ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA EK Nº 70053833638 2013/CÍVEL APELAÇÃO. DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. ATO ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. SORTEIO DE UNIDADES HABITACIONAIS DO RESIDENCIAL COLMEIA. PROGRAMA MINHA CASA MINHA VIDA. MUNICÍPIO DE IJUÍ. EXIGÊNCIA DE CERTIDÃO NEGATIVA DE CRIMES SEXUAIS OU TRÁFICO DE ENTORPECENTES. IMPETRANTE CONTEMPLADA QUE, POR ESTAR A CUMPRIR PENA POR TRÁFICO DE DROGAS, FOI ALIJADA DA POSSE DO IMÓVEL. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA ISONOMIA. CRIAÇÃO DE PENA ACESSÓRIA QUE SE ESTENDE AOS FILHOS MENORES DA IMPETRANTE E QUE NÃO FOI PREVISTA NA SENTENÇA CONDENATÓRIA CRIMINAL. DIREITO LÍQUIDO E CERTO VIOLADO. SEGURANÇA CONCEDIDA. A exigência imposta pelo Município de Ijuí viola o princípio da isonomia e cria pena acessória não prevista na sentença que condenou a apelante. Limitação não prevista em lei, oriunda de mera ata do Conselho Municipal de Habitação. Afastamento da impetrante do programa habitacional que penaliza diretamente os seus filhos menores, o que é vedado pelo artigo 5º, XLV, da Carta Federal, segundo o qual a pena não passará da pessoa do condenado. Programa habitacional municipal (Lei Municipal nº 5.322/2010) que tem por diretriz a inclusão social. Leis nº 9.029/95 e 12.681/12 que denotam tendência limitadora da utilização da certidão de antecedentes criminais para fins da vida civil. Violação a direito líquido e certo verificada, que impõe a concessão da ordem. APELAÇÃO PROVIDA. UNÂNIME. APELAÇÃO CÍVEL Nº 70053833638 SILVANA RASIA TOLOMINI AVALOS MUNICIPIO DE IJUI VIGÉSIMA SEGUNDA CÂMARA CÍVEL COMARCA DE IJUÍ APELANTE APELADO 1 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA EK Nº 70053833638 2013/CÍVEL ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos. Acordam os Magistrados integrantes da Vigésima Segunda Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em dar provimento ao apelo. Custas na forma da lei. Participaram do julgamento, além do signatário, as eminentes Senhoras DES.ª MARIA ISABEL DE AZEVEDO SOUZA (PRESIDENTE E REVISORA) E DESA. MARILENE BONZANINI. Porto Alegre, 13 de junho de 2013. DR. EDUARDO KRAEMER, Relator. RELATÓRIO DR. EDUARDO KRAEMER (RELATOR) SILVANA RASIA TOLOMINI AVALOS impetrou mandado de segurança contra ato do PREFEITO MUNICIPAL DE IJUÍ, impugnando a exigência, para tomar posse de apartamento no Residencial Colmeia, ”da apresentação de certidão criminal negativa de crimes sexuais e de tráfico de entorpecentes”. A sentença (fls. 98-9), denegatória da ordem, assim relatou o feito, in verbis: Silvana Rasia Tolomini Avalos impetrou Mandado de Segurança contra ato do Prefeito Municipal de Ijuí. Disse, em suma, que se enquadrou na condição de hipossuficiente para habilitação em programa habitacional realizado pelo Município de Ijuí, sendo contemplada. Relatou, 2 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA EK Nº 70053833638 2013/CÍVEL contudo, a exigência da entrega da documentação até a data de 31/05/2012, consistindo, dentre outras, na apresentação de “certidão criminal negativa de crimes sexuais e de tráfico de entorpecentes”. Informou que não seria possível o cumprimento desse requisito, uma vez que possui condenação criminal por tráfico de entorpecentes, atualmente prestando serviços à comunidade, e não teria cumprido a pena até o prazo indicado. Asseverou que a certidão mencionada fere o princípio da isonomia entre os concorrentes e, por isso, é inconstitucional. Requereu, liminarmente, a segurança para que seja excluído o requisito anteriormente citado, possibilitando que tome posse e seja declarada proprietária do imóvel. Ao final, a declaração de inconstitucionalidade de tal requisito. Indeferido o pedido liminar. instrumento, foi negado seguimento. Interposto agravo de Prestadas informações pelo impetrado. Opinou o Ministério Público pela parcial procedência do pedido. Inconformada com o decisum, a impetrante interpõe recurso de apelação (fls. 100-3v). Alega, em suas razões, que é psicóloga e tem três filhos menores de idade, residindo em casa alugada. Por ser considerada sua hipossuficiência, enquadrou-se nos requisitos mínimos para habilitação no edital lançado pelo Município de Ijuí para a concessão de moradias populares, sendo contemplada em sorteio realizado em 16/03/2012. Diz que, uma vez foi aberto prazo para apresentação dos documentos necessários à tomada de posse do imóvel, foi feita exigência inconstitucional, qual seja, a comprovação da negativa da prática de crime sexual e de tráfico de entorpecentes. Assinala que foi condenada por tráfico de drogas (pena de 1 ano e 8 meses de reclusão), sendo a pena de restrição de liberdade substituída por duas restritivas de direitos, sendo uma delas a prestação de serviços à comunidade. Assevera que restam apenas 221 horas de PSC a serem prestados e está pendente o pagamento de prestação pecuniária, 3 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA EK Nº 70053833638 2013/CÍVEL sendo certo que a exigência aludida se mostra inconstitucional, ferindo o princípio da isonomia entre os concorrentes. Reputa inviável a escolha deste ou daquele crime como impeditivo à posse dos apartamentos, medida que afronta o princípio da igualdade e que destoa da discricionariedade conferida pela lei à Administração. Frisa ser psicóloga que presta serviços junto à assistência social municipal, criando-se situação em que está apta a beneficiar o Município com seu trabalho, mas não a receber tratamento igual aos demais cidadãos. Relembra que a tendência da política criminal do Brasil é incentivar a reinserção social do ex-delinquente, o que se insere ao longo de evolução pela qual tem passado a sociedade. Reitera que a norma criadora da exigência impugnada é hierarquicamente inferior à Constituição Federal, a qual instituiu o caráter ressocializante da pena, sendo que inviabilizar o acesso da apelante ao programa habitacional pela existência de condenação criminal pretérita é atribuir à condenação efeitos não previstos na sentença. Colaciona precedentes de jurisprudência referentes a situações análogas à dos autos e pugna pela reforma da sentença. Contrarrazões às fls. 106-9. Remetidos os autos a esta Corte, foram com vista à Procuradoria de Justiça, sendo exarado parecer pelo provimento do apelo (fls. 114-6). É o relatório. VOTOS DR. EDUARDO KRAEMER (RELATOR) Eminentes colegas. Exige o Município de Ijuí que a impetrante, contemplada que foi com um apartamento no Residencial Colmeia (Programa Minha Casa Minha Vida) apresente a certidão criminal negativa de crimes sexuais e de tráfico 4 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA EK Nº 70053833638 2013/CÍVEL de entorpecentes como condição para obtenção da posse do imóvel. Ocorre que a apelante não pode exibir o documento em virtude de ter sido condenada pelo delito de tráfico de entorpecentes, estando a prestar serviços à comunidade junto à assistência social do ente municipal. Pois bem. A questão devolvida a exame deveria ser considerada singela, mas assim não é tratada porque imbricada de nuances sociais que desbordam da estrita aplicação da lei, embora a ela me atenha para o justo deslinde do feito. A Constituição Federal proclama, em seu artigo 5º, o princípio da isonomia, estatuindo que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. O artigo seguinte elenca os direitos sociais, consubstanciados na educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados. De início, já é possível verificar que, in casu, não foi garantido o direito social à moradia de modo isonômico entre os concorrentes às unidades habitacionais. Isso porque foram escolhidos apenas dois tipos de crimes (sexuais e de tráfico de entorpecentes) como óbices à obtenção da posse dos imóveis. A par da discussão acerca da possibilidade de ser exigida a certidão de antecedentes criminais para casos como o presente, o simples fato de serem selecionados dois tipos de crimes apenas – dentre tantos previstos nas leis penais de regência – como graves o suficiente para impedirem a obtenção dos apartamentos já afronta visivelmente a isonomia constitucionalmente prevista. Além disso, o artigo 5º, XLV, da Carta Federal reza que a pena não passará da pessoa do condenado, mas a medida impugnada no mandamus penaliza diretamente os filhos menores da 5 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA EK Nº 70053833638 2013/CÍVEL apelante (são três filhos, dois menores – fls. 08-10), que não poderiam concorrer no sorteio dos imóveis e, tendo sua mãe sido contemplada, não poderão usufruir da nova moradia em virtude da condenação penal da progenitora. Merece nota, nesse ponto, o fato de que o mandado de segurança em curso não é sigiloso, sendo certo que na comunidade em que inserida a família da impetrante já houve repercussão pejorativa de sua exclusão do programa habitacional pela condição de apenada por tráfico de drogas. E tal fato, por óbvio, também atinge os seus filhos. Em emblemático precedente do e. STF, nos autos do Recurso Extraordinário nº 93.230/DF1, de relatoria do Ministro Soares Muñoz, ao ser discutida a situação profissional de jornalista condenado nos termos da Lei de Segurança Nacional, foi referido que qualquer norma limitadora dos Direitos Individuais do Cidadão deve ser interpretada restritivamente, literalmente, visto que constitui exceção à regra geral constitucional que garante amplos direitos ao cidadão. No aresto é transcrito voto vencido do Ministro Carlos Mário Velloso, segundo o qual esse tipo de limitação civil por condenação criminal tem um aspecto kafkiano, pois o recorrente foi condenado a dois anos de reclusão pela Lei de Segurança Nacional. A ele não foi imposta qualquer pena acessória. A própria Lei de Segurança Nacional, a mais rigorosa da República, não prevê qualquer medida acessória, que vede o acesso a profissão de jornalista aos condenados por sua aplicação. Entretanto a autoridade administrativa e o V. Acórdão recorrido aplicaram verdadeira pena acessória ao recorrente, sem que esta estivesse anteriormente prevista em lei. São os sinais dos tempos, regredimos para tempos anteriores a 1 RE 93230/DF, Primeira Turma, julgado em 18/11/1980, DJ 19/12/1980. 6 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA EK Nº 70053833638 2013/CÍVEL Beccaria. Bons tempos no quais o princípio do “Nullum Crimen Nulla Poena sine Lege” era respeitado”. Seguindo na linha do aludido acórdão do e. STF, cujo caso então em julgamento remontava à época da ditadura, causa espécie que a limitação imposta pelo ente municipal não advenha de lei, mas de simples ata de reunião do Conselho Municipal de Habitação (Ata 022010-COMHAB - fl. 84), criando verdadeira pena acessória não prevista na sentença condenatória da apelante e violando o artigo 1º do Código Penal. Mais. A Lei Municipal de Ijuí nº 5.322/2010, que institui o Programa Municipal de Habitação de Interesse Social, não prevê a entrega de certidão criminal para a tomada de posse dos imóveis. Em seu artigo 2º, XIII, o programa tem por diretriz a vinculação dos projetos habitacionais a ações de inclusão social (fl. 59), sendo certo que a exigência imposta faz o contrário, exclui socialmente. Além disso, o artigo 11 da mesma lei prevê quais são os beneficiários das unidades habitacionais, delimitando requisitos que dizem com tempo de residência no Município, renda familiar máxima, inexistência de outro imóvel em nome do interessado e comprometimento no auxílio a mutirão de construção de outras moradias (fls. 61-2). O artigo 12, por seu turno, trata dos documentos necessários à inscrição no programa habitacional, inexistindo ali qualquer menção a existência, ou não, de prévia condenação criminal (fl. 62). Retomando tudo o que foi analisado até aqui, tem-se, no caso em exame, grave violação a princípios constitucionais e penais, além de flagrante ilegalidade, porquanto simples ata do COMHAB pretende fazer as vezes de lei, limitando o direito líquido e certo da impetrante de tomar posse do bem imóvel. Pensamento diverso referenda o sentimento de vingança existente em nossa sociedade que, a pretexto de buscar por segurança – ou paz social, como justificado pelo Município de Ijuí – acaba por marginalizar 7 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA EK Nº 70053833638 2013/CÍVEL ainda mais as pessoas que cometem delitos, inviabilizando não só o seu retorno à sociedade como a vida dos seus familiares em comunidade. Apenas como argumento de reforço, relembro os termos da Lei nº 9.029/95, a qual proíbe a exigência da certidão de antecedentes criminais para a obtenção de emprego. Mais específica ainda, a recente Lei nº 12.681/2012, que alterou o artigo 20, parágrafo único, do Código Penal, suprimiu a possibilidade de extração de atestado de antecedentes com referências a condenações criminais anteriores, sendo visível a tendência de se utilizarem tais dados para a sua verdadeira finalidade: aplicação e execução da pena, o que já é bastante. Esta Corte já julgou casos análogos ao sub judice, a exemplo do seguinte precedente: Apelação Cível Nº 598044873, Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Arnaldo Rizzardo, Julgado em 13/05/1998 MANDADO DE SEGURANCA. ATO ADMINISTRATIVO EM LEI MUNICIPAL QUE VEDA A AUTORIZACAO PARA A PROFISSAO DE MOTORISTA DE TAXI A PESSOA CONDENADA EM PROCESSO CRIMINAL. ALEM DE ESBARRAR NA CONSTITUICAO FEDERAL, NAO PODE A LEI ATRIBUIR EFETIOS A CONDENACAO OUTROS QUE A SENTENCA. SEGURANCA CONCEDIDA, COM PROVIMENTO DA APELACAO. (grifei) Evidenciada a violação do direito líquido e certo da impetrante, a concessão da ordem se impõe, sendo ela eximida da apresentação da certidão de antecedentes criminais para tomar posse do imóvel já sorteado. Diante do exposto, voto pelo provimento do apelo. DJL 8 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA EK Nº 70053833638 2013/CÍVEL DES.ª MARIA ISABEL DE AZEVEDO SOUZA (PRESIDENTE E REVISORA) - De acordo com o(a) Relator(a). DESA. MARILENE BONZANINI - De acordo com o(a) Relator(a). DES.ª MARIA ISABEL DE AZEVEDO SOUZA - Presidente - Apelação Cível nº 70053833638, Comarca de Ijuí: "DERAM PROVIMENTO AO APELO. UNÂNIME." Julgador(a) de 1º Grau: GUILHERME EUGENIO MAFASSIOLI CORREA 9