A oitava aparição Certo fim de tarde, após esbravejar com sua fiel secretária, só porque lhe deu boa tarde, foi surpreendido pelo toque de seu celular. Não era um toque de chamada, mas um diferente. Irritou-se ainda mais, pois seu aparelho não era de uso corriqueiro e só em caso de emergência era acionado. Naquela hora não apareciam emergências, pois estava em seu consultório e outro colega cuidava dos casos urgentes. Ademais, que toque era aquele? Sua secretária, que não se abalava mais com estes rompantes de cólera, pois sabia que seu chefe havia mudado nos últimos tempos, já havia se adaptado a seu novo humor ambivalente. Como sua função era servi-lo, disse-lhe: “é uma mensagem”. Quase gritando, protestou, pois nunca havia se comunicado por esse meio com qualquer pessoa. Como também não recebera mensagens até então, não sabia como acessá-las. Após algumas rápidas instruções conseguiu lê-la. Um endereço, um dia, uma hora e um dizer: “entre e sente-se”. Como assim “entre e sente-se”? O que, afinal, sua obsessão estava lhe aprontando novamente? Já sabia que era ela. Dentro de dois dias, deveria ir a um endereço desconhecido, para entrar e sentar. Mas como poderia amá-la sentado, pois seu desejo era abraçá-la, deitá-la na cama e possuí-la da forma que sempre fizera com seus amores. Mas quantos amores ele teve? “Não, não vou sentar em nenhum lugar. E não irei a qualquer lugar.” Desta vez estava disposto a enfrentar os jogos diabólicos daquela “menina desaforada”. Não aceitaria mais ter sua vida determinada. Não iria mais se arriscar. Afinal, sua enxaqueca era suportável, um novo medicamento lhe prometia noites mais bem dormidas, e os limites de seu pânico eram conhecidos. “Chega, chega e pronto! De agora em diante, eu decido”, sentenciou. Afinal, concluiu, “minha família e minha vida social são valores importantes e não vou mais colocá-los em risco.” Estava, de fato, melindrado. As 1 horas que se seguiram foram contraditórias. Quanto mais convicto estava do fim decretado, mais lhe incomodava a ordem recebida e lhe amedrontava a chegada da hora fixada. No dia marcado, para não sucumbir à tentação, foi com sua família ao Clube de Campo encontrar amigos e aproveitar a tarde ensolarada. Um dia magnífico, sem dúvida! O período vespertino transcorrera normalmente, a esposa conversando com outras esposas, os filhos com amigos e ele conversando com outros homens da sociedade. Houve momentos em que esqueceu seu compromisso das dezenove horas, mas a cada minuto que passava, sua aparente tranquilidade ia se alterando. Ficou impaciente e passou a olhar seu relógio constantemente, mas não estava disposto a mudar de ideia. Ademais, conferira o endereço. Era de um bairro classe média muito baixa e não queria se misturar com essa gente. “Como iria àquela casa para entrar e sentar?”, pensava. “Outra loucura, não”. Tentou acalmar-se dizendo de si para si que já não dava mais tempo, pois o local era longe e só teria meia hora para chegar lá. Sua esposa o chamou, de longe, fazendo gestos. Viu que estava ao lado de velhos amigos, que há muito não via, pois estavam em longa viagem pela Europa. Eram bons amigos e, por certo, tinham muito para conversar. Estava com saudades deles, ao menos deveria estar, mas, de súbito, ao ver sua mulher insistir em não aceitar suas tentativas de fazer que não via, ficou profundamente irritado. Começou a caminhar em sua direção, contrariado. Teve início uma sudorese. Palpitações lhe vieram ao peito. Mal conseguia andar. Sua angústia atingiu-lhe a profundeza da alma. Ao se aproximar de sua esposa e do casal de amigos, nem sequer lhes cumprimentou. Apenas conseguiu dizer: “É uma emergência, tenho de ir.” E saiu quase correndo, em direção a seu veículo. Foi-se em alta velocidade, colocando em risco as pessoas 2 que frequentavam o clube. Mais tarde, sua família, um tanto constrangida, após tentar chamar diversos números telefônicos, teve de ir para casa de carona com um amigo, sempre disposto a ajudar famílias em crise. Para não ver o morno de sua própria vida, o sujeito vivia atento e interessado nos assuntos alheios. Apesar das imprudências no trânsito, o médico chegou ao misterioso endereço. Estava sem dúvida em um bairro distante, onde havia algumas fábricas antigas desativadas. Entre elas, uma rua melancólica, com vários casarões, dispostos um ao lado do outro e construídos diretamente a partir da calçada, bastante escuros e com pintura há muito sem conservação, sem qualquer muro, pois as próprias paredes dianteiras serviam de proteção. As construções davam a impressão de um lugar abandonado pelos vivos, que despertava todos os medos que habitam a imaginação humana. Estar fora de sua rotina, de seus lugares seguros, estar transitando pelo mesmo solo daquela gente, já produzia sensações angustiantes no respeitado médico. Aquele lugar em especial trouxe-lhe à mente fantasmas da infância. O bicho-papão retomou seu poder, reconstitui-se em sua grandeza e passou a aterrorizá-lo como nunca. Seu autocontrole, mais uma vez, se foi... Suava frio e seu coração batia em ritmo de pré-infarto. Fugir, sair dali era sua vontade, mas seu desejo de obedecer à ordem “entre e sente-se” era ainda maior. Conseguiu, com dificuldade, visualizar o número da casa. Estava bem no meio dos casarões. Era de uma cor escura, não se sabia se aquilo era um efeito da pintura ou consequência do tempo. Duas grandes janelas davam para a calçada frontal e, ao lado delas, uma porta de madeira antiga, dividida em duas partes, em cor de natureza já morta há décadas, com um trinco de ferro anoso, localizado acima de um enorme buraco, feito para introduzir uma grande chave. Estacionou seu veículo diante dela e ficou ali sentado, por alguns minutos que lhe pareceram 3 décadas. Não conseguia compreender por que estava fazendo aquilo. “Que força lhe tirava do razoável, do normal, do racional, e o mantinha ali, correndo todos os perigos que jamais desejara correr?” “Como e por que estava agindo contra seus pressupostos morais?” Não se tratava de ideias, mas de ações concretas. Pensou em tudo que havia passado, desde a felação no bar, o dedo no ânus, o seu consultório, travestis, o sexo com o cão, até o espetáculo no hospital. Sentiu repugnância. Não poderia ser ele, mas era. “Como compreender tudo isso?” “Por que simplesmente não parar, voltar para casa, para a (in)segurança do lar?” “Deus lhe abandonara?” “Como e por que o seu corpo estava indo, vindo e agindo em insistente desobediência às convenções, aos valores aceitos socialmente?” Neste momento, pensou estupefação ainda maior: “por que meus sintomas estão desaparecendo e só voltam quando não a vejo?” Notou que seus sonhos proibidos e inaceitáveis desapareciam quando a via. Acordou de suas meditações e dirigiu-se à porta. Hesitou diante dela. “Deveria bater ou não?” Tudo era dúvida. Colocou a mão no velho trinco para ver se estava trancada. Não estava. Abriu-a lentamente, produzindo um ruído mais alto do que queria. Deparou-se com um longo corredor, escuro, iluminado, ao final, com uma fraca lâmpada. Ao caminhar por ele, sentiu, como num passe de mágica, o dia ensolarado transformar-se em noite. E noite sombria, pois o assoalho, composto de longas tábuas, produzia um caminhar sobre ondas que faziam diversos ruídos. Sentia que seus segredos seriam revelados à humanidade. Olhos inexistentes lhes observavam. Olhos nunca vistos, mas sentidos há muito. Fortes olhos sempre a lhe olhar. Não um olhar qualquer, mas forte olhar, poderoso olhar, a lhe impingir censura, a culpá-lo, sabe-se lá como, por que e para que, mas capaz de lhe fazer sentir-se um verme, enojando e enojado de desejos indignos. “Como seria sua vida 4 sem eles?” Não seria, pois sempre estiveram presentes e agora estão a vigiar. Lembrou-se de seu pai, de como era severo. Recordou-se de sua meiga (nem sempre) mamãe, que lhe protegia e acariciava, tornando suportável o regime militar de sua educação, mas que o ameaçava, constantemente, de não lhe dar mais amor, retirar-lhe todo afeto, caso não fosse um bom menino e não lhe obedecesse. Como tinha pavor de perder o amor de sua mamãe! Como lhe atormentava a dúvida sobre o modo de ser um bom menino. Os olhares de reprovação maternos lhe vieram à mente. Arrepiou-se e sentiu um forte calafrio. Disposto a enfrentar o conflito, submetido à covardia de não assumir sem culpa aquilo que suas entranhas demandavam, seguiu em frente, não esmoreceu, foi adiante com sua dor. Fazia o que podia. Estava agindo com bravura. Ao fim do corredor havia uma enorme sala, cuja escuridão não permitia ver sua real dimensão. Aliás, há muito, seu mundo real e imaginário confundiam-se. Deparou-se com uma cortina de grosso veludo vermelho. Embora observasse tudo, não via nada. Afastou-a um pouco e enfiou a cabeça. Surpreendeu-se. Havia uma poltrona antiga de madeira, com encosto alto e retangular, de couro escuro, iluminada pela tênue luz vinda do teto. Pareceu-lhe uma cadeira de tortura, típica das utilizadas nos processos judiciais quando Estado e religião se confundiam. Em volta, era só escuridão. Tinha certeza de que se tratava de ampla sala, mas via pouco. Neste momento, titubeou. Seu sentimento era de estar invadindo casa alheia, sem a devida permissão. Sentiu-se um celerado, o pior da humanidade. Sua vida digna de médico e pai de família passou pela sua mente. “O que estava fazendo ali?” “E sua família, que havia abandonado abruptamente?” Repetiam-se essas mesmas dúvidas. Era o homem-de-bem lutando contra o homem-do-desejo. Ir embora, eis o conselho sensato. Ficar, ir adiante, a admoestação da imprudência 5 empurrada pela sexualidade. Seguiu, passando pela cortina. Com o corpo todo introduzido na sala, sentiu-se profundamente só. Olhou para um lado, para outro e disse: “Há alguém ai?” Nada, nenhuma resposta. Neste momento, o ser humano costuma deparar-se consigo mesmo. Fervilham as entranhas. As concepções de certo e errado digladiam-se. O inconsciente se expressa por sentimentos. O ego fica aterrorizado. O que fazer diante de uma situação inédita? Lembrou, então, da mensagem: “Entre e sente-se”. Já que estava ali e não queria ir embora, resolveu obedecer. Dirigiu-se à cadeira e sentou-se, constrangido, como se estivesse submetido a uma banca examinadora, com toda sua opressão simbólica. Censores inexistentes o observavam com rigor. Os olhos invisíveis abriram-se ainda mais. O fogo do inferno, do qual foi ameaçado em sua catequese, acendia-se em sua mente, com labaredas cortantes a dilacerar uma mente que ousava desejar além do permitido pelas convenções sociais. Apesar de agitado, sentia-se cômodo. A poltrona era confortável e não possuía os ferros pontiagudos das utilizadas pelos religiosos em seus processos para obter confissão. Tentou identificar o local, tirar algumas conclusões, mas continuava vendo muito pouco do mundo real à sua frente. O silêncio era sepulcral. Continuou sua conversa consigo mesmo. “O que está havendo?” Não se deu uma resposta. “Tenho de fazer alguma coisa, tentar achar uma luz.” Mas a convicção não foi forte. Por isso, continuou sentado. A ordem estava dada. Nova reviravolta na mente e decidiu: “Tenho de fixar um tempo. Não posso ficar aqui para sempre. Esperarei cinco minutos; não, quinze; então, se nada acontecer, irei embora.” Mas o que poderia acontecer? O tempo transcorria lentamente. Ruídos só da imaginação. Nada acontecia. Olhava o relógio de minuto em minuto, como se uma hora inteira tivesse 6 passado. O tempo determinado estava se esgotando. A decisão estava tomada, mas a vontade de cumpri-la esmorecera. Um minuto para completar os quinze. Iria ou não embora? Esse lhe pareceu um dilema complexo demais para decidir assim subitamente. Dezessete minutos se passara e nada. Ficou agitadíssimo, seu corpo começou a se contrair. Já não atinava seus próprios atos. Mexia-se demais, como se tivesse sido tomado por uma forte dor. Sossegou. Iria esperar como todo bom cristão. O tempo de espera é o cerne dessa cultura. Viver em espera, sacrificando o presente e aguardando o dia da redenção, quando a vida se esvai. Quando já estava a ponto de fazer qualquer coisa, sentiu uma macia pele sobre seus olhos. O cheiro, o corpo, as mãos já conhecidas. Era ela que lhe vendava. Sentiu um profundo estado de serenidade. Estava bem. Tentou olhar para trás, mas as delicadas mãos seguraram firme sua cabeça. Não reagiu. Deixou-se. Cerrou os olhos por baixo das palmas. As mãos passaram a alisar seu corpo, iniciando pelo pescoço e descendo pelos braços. O prazer começou a tomar-lhe. Parte de seu corpo até então silenciosa deu sinal de vida. Um estado de graça lhe embriagou. Lentamente sentiu as mãozinhas descerem por seus braços, acariciando-os, levemente, suavemente, gostosamente, tudo a inebriar sua mente. Suas mãos estavam soltas sobre os braços da poltrona, que recepcionava todo o seu corpo de forma confortável. Pensou em dizer algo, mas calou-se, pois gozava profundamente o momento. Tranquilidade e gozo, eis seu sentimento. Tudo estava perfeito até que, de repente, sentiu seu punhos serem fixados aos braços da poltrona. Estava preso e suas tentativas de libertar-se foram barradas pela força dos ganchos ou argolas que lhe prendiam ao objeto onde sentara. Sentimentos claustrofóbicos lhe tomaram. Jamais havia sido preso, muito 7 menos amarrado, e não gostou nada disso. Mais uma vez sua tranquilidade era interrompida pelas travessuras surpreendentes da menina buliçosa. E logo agora que estava se sentindo tão bem. A situação piorou quando foi colocado sobre seus olhos, de forma muito gentil, um lenço perfumado, que lhe impediu a visão, mesmo daquele ambiente escuro. Lembrou de seu primeiro lenço, o da igreja, mas não recordou seu destino. Sua situação ficou ainda mais crítica quando aquelas mãos delicadas lhe deixaram. Mais uma vez tentou se desvencilhar, mas sem qualquer êxito. Sentiu que estava só novamente. Prostrou-se. Sentiu-se abandonado. Ela nunca lhe deixava em paz, sempre tinha uma surpresa para lhe tirar do sossego. Ficou parado, em silêncio, pensando na vida. Certa tristeza, mesclada de arrependimento, atingiu-lhe por inteiro. Culpou-se. Pensou: “bem feito, talvez agora aprenda.” Teve vontade de chorar. Seus olhos se inundaram de lágrimas. Desejou ir embora, para casa, para os seus. Ah, a segurança do lar! Em meio ao silêncio sepulcral, ouviu leve ruído. Levantou a cabeça, mesmo sem enxergar nada. Prestou atenção. Sua vontade de ir embora se afastou. A cada ruído novo, a vontade se afastava ainda mais. Uma leve excitação percorreu suas veias e artérias. Como era bom estar ali! Algo estava iniciando. Movimentos aconteciam. E ele começou a gostar. Gostou ainda mais quando as mãozinhas delicadas lhe tiraram a venda. De início teve de acostumar os olhos, para poder enxergar. Suas pupilas se adaptaram rapidamente. O local ainda estava bem escuro, mas à sua frente um pouco de luz permitiu-lhe perceber que se tratava de um local amplo, em dois níveis, com o assoalho ao fundo um pouco mais elevado. Havia também uma cama, bastante grande, a sua direita, na parte mais baixa. A luz, entretanto, ainda era muito fraca e 8 nada estava muito claro, inclusive nas profundezas de sua mente. Afinal, o que importa isso no momento? Olhava de um lado para o outro, tentando entender o incompreensível. Um vulto, uma pessoa, uma loira estonteante caminhava suavemente até a cama. Ouvia seus passos e, com um pouquinho mais de luz, viu um lindo lençol de cetim verde, com flores rosa bordadas sobre uma parte branca. Parecia haver almofadas sobre a cama. Era linda, mas não a sua travessa e ardorosa amante. Amante? Mas quem era ela? Não se importou, pois sua forma escultural falava por si. A beleza dominava a cena e dispensava apresentações. Seu olhar furtivo, assim no infinito, não se fixava em nada. Seu rosto era suave, tranquilo, como de quem faz aquilo que gosta. Seu cabelo liso chegava um pouco além dos ombros e tocava seus seios, encobrindo-os para torná-los irresistíveis. Não sabia sua idade, mas nela tudo indica jovialidade, que a vida florescia e os sinais da morte ainda estavam longe de aparecer. Chegou à cama e deitou-se sobre o lençol, como quem flutua sobre as nuvens nos sonhos infantis. Apoiou a cabeça sobre um suave travesseiro e manteve a perna direita dobrada, o que deu a seu corpo uma elegância pictural. Olhar, bastava olhar, para se obter prazeres indescritíveis. Aos poucos, sentiu uma música, muito baixa, muito suave, mas conhecida. Era um bolero, composto a pedido da dançarina de Rubinstein, cuja fama ultrapassou a do próprio compositor. O médico, no entanto, pouco ouvia. Seus olhos estavam fixos na cama, em pleno deleite. Sacudiu um pouco a cabeça, para fixar a visão, pois parecia que estava vendo coisas. É que as almofadas, sob o lençol, lhe pareceram se mover. 9 Neste momento uma claridade foi se impondo à sua esquerda. Suas vistas lhe apresentaram uma imagem que se assemelhou a uma alucinação. Desviou sua atenção das almofadas móveis e seu olhar trocou de foco. Aos poucos, vultos se tornavam formas humanas, formas desumanas. As mais próximas estavam sobre um divã. Primeiro achou que se tratava de algo raro, mas após observar com agudeza viu que eram pessoas. Aquilo que para ele em princípio eram montanhas de carnes disformes identificou-se com um casal, um homem e uma mulher, cujas massas físicas de cada um se aproximavam de 20 por cento de uma tonelada. Eram enormes, mas estavam nus e se acariciando. Parecia-lhe impossível que se encaixassem. Não tinha como, os órgãos genitais estavam muitos distantes. Havia grande quantidade de carne e gordura entre eles. Apesar disso, o toque mútuo era suave. Os rostos tinham algo de angelical. Eram grandes, muito grandes, mas meigos. As formas pareciam representar algo não-humano. Todavia se acariciavam, com ternura e delicadeza desproporcionais ao tamanho e pareciam se gostar. “Mas como poderiam se deitar um sobre o outro?” Iriam cair do pequeno divã, talvez quebrá-lo. Entretanto, seguiam e se beijavam, ternamente. Ao fundo, em lugar mais elevado, nova luz, um pouco mais ampla, mostrava uma grande cama, acima das medidas convencionais. Sobre ela, muita gente de todas as raças e opções sexuais. Havia negros e negras, brancos e brancas, amarelos e amarelas, vermelhos e vermelhas, até albinos. Representavam as mais diversas origens: caucasoides, negroides, mongoloides e suas derivações. Todos juntos, pelados, uns sobre os outros, fazendo de tudo, principalmente o reprochado pela moral e pelos bons costumes. Concentravam-se sobretudo naquilo que todos fazem, ou negam fazer, ou querem fazer, ou não fazem e temem fazer. A 10 multiplicidade de cores apresentava um cenário único, que parecia dar sentido às esdrúxulas teses cromoterápicas. As cores ali, sobre a cama, possuíam um sentido estético, libidinoso, capaz de criar um poder místico terapêutico. Sim, era terapêutico ver aquele arco-íris humano fazendo sexo. De novo, voltou-se às almofadas animadas. Debaixo dos lençóis surgiram dois bufões típicos da arte barroca de Velázquez. A falta de altura não afetou as proporções dos órgãos copuladores. Eles estavam animados e partiram para cima da loira como se ali estivesse a fonte de saciação de todo o apetite da humanidade. Ela pôs-se à refeição. Eles grudaram nela como sanguessugas parasitas, pela frente e pela retaguarda. Ela preparou-se e deixou-se penetrar. De quatro, iniciou uma cavalgada pela cama, tendo os dois pequenos seres grudados em seu corpo, penetrando-a, segurando-se como podiam. Permaneciam fixos, mas flexíveis o necessário. Como eram pequenos, seus braços e suas mãos se entrelaçavam, suas pernas se entrecruzavam e os movimentos se completavam. Os obesos se encaixaram, seus corpos gelatinosos se amalgamaram, e os sexos se encontraram. O arco-da-chuva se completou em corpos coloridos unidos nas mais diversas posições. O bolero de Ravel prosseguia, dando mais ritmo às ações. O médico assistia a um espetáculo cênico, em cujo palco os prazeres da carne e da mente fluíam sem amarras, porque não havia lugar a interditos. As convenções morais, religiosas e jurídicas foram substituídas pelo gozo puro, livre dos imperativos necessários aos estímulos do Marquês de Sade. Seguia o espetáculo conforme a música. E seu amor, aquela que lhe tirou da tirania da monotonia de um homem de bem, agia como maestrina, circulando entre todos, tocando ali, mexendo lá, beijando cá, acariciando acolá, 11 agindo com ternura e beleza tal, que não deixava dúvida: era a mais bela entre tantas belezas. A excitação do homem dedicado à cura chegou a tal ponto que perdeu o controle das respostas aos estímulos. Queria urrar, agarrar, se lambuzar, trepar, gozar, explodir ou, pelo menos, participar. Mas era apenas o espectador de uma peça em que não iria desempenhar qualquer papel. As luzes, os corpos e a música chegaram, ao mesmo tempo, a um ponto máximo, no qual não há controle, equilíbrio, razão ou pensamento. Toda a energia corporal concentrou-se no gozo, e gozaram todos, cada um a seu modo, mas intensamente, sem culpa, sem desculpa, apenas gozo. Quem via não gozou, apenas observou e muito desejou. Aos poucos, como no final de uma peça, as luzes foram se apagando, os artistas se retirando, e o espectador querendo mais. Só que não haveria bis. Ficou nervoso, teve medo, como sairia dali. Uma parte de seu corpo não se conformava e seguia ereta, protestando por direitos sonegados. Subitamente, assustou-se quando viu a transformadora ajoelhar-se a sua frente. Ela, sem nada dizer, apenas libertou o indignado e abocanhou-o o máximo que pode, levando sua extremidade à garganta. Atônito de desejo, o médico esperava movimentos fortes, para expelir o sêmen acumulado. Mas ela ficou imóvel, petrificada, sem uma mínima sucção. Apenas mantinha a peça masculina ao calor de sua boca. Não durou muito, em poucos segundos ele jorrou, mas jorrou um volume inédito, em um tempo jamais visto. A moça engoliu todo o sêmen ejaculado, deixando o pênis limpo. Desfaleceu outra vez. Quando acordou, estava livre e não havia mais ninguém no recinto. Custou a organizar o pensamento. Não lembrava como chegara ao local. Resolveu tomar uma atitude. Levantou-se e foi para casa. 12