse contexto, começa a ser considerado como instrumento
para a libertação, e não somente ligado à função de conter os conflitos
sociais.
Para isso é necessária a reformulação do sistema, no sentido de
proporcionar essas novas possibilidades democráticas. E, uma tentativa é,
certamente, a visão do direito a partir da perspectiva do pluralismo jurídico.
53
SOUZA FILHO, C.F.M. Introdução ao direito socioambiental. In: LIMA, A. (org.). O
direito para o Brasil socioambiental. p. 25.
54
Ibid., p. 38.
Em particular, muitos povos indígenas possuem um sistema jurídico
próprio, baseado no direito consuetudinário que tem por fonte seus costumes
e tradições.
O direito positivo, no entanto, não considera esses sistemas jurídicos
diferenciados como sendo direito, pois não têm a segmentação e
categorização que tem o positivismo. Ou seja, por não haver uma instituição
centralizada, emanando normas e com real capacidade de coerção, não se
acredita estar diante de um direito.
Para a tradição jurídica que deriva da família romano-germânicacanônica o lugar ocupado pelo direito consuetudinário sempre foi
considerado marginal, no máximo fonte, um pré-direito. A teoria positivista
tende a separar em zonas bem distintas o que é direito e o que não é.
Kelsen e Hart são autores que representam fortemente este
pensamento, e se referem sempre a um direito primitivo ou rudimentar, pois
eles não teriam um mecanismo de criação e modificação de normas, nem a
separação formal entre usos, moral e direito55.
Essa concepção é tipicamente ocidental, e conforma os interesses
civilizatórios de algumas nações consideradas melhores em relação às outras,
e que, portanto, elas teriam a missão de ensinar ou propagar a forma correta
de sociedade, logo, a de direito também.
Sendo assim, o conceito de direito atrelado à cultura positivista é visto
como o ideal, devendo então ser universal. Quando há o contato com outras
culturas, logicamente, percebe-se que não existem as mesmas categorias e
instituições presentes no direito moderno e, numa típica postura de arrogância
cultural, se nega a elas qualquer reconhecimento ou forma de um direito
próprio.
Foi exatamente isto que aconteceu quando as metrópoles européias
contataram as civilizações indígenas na América Latina. Apesar de serem
55
BALLÓN AGUIRRE, F. Sistema Jurídico Aguaruna y positivismo. In: ITURRALDE, D.;
STAVENHAGEN, R. Entre la Ley y la costumbre, p. 126.
altamente especializadas em diversas atividades56, e de possuírem estruturas
jurídicas e sociais próprias e organizadas, o colonizador as desconsiderou
completamente, e atribuiu-lhes, apenas, a denominação de costumes,
tradições, mas nunca de direito.
Essa concepção hegemônica aos poucos vem sendo modificada numa
árdua batalha travada contra as concepções universais e positivistas, ainda
muito marcantes no campo jurídico.
Apesar de diferente, os povos indígenas possuem um sistema de
direito que não merece ser desqualificado por não apresentar as
características ocidentais. Se ele é realmente eficaz em suas bases sociais, por
que então não aceitá-lo como direito? Talvez, o maior responsável por esta
negação seja sempre o temido receio de revolução política que ele possa
causar, mas não se pode mais esperar de um Estado latino-americano o não
reconhecimento a esses povos da autodeterminação, o que inclui a aceitar
suas instituições, sob pena de se cometer ainda mais violência, dando
continuidade ao processo de supremacia de uma cultura em detrimento das
outras, o que viola frontalmente os próprios fundamentos jurídicos
constitucionais hodiernos.
Para exemplificar a diversidade cultural dos povos serão analisados
dois sistemas jurídicos e sociais indígenas: o tukano e o kuna, com o intuito
de demonstrar e reforçar a existência do pluralismo e a necessidade de
proteção dessas estruturas diferenciadas, para a verdadeira realização do
multiculturalismo
e
preservação
da
biodiversidade
na
sociedade
contemporânea.
Os dois povos viveram distintos processos históricos e detêm relações
muito diferentes travadas com o Estado do qual fazem parte geograficamente.
56
Haja vista o exemplo da civilização asteca que tinha conhecimentos vastos sobre
construções, uso de metais preciosos, cestarias, cerâmica, tapeçaria e um comércio também
bastante desenvolvido. (Museu Nacional de Antropologia: México-DF). Ressalte-se que o
uso da expressão civilização não se dá no sentido de fenômeno urbano nem a partir de uma
concepção evolucionista, como sendo o patamar mais alto que uma cultura pode chegar.
Significa portanto um complexo cultural formado pelo conjunto de várias sociedades com
tradições culturais compartilhadas em uma área extensa e com uma certa importância
cronológica (BARTOLOMÉ, M. A. Procesos interculturales, p.164 e 165).
Por isso eles foram escolhidos, para justamente dar uma dimensão da
variedade de possibilidades do multiculturalismo em nossa sociedade.
3.5. A sociedade e o sistema jurídico tukano57
O povo tukano vive na Amazônia brasileira e colombiana, localizado
no alto do rio Negro (noroeste amazônico), na região do rio Papurí, que faz a
divisa entre os dois países e, também, próximo aos rios Paca, Tiquié, baixo
Vaupés e seus pequenos afluentes. No Brasil, a sua população é de
aproximadamente 6.241 pessoas, falando o idioma tukano - uma língua
isolada que não faz parte de nenhum grande tronco lingüístico58.
As aldeias tukano são distribuídas em malocas, habitações
multifamiliares tradicionais, aonde podem viver até quatorze famílias
pertencentes ao mesmo clã.
As malocas representam uma dimensão importante de poder para os
tukano, e é a partir dela que se desenvolve sua organização social, ritual,
política e econômica.
Figura 3 – Maloca Kuebi do Rio Kuduari, chamada Surubinóca. Foto: Kock-Grünberg,
1904, ISA.
57
SIMMONDS, C.; GARCÍA, L.; SJOBERG, H. Sistemas Jurídicos Tukano, Chamí
Guambiano y Sikuani. p. 13-98.
58
RICARDO, B.; RICARDO, F. Povos indígenas no Brasil 2001/2005. São Paulo: ISA,
2006. p. 63.
Cada maloca abriga um clã diferente e tem suas relações baseadas na
reciprocidade. Possui uma maneira própria de ser construída como símbolo
da prosperidade familiar e da procriação. Internamente também são
distribuídas ordenadamente, segundo a idade dos filhos e as disposições
familiares.
As missões católicas que desde há muito tempo têm contato com o
povo tukano vieram pouco a pouco influenciando a cultura, através da
construção de casas individuais para cada núcleo familiar, mas, mesmo
assim, o povo tukano ainda reproduz a estrutura da maloca dentro dos
vilarejos construídos pelos missionários.
A acumulação de bens para os tukano é uma conduta altamente
anormal, e somente observada fora da comunidade, razão pela qual nem se
considera sua penalização. É uma conduta de “behkasa” (brancos). Acumular
está fora do contexto cultural tukano e só ocorre quando da realização de
festas.
O prestígio para o povo tukano é a boa saúde, uma maloca bonita,
alimentação suficiente em termos de caça e pesca, hortas bem cultivadas e
uma convivência harmônica entre os jovens e adultos. A finalidade da cultura
e das tradições é alcançar o bem-estar da sua gente e a felicidade de todos.
3.5.1 Poder, ética e direito
A concepção de poder dos povos tukano está representada pelo
“oake” que é a base fundamental, o equilíbrio e bem-estar de todos.
Tal força tem três dimensões: a primeira se trata da presença abstrata
dos poderes no macrocosmo; a segunda é a institucionalização dos poderes
no ser humano, através dos mitos que determinam a prática cotidiana; e a
terceira representa o comportamento pessoal e social devido, para a obtenção
da finalidade da cultura, possibilitando a manutenção da ordem que permite a
reprodução do poder.
Estas dimensões explicam a ética tukano e remetem às formas de
normatividade e controle social.
O ordenamento jurídico tukano, do ponto de vista estrutural, é uma
articulação entre um subsistema segmentário, trabalhando em alguns casos
com a compensação; e um outro independente e paralelo que é o sistema
mágico-religioso.
O subsistema segmentário tem um caráter humano, visando que as
faltas cometidas pelos homens sejam resolvidas por eles mesmos, visto que
se encontram num mesmo nível. Já o sistema mágico-religioso se apresenta
como conseqüência das forças do poder abstrato, superior, e não
personalizado, que pode afetar os homens e o meio, mas é independente da
vontade deles.
No primeiro caso (aspecto humano), duas éticas se apresentam como
complementares: a ética de obrigações acerca da organização entre os
próprios homens e a ética da relação entre o homem e a natureza. São padrões
de comportamento social por um lado, e por outro, um conjunto de proibições
em relação à natureza que disciplinam a vida comunitária. A coesão dessas
éticas se dá pela tradição mística e se refletem em atitudes, fatos,
procedimentos, sanções e ordens.
O sistema segmentário é o dominante em termos de controle social,
visto que o mágico-religioso é autônomo e paralelo, proveniente do poder do
firmamento e que não se mistura com o anterior.
3.5.1.1 Autoridades tukano
O “mami” é a autoridade intelectual e espiritual, sendo escolhido
pelos membros da maloca, por consenso, entre aqueles da linhagem
específica. Deve possuir características de prudência e capacidade de
organização suficiente para saber dirigir a comunidade, de acordo com as
normas dos antepassados. Não necessariamente o “mamí” será o dono da
maloca, mas ele é quem determina a produção, aprova as determinações, etc.
Existem três linhas de autoridades tradicionais: a vertical, a horizontal
e a da especialidade. Cada categoria possui subdivisões características, por
exemplo: o organizador, o pensador, o guerreiro, o curandeiro e assim por
diante, sempre dentro da noção de hierarquia. Trata-se de um sistema
bastante segmentado em que não se verifica a centralização do poder. O
“mamí”, por mais que seja o principal líder, não o é da comunidade inteira, e
sim, de uma determinada maloca, de forma que existem vários “mamí” com
igual poder na sociedade tukano.
As pessoas podem se defender das autoridades tradicionais que
cometam abusos, de duas formas: ou através da crítica social, ou a troca da
autoridade, seguindo a hierarquia correspondente. Dessa forma, há um
fomento para o desempenho de um bom governo.
As relações administrativas e o exercício da autoridade dos “viog”
(chefes) seguem a tradição mítica, e são fortalecidas e incrementadas através
da realização de grandes festas e ritos. Essas reuniões tradicionais abrangem
mais de uma maloca (duas ou três) e, também, pessoas aliadas podem ser
convidadas.
Dizem os tukanos que antes da chegada das missões e da penetração
branca, essas festas eram muito maiores a ponto de reunir todas as pessoas da
região, ocasião em que se faziam trocas, distribuições, praticavam a
reciprocidade, a aproximação das linhagens e resolução dos conflitos, enfim,
a manutenção da tradição. Hoje em dia, existe uma carência de reuniões
tradicionais deste tipo.
Existem algumas organizações regionais tukano, determinadas por
unidades geográficas, que têm um caráter político, e foram concebidas
especialmente para intermediar as relações com o Estado e a sociedade
envolvente, bem como administrar os recursos estatais. No entanto, tais
organizações não possuem o caráter de tradicionais, e enfrentam alguns
impasses com relação à legitimidade, visto que, muitas vezes, jovens
envolvidos com a sociedade nacional são os seus líderes e, em alguns casos,
pode haver contradições com o setor tradicional.
3.5.2 Relações com a terra, herança e produção
A relação do povo tukano com a terra é de propriedade comunitária,
em que diversas famílias convivem e cada qual possui uma porção do terreno,
onde se fazem as próprias plantações – chamadas de “chagras”. Eles
trabalham com quatro ou cinco “chagras”, visto que fazem o rodízio para o
descanso da terra. A produção é familiar e dividida por sexo e idade.
Dependendo da atividade a ser realizada, os trabalhos podem ser individuais
ou coletivos, com a participação de ambos os sexos e de grupos associados,
também.
Existe o direito de herança sobre os bens do lugar da residência, mas a
propriedade familiar não se transmite a um só membro, é passada a todos e
fica sob responsabilidade do irmão maior. Não se pode vender ou arrendar a
terra, pois, dentro da cosmovisão, ela é considerada sagrada e o que existe é
apenas o direito de possuir aquele território ancestral, direito este que é
também dos animais e de outros povos. A relação aproxima-se do instituto do
usufruto.
O modo, no entanto, de apropriação de um dado território dá-se pela
ocupação na sua forma etnohistórica de migração do povo tukano. Também,
pela herança, hospitalidade, ou o direito de aliança matrimonial e doação
entre pais e filhos vivos. Não existem títulos para comprovar a propriedade e
a tradição em caso de doação se dá através da anuência do “mamí”, que
apenas reconhece aquele direito como resultado do mandato dos mitos.
Podem ser feitas consultas ao “mamí”, que dá oportunidade de controvérsia
para as pessoas que se considerarem lesionadas, no caso de repartição de
território.
Vale ressaltar que a estrutura social dos tukano é bastante
segmentaria, e a concepção de direitos territoriais está baseada em áreas
autocontidas, mas não segregadas.
Muitos povos59 fazem parte da matriz familiar tukano que é
multiétnica, e o seu conjunto representa uma organização social complexa.
Na região da bacia do rio Uaupés, por exemplo, há uma grande convergência
exogâmica entre grupos afins, que falam diferentes línguas. Isso resulta num
dinamismo multilingüístico em que, numa mesma comunidade, muitas vezes,
se fala mais de uma língua indígena, além do português e do espanhol.
3.5.2.1 Meio ambiente e biodiversidade
A relação tukano com a natureza está envolta em considerações de
ordem ética e moral. Ao contrário do homem branco, eles não se apropriam
dos recursos naturais como um direito máximo e indiscutível; compreendem
que a vida e os alimentos somente existem devido ao poder do universo, logo
não há o sentimento de apropriação e sim de consideração.
Eles julgam o homem um ator de destruição que precisa ter
consciência disso, e assim, respeitar a selva com maneiras certas de atuar e
proibições típicas para o depredador. Isso faz com que seus territórios sejam
ricos em biodiversidade, pois o uso do recurso natural é controlado, visando a
sua não escassez.
Percebe-se aqui uma conduta ambiental disciplinada e orientada como
uma verdadeira legislação. Para citar exemplo de algumas regras, os povos
tukano e maku acreditam em “boraró”, uma entidade sobrenatural que
multiplica e protege os animais de caça. Sendo assim, é proibido apenas
machucar o animal, pois “boraró” desaprova essa conduta e pune o culpado
posteriormente 60. Deve-se ter cuidado na caça para não ferir os animais sem
que eles depois possam servir de alimento. Também, é proibido caçar um
número de animais de cada espécie que seja superior ao necessário para o
caçador e sua família; se assim o fizer virá represália (sistema mágicoreligioso), podendo adoecer todos os que consumiram a carne ou seus filhos.
59
60
Bará, barasano, piratapuyo, tuyuca, makuna, taiwano, e outros.
POZZOBON, J. Vocês, brancos, não tem alma, p. 44.
São princípios e regras bem distintas da cultura capitalista
predominante, de exploração da natureza segundo parâmetros meramente
econômicos, embora nas últimas décadas tenha havido uma tendência, ainda
que incipiente, de sustentabilidade ecológica.
3.5.3 Obrigações, contratos e comércio
Com relação a obrigações e contratos, o povo tukano baseia-se na
reciprocidade. Os trabalhos de construção de malocas, abrir caminhos,
roçados, plantações é feito pelo critério de tratamento mútuo e da retribuição
como, por exemplo, quando da inauguração de uma maloca nova, os
moradores oferecem uma festa e isto representa um sinal de reciprocidade
que é uma conduta contínua e rotineira, entre os membros, de sempre
repartirem e redistribuirem o bem ou o trabalho recebido.
Muitas vezes, a rede de reciprocidade pode ser conduzida pelos
“mamí”, que distribuem as tarefas e fazem os acordos entre as malocas,
como, por exemplo, pescar para tal família ou construir outra maloca em
determinado lugar, ou uma canoa etc.
O mecanismo de repressão ao não cumprimento das obrigações é a
crítica ou a sanção social, que representa o isolamento da (s) pessoa (s) que
não cumpriu a obrigação e até mesmo, dependendo da situação, a retaliação
pode incluir toda a linhagem familiar.
Os contratos de maneira geral são baseados no conceito de troca de
bens, que se realiza de maneira comutativa e concomitante, sem a intervenção
de um meio de pagamento como o dinheiro ou algo que lhe faça as vezes.
Essas trocas, como contrato comutativo, podem ocorrer em zonas
específicas de intercâmbio, que se dá entre os próprios tukano ou com outros
povos também.
As trocas dividem-se em três categorias: a do comércio próximo; de
bens essenciais, como remos, cestarias, cerâmicas pequenas, bancos, etc; a do
comércio distante, de bens escassos ou de luxo, como plumas, dardos e
demais objetos leves, fáceis de transportar e de alto valor cultural; e a do
comércio silencioso, especificamente com o povo maku, que seria um tipo de
trocas monetárias ilegais. Com a drástica influência cultural que os povos
indígenas de maneira geral vêm sofrendo há anos, houve uma monetarização
da economia tradicional tukano, proveniente de seu contato com grileiros,
missionários, comerciantes e garimpeiros.
Pela regra cultural, é proibida a aquisição de bens tradicionais entre
indígenas e, também, o empréstimo de dinheiro. Esse comércio geralmente é
praticado por membros do povo tukano que são assalariados de comerciantes,
instituições do Estado ou de ONGs que trabalham na região, e não possuem
tempo para as atividades tradicionais. A sanção por parte da comunidade é o
repúdio, concretizado através da crítica social. Na verdade, vive-se uma
contradição entre os setores tradicionais e os indígenas assalariados que se
afastaram da vida comunitária.
Já com os brancos, é possível haver compra e venda e o uso do
dinheiro. Os tukano vão aos povoados e levam pescados, caças, farinha,
mandioca, cestarias, e os vendem por dinheiro que utilizam para comprar
roupas, munições, anzóis, nylon, sal, fósforo, etc. As vendas se realizam nas
ruas ou em lojas dos brancos. Não existem lojas do povo tukano, pois eles
entendem que isto romperia os círculos de redistribuição e reciprocidade
existentes entre as malocas.
3.5.4 Direito de família
As regras de direito de família entre os tukano transcendem à família
nuclear pai, mãe e filhos, para abranger toda a consangüinidade e as alianças
matrimoniais.
As obrigações familiares consistem em visitas dos parentes biológicos
da mesma linhagem às malocas, em que se devem levar presentes como
pescado, caças, farinha, frutas, mantendo, assim, os ciclos de reciprocidade e
de ajuda mútua. Não é obrigatório cumprir estas tarefas, mas são normas
consideradas importantes pela tradição cultural.
As relações conjugais têm por base a harmonia e deve refletir a
perfeição do macrocosmo. Os casais devem viver bem, entender-se, não se
agredir e, assim, concretizar a harmonia e o amor.
Não existe divórcio entre casais tukano com filhos, pois estes são
considerados sagrados e de grande importância, visto que representam a
esperança de reprodução da organização social tukano. O direito de separação
apenas ocorre caso haja infertilidade do casal.
Homens e mulheres possuem obrigações distintas com relação à
família. As funções do homem são: caçar, pescar, coletar frutas, prover a
lenha, fazer a cestaria, as canoas, os bancos, construir e fazer a manutenção
da maloca e, também, ensinar aos filhos as atividades tradicionais. As
funções da mulher são: semear, colher, cozinhar, recolher água limpa, cuidar
do marido e dos filhos, repartir a comida e ensinar as atividades tradicionais a
suas filhas.
3.5.5 Questão penal e processo
Na questão penal, existem algumas situações que podem ser
consideradas como tipificadas, mas não significam que sejam escritas, visto
que os tukano não têm esta prática. São figuras típicas porque há histórico
dessas violações na comunidade, assim como há outras condutas que não
existem para eles, e são comuns na sociedade envolvente, tais como
seqüestro, bigamia, estupro e outras.
Algumas condutas consideradas criminosas são: rebelião contra os
costumes (geralmente praticada por pessoas que se afastaram da vida
comunitária), ataque à autoridade “mamí” (com pena variada se o agressor
está sóbrio ou bêbado), falso testemunho (mentira), fuga ou abstenção de
cumprimento de obrigação, bruxaria, contaminação, acumulação, exploração
indevida de recursos naturais, homicídio, furto, lesão e outros.
A responsabilidade criminal é pessoal estando o molestador obrigado
a responder pelo dano; se o prejuízo for pequeno ou involuntário não há
responsabilização.
Aqui há uma diferença com relação à mencionada dualidade jurídica
tukano. Pelo sistema segmentário em que predomina a ética humana, os
homens mesmo resolvem as sanções, ou através de negociação e
compensação entre a própria vítima e o ofendido, ou mediante a intervenção
das autoridades (“mamí”).
Já pelo sistema mágico-religioso, a violação das proibições acarreta
procedimentos autônomos, geralmente ligados às enfermidades frente à
liberação descontrolada de poder do macrocosmo.
Não existe pena privativa de liberdade. O castigo corporal pode
ocorrer, sendo geralmente leve e pouco usual. As penas são preexistentes e,
embora, não determinadas quanto à quantidade e à freqüência, são decididas
pelas autoridades no momento do julgamento.
As sanções do sistema segmentário podem ser pessoais ou sociais,
algumas delas são:
a)
a expulsão e impossibilidade de convivência comunitária –
no caso de homicídio é aplicada a toda a família, também é
cabível ao ladrão reincidente, ao falsário e a quem causa
lesões pessoais graves. Esta pena é mais grave e é aplicada
pela autoridade “mamí”;
b)
a crítica – para aqueles que atacam a autoridade por
embriaguez, prostituição e bruxaria, aplicada por parte do
ofendido;
c)
advertência grave de autoridade – para ataque doloso à
autoridade, aplicada pelo ofendido;
d)
desprezo – reincidente em furto ou em mentiras;
e)
açoite – flagelação por homicídio culposo ou lesão pessoal;
f)
destruição – direito do ofendido de destruir objetos do
ofensor, tais como canoas, redes de pesca, remos, etc.
g)
rechaço – perda de identidade tukano, impedimento de
retorno ao território ancestral. É aplicada pelo conjunto da
comunidade ofendida, podendo ser ordenada pelo “mamí”.
A compensação é praticada por meio da restituição, em caso de furto,
com o mesmo bem; o próprio agredido solicita ao agressor que lhe compense
o dano causado. Quando a compensação é grande os irmãos do ofensor
ajudam a pagar, como uma obrigação de reciprocidade frente a ele, e não com
relação ao ofendido.
O “mau desejo” aplicado por parte do ofendido é sempre uma ameaça
para aquele que se abstenha de cumprir a pena ou não pague a compensação.
As penas ou sanções-conseqüências do sistema mágico-religioso
consistem em represálias mútuas que são as enfermidades, erosão, desolação,
provocadas pelo poder abstrato. Para os tukano não existe qualquer
personificação do poder religioso, ele está disperso e, portanto, não faz parte
da cultura venerar deuses, espíritos, fazer orações, adorações etc. Eles
acreditam na manutenção do equilíbrio e da força que provém do cosmos e é
recebido diretamente pelos seres da terra.
Há casos de inimputabilidade para os alienados mentais, loucos,
ébrios e as crianças.
De maneira geral, as condutas inadequadas dentro da sociedade
tukano sofrem uma certa punibilidade natural ou social, que nem sempre
resulta de uma decisão direta, ou seja, há uma forma socializada de repressão
para as condutas que desagradam as tradições comunitárias. As pessoas
procuram se conduzir de maneira adequada para evitar a crítica que atinge
seu estado pessoal e, dependendo do caso, familiar.
Os processos de investigações de algo considerado irregular começam
com uma combinação de testemunhos e indícios que se operam através de
perguntas, e o seu conjunto é averiguado por quem exerce o poder, no caso o
“mamí”, em se tratando de conflitos no âmbito da mesma maloca. Caso
estejam envolvidas diversas unidades residenciais, cada qual investiga o seu
lado, e depois, faz-se uma reunião conjunta dos “mamí” correspondentes para
se chegar a uma decisão final.
Não existem recursos no sistema procedimental, os tukano
consideram o conceito de “ahpoke”, isto é, resolvido. Uma vez que o assunto
foi levado à esfera investigatória e decidido conforme a tradição, são
considerados terminados, não cabe reclamação posterior, embora haja a
apreciação constante do “mamí” em relação às atitudes dos envolvidos.
Poderá haver uma reconsideração das contradições na prática, mas por outros
motivos, diferentes do que já fora resolvido 61.
3.6. Sociedade e autonomia kuna62
O povo kuna está localizado em quarenta pequenas ilhas no mar do
Caribe, a leste da embocadura atlântica do canal do Panamá, que vai até a
divisa com a Colômbia.
Dos povos indígenas do Panamá, os kuna são os que mais detêm
autonomia política, o que foi resultado da resistência e uma forte luta para a
proteção de sua integridade cultural e territorial.
Em 1953, eles tiveram alguns de seus direitos territoriais
reconhecidos, e desde então, já começaram a gozar de uma certa autonomia
governamental.
O Panamá, logo após à “descoberta”, transformou-se num local
estratégico para o trânsito de mercadorias e, a partir dessa época, o conflito
entre os kuna e os espanhóis foi quase incessante. As primeiras tentativas de
evangelização, devido às revoltas constantes, terminaram por volta de 1651.
Entre os séculos XVII e XVIII, os kuna se aliam a outros povos, tanto
para travar relações comerciais como para revoltar-se contra os domínios
espanhóis, e atacá-los.
Segundo o testemunho dos próprios kuna, essa brava resistência
contra a ocupação espanhola teve a amarga conseqüência: sua população foi
quase totalmente dizimada.
61
Aqui pode se fazer um paralelo muito claro com os efeitos do princípio da coisa julgada no
direito ocidental; bem como a possibilidade de reabertura do processo em caso de fatos
novos, como ocorre na ação rescisória.
62
ALEMANCIA, J. La autonomia Kuna. In: ALMEIDA, I.; RODAS, N.A. (coords). En
defensa del pluralismo y la igualdad, p. 125-148.
Enquanto fizeram parte do território denominado de “Gran
Colômbia”, que se tornou independente da Espanha em 1821, o povo kuna
gozou de uma certa soberania e reconhecimento de seu território.
Com a separação do Panamá da Colômbia, em 1903, e a adoção
subseqüente de uma política de construção de uma identidade nacional
baseada no castelhano e na herança espanhola, os kuna voltaram a sofrer
ingerências, por parte, agora, do novo Estado panamenho.
O governo quer regulamentar o comércio marítimo da região de San
Blas, e começam, mais uma vez, as obras de evangelização dos “selvagens”,
de forma que, em 1908 é adotada a lei de civilização dos índios.
Em 1925, os kuna se revoltam e desencadeiam a Revolução de Dule,
da qual resultou um tratado em que se confirmaram os direitos territoriais
autóctones, a revogação das concessões feitas pelo governo e a retirada de
policiais estatais, em troca da aceitação da soberania panamenha e da
implementação do sistema nacional de educação. Nem todas as comunidades
assinaram o tratado, mas ele teve a missão de um cessar fogo. Esta Revolução
foi um marco importante das relações entre o Estado panamenho e os kuna,
afirmando a determinação deles e a aceitação de alguma maneira, por parte
do Panamá, do status particular daquele povo.
Aos poucos, e com muita resistência, eles conquistaram a criação de
uma reserva, e, logo depois, de uma comarca da circunscrição de San Blas,
reconhecendo oficialmente algumas das suas instituições, e legalizando uma
autonomia governamental autóctone. Em troca disso, continuariam aceitando
a soberania panamenha sobre seu território.
Em 1945, formou-se o primeiro Congresso Geral do povo kuna em
que se reuniu a maioria das comunidades. Este congresso foi posteriormente
reconhecido como a instituição suprema dos kuna, legalizado pela lei 16 de
1953, e até hoje ele existe.
3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia
Apesar de os serviços governamentais estarem presentes na maioria
das comunidades, os Congressos Geral e Local correspondem à forma
tradicional de governo do povo kuna. Eles estabelecem as regras da vida
cotidiana.
Existe o instituto da Intendência que representa o poder executivo do
governo panamenho no território tradicional. É elaborada uma lista tríplice,
por parte do Congresso Geral, sendo a nomeação feita pelo Estado. O
intendente é um membro do povo kuna e atua como intermediador entre o
governo e as estruturas tradicionais.
Os kuna elegem três deputados para a Assembléia Legislativa do
Panamá, e, embora os candidatos estejam filiados aos partidos nacionais, esta
é uma forma de participação deles nas políticas nacionais e uma ponte entre o
sistema tradicional e o panamenho.
A dualidade de instituições, por um lado, estatal, por outro,
tradicional, provoca concorrência e conflito, mas às vezes se complementam.
Ao Congresso cabe velar pelo bem estar e o progresso da comarca,
zelar pela conservação das tradições, gerir os fundos, executar trabalhos e
obras necessárias etc.
3.6.1.1 Autoridades tradicionais e Congresso Local
As
autoridades
tradicionais,
conhecidas
como
“saylas”,
são
depositárias da tradição, pregadoras da religião e da doutrina kuna; os
dirigentes da comunidade. Os “saylas” devem dar preferência aos interesses
de todos, ao invés dos particulares, pensar em longo prazo e ter uma conduta
ilibada, tanto no aspecto público como no privado. Eles são eleitos de acordo
com sua integridade, sentido de bem comum e conhecimento das tradições.
Em geral os “saylas” são pessoas mais maduras com uma boa trajetória no
aprendizado dos rituais e da linguagem.
As discussões e decisões a respeito da vida comunitária são feitas em
sessões cotidianas do Congresso Local, localizadas na casa de assembléia que
é o centro da vida política e espiritual kuna.
Os dirigentes (dependendo da comunidade pode ser um, dois ou três
“saylas”) se reúnem todas as noites para os cantos rituais e para a gestão dos
assuntos locais. São sessões públicas e todos os moradores têm direito de
voz.
Ao Congresso Local cabe administrar o desenvolvimento econômico,
os trabalhos comunitários e fazer justiça. Suas decisões são tomadas após
examinar os diferentes aspectos da questão debatida, e após os habitantes
expressarem suas opiniões.
Aqueles que violam as regras kuna são punidos com trabalho
comunitário ou com multa, dependendo da gravidade do fato. Caso seja algo
considerado muito grave, o Congresso Local pode entregar o culpado à
justiça panamenha.
Os membros do povo kuna que partem da comunidade para viver em
grandes cidades, quando em número considerável, abrem um local ou uma
sessão urbana onde se reúnem. Essas sessões se reagrupam e enviam uma
delegação ao Congresso Geral kuna. Existe um sistema de imposto para os
membros urbanos, como uma forma de compensação por terem se afastado
dos trabalhos comunitários.
Todas as comunidades kuna têm muito contato entre si. As visitas são
constantes e as decisões que lhes afetam como povo são tomadas em comum.
3.6.1.2 Congresso Geral
Duas principais instituições agrupam todas as comunidades: o
Congresso Geral da Cultura e o Congresso Geral kuna. O primeiro consiste
em favorecer e resguardar a transmissão do patrimônio histórico e cultural, e,
o segundo, é a instância governamental. Ambos os congressos desenvolvem
suas atividades no idioma nativo.
O Congresso Geral se reúne a cada seis meses, é presidido por três
“sayladummagan” (os grandes “saylas”) que provêm de diferentes regiões do
território. As delegações de cada comunidade são formadas por cinco pessoas
designadas pelos congressos locais, mas apenas os “saylas” têm direito a
voto; os delegados apenas voz. Na maioria das vezes, no entanto, as decisões
são tomadas por consenso.
Outras entidades como os reagrupamentos urbanos, a associação de
trabalhadores do Canal, e alguns organismos não governamentais kuna
podem assistir e falar no Congresso Geral, mas não têm direito a voto.
Os deputados kuna eleitos para a Assembléia Legislativa do Panamá e
alguns funcionários do Estado devem estar presentes para responder
perguntas e dar informações.
Há um secretariado permanente do Congresso e comissões de
economia, assuntos internacionais, projetos, educação, cultura, saúde e
assuntos da mulher. Pode haver ainda a criação de comissões ad hoc,
segundo as necessidades que surgirem.
O Congresso Geral tem uma vasta competência que vai desde
decisões políticas até administrativas, econômicas e judiciais. Não há
separação de poderes em executivo, legislativo e judiciário. Funciona como
uma assembléia deliberativa que reúne todos os membros para, segundo as
diretrizes do “saylas”, decidir sobre a vida comunitária e os problemas que os
afetam.
A autonomia kuna corresponde a uma experiência de Estado
multicultural e, como não poderia deixar de ser, enfrenta dificuldades e
reveses típicos da complexidade desse conceito.
Para os kuna, autonomia significa coisas bem determinadas como não
pagar impostos ao governo panamenho, contribuir para a riqueza coletiva por
meio do trabalho comunitário, ser julgado pelas autoridades tradicionais,
transmitir seus bens segundo a tradição, exercer um certo poder de controle
no desenvolvimento de seus recursos, viver em seu território e resolver os
problemas em conjunto da maneira como bem entendem. Algumas
dificuldades, dentre outras, encontram-se na questão educacional, pois são
obrigados a aprender o espanhol e aquilo que os panamenhos entendem por
melhor; alem de não disporem de recursos financeiros adequados, o que
limita a capacidade de atuação e os obriga a recorrer a projetos de
cooperação.
3.7. Apontamentos sobre experiências multiculturais
Os povos indígenas tukano e kuna representam bem a idéia do
multiculturalismo e seus desafios na sociedade contemporânea. Ao lado
deles, existem centenas de povos tradicionais pelo mundo inteiro que
possuem um diferente conceito de vida, e que sofrem a cada dia com a
ameaça de verem-se tragados pelo poder dominante e deixarem de ser quem
realmente são.
Uma forma de evitar isto é reconhecer que a subordinação com a qual
eles foram até agora submetidos precisa findar, e a libertação dos povos será
alcançada na medida em que se consagre, como legítimas, suas instituições.
O preâmbulo da Convenção 169 da OIT não deixa dúvidas com
relação a este objetivo “reconhecendo as aspirações desses povos a assumir
o controle de suas próprias instituições e formas de vida e seu
desenvolvimento econômico, e manter e fortalecer suas identidades, línguas e
religiões, dentro do âmbito dos Estados onde moram”.
O art. 7.1 ainda menciona que:
Os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas próprias
prioridades, no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida
em que ele afete suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual, bem
como as terras que ocupam ou utilizam de alguma forma, e de controlar, na
medida do possível, o seu próprio desenvolvimento econômico, social e
cultural. Além disso, esses povos deverão participar da formulação,
aplicação e avaliação dos planos e programas de desenvolvimento nacional
e regional suscetíveis de afetá-los diretamente.
Cada povo, portanto, terá uma prioridade, e para que se preserve a
diversidade torna-se necessário que eles mesmos possam definir o que
melhor lhes cabe.
Os povos tukano vivem mais distantes do contato com o Estado e,
assim, sofrem menos ingerências por parte do ordenamento jurídico nacional.
Já os kuna estiveram, historicamente, mais próximos, até mesmo
geograficamente, em meio a rotas comerciais importantes, o que tornou sua
luta mais sangrenta e a sua cultura mais influenciada e vulnerável aos ditames
e categorias ocidentais.
Percebe-se que a variedade de povos permite a adoção de diferentes
formas de convivência com o país envolvente. Inegável torna-se a
impossibilidade de realização dessas culturas apartadas de suas tradições,
mas cada cultura irá exigir um tratamento diferenciado.
Nesse sentido Miguel Alberto Bartolomé assevera que63:
En una propuesta que busca referirse a situaciones concretas Kumkum
Sangari (1999), destaca la necessidade de no subsumir todos los contextos
dentro de la perspectiva liberal del multiculturalismo, ya que cada sistema
reflejará uma diferente distribución del poder. Por ello reclama la necessidad
de entender los distintos tipos de homogeneidad y heterogeneidad que se
registran em los sistemas multiétnicos, así como los diferentes tipos de
universalismos e particularismos que interactúan. Su visión se manifiesta
significativa para reconocer la diferencia existente entre un sistema plural
como el canadiense o el suizo y uno como el que se registra en la selva
amazónica o entre las comunidades aymaras y el Estado boliviano. No
puede ser equiparado, más que de manera formal o enunciativa, todo o
contexto plural o multicultural, ya que cada uno reflejará las características
específicas de sus protagonistas.
Sendo assim, haverá distintas considerações em relação às situações
culturais fáticas. No caso de povos como o tukano, simplesmente, o existir e
desenvolver-se segundo seus costumes pode ser um caminho adotado, no
sentido de as organizações estatais respeitarem e não interferirem
demasiadamente com serviços públicos, visto que praticamente eles vivem
paralelamente à ação do Estado, dispensando sua atuação64.
Já os povos mais contatados têm maior participação e influência
estatal na suas vidas, provocando a dualidade de instituições (governamental
63
64
BARTOLOMÉ, M.A. Procesos interculturales, p.118.
O sentido de dispensar a atuação estatal não significa uma obrigatoriedade em fazê-lo. Em
alguns casos a presença estatal pode e deve ocorrer.
e tradicional), como se observou no exemplo kuna. Nesses casos, há que se
buscar a negociação igualitária entre os povos tradicionais e a sociedade
nacional, construindo, passo a passo, a autonomia dos primeiros para que
subsistam enquanto povos diferentes, embora sob o mesmo manto estatal.
Os povos indígenas resistiram à colonização, à assimilação pelo
trabalho, ao sistema individualista focado na propriedade; lutaram, e, hoje, há
instrumentos jurídicos nacionais e internacionais que garantem sua
continuidade, enquanto indígenas, e rompem a lógica de integração até então
propagada.
A análise da situação dos povos tukano e kuna faz perceber que não
pode haver um projeto cultural que caminhe na negação da diversidade fática
e latente. Isto não significa a solução de todos os males enfrentados por esses
povos, mas é a garantia da sua sobrevivência coletiva, enquanto povo. As
aspirações de cada um deles será diferente, o que é intrínseco à própria noção
de multiculturalismo, e deve ser enfrentada como uma maneira de se ajustar
os anseios culturais, dentro de uma perspectiva radicalmente democrática,
como vimos.
Mahajan señala que el multiculturalismo sólo és posible dentro de una
democracia pluralista, en la cual los ciudadanos pueden mantener su
distintividad cultural relacionándose de manera igualitaria entre sí y con el
Estado de cual formam parte. Esta perspectiva, con la cual es dificil no
coincidir, no supone uma negación sino la necesidad de redefinición de las
lógicas constitutivas de los estados contemporáneos.65
A consolidação de um Estado unitário deve levar em conta os povos
que não dependem de sua estrutura organizacional para continuar existindo
(como os tukano por exemplo), e/ou aqueles que não concordam em absorver
a “nova colonização” ditada pelo Estado, sob o qual estão submetidos
geograficamente (caso dos kuna).
A criação dos Estados nacionais latino-americanos, seguindo o modelo
europeu, se deu com a redação de uma Constituição que estabelecia um rol
65
BARTOLOMÉ, M.A. Procesos Interculturales, p.118.
de direitos e garantias individuais. Isto significou o esquecimento de seus
índios e a omissão de qualquer direito que não fosse a possibilidade de
aquisição patrimonial individual. Portanto, aos índios sobrou como direito a
possibilidade de integração como indivíduo, como cidadão ou,
juridicamente falando, como sujeito individual de direitos. Se ganhava
direitos individuais, e perdia o direito de ser povo. Apesar disto, os povos
continuaram a ser povos. 66
Não se deve lutar contra essa realidade e a opção multicultural será
diversa caso a caso, mas o espaço de construção será fundamentado num
diálogo intercultural amplo, baseado no pressuposto de que “todas as
culturas têm um valor de dignidade humana, o que permite uma
hermenêutica multicultural e transvalorativa” 67.
Para tanto, é preciso haver possibilidades reais dentro do direito,
apontando para a aceitação e efetivação do pluralismo jurídico. Há
instrumentos coletivos voltados para a concretização deste paradigma, e a
realidade exige uma mudança do direito dentro da sua importante função de
pacificar e harmonizar a vida social em busca da felicidade de todos.
66
SOUZA FILHO, C. F. M. Multiculturalismo e direitos coletivos In: SANTOS, B. S. (org).
Reconhecer para libertar, p.78.
67
SANTILLI, J. Socioambientalismo e novos direitos, p. 34.
4
Pluralismo jurídico para a afirmação da
sociobiodiversidade
“É necessária a adoção e o cumprimento de políticas de pluralismo jurídico
por parte do Estado mediante as quais se reconheça plena vigência aos
sistemas de direito dos povos indígenas que coexistem diferenciados do
direito do Estado e se aplicam em âmbitos determinados dentro do mesmo
território.” 68
Em tempo algum, o mundo passou por transformações tão rápidas e
tão profundas como as atuais. Há uma impetuosa avalancha de mudanças,
uma corrente tão poderosa que desagrega instituições, sacode e altera nossos
valores.
A sociologia moderna atribui ao sistema jurídico a função de
integração social que pode ser cumprida através de dois dispositivos: a
orientação do comportamento dos sujeitos e a resolução de conflitos
presentes entre pessoas e grupos69.
Para a compreensão do que vem a ser as instituições multiculturais
atreladas a um manejo sustentável, protecionista da biodiversidade,
profusamente praticado pelas comunidades tradicionais ao longo dos tempos,
e buscar uma maneira de realizá-lo de forma eficaz, não há como deixar de se
repensar o sistema jurídico à luz de uma concepção pluralista.
Estes novos conceitos representam a oportunidade para o direito
clássico moderno abrir-se a novas possibilidades, submetendo-se à
autocrítica, tão necessária em tempos de mudanças.
4.1 Um direito estatal e monista
Conhecido como monismo jurídico, a consolidação do Estado
moderno trouxe a presunção de que lhe caberia, exclusivamente, a produção
68
69
Declaração de Jaltepec de Cadayoc, 1995, México.
ARDILA AMAYA, E. Pluralismo jurídico: apuntes para el debate, p 49.
de normas sociais, deixando de lado as demais formas de regulação social.
Porém, considerando a estrutura multifacetada inerente à sociedade e a
necessidade de inibição do monopólio estatal e de seu poder de império, essa
postura passou a ser encarada como um problema efetivo frente à realidade,
resumindo sua atuação ao plano meramente formal. O Estado, ainda que o
quisesse, não seria o único a criar normas para orientar as pessoas e resolver
os litígios.
O mito do monismo jurídico nada mais representou do que uma
construção ideológica, visando impor uma pretensa e ilusória unicidade
normativa que, ao longo desses últimos quatro séculos da história ocidental,
tenta sufocar a pluralidade existente no plano fático.70
Em se tratando do ordenamento positivo vigente, pode-se afirmar que,
de uma maneira geral, há uma tendência em não considerar como parte do
direito instituído a organização social e política de culturas diferenciadas.
Isso porque, na típica concepção kelseniana, e segundo a doutrina positivista
dominante, para constituir-se como direito, é preciso haver normas jurídicas
das quais ele provenha, proclamadas por um Estado soberano.
Sendo assim, o direito moderno estatal corresponderia ao melhor e
mais especializado sistema jurídico: a “hipótese mais representativa para o
conhecimento do Direito” 71.
Kelsen defendia que o direito precisava estar centralizado nas mãos
do Estado, e apenas o positivismo poderia ser o caminho para uma concepção
jurídica científica e pura
72
. Assim, todos os indivíduos, mesmo que
pertencentes a diversas religiões, línguas, raças e concepções de mundo,
poderiam fazer parte de um direito único: “Todos eles formam uma
comunidade jurídica na medida em que estão submetidos a uma mesma
ordem jurídica, isto é, na medida em que a sua conduta recíproca é regulada
através de uma e a mesma ordem jurídica” 73.
70
ARDILA AMAYA, E. Pluralismo jurídico: apuntes para el debate, p. 53.
KELSEN, H. Teoria Pura do Direito, p. 60.
72
Ibid., p.70.
73
Ibid., p. 97.
71
O objetivo de tornar puro o direito, sem a influência da ideologia
política, das ciências naturais, da moral, do costume, teve inegáveis razões
históricas. Elas se relacionam com o controle do poder político e com a
consolidação da legitimidade estatal que não fosse atrelada à vontade do
governante. No entanto, a sua vinculação estrita à norma jurídica e ao Estado
de maneira exacerbada, provocou, de tal forma, um afastamento do direito
em relação à sociedade envolvente, que inúmeros foram os aspectos que por
ele não puderam mais ser controlados. Isso foi mais visível nos países onde a
edificação da estrutura jurídica e estatal ocorreu muito distante da realidade
fática, a exemplo das ex-colônias submetidas à aplicação de uma réplica do
sistema das respectivas metrópoles.
Não resta dúvida, que o pensamento positivo centralizador, jamais
permitiria que outras esferas de direito, que não aquela única proposta pelo
Estado moderno e ocidental, se fizessem presentes. Na verdade, a concepção
que se guarda do direito, herdada do pensamento capitalista e positivista, é a
noção de uma uniformização cultural, simbolizando a força da instituição de
um Estado único e forte, garantidor dos direitos meramente privados,
centrados na propriedade. Embora o direito tenha sido fortemente estatizado,
essa construção foi desenvolvida muito lentamente e com dificuldades,
partindo de uma época em que a burguesia assumia o controle da sociedade.
A expansão do capital industrial e a filosofia individualista justificavam a
necessidade de controle por parte do Estado, para a garantia de uma suposta
liberdade que significava, tão somente, poder ou não poder tornar-se
proprietário.
Politicamente, portanto, era interessante desconsiderar a existência do
multiculturalismo, pois ele poderia ser interpretado, e isto ainda hoje se
discute, como um enfraquecimento do Estado central. Isso, porém não quer
dizer que não tenha havido opções de pluralismo jurídico na história da
humanidade como veremos a seguir.
4.1.1 O Império Romano e a Idade Média
Os romanos, ao contrário do que possa parecer, não impuseram
totalmente o seu direito aos povos conquistados, permitindo a manutenção de
jurisdições locais. O conhecido jus gentium incorporava práticas normativas
das sociedades conquistadas, e buscava conciliar situações de conflitos,
enquanto necessidade de resolver a pluralidade sócio-jurídica existente.
Além disso, os romanos utilizavam outras fontes de direito, e não,
somente, a estatal ou pública oriunda do governo. O direito consuetudinário
dos juristas e a expressão do costume e das práticas populares eram, também,
reconhecidos como direito. Até o final da era imperial os romanos não deram
importância à monopolização do direito pelo Estado 74.
Pelo curso da história, depreende-se que as intenções romanas não
priorizavam a pluralidade cultural, a preocupação se resumia à ampliação de
domínios territoriais e a conquista de outros povos, mas é interessante notar
que existiram possibilidades alternativas ao monopólio do direito, e o
problema de conciliar as diferenças já se observava há séculos. Isso porque,
como vimos, é inerente à vida humana desenvolver-se de muitas formas,
sendo assim, o pluralismo acompanha a vida em sociedade.
A Idade Média foi caracterizada pela descentralização territorial, e,
conseqüentemente, por um poder pulverizado, o que abriu espaço para a
concorrência de instituições normativas.
Havia regulação social por parte dos costumes locais, dos agentes
municipais, dos estatutos das corporações de ofícios, além das diretrizes da
realeza, do direito espiritual (direito canônico) e do próprio direito romano. O
direito era extraído de atividades desenvolvidas no seio das corporações, dos
grupos e das comunidades. O Estado era apenas mais uma dessas instituições,
e não a central.
Nos séculos XVII e XVIII, buscando a centralização do poder, “o
absolutismo monárquico e a burguesia vitoriosa emergente desencadearam o
74
WOLKMER, A. C. Pluralismo Jurídico: Fundamento de uma nova cultura no Direito, p.
169.
processo de uniformização burocrática, que eliminará a estrutura medieval
das organizações corporativas, bem como reduzirá o pluralismo legal e
judiciário” 75.
Foi a partir da Revolução Francesa e das reformas de Napoleão que o
ideal mítico do monismo jurídico se fez presente, através da promulgação de
um código único para reger a vida de toda a sociedade.
O liberalismo ganha força e o Estado burguês se consolida. Com o
passar do tempo, surge a nova relação de poder, baseada no capital e no
monopólio do direito pelo Estado. Assim, tal sistema, sendo considerado o
mais adequado, passou a ser aplicado e copiado em todo o mundo.
4.2 A crise do monismo jurídico
O falso ideário de que todos seriam felizes sob as vestes de apenas um
direito foi sendo desfeito, a partir das constatações de que não é possível a
manutenção de um modelo único diante do pluralismo real.
Na perspectiva de Sousa Santos76 houve um aumento da
conflituosidade social provocado pelo desenvolvimento capitalista em suas
três fases, a saber: o período clássico do século XIX; o período organizado do
Estado-Providência; e agora, num terceiro momento, que é o do capitalismo
desorganizado.
Na medida em que aumentam as desigualdades sociais e crescem as
demandas por direitos e justiça, há uma pulverização dos conflitos, que
brotam aqui e ali; o Estado agiganta-se, mas não consegue uma cobertura
completa ou mesmo controlar tal situação. A crença do monismo é desfeita, e
percebe-se uma crise de regulação estatal.
El paradigma del Estado del derecho se quiebra. Pierde eficacia el derecho
estatal como mecanismo de asignación que reduce al mínimo los costos
privados de transacción. Se tambalea la seguridad jurídica que sustenta el
principio de legalidad monista. Se habla de crisis del derecho por la
ineficacia de la norma legal como orientadora de las relaciones sociales, se
75
76
Ibid., p. 170.
SANTOS, B. S. Pela mão de Alice, p.85-87.
habla de crisis de la administración de justicia por la incapacidad del aparato
jurisdiccional de atender la conflictividad. En realidad lo que ocurre es que
el mito monista ya no es suficiente para entenderse con la nueva realidad. 77
Há uma instabilidade na administração da justiça, gerada pela
incapacidade do aparelho judicial diante da quantidade e da qualidade dos
novos conflitos. O Poder Judiciário vai sendo reformado e reformulado...
O Estado, pouco a pouco, abandona a presunção de submeter ou
impor suas decisões e passa a propor a participação da comunidade. Ele se
retrai, reconhece formas de justiça não estatais, e, embora as estabeleça como
meras competências, sem abrir mão da total pretensão monista, esta, a cada
dia, vai sucumbindo, e a realidade pluralista ganhando espaço.
4.3 Pluralismo jurídico
O pluralismo jurídico, hoje, é reconhecido pelo conjunto de dinâmicas
jurídicas distintas daquelas provenientes do direito estatal, que com elas
competem na função de regular a sociedade. O núcleo da discussão converge
para a descaracterização do Estado como a única fonte do direito, entendendo
que diversas racionalidades sociais podem provocar o fenômeno jurídico. A
sociedade contemporânea, essencialmente complexa, é composta por diversas
instituições e organizações de que o Estado faz parte, mas, ainda que se
queira entender ser ele o mais importante, isso não ocorre.
Certamente, o momento de globalização da economia em que se vive,
permite ainda mais tal discussão, pois ela se apresenta como um fator que
relativiza, sobremaneira, a concepção de Estado como o ente mais importante
ou central na constelação social como um todo.
Diversas empresas e organismos internacionais, supra-estatais ou não
governamentais, podem, hoje, determinar, controlar e produzir muito mais
regulação de comportamentos sociais, e até políticos, do que o próprio Estado
nacional e seu pretenso direito único.
77
ARDILA AMAYA, E. Pluralismo jurídico: apuntes para el debate, p. 53.
Sendo assim, a absorção do pluralismo jurídico nesse momento pode
configurar-se como extremamente estratégica e oportuna, visto que a
globalização exige uma abertura do Estado, e o enfraquecimento de “velhos
conceitos e dogmas, que sempre serviram de argumento ideológico para não
reconhecer diversidades culturais internas.” 78
A fase atual do capitalismo caracteriza-se por uma nova relação localmundial em que surge uma outra dinâmica das relações políticas, econômicas
e socioculturais, voltadas para uma maior participação e interação da
sociedade civil e do cidadão, realidade esta que não é mais centrada no
Estado, como sendo o agente propulsor ou o responsável pela condução da
sociedade ao bem comum. Então, ele se vê na necessidade de se adaptar a
nova ordem de coisas no cenário internacional, e isso contribui para a
construção de um perfil menos presunçoso acerca do direito.
Hoje, é possível reconhecer e aceitar um conjunto de dinâmicas
paralelas às do direito estatal que competem na regulação social, e constituem
uma estrutura de pluralismo jurídico.
Para apreender o direito, a partir da noção do pluralismo, no entanto, é
necessário considerá-lo mais sob a ótica de eficácia social.
4.3.1 Um direito social
Segundo Aguirre79, faz-se necessário escapar do papel atribuído ao
sistema jurídico, fundamentado no aspecto meramente formal, e reorientar
sua análise em função de critérios políticos e sociais que, na verdade, dão
coerência a qualquer sistema normativo.
Se o “direito” é sancionado por autoridades não presumidas ou
usurpadas, cuja comunidade lhes outorga poder para tal, possui eficácia
social, comprovada pela aceitação das normas pelo povo que, ao vivenciá-las
no cotidiano, através de um comportamento de acordo, as modifica e/ou as
78
SOUZA FILHO, C.F.M. Autodeterminação dos povos e jusdiversidade. In: ALMEIDA,I.;
RODAS, N. A (coord.). En defensa del pluralismo y la igualdad, p. 243.
79
BALLÓN AGUIRRE, F. Sistema Jurídico Aguaruna y positivismo. In: ITURRALDE, D.;
STAVENHAGEN, R. Entre la Ley y la costumbre, p. 137.
mantém vigentes, não têm porque não ser considerado direito. Assim sendo,
funciona como uma instituição que identifica, aplica e faz respeitar normas
de conduta80.
Dentro das comunidades indígenas, por exemplo, há um dinamismo
em relação a novas formas de coordenação e lideranças, e uma competência
em torno da faculdade de emitir e garantir as normas para os membros da
comunidade, como se percebeu na análise do sistema jurídico tukano e kuna.
Para Santi Romano81, a instituição que surge como um ente social
adequadamente estruturado e baseado em relações estáveis e permanentes,
reflete um verdadeiro ordenamento jurídico. Antes de qualquer norma ser
norma, há uma organização social que lhe fundamenta e dá sentido, sendo ela
apenas um produto. O Estado representa, somente, uma entre todas as demais
instituições humanas existentes.
Talvez, seja por isso que o Estado contemporâneo em diversos países,
como os latino-americanos, não consegue dar conta da conflituosidade e
alcançar a almejada paz social, porque se sustenta na idéia ilusória de uma
instituição central. Mesmo entre aqueles que são relativamente homogêneos
no aspecto cultural, são poucos os conflitos que têm trâmite judicial estatal.
Outros cenários sociais, tais como a família, a vizinhança e a empresa
acabam por absorver muitas demandas, à luz de normas substantivas e
procedimentais, informadas segundo ordens de regulação alheias ao Estado82.
O direito social provém da organização das coletividades e da
participação e integração efetiva dos grupos que compõem a sociedade.
Materializa-se a partir de dentro da realidade fática, sendo o pluralismo
jurídico uma conseqüência metodológica de análise, configurando-se como
uma espécie de “empirismo radical”83.
A partir do momento em que um conceito de direito é levado em
consideração, com íntima dependência de um sentido social, em que se
80
HOEKEMA, A. J. Hacia un pluralismo jurídico formal de tipo igualitário, p. 70.
ROMANO, S. L´ordinamento giuridico. Firenze: Sansoni, 1957. Apud WOLKMER, A. C.
Pluralismo Jurídico: Fundamento de uma nova cultura no Direito, p. 172-173.
82
ARDILA AMAYA, E. Pluralismo jurídico: apuntes para el debate, p. 50.
83
WOLKMER, A. C. Pluralismo Jurídico: Fundamento de uma nova cultura no Direito, p.
179.
81
consagram os aspectos relevantes de efetividade sócio-política, torna-se
visível a adoção do pluralismo jurídico como possibilidade de sustento e
concretização do multiculturalismo.
Diversas são as dinâmicas de relações sociais que se autoregulam,
prescindindo das tradicionais instituições hegemônicas, como as listadas
abaixo84:
a) Dos povos tradicionais, indígenas e locais que vivem em suas
próprias organizações, sem a necessidade de regulação social
estatal ;
b) Das comunidades excluídas ou marginalizadas, a exemplo das
favelas, fruto da exclusão política e cultural provocada pelo
desenvolvimento capitalista desequilibrado;
c) Das associações populares que emergem como resultado da ação
de novos movimentos sociais localizados e alternativos (opção
sexual, de gênero, raça, ideologia, etc), que, por iniciativa própria,
vivem apartadas do modelo predominante de cultura;
d) De situações que se apresentam em crises institucionais ou de
violência permanente, visivelmente contrários a ordem jurídica
oficial e que estabelecem um novo eixo de poder (como ocorre em
relação às Farc – Forças Revolucionárias da Colômbia)
e) De âmbito do comércio internacional, no caso da chamada lex
mercatoria, que se apresenta como uma estrutura jurídica da
prática contratual em nível mundial de empresas e organizações,
baseada no estabelecimento de cláusulas e regras que transcendem
as fronteiras nacionais.
Sobre cada um destes tópicos, naturalmente, seria possível discorrer a
respeito, no entanto, devido ao enfoque socioambiental do presente trabalho
84
Ibid., p. 53.
vamos nos ater, por ora, às relações travadas entre os povos indígenas que
podem, sem muito esforço, ser estendidas a outras populações tradicionais85.
4.3.2. Pluralismo jurídico e povos indígenas
As relações entre o sistema jurídico dos povos indígenas com o direito
“oficial”, reinante nos países onde estão inseridos, talvez, representem o
primeiro caso onde o conceito de pluralismo jurídico pode ser constatado.
Não há como negar o fato de que tais povos não compartilham sequer
das noções de território, soberania, e, menos ainda, dos interesses nacionais
(sejam eles sociais, individuais, políticos, econômicos ou espirituais)
relativos ao país de origem.
Tal situação pode ser explicada remontando-se ao período colonial.
As metrópoles, ao dominarem os povos, instauravam nas suas
colônias o seu próprio direito. Tinham por objetivo criar, nas terras de alémmar, uma sociedade à sua imagem e semelhança, muito embora, como não
podia deixar de ser, sua abrangência ficasse mais restrita aos centros
regionais,
gradualmente
formados
com
predominância
dos
súditos
imigrantes. As comunidades nativas e/ou locais, em sua maioria pacíficas,
quando escapavam da dizimação, permaneciam praticando seus costumes e
mantinham suas próprias formas de regulação.
Um caso bastante conhecido é o da Índia86, onde conviviam o direito
inglês e as estruturas jurídicas dos povos nativos. Com a independência das
colônias, a situação, a rigor, não sofre mudança para tais comunidades, visto
que o direito nacional ocupa o lugar do direito colonial.
85
Tais como, seringueiros, quilombolas, caiçaras, ribeirinhos e outros. A legislação brasileira
perdeu a chance de definir o que seriam populações tradicionais na lei nº 9.985/2000, que
instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza. O artigo foi vetado
por ter sido o conceito considerado muito abrangente, mas ele dizia o seguinte:
“População tradicional: grupos humanos culturalmente diferenciados, vivendo há, no
mínimo, três gerações em um determinado ecossistema, historicamente reproduzindo seu
modo de vida, em estreita dependência do meio natural para sua subsistência e utilizando
os recursos naturais de forma sustentável." Sobre o assunto ver: VULCANIS, A. Presença
humana em unidades de conservação. In: Borges da Silva, L.; OLIVEIRA, P.C.
Socioambientalismo: uma realidade – Homenagem a Carlos Frederico Marés de Souza
Filho, p. 47-62.
86
ARDILA AMAYA, E. Pluralismo jurídico: apuntes para el debate , p. 54.
Tal estado de coisas, também pôde ser observado nos países latinoamericanos de colonização portuguesa e espanhola, onde, ainda hoje, povos
tradicionais coexistem paralelamente ao Estado formado. Esse é um dos
motivos que muitos dos estudos de antropologia jurídica foram e são aqui
realizados (a exemplo de Abel, 1982; Galanter, 1981; Moore, 1978; Pospsil,
1971 e outros87).
Nunca é demais relembrar que as dimensões existenciais de quem
vive nos centros urbanos são, completamente, diversas de quem vive nas
comunidades locais.
Nestas últimas, o modo de produção é baseado no suprimento e na
satisfação das necessidades de todos - uma postura essencialmente coletiva.
A finalidade da cultura e o prestígio social estão relacionados a esta
satisfação geral e ao equilíbrio com o universo; prescindem da acumulação de
riquezas ou das aspirações individuais e egoístas - fato este corroborado pelo
estudo do povo tukano.
A utilização dos recursos naturais se dá de uma forma consciente e
sustentável, com um baixo grau de impacto ambiental, e ainda, é orientada no
sentido de evitar uma possível escassez. Por esse motivo, a presença de
recursos ambientais em seus territórios é muito grande, promovendo, como
vimos, a preservação da biodiversidade.
Já o modelo capitalista é calcado na acumulação de bens e no
individualismo competitivo. Parte-se da noção de que os seres humanos têm
o direito de manipular a natureza em maior ou menor grau, como desejarem.
A natureza é meio, a humanidade, fim88.
Os povos indígenas, como de resto, outras comunidades locais,
orientam-se por princípios espirituais, morais e éticos diversos, através de
uma visão holística de mundo, sem o cientificismo, a racionalidade ou o
particularismo ocidental.
87
GARCIA VILLEGAS, M. Notas preliminares para la caracterización del derecho en
América Latina, p.36. GUEVARA-GIL, A.; THOME, J. Notes on Legal Pluralism, p. 7589.
88
GALTUNG, J. Direitos humanos – uma nova perspectiva, p. 25.
Como não poderia deixar de ser, tudo isso levou, por óbvio, a uma
construção jurídica completamente diversa, e que não depende da atuação do
Estado para se concretizar.
Os povos indígenas, embora desenvolvam relações independentes da
esfera jurídica nacional, mantêm contatos com o Estado e demais instituições,
através de diversos setores: educação, saúde pública, segurança, saneamento
e outros, haja vista o exemplo kuna, em maior grau, e o tukano em menor.
Mas isso, não significa que seus estatutos jurídicos sejam desconsiderados,
ou que os índios estejam integrados ou a caminho de serem absorvidos pela
sociedade envolvente.
A preservação dos institutos jurídicos indígenas faz estabelecer
condições de igualdade, em termos de reconhecimento como povos que são e,
a partir daí, sua relação com o Estado pode ser travada mediante diálogo89, e
não imposição.
As diferenças culturais são extremamente marcantes de povo para
povo. O termo genérico índio pode conduzir erroneamente à suposição de
que todos são similares90. Na verdade, isso não ocorre. Por mais que haja
semelhanças entre eles, cada povo indígena tem sua cultura e estrutura
jurídica e social diversa de outro, e que precisa ser respeitada e aceita na sua
diferença.
Norberto Bobbio, ao tratar das relações entre os ordenamentos
jurídicos, de uma maneira geral, menciona as tensões que podem existir entre
o Estado e outros ordenamentos, que ele denomina de menores. A partir
dessa interação, o autor estabelece algumas soluções possíveis.
Especialmente, em relação aos grupos étnicos com costumes,
civilização e histórias muito diferentes das do resto da comunidade nacional,
em que podemos inserir os povos indígenas, Bobbio determina duas posturas
que podem ser adotadas pelo Estado91:
89
Sobre a posição de diálogo intercultural e seu fomento ver a Declaração universal da
UNESCO sobre a Diversidade Cultural.
90
SOUZA FILHO, C. F. M. O renascer dos povos indígenas para o Direito, p. 38.
91
BOBBIO, N. Teoria do ordenamento jurídico, p. 172.
a primeira requer, frente ao ordenamento menor, o procedimento que
chamamos de recusa, isto é, o do desconhecimento das regras próprias do
grupo étnico e da substituição violenta pelas normas já em vigor no
ordenamento estatal; a segunda poderá ser realizada através do processo de
reenvio, isto é, atribuindo-se às normas, provavelmente a um grupo de
normas, formadas integralmente no ordenamento menor, a mesma validade
das normas próprias do ordenamento estatal, como se aquelas fossem
idênticas a estas.
No entanto, a posição do Estado, em geral, continua Bobbio, é a da
indiferença. Em outras palavras, tais ordenamentos têm suas regras, mas o
Estado não as reconhece, ou não lhes dá nenhuma proteção para coexistirem,
e, por vezes, ocorrem conflitos entre ambos ordenamentos.
O Estado brasileiro em sua história, ao lado de outros latinoamericanos, tratou os povos indígenas com omissão e indiferença, em relação
a suas leis e direitos, tornando-os juridicamente invisíveis, na parca noção de
que eram inferiores, e seu direito não era direito, e sim costume.
Até a década de 50 e 60, aproximadamente, as políticas de
desenvolvimento de vários países se encaixavam num conceito de
modernidade, comprometido com a abolição e repressão total a outros
sistemas de direito e a autoridades diferentes das estatais92. O Estado era
concebido como liberal, unitário e monocultural, baseado no princípio de
direitos iguais para indivíduos iguais. E, nessa perspectiva, somente eram
aplaudidas e fomentadas as práticas culturais num sentido meramente
folclórico, ou seja, sempre quando não interferiam em relevantes conceitos,
tais como, direito e Estado.
Essa concepção foi e vem sendo, gradativamente, desconstruída.
Vários fatores incidiram para a eliminação deste conceito integracionista. A
“modernidade” de agora (pós-modernidade), salvo em alguns países de
orientação obstinada e estritamente neoliberal, reconhece que não se pode
avançar sem a cooperação genuína dos elementos que compõem a sociedade
civil como um todo.
92
HOEKEMA, A. J. Hacia un pluralismo jurídico formal de tipo igualitário, p. 63.
Os povos indígenas e outros povos culturalmente diferenciados se
uniram e, como vimos, buscaram seu reconhecimento e conquistaram
importantes mudanças no cenário jurídico e político, tanto nacional quanto
internacional.
As vitórias merecem destaque, no entanto, é inegável que ainda há
muito para se avançar no estabelecimento de um sistema capaz de abarcar
novas formas de estruturação jurídica e social, para a afirmação efetiva do
direito à diferença cultural e à autodeterminação.
4.3.2.1 Direito consuetudinário
Pode-se dizer que o direito consuetudinário dos povos indígenas
corresponde a um conjunto de normas que regem a vida e as relações dos
povos, bem como suas autoridades constituídas, fazendo-se respeitar pelo
costume, buscando evitar que haja perturbação da ordem estabelecida e da
vida pacífica da comunidade, ou ainda, que prejuízos materiais sejam
causados. Não é escrito nem codificado, e difere do direito positivo vigente
no país em que se encontram.
Dentro desse espectro de coisas, reside um dinamismo constante, que
permite a inserção de novas formas de coordenação e liderança, ao passo que
estas comunidades evoluem no tempo e no espaço.
Há uma gestão comportamental de seus membros e uma divisão de
competência entre as autoridades tradicionais. Portanto, há uma perceptível
estrutura jurídico-social. Mais que um costume ou tradição, é preciso que o
Estado reconheça e aceite plenamente o direito indígena ou tradicional como
direito que é.
Essa é a posição mais aceita atualmente em algumas convenções
internacionais que tratam dos direitos dos povos indígenas, tal como a
Convenção 169 da OIT. Ainda assim, são políticas de mera compensação
pelas desvantagens sofridas por grupos indígenas, não representando a
aplicação de um pluralismo jurídico mais maduro, como veremos adiante.
Isso não significa que são sem importância, muito pelo contrário, têm
sua validade na medida em que representam algumas das conquistas no
caminho de luta pelos direitos indígenas. Entretanto, faz-se necessário e
urgente continuar na busca por uma autonomia mais ampla.
Não parece sensato que o direito estatal tenha a faculdade de
determinar, unilateralmente, a legitimidade e o âmbito dos demais sistemas
de direitos, como os indígenas. Ele aceita a validade das normas de outros
ordenamentos ou, como Bobbio mesmo escreveu, de “ordenamentos
menores”, gerados nas comunidades especiais que, como tais, representam
uma parte diferenciada, mas também constitutiva da sociedade como um
todo. Portanto, elas têm capacidade para instituir seu direito, e este deve ser
reconhecido como parte integrante da ordem jurídica nacional.
Vale ressaltar, que as demais comunidades tradicionais, como a dos
quilombolas devem também ter o seu direito reconhecido, tendo respaldo nos
avanços atingidos pelo direito indígena.
Dentro da prática jurídica monista, construída artificialmente até a
contemporaneidade, em que o direito é muito mais visto como instrumento de
dominação do que de libertação, é bem provável pensar-se que essa estrutura
poderá representar um retrocesso na evolução política de uma nação.
Soberania, governo e território, certamente se vêem ameaçados. Mas,
devemos considerar que está, no mínimo, encerrando (se já não está
encerrado), o projeto de construção de uma sociedade homogênea e
monocultural, tendo em vista as exigências sociais contemporâneas e o
reconhecimento do multiculturalismo nas constituições e convenções
internacionais.
Os povos indígenas e outras comunidades tradicionais não têm por
objetivo separar-se geograficamente. Eles não almejam a criação de um outro
país, mas querem viver na diferença que lhes é própria.
Uma nação, em especial, latino-americana, não se formará
solidamente, buscando o monopólio cultural, e sim, dando lugar à inquietante
pluralidade, trazendo-a do plano fático para realizá-la, sobretudo, no campo
jurídico.
4.4 Pluralismo jurídico formal unitário versus igualitário
Uma das premissas do pluralismo é a coexistência de diversos
sistemas jurídicos num mesmo espaço-tempo.
Uma vez delimitada a existência do direito social indígena
consuetudinário, e a sua omissão por muitos séculos, cabe refletir sobre como
será hoje a sua interação com o ordenamento jurídico positivo nacional.
André Hoekema93 menciona que existem dois tipos de pluralismo
jurídico: o social e o formal, sendo este último dividido em unitário e
igualitário. Pelo pluralismo jurídico social entende-se a já mencionada
descentralização do poder jurídico estatal (item 4.3.1), considerando a
multiplicidade de variáveis sociais, sendo uma delas, as oriundas da
diversidade cultural.
Sendo assim, a partir da existência do pluralismo no seu sentido
social, emerge a concepção de um pluralismo, também, no aspecto formal,
ligando-se ao relacionamento que será travado entre os diversos sistemas de
direitos, mais especificamente, a relação com o sistema considerado oficial.
Os Estados, de maneira geral, têm adotado a postura de determinar,
unilateralmente, a legitimidade e o âmbito dos demais sistemas jurídicos. Isso
significa uma posição bastante clara, qual seja a de não equiparar o direito
consuetudinário com o direito “oficial”. O primeiro teria uma função
meramente complementar, sob condições previamente definidas pelo Estado,
e desde que não contrarie as suas normas, que são consideradas as mais
importantes.
Tudo isso, corresponde à manifestação de um pluralismo jurídico
unitário que preserva a autoridade estatal, caracterizando-se apenas como
uma débil relação plural. Na verdade, mantém a concepção de primazia
cultural. Por isso, o uso da expressão pluralismo unitário.
Essa é a posição adotada pela Convenção 169 da OIT, quando,
expressamente, no seu artigo 8.º, menciona:
93
HOEKEMA, A. J. Hacia un pluralismo jurídico formal de tipo igualitário, p.70 passim.
1. Ao aplicar a legislação nacional aos povos interessados deverão ser
levados na devida consideração seus costumes ou seu direito
consuetudinário.
2. Esses povos deverão ter o direito de conservar seus costumes e
instituições próprias, desde que eles não sejam incompatíveis com os
direitos fundamentais definidos pelo sistema jurídico nacional nem com
os direitos humanos internacionalmente reconhecidos. Sempre que for
necessário, deverão ser estabelecidos procedimentos para se solucionar
os conflitos que possam surgir na aplicação deste princípio. (grifo
nosso)
Para Hoekema, as políticas de reconhecimento do direito indígena,
dificilmente, vão além dessa concepção unitária e imatura, entendendo ser
isto uma forma de mera compensação histórica pelo sofrimento causado a um
grupo marginalizado ou minoritário94.
Dentro deste contexto, a construção de um pluralismo mais combativo
e eficaz deve se posicionar na vanguarda das ações, no sentido de consolidar
uma verdadeira simultaneidade igualitária entre todos os sistemas de direito.
O direito indígena não complementa, ele substitui o direito estatal nas esferas
sociais em que prevalece a sua aplicabilidade. Nessa visão, desponta a idéia
de pluralismo jurídico formal igualitário.
De qualquer forma, também, dentro desse conceito, há uma chancela
estatal unilateral, mas esta ocorre na direção de que o direito consuetudinário
seja reconhecido como parte integral da ordem jurídica nacional, em situação
de igualdade perante o direito estatal, atuando como o oficial nas esferas
sociais correspondentes.
O fato de se fixar limites territoriais para a aplicação do direito
indígena ou a quem ele se aplica, não significa a perda do caráter pluralista,
visto que representam regras a respeito da vigência e aplicabilidade de cada
direito, o que é necessário, quando se trata de buscar a articulação entre
multiplicidade de sistemas jurídicos. Podem ser consideradas simples regras
de procedimento, que objetivam apenas conduzir a qual sistema adotar. O
direito internacional privado representa, no direito ocidental, a forma de
como fazer essa indicação dos sistemas.
94
HOEKEMA, A. J. Hacia un pluralismo jurídico formal de tipo igualitário, p. 71.
O pluralismo jurídico formal de tipo igualitário consagra a existência
de regras e procedimentos legais num modelo federal, mas não significa que
reconhecer o direito indígena implique numa conseqüente forma federalizada
de Estado em relação aos povos, embora no plano fático haja realmente uma
aproximação desta concepção.
São regras formais que disciplinam a relação entre sistemas jurídicos
equivalentes. O “reenvio”, que Bobbio95 menciona para o tratamento das
relações entre ordenamentos jurídicos diversos, precisa ser estabelecido de
uma maneira a adequar as situações plurais, e o desenvolvimento dessas
regras se dá quanto à forma e não quanto ao conteúdo. Elas buscam,
justamente, conferir legitimidade e assegurar o valor legal e jurídico das
decisões produzidas no âmbito dos povos culturalmente diferenciados,
considerando-as iguais às emanadas pelo próprio Estado. Inegável a
constatação de necessária reformulação da postura estatal que esse processo
exige, passando do conceito de “mono” para “pluri”. São processos
compartilhados que pressupõem a contínua eliminação de preconceitos e
diferenças.
A utilização desta noção voltada para a aplicação das regras num
modelo federal pode ser observada em Nunavuut, região situada ao norte do
Canadá, onde foi instituída uma unidade pública diferenciada que, em
nenhum aspecto, difere-se das demais províncias canadenses, a não ser pelo
fato de, naquele território, viverem o povo inuit, que representa a maioria da
população96. Na Região Autônoma da Costa Atlântica da Nicarágua e,
também, no caso de algumas comarcas do Panamá, tais como vimos no
exemplo do povo kuna, há uma regulamentação, visando incluir
procedimentos legais federais, dentro de uma perspectiva de pluralismo
jurídico que caminha para o formal de tipo igualitário.
Como se pode perceber, o reconhecimento gradativo dessa nova
estrutura jurídica conduz a uma reavaliação do próprio sistema político e para
a distribuição dos poderes dentro de cada país.
95
96
BOBBIO, N. Teoria do ordenamento jurídico, p. 172.
HOEKEMA, A. Hacia um pluralismo jurídico formal del tipo igualitário, p. 72.
Impossível, portanto, falar numa adoção efetiva do pluralismo sem
passar pela reflexão acerca de autonomia.
4.4.1 Autonomia indígena
O conceito de autonomia provém do princípio de autodeterminação
dos povos e, a partir dele, também se constrói e consolida o direito ao
multiculturalismo.
Isso porque, analisando mais detidamente o assunto, conclui-se que
ilusório seria conceber um sistema juridicamente pluralista, num âmbito de
total controle dos territórios indígenas e tradicionais por parte do Estado.
A autonomia pode ocorrer em diversos setores, econômico, social,
cultural, político, dentre outros. Por autonomia política entende-se a
capacidade, formalmente garantida, nas mãos de uma comunidade para se
autogovernarem, mediante organização própria, orientada por suas normas e
critérios, com possibilidades efetivas de gestão e administração dos recursos
que lhe são cabíveis.
No que tange aos povos indígenas e demais comunidades
culturalmente diversas, não se busca a autonomia de uma forma a segregar-se
territorialmente dos Estados. Aqui haverá o mesmo impasse conceitual no
âmbito do direito internacional, por está ligada, esta autonomia, ao princípio
de autodeterminação dos povos e à conseqüente noção de soberania que lhe é
atribuída neste panorama.
Praticamente, a maioria dos povos indígenas não busca soberania, e
sim uma autonomia política interna97, dentro mesmo dos Estados dos quais
são partes. Isso significa que são necessárias regras de adaptação de um
sistema pluralista, na perspectiva realmente formal igualitária ora tratada.
A autonomia, no entanto, pode acontecer em diferentes graus, e
adaptar-se a condições especiais de cada povo, o que é inerente à própria
diversidade. Nem toda autonomia vai refletir um pluralismo igualitário, mas,
certamente, este funciona como norte ou ideal a ser buscado.
97
HOEKEMA, A. J. Hacia un pluralismo jurídico formal de tipo igualitário, p. 73.
Os povos indígenas vivem numa árdua batalha para a manutenção de
uma autonomia cultural, lutando para se preservarem, enquanto povos
diferentes.
Essa dificuldade de manutenção da cultura, muitas vezes, faz-se
presente por causa da não autonomia que possuem para gerir sua própria vida
no aspecto econômico, jurídico e social. É claro, que nem todos os povos
vivem a mesma realidade, e alguns conseguem manter mais possibilidades de
autonomia em relação a outros. A verdade é que essa questão torna-se mais
problemática, quando, por força de interesses diversos, estes povos se vêm
pressionados a tomarem uma determinada atitude ou posição, como acontece
em casos emblemáticos, e não raros, de exploração de recursos hídricos, de
jazidas minerais, petróleo e conhecimentos tradicionais associados à
biodiversidade.
A
autonomia
política,
assim,
reflete-se
como
requisito
da
determinação cultural, porque a última vê-se, fortemente, comprometida,
quando a primeira não é realizada. Muitas vezes, o processo de consulta aos
povos indígenas, quando da aprovação de algum projeto de exploração em
seus territórios, não significa que lhes seja dada a autonomia por eles
desejada. Participar de atividades como esta, relaciona-se mais com a
preocupação de dar uma satisfação a sociedade em geral com relação à
transparência das negociações.
Uma autonomia política ampla reflete-se numa variada possibilidade
de os povos determinarem sua vida e os assuntos que entendem importantes,
como a forma de escolha de seus dirigentes, a recuperação da sua cultura e
valores, a promoção do ensino do idioma, direção da economia, da saúde, do
controle dos recursos naturais etc.
Como se observou no caso kuna, o governo panamenho, no acordo
feito com aquele povo, não abriu mão da imposição do sistema educativo
nacional, visando justamente o controle da cultura, e a não configuração de
uma autonomia mais ampla; uma espécie de liberdade vigiada.
O Estado mantém as rédeas da situação, reservando-se a competência
de retomar os poderes conferidos, e, sendo ele o competente para dirimir o
conflito entre ambas jurisdições, ditar leis que sejam plenamente válidas,
inclusive, no território tradicional. Esse tipo de autonomia é verificada em
Nunavuut (Canadá) e nas Regiões Autônomas da Nicarágua. A lei estatal
determina o que é ou não reconhecido pelo direito consuetudinário.
Essa espécie de autonomia limitada, em alguns casos, representa
quase uma concessão do governo aos povos indígenas, mantendo-se a
superioridade estatal. Não raras vezes, até, essa autonomia é interpretada por
setores da elite, a exemplo de grandes latifundiários, como um real privilégio
“dado” às minorias, atrapalhando o desenvolvimento econômico do país.
Um pluralismo jurídico formal de tipo igualitário exige um nível de
autonomia mais profunda, no entanto, como as mudanças, em geral, não
ocorrem abruptamente, uma autonomia limitada corresponde já à condução
do processo de abertura do sistema, e representa possibilidades reais de
emancipação cultural.
Vale sempre lembrar que essa postura voltada para o pluralismo
jurídico efetivo relaciona-se diretamente com a preservação ambiental da
biodiversidade associada, pois a garantia da continuidade da estrutura jurídica
e social dos povos indígenas, proporciona a manutenção do seu padrão de
vida, que melhora e enriquece a diversidade biológica mundial.
Não se deve, portanto, adotar uma postura meramente utilitarista com
relação a esses povos, ou atribuir-lhes a mera função de “jardineiros” do
planeta.
(...) ao discurso da biodiversidade corresponde também uma diversidade
cultural, dada a existência de grupos humanos que adaptaram e
enriqueceram a natureza.(...) O reconhecimento da diversidade cultural
implica o reconhecimento de outros modos de vida alternativos, que, muito
embora tenham beneficiado a biodiversidade, não esgotam sua importância
nessa função, antes pelo contrário, transcendem tal dimensão utilitária.98
A riqueza cultural, talvez, seja um dos principais legados a deixar para
a humanidade, e se constitui num verdadeiro patrimônio reconhecido há
98
FLOREZ ALONSO, M. Proteção do conhecimento tradicional? In: SANTOS, B. S (org.).
Semear outras soluções – os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais. p.
293-294.
tempos pelo direito e garantido para as futuras gerações99. O suporte100 dessa
riqueza são as sociedades diferenciadas que precisam ser protegidas, pois a
cultura é em si algo abstrato e se materializa, nesse caso, em diferentes povos
e estruturas sociais.
4.5 Para a construção de um Estado pluriétnico e multicultural
Levando-se em consideração que na moderna concepção de Estado
um dos pilares de sustentação é o controle exclusivo do direito, torna-se
muito difícil negar que alterações profundas terão que ocorrer na estrutura
estatal, uma vez reconhecido e consagrado o regime de pluralismo jurídico
social, caminhando para o formal do tipo igualitário.
A mudança na relação jurídica estatal modifica a noção que se tem do
próprio conceito de Estado. Sendo ela baseada no monismo jurídico, tem-se
um Estado central, com soberania una e indivisível na clássica doutrina de
Jean Bodin. Adotado o pluralismo jurídico efetivo, tende-se a uma
relativização dos conceitos e a construção não de uma nação única, mas de
um Estado plurinacional, o que não implica em sua desintegração como será
visto adiante.
4.5.1 Multiculturalismo na Constituição Federal de 1988
Á luz do que se lê na Constituição Federal brasileira de 1988, é
possível afirmar que foram abertas possibilidades reais de mudanças, e que
ela caminha num sentido, em que se pode vislumbrar a adoção de um
multiculturalismo no plano jurídico, embora de maneira tímida e não de
forma direta como gostaríamos.
Os direitos culturais foram contemplados, garantindo-se a manutenção
das culturas que contribuíram na formação da identidade nacional.
99
Haja vista a criação da UNESCO em 1972, como entidade internacional dedicada à
preservação do patrimônio cultural da humanidade exigindo a responsabilidade dos Estado
quanto aos bens culturais.
100
SOUZA FILHO. C. F. M. Bens culturais e sua proteção jurídica, p. 48
Art. 215: O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais
e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e
a difusão das manifestações culturais.
§1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e
afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo
civilizatório nacional.(grifo nosso)
O art. 216 elenca os modos de criar, fazer e viver dos grupos
formadores da sociedade brasileira, como sendo parte do patrimônio cultural
nacional. Por este dispositivo, também, as comunidades diferenciadas têm
proteção acerca dos seus estilos de vida e garantia de poderem continuar
vivendo na diferença.
Na ligação do direito ao patrimônio cultural e dos direitos dos povos
indígenas, está a proteção das culturas vivas, locais e atuantes no cenário
brasileiro. Esta proteção gera um direito coletivo que se pode entender como
a proteção da pluriculturalidade da organização social brasileira, expressa no
artigo 215 §1º. Podemos chamar a isto um direito à sociodiversidade. 101
O art. 231, que trata dos índios, é mais contundente no sentido da
adoção do pluralismo, uma vez que menciona o reconhecimento da
organização social indígena, bem como dos seus costumes e tradições.
A garantia do espaço para a manutenção desta sociodiversidade é
imprescindível e, por isso, a Constituição menciona que os direitos territoriais
indígenas são originários, ou seja, anteriores a formação do próprio Estado
brasileiro.
Ao estabelecer o conceito de terras tradicionalmente ocupadas, no §1º
do art. 231, fixada está a relação da sociodiversidade com a biodiversidade,
considerando a necessidade dos recursos ambientais para os povos indígenas.
Paralelamente, foram, também, reconhecidos os direitos dos
quilombolas, comunidades tradicionais afro-brasileiras remanescentes dos
antigos quilombos da época escravagista, a exemplo de sua proteção cultural,
como grupo étnico formador do processo civilizatório nacional, tendo sido
101
SOUZA FILHO, C. F. M. O renascer dos povos indígenas para o direito, p. 183.
proporcionado o direito coletivo ao território, assim dispondo a Constituição:
“Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando
suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitirlhes os títulos respectivos.”
Percebe-se que, embora não sejam utilizados termos de mais peso
pluralista como autonomia, a Constituição Federal de 1988 conduz a um
processo de abertura em que se pode vislumbrar um horizonte mais amplo, e
dar passos largos em direção a ele. Não se fez menção ao direito
consuetudinário ou a sistema jurídico para designar a organização social
indígena, por exemplo, mas, numa visão integrada de contexto regional e
mundial é inegável a possibilidade de desenvolver-se hermenêutica nesse
vetor.
A partir de uma análise sistemática dos dispositivos constitucionais
mencionados, aliados aos princípios de dignidade humana102, igualdade103,
bem como aos objetivos fundamentais da República, quais sejam de se
construir uma sociedade justa, solidária104 e livre de discriminação105, é que
se afigura inegável o aspecto multicultural, pluralista e coletivo da
Constituição de 1988. Sua profunda preocupação com a preservação da
riqueza cultural brasileira é imanente.
As ferramentas para a construção gradativa do pluralismo jurídico
estão disponíveis, embora não com a certeza de uma política verdadeiramente
comprometida por parte do Estado brasileiro, pois este ainda se encontra
muito preso às amarras do monismo e do formalismo jurídico, mas que
inegavelmente tende ao estabelecimento de uma plurietnicidade mais efetiva.
Em nosso País vive-se uma intensa miscigenação, onde vários grupos
étnicos são formadores e integram a identidade nacional. Na verdade, melhor
seria o termo “diversidade nacional”, ao invés de identidade, para representar
o povo brasileiro, pois o que percebemos é a existência de uma identidade
diversa nacional.
102
Art. 1º, III.
Art. 5º, caput.
104
Art. 3º, I CF/88.
105
Art. 3º, IV CF/88.
103
Desde os povos originários, como são os indígenas, até aqueles que
foram brutalmente seqüestrados das terras africanas, para serem aqui
forçados ao trabalho, sem esquecer dos diversos grupos de imigrantes
europeus e asiáticos que aqui chegaram, toda essa miscelânea cultural teria
que ser considerada, quando da elaboração de uma constituição que almejava
representar legitimamente a vontade popular.
Por essa razão, a Constituição cidadã - como ficou conhecida, devido
ao seu caráter inovador e democrático - protegeu a diversidade cultural e
cedeu espaço para a afirmação do pluralismo jurídico e de um Estado
multicultural.
Nesse sentido, Souza Filho106 menciona que:
(...) a Constituição abre as portas para o reconhecimento da jurisdição
indígena, quer dizer ao reconhecimento das normas internas que regem as
sociedades indígenas e os processos pelos quais se decidem os conflitos por
ventura ocorrentes. Mais alguns passos e os povos indígenas poderão, em
seus idiomas tradicionais, exercer entre seus membros seu direito
tradicional.
No âmbito da legislação infraconstitucional acha-se em discussão, no
Congresso Nacional e na sociedade civil, a proposta para alteração no atual
Estatuto do Índio - Lei nº 6.001/73. A idéia é dar uma nova roupagem à
regulamentação atual, a qual se acha muito distante da realidade coletiva que
se apresenta no panorama mundial, dando-lhe o título de Estatuto das
Sociedades Indígenas. A opção pelo nome sociedades ao invés de povos
denota o não enfrentamento da questão pelo prisma contemporâneo. Embora
a concepção ideológica que se esconde por trás dessa atitude seja de
enfraquecimento da idéia de autodeterminação indígena, é consenso da
maioria que, na prática, não deverá haver comprometimento significativo a
esse respeito, considerando a inconteste consagração do termo povos, e o
amadurecimento em torno da temática voltada para a sua emancipação.
A Constituição Federal modificou, sobremaneira, a interpretação da
Lei 6.001/73 que refletia, ainda, uma política ultrapassada de integração dos
106
SOUZA FILHO, C. F. M. O renascer dos povos indígenas para o direito, p. 162.
índios à comunhão nacional. A partir de 1988 a legislação ficou em
descompasso com a realidade.
Como vimos, toda essa mudança no aspecto constitucional ocorreu
não apenas no Brasil, mas em toda a América Latina. A maioria delas
contemplou os direitos culturais e abriu caminhos para a formação jurídica do
multiculturalismo. Algumas foram mais contundentes e outras mais tímidas e,
de maneira geral, houve uma verdadeira revolução no continente, relativa à
mudança de posição acerca dos direitos dos povos originários.
Esse processo não parou com a celebração das constituições, até
porque nem sempre o que está escrito no documento político é realizado. Não
raras vezes, observa-se um grande descompasso com o que se garante nas
constituições e o reflexo na vida dos povos. Apesar do discurso pluralista,
social e democrático, muitos Estados optam por continuar adotando uma
política indigenista débil e muito aquém dos compromissos assumidos
constitucionalmente.
A Bolívia em particular viveu, nos últimos anos, mudanças profundas
no aspecto sóciopolítico e, principalmente, relacionadas com o tratamento de
sua maioria indígena. Ao lado da Colômbia e Paraguai, teve uma das
constituições mais ousadas no aspecto de reconhecimento da diversidade
cultural. Reconheceu aos povos indígenas sua própria jurisdição, embora os
mecanismos de adequação entre o sistema nacional e o indígena107, tenham
ficado a cargo de uma demorada lei posterior.
A realidade boliviana de hoje corresponde a uma verdadeira
transformação de um Estado uno para pluriétnico e multicultural. Por isso
vamos nos deter a analisá-la ainda que rapidamente.
4.5.2 Bolívia: uma transformação multicultural
Recentemente, acompanhamos com muito destaque da mídia a vitória
nas urnas do primeiro presidente de um Estado nacional latino-americano que
107
As chamadas regras federais ou a instituição do pluralismo jurídico formal na perspectiva
de Hoekema mencionadas no tópico anterior.
assumiu a identidade indígena: Evo Morales. Fato histórico e oriundo das
intensas
transformações
que
estão
acontecendo
no
aspecto
do
multiculturalismo no cenário latino-americano. Iniciando o novo governo, o
Presidente convocou uma Assembléia Nacional Constituinte que visa editar
uma nova constituição para o país.
Segundo o censo de 2001108, 62% da população boliviana é indígena,
sendo a maioria pertencente aos povos quechua (30,7%) e aimara (25,2%).
Na região andina, 75% da população se autoidentifica109 como pertencente a
algum povo indígena. Portanto, na Bolívia, não se fala em minoria étnica e
sim em maioria absoluta.
Esses dados, certamente, estimulam a reconstrução da identidade
boliviana que fora, até então, voltada para um conceito de Estado único, no
máximo mestiço, como também ocorreu no México e em diversos outros
países da América.
Para se ter uma idéia, a situação dos povos indígenas da Bolívia não
mudou muito com a independência do país em 1825. Como aconteceu com
praticamente toda a América Latina, o direito do colonizador foi substituído
pelo direito nacional, sendo o último praticamente copiado do primeiro. A
tendência era desconhecer a pluralidade étnica do país, encarada sempre
como fraqueza e doença do Estado monista que, para assegurar
materialmente seu poder, buscava a consolidação de uma só cultura.
Em 150 anos de história boliviana, após sua independência, houve
alternância de regimes ditatoriais, promulgação de constituições e
importantes revoluções como a de 1952, até que em 1982 a democracia se
consolidou.
Com a queda do muro de Berlim e o fim da bipolarização mundial,
houve a adoção definitiva de um modelo neoliberal naquele país.
A Bolívia, no ano de 1994, aprova a Lei de Participação Popular que
proporcionou ao movimento dos cocaleiros (plantadores tradicionais da folha
108
ALBÓ, X. Hacia una Bolivia plurinacional e intercultural, p.2.
O critério da autoidentificação para o reconhecimento da identidade indígena foi trazido
pela Conveção 169 da OIT.
109
de coca) e aos campesinos uma atuação social marcante voltada,
principalmente, para combater o impositivo modelo neoliberal vindo de fora.
Aliado a estes movimentos estava o MAS (Movimento ao Socialismo
– Instrumento Político para a Soberania dos Povos), partido político que foi
criado em 1995 como referência daqueles movimentos, com um conteúdo
étnico muito forte, e propondo mudanças relativas à exploração dos recursos
ambientais. Na liderança do MAS estava o aimara Evo Morales que iniciou
um processo de alianças com outros setores da sociedade boliviana.
Por outro lado, a elite organizada da região de Santa Cruz crescia em
tamanho e força política, o que provocou quase um empate nacional dividido
entre os dois movimentos. O MAS foi crescendo a cada disputa eleitoral e
culminou na vitória de Evo na última eleição presidencial.
Em 15 de agosto de 2006 o governo iniciou o processo da Assembléia
Nacional Constituinte com o intuito de elaborar uma nova constituição
política, conforme já era exigido no país há anos. O texto final deverá contar
com a aprovação de 2/3 de seus membros eleitos e, depois, ainda será
submetido a um referendo popular. Dos 255 participantes da Constituinte, 92
são oriundos dos povos originários, dos quais quase a metade são mulheres.
O debate atual encontra-se um pouco emperrado. O MAS, que
representa quase 54% da Constituinte, ainda não elaborou um documento
sério acerca do que será a nova constituição. Em meio a este estado de coisas,
houve a explosão econômica no preço dos hidrocarbonetos (componente
essencial da economia boliviana) e, também, os problemas relacionados com
sua gestão. Até 14 de agosto de 2006 havia 84 projetos compilados pela
Representação da Presidência para a Assembléia Constituinte.
A proposta, considerada por Xavier Albó110 como a mais interessante,
corresponde à realizada pela Assembléia Nacional das organizações mais
importantes do país, constituídas de povos indígenas, originários, campesinos
e de colonizadores da Bolívia, que foi debatida e elaborada durante diversas
reuniões no âmbito regional e uma no âmbito nacional. Ainda não representa
110
ALBÓ, X. Hacia una Bolivia plurinacional e intercultural, p. 14.
um documento final acerca do que será a constituição, mas é a proposta que
melhor atende os anseios dos diversos povos existentes no país.
A Proposta Indígena, Originária e Campesina (PIOC) apresenta no
próprio título aquilo que quer para o futuro da Bolívia: Por um Estado
Plurinacional y la autodeterminación de los pueblos y naciones indígenas,
originárias y campesinas. O preâmbulo do documento resume as principais
idéias constantes da proposta:
El Estado Plurinacional es un modelo de organización política para la
descolonización de nuestras naciones y pueblos, reafirmando, recuperando y
fortaleciendo nuestra autonomía territorial, para alcanzar la vida plena, para
vivir bien, con una visión solidaria [y] de esta manera ser los motores de la
unidad y bienestar social de todos los bolivianos, garantizando el ejercicio
pleno de todos los derechos.
Para [su] ...construcción y consolidación... son fundamentales los principios
de pluralismo jurídico, unidad, complementariedad, reciprocidad, equidad,
solidaridad... [Está]... basado en las autonomías indígenas indígenas,
originarias y campesinas... como un camino hacia nuestra autodeterminación
como naciones y pueblos, para definir nuestras políticas comunitarias,
sistemas sociales, económicos, políticos y jurídicos, y en este marco
reafirmar nuestras estructuras de gobierno, elección de autoridades y
administración de justicia, con respeto a formas de vida diferenciadas en el
uso del espacio y el territorio. Jurídicamente nuestra propuesta se
fundamenta en los derechos colectivos consagrados en Tratados
Internacionales de Derechos Humanos, como el Convenio 169 de la OIT. Es
de especial importancia nuestro derecho a la tierra y los recursos naturales:
buscamos poner fin al latifundio y a la concentración de la tierra en pocas
manos, y al monopolio de los recursos naturales en beneficio de intereses
privados. [Su] estructura... implica que los poderes públicos tengan una
representación directa de los pueblos y naciones indígenas, originarias y
campesinas, según usos y costumbres, y de la ciudadanía a través del voto
universal. (grifos nossos)
Trata-se de uma verdadeira revolução de todos os conceitos
envolvendo as noções de direito e Estado - uma nova concepção, fundada no
coletivismo e na crença de que a felicidade não é algo que se constrói
individual e egoisticamente.
O
processo
de
constituinte
deve
continuar
buscando
uma
reestruturação da Bolívia, numa tentativa pioneira e louvável em prol do
reconhecimento efetivo do multiculturalismo, assumindo, definitivamente,
uma condição fática que lhe é peculiar, mas não muito distante das demais
realidades latino-americanas.
Como bem afirmou Albó111, este panorama, como não poderia deixar
de ser, apresenta muitos desafios, problemas nada fáceis de serem resolvidos.
Por todo o continente latino-americano podem ser encontradas réplicas dessa
situação, em maior ou em menor grau.
Cabe a cada país escolher o rumo que vai tomar.
4.5.3 As possibilidades reais de um sonho
O estudo acerca da situação boliviana, certamente, representa um
alento e esperança para o valor diversidade. Percebemos que, como bem nos
ensinou Ferdinand Lassale, a constituição, por mais importante que seja
como documento político de “uma nação”, não passa de folhas de papéis
escritas que apenas representam a divisão do poder dentro de uma
determinada sociedade.
Esta é, em síntese, em essência, a Constituição de um país: a soma dos
fatores reais do poder que regem uma nação. Mas que relação existe com o
que vulgarmente chamamos Constituição? Com a Constituição jurídica?
Não é difícil compreender a relação que ambos os conceitos guardam entre
si. Juntam-se esses fatores reais do poder, os escrevemos em uma folha de
papel e eles adquirem expressão escrita. A partir desse momento,
incorporados a um papel, não são simples fatores reais do poder, mas sim
verdadeiro direito – instituições jurídicas. 112 (grifos no original)
Nessa perspectiva podemos refletir: quais são os fatores reais de poder
de um país latino-americano? Qual é a nossa realidade? Não devemos nos
afastar dela para pensar num futuro ou num projeto de país.
A constituição, uma vez sendo considerada mera folha de papel, pode
ser rasgada e escrita uma outra - assim como o faz a Bolívia neste exato
momento.
Em outros casos, talvez, isso não seja necessário.
111
Palestra proferida em 19/10/2006 no V Congresso da Rede Latino-americana de
Antropologia Jurídica na cidade de Oaxtepec,Morelos-México.
112
LASSALE, F. A essência da Constituição, p. 17-18.
Uma constituição que garante, dentre os mencionados fatores reais de
poder, o lugar e o reconhecimento do multiculturalismo abre espaço para uma
conduta de real efetivação, a depender da vontade política.
O presente desafio de concretizar o pluralismo jurídico é
paradigmático, pois envolve uma reformulação quase total dos conceitos
concebidos por séculos de história ocidental. Ele está ligado diretamente à
relativização das noções de soberania, propriedade e direito positivo,
colocando-os em cheque e naturalizando uma crise que também fora negada
por muito tempo.
É visível a crise do Estado e de seu Direito (...). Todos os primados do
Direito chamado moderno, seus fundamentos, o direito individual como
direito subjetivo, o patrimônio como bem jurídico, a livre manifestação de
vontade estão abalados. Com este abalo outros dogmas perdem a
credibilidade, como a separação de poderes, a neutralidade e o
profissionalismo do poder judiciário, a representatividade dos parlamentos,
a soberania nacional, a supremacia da Constituição. Esta crise é diferente de
outras já havidas e às vezes mal superadas, porque atinge o âmago, os
113
alicerces do sistema jurídico.
Um novo direito, um novo Estado, para uma nova realidade: a do
século XXI. O novo é quase sempre difícil de ser aceito, pois em geral tudo
se mostra diferente, e , por isso, uma grande ameaça ao clássico, ao “estar
acostumado”. Por preguiça ou falta de coragem, pode-se preferir não realizálo e deixar as coisas nos seus lugares, entendidos como devidos, quando na
verdade não o são.
Às vezes, porém, a falta de vontade não é desinteressada. O silêncio e
a inércia são fortes atitudes, principalmente, quando se tratando de direito.
O não enfrentamento do problema corresponde à sua negação. É em si
mesmo uma meticulosa e bruta forma de opressão. Trata-se de uma violência
113
SOUZA FILHO, C. F. M. Os direitos invisíveis. In: OLIVEIRA, F.; PAOLI, M. C (orgs).
Os Sentidos da democracia: políticas do dissenso e hegemonia global, p. 307.
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