II Colóquio da Pós-Graduação em Letras
UNESP – Campus de Assis
ISSN: 2178-3683
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INTERTEXTUALIDADE ENTRE “O LIVRO DE JÓ” E O PIROTÉCNICO ZACARIAS
Elias Vidal Filho
(Graduando – UNESP/Assis – FAPESP)
RESUMO: O presente trabalho é componente da pesquisa financiada pela FAPESP, intitulada
“Vida e morte em ‘O pirotécnico Zacarias’, de Murilo Rubião”. Esse conto, publicado em livro
homônimo em 1974, apresenta como epígrafe dois versículos do livro (bíblico) de Jó. A
epígrafe anuncia um grande paralelismo entre os dois textos principalmente quanto às
discussões filosóficas. No livro bíblico, após a bancarrota, Jó vive sua segunda glória, mais rico
e com mais amigos e filhos. No conto de Rubião, Zacarias vive sua segunda glória depois de
morto. Ambos desfechos indicam a utilização subversiva e irônica que Murilo faz dos versículos
em sua epígrafe: essa transfiguração interpretativa leva à troca de valores no que diz respeito à
morte e à vida.
PALAVRAS-CHAVE: literatura fantástica; intertextualidade; existencialismo; epígrafe bíblica.
Introdução
Nascido em 1 de junho de 1916, em Carmo de Minas, Murilo Eugênio Rubião
foi professor, jornalista, embaixador e escritor brasileiro. Ao longo de sua carreira
publicou trinta e dois contos em sete livros: O ex-mágico (1947), A estrela vermelha
(1953), Os dragões e outros contos (1965), O pirotécnico Zacarias (1974), O
convidado (1974), A casa do girassol vermelho (1978) e O homem do boné cinzento
(1990). Sua obra, apesar de não muito extensa, ocupa posição importantíssima na
literatura brasileira, pois inaugurou uma nova estética de composição artística: a
fantástica. Apesar dessa reconhecida importância, a obra do escritor não tem recebido
a devida atenção tanto da crítica literária institucional quanto da academia
universitária.
Fundamentado pelas avaliações críticas da obra muriliana realizada por
Eliane Zagury, Jorge Schwartz e José Paulo Paes e pelo trabalho de Robert Alter e
ensaio “Da memória e da desmemória: excurso sobre o poeta José Elói Ottoni,
tradutor do Livro de Jó”, de Haroldo de Campos, quanto à abordagem literária do texto
bíblico, este trabalho se propõe a refletir sobre as possibilidades de diálogo entre o
conto “O pirotécnico Zacarias” (cuja epígrafe é um excerto do livro de Jó), de Murilo
Rubião, e o livro bíblico de Jó.
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O objetivo, pois, deste trabalho é analisar a aproximação entre o conto “O
pirotécnico Zacarias” e o Livro de Jó, principalmente no que diz respeito aos discursos
sobre a vida e sobre a morte em ambos os textos. Além disso, pretende-se descobrir
em que medida essa aproximação é intencional e irônica.
Literariedade do Livro de Jó
Robert Alter, em “Verdade e Poesia no Livro de Jó”, capítulo do livro Em
espelho crítico, analisa literariamente a narrativa de Jó. Alter desenvolve seu texto,
sobretudo por meio da confrontação dialética dos discursos de Deus e de Jó.
Após a apresentação da vida justa de Jó e sua posterior miséria,
desencadeada a partir da confusão posta pelo diabo, “a prosa da história básica é
substituida por uma poesia extraordinária” (ALTER, 1988, p. 23). Nesta prosa poética,
Jó deseja nunca ter nascido e passa a fazer seu discurso a favor de sua morte. Seus
amigos tentam dissuadi-lo de suas opiniões, refletindo e discutindo sobre sua situação.
Já no final da narrativa, numa aparição cósmica, Deus faz seu discurso pela vida de Jó
e ordena o restabelecimento de sua condição anterior, na verdade de maior riqueza e
abundância ainda.
Para além do enredo, Robert Alter também afirma, sobretudo, a poeticidade
do Livro de Jó:
O que se precisa enfatizar, no entanto, muitíssimo mais do que foi
feito até agora, é o papel essencial que a poesia desempenha na
realização imaginativa da revelação. Se a poesia de Jó – pelo menos
quando seu texto muitas vezes problemático e plenamente inteligível
– se destaca de toda poesia bíblica em virtuosidade e pura força
expressiva, o poema culminante em que Deus fala do meio da
tempestade eleva-se além de tudo o que o precedeu no livro, onde o
poeta elaborou um idioma poético ainda mais rico e mais
impressionante do que aquele que emprestou a Jó. Ao impelir a
expressão poética rumo a seus próprios limites superiores, o discurso
de conclusão ajuda-nos a ver o panorama da criação – como talvez
só pudéssemos fazê-lo através da poesia – com os olhos de Deus.
(ALTER, 1988, p. 25)
Então, o Livro de Jó ocupa posição importante em toda a bíblia quanto à
qualidade estética, e ainda, o discurso divino que constitui os últimos capítulos do
mesmo livro sobressai poeticamente em relação a todo o restante do Livro de Jó. A
poesia do Livro de Jó não é vazia ou desconectada do enredo, mas expressa, através
da grandiosidade formal do discurso de Deus, o conteúdo do discurso, conteúdo divino
(conforme contado).
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Em seu ensaio introdutório intitulado “Da memória e da desmemória: excurso
sobre o poeta José Elói Ottoni, tradutor do Livro de Jó” à tradução de José Elói Ottoni
do Livro de Jó, Haroldo de Campos cita o prefácio extraído da versão bíblica do Livro
de Jó do Abade de Genoude: “Nele o Livro de Jó é visto com um ‘divino poema’. Seu
autor discute se se trata ou não de um verdadeiro ‘drama’, fazendo um paralelo entre
as tragédias de Ésquilo e o poema bíblico” (CAMPOS, 1993, p. XVI). Apesar de mais
adiante o Abade opor moralmente os textos numa axiologia estética do “bem” e do
“mal”, Haroldo declara que se trata de grandezas singulares não comparáveis nestes
termos, “mas há um traço positivo em sua reflexão [do Abade]: aquele que o leva a
realçar os valores estéticos do texto bíblico” (CAMPOS, 1993, p. XVII).
As citações da obra de Robert Alter e a reflexão de Haroldo de Campos
buscam resguardar ou justificar a literariedade do Livro de Jó.
Intertextualidade subversiva – epígrafe
No conto “O pirotécnico Zacarias”, o protagonista Zacarias é atropelado por
um carro e morre. Porém, começa a ouvir a discussão das pessoas do carro que o
atropelou, sobre o destino a ser dado ao seu cadáver. Como a decisão tomada o
afetaria mais que a qualquer outro, o pirotécnico decide intervir na conversa e expor
sua posição. Assustadíssimos diante da situação insólita, depois de pequenos
conflitos, os presentes entram em consenso com o morto. De volta a sua vida quase
normal, o pirotécnico não consegue falar com ninguém sobre o acontecimento daquela
noite do acidente e, então, não tem explicada a situação insólita de sua morte, porque
os vivos sentem medo de sua presença fantasmagórica, pois uns acreditam ser ele um
fantasma, enquanto outros, uma pessoa muito parecida com o falecido, ou ainda, ser o
morto muito parecido com o Zacarias, e este, ainda vivo.
São intercalados, ao longo do conto, discursos a favor da morte e a favor da
vida de Zacarias, nos mesmos moldes do discurso de Jó pedindo sua morte diante das
atrocidades de sua vida, e do discurso divino, afirmando sua vida, uma ainda de maior
fartura depois da calamidade.
Perante esses fatos, pode-se levantar a seguinte questão: em que medida a
aproximação entre os textos é intencional e irônica? Essa dúvida se justifica, já que a
vida afirmada por Deus equivale à vida do pirotécnico após sua morte: uma vida
melhor que a anterior, destoada da vida comum da sociedade morta. Zacarias declara
que vive “com mais agrado do que anteriormente” (RUBIÃO, 1976, p. 14).
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“(Ao meu lado dançavam fogos de artifício, logo devorados pelo arco-íris)”
(RUBIÃO, 1976, p. 14), assim afirma o pirotécnico. Essa citação pode indicar uma
ironia na aproximação dos textos, porque, ao lembrarmos que, por ocasião do dilúvio,
o arco-íris simboliza, no texto bíblico, um pacto entre Deus e a humanidade de que o
mundo jamais acabaria novamente em água, mas sim queimado pelo fogo. Para
Zacarias, o fogo dança e não destrói. O fogo é devorado pela água e então não haverá
fim. A água, pois, é necessária para o aparecimento do arco-íris. É preciso existir
gotas de água no ar para que a luz do sol incida sobre elas. Da mesma maneira ocorre
com as relações humanas. Com Zacarias morto o seu fim está sacramentado, o que
lhe inaugura uma vida melhor. Assim, a água, como símbolo do nascimento,
remetendo ao líquido amniótico do útero não trás morte, mas, ao invés disso, vida.
Em uma reflexão paralela e desafiadora, e numa segunda questão a ser
levantada, qual seria o limite entre a morte e a vida? “Quando tudo começava a ficar
branco, veio um automóvel e me matou” (RUBIÃO, 1976, p. 14): o branco é a última
luz do morto ou a primeira de quem nasce? O morto transcende a realidade medíocre
dos vivos. É mais vivo. Zacarias vive melhor depois de seu declínio mesmo sem novos
amigos que lhe restabeleçam, como os de Jó.
“E se levantará pela tarde sobre ti uma luz como a do meio-dia; e quando te
julgares consumido, nascerás como a estrela d’alva”: o conto “O pirotécnico Zacarias”
é introduzido pelo versículo dezessete do capítulo onze do Livro de Jó. Essa epígrafe
extratifica o argumento de todo o conto, sua ideia essencial, a saber, a precariedade
da existência humana, sobretudo a em sociedade, que leva o homem a sucessivas
metafóricas mortes cotidianas.
A epígrafe evidencia a intertextualidade entre o conto e o Livro de Jó, e, pelo
conteúdo ideário do primeiro estabelece a subversão operada no texto bíblico por meio
dessa aproximação dos dois textos: enquanto o renascimento de Jó como estrela
d’alva pela luz do meio-dia, após a tarde, constitui a segunda – ideal – glória de sua
vida; o renascimento de Zacarias é sua morte, pois essa determina seu isolamento
social. Em Jó, seus amigos é que lhe trouxeram novamente seus bens perdidos, para
Zacarias a ausência do contato humano, impossível chamar amigos, é em si mesmo o
bem perdido no momento exato do nascimento primeiro.
Em Murilo Rubião: a poética do uroboro, Jorge Schwartz faz a primeira
tentativa de análise da obra do autor em sua totalidade, descobrindo em seus contos
uma narrativa estabelecida em suas epígrafes bíblicas. Segundo Schwartz, o herói
muriliano “refaz o percurso do uroboro, serpente mítica que morde sua própria cauda:
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um trajeto circular e kafkiano, onde são reconstituídas as questões vitais da existência”
(SCHWARTZ, 1981, contracapa).
A partir da citação de Schwartz, a morte de Zacarias corresponde à serpente
mordendo a própria cauda num processo de reconstrução da existência, pois, depois
de morto, o pirotécnico retorna a seu estado de pureza original, equivalente ao não
contato com outro humano. A vida misantropa é resultado do processo evolutivo do
humano, morto ele mesmo pelo contato com o homem.
Ainda quanto à utilização de versículos bíblicos como epígrafes por Murilo
Rubião, Eliane Zagury em “Murilo Rubião, o contista do absurdo” aponta a unidade da
produção literária de Murilo, cujo “ponto central da temática é a religiosidade do autor
que desencadeia apocalipticamente uma cosmovisão absurda” (ZAGURY, 1971, p.
28). A autora também identifica nessa produção três principais dicotomias: “vidamorte, indivíduo-sociedade e amor-incomunicabilidade” (ZAGURY, 1971, p. 29). Nessa
organização, “O pirotécnico Zacarias” é posto como exemplo da primeira dicotomia, a
partir do que conclui: “temos, portanto, em Murilo Rubião, o representante
originalíssimo de uma linha de ficção muito pouco explorada na literatura brasileira tão
afeita às analogias mais primitivas da realidade que a sustém” (ZAGURY, 1971, p. 35).
Esse arranjo temático de Zagury reitera a propriedade do presente trabalho.
Existencialismo
Ao verificar que a vida do pirotécnico permanece, e melhor, após sua morte
temos que a existência do homem está sobreposta a sua essência, porque a mudança
do posicionamento de Zacarias quanto à humanidade, de instalado a misantropo, não
significa não continuar existindo. Sendo assim, a maneira como vive a existência
correspondente a essência do homem, porque constitui concepção, ideologia. Esse
argumento é existencialista, e expresso por Sartre: “A existência precede e governa a
essência”. Outra afirmação de Sartre, “O inferno são os outros”, também extratifica a
ideia de vida misantropa de Zacarias como uma melhor existência.
Paralelamente à reflexão sartriana sobre existência e essência, em O mundo
como vontade e representação, Schopenhauer postula que o mundo é uma
representação, o homem e o objeto, e então a essência do mundo não está nele, pois
é representação, mas sim no que condiciona seu aspecto exterior, a vontade
(equivalente à escolha do posicionamento quanto à humanidade, se adaptado ou
misantropo).
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O mundo é a materialização dessa vontade. Certamente toda a vontade não
chega a ser realidade representada, a dor causada por essa irrealização ou pela
distância entre homem e objeto devido à ideia platônica dele, quando a realidade
chega a ser representada, mas não suficientemente, essa dor é imensa. Como
insatisfeito, o homem cava sempre mais funda sua ideia platônica, e o sofrimento
cresce. Essa vontade pode ser, por exemplo, um sentimento de encaixe e acolhimento
dentre os outros que o pirotécnico não provava: o próprio descaso sentido é uma
morte (assassinato).
Para Schopenhauer, somente a contemplação da realidade a sua volta e a
contemplação estética podem interromper a dor. No momento de contemplação o
objeto preenche completamente a consciência do indivíduo que, agora sem
possibilidade de fantasiar a ideia platônica, vê o conhecimento objetivo do objeto.
Sem atentar em como, de algum modo, a contemplação do redor (re-dor) é
sentir-se bem comparativamente a quem está pior (outra ilusão) ou em como a
contemplação estética é fuga alienante academicamente aceita; a síntese em sistema
schopenhaueriana do que seja o mundo coincide exatamente com a vida distanciada pois a contemplação só é possível com distanciamento - de um misantropo.
Referências bibliográficas
ALTER, Robert. Verdade e poesia no Livro de Jó. In: Em espelho crítico. Trad.
GARCIA, Adriana e GOLSZTAJN, Margarida. São Paulo: Perspectiva, 1988, p. 23-48.
CAMPOS, Haroldo de. Da memória e da desmemória: excurso sobre o poeta José Elói
Ottoni, tradutor do Livro de Jó. In: OTTONI, José Elói. O Livro de Jó. São Paulo:
Loyola, Giordano, 1993, p. XI-XXVI.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. Trad. FERNANDES,
R. Lisboa: Livros do Brasil, s.d., p. 157.
PAES, José Paulo. Um sequestro do divino. In: A aventura literária: ensaios sobre
ficção e ficções. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 120-121.
RUBIÃO, Murilo. O pirotécnico Zacarias. São Paulo: Ática, 1976.
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. Trad. CORREIA,
M. F. Sá. Porto: Rés-Editora, s.d.
SCHWARTZ, Jorge. Murilo Rubião: a poética do uroboro. São Paulo: Ática, 1981.
ZAGURY, Eliane. Murilo Rubião, o contista do absurdo. In: A palavra e os ecos.
Petrópolis: Vozes, 1971, p. 28-36.
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