PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO LETÍCIA BORGES DA SILVA MULTICULTURALISMO E BIODIVERSIDADE – UM DESAFIO AO DIREITO VIGENTE CURITIBA 2007 Letícia Borges da Silva Multiculturalismo e biodiversidade – um desafio ao direito vigente Dissertação de Mestrado Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Direito Econômico e Social da PUCPR como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito. Orientador: Profº Drº Carlos Frederico Marés de Souza Filho Curitiba Janeiro de 2007 Letícia Borges da Silva Multiculturalismo e biodiversidade – um desafio ao direito vigente Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Direito Econômico e Social da PUCPR. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada. __________________________________ Profº Drº Carlos Frederico Marés de Souza Filho Orientador Centro de Ciências Jurídicas e Sociais - PUCPR _________________________________________ Profª Drª Claudia Maria Barbosa Centro de Ciências Jurídicas e Sociais - PUCPR ________________________________________ Profª Drª Alejandra Leonor Pascual UNB Curitiba, 14 de Fevereiro de 2007. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, da autora e do orientador. Letícia Borges da Silva Graduou-se em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná em 2005. Desenvolveu projetos de pesquisa vinculados ao Programa Institucional de Bolsas para a Iniciação Científica. É advogada. Ficha Catalográfica S586m 2007 Silva, Letícia Borges da Multiculturalismo e biodiversidade : um desafio ao direito vigente / Letícia Borges da Silva ; orientador, Carlos Frederico Marés de Souza Filho. – 2007. 122 f. ; 30 cm Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2007 Inclui bibliografia 1. Nativos – Estatuto legal, leis, etc. – América Latina. 2. Multiculturalismo. 3. Diversidade biológica. 4. Direito. 5. Capitalismo. 6. Democracia. I. Souza Filho, Carlos Frederico Marés de. II. Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Programa de Pós-Graduação em Direito. III. Título. Dóris 4. ed. – 341.1234098 CDD 20. ed. – 306. 446 575.2 A Carlos Henrique, Joselice, Adilton e Rodrigo pelo amor, carinho e confiança. Agradecimentos A Deus, pela dádiva de uma vida saudável e exuberante. Ao insigne orientador, Professor Carlos Frederico Marés de Souza Filho, pela atenção, empenho e competência emprestados, tornando possível vivenciar, em cada contato, um momento de crescimento e aprimoramento pessoal. À CAPES e à PUCPR, nas pessoas dos Professores Carlos Marés, Claudia Barbosa e Antônio Carlos Efing, integrantes da Comissão de bolsas, pelos imprescindíveis apoios concedidos. À minha valiosa família Carlos Henrique, Joselice, Adilton, Rodrigo, Elbio (in memoriam) Mara, Ricardo, Odilon e Helena que souberam suportar paciente e incondicionalmente as exigências do processo intelectivo e de pesquisa. Às Professoras Claudia Barbosa e Alejandra Pascual pelas imprescindíveis e brilhantes colaborações dadas ao presente trabalho. Aos amigos, professores e funcionários da PUCPR pela ajuda. A Eva Curelo, Isabel Rosa, Flávia Barossi, Mariângela Ohrem, Clarissa Wandscheer, Paulo Pankararu, Janaína Paim, Karine Finn, Patrícia Carvalho, Patrícia Piazzaroli, Ana Luiza Piva, Leonardo Serafini, Mariana Castro, Ana Paula Liberato pelo carinho e amizade de sempre. A todos aqueles que direta ou indiretamente contribuíram para minha formação como ser humano. Muito Obrigada! Resumo Borges da Silva, Letícia; Souza Filho, Carlos Frederico Marés. Multiculturalismo e biodiversidade – um desafio ao direito vigente. Curitiba, 2007. 122p. Dissertação de Mestrado – Programa de Pós-graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica do Paraná. O multiculturalismo e a biodiversidade são conceitos novos para o direito moderno, que foi concebido dentro de uma visão individual e positivista, centrada na propriedade, posto que fruto da consolidação do sistema capitalista. Na América Latina, os povos indígenas, assim como outras comunidades culturalmente diferenciadas, não compartilham do mesmo direito, vivem conceitos e estruturas próprias sociais e de justiça. O Estado e o direito passam por uma crise. Uma das formas de superá-la é consolidar a aceitação do pluralismo jurídico, ao invés de pretender controlar todas as dinâmicas sociais complexas da atualidade, que sempre conviveram com o pretensioso monismo jurídico, ainda que não reconhecido por ele. No presente trabalho, através do método indutivo, faz-se uma análise crítica do sistema jurídico vigente, no âmbito nacional e internacional, propondo uma abertura, a um só tempo, política, jurídica e ideológica, no sentido de viabilizar a concretização dos valores do multiculturalismo de modo efetivo, aliado à biodiversidade, numa perspectiva de sustentabilidade humana e socioambiental aliada à necessidade de trilhar caminhos que conduzam à convivência pacífica e à felicidade coletiva, parâmetros edificadores da paz mundial. Palavras-chave Diversidade cultural; América Latina; povos indígenas; biodiversidade; Estado; direito moderno; capitalismo; democracia; pluralismo jurídico; direitos socioambientais. Abstract Borges da Silva, Letícia; Souza Filho, Carlos Frederico Marés (Advisor). Multiculturalism and biodiversity – a challenge for law in vigor. Curitiba, 2007. 122p. MSc. Dissertation – Programa de Pósgraduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Multiculturalism and biodiversity are new concepts for modern law that had your basis on an individual and positivist view centered in the property right to suport the capitalism system. In Latin America, indigenous people and others culturally differentiated communities use to have their own concepts, justice and social structures. Thus, they do not share the others people´s usual law. There is a crisis of State and law. A way to surpass this crisis is to perform juridical pluralism actions instead of intending to control all the nowadays complex social dinamics, that always lived together with the pretencious juridical monism, in despite of not recognized by it. In the present work the juridical system in vigor, as national as international, was analysed by an in inductive method. The propose is a political, juridical and ideologic change able to realize the multiculturalism value and the associated biodiversity , in order to provide a human and social environmental sustainable perspective to guide all in the rhumb of pacific convivence and colective happiness, builder parameters of world-wide peace. Keywords Cultural diversity; Latin America; Indigenous people; biodiversity; State; modern law; capitalism; democracy; juridical pluralism; social environmental rights . Sumário 1. Introdução 13 2. Do individual ao coletivo: relação entre capitalismo, Estado, multiculturalismo e biodiversidade 17 2.1 O direito moderno ocidental atrelado ao sistema econômico liberal e capitalista 19 2.1.1 A origem do capitalismo e as transformações sociais 21 2.1.2 Propriedade privada e a visão contratualista do direito 26 2.2 Uma mudança paradigmática 27 2.3 - A conquista dos novos direitos coletivos 29 2.4. Povos Indígenas: desrespeito e reconhecimento de direitos 32 2.5 Multiculturalismo nas constituições latino-americanas 34 2.6. Panorama internacional 36 2.6.1 O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial 37 2.6.2 A Organização Internacional do Trabalho e a Convenção 107 2.6.3 A Convenção 169 da OIT 2.6.3.1 A redefinição do conceito de povos 39 41 42 2.6.3.2 O princípio da autodeterminação dos povos 44 2.7. Multiculturalismo relacionado à biodiversidade 46 3. Realidade multicultural: globalização, democracia e sistemas jurídicos diversos 51 3.1 Multiculturalismo: um desafio contemporâneo 51 3.2 Globalização contra-hegemônica 54 3.3 Democracia e diversidade na sociedade contemporânea 55 3.3.1 Lutas democráticas entrelaçadas: o movimento socioambiental 58 3.4 Para além do direito positivo 60 3.5. A sociedade e o sistema jurídico tukano 62 3.5.1 Poder, ética e direito 3.5.1.1 Autoridades tukano 3.5.2 Relações com a terra, herança e produção 3.5.2.1 Meio ambiente e biodiversidade 63 64 65 66 3.5.3 Obrigações, contratos e comércio 67 3.5.4 Direito de família 69 3.5.5 Questão penal e processo 69 3.6. Sociedade e autonomia kuna 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 72 74 3.6.1.1 Autoridades tradicionais e Congresso Local 74 3.6.1.2 Congresso Geral 75 3.7. Apontamentos sobre experiências multiculturais 76 4. Pluralismo Jurídico para a afirmação da sociobiodiversidade 80 4.1 Um direito estatal e monista 80 4.1.1 O Império Romano e a Idade Média 82 4.2 A crise do monismo jurídico 84 4.3 Pluralismo Jurídico 85 4.3.1 Um direito social 86 4.3.2. Pluralismo jurídico e povos indígenas 88 4.3.2.1 Direito consuetudinário 92 4.4 Pluralismo jurídico formal unitário versus igualitário 4.4.1 Autonomia indígena 93 96 4.5 Para a construção de um Estado pluriétnico e multicultural 99 4.5.1 Multiculturalismo na Constituição Federal de 1988 100 4.5.2 Bolívia: uma transformação multicultural 104 4.5.3 As possibilidades reais de um sonho 107 4.5.4 Estado-Nação ou Nações-Estado? 110 5. Conclusão 113 6. Referências Bibliográficas 117 Siglas Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) Constituição Federal de 1988 (CF/88) Fundo das Nações Unidas para a infância (Unicef) Instituto Latinoamericano de Servicios Legales Alternativos (ILSA) Instituto Socioambiental (ISA) Medida Provisória (MP) Organização Internacional do Trabalho (OIT) Organização Mundial do Comércio (OMC) Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) Organizações Não-Governamentais (ONGs) Organização das Nações Unidas (ONU) Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP) Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) Proposta Indígena, Originária e Campesina (PIOC) Trade Related Intellectual Property Rights (TRIPS) Lista de Figuras e Tabelas Tabela 1 – Aumento do impacto humano 33 Figura 1 - Foto aérea: André Vilas-Boas, s/d, ISA. 49 Figura 2 - Foto aérea: Pedro Martineli, 1999, ISA. 49 Figura 3 - Maloca Kuebi do Rio Kuduari, Kock-Grünberg, 1904, ISA. 62 1 Introdução “Tendes, pois, do futuro este temor salutar, que faz velar e combater e não este terror mole e ocioso que abate e enerva os corações.” Alexis de Tocqueville Diferença. Talvez, seja este um dos mais intrigantes dilemas da existência humana. O diferente, nem sempre se quer conhecer, é desafiador, pode até gerar insegurança e temor... Porém, numa outra perspectiva, é estimulante, fugaz e belo. Os pontos de vista a respeito da diferença variam muito, não raras vezes, eles se opõem. O fato é que as diferenças existem, o que muda, tão somente, é a forma como a tratamos. A diferença cultural que se faz presente na variedade do “como viver”, inerente a cada um dos grupos de representantes da espécie humana espalhados pela superfície do Planeta, e a infinidade de organismos vivos diversos presentes na flora e na fauna, com quem compartilhamos a vida neste mundo, fazem surgir o que denominamos de multiculturalismo e biodiversidade, respectivamente. Tais conceitos, no entanto, tiveram ao longo do tempo uma conotação meramente descritiva das situações multifacetadas, no processo de adaptação de nossos ancestrais às condições ambientais, ao se espalharem pelo mundo, chegando aos nossos dias, sem muita influência ou implicação no que respeita à melhor convivência e integração da sociedade como um todo em busca da felicidade. O direito, por seu turno, instrumento de equilíbrio das relações sociais, teve sua construção histórica totalmente dissociada dos conceitos acima referidos, particularmente, nos últimos quatro séculos em que se verificou o surgimento e a consolidação do Estado moderno. Entretanto, refletindo sobre as transformações tão rápidas e profundas por que passa o mundo de hoje, não há como negar a forte modificação que o direito moderno sofreu, e como não poderia deixar de ser, atingiu diretamente o pensamento a respeito da diversidade cultural e biológica. Um bom exemplo, a propósito, é a situação dos povos indígenas que vivem em meio à biodiversidade, manejando a riqueza natural de forma a preservá-la para as presentes e futuras gerações, mas que, no entanto, foram por tanto tempo considerados como inferiores pelo sistema capitalista, cujo modo de produção e de consumo apresentam-se já por demais insustentáveis. O presente estudo tem como objetivo destacar o fato de que é necessário ampliar a noção do direito, passando de único e centralizado para coletivo e plural, libertando-se das amarras do individualismo exacerbado e do acúmulo de capital, para admitir outras formas de ordenamento social, não necessariamente codificadas. Na medida em que essa postura seja consolidada, criar-se-á condições para que cada cultura, em especial a indígena, atue de forma independente, autêntica e coordenada, conduzindo a uma preservação efetiva da riqueza cultural e natural. No primeiro capítulo, apresentamos um esboço histórico sobre o sistema capitalista, sua vinculação ao direito individual de propriedade e o papel do Estado. Em seguida, faz-se uma apreciação das transformações ocorridas, à luz dos movimentos sociais que se seguiram, conferindo uma nova racionalidade ao direito, que passou a dar ênfase aos direitos coletivos, culturais, ambientais e outros. Deste contexto, destaca-se a atuação dos povos indígenas da América Latina, cujas reivindicações passam a figurar nas constituições nacionais e convenções internacionais, as quais lhes atribuem direitos, considerando o modo de viver de suas comunidades, intimamente relacionado com a preservação da riqueza cultural, recursos naturais e biodiversidade. No segundo capítulo, busca-se apresentar uma realidade multicultural diante do fenômeno da globalização, do fortalecimento e consolidação da democracia no mundo do pós-guerra, através de uma amostra das múltiplas faces que se apresentam no mundo contemporâneo, registrando as formas de vida dos povos tukano e kuna, inseridos cada qual no seu ambiente geopolítico, e a necessária reflexão sobre os caminhos que podem levar à consolidação de uma nova cultura jurídica voltada ao pluralismo. Por fim, no terceiro capítulo propõe-se um necessário ajuste do sistema de direito consagrado, discorrendo sobre a exigência de uma reapreciação dos conceitos de soberania, nação e Estado, a fim de que o ideal do pluralismo jurídico igualitário possa ser absorvido no plano fático. Descreve-se, ainda, a fase que passa a Bolívia, atualmente, na sua luta pela consolidação de um Estado multicultural. É de suma importância ter em mente, que o direito não há de servir como obstáculo às transformações sociais. Contemporaneamente, vive-se uma variada gama de novas possibilidades, fomentadas, inclusive, pelo ambiente democrático. Quem pretenda preocupar-se com temas dessa natureza, intimamente relacionados com as ciências jurídicas, políticas e sociais, há de fazê-lo com muito senso crítico sobre os valores que permeiam a convivência harmônica em sociedade, principalmente, aqueles que se apresentam compatíveis com o fim do individualismo apregoado pelo capitalismo monopolista. Assim, é que o presente estudo, classificado como interdisciplinar, valeu-se de técnicas do método indutivo, cujo recurso da associação de idéias, permitiu, por um lado, exercitar o livre pensar, e, por outro, imaginar modificações possíveis que venham abrir uma perspectiva renovadora, a um só tempo dinâmica e desafiadora em torno do tema proposto. Nessa linha de raciocínio, acha-se a concepção de uma sociedade plural que precisa superar o conteúdo de dominação, indo além da idéia assimilacionista proveniente da colonização, e caminhar para uma igualdade de possibilidades, visando garantir a dignidade de todas as culturas num mesmo nível. Claro está que daí emerge uma nova lógica em cena, uma racionalidade completamente diversa da que vinha sendo adotada no curso da história do direito. Surgem mecanismos de proteção a interesses supraindividuais. Na América Latina, os povos indígenas se organizam para lutar por direitos há tanto tempo esquecidos e violados. Os povos que até então eram considerados inferiores recuperam seu valor, e demonstram sua importância cultural e ambiental para o mundo. Os organismos internacionais e os Estados vão se abrindo ao debate; aparecem documentos jurídicos que permitem a proteção do coletivo, inserindo a noção de diversidade cultural e biológica. Cada realidade multicultural poderá exigir diferentes soluções acerca do relacionamento com a sociedade envolvente, o que é inerente à própria diversidade. A formatação ou uniformização jurídica desta relação acarreta interferências culturais profundas e muitas perdas também. Daí, a necessidade de reformulação do direito, permitindo o diálogo de igual para igual entre todos os povos e a manutenção de suas estruturas organizativas. 2 Do individual ao coletivo: relação entre capitalismo, Estado, multiculturalismo e biodiversidade “O homem é o capital mais precioso.” Karl Marx O direito, por força das exigências sociais em um mundo onde as transformações acontecem continuamente, passa por diversas crises no afã de se adaptar às novas situações estabelecidas. A partir do século XX, por exemplo, o direito moderno de mero garantidor das relações entre Estado e os indivíduos, assumiu outros espaços, ganhando incumbências inovadoras, tais como a regulação da economia e a intervenção em questões sociais. O direito individual era o mais importante, sendo tratado em um código próprio e com uma riqueza de detalhes incrível, tais como: a propriedade existente sobre as terras de um rio que secou, ou sobre os frutos de uma árvore que caiu em terreno alheio1. Era a supremacia do direito individual, tendo como representação mais importante, o direito de propriedade. Todos os demais direitos eram considerados públicos, mas, simplesmente, no sentido de serem estatais, e não, coletivos. Hoje, já não é mais assim, o individualismo vem cedendo pouco a pouco, perdendo a importância solar no sistema. A propriedade é relativizada, e somente garantida caso cumpra uma função socioambiental. A propósito, contemporaneamente, o direito vem sendo revisto, passando de uma concepção clássica, individualista e liberal, para uma perspectiva supra-individual, na medida em que há o fortalecimento e a consagração dos direitos coletivos perante a sociedade. A crise por que passa o direito, porém, é diferente das outras, e nunca fora vivenciada em toda sua história, porque agora ela atinge o âmago, o 1 SOUZA FILHO, C. F. M. Os direitos invisíveis. In: OLIVEIRA, F.; PAOLI, M. C. Os Sentidos da democracia: políticas do dissenso e hegemonia global, p. 308. cerne da estruturação jurídica que é o direito privado e individual. Da sociedade, emergiram reivindicações determinantes, considerando os desequilíbrios gerados pela economia de mercado e a concentração de riquezas. O poderio econômico extrapolou sua influência de atuação na vida das pessoas, até então mais marcante no nível individual, para fazer com que toda uma coletividade fosse atingida pelos seus efeitos nocivos. Não foi por outra razão, que surgiram mecanismos para, num processo evolutivo e gradual, tutelar os chamados interesses difusos e coletivos, como forma de reação ao modo de produção capitalista concentrador. Essa mudança de perspectiva que o direito vem enfrentando é um fenômeno que ocorre, na medida em que as desigualdades sociais provocadas pelo liberalismo econômico vêm sendo contestadas. As questões trabalhistas, ambientais, os direitos do consumidor, os direitos culturais etc., fizeram com que as relações sociais se tornassem cada vez mais complexas. Poder-se-ia configurar uma situação descontrolada na qual a sociedade tenderia para um caos, onde a superestimação do direito de propriedade privada, a liberdade de contratação e a autonomia da vontade fomentariam cada vez mais a possibilidade de que uns poucos chegassem a possuir enormes quantidades de bens em detrimento dos demais. Alguém tinha que interceder como agente moderador: o EstadoProvidência ou do Bem-Estar social foi conseqüência dessa postura de maior regulação social. As Duas Grandes Guerras Mundiais, o movimento socialista, a crise ambiental e o domínio da economia por grandes corporações, trouxeram problemas que os princípios individualistas do direito não mais bastavam para atender as demandas da sociedade que se transformava. Criou-se um impasse, já que o direito acreditava que nada haveria entre o Estado e os cidadãos, portanto, tudo aquilo que não fosse privado era público. A dicotomia privado versus público era bem definida, ou seja, considerava direitos individuais de um lado e todos os demais do outro. As coisas que tivessem um certo tom de coletividade (como as pessoas jurídicas e a massa falida) eram reduzidas ainda à individualidade, ou eram apenas provisórias ou fictícias2. Para a resolução das questões, através da simplicidade da indenização, era preciso não só haver um titular individual e específico para tudo aquilo que fosse objeto do direito, como também, ser passível de avaliação econômica. Essa lógica não concebia um direito coletivo que não fosse, tão somente, a soma de direitos individuais. Os direitos coletivos eram simplesmente invisíveis3 ao sistema, cuja racionalidade individualista não permitia enxergar a coletividade como sujeito, como titular de direitos. Dessa forma, o direito simplesmente desconsiderava o multiculturalismo e a biodiversidade, enquanto interesses coletivos, relegando-os ao espaço do abandono ou da exploração alienígena, pois não cabiam dentro da formatação jurídica moderna; encontravam-se numa zona intermediária; não eram nem públicos nem privados, portanto, ocultos. Toda essa estrutura jurídica patrimonialista, no entanto, tinha uma forte razão de ser. As bases nas quais foi construído o direito moderno estão ligadas fortemente à legitimação de um sistema econômico determinado que então passara a vigorar: o capitalismo. 2.1 O direito moderno ocidental atrelado ao sistema econômico liberal e capitalista A história nos mostra que as transformações sociais por que passava a Europa e o fortalecimento político da burguesia exigiram do direito uma resposta, ou seja, era preciso assegurar a estabilidade do novo comércio nascente. Isto nos permite afirmar que o sistema capitalista incipiente teve origem temporal e geográfica. “Estado e direito modernos começam a surgir 2 SOUZA FILHO, C. F. M. Os direitos invisíveis. In: OLIVEIRA, F.; PAOLI, M. C. P. Os Sentidos da democracia, p.311. 3 Ibid., p.311. na Europa lá por volta do século XIII, talvez, antes, teorizados a partir do século XVI...” 4 É por demais familiar o fato de que o direito moderno foi estruturado tendo por fundamento as correntes naturalistas e positivistas, baseadas em padrões culturais centrais, desconsiderando a diversidade social fática e até mesmo buscando negá-la. Num primeiro momento, ênfase foi dada ao jusnaturalismo, considerando o homem detentor de direitos naturais que o acompanhavam desde o seu nascimento, pelo simples fato de ser pessoa humana. Assim, sendo naturais, os princípios e as regras de direito independiam de convenção ou legislação, cabendo ao Estado, apenas, garanti-los. Num segundo momento, o positivismo jurídico entendeu que a sociedade deveria ser organizada por regras do “dever ser”, provenientes das “exigências organizatórias e das solicitações de natureza ética que daquela realidade promanam” 5. A norma jurídica criava o direito, e necessário se fazia escrever e codificar os direitos naturais. Kelsen6 menciona, claramente, a vinculação do direito como sendo norma jurídica, ao dizer que: “apreender algo juridicamente não pode, porém, significar senão apreender algo como Direito, o que quer dizer: como norma jurídica ou conteúdo de uma norma jurídica(...)” Os direitos naturais foram, então, positivados, ou seja, escritos e garantidos por uma ordem institucional e organizada, a que se convencionou chamar de Estados nacionais. As constituições foram os documentos políticos criados para legitimar e dar sustentação a este sistema. Dessa forma, o processo de positivação dos direitos considerados naturais confunde-se com o da formação dos Estados que hoje conhecemos. Para que houvesse organização e paz social era necessária uma entidade 4 Id., A função social da terra, p. 16. LIMA, H. Introdução à Ciência do Direito, p. 45. 6 KELSEN, H. Teoria Pura do Direito. p. 79. 5 superior aos indivíduos para garanti-las. Traduz-se, então, a idéia rosseauniana de contrato social, firmado entre as pessoas e o Estado. Por trás de toda essa evolução na concepção jurídica, estava a força motriz, representada pela profunda modificação que ocorria nas relações econômicas durante esse período: a sociedade saía da Idade Média, libertando-se das amarras feudais e costumeiras, para ingressar num período moderno, baseado na propriedade privada e no trabalho assalariado e livre. 2.1.1 A origem do capitalismo e as transformações sociais Ellen Wood7 esclarece que, embora a origem do sistema capitalista tenha sido atribuída às cidades, isso não retrata a verdade factual, não passando de mera afirmação com o objetivo definido de, intencionalmente, obscurecer sua característica especificamente agrária. Por milênios, os homens sobreviveram do trabalho da terra, dos recursos naturais, e dividiam-se, basicamente, em: produtores diretos (camponeses) e apropriadores do trabalho dos outros8. Havia o acesso direto aos meios de produção, e a apropriação do excedente dava-se por meios “extra-econômicos” (coerção: uso da força de fato, política, militar etc.). A característica essencial do capitalismo não está no comércio, este já existia há séculos, o que o distingue são as relações de propriedade entre produtores diretos e apropriadores do trabalho, seja na agricultura ou na indústria. A base da sua consolidação é a expropriação dos camponeses, relegando-os à condição única de vendedores da sua força de trabalho, retirando desse contexto a mais-valia que proporciona os lucros. Assim sendo, o capital não precisa utilizar-se da coerção direta, como fazia os senhores feudais ou as monarquias, o excedente é concentrado pela própria engenhosidade do sistema, condicionando os trabalhadores a não terem escolha, visto não possuírem mais os bens de produção, a matéria-prima e, 7 8 WOOD, E. M. As origens agrárias do capitalismo, p.12. Ibid, p.13. principalmente a terra que, na maioria das vezes, lhes foi violentamente retirada. Isso é possível pelo poder regulador do mercado, que nunca, antes, tivera uma função tão importante como tem no capitalismo. Tudo pode virar mercadoria: os meios de produção, a força de trabalho, a matéria-prima... O mercado é determinante na regulação da produção e reprodução social, ele comanda todas as coisas: do alimento e o básico, ao supérfluo e o luxuoso. Os imperativos do capitalismo, tais como, competição, acumulação e maximização do lucro, diferentemente de qualquer outro modo de produção existente na história, quase sempre, e com maior intensidade, subjugam os seres humanos e a natureza. Lígia Osório Silva menciona na introdução ao texto de Ellen Wood9, que a referida autora quer desmistificar a afirmação de que o capitalismo é um sistema natural, ou o “equívoco da sua identificação simplista com o impulso inato da ‘busca pelo lucro’”. Não se pode garantir que o ser humano teria dentro de si uma prédisposição à apropriação individual dos bens, como querem alguns pensadores do sistema, a exemplo de David Ricardo e Adam Smith, no afã de considerar o capitalismo uma conseqüência natural da história da humanidade. Na Europa, até o século XVII, o comércio orientava-se pela simples transferência de um mercado para outro, comprando barato e vendendo caro. O mercado não era unificado, e pendia para os artigos de luxo. Esses são considerados alguns princípios não-capitalistas de comércio, que coexistiam, na época, com outras formas de acumulação de capital, como a renda advinda do sobretrabalho - uma maneira graciosa de obtenção de riqueza - até então extraído de cargos públicos ou de privilégios das classes dominantes. Nem os produtores nem as elites dependiam do mercado para a sua reprodução. Isto mudou completamente no cenário 9 WOOD, E.M. As origens agrárias do capitalismo, p. 09. capitalista, em que o mercado ganhou tamanha força que tanto produtores quanto apropriadores tornaram-se dele dependentes. A Inglaterra se sobressaiu em todo esse processo, pois era, dos países europeus, o mais unificado, e isso facilitou a consolidação de um Estado central forte10. A base material da economia inglesa era a agricultura, mas, ao contrário do que ocorrera em outros países como a França, a atividade estava centralizada nas mãos de poucos latifundiários, os quais detinham alta concentração de terra. A adoção dos institutos de cercamento e melhoramento permitiu o incremento da aplicação capitalista no campo. O primeiro foi uma forma de apropriação individual da terra, antes comunal e coletiva. O segundo correspondia ao aumento da produtividade, visando a competição e o lucro, constituindo-se num dos fundamentos da propriedade e o alicerce da exploração capitalista, sendo defendido pelos intelectuais da época como John Locke. Baseados no desenvolvimento de técnicas agrícolas, os melhoramentos não só permitiram o aumento, mas também a concentração de riquezas, e acirrou a competitividade entre os proprietários. O aumento da riqueza foi se sobrepondo ao princípio da preservação das comunidades camponesas e da distribuição eqüitativa dos recursos naturais. Paralelamente, veio, também, a imposição cultural da lógica de mercado. Houve um sistemático movimento, por parte dos novos proprietários, no sentido de que não houvesse qualquer empecilho ao uso lucrativo da terra. As práticas costumeiras e coletivas das comunidades locais interferiam nitidamente na acumulação capitalista, pois se orientavam por outros princípios que não o lucro, como por exemplo, limitações ao uso da terra em prol de um benefício comunitário. O capital, então, optou por negar a diversidade social e impor um padrão de produção e consumo único e monocultural. 10 Ibid., p. 16. A concepção tradicional e coletiva de propriedade restava superada, e foi gradativamente substituída por um novo conceito de propriedade: privada, excludente e altamente produtiva. Tudo isso foi teoricamente concebido e disseminado, de forma a criar um falso consenso sobre a idéia de que não passava de um processo natural de absorção pela sociedade em evolução. Como bem definiu Locke,11 a propriedade era um direito natural, assim como o era torná-la produtiva e lucrativa. O direito à melhoria da terra, no sentido de aumentar a produção e o lucro, foi ganhando cada vez mais espaço, em detrimento dos direitos costumeiros que perderam seu valor, e dos quais muitas pessoas dependiam para sobreviver. Além das comunidades, essa desvalorização atingiu também a natureza: o valor estava, simplesmente, no trabalho humano. A biodiversidade não possuía nenhum valor, senão, quando modificada pelo homem. Observe-se que, para Locke, a proporção entre natureza e trabalho é de 1 (um) para 100 (cem). Ele utiliza como exemplo os povos da América, mencionando serem ricos em natureza e “pobres em todos os confortos da vida.”12 O valor está na indústria humana. A natureza raramente é computada na avaliação. O trabalho é o que agrega maior parte do valor, sem ele, a terra não valeria quase nada, é apenas a matéria-prima, e bem menos valiosa. Nos séculos XVI e XVII houve diversas revoltas por causa dos cercamentos e dessa nova concepção acerca do uso da terra. Porém, as classes dominantes venceram, e com a Revolução Gloriosa de 1688, foi consolidado o triunfo do capitalismo agrário com as seguintes características: maximização do valor de troca por meio da redução de custos e pelo aumento da produtividade, através da especialização e da inovação (melhoramento); processo de acumulação e expansão bem diferente do padrão antigo, que era comunitário; e a criação de uma massa de camponeses expropriados. 11 12 LOCKE, J. Segundo Tratado sobre o governo civil e outros escritos, p. 105. LOCKE, J. Segundo Tratado sobre o governo civil e outros escritos , p.107. Surge, enfim, o capitalismo sob vestes dominantes, massacrando as racionalidades coletivas. Percebe-se que dele não fazia parte a noção de bem comum. Ao contrário, buscava a desintegração das comunidades de bases tradicionais, para sua posterior integração no sistema industrial, que se instalava paralelamente nas cidades, já agora como pessoas individuais, transformando os camponeses em trabalhadores livres. A tríade marxista de proprietários de terras vivendo da renda da terra capitalista; de arrendatários capitalistas, vivendo do lucro; e de trabalhadores, vivendo de salários, corresponde às mudanças nas relações sociais que resultou na transformação do comércio e da indústria na Inglaterra. A acumulação primitiva de que fala Marx13 corresponde à separação do produtor dos meios de produção. Essa é a pré-história do capitalismo. E tudo isso foi ideologicamente concebido. No feudalismo, os camponeses trabalhavam num regime de servidão, submetidos ao poder e à proteção de seu senhor. A enganosa proposta do capital era libertar esses trabalhadores da servidão feudal e transformá-los em assalariados livres. Essa liberdade, no entanto, lhes custou a expropriação dos bens de produção, o que escravizou economicamente os camponeses. A dependência do mercado foi causa da proletarização em massa. Os expropriados, sem chances de adentrar na competição da agricultura “melhorada”, viram-se obrigados a trocar sua força de trabalho por salário nos grandes centros urbanos. Lá, era necessário consumir bens essenciais, como alimentos e roupas, haja vista não mais possuírem os bens de produção. Esse fator impulsionou a industrialização inglesa que, com o passar dos tempos, sentiu a necessidade de expandir os mercados, através da colonização de outras partes do mundo. Analisando profundamente todo esse processo de consolidação do capitalismo, é possível afirmar que, na Inglaterra, em virtude das condições 13 MARX, K. O capital, p. 261-284. favoráveis daquele país, que já contava com infra-estrutura de comunicação e de transporte já adiantada, houve uma evolução diferenciada dos outros países. Assim, a ética do “melhoramento” marcou a expansão capitalista por grande parte do mundo: por um lado, a exploração máxima da terra (natureza) e a concentração de riquezas, e, contraditoriamente, o aumento da pobreza e o desamparo total dos trabalhadores, por outro. Tudo isso nos leva a inferir que a diferenciada situação inglesa torna visível que o capitalismo, como vimos, não representa uma conseqüência histórica, comum a todas as sociedades, ele foi exportado ou copiado, como uma idéia supostamente pura e natural. A lógica da alta exploração e subjugação dos povos e da natureza veio a reboque. Refletindo mais detidamente sobre a essência do capitalismo, e tendo em mira sua crença em constituir-se num instrumento de felicidade e bemestar, o que dizer dos reflexos nefastos produzidos na sociedade como um todo, presentes até os dias atuais, através das mais variadas formas de carência e de exclusão? Não seria, talvez, pelo capitalismo ter-se desenvolvido na contra-mão da natureza, e em vista disso, ter exigido um trabalho persuasivo árduo e persistente de seus pensadores, no sentido de forçar um falso consenso a esse respeito? Seria um exagero, ou excesso de imaginação afirmar que nem todas as comunidades, nem todos os povos terão que passar pelo capitalismo, como uma fase irremediavelmente necessária de sua evolução? Há povos indígenas e outras comunidades tradicionais, cujo estilo de vida comprova essa não-natureza humana de lucrar e acumular. E, ainda assim, caso fosse julgado necessário, é possível pensar-se na reformulação de tal sistema, o capitalismo, incluindo nele o respeito à diversidade biológica e ao multiculturalismo, considerando que a sua lógica interna de exploração contínua e ininterrupta do homem e da natureza é insustentável, e dificilmente conduzirá à almejada paz mundial. 2.1.2 Propriedade privada e a visão contratualista do direito Como se percebeu, o direito de propriedade surge como a ferramenta mais importante, na época, para o desenvolvimento do sistema capitalista. Ao Estado coube garantí-lo,14 regulando suas formas de aquisição e transmissão. Assim, o contrato ganha força, como o instrumento de legitimação e garantia do direito de propriedade. Somente se discutia as condições de validade, não importando seu conteúdo, efeitos e conseqüências para as partes e, menos ainda, para a sociedade. Os contratantes deveriam ser livres e iguais para poderem celebrar um acordo válido. Nesse sentido, os princípios de igualdade e liberdade assumiram vestes meramente formais, falaciosas, e não refletiam a realidade fática. Serviam apenas à retórica e ao discurso jurídico do liberalismo. Liberdade e igualdade estavam garantidas pelo Estado, apenas, como requisitos da propriedade privada e dos contratos que a legitimavam, sem qualquer preocupação comunitária ou coletiva. Na esteira dessa concepção, os princípios de segurança jurídica, autonomia da vontade e pacta sunt servanda, são esculpidos fortemente pela doutrina jurídica moderna, segundo os ditames privados e interesses individuais, ignorando a diversidade social fática, considerando, apenas, os interesses econômicos preponderantes. Simplesmente, aquilo que não pudesse ser apropriado individualmente e não estivesse na esfera de disposição contratual, não teria importância para o direito, e não foi outra a razão pela qual a proteção dos povos tradicionais e da natureza, enquanto direitos coletivos, foram sumariamente excluídos. O direito preocupava-se mais com a forma do que com o conteúdo de suas disposições e, certamente, tal estado de coisas provocou grande distorção: a exploração contínua do homem pelo homem e da natureza. 14 LOCKE, J. Segundo Tratado sobre o governo civil e outros escritos, p. 110. 2.2 Uma mudança paradigmática Com o advento da Revolução Industrial, a sobreexploração capitalista superveniente desencadeou importantes transformações que se fizeram sentir no final do século XVIII e começo do século XIX. As comunidades tradicionais do campo, como visto, foram desintegradas e expulsas de seus territórios para servirem de mão-de-obra nas cidades. Tornaram-se trabalhadores individuais e assalariados, desprovidos do meio de produção (terra), e possuindo apenas sua força de trabalho para oferecer às fábricas. E assim, embora “livres como pássaros” 15 para o trabalho industrial, na verdade, os trabalhadores eram escravos da aquisição mercantil de bens de consumo essencial, como comida, vestimenta, etc. A classe trabalhadora se organiza e surgem os sindicatos, quebrando a supremacia do contrato individual de trabalho, exigindo melhores condições ao operariado, e derrotando a falsa idéia liberal de que nada poderia existir entre o Estado e os cidadãos. A “mão invisível”, que exerceria uma auto-regulação do sistema, concebida pelo economista Adam Smith, que a tudo proveria no campo social, não prosperou, provocando, ao contrário, muitos conflitos e desigualdades. Sucessivas crises e revoluções ocorrem por todo mundo, e a função do Estado diante dessa realidade passa a ser questionada profundamente. Este, de mero espectador da economia é chamado para nela intervir, regulando, assim, as atividades sociais de maneira geral. A crise assumiu tamanha dimensão e forma que não havia outra saída ao liberalismo: tinha que se reestruturar e atender algumas daquelas demandas, para assim, poder continuar existindo como sistema econômico viável. Surge, então, o Estado de bem-estar social, ou Welfare state, até mesmo como uma resposta ao desenvolvimento e expansão do socialismo por todo o mundo. 15 MARX, K. O Capital, p. 269. Há, nesse contexto, uma mudança fundamental de paradigma com relação à função do Estado. Sua postura de abstenção é substituída pela de intervenção. Ele ganha espaço, assume mais responsabilidades, e passa a garantir outros direitos não apenas individuais. É o que Norberto Bobbio16 denomina de: “a segunda geração de direitos”, isto é, os direitos sociais, baseados não apenas no indivíduo e sim no interesse da sociedade. Ao contrário das constituições que enalteciam o direito absoluto de propriedade, como a francesa de 1793, a portuguesa de 1822 e a brasileira de 1824, surgem as constituições cidadãs do século XX, que condicionaram o direito de propriedade ao cumprimento de uma função social, e reconheceram novos direitos sociais e coletivos. A Revolução Mexicana do começo do século XX proporcionou a primeira delas em 1917. Era a primeira vez que uma constituição protegia direitos coletivos. Em seguida, veio a Soviética (1918), abolindo a propriedade privada e, posteriormente, na Alemanha, a de Weimar (1919) estabeleceu obrigações ao proprietário. O sistema jurídico cede à realidade social. 2.3 A conquista dos novos direitos coletivos Diante desse ambiente de mudanças, muitos foram os direitos conquistados. Uns mais rapidamente, pois essenciais à continuidade do modo de produção capitalista, como os direitos dos trabalhadores; outros foram mais tarde alcançados, ou ainda estão sendo construídos. A dinâmica dos movimentos sociais que se seguiram ocorreu de maneira diferenciada ao redor do mundo. Em particular, na América Latina, onde é inegável a diversidade cultural, calcada justamente na multidimensionalidade17 das relações sociais aqui existentes, tais movimentos 16 17 BOBBIO, N. A era dos direitos, 1992. SANTOS, B.S. Pela mão de Alice, p. 263. foram mais miscigenados e não tão homogêneos como se observou nos países europeus. Assim é que, manifestações de classes trabalhistas, de raças e de gêneros humanos, de minorias excluídas (desempregados, artistas, transformistas, homo-sexuais etc.), de ativistas do meio ambiente, dos povos da floresta (indígenas, seringueiros, castanheiros etc.), e demais segmentos da sociedade, foram se integrando de forma tal que o todo constituído, baseado na compreensão das diferenças, tornou-se maior do que a soma das partes, e alcançaram uma nova dimensão e racionalidade: a jurídica. Não tardou para que toda essa gama de reivindicações exigisse, de pronto, uma mudança de postura do direito: da individual para a coletiva. Embora se apresentem como direitos ainda muito recentes no contexto do sistema, já se encontram presentes no ordenamento jurídico clássico, e representam veículos concretos de emancipação social. Antes da abertura da lei para o coletivo, tais direitos eram considerados meros interesses sociais e/ou políticos. A propósito, o fato de terem sido só agora consolidados não significa que sejam de construção recente, muito pelo contrário, não é nenhuma novidade para nós o fato de que os povos indígenas habitam seus territórios desde tempos remotos, anteriores à formação dos próprios Estados e, obviamente, da degradação da biodiversidade ocorrida a partir dos primórdios do sistema capitalista. O que se vislumbra agora, no entanto, é uma espécie de renascimento dos povos18 em questão, e um despertar do interesse coletivo de cada comunidade tradicional específica, com possibilidades jurídicas reais e concretas de verem transformados em realidade seus sonhos, acalentados há séculos e sufocados ao sabor de muita luta e sangue derramado. Com as constituições democráticas e cidadãs da América Latina19, os direitos coletivos começam a se tornar factíveis. Ganharam o status de 18 19 SOUZA FILHO, C. F. M. O renascer dos povos indígenas para o Direito, 1998. Entre os anos 80 e 90, novas constituições foram promulgadas na América Latina, pois o continente saía de um longo período marcado pelas ditaduras. Em quase todas essas constituições - outras mais, outras menos, logicamente - é possível perceber a proteção e a discussão jurídica, possível de ser travada em ações judiciais, na doutrina, nas faculdades, nas políticas públicas, enfim, nos diversos setores sociais. O direito à cultura, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, à saúde, à educação, à assistência social, os direitos indígenas, de afrodescendentes e demais minorias étnicas, dentre outros, foram alguns dos direitos reconhecidos a partir dessa mudança de perspectiva no campo jurídico e social. As constituições latino-americanas passam a reconhecer a sociodiversidade de seus respectivos países: a Colômbia protege a diversidade étnica e cultural (1991); o México (1992) assume ser detentor de uma "composição pluricultural"; o Paraguai (1992) reconhece a existência dos povos indígenas, e ainda, se declara como um país multicultural e bilíngüe etc. Aos poucos, o direito foi se aproximando da realidade, reconhecendo e protegendo a diversidade cultural. Ao lado da proteção ao multiculturalismo veio também a preocupação com o meio ambiente e a biodiversidade. A América Latina ostenta boa parte da riqueza biológica mundial e isso provocou o interesse e a necessidade de proteção. Houve a consagração do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, não somente no nível mais alto do ordenamento jurídico de diversos países, mas também nas legislações ordinárias. A constatação do déficit ambiental fez com que o mundo se preocupasse mais com a preservação da biodiversidade, haja vista a dependência humana dos insumos por ela providos: fibras têxteis, alimentos, remédios, inseticidas, etc. Assim, vários países se reuniram, a fim de criar uma legislação internacional para a proteção ecológica. A Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente, realizada em Estocolmo (Suécia), no ano de 1972, foi a primeira de abrangência mundial. Esta reunião foi um marco para o então emergente direito ambiental internacional. importância dada aos novos direitos coletivos. Para citar alguns exemplos têm-se as constituições da Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Nicarágua, Peru e Venezuela. Vinte anos mais tarde, realizou-se a Conferência das Nações Unidas sobre Meio ambiente e Desenvolvimento, na cidade do Rio de Janeiro, no período de 3 a 14 de junho de 1992, conhecida como “Eco 92”. Como a própria denominação sugere, veio munida da intenção desafiadora de conciliar o desenvolvimento econômico com a preservação ecológica, consolidando a famosa expressão: “desenvolvimento sustentável”. Diante de toda essa mudança social, o capitalismo teve que ceder e se deixar permear por novas reivindicações. O multiculturalismo e a biodiversidade inserem-se, respectivamente, nesse contexto, como campos de resistência à uniformidade doentia e à dominação criminosa do meio ambiente; duas mazelas que tanto apregoa o sistema. Na Europa, a tentativa de coesão e construção de uma identidade atrelada ao capital se deu com muita violência em relação às comunidades tradicionais; a mesma e talvez pior atrocidade fora aplicada em território latino-americano com relação aos povos indígenas e à biodiversidade. Nenhum povo da América deixou de sentir a chegada dos europeus. A guerra estabelecida com os povos do litoral rapidamente se estendia pelo interior. Os povos sucumbiam ou fugiam. Ao fugir, não encontravam territórios desocupados, mas outros povos com quem tinham de guerrear para disputá-los . Espremido entre dois inimigos, cada povo precisou fazer, a cada momento, sua escolha: lutar ou sucumbir.20 Os povos culturalmente diferenciados que ainda resistem no continente americano são os remanescentes de uma avassaladora devastação física e cultural, provocada pelos colonizadores, associada a uma igual violência com relação à natureza, o que redundou em intensa perda de biodiversidade. 20 SOUZA FILHO, C.F.M. Multiculturalismo e direitos coletivos. In: SANTOS, B.S.(org.). Reconhecer para libertar, p.75. 2.4. Povos indígenas: desrespeito e reconhecimento de direitos É sobejamente conhecido o processo desumano de dominação, subjugo, cristianização e de apresamento para servirem de escravos que foram vítimas os povos indígenas. Como se não bastasse, ainda hoje sofrem com a violação de sua dignidade, principalmente, devido a um monopólio cultural ocidental devastador, que insiste em desconsiderar sua cultura e tradição. Assim, é que, com o objetivo de reverter ou minimizar os prejuízos sofridos, vem tomando força a cada dia, um movimento indígena que emergiu nos âmbitos nacionais e internacionais. A América Latina, em particular, tem uma história indígena bastante conturbada, marcada por violentos processos colonizatórios, que têm sua origem na época das conquistas, quando foram covardemente retirados de suas terras, quer através do extermínio generalizado, fruto do confronto direto em contundente desvantagem com os colonizadores mais fortemente armados, ou pela fuga inopinada de seus territórios originais para escaparem das armas de fogo. Certamente, que a luta era desigual. Sem alternativas, foram se dispersando e, ao adentrarem em outras terras, conflitos com diferentes povos ocorriam, provocando ainda mais perda do contingente indígena. Estima-se que a população indígena nas Américas seja de aproximadamente 41.977.600 (quarenta e um milhões novecentos e setenta e sete mil e seiscentos) habitantes, o que corresponde a aproximadamente 6,33% da população total21. Em alguns países, a porcentagem indígena é quase zero (Ex: Uruguai com 0,016%), quando na verdade são eles os habitantes originários dos territórios, hoje chamados de Estados nacionais. Os povos indígenas detêm modos de produção diferenciados, que se baseiam na sustentabilidade ecológica dos recursos manipulados. Ao longo dos tempos, as comunidades indígenas desenvolveram-se através de um profuso contato com o meio ambiente, e assim, puderam apreender métodos 21 GOMÉZ, M. Derechos Indígenas – Lectura comentada del Convenio 169 de la Organización Internacional del Trabajo, p. 45. de integração total com a natureza e de utilização da biodiversidade, desenvolvendo processos artesanais de construção de móveis, utensílios e artefatos de uso comum, de obtenção e sintetização de remédios, cosméticos e alimentos etc. Tudo isso, manejando os recursos naturais de forma a contribuir para a manutenção da riqueza biológica, representando uma importante função na preservação ambiental. Em conseqüência, mantêm em seus territórios uma alta concentração de biodiversidade. Com o crescimento capitalista e a busca pelo desenvolvimento econômico a qualquer custo, muitos países, como o Brasil e os Estados Unidos, expandiram suas economias, e a procura por terras e recursos naturais (madeira, água, plantas, animais) aumentou progressivamente. Para se ter uma idéia, a tabela abaixo mostra o aumento do impacto humano22: Indicador mundial 1950 1995 Produção de soja em milhões de toneladas Produção de carne em milhões de toneladas Pesca em milhões de toneladas de peixes Terras irrigadas em milhões de hectares Uso de fertilizantes em milhões de toneladas Produção de Petróleo em milhões de toneladas Produção de carros em milhões de unidades Produção de bicicletas em milhões de unidades População humana em milhões 17 125 44 192 21 109 94 248 14 122 518 3.301 3 36 11 114 2.555 5.732 Tabela 1 – aumento do impacto humano Certamente, essa demanda atingiu os territórios indígenas, devido à vasta riqueza biológica neles contida. Com o decorrer do tempo, o problema se agravou, pois a população indígena aumentava ao passo que os recursos 22 Tabela utilizada por BENSUSAN, N. O impacto humano. In:____, (org). Seria melhor mandar ladrilhar? Biodiversidade como, para que, por quê, p. 23. naturais diminuíam, comprometendo então a sobrevivência e a autosustentabilidade desses povos. Como não poderia deixar de ser, suas condições de vida foram piorando, fazendo emergir uma série de reivindicações. Sendo assim, as populações indígenas se organizaram, formaram lideranças e passaram a lutar na defesa de seus direitos, por tantos séculos desrespeitados. Uma melhor qualidade de vida; a demarcação de seus territórios; o respeito à sua cultura, língua e tradições; um desenvolvimento econômico autônomo e sustentável; programas de bem-estar social e possibilidades efetivas de manutenção da sua diversidade cultural são algumas de suas bandeiras. No Brasil, as organizações começaram a se formar a partir da década de 70, e, com a redemocratização do País, aumentaram significativamente, incrementando a participação indígena na vida política nacional23. O tratamento estatal meramente assistencialista, de cima para baixo, não satisfazia as necessidades desses povos, que cansaram de ser tratados como pertencentes a uma cultura inferior, transitória, tendente a desaparecer. Em algumas ocasiões, inclusive, foram legalmente considerados como incapazes24. Os povos indígenas começaram, então, uma luta efetiva em busca de reconhecimento de direitos e libertação da opressão que vieram sofrendo por tantos anos. O cenário de mudanças globais com a mundialização da economia, ao mesmo tempo em que criou espaços de dominação, também impulsionou o surgimento de concepções multiculturais, a articulação de movimentos sociais, e favoreceu a transformação da perspectiva individualista. 23 Dados gentilmente cedidos pelo Advogado Indigenista Dr. Paulo Celso de Oliveira Pankararu. 24 Haja vista o Código Civil brasileiro de 1916 (já revogado) no seu art. 6º, inc. III, que previa o silvícola como incapaz e o art. 16 do Código Penal do Estado de Michoacán no México, que previa ser indígena e analfabeto como causas de inimputabilidade. 2.5 Multiculturalismo nas constituições latino-americanas Uma das principais vitórias do multiculturalismo foi ver consagrados nas constituições os direitos sócio-culturais indígenas e, também, de outras comunidades tradicionais. Isso ocorreu em vários países, principalmente nos da América Latina, onde proliferaram, uma após outra, constituições democráticas precedidas de períodos ditatoriais. A Constituição brasileira de 1988 representa um marco jurídico no cenário nacional e regional, abrindo espaço para a preservação cultural indígena, o que nunca antes tinha sido observado numa constituição brasileira. O art. 231 menciona que: “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Os parágrafos do art. 231 delineiam a aplicação dos direitos indígenas, definindo o que são terras tradicionalmente ocupadas. Os índios detêm a posse permanente, enquanto que o domínio é da União, cabendo-lhes o usufruto exclusivo de todas as riquezas nelas existentes. O § 4.° determina, ainda, que os direitos indígenas sobre suas terras são imprescritíveis, inalienáveis e indisponíveis. Em 1991, a Constituição colombiana apresenta dentre os princípios fundamentais, a proteção da diversidade étnica e cultural, e destina no art. 171 uma cota para senadores eleitos pelos povos indígenas. Ainda o art. 246 reconhece a existência do direito indígena e suas funções jurisdicionais no âmbito territorial. Por outro lado, a Constituição Argentina de 1994, no seu art. 75, inciso 17, menciona a garantia ao respeito e identidade cultural, o direito à educação bilíngüe, reconhece a personalidade jurídica das comunidades indígenas e a posse e propriedade sobre as terras que tradicionalmente ocupam. A Bolívia, também, em 1994, e após décadas de omissão acerca dos direitos culturais, mesmo sendo um país de maioria indígena, registra na sua Constituição (Art. 171) o reconhecimento e o respeito aos direitos sociais, econômicos e culturais dos povos indígenas. Ademais, a constituição foi além, e declarou-se um Estado multi-étnico, uma coragem que muitos países vizinhos não tiveram. Em se tratando de constituições, pode-se citar a da Costa Rica, do Chile, da Guatemala, do Peru, do Panamá, dentre outras, que mencionam e garantem a diversidade cultural e a preservação dos direitos indígenas. 2.6 Panorama internacional Na esfera internacional tem havido uma participação indígena crescente nos debates e foros colegiados, tanto no âmbito da Organização das Nações Unidas, da Organização dos Estados Americanos, quanto em fóruns sociais e nas Conferências de partes de algumas convenções (a exemplo da CDB – Convenção sobre Diversidade Biológica ou Biodiversidade). A ONU, em 1982, formou um grupo de trabalho sobre populações indígenas que impulsionou o Fundo de Contribuições Voluntárias, com o fim de possibilitar a participação de representantes indigenistas nas deliberações do grupo. Nesse âmbito, encontra-se em discussão, há mais de uma década, um projeto para a formulação de uma Declaração de Direitos dos Povos Indígenas. Recentemente, ela teve seu texto aprovado e deve seguir os trâmites necessários para a sua implementação em nível mundial. Uma declaração, embora não tenha caráter obrigatório, representa um documento contendo as intenções dos Estados partes e, geralmente, impulsiona o processo de legislação internacional. Na Conferência de Direitos Humanos celebrada em Viena - Áustria, no ano de 1993, foi recomendada a criação de uma instância específica para o tratamento da questão indígena, em sede da ONU. E assim foi feito. No ano de 2002, criou-se o Foro Permanente dos Povos Indígenas, e já na primeira reunião houve convergências entre os setores educacional, ambiental e cultural, com a participação ativa da Unesco, da Unicef e de outras instituições governamentais, não governamentais e indígenas. O Foro Permanente tem sido um importante local de discussão estratégica mundial dos povos indígenas. O ano de 1993 foi declarado pela ONU como o “Ano Internacional dos Povos Indígenas”, e o período até 2004 a “Década Internacional dos Povos Indígenas”. Nesse interregno houve oportunidades nunca antes concedidas aos membros dos povos indígenas na esfera internacional: negociar em organismos internacionais e dirigir-se aos governantes em assembléias gerais e conferências da ONU. A questão indígena começa a figurar no cenário político mundial, ocupando um lugar que lhe faltava, e que, desde muito tempo, deveria estar reservado25. Na esteira de toda essa movimentação seguiram-se diversos documentos internacionais que abarcaram direitos culturais de maneira geral. O setor indígena soma-se a outros direitos de minorias étnicas e raciais que se integram na luta e privilegiam o fortalecimento do multiculturalismo. 2.6.1 O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial Em 27 de junho de 1989 foi celebrada a Convenção 169 Relativa aos Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes da OIT, um dos mais significativos documentos internacionais de proteção do multiculturalismo. Adotada em substituição a antiga Convenção 107 de 1957, a Convenção 169 atualizou o assunto, considerando a evolução do direito internacional ocorrida e as mudanças sobrevindas na situação dos povos indígenas e tribais ao redor de todo o mundo26. 25 ARAÚJO, A.V; LEITÃO, S. Socioambientalismo, direito internacional e soberania. In: BORGES DA SILVA, L.; OLIVEIRA, P.C. Socioambientalismo: uma realidade p. 39-40. 26 O Brasil adotou a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho por meio do Decreto nº 5.051, promulgado em 19 de Abril de 2004. No preâmbulo da Convenção 169, faz-se referência à Declaração Universal dos Direitos Humanos e, conseqüentemente, aos Pactos Internacionais dos Direitos Civis e Políticos e dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, documentos que incorporaram os preceitos da Declaração, sob a forma de direitos obrigatórios e vinculantes no contexto internacional. Os Pactos têm por objetivo a não discriminação entre os povos e buscam uma igualdade de condições entre todos para o alcance da dignidade humana. Por outro lado, eles têm um forte cunho ocidental e não consideram profundamente o princípio do multiculturalismo, no entanto, são aberturas importantes dentro do sistema jurídico em que, a partir deles, pode-se ampliar a noção dos direitos, caminhando em sentido do coletivismo. O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, embora tenha um viés mais liberal e individualista, não deixou de tratar sobre o direito das minorias étnicas, ainda que de forma superficial. O art.27 menciona que: “Nos Estados em que haja minorias étnicas, religiosas ou lingüísticas, as pessoas pertencentes a essas minorias não poderão ser privadas do direito de ter, conjuntamente com os outros membros de seu grupo, sua própria vida cultural, de professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua”. Mais especificamente, o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, vai além da noção do individual para abarcar os direitos coletivos. Visa garantir os direitos à educação, à saúde, ao trabalho, à previdência e ao seguro social e, também, o direito à cultura. O art. 13.1 prevê que a educação deve favorecer a “compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e entre todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos(...) em prol da manutenção da paz”. Os povos indígenas, assim como todos os demais, têm o direito à dignidade humana, que somente será um fato quando forem tratados com devido respeito a suas tradições e direitos coletivos. Sendo assim, para que se preserve a diversidade cultural, ainda restante, não se pode considerar os direitos humanos separados em individuais ou coletivos. Em se tratando dos direito culturais, eles não existem isoladamente, mas refletem uma construção social conjunta que aos poucos vai firmando suas bases, levantando paredes, moldando suas formas, o chão, o teto. A afirmação desses direitos ocorre gradativamente, num processo de conquistas e superando a dicotomia individual versus coletivo. Os direitos econômicos, nesse contexto, tornam-se bastante importantes, pois através deles os povos indígenas e comunidades tradicionais poderão viver por si sós e, assim, preservarem melhor suas culturas. A garantia da manutenção de suas atividades econômicas ou a criação de alternativas sustentáveis, quando aquelas já não sejam mais possíveis (devido à devastação e a falta de recursos naturais nos seus territórios), permite, ainda, a conservação do meio ambiente e o manejo adequado da diversidade biológica, pois atividades por eles realizadas são de baixo impacto ambiental. Os direitos sociais e econômicos devem ser interpretados à luz do direito cultural, visando impedir qualquer forma de imposição ou restrição, interferindo o mínimo possível na estrutura social desses povos. Outro documento internacional importante para a fundamentação dos direitos ao multiculturalismo é a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial de 1965. Adotada pela ONU, ela busca uma maior aproximação entre as raças, diminuindo as diferenças abismáticas existentes. Está prevista, inclusive, a adoção de medidas positivas e/ou ações afirmativas para tornar mais rápida a eliminação das desigualdades sociais acumuladas ao longo de muitos séculos, entre brancos, negros, índios, etc. Entretanto, por mais que esses documentos tratem da proteção dos direitos humanos, e possam ser utilizados em favor dos povos culturalmente diferenciados, nenhum deles é tão significativo quanto a Convenção 169 da OIT. Este é o principal documento que embasa as discussões internacionais em torno do multiculturalismo, por tratar-se do único instrumento jurídico internacional de caráter vinculante, aplicado especificamente para os povos indígenas e tribais. 2.6.2 A Organização Internacional do Trabalho e a Convenção 107 A OIT surgiu em 1919, após a Primeira Guerra Mundial, com a finalidade de promover a justiça social, o direito à livre associação sindical e o direito à negociação coletiva. Sua principal função tem sido elaborar normas internacionais que sirvam de diretrizes às autoridades nacionais para a adoção de políticas mais adequadas na questão trabalhista. Desde a década de vinte, a Organização se preocupava com a questão do trabalho rural. Sendo assim, diversas regras foram destinadas à situação dos trabalhadores do campo. A atenção voltada para o campo permitiu que se enxergassem alguns problemas da ocupação rural, evidenciando fenômenos sociais que se aproximavam dos campesinos, mas que eram derivados de grupos distintos. A partir daí, verificou-se a situação dos povos indígenas, e também numa tentativa de integração pelo trabalho, foram assinadas algumas convenções como a de número 50, sobre o recrutamento dos trabalhadores indígenas, e outras (64, 65, 104). No ano de 1957, adotou-se uma convenção de maior amplitude: a Convenção 107, conhecida como a Convenção sobre Populações Indígenas e Tribais. Foi um documento muito importante naquele momento, pois era a primeira vez que um organismo internacional formulava normas vinculantes, quer dizer, obrigatórias, a respeito dos diferentes problemas enfrentados pelas comunidades indígenas. E melhor ainda, não abordava apenas questões referentes ao trabalho, mas delineava um rol de direitos que eram fruto de intensas reivindicações. Por outro lado, a grande falha da Convenção 107 da OIT era a manutenção do pensamento paternalista e integracionista, como reflexo direto das políticas que estavam sendo aplicadas em alguns países da América Latina. A Convenção 107, em consonância com quase toda a política dominante no período em que ela surgiu, considerava a transitoriedade dos povos indígenas. A visão marcante era a de que eles desapareceriam com o decorrer do tempo, e deviam ser buscados meios adequados para assimilá-los ou integrá-los à sociedade nacional. Não restam dúvidas, no entanto, que a OIT buscava impulsionar uma política favorável com relação aos povos indígenas, ainda que de forma incipiente. E, nesse sentido, desempenhou a missão de influenciar alguns países que eram mais reticentes e atrasados no reconhecimento desses direitos. Assim, não se pode negar o mérito de ter dado partida à discussão, e de fazer adentrar algumas práticas e políticas relevantes, já consideradas em países mais avançados nas negociações internas. Sendo assim, passando a se constituir num instrumento jurídico recorrente, tornava possível e menos tortuosa a defesa de políticas condizentes com as demandas indígenas, na medida em que a discussão sobre o assunto foi ganhando espaço e abrindo os caminhos. O conceito de população indígena, como uma coletividade, fora estabelecido pela primeira vez em nível internacional, através da Convenção 107, e, ainda, determinou o direito de igualdade aos seus membros, no mesmo nível de qualquer outro cidadão nacional. Além disso, o documento albergou uma série de direitos específicos, como o direito coletivo à terra e o direito à língua materna. Não se pode deixar de mencionar o passo importante dado por ela, ao fazer menção e reconhecer a existência do direito consuetudinário, ou seja, dos costumes e as formas tradicionais pelas quais as comunidades resolviam seus conflitos. Para a época, reconhecer esses direitos de forma explícita era bastante avançado. 2.6.3. Convenção 169 da OIT Já no preâmbulo, a Convenção Relativa aos Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes, como assim é chamada a Convenção 169, declara que estabelece uma revisão da Convenção 107, após os membros da OIT terem decidido adotar diversas propostas de revisão parcial discutidas em pautas anteriores. Como quase toda convenção internacional, a 169 tem o intuito de ser aplicada em diversas partes do mundo, América Latina, Ásia, África e, portanto, teve que ser flexível, contendo disposições mais genéricas, considerando a amplitude das diversas situações nacionais. Um tratamento muito detalhado ou pormenorizado poderia comprometer a aplicação e a efetivação dos direitos nela previstos, além de complicar ainda mais a negociação. Sendo assim, a Convenção 169 procurou delinear alguns termos e/ou instrumentos, com alcance necessário para conduzir a interpretação favorável aos direitos indígenas em cada país, mas não foi contundente, deixando sempre uma margem de possibilidade entre fazer ou não fazer. A expressão “na medida do possível”, reiteradamente utilizada no texto, reflete justamente essa postura suave que a convenção adotou. Ao serem reconhecidos os direitos dos povos indígenas, não bastava a reafirmação de garantias e liberdades individuais, tendo por base tão somente os princípios de liberdade e igualdade. Era necessário avançar para uma perspectiva coletiva dos direitos de uma forma específica. O estilo de vida diverso imprime em cada um dos povos indígenas uma identidade própria, e, portanto, não há como equipará-los às demais pessoas que vivem na sociedade de consumo e capitalista. Quando se tratar da defesa dos direitos humanos indígenas, é preciso ter em mente a idéia de prevalência da diversidade cultural. Em outras palavras, tratá-los com igualdade não significa querer integrá-los à sociedade envolvente, mas garantir condições de promoção do bem-estar social, segundo seus próprios paradigmas. A Convenção 169 da OIT tem o intuito de afirmar os direitos indígenas e tribais nessas condições, considerando suas peculiaridades culturais. E, para isso, é preciso reformular alguns princípios de extrema importância na condução de uma interpretação favorável, como ocorre com as noções de povo e de autodeterminação. 2.6.3.1 A redefinição do conceito de povos O artigo 1º da Convenção 169 foi um dos mais debatidos na época de sua aprovação, porque mencionava a expressão “povos”, e conferia uma nova definição destinada e específica para aquela situação. Pode parecer muito natural falar em povos indígenas atualmente, mas este conceito desperta muita preocupação. No âmbito do direito internacional, a expressão povos está diretamente ligada à noção de soberania dos Estados. Ou seja, reflete a idéia de nação, com território, governo, idioma, organização política e social que, dentro da concepção cultural reinante, é única e indivisível. Talvez, seja este um dos motivos pelo qual a Convenção 107, anterior, preferiu utilizar a expressão “Populações Indígenas”, para evitar a polêmica em torno da utilização do termo “povos”. Por isso, a Convenção 169, procurou uma redefinição da expressão, em busca de uma alternativa para a forma como é utilizada no âmbito do direito internacional. Assim, o art. 1.3 menciona que “a utilização do termo "povos" não deverá ser interpretada no sentido de ter implicação alguma no que se refere aos direitos que possam ser conferidos a esse termo no direito internacional ”. Não se pode levar em consideração, a priori, que os povos indígenas buscam a autonomia política, no sentido de separar-se dos Estados aos quais pertencem geograficamente, até porque prescindem deles para continuarem existindo, enquanto povos. O reconhecimento da identidade específica de suas organizações, distintas das demais existentes na sociedade, é para ser encarado no sentido de terem a liberdade de determinar seu futuro e tomar decisões, por si próprios, sobre aquilo que lhes afetam. Almejam, portanto, conduzirem-se de acordo com suas organizações sociais, econômicas e culturais, sem ingerências externas, bem como o direito de viver em seus territórios e a garantia da sustentabilidade do habitat que os circunda, considerando a relevância do meio ambiente para a conservação de suas tradições, culturas e modos de viver. Na sua essência, os povos indígenas, tribais e comunidades tradicionais necessitam desse grau de autonomia, caso contrário, passarão a figurar como mais um item no rol das “espécies em extinção” e, dificilmente, continuarão existindo enquanto culturas diferenciadas. Fica claro, portanto, que ao se utilizar a terminologia de povos indígenas, não significa que sejam excluídos da política nos países em que se encontram. Participam da vida nacional, mas não compartilham dos processos tradicionais de desenvolvimento econômico e social, ou dos programas de integração comunitária em geral, pois estes são direcionados para a população dominante, em geral de característica cristã e capitalista. Por isso, há necessidade de reformulação do conceito de povos, e, também, de soberania, uma vez que, esses conceitos jamais deveriam retratar unidade nem indivisibilidade, em se tratando de Estados multiculturais, como os latino-americanos. Ao contrário do que possa parecer, a legitimidade estatal pode ser mais facilmente alcançada, caso seja reconhecida a pluralidade cultural, ao invés de uma retórica falsa de identidade única. A Convenção 169, no art. 2.1, menciona que os governos devem desenvolver ações coordenadas com vistas a proteger os direitos e a garantia do respeito e integridade dos povos. Mas, para tanto, é necessário que estes sejam enquadrados nos critérios de definição do que seja povos indígenas e tribais, preconizados pelo art. 1.1, a e b., constituindo cada qual, de per si, a sua consciência de identidade própria, indígena ou tribal (art. 1.2) Dessa forma, chega-se até a prevenir a atribuição de privilégios inescrupulosamente reivindicados por outros grupos, não abrangidos por estas categorias, como pode ocorrer com relação a grileiros de terras ou invasores ilegítimos, etc. 2.6.3.2 O princípio da autodeterminação dos povos Diante da consolidação do termo povos indígenas no contexto mundial, é possível sustentar, também, que a eles é cabível o direito à autodeterminação. Por certo, tal interpretação leva sempre em conta a ressalva do art. 1.3, ou seja, o uso da expressão é aceito desde que não represente soberania política, no intuito de segregação dos povos indígenas do resto da comunidade nacional. O art. 1º do Pacto de Direitos Civis e Políticos e o mesmo artigo do Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais mencionam: “Todos os povos têm direito à autodeterminação. Em virtude desse direito determinam livremente seu estatuto político e asseguram livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural”. Segundo Magdalena Gómez27, como esses pactos estabelecem direitos humanos, pode-se dizer que o direito à autodeterminação é também um direito humano. A mesma autora aponta para o problema de se considerar que os direitos humanos são de exercício individual, e os direitos dos povos indígenas são coletivos. Os direitos individuais são aqueles que se exercem independentemente da sociedade, e são inerentes a toda pessoa humana sem qualquer distinção de raça, gênero, língua ou religião. Exemplos: o direito à vida, à liberdade de expressão, a saúde física, dentre outros. Já os direitos coletivos realizam-se no seio de uma coletividade, não existem sozinhos ou podem ser exercidos individualmente. Eles dependem da comunidade como um todo para se concretizar. São aqueles direitos indispensáveis para que os povos subsistam, como o direito ao território, ao 27 GOMÉZ, M. Derechos Indígenas – Lectura comentada del Convenio 169 de la Organización Internacional del Trabajo, p. 56. uso da língua, à cultura própria, o direito de se autogovernarem ou praticarem suas próprias normas de organização e controle. Considera-se que, quando os direitos indígenas coletivos não são respeitados, torna-se muito difícil que os direitos humanos dos integrantes desses povos sejam efetivados28. Assim, podemos perceber o quão importante é a abertura dos direitos humanos para abranger, também, os direitos coletivos e, dentre eles, o da a autodeterminação, para que assim se tornem efetivos os direitos indígenas. A dignidade humana desses povos, por exemplo, somente será atingida quando se permitir que eles sejam quem realmente são. Mas, como a adoção do princípio da autodeterminação na prática internacional remete, também, à idéia de soberania, os Estados integrantes da OIT consideraram que isso poderia ser um risco. Novamente, a atenção estava voltada para o perigo de que os povos indígenas pretendessem formar um Estado à parte, quer dizer, separado dos atuais, e isso fez com que a Convenção 169 não tratasse da autodeterminação de maneira explícita. Mais uma vez, nunca é demais lembrar, que não se busca uma interpretação nesse sentido, ao se defender os direitos indígenas. Independente do uso que se dê comumente à autodeterminação no direito internacional, aqui, sua abrangência está no reconhecimento de uma identidade própria, de que são culturas diferentes, organizadas, historicamente, antes mesmo da “descoberta” espanhola e portuguesa, em se tratando da América Latina. Estão além de meros grupos de pessoas com costumes diferentes e inferiores, como quiseram defender no passado. Por outro lado, embora a Convenção não fale diretamente em autodeterminação, ela a deixa subentendida nas entrelinhas. Durante as discussões para sua elaboração, estabeleceu-se que seriam criados mecanismos ou procedimentos para atingir tal objetivo gradualmente. Como em cada Estado a situação indígena varia, até mesmo dentro do mesmo país, mudando de região para região ou de comunidade para 28 GÓMEZ, M. Derechos Indígenas – Lectura comentada del Convenio 169 de la Organización Internacional del Trabajo, p. 56. comunidade, a Convenção buscou adotar uma postura mais flexível, para alcançar o reconhecimento gradativo desses direitos. Desde o preâmbulo, ela trata da necessidade de os povos indígenas e tribais controlarem suas instituições próprias, mesmo dentro do país onde vivem. E, ainda, ressalta que deve haver por parte do Estado, a participação e consulta aos povos, nas tomadas de decisões que os afetem, acerca de seu desenvolvimento social e cultural. A Convenção menciona no art. 7.1 que os povos têm o direito de escolher suas próprias prioridades, no que tange ao processo de desenvolvimento, porém ressalva que esse autocontrole ocorrerá somente “na medida do possível”. Em resumo, a Convenção deixa nas mãos dos Estados o poder de decisão e controle, em última instância, mas cria mecanismos capazes de conquistar a autodeterminação dos povos indígenas pouco a pouco, como já foi referido acima. Além disso, não se deve esquecer que a Convenção 169, assim como os tratados de direitos humanos em geral, estabelece patamares mínimos de proteção. Ela define princípios básicos, um nível abaixo do qual os direitos não podem cair, mas não representa um teto, isto é, o máximo de direitos que se pode alcançar. 2.7. Multiculturalismo relacionado à biodiversidade A biodiversidade tem profunda influência na variedade dos povos. Formada pela riqueza de organismos vivos existentes no planeta Terra, ela é o produto da evolução de milhões de anos, dividindo-se em três categorias: os genes, as espécies e os ecossistemas. A variedade genética provém da multiplicidade de códigos presentes nos cromossomos de todos os organismos vivos, desde as bactérias aos seres humanos, podendo gerar diferenças dentro das mesmas espécies, como por exemplo, a diversidade de fenótipos do ser humano, os diversos tipos de milho e assim por diante. A variedade de espécies corresponde à pluralidade de seres vivos numa dada região e o inter-relacionamento que ocorre entre eles. Está representada nas diferentes categorias taxonômicas pertencentes ao reino animal e vegetal. Já a diversidade de ecossistemas é resultado de interações bióticas, tais como animais, plantas, bactérias; e abióticas como clima, solo, salinidade e outros. A diversidade biológica ou a biodiversidade - termos sinônimos - não se espalhou de forma uniforme pelo Planeta, de modo que existem ecossistemas específicos, adaptados às condições peculiares, nas quais se desenvolveram, e regiões onde se concentra mais a riqueza natural, como é o caso da América do Sul e Central. Com o desenvolvimento do pensamento voltado para a preservação ambiental, que ganhou mais notoriedade a partir dos anos 70, percebeu-se que, muito da natureza ainda preservada no Planeta, devia-se ao estilo de vida tradicional, ao modo de produção sustentável e ao manejo ambiental de povos culturalmente diferenciados. Portanto, a riqueza biológica remanescente não seria apenas natural, mas também fruto da interferência antrópica. Em outras palavras, os povos nativos se integram com o meio ambiente, observam, reagem, apreendem e transmitem ensinamentos de forma intuitiva e naturalista, os quais chegam a ser compartilhados por nós através de seus ritos e histórias. A Convenção sobre Diversidade Biológica29 reconheceu este fato, e deu especial atenção às populações tradicionais que colaboraram e continuam trabalhando pela manutenção da biodiversidade. Prova disso é o seu art. 8 j: [...] cada parte signatária deve: “em conformidade com sua legislação nacional, respeitar, preservar e manter o conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e populações indígenas com estilo de vida tradicionais relevantes à conservação e à utilização sustentável da diversidade biológica e incentivar sua mais ampla aplicação com a aprovação e a participação dos detentores desse conhecimento, inovações e práticas; e encorajar a 29 Assinada por ocasião da ECO 92, contou com a assinatura de mais de 162 países e tem por objetivo direto a proteção da diversidade biológica mundial. Aprovada no Brasil pelo Decreto nº 2 de 3 de fevereiro de 1994. repartição eqüitativa dos benefícios oriundos da utilização desse conhecimento, inovações e práticas.” O Brasil é um dos signatários da Convenção e, portanto, está obrigado a colocá-la em prática. Além disso, foi o país onde se realizou a Conferência, na qual a Convenção foi assinada, e recentemente sediou a 8ª Conferência das Partes da CDB (COP8), ocorrida na cidade de Curitiba, entre os dias 13 e 31 de março de 2006, com a presença dos delegados de 188 países. A biodiversidade brasileira é uma das maiores do Planeta, provocada, principalmente, por fatores como o clima e a grande extensão territorial. É o primeiro país do mundo no total de espécies, bem como em diversidade de mamíferos, anfíbios30, plantas, peixes de água doce e insetos31; ocupa o terceiro lugar em diversidade de aves e o quarto em répteis. Isso faz do Brasil um dos países chamados de megabiodiversos, ao lado de Costa Rica, Colômbia, Índia e outros. Com esse perfil, o País encerra significativa parcela da riqueza biológica existente no mundo, logo, tem o dever de se responsabilizar por ela. Aliada a essa diversidade natural está intimamente ligada a sociodiversidade. São mais de 220 povos diferentes32, que somam mais de 300.000 pessoas, falando algo em torno de 180 línguas, vivendo em mais de quinhentas terras reconhecidas e atingindo uma área superior a 100 milhões de hectares33. A análise de fotos aéreas de reservas indígenas, como as que se pode ver abaixo, é uma fonte de constatação da inter-relação entre o multiculturalismo e a biodiversidade, onde claramente se percebe a riqueza natural que ainda se faz largamente presente em seus territórios e duramente ameaçada pela degradação. 30 MESQUITA, A. Biopirataria: fauna e flora brasileira ameaçada pela ação dos traficantes, p.16. 31 BENSUSAN, N. O impacto humano. In:____, (org). Seria melhor mandar ladrilhar? Biodiversidade como, para que, por quê, p. 18. 32 Disponível em: www.funai.gov.br, www.socioambiental.org/pib/portugues/quonqua/qoqindex.shtm. [01/08/2006] 33 Correspondente a 12 % do território nacional. Nessas imagens, percebe-se que a floresta dentro dos limites do Parque Indígena do Xingu34, importante região biológica da Amazônia, vem sendo, a duras penas, preservada pelos povos indígenas, diante da gritante devastação nos seus arredores, provocada por queimadas e pela expansão das fronteiras agrícolas. Figura 1 - Foto aérea: André Vilas-Boas/ISA Figura 2- Foto aérea: Pedro Martineli, 1999 Dessa forma, a defesa do multiculturalismo vê-se fortemente atrelada à preservação ambiental, e corresponde a uma via de mão dupla. Se por um lado, o meio ambiente ecologicamente equilibrado é condição para a manutenção da cultura e da qualidade de vida dos povos, por outro, a proteção do estilo de vida tradicional beneficia a preservação da 34 O Parque Indígena do Xingu localiza-se no Mato Grosso e abriga 14 povos indígenas, somando 4.043 indivíduos (2002). Atualmente há uma grande preocupação relacionada com a ocupação desordenada que vem ocorrendo no entorno do parque. http://www.socioambiental.org/pib/epi/xingu/parque.shtm biodiversidade. São paradigmas que não cabem dentro de uma formatação individualista de direito, concebida para atender essencialmente conveniências capitalistas. Não devemos esquecer que, na perspectiva do filósofo Fritjof Capra, vivemos numa teia da vida, onde o conhecimento de nossa função específica, como co-habitantes de um só planeta e não como consumidores vorazes, tem sido preservado e ensinado por muitos desses povos tradicionais, com destaque para os índios nativos das Américas. A diversidade cultural dos povos indígenas e das demais populações tradicionais, portanto, está intimamente relacionada com a preservação da biodiversidade, que, em conjunto, representam um vasto patrimônio a oferecer para as presentes e futuras gerações. 3 Realidade multicultural: globalização, democracia e sistemas jurídicos diversos “Nuestra producción se llama artesanía, y la de ustedes es industria. Nuestra musica es folklore y la de ustedes es arte, nuestras normas son costumbres y las de ustedes son derecho.” De acordo com o exposto no capítulo anterior, pode-se dizer que o direito moderno fez uma opção clara no sentido de excluir não só os povos culturalmente diferenciados, como também a biodiversidade existente no planeta. No entanto, isso não significou o fim, pois ambos resistiram e, embora com perdas, foi-se estabelecendo uma ponte de diálogo com o sistema jurídico dominante. A abordagem nas constituições nacionais, a realização das convenções e reuniões internacionais sobre o tema foram resultados das ferramentas que os povos indígenas e tradicionais utilizaram para penetrar no sistema jurídico moderno. Na pós-modernidade eles buscam um reconhecimento mais efetivo de seus direitos, pois apesar das importantes conquistas já referidas e analisadas, persiste um déficit de cumprimento daquilo que se encontra escrito nos papéis. Diversos povos indígenas e outras comunidades tradicionais mantiveram, e, ainda, mantêm sua estrutura social e, porque não dizer, jurídica. Um dos dilemas atuais é fazer valer essas instituições, e caminhar para a concretização real do valor do multiculturalismo, e não uma acomodação superficial e formal de interesses, tão somente. 3.1 Multiculturalismo: um desafio contemporâneo O termo multiculturalismo passou a ser utilizado a partir da década de 1970,35 e significa a diversidade cultural existente na sociedade moderna em contexto mundial. Embora tenha sido esculpido dentro do período moderno, ele não está apegado ao seu tempo de formulação, de modo que é reflexo de uma dinâmica entre presente, passado e futuro. O passado do multiculturalismo, dentro do enfoque ora abordado, pode ser caracterizado pelo processo de colonialismo, e correspondente à exploração das Américas. A origem de muitos conflitos e de situações vividas ainda hoje remete à questão da violência cultural provocada por tais processos. O presente multicultural, por sua vez, poderia corresponder à conquista de vê-lo reconhecido como um valor para o sistema jurídico atual. Por fim, o futuro, está diretamente relacionado às atitudes em prol da concretização efetiva desse princípio na esfera social e política mundial. Apresenta-se, portanto, como um processo dinâmico e interativo, mesclando diferentes dimensões e contextos temporais. Bartolomé36 assevera que o multiculturalismo é, ao mesmo tempo, uma realidade empírica e, também, as valorações e práticas produzidas por essa realidade. Resulta imposible uma reflexión social sobre uma configuración multicultural, que no se interrogue sobre los procesos sociales involucrados y sus perspectivas de futuro. A la vez, la multiculturalidad no es ajena a las distintas posiciones de poder que manejam los diferentes grupos culturales, por lo que muchas veces la diferencia fue considerada sinónimo de desigualdad, y se creyó que suprimiendo la diferencia se aboliría la desigualdad, cosa que por supuesto jamás ocurrió. Na sua essência, a sociedade corresponde a uma fábrica de diversidade cultural, pois algo peculiar do ser humano é o desenvolvimento 35 JORNAL FOLHA DE SÃO PAULO de 17 de setembro de 2006. O racha do multiculturalismo. Artigo originalmente publicado no jornal francês “Le monde”. Tradução de Clara Allain. 36 BARTOLOMÉ, M.A. Processos interculturales, p. 116 e 119. de sua vida de diferentes formas, que se interpenetram e coexistem - segundo Gray,37 isto é um fato inalterável. Quanto maiores e mais complexas se tornam as sociedades, mais aumentam os contatos culturais e suas tensões, decorrentes da miscigenação e do intercâmbio existentes. Os conflitos de valores são tipicamente humanos e não podem ser superados, e sim, ajustados. Assim sendo, a diferença apresenta-se como um componente estrutural da vida social, um dado fático, e não uma etapa que deve ser ultrapassada como se fosse uma anomalia ou uma doença. Reconciliar-se com o multiculturalismo, talvez, seja um dos maiores desafios contemporâneos. ...deberemos acostumbrarnos a lo particolare, a vivir con y en la divesidad, la aceptemos o no como un valor. Y es este mismo aserto lo que hace asombroso que el pensamiento político se haya llevado tan mal con la diversidad cultural. En el caso de la teoria política de raigambre liberal que se ha extendido sobre esa gran porción de la humanidad que llamamos Occidente, la relación con la diversidad ha sido francamente desastrosa: una historia de negación y menosprecio de la primera hacia la segunda. Evidentemente, se requiere una visión política distinta, reconciliada con la diversidad.38 (grifos no original) A proposta de igualdade forçada, ou a proclamação de um único modo de vida para a humanidade não prosperou; o multiculturalismo, ao invés de ser encarado como um problema, deve ser assumido enquanto tal, e impulsionar a construção de um novo paradigma para as relações sociais. No entanto, esse movimento se dá dentro de uma postura emancipatória, e não como mais uma forma de assimilação capitalista. O multiculturalismo que pretende descrever as diferenças culturais, nem sempre está ligado a uma noção libertária. Pode muito bem ser interpretado, e assim muitas vezes o é, por concepções eurocêntricas39 de cultura, segundo parâmetros estéticos e valores econômicos, morais, sociais 37 Apud DÍAZ-POLANCO, H. Elogio de la diversidad, p. 15. DÍAZ-POLANCO, H. Elogio de la diversidad p. 17. 39 Expressão utilizada por NUNES, J. A.; SANTOS, B.S. Introdução: para ampliar o cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade. In: SANTOS, B.S. (org.). Reconhecer para libertar, p. 27. 38 ou cognitivos universais, que classificam e elegem a importância de uma determinada cultura em detrimento da outra. Nessa seara, é preciso refletir não somente acerca de se realizar ou não o multiculturalismo, mas, principalmente, em como concretizá-lo. As discrepâncias de desenvolvimento econômico em escala global provocam muitos debates acerca da possibilidade ou ameaça de assimilação da cultura pelo fator econômico. A mercadorização do elemento cultural, através da inserção de uma lógica neocolonial, deve ser lembrada como mais uma provável reprodução das desigualdades e a manutenção da subordinação, por tanto tempo vivenciada pelos povos culturalmente diferenciados. 3.2 Globalização contra-hegemônica Se por um lado, a globalização provoca a uniformização da cultura e mecanismos de pressão econômica sobre os povos, ela também pode ser utilizada em prol da consagração de novos paradigmas emancipatórios. A promessa de que a globalização significaria a generalização do bem-estar econômico e da equidade social não se confirmou e, ao contrário, as desigualdades em diversos âmbitos aumentaram ao longo das últimas décadas, colocando em risco a própria sustentabilidade humana40. Ao lado disso, há um forte processo de uniformidade cultural e a proclamação de padrões culturais únicos e superiores, de forma que se chega a afirmar que a globalização não passaria de um termo inventado pelos países ricos, economicamente, com a finalidade de dissimular suas práticas de avanço econômico em outros países41. Nessa perspectiva, há uma tendência em escala mundial, no sentido de caminhar-se para uma noção alternativa e contra-hegemônica de globalização, “constituída pelo conjunto de iniciativas, movimentos e organizações que, por intermédio de vínculos, redes e alianças locais/globais, lutam contra a 40 41 DÍAZ-POLANCO, H. Elogio de la diversidad, p. 9. Ibid., p. 10. globalização neoliberal mobilizados pelo desejo de um mundo melhor, mais justo e pacífico que julgam possível e a que sentem ter direito.” 42 Assim, o processo de globalização, cria novas demandas provenientes da transnacionalização econômica, colocando as culturas em maior contato umas com as outras. Se por um lado ocorre a dominação hegemônica, por outro há o diálogo e o questionamento do modelo de imposição monocultural e a homogeneidade capitalista. São fatos paralelos que ocorrem simultaneamente e vão redesenhando o sistema. A identidade coletiva é reacendida diante das ameaças de suprimi-la, o que proporciona uma construção contra-hegemônica da globalização. Da mesma forma, como os países desenvolvidos influenciam o modo de vida dos demais povos, através do mercado, o efeito inverso também acontece, e ainda que não tenha a mesma potência do capital, um pensamento diverso do dominante vem sendo estabelecido. Observe-se que até mesmo a aceitação contemporânea do termo multiculturalismo foi, também, fruto do processo social de migração planetária Sul-Norte, em que a suposta homogeneidade cultural do império foi ameaçada pela chegada de contingentes populacionais provenientes de países empobrecidos 43 , algo comum e muito marcante nos grandes centros urbanos mundiais. Os movimentos em prol da preservação ambiental e da diversidade cultural, em âmbito mundial, têm se articulado na defesa de uma globalização não-hegemônica, e são importantes elementos num cenário de abertura do direito e da política. Mas, essa nova concepção, voltada ao coletivo, somente tem lugar num âmbito democrático e participativo. 3.3 Democracia e diversidade na sociedade contemporânea Embora a tendência capitalista de homogeneização sociocultural tenha prevalecido em algumas partes do mundo, ela não conseguiu abafar por 42 NUNES, J.A.; SANTOS, B.S. Introdução: para ampliar o cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade. In: SANTOS, B.S. (org.). Reconhecer para libertar, p. 13-14. 43 BARTOLOMÉ, M.A. Processos interculturales, p.115. completo as diferenças, e a utopia igualitária44 não logrou seu objetivo final, o que, na verdade, significara uma imposição cultural. Apesar de todo o esforço do poder dominador, a sociedade contemporânea é essencialmente complexa e diversa. Sua compreensão implica na aceitação do pluralismo em vários planos. Constata-se a olhos nus, que a diversidade existe e sempre existiu em todos os setores, quer da vida humana ou da natureza. São cinco raças humanas, de diferentes cores, que possuem diferentes sentidos (visão, tato, olfato...), e se espalham por cinco grandes continentes, os quais contêm uma infinidade de relações, baseadas em diferenças (religiões, climas, solos, idiomas, animais, plantas, máquinas, ideologias, etc). Por essa razão, conclui-se, que parece existir uma certa racionalidade no universo, que tem por base uma diversidade intrínseca, contra a qual seria inútil relutar. Talvez, seja por isso que o mito simplista da igualdade entre todos tenha falhado. O princípio foi reavaliado diante do reconhecimento gradativo da diversidade na sociedade pós-moderna. Atualmente, busca-se a edificação de “uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza desigualdades” 45. A diversidade, no entanto, nem sempre é aceita na sua plenitude. Principalmente, em se tratando dos direitos culturais, percebe-se que as sociedades toleram a diferença, a existência do “outro”, mas não o aceita verdadeiramente como ele é. Dentro do espírito liberal de respeito e tolerância, em que o direito à liberdade e à igualdade de todos perante a lei é meramente formal, há uma recusa em aceitar o “outro” por completo. Nesse sentido, existe uma lógica de violência implícita no seu aspecto político 46. 44 CITTADINO, G. Pluralismo, direito e justiça distributiva, p. 75. NUNES, J.A.; SANTOS, B.S. Introdução: para ampliar o cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade. In: SANTOS, B.S. (org.). Reconhecer para libertar, p. 43. 46 KOZICKI, K. A política na perspectiva da filosofia da diferença. In: OLIVEIRA, M. (org.). Filosofia Política Contemporânea, p. 142. 45 Essa conjuntura gera a necessidade de estabilização, através de regras, convenções e atos de poder, para que assim, o almejado controle social seja concretizado. Mas, efetivamente, essas tensões existem, são fáticas, e, não raras vezes, elas se chocam em interesses, não somente diversos, mas opostos. Nessa seara, o direito entra em cena, exercendo um duplo papel: o primeiro, de regulação social ou resolução de conflitos; e o segundo, de possibilidade para a concretização de novas reivindicações. A sociedade plural não permite mais uma única voz, uma estrutura centralizada e dominante. Talvez, uma das principais conseqüências da derrota socialista, foi uma crença superficial de que não é possível construir algo para além do capitalismo. O socialismo utópico teve a missão e o mérito de desejar um mundo melhor, superar a razão do capital frio e explorador. Então, ele se vê derrotado, mas o capitalismo se reformula, socializa-se, um pouco que seja. Viu-se, então, o surgimento do Estado-Providência, período que o sociólogo Boaventura de Sousa Santos47 chama de “a segunda fase do capitalismo” ou “capitalismo organizado”. Em seqüência, num terceiro momento, ele vai se desorganizando, enfrenta diversas e sucessivas crises, criando, assim, um campo fértil para o afloramento dos movimentos sociais em busca da afirmação de novos direitos. A falsa crença que surgiu com a queda do bloco socialista, de fim das lutas e da história, não se realizou, e houve apenas uma mudança qualitativa dos conflitos que passaram a ser ainda mais étnicos e culturais. Vale ressaltar, entretanto, que por mais erros que tenham cometido os liberais, a democracia triunfou junto com eles. E ela, certamente, é o palco onde, atualmente, se podem sustentar idéias multiculturais. A democracia corresponde ao espaço que permite o debate para o seu próprio e contínuo aperfeiçoamento. 47 SANTOS, B.S. Pela mão de Alice, p. 86. Isto implica, entretanto, numa abertura total da democracia, que não pode mais se dar ao luxo de encerrar-se na mera representatividade, baseada apenas no conquistado direito ao voto. É preciso ir mais além, ou seja, necessário se faz radicalizar a democracia. Nesse sentido Boaventura de Sousa Santos48 assevera que: O capitalismo não é criticável por não ser democrático, mas por não ser suficientemente democrático (...) A renovação da teoria democrática assenta, antes de mais, na formulação de critérios democráticos de participação política que não confinem esta ao acto de votar. Implica, pois, uma articulação entre democracia representativa e a democracia participativa. Para que tal articulação seja possível é, contudo, necessário que o campo do político seja radicalmente redefinido e ampliado. (grifo nosso) É preciso agir em prol de direitos supra-individuais, provocando um pluralismo social realmente combativo. Antes de ser visto como uma ameaça, ele deve ser entendido como a própria condição de existência de uma democracia participativa49. Combativo, no sentido de lutas emancipatórias, que não cabem mais dentro da formatação capitalista, ocidental e pretensamente universalista. A América Latina corresponde a um celeiro para experiências democráticas e plurais, tendo em vista sua rica miscigenação cultural, ao lado de uma imensa natureza ainda preservada. Sendo assim, percebe-se que as lutas democráticas podem ser aqui facilmente coordenadas: os movimentos étnicos (indígenas, de afrodescendentes, etc), o movimento ambiental, de gênero humano e outros. Toda essa gama de lutas demonstra que, tanto a dominação quanto a resistência, se fazem através de diversos eixos, e reflete-se em condições que permitem o debate acerca de uma renovação da teoria democrática. O Direito apresenta-se como uma ferramenta que permite a consolidação desse novo projeto de sociedade, mas para isso ele precisa também ser repensado à luz de um horizonte transformador. 48 49 Ibid., p. 270 e 271. MOUFFE, C. O regresso do político, p. 23. 3.3.1 Lutas democráticas socioambiental entrelaçadas – o movimento O panorama de uma sociedade plural e democrática permite que diversos segmentos encontrem os seus espaços na forma de lutas emancipatórias e, não há como negar que o direito é um norte para todas elas. Mas, para a concretização desses novos ideais, muitas vezes, é preciso a articulação política entre eles, como propôs Chantal Mouffe50. Essa união de movimentos permite que ganhem mais força e que suas vozes sejam facilmente ouvidas, uma vez que o capital é organizado globalmente e a esfera econômica encontrou formas de dominação intercontinentais. Um exemplo dessa articulação conjunta é a união dos movimentos social e ambiental no Brasil. O socioambientalismo brasileiro – tal como reconhecemos e identificamos – nasceu na segunda metade dos anos 80, a partir de articulações políticas entre os movimentos sociais e o movimento ambientalista. O surgimento do socioambientalismo pode ser identificado com o processo histórico de redemocratização do país, iniciado com o fim do regime militar, em 1984, e consolidado com a promulgação da nova Constituição, em 1988, e a realização de eleições presidenciais diretas, em 1989. (...) A consolidação democrática no país passou a dar à sociedade civil um amplo espaço de mobilização e articulação, que resultou em alianças políticas estratégicas entre o movimento social e ambientalista. Na Amazônia brasileira, a articulação entre povos indígenas e populações tradicionais, com o apoio de aliados nacionais e internacionais, levou ao surgimento da Aliança dos Povos da Floresta51, um dos marcos do socioambientalismo.52 No engajamento pela defesa dos povos culturalmente diferentes percebeu-se a existência de um importante fator nesse contexto: o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, como uma das condições para a manutenção da cultura e da qualidade de vida das comunidades tradicionais. Assim, as reivindicações emancipatórias se completaram. 50 MOUFFE, C. O regresso do político, p. 33. Chico Mendes foi o principal líder deste movimento do qual também se destacou Marina Silva, a atual Ministra do Meio Ambiente. 52 SANTILLI, J. Socioambientalismo e os novos direitos, p. 31. 51 A proteção do meio ambiente destaca-se entre os principais movimentos dos últimos tempos, e representa uma importante arma na luta pela criação de uma sociedade plural, mais justa e solidária. Por confrontar o pensamento liberal clássico de exploração dos recursos naturais, alia-se constantemente às demandas por novos direitos sociais, tais como os direitos culturais. Unidos, visam contrapor-se ao estado de coisas atual e surge a concepção dos novos direitos socioambientais. Como bem salienta Souza Filho53, “as questões ambientais e culturais se misturavam de forma célere, na compreensão de que a cultura não subsiste num ambiente hostil, e não há nada melhor para preservar o ambiente do que uma cultura a ele adequada”. Os direitos socioambientais são todos aqueles bens ou interesses essenciais para a manutenção da vida de todas as espécies (biodiversidade) e de todas as culturas humanas (sóciodiversidade)54. Portanto, traz uma noção de sustentabilidade da vida de uma maneira geral: seja a vida natural ou biológica como também as formas de vida humana que se desenvolvem através da cultura. A luta por esse novo direito, inscreve-se numa dimensão coletiva, baseada no pluralismo, na tolerância, nos valores locais, e também, rompe com a lógica excludente do Estado moderno e a pretensão de um direito único que, nitidamente, serve ao sistema econômico dominante. 3.4 Para além do direito positivo O direito, nesse contexto, começa a ser considerado como instrumento para a libertação, e não somente ligado à função de conter os conflitos sociais. Para isso é necessária a reformulação do sistema, no sentido de proporcionar essas novas possibilidades democráticas. E, uma tentativa é, certamente, a visão do direito a partir da perspectiva do pluralismo jurídico. 53 SOUZA FILHO, C.F.M. Introdução ao direito socioambiental. In: LIMA, A. (org.). O direito para o Brasil socioambiental. p. 25. 54 Ibid., p. 38. Em particular, muitos povos indígenas possuem um sistema jurídico próprio, baseado no direito consuetudinário que tem por fonte seus costumes e tradições. O direito positivo, no entanto, não considera esses sistemas jurídicos diferenciados como sendo direito, pois não têm a segmentação e categorização que tem o positivismo. Ou seja, por não haver uma instituição centralizada, emanando normas e com real capacidade de coerção, não se acredita estar diante de um direito. Para a tradição jurídica que deriva da família romano-germânicacanônica o lugar ocupado pelo direito consuetudinário sempre foi considerado marginal, no máximo fonte, um pré-direito. A teoria positivista tende a separar em zonas bem distintas o que é direito e o que não é. Kelsen e Hart são autores que representam fortemente este pensamento, e se referem sempre a um direito primitivo ou rudimentar, pois eles não teriam um mecanismo de criação e modificação de normas, nem a separação formal entre usos, moral e direito55. Essa concepção é tipicamente ocidental, e conforma os interesses civilizatórios de algumas nações consideradas melhores em relação às outras, e que, portanto, elas teriam a missão de ensinar ou propagar a forma correta de sociedade, logo, a de direito também. Sendo assim, o conceito de direito atrelado à cultura positivista é visto como o ideal, devendo então ser universal. Quando há o contato com outras culturas, logicamente, percebe-se que não existem as mesmas categorias e instituições presentes no direito moderno e, numa típica postura de arrogância cultural, se nega a elas qualquer reconhecimento ou forma de um direito próprio. Foi exatamente isto que aconteceu quando as metrópoles européias contataram as civilizações indígenas na América Latina. Apesar de serem 55 BALLÓN AGUIRRE, F. Sistema Jurídico Aguaruna y positivismo. In: ITURRALDE, D.; STAVENHAGEN, R. Entre la Ley y la costumbre, p. 126. altamente especializadas em diversas atividades56, e de possuírem estruturas jurídicas e sociais próprias e organizadas, o colonizador as desconsiderou completamente, e atribuiu-lhes, apenas, a denominação de costumes, tradições, mas nunca de direito. Essa concepção hegemônica aos poucos vem sendo modificada numa árdua batalha travada contra as concepções universais e positivistas, ainda muito marcantes no campo jurídico. Apesar de diferente, os povos indígenas possuem um sistema de direito que não merece ser desqualificado por não apresentar as características ocidentais. Se ele é realmente eficaz em suas bases sociais, por que então não aceitá-lo como direito? Talvez, o maior responsável por esta negação seja sempre o temido receio de revolução política que ele possa causar, mas não se pode mais esperar de um Estado latino-americano o não reconhecimento a esses povos da autodeterminação, o que inclui a aceitar suas instituições, sob pena de se cometer ainda mais violência, dando continuidade ao processo de supremacia de uma cultura em detrimento das outras, o que viola frontalmente os próprios fundamentos jurídicos constitucionais hodiernos. Para exemplificar a diversidade cultural dos povos serão analisados dois sistemas jurídicos e sociais indígenas: o tukano e o kuna, com o intuito de demonstrar e reforçar a existência do pluralismo e a necessidade de proteção dessas estruturas diferenciadas, para a verdadeira realização do multiculturalismo e preservação da biodiversidade na sociedade contemporânea. Os dois povos viveram distintos processos históricos e detêm relações muito diferentes travadas com o Estado do qual fazem parte geograficamente. 56 Haja vista o exemplo da civilização asteca que tinha conhecimentos vastos sobre construções, uso de metais preciosos, cestarias, cerâmica, tapeçaria e um comércio também bastante desenvolvido. (Museu Nacional de Antropologia: México-DF). Ressalte-se que o uso da expressão civilização não se dá no sentido de fenômeno urbano nem a partir de uma concepção evolucionista, como sendo o patamar mais alto que uma cultura pode chegar. Significa portanto um complexo cultural formado pelo conjunto de várias sociedades com tradições culturais compartilhadas em uma área extensa e com uma certa importância cronológica (BARTOLOMÉ, M. A. Procesos interculturales, p.164 e 165). Por isso eles foram escolhidos, para justamente dar uma dimensão da variedade de possibilidades do multiculturalismo em nossa sociedade. 3.5. A sociedade e o sistema jurídico tukano57 O povo tukano vive na Amazônia brasileira e colombiana, localizado no alto do rio Negro (noroeste amazônico), na região do rio Papurí, que faz a divisa entre os dois países e, também, próximo aos rios Paca, Tiquié, baixo Vaupés e seus pequenos afluentes. No Brasil, a sua população é de aproximadamente 6.241 pessoas, falando o idioma tukano - uma língua isolada que não faz parte de nenhum grande tronco lingüístico58. As aldeias tukano são distribuídas em malocas, habitações multifamiliares tradicionais, aonde podem viver até quatorze famílias pertencentes ao mesmo clã. As malocas representam uma dimensão importante de poder para os tukano, e é a partir dela que se desenvolve sua organização social, ritual, política e econômica. Figura 3 – Maloca Kuebi do Rio Kuduari, chamada Surubinóca. Foto: Kock-Grünberg, 1904, ISA. 57 SIMMONDS, C.; GARCÍA, L.; SJOBERG, H. Sistemas Jurídicos Tukano, Chamí Guambiano y Sikuani. p. 13-98. 58 RICARDO, B.; RICARDO, F. Povos indígenas no Brasil 2001/2005. São Paulo: ISA, 2006. p. 63. Cada maloca abriga um clã diferente e tem suas relações baseadas na reciprocidade. Possui uma maneira própria de ser construída como símbolo da prosperidade familiar e da procriação. Internamente também são distribuídas ordenadamente, segundo a idade dos filhos e as disposições familiares. As missões católicas que desde há muito tempo têm contato com o povo tukano vieram pouco a pouco influenciando a cultura, através da construção de casas individuais para cada núcleo familiar, mas, mesmo assim, o povo tukano ainda reproduz a estrutura da maloca dentro dos vilarejos construídos pelos missionários. A acumulação de bens para os tukano é uma conduta altamente anormal, e somente observada fora da comunidade, razão pela qual nem se considera sua penalização. É uma conduta de “behkasa” (brancos). Acumular está fora do contexto cultural tukano e só ocorre quando da realização de festas. O prestígio para o povo tukano é a boa saúde, uma maloca bonita, alimentação suficiente em termos de caça e pesca, hortas bem cultivadas e uma convivência harmônica entre os jovens e adultos. A finalidade da cultura e das tradições é alcançar o bem-estar da sua gente e a felicidade de todos. 3.5.1 Poder, ética e direito A concepção de poder dos povos tukano está representada pelo “oake” que é a base fundamental, o equilíbrio e bem-estar de todos. Tal força tem três dimensões: a primeira se trata da presença abstrata dos poderes no macrocosmo; a segunda é a institucionalização dos poderes no ser humano, através dos mitos que determinam a prática cotidiana; e a terceira representa o comportamento pessoal e social devido, para a obtenção da finalidade da cultura, possibilitando a manutenção da ordem que permite a reprodução do poder. Estas dimensões explicam a ética tukano e remetem às formas de normatividade e controle social. O ordenamento jurídico tukano, do ponto de vista estrutural, é uma articulação entre um subsistema segmentário, trabalhando em alguns casos com a compensação; e um outro independente e paralelo que é o sistema mágico-religioso. O subsistema segmentário tem um caráter humano, visando que as faltas cometidas pelos homens sejam resolvidas por eles mesmos, visto que se encontram num mesmo nível. Já o sistema mágico-religioso se apresenta como conseqüência das forças do poder abstrato, superior, e não personalizado, que pode afetar os homens e o meio, mas é independente da vontade deles. No primeiro caso (aspecto humano), duas éticas se apresentam como complementares: a ética de obrigações acerca da organização entre os próprios homens e a ética da relação entre o homem e a natureza. São padrões de comportamento social por um lado, e por outro, um conjunto de proibições em relação à natureza que disciplinam a vida comunitária. A coesão dessas éticas se dá pela tradição mística e se refletem em atitudes, fatos, procedimentos, sanções e ordens. O sistema segmentário é o dominante em termos de controle social, visto que o mágico-religioso é autônomo e paralelo, proveniente do poder do firmamento e que não se mistura com o anterior. 3.5.1.1 Autoridades tukano O “mami” é a autoridade intelectual e espiritual, sendo escolhido pelos membros da maloca, por consenso, entre aqueles da linhagem específica. Deve possuir características de prudência e capacidade de organização suficiente para saber dirigir a comunidade, de acordo com as normas dos antepassados. Não necessariamente o “mamí” será o dono da maloca, mas ele é quem determina a produção, aprova as determinações, etc. Existem três linhas de autoridades tradicionais: a vertical, a horizontal e a da especialidade. Cada categoria possui subdivisões características, por exemplo: o organizador, o pensador, o guerreiro, o curandeiro e assim por diante, sempre dentro da noção de hierarquia. Trata-se de um sistema bastante segmentado em que não se verifica a centralização do poder. O “mamí”, por mais que seja o principal líder, não o é da comunidade inteira, e sim, de uma determinada maloca, de forma que existem vários “mamí” com igual poder na sociedade tukano. As pessoas podem se defender das autoridades tradicionais que cometam abusos, de duas formas: ou através da crítica social, ou a troca da autoridade, seguindo a hierarquia correspondente. Dessa forma, há um fomento para o desempenho de um bom governo. As relações administrativas e o exercício da autoridade dos “viog” (chefes) seguem a tradição mítica, e são fortalecidas e incrementadas através da realização de grandes festas e ritos. Essas reuniões tradicionais abrangem mais de uma maloca (duas ou três) e, também, pessoas aliadas podem ser convidadas. Dizem os tukanos que antes da chegada das missões e da penetração branca, essas festas eram muito maiores a ponto de reunir todas as pessoas da região, ocasião em que se faziam trocas, distribuições, praticavam a reciprocidade, a aproximação das linhagens e resolução dos conflitos, enfim, a manutenção da tradição. Hoje em dia, existe uma carência de reuniões tradicionais deste tipo. Existem algumas organizações regionais tukano, determinadas por unidades geográficas, que têm um caráter político, e foram concebidas especialmente para intermediar as relações com o Estado e a sociedade envolvente, bem como administrar os recursos estatais. No entanto, tais organizações não possuem o caráter de tradicionais, e enfrentam alguns impasses com relação à legitimidade, visto que, muitas vezes, jovens envolvidos com a sociedade nacional são os seus líderes e, em alguns casos, pode haver contradições com o setor tradicional. 3.5.2 Relações com a terra, herança e produção A relação do povo tukano com a terra é de propriedade comunitária, em que diversas famílias convivem e cada qual possui uma porção do terreno, onde se fazem as próprias plantações – chamadas de “chagras”. Eles trabalham com quatro ou cinco “chagras”, visto que fazem o rodízio para o descanso da terra. A produção é familiar e dividida por sexo e idade. Dependendo da atividade a ser realizada, os trabalhos podem ser individuais ou coletivos, com a participação de ambos os sexos e de grupos associados, também. Existe o direito de herança sobre os bens do lugar da residência, mas a propriedade familiar não se transmite a um só membro, é passada a todos e fica sob responsabilidade do irmão maior. Não se pode vender ou arrendar a terra, pois, dentro da cosmovisão, ela é considerada sagrada e o que existe é apenas o direito de possuir aquele território ancestral, direito este que é também dos animais e de outros povos. A relação aproxima-se do instituto do usufruto. O modo, no entanto, de apropriação de um dado território dá-se pela ocupação na sua forma etnohistórica de migração do povo tukano. Também, pela herança, hospitalidade, ou o direito de aliança matrimonial e doação entre pais e filhos vivos. Não existem títulos para comprovar a propriedade e a tradição em caso de doação se dá através da anuência do “mamí”, que apenas reconhece aquele direito como resultado do mandato dos mitos. Podem ser feitas consultas ao “mamí”, que dá oportunidade de controvérsia para as pessoas que se considerarem lesionadas, no caso de repartição de território. Vale ressaltar que a estrutura social dos tukano é bastante segmentaria, e a concepção de direitos territoriais está baseada em áreas autocontidas, mas não segregadas. Muitos povos59 fazem parte da matriz familiar tukano que é multiétnica, e o seu conjunto representa uma organização social complexa. Na região da bacia do rio Uaupés, por exemplo, há uma grande convergência exogâmica entre grupos afins, que falam diferentes línguas. Isso resulta num dinamismo multilingüístico em que, numa mesma comunidade, muitas vezes, se fala mais de uma língua indígena, além do português e do espanhol. 3.5.2.1 Meio ambiente e biodiversidade A relação tukano com a natureza está envolta em considerações de ordem ética e moral. Ao contrário do homem branco, eles não se apropriam dos recursos naturais como um direito máximo e indiscutível; compreendem que a vida e os alimentos somente existem devido ao poder do universo, logo não há o sentimento de apropriação e sim de consideração. Eles julgam o homem um ator de destruição que precisa ter consciência disso, e assim, respeitar a selva com maneiras certas de atuar e proibições típicas para o depredador. Isso faz com que seus territórios sejam ricos em biodiversidade, pois o uso do recurso natural é controlado, visando a sua não escassez. Percebe-se aqui uma conduta ambiental disciplinada e orientada como uma verdadeira legislação. Para citar exemplo de algumas regras, os povos tukano e maku acreditam em “boraró”, uma entidade sobrenatural que multiplica e protege os animais de caça. Sendo assim, é proibido apenas machucar o animal, pois “boraró” desaprova essa conduta e pune o culpado posteriormente 60. Deve-se ter cuidado na caça para não ferir os animais sem que eles depois possam servir de alimento. Também, é proibido caçar um número de animais de cada espécie que seja superior ao necessário para o caçador e sua família; se assim o fizer virá represália (sistema mágicoreligioso), podendo adoecer todos os que consumiram a carne ou seus filhos. 59 60 Bará, barasano, piratapuyo, tuyuca, makuna, taiwano, e outros. POZZOBON, J. Vocês, brancos, não tem alma, p. 44. São princípios e regras bem distintas da cultura capitalista predominante, de exploração da natureza segundo parâmetros meramente econômicos, embora nas últimas décadas tenha havido uma tendência, ainda que incipiente, de sustentabilidade ecológica. 3.5.3 Obrigações, contratos e comércio Com relação a obrigações e contratos, o povo tukano baseia-se na reciprocidade. Os trabalhos de construção de malocas, abrir caminhos, roçados, plantações é feito pelo critério de tratamento mútuo e da retribuição como, por exemplo, quando da inauguração de uma maloca nova, os moradores oferecem uma festa e isto representa um sinal de reciprocidade que é uma conduta contínua e rotineira, entre os membros, de sempre repartirem e redistribuirem o bem ou o trabalho recebido. Muitas vezes, a rede de reciprocidade pode ser conduzida pelos “mamí”, que distribuem as tarefas e fazem os acordos entre as malocas, como, por exemplo, pescar para tal família ou construir outra maloca em determinado lugar, ou uma canoa etc. O mecanismo de repressão ao não cumprimento das obrigações é a crítica ou a sanção social, que representa o isolamento da (s) pessoa (s) que não cumpriu a obrigação e até mesmo, dependendo da situação, a retaliação pode incluir toda a linhagem familiar. Os contratos de maneira geral são baseados no conceito de troca de bens, que se realiza de maneira comutativa e concomitante, sem a intervenção de um meio de pagamento como o dinheiro ou algo que lhe faça as vezes. Essas trocas, como contrato comutativo, podem ocorrer em zonas específicas de intercâmbio, que se dá entre os próprios tukano ou com outros povos também. As trocas dividem-se em três categorias: a do comércio próximo; de bens essenciais, como remos, cestarias, cerâmicas pequenas, bancos, etc; a do comércio distante, de bens escassos ou de luxo, como plumas, dardos e demais objetos leves, fáceis de transportar e de alto valor cultural; e a do comércio silencioso, especificamente com o povo maku, que seria um tipo de trocas monetárias ilegais. Com a drástica influência cultural que os povos indígenas de maneira geral vêm sofrendo há anos, houve uma monetarização da economia tradicional tukano, proveniente de seu contato com grileiros, missionários, comerciantes e garimpeiros. Pela regra cultural, é proibida a aquisição de bens tradicionais entre indígenas e, também, o empréstimo de dinheiro. Esse comércio geralmente é praticado por membros do povo tukano que são assalariados de comerciantes, instituições do Estado ou de ONGs que trabalham na região, e não possuem tempo para as atividades tradicionais. A sanção por parte da comunidade é o repúdio, concretizado através da crítica social. Na verdade, vive-se uma contradição entre os setores tradicionais e os indígenas assalariados que se afastaram da vida comunitária. Já com os brancos, é possível haver compra e venda e o uso do dinheiro. Os tukano vão aos povoados e levam pescados, caças, farinha, mandioca, cestarias, e os vendem por dinheiro que utilizam para comprar roupas, munições, anzóis, nylon, sal, fósforo, etc. As vendas se realizam nas ruas ou em lojas dos brancos. Não existem lojas do povo tukano, pois eles entendem que isto romperia os círculos de redistribuição e reciprocidade existentes entre as malocas. 3.5.4 Direito de família As regras de direito de família entre os tukano transcendem à família nuclear pai, mãe e filhos, para abranger toda a consangüinidade e as alianças matrimoniais. As obrigações familiares consistem em visitas dos parentes biológicos da mesma linhagem às malocas, em que se devem levar presentes como pescado, caças, farinha, frutas, mantendo, assim, os ciclos de reciprocidade e de ajuda mútua. Não é obrigatório cumprir estas tarefas, mas são normas consideradas importantes pela tradição cultural. As relações conjugais têm por base a harmonia e deve refletir a perfeição do macrocosmo. Os casais devem viver bem, entender-se, não se agredir e, assim, concretizar a harmonia e o amor. Não existe divórcio entre casais tukano com filhos, pois estes são considerados sagrados e de grande importância, visto que representam a esperança de reprodução da organização social tukano. O direito de separação apenas ocorre caso haja infertilidade do casal. Homens e mulheres possuem obrigações distintas com relação à família. As funções do homem são: caçar, pescar, coletar frutas, prover a lenha, fazer a cestaria, as canoas, os bancos, construir e fazer a manutenção da maloca e, também, ensinar aos filhos as atividades tradicionais. As funções da mulher são: semear, colher, cozinhar, recolher água limpa, cuidar do marido e dos filhos, repartir a comida e ensinar as atividades tradicionais a suas filhas. 3.5.5 Questão penal e processo Na questão penal, existem algumas situações que podem ser consideradas como tipificadas, mas não significam que sejam escritas, visto que os tukano não têm esta prática. São figuras típicas porque há histórico dessas violações na comunidade, assim como há outras condutas que não existem para eles, e são comuns na sociedade envolvente, tais como seqüestro, bigamia, estupro e outras. Algumas condutas consideradas criminosas são: rebelião contra os costumes (geralmente praticada por pessoas que se afastaram da vida comunitária), ataque à autoridade “mamí” (com pena variada se o agressor está sóbrio ou bêbado), falso testemunho (mentira), fuga ou abstenção de cumprimento de obrigação, bruxaria, contaminação, acumulação, exploração indevida de recursos naturais, homicídio, furto, lesão e outros. A responsabilidade criminal é pessoal estando o molestador obrigado a responder pelo dano; se o prejuízo for pequeno ou involuntário não há responsabilização. Aqui há uma diferença com relação à mencionada dualidade jurídica tukano. Pelo sistema segmentário em que predomina a ética humana, os homens mesmo resolvem as sanções, ou através de negociação e compensação entre a própria vítima e o ofendido, ou mediante a intervenção das autoridades (“mamí”). Já pelo sistema mágico-religioso, a violação das proibições acarreta procedimentos autônomos, geralmente ligados às enfermidades frente à liberação descontrolada de poder do macrocosmo. Não existe pena privativa de liberdade. O castigo corporal pode ocorrer, sendo geralmente leve e pouco usual. As penas são preexistentes e, embora, não determinadas quanto à quantidade e à freqüência, são decididas pelas autoridades no momento do julgamento. As sanções do sistema segmentário podem ser pessoais ou sociais, algumas delas são: a) a expulsão e impossibilidade de convivência comunitária – no caso de homicídio é aplicada a toda a família, também é cabível ao ladrão reincidente, ao falsário e a quem causa lesões pessoais graves. Esta pena é mais grave e é aplicada pela autoridade “mamí”; b) a crítica – para aqueles que atacam a autoridade por embriaguez, prostituição e bruxaria, aplicada por parte do ofendido; c) advertência grave de autoridade – para ataque doloso à autoridade, aplicada pelo ofendido; d) desprezo – reincidente em furto ou em mentiras; e) açoite – flagelação por homicídio culposo ou lesão pessoal; f) destruição – direito do ofendido de destruir objetos do ofensor, tais como canoas, redes de pesca, remos, etc. g) rechaço – perda de identidade tukano, impedimento de retorno ao território ancestral. É aplicada pelo conjunto da comunidade ofendida, podendo ser ordenada pelo “mamí”. A compensação é praticada por meio da restituição, em caso de furto, com o mesmo bem; o próprio agredido solicita ao agressor que lhe compense o dano causado. Quando a compensação é grande os irmãos do ofensor ajudam a pagar, como uma obrigação de reciprocidade frente a ele, e não com relação ao ofendido. O “mau desejo” aplicado por parte do ofendido é sempre uma ameaça para aquele que se abstenha de cumprir a pena ou não pague a compensação. As penas ou sanções-conseqüências do sistema mágico-religioso consistem em represálias mútuas que são as enfermidades, erosão, desolação, provocadas pelo poder abstrato. Para os tukano não existe qualquer personificação do poder religioso, ele está disperso e, portanto, não faz parte da cultura venerar deuses, espíritos, fazer orações, adorações etc. Eles acreditam na manutenção do equilíbrio e da força que provém do cosmos e é recebido diretamente pelos seres da terra. Há casos de inimputabilidade para os alienados mentais, loucos, ébrios e as crianças. De maneira geral, as condutas inadequadas dentro da sociedade tukano sofrem uma certa punibilidade natural ou social, que nem sempre resulta de uma decisão direta, ou seja, há uma forma socializada de repressão para as condutas que desagradam as tradições comunitárias. As pessoas procuram se conduzir de maneira adequada para evitar a crítica que atinge seu estado pessoal e, dependendo do caso, familiar. Os processos de investigações de algo considerado irregular começam com uma combinação de testemunhos e indícios que se operam através de perguntas, e o seu conjunto é averiguado por quem exerce o poder, no caso o “mamí”, em se tratando de conflitos no âmbito da mesma maloca. Caso estejam envolvidas diversas unidades residenciais, cada qual investiga o seu lado, e depois, faz-se uma reunião conjunta dos “mamí” correspondentes para se chegar a uma decisão final. Não existem recursos no sistema procedimental, os tukano consideram o conceito de “ahpoke”, isto é, resolvido. Uma vez que o assunto foi levado à esfera investigatória e decidido conforme a tradição, são considerados terminados, não cabe reclamação posterior, embora haja a apreciação constante do “mamí” em relação às atitudes dos envolvidos. Poderá haver uma reconsideração das contradições na prática, mas por outros motivos, diferentes do que já fora resolvido 61. 3.6. Sociedade e autonomia kuna62 O povo kuna está localizado em quarenta pequenas ilhas no mar do Caribe, a leste da embocadura atlântica do canal do Panamá, que vai até a divisa com a Colômbia. Dos povos indígenas do Panamá, os kuna são os que mais detêm autonomia política, o que foi resultado da resistência e uma forte luta para a proteção de sua integridade cultural e territorial. Em 1953, eles tiveram alguns de seus direitos territoriais reconhecidos, e desde então, já começaram a gozar de uma certa autonomia governamental. O Panamá, logo após à “descoberta”, transformou-se num local estratégico para o trânsito de mercadorias e, a partir dessa época, o conflito entre os kuna e os espanhóis foi quase incessante. As primeiras tentativas de evangelização, devido às revoltas constantes, terminaram por volta de 1651. Entre os séculos XVII e XVIII, os kuna se aliam a outros povos, tanto para travar relações comerciais como para revoltar-se contra os domínios espanhóis, e atacá-los. Segundo o testemunho dos próprios kuna, essa brava resistência contra a ocupação espanhola teve a amarga conseqüência: sua população foi quase totalmente dizimada. 61 Aqui pode se fazer um paralelo muito claro com os efeitos do princípio da coisa julgada no direito ocidental; bem como a possibilidade de reabertura do processo em caso de fatos novos, como ocorre na ação rescisória. 62 ALEMANCIA, J. La autonomia Kuna. In: ALMEIDA, I.; RODAS, N.A. (coords). En defensa del pluralismo y la igualdad, p. 125-148. Enquanto fizeram parte do território denominado de “Gran Colômbia”, que se tornou independente da Espanha em 1821, o povo kuna gozou de uma certa soberania e reconhecimento de seu território. Com a separação do Panamá da Colômbia, em 1903, e a adoção subseqüente de uma política de construção de uma identidade nacional baseada no castelhano e na herança espanhola, os kuna voltaram a sofrer ingerências, por parte, agora, do novo Estado panamenho. O governo quer regulamentar o comércio marítimo da região de San Blas, e começam, mais uma vez, as obras de evangelização dos “selvagens”, de forma que, em 1908 é adotada a lei de civilização dos índios. Em 1925, os kuna se revoltam e desencadeiam a Revolução de Dule, da qual resultou um tratado em que se confirmaram os direitos territoriais autóctones, a revogação das concessões feitas pelo governo e a retirada de policiais estatais, em troca da aceitação da soberania panamenha e da implementação do sistema nacional de educação. Nem todas as comunidades assinaram o tratado, mas ele teve a missão de um cessar fogo. Esta Revolução foi um marco importante das relações entre o Estado panamenho e os kuna, afirmando a determinação deles e a aceitação de alguma maneira, por parte do Panamá, do status particular daquele povo. Aos poucos, e com muita resistência, eles conquistaram a criação de uma reserva, e, logo depois, de uma comarca da circunscrição de San Blas, reconhecendo oficialmente algumas das suas instituições, e legalizando uma autonomia governamental autóctone. Em troca disso, continuariam aceitando a soberania panamenha sobre seu território. Em 1945, formou-se o primeiro Congresso Geral do povo kuna em que se reuniu a maioria das comunidades. Este congresso foi posteriormente reconhecido como a instituição suprema dos kuna, legalizado pela lei 16 de 1953, e até hoje ele existe. 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia Apesar de os serviços governamentais estarem presentes na maioria das comunidades, os Congressos Geral e Local correspondem à forma tradicional de governo do povo kuna. Eles estabelecem as regras da vida cotidiana. Existe o instituto da Intendência que representa o poder executivo do governo panamenho no território tradicional. É elaborada uma lista tríplice, por parte do Congresso Geral, sendo a nomeação feita pelo Estado. O intendente é um membro do povo kuna e atua como intermediador entre o governo e as estruturas tradicionais. Os kuna elegem três deputados para a Assembléia Legislativa do Panamá, e, embora os candidatos estejam filiados aos partidos nacionais, esta é uma forma de participação deles nas políticas nacionais e uma ponte entre o sistema tradicional e o panamenho. A dualidade de instituições, por um lado, estatal, por outro, tradicional, provoca concorrência e conflito, mas às vezes se complementam. Ao Congresso cabe velar pelo bem estar e o progresso da comarca, zelar pela conservação das tradições, gerir os fundos, executar trabalhos e obras necessárias etc. 3.6.1.1 Autoridades tradicionais e Congresso Local As autoridades tradicionais, conhecidas como “saylas”, são depositárias da tradição, pregadoras da religião e da doutrina kuna; os dirigentes da comunidade. Os “saylas” devem dar preferência aos interesses de todos, ao invés dos particulares, pensar em longo prazo e ter uma conduta ilibada, tanto no aspecto público como no privado. Eles são eleitos de acordo com sua integridade, sentido de bem comum e conhecimento das tradições. Em geral os “saylas” são pessoas mais maduras com uma boa trajetória no aprendizado dos rituais e da linguagem. As discussões e decisões a respeito da vida comunitária são feitas em sessões cotidianas do Congresso Local, localizadas na casa de assembléia que é o centro da vida política e espiritual kuna. Os dirigentes (dependendo da comunidade pode ser um, dois ou três “saylas”) se reúnem todas as noites para os cantos rituais e para a gestão dos assuntos locais. São sessões públicas e todos os moradores têm direito de voz. Ao Congresso Local cabe administrar o desenvolvimento econômico, os trabalhos comunitários e fazer justiça. Suas decisões são tomadas após examinar os diferentes aspectos da questão debatida, e após os habitantes expressarem suas opiniões. Aqueles que violam as regras kuna são punidos com trabalho comunitário ou com multa, dependendo da gravidade do fato. Caso seja algo considerado muito grave, o Congresso Local pode entregar o culpado à justiça panamenha. Os membros do povo kuna que partem da comunidade para viver em grandes cidades, quando em número considerável, abrem um local ou uma sessão urbana onde se reúnem. Essas sessões se reagrupam e enviam uma delegação ao Congresso Geral kuna. Existe um sistema de imposto para os membros urbanos, como uma forma de compensação por terem se afastado dos trabalhos comunitários. Todas as comunidades kuna têm muito contato entre si. As visitas são constantes e as decisões que lhes afetam como povo são tomadas em comum. 3.6.1.2 Congresso Geral Duas principais instituições agrupam todas as comunidades: o Congresso Geral da Cultura e o Congresso Geral kuna. O primeiro consiste em favorecer e resguardar a transmissão do patrimônio histórico e cultural, e, o segundo, é a instância governamental. Ambos os congressos desenvolvem suas atividades no idioma nativo. O Congresso Geral se reúne a cada seis meses, é presidido por três “sayladummagan” (os grandes “saylas”) que provêm de diferentes regiões do território. As delegações de cada comunidade são formadas por cinco pessoas designadas pelos congressos locais, mas apenas os “saylas” têm direito a voto; os delegados apenas voz. Na maioria das vezes, no entanto, as decisões são tomadas por consenso. Outras entidades como os reagrupamentos urbanos, a associação de trabalhadores do Canal, e alguns organismos não governamentais kuna podem assistir e falar no Congresso Geral, mas não têm direito a voto. Os deputados kuna eleitos para a Assembléia Legislativa do Panamá e alguns funcionários do Estado devem estar presentes para responder perguntas e dar informações. Há um secretariado permanente do Congresso e comissões de economia, assuntos internacionais, projetos, educação, cultura, saúde e assuntos da mulher. Pode haver ainda a criação de comissões ad hoc, segundo as necessidades que surgirem. O Congresso Geral tem uma vasta competência que vai desde decisões políticas até administrativas, econômicas e judiciais. Não há separação de poderes em executivo, legislativo e judiciário. Funciona como uma assembléia deliberativa que reúne todos os membros para, segundo as diretrizes do “saylas”, decidir sobre a vida comunitária e os problemas que os afetam. A autonomia kuna corresponde a uma experiência de Estado multicultural e, como não poderia deixar de ser, enfrenta dificuldades e reveses típicos da complexidade desse conceito. Para os kuna, autonomia significa coisas bem determinadas como não pagar impostos ao governo panamenho, contribuir para a riqueza coletiva por meio do trabalho comunitário, ser julgado pelas autoridades tradicionais, transmitir seus bens segundo a tradição, exercer um certo poder de controle no desenvolvimento de seus recursos, viver em seu território e resolver os problemas em conjunto da maneira como bem entendem. Algumas dificuldades, dentre outras, encontram-se na questão educacional, pois são obrigados a aprender o espanhol e aquilo que os panamenhos entendem por melhor; alem de não disporem de recursos financeiros adequados, o que limita a capacidade de atuação e os obriga a recorrer a projetos de cooperação. 3.7. Apontamentos sobre experiências multiculturais Os povos indígenas tukano e kuna representam bem a idéia do multiculturalismo e seus desafios na sociedade contemporânea. Ao lado deles, existem centenas de povos tradicionais pelo mundo inteiro que possuem um diferente conceito de vida, e que sofrem a cada dia com a ameaça de verem-se tragados pelo poder dominante e deixarem de ser quem realmente são. Uma forma de evitar isto é reconhecer que a subordinação com a qual eles foram até agora submetidos precisa findar, e a libertação dos povos será alcançada na medida em que se consagre, como legítimas, suas instituições. O preâmbulo da Convenção 169 da OIT não deixa dúvidas com relação a este objetivo “reconhecendo as aspirações desses povos a assumir o controle de suas próprias instituições e formas de vida e seu desenvolvimento econômico, e manter e fortalecer suas identidades, línguas e religiões, dentro do âmbito dos Estados onde moram”. O art. 7.1 ainda menciona que: Os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas próprias prioridades, no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou utilizam de alguma forma, e de controlar, na medida do possível, o seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural. Além disso, esses povos deverão participar da formulação, aplicação e avaliação dos planos e programas de desenvolvimento nacional e regional suscetíveis de afetá-los diretamente. Cada povo, portanto, terá uma prioridade, e para que se preserve a diversidade torna-se necessário que eles mesmos possam definir o que melhor lhes cabe. Os povos tukano vivem mais distantes do contato com o Estado e, assim, sofrem menos ingerências por parte do ordenamento jurídico nacional. Já os kuna estiveram, historicamente, mais próximos, até mesmo geograficamente, em meio a rotas comerciais importantes, o que tornou sua luta mais sangrenta e a sua cultura mais influenciada e vulnerável aos ditames e categorias ocidentais. Percebe-se que a variedade de povos permite a adoção de diferentes formas de convivência com o país envolvente. Inegável torna-se a impossibilidade de realização dessas culturas apartadas de suas tradições, mas cada cultura irá exigir um tratamento diferenciado. Nesse sentido Miguel Alberto Bartolomé assevera que63: En una propuesta que busca referirse a situaciones concretas Kumkum Sangari (1999), destaca la necessidade de no subsumir todos los contextos dentro de la perspectiva liberal del multiculturalismo, ya que cada sistema reflejará uma diferente distribución del poder. Por ello reclama la necessidad de entender los distintos tipos de homogeneidad y heterogeneidad que se registran em los sistemas multiétnicos, así como los diferentes tipos de universalismos e particularismos que interactúan. Su visión se manifiesta significativa para reconocer la diferencia existente entre un sistema plural como el canadiense o el suizo y uno como el que se registra en la selva amazónica o entre las comunidades aymaras y el Estado boliviano. No puede ser equiparado, más que de manera formal o enunciativa, todo o contexto plural o multicultural, ya que cada uno reflejará las características específicas de sus protagonistas. Sendo assim, haverá distintas considerações em relação às situações culturais fáticas. No caso de povos como o tukano, simplesmente, o existir e desenvolver-se segundo seus costumes pode ser um caminho adotado, no sentido de as organizações estatais respeitarem e não interferirem demasiadamente com serviços públicos, visto que praticamente eles vivem paralelamente à ação do Estado, dispensando sua atuação64. Já os povos mais contatados têm maior participação e influência estatal na suas vidas, provocando a dualidade de instituições (governamental 63 64 BARTOLOMÉ, M.A. Procesos interculturales, p.118. O sentido de dispensar a atuação estatal não significa uma obrigatoriedade em fazê-lo. Em alguns casos a presença estatal pode e deve ocorrer. e tradicional), como se observou no exemplo kuna. Nesses casos, há que se buscar a negociação igualitária entre os povos tradicionais e a sociedade nacional, construindo, passo a passo, a autonomia dos primeiros para que subsistam enquanto povos diferentes, embora sob o mesmo manto estatal. Os povos indígenas resistiram à colonização, à assimilação pelo trabalho, ao sistema individualista focado na propriedade; lutaram, e, hoje, há instrumentos jurídicos nacionais e internacionais que garantem sua continuidade, enquanto indígenas, e rompem a lógica de integração até então propagada. A análise da situação dos povos tukano e kuna faz perceber que não pode haver um projeto cultural que caminhe na negação da diversidade fática e latente. Isto não significa a solução de todos os males enfrentados por esses povos, mas é a garantia da sua sobrevivência coletiva, enquanto povo. As aspirações de cada um deles será diferente, o que é intrínseco à própria noção de multiculturalismo, e deve ser enfrentada como uma maneira de se ajustar os anseios culturais, dentro de uma perspectiva radicalmente democrática, como vimos. Mahajan señala que el multiculturalismo sólo és posible dentro de una democracia pluralista, en la cual los ciudadanos pueden mantener su distintividad cultural relacionándose de manera igualitaria entre sí y con el Estado de cual formam parte. Esta perspectiva, con la cual es dificil no coincidir, no supone uma negación sino la necesidad de redefinición de las lógicas constitutivas de los estados contemporáneos.65 A consolidação de um Estado unitário deve levar em conta os povos que não dependem de sua estrutura organizacional para continuar existindo (como os tukano por exemplo), e/ou aqueles que não concordam em absorver a “nova colonização” ditada pelo Estado, sob o qual estão submetidos geograficamente (caso dos kuna). A criação dos Estados nacionais latino-americanos, seguindo o modelo europeu, se deu com a redação de uma Constituição que estabelecia um rol 65 BARTOLOMÉ, M.A. Procesos Interculturales, p.118. de direitos e garantias individuais. Isto significou o esquecimento de seus índios e a omissão de qualquer direito que não fosse a possibilidade de aquisição patrimonial individual. Portanto, aos índios sobrou como direito a possibilidade de integração como indivíduo, como cidadão ou, juridicamente falando, como sujeito individual de direitos. Se ganhava direitos individuais, e perdia o direito de ser povo. Apesar disto, os povos continuaram a ser povos. 66 Não se deve lutar contra essa realidade e a opção multicultural será diversa caso a caso, mas o espaço de construção será fundamentado num diálogo intercultural amplo, baseado no pressuposto de que “todas as culturas têm um valor de dignidade humana, o que permite uma hermenêutica multicultural e transvalorativa” 67. Para tanto, é preciso haver possibilidades reais dentro do direito, apontando para a aceitação e efetivação do pluralismo jurídico. Há instrumentos coletivos voltados para a concretização deste paradigma, e a realidade exige uma mudança do direito dentro da sua importante função de pacificar e harmonizar a vida social em busca da felicidade de todos. 66 SOUZA FILHO, C. F. M. Multiculturalismo e direitos coletivos In: SANTOS, B. S. (org). Reconhecer para libertar, p.78. 67 SANTILLI, J. Socioambientalismo e novos direitos, p. 34. 4 Pluralismo jurídico para a afirmação da sociobiodiversidade “É necessária a adoção e o cumprimento de políticas de pluralismo jurídico por parte do Estado mediante as quais se reconheça plena vigência aos sistemas de direito dos povos indígenas que coexistem diferenciados do direito do Estado e se aplicam em âmbitos determinados dentro do mesmo território.” 68 Em tempo algum, o mundo passou por transformações tão rápidas e tão profundas como as atuais. Há uma impetuosa avalancha de mudanças, uma corrente tão poderosa que desagrega instituições, sacode e altera nossos valores. A sociologia moderna atribui ao sistema jurídico a função de integração social que pode ser cumprida através de dois dispositivos: a orientação do comportamento dos sujeitos e a resolução de conflitos presentes entre pessoas e grupos69. Para a compreensão do que vem a ser as instituições multiculturais atreladas a um manejo sustentável, protecionista da biodiversidade, profusamente praticado pelas comunidades tradicionais ao longo dos tempos, e buscar uma maneira de realizá-lo de forma eficaz, não há como deixar de se repensar o sistema jurídico à luz de uma concepção pluralista. Estes novos conceitos representam a oportunidade para o direito clássico moderno abrir-se a novas possibilidades, submetendo-se à autocrítica, tão necessária em tempos de mudanças. 4.1 Um direito estatal e monista Conhecido como monismo jurídico, a consolidação do Estado moderno trouxe a presunção de que lhe caberia, exclusivamente, a produção 68 69 Declaração de Jaltepec de Cadayoc, 1995, México. ARDILA AMAYA, E. Pluralismo jurídico: apuntes para el debate, p 49. de normas sociais, deixando de lado as demais formas de regulação social. Porém, considerando a estrutura multifacetada inerente à sociedade e a necessidade de inibição do monopólio estatal e de seu poder de império, essa postura passou a ser encarada como um problema efetivo frente à realidade, resumindo sua atuação ao plano meramente formal. O Estado, ainda que o quisesse, não seria o único a criar normas para orientar as pessoas e resolver os litígios. O mito do monismo jurídico nada mais representou do que uma construção ideológica, visando impor uma pretensa e ilusória unicidade normativa que, ao longo desses últimos quatro séculos da história ocidental, tenta sufocar a pluralidade existente no plano fático.70 Em se tratando do ordenamento positivo vigente, pode-se afirmar que, de uma maneira geral, há uma tendência em não considerar como parte do direito instituído a organização social e política de culturas diferenciadas. Isso porque, na típica concepção kelseniana, e segundo a doutrina positivista dominante, para constituir-se como direito, é preciso haver normas jurídicas das quais ele provenha, proclamadas por um Estado soberano. Sendo assim, o direito moderno estatal corresponderia ao melhor e mais especializado sistema jurídico: a “hipótese mais representativa para o conhecimento do Direito” 71. Kelsen defendia que o direito precisava estar centralizado nas mãos do Estado, e apenas o positivismo poderia ser o caminho para uma concepção jurídica científica e pura 72 . Assim, todos os indivíduos, mesmo que pertencentes a diversas religiões, línguas, raças e concepções de mundo, poderiam fazer parte de um direito único: “Todos eles formam uma comunidade jurídica na medida em que estão submetidos a uma mesma ordem jurídica, isto é, na medida em que a sua conduta recíproca é regulada através de uma e a mesma ordem jurídica” 73. 70 ARDILA AMAYA, E. Pluralismo jurídico: apuntes para el debate, p. 53. KELSEN, H. Teoria Pura do Direito, p. 60. 72 Ibid., p.70. 73 Ibid., p. 97. 71 O objetivo de tornar puro o direito, sem a influência da ideologia política, das ciências naturais, da moral, do costume, teve inegáveis razões históricas. Elas se relacionam com o controle do poder político e com a consolidação da legitimidade estatal que não fosse atrelada à vontade do governante. No entanto, a sua vinculação estrita à norma jurídica e ao Estado de maneira exacerbada, provocou, de tal forma, um afastamento do direito em relação à sociedade envolvente, que inúmeros foram os aspectos que por ele não puderam mais ser controlados. Isso foi mais visível nos países onde a edificação da estrutura jurídica e estatal ocorreu muito distante da realidade fática, a exemplo das ex-colônias submetidas à aplicação de uma réplica do sistema das respectivas metrópoles. Não resta dúvida, que o pensamento positivo centralizador, jamais permitiria que outras esferas de direito, que não aquela única proposta pelo Estado moderno e ocidental, se fizessem presentes. Na verdade, a concepção que se guarda do direito, herdada do pensamento capitalista e positivista, é a noção de uma uniformização cultural, simbolizando a força da instituição de um Estado único e forte, garantidor dos direitos meramente privados, centrados na propriedade. Embora o direito tenha sido fortemente estatizado, essa construção foi desenvolvida muito lentamente e com dificuldades, partindo de uma época em que a burguesia assumia o controle da sociedade. A expansão do capital industrial e a filosofia individualista justificavam a necessidade de controle por parte do Estado, para a garantia de uma suposta liberdade que significava, tão somente, poder ou não poder tornar-se proprietário. Politicamente, portanto, era interessante desconsiderar a existência do multiculturalismo, pois ele poderia ser interpretado, e isto ainda hoje se discute, como um enfraquecimento do Estado central. Isso, porém não quer dizer que não tenha havido opções de pluralismo jurídico na história da humanidade como veremos a seguir. 4.1.1 O Império Romano e a Idade Média Os romanos, ao contrário do que possa parecer, não impuseram totalmente o seu direito aos povos conquistados, permitindo a manutenção de jurisdições locais. O conhecido jus gentium incorporava práticas normativas das sociedades conquistadas, e buscava conciliar situações de conflitos, enquanto necessidade de resolver a pluralidade sócio-jurídica existente. Além disso, os romanos utilizavam outras fontes de direito, e não, somente, a estatal ou pública oriunda do governo. O direito consuetudinário dos juristas e a expressão do costume e das práticas populares eram, também, reconhecidos como direito. Até o final da era imperial os romanos não deram importância à monopolização do direito pelo Estado 74. Pelo curso da história, depreende-se que as intenções romanas não priorizavam a pluralidade cultural, a preocupação se resumia à ampliação de domínios territoriais e a conquista de outros povos, mas é interessante notar que existiram possibilidades alternativas ao monopólio do direito, e o problema de conciliar as diferenças já se observava há séculos. Isso porque, como vimos, é inerente à vida humana desenvolver-se de muitas formas, sendo assim, o pluralismo acompanha a vida em sociedade. A Idade Média foi caracterizada pela descentralização territorial, e, conseqüentemente, por um poder pulverizado, o que abriu espaço para a concorrência de instituições normativas. Havia regulação social por parte dos costumes locais, dos agentes municipais, dos estatutos das corporações de ofícios, além das diretrizes da realeza, do direito espiritual (direito canônico) e do próprio direito romano. O direito era extraído de atividades desenvolvidas no seio das corporações, dos grupos e das comunidades. O Estado era apenas mais uma dessas instituições, e não a central. Nos séculos XVII e XVIII, buscando a centralização do poder, “o absolutismo monárquico e a burguesia vitoriosa emergente desencadearam o 74 WOLKMER, A. C. Pluralismo Jurídico: Fundamento de uma nova cultura no Direito, p. 169. processo de uniformização burocrática, que eliminará a estrutura medieval das organizações corporativas, bem como reduzirá o pluralismo legal e judiciário” 75. Foi a partir da Revolução Francesa e das reformas de Napoleão que o ideal mítico do monismo jurídico se fez presente, através da promulgação de um código único para reger a vida de toda a sociedade. O liberalismo ganha força e o Estado burguês se consolida. Com o passar do tempo, surge a nova relação de poder, baseada no capital e no monopólio do direito pelo Estado. Assim, tal sistema, sendo considerado o mais adequado, passou a ser aplicado e copiado em todo o mundo. 4.2 A crise do monismo jurídico O falso ideário de que todos seriam felizes sob as vestes de apenas um direito foi sendo desfeito, a partir das constatações de que não é possível a manutenção de um modelo único diante do pluralismo real. Na perspectiva de Sousa Santos76 houve um aumento da conflituosidade social provocado pelo desenvolvimento capitalista em suas três fases, a saber: o período clássico do século XIX; o período organizado do Estado-Providência; e agora, num terceiro momento, que é o do capitalismo desorganizado. Na medida em que aumentam as desigualdades sociais e crescem as demandas por direitos e justiça, há uma pulverização dos conflitos, que brotam aqui e ali; o Estado agiganta-se, mas não consegue uma cobertura completa ou mesmo controlar tal situação. A crença do monismo é desfeita, e percebe-se uma crise de regulação estatal. El paradigma del Estado del derecho se quiebra. Pierde eficacia el derecho estatal como mecanismo de asignación que reduce al mínimo los costos privados de transacción. Se tambalea la seguridad jurídica que sustenta el principio de legalidad monista. Se habla de crisis del derecho por la ineficacia de la norma legal como orientadora de las relaciones sociales, se 75 76 Ibid., p. 170. SANTOS, B. S. Pela mão de Alice, p.85-87. habla de crisis de la administración de justicia por la incapacidad del aparato jurisdiccional de atender la conflictividad. En realidad lo que ocurre es que el mito monista ya no es suficiente para entenderse con la nueva realidad. 77 Há uma instabilidade na administração da justiça, gerada pela incapacidade do aparelho judicial diante da quantidade e da qualidade dos novos conflitos. O Poder Judiciário vai sendo reformado e reformulado... O Estado, pouco a pouco, abandona a presunção de submeter ou impor suas decisões e passa a propor a participação da comunidade. Ele se retrai, reconhece formas de justiça não estatais, e, embora as estabeleça como meras competências, sem abrir mão da total pretensão monista, esta, a cada dia, vai sucumbindo, e a realidade pluralista ganhando espaço. 4.3 Pluralismo jurídico O pluralismo jurídico, hoje, é reconhecido pelo conjunto de dinâmicas jurídicas distintas daquelas provenientes do direito estatal, que com elas competem na função de regular a sociedade. O núcleo da discussão converge para a descaracterização do Estado como a única fonte do direito, entendendo que diversas racionalidades sociais podem provocar o fenômeno jurídico. A sociedade contemporânea, essencialmente complexa, é composta por diversas instituições e organizações de que o Estado faz parte, mas, ainda que se queira entender ser ele o mais importante, isso não ocorre. Certamente, o momento de globalização da economia em que se vive, permite ainda mais tal discussão, pois ela se apresenta como um fator que relativiza, sobremaneira, a concepção de Estado como o ente mais importante ou central na constelação social como um todo. Diversas empresas e organismos internacionais, supra-estatais ou não governamentais, podem, hoje, determinar, controlar e produzir muito mais regulação de comportamentos sociais, e até políticos, do que o próprio Estado nacional e seu pretenso direito único. 77 ARDILA AMAYA, E. Pluralismo jurídico: apuntes para el debate, p. 53. Sendo assim, a absorção do pluralismo jurídico nesse momento pode configurar-se como extremamente estratégica e oportuna, visto que a globalização exige uma abertura do Estado, e o enfraquecimento de “velhos conceitos e dogmas, que sempre serviram de argumento ideológico para não reconhecer diversidades culturais internas.” 78 A fase atual do capitalismo caracteriza-se por uma nova relação localmundial em que surge uma outra dinâmica das relações políticas, econômicas e socioculturais, voltadas para uma maior participação e interação da sociedade civil e do cidadão, realidade esta que não é mais centrada no Estado, como sendo o agente propulsor ou o responsável pela condução da sociedade ao bem comum. Então, ele se vê na necessidade de se adaptar a nova ordem de coisas no cenário internacional, e isso contribui para a construção de um perfil menos presunçoso acerca do direito. Hoje, é possível reconhecer e aceitar um conjunto de dinâmicas paralelas às do direito estatal que competem na regulação social, e constituem uma estrutura de pluralismo jurídico. Para apreender o direito, a partir da noção do pluralismo, no entanto, é necessário considerá-lo mais sob a ótica de eficácia social. 4.3.1 Um direito social Segundo Aguirre79, faz-se necessário escapar do papel atribuído ao sistema jurídico, fundamentado no aspecto meramente formal, e reorientar sua análise em função de critérios políticos e sociais que, na verdade, dão coerência a qualquer sistema normativo. Se o “direito” é sancionado por autoridades não presumidas ou usurpadas, cuja comunidade lhes outorga poder para tal, possui eficácia social, comprovada pela aceitação das normas pelo povo que, ao vivenciá-las no cotidiano, através de um comportamento de acordo, as modifica e/ou as 78 SOUZA FILHO, C.F.M. Autodeterminação dos povos e jusdiversidade. In: ALMEIDA,I.; RODAS, N. A (coord.). En defensa del pluralismo y la igualdad, p. 243. 79 BALLÓN AGUIRRE, F. Sistema Jurídico Aguaruna y positivismo. In: ITURRALDE, D.; STAVENHAGEN, R. Entre la Ley y la costumbre, p. 137. mantém vigentes, não têm porque não ser considerado direito. Assim sendo, funciona como uma instituição que identifica, aplica e faz respeitar normas de conduta80. Dentro das comunidades indígenas, por exemplo, há um dinamismo em relação a novas formas de coordenação e lideranças, e uma competência em torno da faculdade de emitir e garantir as normas para os membros da comunidade, como se percebeu na análise do sistema jurídico tukano e kuna. Para Santi Romano81, a instituição que surge como um ente social adequadamente estruturado e baseado em relações estáveis e permanentes, reflete um verdadeiro ordenamento jurídico. Antes de qualquer norma ser norma, há uma organização social que lhe fundamenta e dá sentido, sendo ela apenas um produto. O Estado representa, somente, uma entre todas as demais instituições humanas existentes. Talvez, seja por isso que o Estado contemporâneo em diversos países, como os latino-americanos, não consegue dar conta da conflituosidade e alcançar a almejada paz social, porque se sustenta na idéia ilusória de uma instituição central. Mesmo entre aqueles que são relativamente homogêneos no aspecto cultural, são poucos os conflitos que têm trâmite judicial estatal. Outros cenários sociais, tais como a família, a vizinhança e a empresa acabam por absorver muitas demandas, à luz de normas substantivas e procedimentais, informadas segundo ordens de regulação alheias ao Estado82. O direito social provém da organização das coletividades e da participação e integração efetiva dos grupos que compõem a sociedade. Materializa-se a partir de dentro da realidade fática, sendo o pluralismo jurídico uma conseqüência metodológica de análise, configurando-se como uma espécie de “empirismo radical”83. A partir do momento em que um conceito de direito é levado em consideração, com íntima dependência de um sentido social, em que se 80 HOEKEMA, A. J. Hacia un pluralismo jurídico formal de tipo igualitário, p. 70. ROMANO, S. L´ordinamento giuridico. Firenze: Sansoni, 1957. Apud WOLKMER, A. C. Pluralismo Jurídico: Fundamento de uma nova cultura no Direito, p. 172-173. 82 ARDILA AMAYA, E. Pluralismo jurídico: apuntes para el debate, p. 50. 83 WOLKMER, A. C. Pluralismo Jurídico: Fundamento de uma nova cultura no Direito, p. 179. 81 consagram os aspectos relevantes de efetividade sócio-política, torna-se visível a adoção do pluralismo jurídico como possibilidade de sustento e concretização do multiculturalismo. Diversas são as dinâmicas de relações sociais que se autoregulam, prescindindo das tradicionais instituições hegemônicas, como as listadas abaixo84: a) Dos povos tradicionais, indígenas e locais que vivem em suas próprias organizações, sem a necessidade de regulação social estatal ; b) Das comunidades excluídas ou marginalizadas, a exemplo das favelas, fruto da exclusão política e cultural provocada pelo desenvolvimento capitalista desequilibrado; c) Das associações populares que emergem como resultado da ação de novos movimentos sociais localizados e alternativos (opção sexual, de gênero, raça, ideologia, etc), que, por iniciativa própria, vivem apartadas do modelo predominante de cultura; d) De situações que se apresentam em crises institucionais ou de violência permanente, visivelmente contrários a ordem jurídica oficial e que estabelecem um novo eixo de poder (como ocorre em relação às Farc – Forças Revolucionárias da Colômbia) e) De âmbito do comércio internacional, no caso da chamada lex mercatoria, que se apresenta como uma estrutura jurídica da prática contratual em nível mundial de empresas e organizações, baseada no estabelecimento de cláusulas e regras que transcendem as fronteiras nacionais. Sobre cada um destes tópicos, naturalmente, seria possível discorrer a respeito, no entanto, devido ao enfoque socioambiental do presente trabalho 84 Ibid., p. 53. vamos nos ater, por ora, às relações travadas entre os povos indígenas que podem, sem muito esforço, ser estendidas a outras populações tradicionais85. 4.3.2. Pluralismo jurídico e povos indígenas As relações entre o sistema jurídico dos povos indígenas com o direito “oficial”, reinante nos países onde estão inseridos, talvez, representem o primeiro caso onde o conceito de pluralismo jurídico pode ser constatado. Não há como negar o fato de que tais povos não compartilham sequer das noções de território, soberania, e, menos ainda, dos interesses nacionais (sejam eles sociais, individuais, políticos, econômicos ou espirituais) relativos ao país de origem. Tal situação pode ser explicada remontando-se ao período colonial. As metrópoles, ao dominarem os povos, instauravam nas suas colônias o seu próprio direito. Tinham por objetivo criar, nas terras de alémmar, uma sociedade à sua imagem e semelhança, muito embora, como não podia deixar de ser, sua abrangência ficasse mais restrita aos centros regionais, gradualmente formados com predominância dos súditos imigrantes. As comunidades nativas e/ou locais, em sua maioria pacíficas, quando escapavam da dizimação, permaneciam praticando seus costumes e mantinham suas próprias formas de regulação. Um caso bastante conhecido é o da Índia86, onde conviviam o direito inglês e as estruturas jurídicas dos povos nativos. Com a independência das colônias, a situação, a rigor, não sofre mudança para tais comunidades, visto que o direito nacional ocupa o lugar do direito colonial. 85 Tais como, seringueiros, quilombolas, caiçaras, ribeirinhos e outros. A legislação brasileira perdeu a chance de definir o que seriam populações tradicionais na lei nº 9.985/2000, que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza. O artigo foi vetado por ter sido o conceito considerado muito abrangente, mas ele dizia o seguinte: “População tradicional: grupos humanos culturalmente diferenciados, vivendo há, no mínimo, três gerações em um determinado ecossistema, historicamente reproduzindo seu modo de vida, em estreita dependência do meio natural para sua subsistência e utilizando os recursos naturais de forma sustentável." Sobre o assunto ver: VULCANIS, A. Presença humana em unidades de conservação. In: Borges da Silva, L.; OLIVEIRA, P.C. Socioambientalismo: uma realidade – Homenagem a Carlos Frederico Marés de Souza Filho, p. 47-62. 86 ARDILA AMAYA, E. Pluralismo jurídico: apuntes para el debate , p. 54. Tal estado de coisas, também pôde ser observado nos países latinoamericanos de colonização portuguesa e espanhola, onde, ainda hoje, povos tradicionais coexistem paralelamente ao Estado formado. Esse é um dos motivos que muitos dos estudos de antropologia jurídica foram e são aqui realizados (a exemplo de Abel, 1982; Galanter, 1981; Moore, 1978; Pospsil, 1971 e outros87). Nunca é demais relembrar que as dimensões existenciais de quem vive nos centros urbanos são, completamente, diversas de quem vive nas comunidades locais. Nestas últimas, o modo de produção é baseado no suprimento e na satisfação das necessidades de todos - uma postura essencialmente coletiva. A finalidade da cultura e o prestígio social estão relacionados a esta satisfação geral e ao equilíbrio com o universo; prescindem da acumulação de riquezas ou das aspirações individuais e egoístas - fato este corroborado pelo estudo do povo tukano. A utilização dos recursos naturais se dá de uma forma consciente e sustentável, com um baixo grau de impacto ambiental, e ainda, é orientada no sentido de evitar uma possível escassez. Por esse motivo, a presença de recursos ambientais em seus territórios é muito grande, promovendo, como vimos, a preservação da biodiversidade. Já o modelo capitalista é calcado na acumulação de bens e no individualismo competitivo. Parte-se da noção de que os seres humanos têm o direito de manipular a natureza em maior ou menor grau, como desejarem. A natureza é meio, a humanidade, fim88. Os povos indígenas, como de resto, outras comunidades locais, orientam-se por princípios espirituais, morais e éticos diversos, através de uma visão holística de mundo, sem o cientificismo, a racionalidade ou o particularismo ocidental. 87 GARCIA VILLEGAS, M. Notas preliminares para la caracterización del derecho en América Latina, p.36. GUEVARA-GIL, A.; THOME, J. Notes on Legal Pluralism, p. 7589. 88 GALTUNG, J. Direitos humanos – uma nova perspectiva, p. 25. Como não poderia deixar de ser, tudo isso levou, por óbvio, a uma construção jurídica completamente diversa, e que não depende da atuação do Estado para se concretizar. Os povos indígenas, embora desenvolvam relações independentes da esfera jurídica nacional, mantêm contatos com o Estado e demais instituições, através de diversos setores: educação, saúde pública, segurança, saneamento e outros, haja vista o exemplo kuna, em maior grau, e o tukano em menor. Mas isso, não significa que seus estatutos jurídicos sejam desconsiderados, ou que os índios estejam integrados ou a caminho de serem absorvidos pela sociedade envolvente. A preservação dos institutos jurídicos indígenas faz estabelecer condições de igualdade, em termos de reconhecimento como povos que são e, a partir daí, sua relação com o Estado pode ser travada mediante diálogo89, e não imposição. As diferenças culturais são extremamente marcantes de povo para povo. O termo genérico índio pode conduzir erroneamente à suposição de que todos são similares90. Na verdade, isso não ocorre. Por mais que haja semelhanças entre eles, cada povo indígena tem sua cultura e estrutura jurídica e social diversa de outro, e que precisa ser respeitada e aceita na sua diferença. Norberto Bobbio, ao tratar das relações entre os ordenamentos jurídicos, de uma maneira geral, menciona as tensões que podem existir entre o Estado e outros ordenamentos, que ele denomina de menores. A partir dessa interação, o autor estabelece algumas soluções possíveis. Especialmente, em relação aos grupos étnicos com costumes, civilização e histórias muito diferentes das do resto da comunidade nacional, em que podemos inserir os povos indígenas, Bobbio determina duas posturas que podem ser adotadas pelo Estado91: 89 Sobre a posição de diálogo intercultural e seu fomento ver a Declaração universal da UNESCO sobre a Diversidade Cultural. 90 SOUZA FILHO, C. F. M. O renascer dos povos indígenas para o Direito, p. 38. 91 BOBBIO, N. Teoria do ordenamento jurídico, p. 172. a primeira requer, frente ao ordenamento menor, o procedimento que chamamos de recusa, isto é, o do desconhecimento das regras próprias do grupo étnico e da substituição violenta pelas normas já em vigor no ordenamento estatal; a segunda poderá ser realizada através do processo de reenvio, isto é, atribuindo-se às normas, provavelmente a um grupo de normas, formadas integralmente no ordenamento menor, a mesma validade das normas próprias do ordenamento estatal, como se aquelas fossem idênticas a estas. No entanto, a posição do Estado, em geral, continua Bobbio, é a da indiferença. Em outras palavras, tais ordenamentos têm suas regras, mas o Estado não as reconhece, ou não lhes dá nenhuma proteção para coexistirem, e, por vezes, ocorrem conflitos entre ambos ordenamentos. O Estado brasileiro em sua história, ao lado de outros latinoamericanos, tratou os povos indígenas com omissão e indiferença, em relação a suas leis e direitos, tornando-os juridicamente invisíveis, na parca noção de que eram inferiores, e seu direito não era direito, e sim costume. Até a década de 50 e 60, aproximadamente, as políticas de desenvolvimento de vários países se encaixavam num conceito de modernidade, comprometido com a abolição e repressão total a outros sistemas de direito e a autoridades diferentes das estatais92. O Estado era concebido como liberal, unitário e monocultural, baseado no princípio de direitos iguais para indivíduos iguais. E, nessa perspectiva, somente eram aplaudidas e fomentadas as práticas culturais num sentido meramente folclórico, ou seja, sempre quando não interferiam em relevantes conceitos, tais como, direito e Estado. Essa concepção foi e vem sendo, gradativamente, desconstruída. Vários fatores incidiram para a eliminação deste conceito integracionista. A “modernidade” de agora (pós-modernidade), salvo em alguns países de orientação obstinada e estritamente neoliberal, reconhece que não se pode avançar sem a cooperação genuína dos elementos que compõem a sociedade civil como um todo. 92 HOEKEMA, A. J. Hacia un pluralismo jurídico formal de tipo igualitário, p. 63. Os povos indígenas e outros povos culturalmente diferenciados se uniram e, como vimos, buscaram seu reconhecimento e conquistaram importantes mudanças no cenário jurídico e político, tanto nacional quanto internacional. As vitórias merecem destaque, no entanto, é inegável que ainda há muito para se avançar no estabelecimento de um sistema capaz de abarcar novas formas de estruturação jurídica e social, para a afirmação efetiva do direito à diferença cultural e à autodeterminação. 4.3.2.1 Direito consuetudinário Pode-se dizer que o direito consuetudinário dos povos indígenas corresponde a um conjunto de normas que regem a vida e as relações dos povos, bem como suas autoridades constituídas, fazendo-se respeitar pelo costume, buscando evitar que haja perturbação da ordem estabelecida e da vida pacífica da comunidade, ou ainda, que prejuízos materiais sejam causados. Não é escrito nem codificado, e difere do direito positivo vigente no país em que se encontram. Dentro desse espectro de coisas, reside um dinamismo constante, que permite a inserção de novas formas de coordenação e liderança, ao passo que estas comunidades evoluem no tempo e no espaço. Há uma gestão comportamental de seus membros e uma divisão de competência entre as autoridades tradicionais. Portanto, há uma perceptível estrutura jurídico-social. Mais que um costume ou tradição, é preciso que o Estado reconheça e aceite plenamente o direito indígena ou tradicional como direito que é. Essa é a posição mais aceita atualmente em algumas convenções internacionais que tratam dos direitos dos povos indígenas, tal como a Convenção 169 da OIT. Ainda assim, são políticas de mera compensação pelas desvantagens sofridas por grupos indígenas, não representando a aplicação de um pluralismo jurídico mais maduro, como veremos adiante. Isso não significa que são sem importância, muito pelo contrário, têm sua validade na medida em que representam algumas das conquistas no caminho de luta pelos direitos indígenas. Entretanto, faz-se necessário e urgente continuar na busca por uma autonomia mais ampla. Não parece sensato que o direito estatal tenha a faculdade de determinar, unilateralmente, a legitimidade e o âmbito dos demais sistemas de direitos, como os indígenas. Ele aceita a validade das normas de outros ordenamentos ou, como Bobbio mesmo escreveu, de “ordenamentos menores”, gerados nas comunidades especiais que, como tais, representam uma parte diferenciada, mas também constitutiva da sociedade como um todo. Portanto, elas têm capacidade para instituir seu direito, e este deve ser reconhecido como parte integrante da ordem jurídica nacional. Vale ressaltar, que as demais comunidades tradicionais, como a dos quilombolas devem também ter o seu direito reconhecido, tendo respaldo nos avanços atingidos pelo direito indígena. Dentro da prática jurídica monista, construída artificialmente até a contemporaneidade, em que o direito é muito mais visto como instrumento de dominação do que de libertação, é bem provável pensar-se que essa estrutura poderá representar um retrocesso na evolução política de uma nação. Soberania, governo e território, certamente se vêem ameaçados. Mas, devemos considerar que está, no mínimo, encerrando (se já não está encerrado), o projeto de construção de uma sociedade homogênea e monocultural, tendo em vista as exigências sociais contemporâneas e o reconhecimento do multiculturalismo nas constituições e convenções internacionais. Os povos indígenas e outras comunidades tradicionais não têm por objetivo separar-se geograficamente. Eles não almejam a criação de um outro país, mas querem viver na diferença que lhes é própria. Uma nação, em especial, latino-americana, não se formará solidamente, buscando o monopólio cultural, e sim, dando lugar à inquietante pluralidade, trazendo-a do plano fático para realizá-la, sobretudo, no campo jurídico. 4.4 Pluralismo jurídico formal unitário versus igualitário Uma das premissas do pluralismo é a coexistência de diversos sistemas jurídicos num mesmo espaço-tempo. Uma vez delimitada a existência do direito social indígena consuetudinário, e a sua omissão por muitos séculos, cabe refletir sobre como será hoje a sua interação com o ordenamento jurídico positivo nacional. André Hoekema93 menciona que existem dois tipos de pluralismo jurídico: o social e o formal, sendo este último dividido em unitário e igualitário. Pelo pluralismo jurídico social entende-se a já mencionada descentralização do poder jurídico estatal (item 4.3.1), considerando a multiplicidade de variáveis sociais, sendo uma delas, as oriundas da diversidade cultural. Sendo assim, a partir da existência do pluralismo no seu sentido social, emerge a concepção de um pluralismo, também, no aspecto formal, ligando-se ao relacionamento que será travado entre os diversos sistemas de direitos, mais especificamente, a relação com o sistema considerado oficial. Os Estados, de maneira geral, têm adotado a postura de determinar, unilateralmente, a legitimidade e o âmbito dos demais sistemas jurídicos. Isso significa uma posição bastante clara, qual seja a de não equiparar o direito consuetudinário com o direito “oficial”. O primeiro teria uma função meramente complementar, sob condições previamente definidas pelo Estado, e desde que não contrarie as suas normas, que são consideradas as mais importantes. Tudo isso, corresponde à manifestação de um pluralismo jurídico unitário que preserva a autoridade estatal, caracterizando-se apenas como uma débil relação plural. Na verdade, mantém a concepção de primazia cultural. Por isso, o uso da expressão pluralismo unitário. Essa é a posição adotada pela Convenção 169 da OIT, quando, expressamente, no seu artigo 8.º, menciona: 93 HOEKEMA, A. J. Hacia un pluralismo jurídico formal de tipo igualitário, p.70 passim. 1. Ao aplicar a legislação nacional aos povos interessados deverão ser levados na devida consideração seus costumes ou seu direito consuetudinário. 2. Esses povos deverão ter o direito de conservar seus costumes e instituições próprias, desde que eles não sejam incompatíveis com os direitos fundamentais definidos pelo sistema jurídico nacional nem com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos. Sempre que for necessário, deverão ser estabelecidos procedimentos para se solucionar os conflitos que possam surgir na aplicação deste princípio. (grifo nosso) Para Hoekema, as políticas de reconhecimento do direito indígena, dificilmente, vão além dessa concepção unitária e imatura, entendendo ser isto uma forma de mera compensação histórica pelo sofrimento causado a um grupo marginalizado ou minoritário94. Dentro deste contexto, a construção de um pluralismo mais combativo e eficaz deve se posicionar na vanguarda das ações, no sentido de consolidar uma verdadeira simultaneidade igualitária entre todos os sistemas de direito. O direito indígena não complementa, ele substitui o direito estatal nas esferas sociais em que prevalece a sua aplicabilidade. Nessa visão, desponta a idéia de pluralismo jurídico formal igualitário. De qualquer forma, também, dentro desse conceito, há uma chancela estatal unilateral, mas esta ocorre na direção de que o direito consuetudinário seja reconhecido como parte integral da ordem jurídica nacional, em situação de igualdade perante o direito estatal, atuando como o oficial nas esferas sociais correspondentes. O fato de se fixar limites territoriais para a aplicação do direito indígena ou a quem ele se aplica, não significa a perda do caráter pluralista, visto que representam regras a respeito da vigência e aplicabilidade de cada direito, o que é necessário, quando se trata de buscar a articulação entre multiplicidade de sistemas jurídicos. Podem ser consideradas simples regras de procedimento, que objetivam apenas conduzir a qual sistema adotar. O direito internacional privado representa, no direito ocidental, a forma de como fazer essa indicação dos sistemas. 94 HOEKEMA, A. J. Hacia un pluralismo jurídico formal de tipo igualitário, p. 71. O pluralismo jurídico formal de tipo igualitário consagra a existência de regras e procedimentos legais num modelo federal, mas não significa que reconhecer o direito indígena implique numa conseqüente forma federalizada de Estado em relação aos povos, embora no plano fático haja realmente uma aproximação desta concepção. São regras formais que disciplinam a relação entre sistemas jurídicos equivalentes. O “reenvio”, que Bobbio95 menciona para o tratamento das relações entre ordenamentos jurídicos diversos, precisa ser estabelecido de uma maneira a adequar as situações plurais, e o desenvolvimento dessas regras se dá quanto à forma e não quanto ao conteúdo. Elas buscam, justamente, conferir legitimidade e assegurar o valor legal e jurídico das decisões produzidas no âmbito dos povos culturalmente diferenciados, considerando-as iguais às emanadas pelo próprio Estado. Inegável a constatação de necessária reformulação da postura estatal que esse processo exige, passando do conceito de “mono” para “pluri”. São processos compartilhados que pressupõem a contínua eliminação de preconceitos e diferenças. A utilização desta noção voltada para a aplicação das regras num modelo federal pode ser observada em Nunavuut, região situada ao norte do Canadá, onde foi instituída uma unidade pública diferenciada que, em nenhum aspecto, difere-se das demais províncias canadenses, a não ser pelo fato de, naquele território, viverem o povo inuit, que representa a maioria da população96. Na Região Autônoma da Costa Atlântica da Nicarágua e, também, no caso de algumas comarcas do Panamá, tais como vimos no exemplo do povo kuna, há uma regulamentação, visando incluir procedimentos legais federais, dentro de uma perspectiva de pluralismo jurídico que caminha para o formal de tipo igualitário. Como se pode perceber, o reconhecimento gradativo dessa nova estrutura jurídica conduz a uma reavaliação do próprio sistema político e para a distribuição dos poderes dentro de cada país. 95 96 BOBBIO, N. Teoria do ordenamento jurídico, p. 172. HOEKEMA, A. Hacia um pluralismo jurídico formal del tipo igualitário, p. 72. Impossível, portanto, falar numa adoção efetiva do pluralismo sem passar pela reflexão acerca de autonomia. 4.4.1 Autonomia indígena O conceito de autonomia provém do princípio de autodeterminação dos povos e, a partir dele, também se constrói e consolida o direito ao multiculturalismo. Isso porque, analisando mais detidamente o assunto, conclui-se que ilusório seria conceber um sistema juridicamente pluralista, num âmbito de total controle dos territórios indígenas e tradicionais por parte do Estado. A autonomia pode ocorrer em diversos setores, econômico, social, cultural, político, dentre outros. Por autonomia política entende-se a capacidade, formalmente garantida, nas mãos de uma comunidade para se autogovernarem, mediante organização própria, orientada por suas normas e critérios, com possibilidades efetivas de gestão e administração dos recursos que lhe são cabíveis. No que tange aos povos indígenas e demais comunidades culturalmente diversas, não se busca a autonomia de uma forma a segregar-se territorialmente dos Estados. Aqui haverá o mesmo impasse conceitual no âmbito do direito internacional, por está ligada, esta autonomia, ao princípio de autodeterminação dos povos e à conseqüente noção de soberania que lhe é atribuída neste panorama. Praticamente, a maioria dos povos indígenas não busca soberania, e sim uma autonomia política interna97, dentro mesmo dos Estados dos quais são partes. Isso significa que são necessárias regras de adaptação de um sistema pluralista, na perspectiva realmente formal igualitária ora tratada. A autonomia, no entanto, pode acontecer em diferentes graus, e adaptar-se a condições especiais de cada povo, o que é inerente à própria diversidade. Nem toda autonomia vai refletir um pluralismo igualitário, mas, certamente, este funciona como norte ou ideal a ser buscado. 97 HOEKEMA, A. J. Hacia un pluralismo jurídico formal de tipo igualitário, p. 73. Os povos indígenas vivem numa árdua batalha para a manutenção de uma autonomia cultural, lutando para se preservarem, enquanto povos diferentes. Essa dificuldade de manutenção da cultura, muitas vezes, faz-se presente por causa da não autonomia que possuem para gerir sua própria vida no aspecto econômico, jurídico e social. É claro, que nem todos os povos vivem a mesma realidade, e alguns conseguem manter mais possibilidades de autonomia em relação a outros. A verdade é que essa questão torna-se mais problemática, quando, por força de interesses diversos, estes povos se vêm pressionados a tomarem uma determinada atitude ou posição, como acontece em casos emblemáticos, e não raros, de exploração de recursos hídricos, de jazidas minerais, petróleo e conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. A autonomia política, assim, reflete-se como requisito da determinação cultural, porque a última vê-se, fortemente, comprometida, quando a primeira não é realizada. Muitas vezes, o processo de consulta aos povos indígenas, quando da aprovação de algum projeto de exploração em seus territórios, não significa que lhes seja dada a autonomia por eles desejada. Participar de atividades como esta, relaciona-se mais com a preocupação de dar uma satisfação a sociedade em geral com relação à transparência das negociações. Uma autonomia política ampla reflete-se numa variada possibilidade de os povos determinarem sua vida e os assuntos que entendem importantes, como a forma de escolha de seus dirigentes, a recuperação da sua cultura e valores, a promoção do ensino do idioma, direção da economia, da saúde, do controle dos recursos naturais etc. Como se observou no caso kuna, o governo panamenho, no acordo feito com aquele povo, não abriu mão da imposição do sistema educativo nacional, visando justamente o controle da cultura, e a não configuração de uma autonomia mais ampla; uma espécie de liberdade vigiada. O Estado mantém as rédeas da situação, reservando-se a competência de retomar os poderes conferidos, e, sendo ele o competente para dirimir o conflito entre ambas jurisdições, ditar leis que sejam plenamente válidas, inclusive, no território tradicional. Esse tipo de autonomia é verificada em Nunavuut (Canadá) e nas Regiões Autônomas da Nicarágua. A lei estatal determina o que é ou não reconhecido pelo direito consuetudinário. Essa espécie de autonomia limitada, em alguns casos, representa quase uma concessão do governo aos povos indígenas, mantendo-se a superioridade estatal. Não raras vezes, até, essa autonomia é interpretada por setores da elite, a exemplo de grandes latifundiários, como um real privilégio “dado” às minorias, atrapalhando o desenvolvimento econômico do país. Um pluralismo jurídico formal de tipo igualitário exige um nível de autonomia mais profunda, no entanto, como as mudanças, em geral, não ocorrem abruptamente, uma autonomia limitada corresponde já à condução do processo de abertura do sistema, e representa possibilidades reais de emancipação cultural. Vale sempre lembrar que essa postura voltada para o pluralismo jurídico efetivo relaciona-se diretamente com a preservação ambiental da biodiversidade associada, pois a garantia da continuidade da estrutura jurídica e social dos povos indígenas, proporciona a manutenção do seu padrão de vida, que melhora e enriquece a diversidade biológica mundial. Não se deve, portanto, adotar uma postura meramente utilitarista com relação a esses povos, ou atribuir-lhes a mera função de “jardineiros” do planeta. (...) ao discurso da biodiversidade corresponde também uma diversidade cultural, dada a existência de grupos humanos que adaptaram e enriqueceram a natureza.(...) O reconhecimento da diversidade cultural implica o reconhecimento de outros modos de vida alternativos, que, muito embora tenham beneficiado a biodiversidade, não esgotam sua importância nessa função, antes pelo contrário, transcendem tal dimensão utilitária.98 A riqueza cultural, talvez, seja um dos principais legados a deixar para a humanidade, e se constitui num verdadeiro patrimônio reconhecido há 98 FLOREZ ALONSO, M. Proteção do conhecimento tradicional? In: SANTOS, B. S (org.). Semear outras soluções – os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais. p. 293-294. tempos pelo direito e garantido para as futuras gerações99. O suporte100 dessa riqueza são as sociedades diferenciadas que precisam ser protegidas, pois a cultura é em si algo abstrato e se materializa, nesse caso, em diferentes povos e estruturas sociais. 4.5 Para a construção de um Estado pluriétnico e multicultural Levando-se em consideração que na moderna concepção de Estado um dos pilares de sustentação é o controle exclusivo do direito, torna-se muito difícil negar que alterações profundas terão que ocorrer na estrutura estatal, uma vez reconhecido e consagrado o regime de pluralismo jurídico social, caminhando para o formal do tipo igualitário. A mudança na relação jurídica estatal modifica a noção que se tem do próprio conceito de Estado. Sendo ela baseada no monismo jurídico, tem-se um Estado central, com soberania una e indivisível na clássica doutrina de Jean Bodin. Adotado o pluralismo jurídico efetivo, tende-se a uma relativização dos conceitos e a construção não de uma nação única, mas de um Estado plurinacional, o que não implica em sua desintegração como será visto adiante. 4.5.1 Multiculturalismo na Constituição Federal de 1988 Á luz do que se lê na Constituição Federal brasileira de 1988, é possível afirmar que foram abertas possibilidades reais de mudanças, e que ela caminha num sentido, em que se pode vislumbrar a adoção de um multiculturalismo no plano jurídico, embora de maneira tímida e não de forma direta como gostaríamos. Os direitos culturais foram contemplados, garantindo-se a manutenção das culturas que contribuíram na formação da identidade nacional. 99 Haja vista a criação da UNESCO em 1972, como entidade internacional dedicada à preservação do patrimônio cultural da humanidade exigindo a responsabilidade dos Estado quanto aos bens culturais. 100 SOUZA FILHO. C. F. M. Bens culturais e sua proteção jurídica, p. 48 Art. 215: O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. §1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.(grifo nosso) O art. 216 elenca os modos de criar, fazer e viver dos grupos formadores da sociedade brasileira, como sendo parte do patrimônio cultural nacional. Por este dispositivo, também, as comunidades diferenciadas têm proteção acerca dos seus estilos de vida e garantia de poderem continuar vivendo na diferença. Na ligação do direito ao patrimônio cultural e dos direitos dos povos indígenas, está a proteção das culturas vivas, locais e atuantes no cenário brasileiro. Esta proteção gera um direito coletivo que se pode entender como a proteção da pluriculturalidade da organização social brasileira, expressa no artigo 215 §1º. Podemos chamar a isto um direito à sociodiversidade. 101 O art. 231, que trata dos índios, é mais contundente no sentido da adoção do pluralismo, uma vez que menciona o reconhecimento da organização social indígena, bem como dos seus costumes e tradições. A garantia do espaço para a manutenção desta sociodiversidade é imprescindível e, por isso, a Constituição menciona que os direitos territoriais indígenas são originários, ou seja, anteriores a formação do próprio Estado brasileiro. Ao estabelecer o conceito de terras tradicionalmente ocupadas, no §1º do art. 231, fixada está a relação da sociodiversidade com a biodiversidade, considerando a necessidade dos recursos ambientais para os povos indígenas. Paralelamente, foram, também, reconhecidos os direitos dos quilombolas, comunidades tradicionais afro-brasileiras remanescentes dos antigos quilombos da época escravagista, a exemplo de sua proteção cultural, como grupo étnico formador do processo civilizatório nacional, tendo sido 101 SOUZA FILHO, C. F. M. O renascer dos povos indígenas para o direito, p. 183. proporcionado o direito coletivo ao território, assim dispondo a Constituição: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitirlhes os títulos respectivos.” Percebe-se que, embora não sejam utilizados termos de mais peso pluralista como autonomia, a Constituição Federal de 1988 conduz a um processo de abertura em que se pode vislumbrar um horizonte mais amplo, e dar passos largos em direção a ele. Não se fez menção ao direito consuetudinário ou a sistema jurídico para designar a organização social indígena, por exemplo, mas, numa visão integrada de contexto regional e mundial é inegável a possibilidade de desenvolver-se hermenêutica nesse vetor. A partir de uma análise sistemática dos dispositivos constitucionais mencionados, aliados aos princípios de dignidade humana102, igualdade103, bem como aos objetivos fundamentais da República, quais sejam de se construir uma sociedade justa, solidária104 e livre de discriminação105, é que se afigura inegável o aspecto multicultural, pluralista e coletivo da Constituição de 1988. Sua profunda preocupação com a preservação da riqueza cultural brasileira é imanente. As ferramentas para a construção gradativa do pluralismo jurídico estão disponíveis, embora não com a certeza de uma política verdadeiramente comprometida por parte do Estado brasileiro, pois este ainda se encontra muito preso às amarras do monismo e do formalismo jurídico, mas que inegavelmente tende ao estabelecimento de uma plurietnicidade mais efetiva. Em nosso País vive-se uma intensa miscigenação, onde vários grupos étnicos são formadores e integram a identidade nacional. Na verdade, melhor seria o termo “diversidade nacional”, ao invés de identidade, para representar o povo brasileiro, pois o que percebemos é a existência de uma identidade diversa nacional. 102 Art. 1º, III. Art. 5º, caput. 104 Art. 3º, I CF/88. 105 Art. 3º, IV CF/88. 103 Desde os povos originários, como são os indígenas, até aqueles que foram brutalmente seqüestrados das terras africanas, para serem aqui forçados ao trabalho, sem esquecer dos diversos grupos de imigrantes europeus e asiáticos que aqui chegaram, toda essa miscelânea cultural teria que ser considerada, quando da elaboração de uma constituição que almejava representar legitimamente a vontade popular. Por essa razão, a Constituição cidadã - como ficou conhecida, devido ao seu caráter inovador e democrático - protegeu a diversidade cultural e cedeu espaço para a afirmação do pluralismo jurídico e de um Estado multicultural. Nesse sentido, Souza Filho106 menciona que: (...) a Constituição abre as portas para o reconhecimento da jurisdição indígena, quer dizer ao reconhecimento das normas internas que regem as sociedades indígenas e os processos pelos quais se decidem os conflitos por ventura ocorrentes. Mais alguns passos e os povos indígenas poderão, em seus idiomas tradicionais, exercer entre seus membros seu direito tradicional. No âmbito da legislação infraconstitucional acha-se em discussão, no Congresso Nacional e na sociedade civil, a proposta para alteração no atual Estatuto do Índio - Lei nº 6.001/73. A idéia é dar uma nova roupagem à regulamentação atual, a qual se acha muito distante da realidade coletiva que se apresenta no panorama mundial, dando-lhe o título de Estatuto das Sociedades Indígenas. A opção pelo nome sociedades ao invés de povos denota o não enfrentamento da questão pelo prisma contemporâneo. Embora a concepção ideológica que se esconde por trás dessa atitude seja de enfraquecimento da idéia de autodeterminação indígena, é consenso da maioria que, na prática, não deverá haver comprometimento significativo a esse respeito, considerando a inconteste consagração do termo povos, e o amadurecimento em torno da temática voltada para a sua emancipação. A Constituição Federal modificou, sobremaneira, a interpretação da Lei 6.001/73 que refletia, ainda, uma política ultrapassada de integração dos 106 SOUZA FILHO, C. F. M. O renascer dos povos indígenas para o direito, p. 162. índios à comunhão nacional. A partir de 1988 a legislação ficou em descompasso com a realidade. Como vimos, toda essa mudança no aspecto constitucional ocorreu não apenas no Brasil, mas em toda a América Latina. A maioria delas contemplou os direitos culturais e abriu caminhos para a formação jurídica do multiculturalismo. Algumas foram mais contundentes e outras mais tímidas e, de maneira geral, houve uma verdadeira revolução no continente, relativa à mudança de posição acerca dos direitos dos povos originários. Esse processo não parou com a celebração das constituições, até porque nem sempre o que está escrito no documento político é realizado. Não raras vezes, observa-se um grande descompasso com o que se garante nas constituições e o reflexo na vida dos povos. Apesar do discurso pluralista, social e democrático, muitos Estados optam por continuar adotando uma política indigenista débil e muito aquém dos compromissos assumidos constitucionalmente. A Bolívia em particular viveu, nos últimos anos, mudanças profundas no aspecto sóciopolítico e, principalmente, relacionadas com o tratamento de sua maioria indígena. Ao lado da Colômbia e Paraguai, teve uma das constituições mais ousadas no aspecto de reconhecimento da diversidade cultural. Reconheceu aos povos indígenas sua própria jurisdição, embora os mecanismos de adequação entre o sistema nacional e o indígena107, tenham ficado a cargo de uma demorada lei posterior. A realidade boliviana de hoje corresponde a uma verdadeira transformação de um Estado uno para pluriétnico e multicultural. Por isso vamos nos deter a analisá-la ainda que rapidamente. 4.5.2 Bolívia: uma transformação multicultural Recentemente, acompanhamos com muito destaque da mídia a vitória nas urnas do primeiro presidente de um Estado nacional latino-americano que 107 As chamadas regras federais ou a instituição do pluralismo jurídico formal na perspectiva de Hoekema mencionadas no tópico anterior. assumiu a identidade indígena: Evo Morales. Fato histórico e oriundo das intensas transformações que estão acontecendo no aspecto do multiculturalismo no cenário latino-americano. Iniciando o novo governo, o Presidente convocou uma Assembléia Nacional Constituinte que visa editar uma nova constituição para o país. Segundo o censo de 2001108, 62% da população boliviana é indígena, sendo a maioria pertencente aos povos quechua (30,7%) e aimara (25,2%). Na região andina, 75% da população se autoidentifica109 como pertencente a algum povo indígena. Portanto, na Bolívia, não se fala em minoria étnica e sim em maioria absoluta. Esses dados, certamente, estimulam a reconstrução da identidade boliviana que fora, até então, voltada para um conceito de Estado único, no máximo mestiço, como também ocorreu no México e em diversos outros países da América. Para se ter uma idéia, a situação dos povos indígenas da Bolívia não mudou muito com a independência do país em 1825. Como aconteceu com praticamente toda a América Latina, o direito do colonizador foi substituído pelo direito nacional, sendo o último praticamente copiado do primeiro. A tendência era desconhecer a pluralidade étnica do país, encarada sempre como fraqueza e doença do Estado monista que, para assegurar materialmente seu poder, buscava a consolidação de uma só cultura. Em 150 anos de história boliviana, após sua independência, houve alternância de regimes ditatoriais, promulgação de constituições e importantes revoluções como a de 1952, até que em 1982 a democracia se consolidou. Com a queda do muro de Berlim e o fim da bipolarização mundial, houve a adoção definitiva de um modelo neoliberal naquele país. A Bolívia, no ano de 1994, aprova a Lei de Participação Popular que proporcionou ao movimento dos cocaleiros (plantadores tradicionais da folha 108 ALBÓ, X. Hacia una Bolivia plurinacional e intercultural, p.2. O critério da autoidentificação para o reconhecimento da identidade indígena foi trazido pela Conveção 169 da OIT. 109 de coca) e aos campesinos uma atuação social marcante voltada, principalmente, para combater o impositivo modelo neoliberal vindo de fora. Aliado a estes movimentos estava o MAS (Movimento ao Socialismo – Instrumento Político para a Soberania dos Povos), partido político que foi criado em 1995 como referência daqueles movimentos, com um conteúdo étnico muito forte, e propondo mudanças relativas à exploração dos recursos ambientais. Na liderança do MAS estava o aimara Evo Morales que iniciou um processo de alianças com outros setores da sociedade boliviana. Por outro lado, a elite organizada da região de Santa Cruz crescia em tamanho e força política, o que provocou quase um empate nacional dividido entre os dois movimentos. O MAS foi crescendo a cada disputa eleitoral e culminou na vitória de Evo na última eleição presidencial. Em 15 de agosto de 2006 o governo iniciou o processo da Assembléia Nacional Constituinte com o intuito de elaborar uma nova constituição política, conforme já era exigido no país há anos. O texto final deverá contar com a aprovação de 2/3 de seus membros eleitos e, depois, ainda será submetido a um referendo popular. Dos 255 participantes da Constituinte, 92 são oriundos dos povos originários, dos quais quase a metade são mulheres. O debate atual encontra-se um pouco emperrado. O MAS, que representa quase 54% da Constituinte, ainda não elaborou um documento sério acerca do que será a nova constituição. Em meio a este estado de coisas, houve a explosão econômica no preço dos hidrocarbonetos (componente essencial da economia boliviana) e, também, os problemas relacionados com sua gestão. Até 14 de agosto de 2006 havia 84 projetos compilados pela Representação da Presidência para a Assembléia Constituinte. A proposta, considerada por Xavier Albó110 como a mais interessante, corresponde à realizada pela Assembléia Nacional das organizações mais importantes do país, constituídas de povos indígenas, originários, campesinos e de colonizadores da Bolívia, que foi debatida e elaborada durante diversas reuniões no âmbito regional e uma no âmbito nacional. Ainda não representa 110 ALBÓ, X. Hacia una Bolivia plurinacional e intercultural, p. 14. um documento final acerca do que será a constituição, mas é a proposta que melhor atende os anseios dos diversos povos existentes no país. A Proposta Indígena, Originária e Campesina (PIOC) apresenta no próprio título aquilo que quer para o futuro da Bolívia: Por um Estado Plurinacional y la autodeterminación de los pueblos y naciones indígenas, originárias y campesinas. O preâmbulo do documento resume as principais idéias constantes da proposta: El Estado Plurinacional es un modelo de organización política para la descolonización de nuestras naciones y pueblos, reafirmando, recuperando y fortaleciendo nuestra autonomía territorial, para alcanzar la vida plena, para vivir bien, con una visión solidaria [y] de esta manera ser los motores de la unidad y bienestar social de todos los bolivianos, garantizando el ejercicio pleno de todos los derechos. Para [su] ...construcción y consolidación... son fundamentales los principios de pluralismo jurídico, unidad, complementariedad, reciprocidad, equidad, solidaridad... [Está]... basado en las autonomías indígenas indígenas, originarias y campesinas... como un camino hacia nuestra autodeterminación como naciones y pueblos, para definir nuestras políticas comunitarias, sistemas sociales, económicos, políticos y jurídicos, y en este marco reafirmar nuestras estructuras de gobierno, elección de autoridades y administración de justicia, con respeto a formas de vida diferenciadas en el uso del espacio y el territorio. Jurídicamente nuestra propuesta se fundamenta en los derechos colectivos consagrados en Tratados Internacionales de Derechos Humanos, como el Convenio 169 de la OIT. Es de especial importancia nuestro derecho a la tierra y los recursos naturales: buscamos poner fin al latifundio y a la concentración de la tierra en pocas manos, y al monopolio de los recursos naturales en beneficio de intereses privados. [Su] estructura... implica que los poderes públicos tengan una representación directa de los pueblos y naciones indígenas, originarias y campesinas, según usos y costumbres, y de la ciudadanía a través del voto universal. (grifos nossos) Trata-se de uma verdadeira revolução de todos os conceitos envolvendo as noções de direito e Estado - uma nova concepção, fundada no coletivismo e na crença de que a felicidade não é algo que se constrói individual e egoisticamente. O processo de constituinte deve continuar buscando uma reestruturação da Bolívia, numa tentativa pioneira e louvável em prol do reconhecimento efetivo do multiculturalismo, assumindo, definitivamente, uma condição fática que lhe é peculiar, mas não muito distante das demais realidades latino-americanas. Como bem afirmou Albó111, este panorama, como não poderia deixar de ser, apresenta muitos desafios, problemas nada fáceis de serem resolvidos. Por todo o continente latino-americano podem ser encontradas réplicas dessa situação, em maior ou em menor grau. Cabe a cada país escolher o rumo que vai tomar. 4.5.3 As possibilidades reais de um sonho O estudo acerca da situação boliviana, certamente, representa um alento e esperança para o valor diversidade. Percebemos que, como bem nos ensinou Ferdinand Lassale, a constituição, por mais importante que seja como documento político de “uma nação”, não passa de folhas de papéis escritas que apenas representam a divisão do poder dentro de uma determinada sociedade. Esta é, em síntese, em essência, a Constituição de um país: a soma dos fatores reais do poder que regem uma nação. Mas que relação existe com o que vulgarmente chamamos Constituição? Com a Constituição jurídica? Não é difícil compreender a relação que ambos os conceitos guardam entre si. Juntam-se esses fatores reais do poder, os escrevemos em uma folha de papel e eles adquirem expressão escrita. A partir desse momento, incorporados a um papel, não são simples fatores reais do poder, mas sim verdadeiro direito – instituições jurídicas. 112 (grifos no original) Nessa perspectiva podemos refletir: quais são os fatores reais de poder de um país latino-americano? Qual é a nossa realidade? Não devemos nos afastar dela para pensar num futuro ou num projeto de país. A constituição, uma vez sendo considerada mera folha de papel, pode ser rasgada e escrita uma outra - assim como o faz a Bolívia neste exato momento. Em outros casos, talvez, isso não seja necessário. 111 Palestra proferida em 19/10/2006 no V Congresso da Rede Latino-americana de Antropologia Jurídica na cidade de Oaxtepec,Morelos-México. 112 LASSALE, F. A essência da Constituição, p. 17-18. Uma constituição que garante, dentre os mencionados fatores reais de poder, o lugar e o reconhecimento do multiculturalismo abre espaço para uma conduta de real efetivação, a depender da vontade política. O presente desafio de concretizar o pluralismo jurídico é paradigmático, pois envolve uma reformulação quase total dos conceitos concebidos por séculos de história ocidental. Ele está ligado diretamente à relativização das noções de soberania, propriedade e direito positivo, colocando-os em cheque e naturalizando uma crise que também fora negada por muito tempo. É visível a crise do Estado e de seu Direito (...). Todos os primados do Direito chamado moderno, seus fundamentos, o direito individual como direito subjetivo, o patrimônio como bem jurídico, a livre manifestação de vontade estão abalados. Com este abalo outros dogmas perdem a credibilidade, como a separação de poderes, a neutralidade e o profissionalismo do poder judiciário, a representatividade dos parlamentos, a soberania nacional, a supremacia da Constituição. Esta crise é diferente de outras já havidas e às vezes mal superadas, porque atinge o âmago, os 113 alicerces do sistema jurídico. Um novo direito, um novo Estado, para uma nova realidade: a do século XXI. O novo é quase sempre difícil de ser aceito, pois em geral tudo se mostra diferente, e , por isso, uma grande ameaça ao clássico, ao “estar acostumado”. Por preguiça ou falta de coragem, pode-se preferir não realizálo e deixar as coisas nos seus lugares, entendidos como devidos, quando na verdade não o são. Às vezes, porém, a falta de vontade não é desinteressada. O silêncio e a inércia são fortes atitudes, principalmente, quando se tratando de direito. O não enfrentamento do problema corresponde à sua negação. É em si mesmo uma meticulosa e bruta forma de opressão. Trata-se de uma violência 113 SOUZA FILHO, C. F. M. Os direitos invisíveis. In: OLIVEIRA, F.; PAOLI, M. C (orgs). Os Sentidos da democracia: políticas do dissenso e hegemonia global, p. 307.