Biografia Ailton Francisco da Rocha é engenheiro agrônomo, formado pela Universidade Federal Rural de Pernambuco. Nasceu no bairro Oiterinhos, em Cedro de São João SE, no dia 15 de maio de 1960, filho de José Francisco da Rocha e Carmelita Souza. Especializou-se em Irrigação e Recursos Hídricos pela Utah State University, nos Estados Unidos e representou o Brasil como Jovem Liderança da América Latina em Meio Ambiente, em Tóquio, no Japão. Foi professor de Matemática no Colégio Cenecista São João Batista e de Economia Agrícola na Universidade Tiradentes. Ocupou o cargo de Superintendente de Recursos Hídricos do Estado de Sergipe, de setembro /1997 a março /2003. Foi presidente do comitê técnico e coordenador geral do Estudo de Desenvolvimento dos Recursos Hídricos do Estado Sergipe, através do acordo de cooperação técnica com a Agência de Cooperação Internacional do Japão JICA. Exerceu o cargo de secretário executivo do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Sergipe e do Conselho Estadual de Recursos Hídricos. Representou o Estado de Sergipe no Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco. É representante regional da Associação Brasileira de Recursos Hídricos ABRH. Atuou como consultor na elaboração do Programa de Ações Estratégicas para o Gerenciamento da Bacia do Rio São Francisco e da sua Zona Costeira e no Plano Decenal de Recursos Hídricos da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (2004-2013). Doutorando do Curso Gestão Empresarial: Nuevas Tendências en Dirección de Empresas , pela Universidad de Valladolid, na Espanha. Recebeu do Jornal Cinform a homenagem de filho ilustre de Cedro de São João. 2 Coisas da Vida (Orelha do Livro) Ver passar o tempo, sem nada fazer, é o pior passatempo que o homem pode praticar. É preciso cutucar a lógica evolutiva do tempo, convencendo-o a não tornar velho o que é novo, ainda que através da conservação do coração. É dizer em outras palavras: é preciso convencer o tempo a aceitar que a eternidade da vida somente lhe fará bem, pois assim conservará consigo os vestígios de todas as histórias, transformando-o no próprio Senhor da História. É o que fez o escritor Ailton Francisco da Rocha quando ousou, em livro, eternizar as boas lembranças de sua infância. E, como competente engenheiro agrônomo, fincou a semente de sua vida no livro Doces Lembranças . Fez na prática o que deve ter aprendido em sua infância, pois matou ele dois coelhos com apenas uma cajadada, mais especificamente quando fez brotar duas frondosas vidas de uma única semente. E o resultado não poderia ser outro, o "cedro" que plantara e que adubara com as lembranças de sua memória, hoje eterniza a sua vida e a da sua querida Cedro de São João. É claro que o tempo quedou-se convencido, carregando agora nos seus braços e pelo mundo afora as vidas do Cedro Ailton e a de Cedro de São João. Bom para todos nós, que trouxemos para o presente as nossas lembranças já esquecidas. Com Ailton, voltamos a lavar as roupas das nossas vidas, carregando sonhos e estória, sem qualquer medo da ignorância, até porque quando temos amigos desde a infância, habitando uma "Terra de Gente Boa", as nossas doces lembranças ficam a jogar com o destino, tornando-se nossos dias eternas festas de São João. Na terra de sua querida Cedro de São João, a árvore de sua vida não poderia encontrar melhor solo para se desenvolver, fazendo com que os galhos sombreiem outras vidas, gerando, com o seu exemplo, outras árvores sempre plantadas, cedros ou não. Cezar Britto 3 D OCES LEM BRAN ÇAS 4 Copyright© by Ailton Francisco da Rocha Todos os direitos reservados ao autor Revisão de João Costa Editoração Eletrônica de Capa do autor Rocha, Ailton Francisco da Doces Lembranças Aracaju - Sergipe _______________ 2004 5 D oce s Le m br a n ça s Ailton Francisco da Rocha 6 Creio que cada um deve ficar o mais possível no lugar onde nasceu. Nada de muita emenda ao soneto da vida: ou do destino, que é o mesmo. Gilberto Freyre A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la. Gabriel García Márquez A vida de um homem não deve ser medida, efetivamente, pela extensão, mas pela intensidade. Humberto de Campos 7 Agradecimentos A meus pais, José e Carmelita, a minha esposa Verônica, a minha filha Laura, a meus avós (in memoriam), a meus irmãos e tios, e ao povo da minha terra, pela presença firme e permanente na minha vida. 8 Prefácio Como propriaense que sou, e face à proximidade, sempre estive ligado a Cedro de São de João, cidade, no passado, também banhada pelas então abundantes e caudalosas águas do Velho Chico que, nas constantes cheias de fim-de-ano, quando ainda não existiam as barragens que decretaram o raquitismo do Baixo São Francisco, ornamentavam a terra cedrense, como se fora um presépio natalino assentado no delicado promontório formado volumosas águas das suas duas famosas lagoas: pela conexão das a Lagoa do Cedro e a Lagoa Salomé. Aquela imensa massa líquida lacustre interligando as duas cidades, além de permitir a navegação, a pesca e a prática de esportes náuticos, realizava o milagre da multiplicação da fauna aquática, já que se constituía num imenso berçário onde se reproduziam exponencialmente as espécies peixeiras que faziam as delícias das mesas ricas e pobres daquela gente feliz. Só quem saboreou um gordo mandim-papo-amarelo com cuscuz no café-da-manhã sabe do que estou falando. Para tristeza de cedrenses, propriaenses e demais ribeirinhos, essa espécie de peixe que se reproduzia nas várzeas quando das cheias anuais do São Francisco está praticamente extinta. Mas o Cedro era também a labuta do seu povo criativo. Comerciantes natos, os cedrenses, com suas mercadorias de diversas procedências, eram soberanamente os maiores vendedores das chamadas miudezas na grande feira semanal de Propriá, além de produzirem a melhor carne-de-sol de Sergipe, conhecida e disputada em todo o Nordeste pelas suas qualidades organolépticas. Também há que se ressaltar a legendária massa seca produzida na Panificação Nossa Senhora do 9 Socorro que, até hoje, continua em atividade, abastecendo um amplo mercado regional com seus deliciosos produtos. De minha parte, sempre que vou ao Condado de São Vicente, obrigatoriamente faço escala no Cedro, para adquirir as bolachas da sua famosa padaria, onde sou gentilmente atendido pelos amigos Casquinha e Cascata, mestres da milenar arte panificadora e do bem-servir. É, sobretudo, também o Cedro, cultura e inteligência, cabendo aqui citar as ilustres figuras de Jessé Trindade, odontólogo, poeta e político, cognominado o orador do verbo inflamado , que honrou o parlamento sergipano, quando deputado estadual; Thiers Gonçalves, educador e íntegro juiz de direito; Célio Bezerra, valoroso general do exército brasileiro; Dilermando Nascimento, geólogo, descobridor de minérios raros e meu amigo de adolescência; Iradir Batista, filósofo e intelectual autodidata e outros tantos vultos nascidos na cidade que fizeram história por onde passaram. Com efeito, as novas gerações continuam honrando essas tradições, e uma prova disto está materializada neste livro de autoria do engenheiro agrônomo Ailton Francisco da Rocha, oriundo de frondosa árvore genealógica que produziu importantes e gloriosas ramificações nas pessoas do médico sanitarista Guido Rocha; do economista e professor universitário Paulo Rocha de Novaes e do seu irmão José Rocha de Novaes, pioneiro da aviação civil em Sergipe; do engenheiro químico e mestre da informática Francisco Rocha; do médico-veterinário e ex-Secretário de Estado da Casa Civil, Roberto Rocha Messias e do médico e senador Gilvan Rocha. Alicerçado nas suas memórias da infância, Ailton Rocha, nessas suas D oce s Le m br a nça s, faz uma pungente declaração de amor à sua cidade ao mesmo tempo em que oferece ao leitor um elenco de belas crônicas teluricamente vividas pelo menino de olhos bem abertos às 10 imagens das lavadeiras de roupa, de ouvidos atentos às estórias contadas pelo genial Desidério, de sensibilidade aguçada ao observar os trabalhadores da carne, da alegria contagiante nos folguedos juninos, da consciência precoce no aprendizado escolar, na bela metáfora da amizade consubstanciada no coqueiro amigo, na fé do padroeiro São João Batista, na paisagem onírica da sua Aldeia, no lado boêmio e musical do povo que homenageou o grande Orlando Silva, quando cantou na cidade no inicio dos anos cinqüenta, no sentimento que faz do ser humano o ápice da criação suprema. E sentimento é o que não falta nos escritos de Ailton. Portanto, além do profissional competente que realizou excelente trabalho à frente da Superintendência de Recursos Hídricos, órgão da Secretaria de Planejamento do Estado, Ailton Rocha revela-se, agora, um inspirado cronista da sua querida Cedro de São João e, com certeza, essas suas D oce s Lembranças já fazem parte da melhor literatura memorialística produzida em nosso Estado. Aracaju, agosto de 2004 Marcos Melo 11 Apresentação Ailton Francisco da Rocha estréia nas letras com um livro de crônicas de sabor memorialista. O cronista consegue, com a variedade dos aspectos que lhe servem de tema, traçar um painel de recordações da infância vivida em sua cidade natal. Não se apega, entretanto, às vivências pessoais, enclausurando-se em si mesmo, alheio ao ambiente da sociedade de Cedro de São João. É Ailton o narrador que carrega consigo os hábitos da gente cedrense do tempo de sua meninice. Quem ler D oce s Le m br a nça s desfrutará do sabor que têm as crônicas desse sergipano, ora escritas com a leveza de seu estilo, ora indo até o mais fundo de sensações da ternura que ele consegue trazer à tona, como prova de amor à terra onde nasceu. José Fernandes de Lima 12 ÍNDICE 1. A bola e a ginga 14 2. As lavadeiras 17 3. Carregadores de sonhos 22 4. Combatentes da ignorância 26 5. Contadores de estórias 30 6. Doces lembranças 35 7. Jogadores do destino 38 8. O homem que fabricava caxinguelê 41 9. Terra de gente boa 44 10. Trabalhadores da carne 47 11. Um amigo de infância 49 12. Véspera de São João 53 13 A bola e a ginga Em criança dividia as minhas ocupações entre o gosto de estudar e o de perambular pelos campos de pelada que havia espalhados pelos bairros do Cedro. Entre eles destacavam-se o da Draga no bairro Oiterinhos, o Esquadrão no Alto do Cemitério, o Forró no Cruizeiro Redondo, o do Carvãozinho e o da Lagoa Nova, sem contar com os improvisados campos da escola que eram sempre utilizados durante os recreios, como também os espaços das ruas e das praças. Ainda se utilizava a Baixa Fria, nome do campo oficial dos principais times do município: Cedro E.C. e Botafogo E.C. e cenário dos grandes clássicos das tardes de domingo, que se transformavam em campos de pelada nos horários em que não era utilizado para treinos. Dos times que se formaram de pelada praticada por meninos, o mais famoso recebeu o nome de Os Oito Perigos . Parecia título de filme de cow-boy americano. Era assim composto: Ailton de Zé de Mindom, Alberto de Tonho Monteiro, Dado de Manoel, Dia de Carmélio, Diogo de João Grilo, Nô de Zé Guarda, Paulo de Tonho de Beijo e Raimundo de Zé Louro. As lembranças que dele guardo na mente e no coração se sucedem como num filme: vejo-o na disputa de jogos difíceis e ganhando todos, com os seus craques mirins, tocando com os pés descalços a bola de borracha, entre dribles desconcertantes, tabelas precisas e o chute fulminante em direção ao gol. Era tamanha a nossa superioridade técnica, que passamos a ter torcedores infantis e adultos também. Ao término de cada exibição, sempre éramos presenteados com uma rodada de picolés por alguém de melhor poder aquisitivo. Oito de cada lado e, para não confundir, um time fica como está. O outro joga sem camisa. Nessa pelada inocente é que se pode sentir a pureza de uma bola. Afinal, tratava-se de uma bola dente-de-leite. Já reparei numa coisa: bola de futebol, seja nova, seja velha, é um ser muito compreensivo que dança conforme a música: se está numa decisão de título, ela rola e quiçá com um ar dramático, mantendo sempre a mesma pose adulta. Em compensação, num racha de menino, Texto inspirado em Armando Nogueira. 14 ninguém é mais sapeca: ela corre para cá, corre para lá, resvala no meio-fio, pára de estalo no canteiro, lambe a canela de um, deixa-se espremer entre mil canelas, depois escapa, rolando, doida, pela calçada. Parece um bichinho, no entanto, aí está ela, correndo para cima e para baixo, na maior farra do mundo, disputada, maltratada até, pois, de quando em quando, acertam-lhe um bico, ela sai zarolha, vendo estrelas, coitadinha. Tristeza mesmo somente quando ocorria de um chute errante acertar um adulto transeunte pela rua ou então quando a bola caía na casa de velhos mal-humorados. O espantalho-gente pegava a bola, viva, ainda, saca de um canivete ou uma faca e dá-lhe a primeira espetada. No segundo golpe, a bola começa a sangrar. Num instante, o campo está vazio, o mundo está vazio. Não deu tempo nem de desfazer as traves feitas de camisas. Em cada gomo o coração de uma criança. Cidadania também se conquista com sonhos, com utopia e projetos para o futuro. O futebol é o caminho mais rápido para que as crianças se tornem cidadãos com a força de um chute, num campo em que ganham a identidade de craques destemidos. Os jovens que correm atrás da bola, nos campos sem grama, driblam preconceitos, trabalham com itens de condutas fundamentais para a sua formação: a liderança, o espírito de coletividade e a igualdade de forças. Lembro-me das peladas, na minha adolescência, entre os adultos no campo da Draga, sempre realizadas com apostas em dinheiro. Eram organizadas por pescadores, rizicultores e trabalhadores de olaria na fabricação de tijolos que, ao final da tarde, se encontravam para disputar uma boa peleja e aventurar o ganho de algum dinheiro extra. De um lado estava o time de Pavão, sempre formado por Ailton, Dadá, Pedro e Givaldo; do outro o time de Tista, composto de Dadalo, Lia, Bebé e Valmir ou Gilvan, Manuel, Picote e Mirobaldo, ou ainda Géu, Borges, Marimbelo e Moura. Não era nada fácil enfrentar as entradas enfurecidas do Bebé que, se acertasse em qualquer parte do corpo, seria enfermaria na certa e meses de recuperação sem poder jogar, ou então disputar uma bola dividida com Valmir, cuja canela, era assim que chamávamos o osso da tíbia, parecia uma haste de ferro encoberta de pele humana. É lógico que o escrete escalado por Pavão, por ser um time mais jovem e habilidoso, normalmente ganhava, e no rateio das apostas, sempre sobrava uma recompensa em dinheiro, que terminava ajudando na compra da merenda do recreio escolar do dia seguinte. 15 Futebol é um dos esportes mais democráticos que existe. Dentro do campo, por exemplo, não prevalecem sobrenomes, classes sociais ou níveis de escolaridade. Todos os atletas são iguais e têm nas mãos instrumentos parecidos. Por outro lado, a torcida vibra com a mesma paixão, sentimento que reflete um convívio pacífico entre torcedores de todas as camadas sociais, funciona como um meio do povo extravasar todas as suas emoções. O esporte pode ser o maior aliado na luta pelo combate aos vícios e o melhor caminho que já provou ser bem mais eficaz do que severas punições. Através do exercício físico, crianças e jovens são atraídos para uma convivência em grupo marcada pela solidariedade. As necessidades de respeitar os limites estabelecidos e as regras da competição acabam se tornando um aprendizado essencial ao processo de desenvolvimento humano. A prática de se exercitar e de ultrapassar a cada dia os próprios limites do corpo, como único objetivo de subir mais um degrau, direciona o atleta. O saldo é uma vida centrada, saudável. Tudo isso dentro de um ambiente de diversão, mas com responsabilidade. O potencial educativo e de socialização do esporte é muito maior do que se imagina. Por outro lado, temos a possibilidade de descobrir talentos em todas as faixas etárias. A nossa essência está onde passamos a infância. Continuo, para sobreviver, driblando os adversários, vencendo os obstáculos, buscando o companheirismo, correndo atrás das vitórias, sem, contudo, esquecer ética e respeito ao próximo. Louvado seja tudo que me foi ensinado e as oportunidades que me foram apresentadas. 16 As lavadeiras Era fácil identificar uma lavadeira. A visão de uma mulher descalça, com uma trouxa de roupa à cabeça, andando pelas ruas, saias meio arregaçadas, em direção a um dos pontos preferidos para a limpeza das roupas, fosse na lagoa Salomé, Porto das Pedras ou as Dragas na várzea do Cedro, seguida normalmente à curta distância por uma ou mais crianças, que normalmente aprendiam a nadar, sob os seus auspícios, em torno de um banco de lavar roupas. As lavadeiras podiam ser classificadas de várias formas: as que lavavam na casa da patroa; as que lavavam nas fontes; as que lavavam por peça; as que lavavam por mês; as que apenas lavavam e as que lavavam e passavam. As que lavavam na casa da patroa não tinham um horário muito rígido. Em lares organizados, principalmente de líderes políticos ou de fazendeiros, a exemplo de Miguel Seixas, José Dantas, Euclides, João Gomes, Jonas Trindade, Fraga, Lealdo, José Soares, Antônio Melo, Paulo Alves, Jesuíno, Desi, em que havia dia e hora para tudo, a lavadeira tinha dias pré-estabelecidos para molhar a roupa. Se, em algumas residências, as pias de cimento, chamadas lavanderias, eram bem construídas, até que o serviço não era dos piores. Mas, se era para lavar no tempo, sem gamela nem lugar para quarar, a situação não era de causar inveja. Com muito jeito e algum empenho, o trabalho ia sendo feito mais ou menos a contento das partes. A lavadeira que se empregava nas casas tinha a vantagem de comer melhor ou, pelo menos, comer, na hora certa. A que lavava na fonte, por peça, fazia suas exigências e tentava modos malcriados. Fazia o que queria. A que lavava por mês (à razão de trouxas), estava mais sujeita à exploração: As patroas pechincheiras mandavam mais roupas do que o combinado na hora do ajuste. Ia buscar a trouxa na segunda-feira, entregando no sábado tudo pronto, salvo contratempo de chuva ou doença, bem como quando lhes pediam uma peça ou outra para determinado dia. Algumas viviam chorando 17 adiantamento, alegando necessidade de comprar sabão e anil. Nunca confessava que o dinheiro era para comprar o alimento do sustento da família, principalmente dos filhos. As mãos de quem lavava sofriam injúrias terríveis. Roupas grossas ou muito sujas exigiam longa esfrega, rasgando as cutículas, fazendo nascer espigas. A potassa do sabão irritava a pele e os problemas surgiam. Os dedos começavam a inchar, infeccionavam em volta da unha, supuravam. Os dedos despelavam, e a unha apodrecia, caía. O terrível unheiro continuava resistindo a tudo, produzindo vergões e ínguas, parentas próximas da erisipela. Durante todo o sofrimento, sem deixar de lavar, a lavadeira experimentava tudo quanto estivesse ao seu alcance. Mandava rezar. Punha emplastros para amadurecer o pus. Basilicão, cabeça de quiabo pisado com sabão virgem, papa de farinha crua com azeite doce, hortelã grosso pisado, mastruço pisado, eram as mezinhas mais usadas. A falta de resguardo de boca e a necessidade constante de estar com as mãos na água dificultavam a cura, mas as lavadeiras não desanimavam. Viviam a sua vida torturada de pobre, presas às técnicas primitivas de lavar. Na segunda-feira, alguém esvaziava a cesta de roupa suja, despejandoa ao chão, inspecionando meticulosamente, peça por peça, depois de especular o interior dos bolsos e catar agulhas e alfinetes esquecidos nas golas dos vestidos, formando assim, pequenos montes de roupas de vestir, roupas de mesa e roupas de cama e de banho. Terminada a contagem e feito o rol, punha tudo dentro de uma toalha ou lençol mais resistente, fazendo a trouxa com as pontas amarradas. A lavadeira chegava, ouvia as reclamações acerca da roupa limpa que tinha entregue no sábado. Desculpava-se ou justificava-se, como podia, as faltas, os desbotados de sol, as manchas adquiridas, os rasgões, despedindo-se com mesuras e promessas. Em casa, quando era conscienciosa, tornava a contar toda a roupa, separando as brancas das de cor. Como a maioria era analfabeta, a contagem era realizada utilizando códigos. As roupas eram postas de molho para largar a sujeira, ensaboadas com sabão de pedra e batidas sobre um banco de madeira. O método 18 consistia em espremer bem toda a umidade da peça, correr o sabão nas partes mais imundas, enrolar o pano sobre si, tudo muito bem apertado e deixar de parte para amolecer, até a hora de esfregar. Entre as esfregações e batidas, a roupa acabava no quarador para o sol esquentar. Meio dia para molhar a roupa; meio dia para secar; o resto da semana para engomar e passar, esta era a regra para as que lavavam com mais cuidado. As lavadeiras cumpriam seu destino. Nada de queixas, nada de lamúrias. Que é que elas iriam fazer? Se se nascia lavadeira, lavadeira se tinha de morrer. Desde meninas, quando esfregavam bacias e mais bacias de roupas às margens da várzea, lagoas e açudes, as lavadeiras, eventualmente escutavam o ronco de algum avião passando por entre as nuvens. E lá embaixo elas cantavam; Avião, avião avuadô. Nem aqui nem em Propriá, avião nunca pouso . Entre morros paralelos, que a guardavam, a várzea e a lagoa Salomé se estiravam na frescura do vale como rio parado. Ajoelhadas na água rasa da margem, as lavadeiras batiam nas tábuas as camisas da cidade. Corpos metálicos. Fisionomias graves, as fisionomias brandas, e fisionomias que se iluminavam a vozes tagarelas. Negras murchas, e negras luzidias, e negras menos negras, que se diriam douradas: mães fatigadas de sol e trabalho, moças de encantos presentes, meninas compridas, indecisas. Mulheres e trabalho de mulheres. A elas o encargo das tarefas imediatas e necessárias. A elas os meneios amáveis, os cuidados úteis, as penas fecundas. A elas os gestos diretos, que se aliam às exigências do corpo. Tratar da casa, dar o de-comer, lavar a roupa, aleitar o filho, deleitar o leito! Nem as boninas e outras flores, nem a mais humilde relva, nem os ventos, nada participava da quietude absoluta, eternamente absoluta daquele banco de madeira, compacto, liso, desprezado. Nem ninguém se lembrava da criatura e de seus sofrimentos e de sua atormentada vida ali deixada. Nem tristeza talvez, nem alegria, não mais perpassam sobre a sua face parada, indiferente mesmo à morte que ela encerrou em treva, e esquecimento, e o próprio esquecimento abandonou. 19 E medo mesmo somente das vacas paridas que as perseguiam pelo pasto, pisoteando as roupas estendidas no lajedo, quarando ao sol. O coral das lavadeiras fazia parte de um patrimônio cultural como uma das manifestações artísticas da região. Elas eram guardiãs das cantigas, que foram sendo esquecidas ao longo dos anos. São cantigas com influências portuguesa, africana, transmitindo uma alegria contagiante . As cantigas lavavam a roupa das lavadeiras. As cantigas eram tão bonitas, que as lavadeiras ficavam tristes e pensativas! Na presença azul da tarde faziam-se mais vivas todas as variações do verde tons inumeráveis, diversos de árvore a árvore, inconfundíveis no chão ervoso. Sombra na tarde azul, uma adolescente cantava Cantava, e seu canto voava no vale como um pássaro solto: diz o Senhor que eu sou sua Lá vem a lua saindo, Com três estrelas do lado, A do meio vem dizendo Que Maria tem namorado Ou ainda quando gostava da patroa: A roupa de Dona Palmira, Não se lava com sabão, Se lava com água rosa Dentro do meu coração Como me lembro ainda das lavadeiras, a esfregar a roupa, a batê-las no banco, sempre ao ritmo das cantigas que estavam a entoar! Era lavadeira a Arababela, Carminho de Adão, Crizelide, Ginole, Izaura de Epifânio, Jeruza de Francisquinho, Jolinda de Janjão, Leopoldina, Lindimar, Maria Rosa, Marieta de Tama, Margarida, Maria José, Maria José de Zeca, Mariinha, Maria de Zafira, Naeze, Ozana de João Pinto, 20 Zafira, Zequinha de Argemiro, Irmelina e Júlia. Estas últimas me ensinaram a nadar. Onde estão vocês, lavadeiras de roupa? De saudade, as lágrimas lavamme os olhos. 21 Carregadores de sonhos Intensa beleza que a todos deslumbrava, porque esta várzea excede cada uma das outras em vários aspectos. Circundada por montanhas em linhas contínuas, forma ilhas de relvas brilhantes. Tudo misturado a construções singelas e habitada por gente humilde e trabalhadora, coroada de imponente igreja matriz. Um tão delicioso clima, com o frescor da água que evapora, tudo isso se reunia para tornar o Cedro cena das mais encantadora que a imaginação pode conceber. Não havia banheiro na maioria das casas. Usava-se o quintal para satisfazer as necessidades fisiológicas, ou os penicos ou urinóis. Os mais ricos tinham até penicos de louça e porcelana, e como não existia espaço arquitetônico destinado para abrigar esses objetos dentro das casas, alguns locais eram especialmente escolhidos para depósito da sujeira recolhida. Era desta forma precária que funcionava o sistema de esgotamento sanitário da cidade até o final da década de 1970. A água era conduzida da várzea, lagoas, açude e distribuída para uso doméstico pelos carregadores de água que levavam o líquido em latas de querosene Jacaré ou barris, transportada em jumento ou carroças com burro para o interior das casas, até mesmo para as moradias das famílias mais tradicionais. Quando transportavam água em jumento, cada um levava quatro latas, distribuídas duas de cada lado, acomodadas em caixotes de madeira. Algumas latas, por não resistirem ao intenso uso, eram todas remendadas, permitindo que parte da água caísse no trajeto da fonte até o destino, deixando para trás as marcas de uma vida sinuosa, que parecia desenhar as linhas da sobrevivência. Os mais destacados transportadores de água foram: Eliezer, João Jabá, Joca de Bel, Joca de Tatá, José, Lió, Ramos e Teo. 22 Cantando apenas nos intervalos, passavam a caminho da cidade em silêncio quando tinham os animais com cargas. Lá seguiam, continuando seu trote lento e sacudido! Usavam calças que terminavam nos joelhos, um barbante que a prendia ao redor da cintura, e nas mãos um pequeno relho improvisado, feito de couro, preso a um cabo de madeira e na ponta caroá, com o qual iam tocando os animais, marcando o compasso e abrindo caminho. Como atores encenando poema de Manuel Bandeira, só mesmo estas pessoas raquíticas, iam bem com estes animais descadeirados. O dia ingênuo parecia feito para eles. Pequenina, ingênua miséria! Adoráveis carregadores de água que trabalhais como se brincásseis! Entre uma viagem e outra, vinham mordendo um pão, apostando corrida, dançando e bamboleando nas cangalhas como espantalhos desamparados. Pela boca da noite chegava sempre o representante de alguma família, solicitar-lhes água para o dia seguinte. Enquanto os carregadores de água faziam o transporte com um único animal, normalmente o jumento, por ser de estatura baixa e dócil, para os outros tipos de cargas, usava-se um comboio, formado por mulas, popularmente conhecidas como burros . Um dos animais era amestrado para conduzir os demais. Esse - que era geralmente escolhido pela sua prática e conhecimento dos caminhos, além de outras qualidades - levava em geral um chocalho pendurado no pescoço e caminhava sempre à frente dos outros. Os animais geralmente eram magrinhos e velhos. A carga era repartida, igualmente nos dois lados e fixada sobre uma cangalha de palha e coberta de couro cru com dois cabeços para cima nos quais se fixavam, sendo mais difícil evitar que a cangalha ferisse o animal pelo atrito. Os Comboieiros do Cedro foram componentes importantes, trazendo para esta cidade o progresso, transportando em lombos de animais: carne, arroz, algodão, milho, feijão, farinha, tijolo, telha e tecido para em caminhadas longas aqui serem comercializados, produtos de Maruim, enfrentando chuvas ou o sol quente tropical. 23 O aspecto rústico, a inteligência e a bonomia davam à fisionomia do comboieiro umas expressões peculiares, diferentes da dos homens que normalmente habitavam por aqui. Atrás da cinta, usavam uma faca bastante pontuda, que era utilizada para cortar mato, consertar arreios, e não raro servia como instrumento de defesa. Entre os comboieiros merecem destaque Antônio Coca, Antônio Correa, Antônio de Ernesto, Antônio Pavão, Baio, Beijo Deita, Deda de Neo Bispo, Dionísio, Eldo de Neo Bispo, Ernesto Cabeça Preta, Expedito de Deralia, Francisco de Lixandra, João de Conceição, João de Inês, José de Caçula, Joca de Manuel de Lixandra, José Leite de Deralia, José de Manuel de Lixandra, Manuel Jabá, Loba, Luís Caldas, Lia Deita, Manuel Correia, Maninho Correia, Mano de Deralia, Manuel de Lixandra, Miguel de José Dias, Mindom, Neuzinho de Inês, Taniel da Velha Dona, Zezé dos Cocos. Não podemos esquecer o carro de carneiro de Cícero Aleijado que transportava carne e animais e o carro de boi de José Machado, transportando passageiros para Propriá. Brava gente que fez dos seus próprios caminhos o seu destino, Via Crucis Cedrense encontro com Deus, reencontros com homens hoje em decorrência do progresso eles já não existem mais, porém bem que se poderia comemorar uma data alusiva ou se erguer um monumento, como símbolo de garra e amor à sua terra, na preservação dos costumes e tradições do seu povo. 24 Fot os 1 e 2 . Vist a s pa nor â m ica s da vá r ze a do Ce dr o, for m a da pe la s á gu a s do r ia cho Ja ca r é e pe la con t r ibuiçã o do r io Sã o Fr a n cisco na ocor r ê n cia da s cheias cíclicas 25 Combatentes da ignorância Concluí o ABC e a Cartilha, estudando com professora particular que ocupava a sala da sua casa para ensinar às crianças as primeiras letras do alfabeto e as quatro operações da Aritmética. Depois fui estudar, aos oito anos de idade, o primário no Grupo Escolar Municipal 31 de Março . Localizado a certa distância da nossa residência, andava com orgulho, mostrando um corpo franzino e pequeno, sob a farda escolar e, debaixo do braço, uma pasta com cadernos e livros, sonhos e esperanças. Ao concluir o primário, estudei o curso ginasial no Colégio Cenecista São João Batista. Até os vinte anos há dentro de nós, adormecida, mas pronta a despertar, uma alma que não conhecemos. É nessa altura da viagem que a estrada se bifurca, levando ao Paraíso ou ao Inferno. É nessa estalagem do caminho que o homem se veste para a festa da vida, tomando a indumentária definitiva. Por isso, quero prestar esta homenagem aos professores e professoras do Cedro, que nos ajudaram a percorrer esta marcha, desde as vizinhanças do berço, e lutou, conosco, contra todos os obstáculos da sua própria condição e contra todas as tentações que nos assaltaram pelo caminho. Seria oportuno se, por instantes, nos lembrássemos daqueles professores que passaram por nossas vidas e distingui-los dos que fizeram parte delas. Desejo com isto enfatizar a marca que cada um deles deixou em nosso caráter, influenciando nossa postura, acrescentando conhecimentos e a maneira de adquiri-los. Conhecimentos transmitidos com dedicação e paciência, frente às dificuldades individuais e limitações de cada aluno. Quanta motivação! Alguns deles talvez nos tenham marcado simplesmente pela bondade que tiveram conosco em nos valorizar e acreditar em nosso crescimento. Entre os mestres e mestras que mais se destacaram e influenciaram gerações, relacionamos: D. Alexandrina, D. Anita, D. Anzinha, D.Cecília, D. Cida, D. Didi, D. Edna, D. Estela, D. Etelvina, Prof. João Alberto 26 (Faquir), Prof. José Carlos(Cacau), D. Marinalva, D. Marclea, D. Midinha, D. Miralda, D. Nelma, Prof. Paulo Alves, Prof. Plácido, D. Purezinha, D. Laiz, D. Lídia, D.Luzinete, Prof. Valdemar(Mazinho), D.Zélia e D.Zélia Sá. Ao refletir sobre o destino que tiveram seus discípulos, a impressão que se tem é que um risonho bando de crianças e jovens conseguiram, vencendo todo tipo de dificuldades, transformar-se em verdadeiros cidadãos. Grande número deles ostentam títulos de advogados, agrônomos, economistas, engenheiros, matemáticos, médicos, odontólogos, chegando a conseguir altos postos na administração, na política, nas letras, nas ciências. Na arte especial que é ensinar, métodos não bastam. É preciso interesse pelo aluno e muito afeto para azeitar as relações em sala de aula auxiliando no desenvolvimento intelectual e afetivo dos alunos. Compartilhar momentos de alegria, tristeza, descoberta, birra, manha, acertos e erros, professor e aluno vão juntos vivendo emoções, construindo o conhecimento e a afetividade. Se há uma criatura que tenha necessidade de formar e manter constantemente firme uma personalidade segura e complexa, essa é o professor. Destinado a pôr-se em contato com a infância e a adolescência, nas suas mais várias modalidades, tendo de compreender as inquietações da criança e do jovem, para bem os orientar, deve ter um contínuo aperfeiçoamento, uma concentração permanente de energias que sirvam para chegar a apreender cada fenômeno, conciliando todos os desacordos aparentes, todas as variações humanas, nessa visão indispensável aos educadores. É de grande importância consolidar-se uma personalidade que é ao mesmo tempo um resultado - como todos somos - da época, do meio, da família, descer à sua alma, feita de mil arestas, para se pôr em contato com ela, e estimular-lhe a evolução. Como que num quadro cujo desenho perdeu a nitidez pela ação do tempo, mesclam-se em minha memória imagens de uma época que, 27 como diz o poeta, eu era feliz e não sabia. Lembro-me daqueles que me ensinaram as primeiras letras, os primeiros números e aguçaram a minha curiosidade pelos mistérios da vida. Recordo-me, com imenso carinho e saudade, daquela que me ajudou a superar as dificuldades da fala. Não me esqueço também dos que me estimularam o gosto pela leitura e me ajudaram a compreender que, se é importante saber ler, é fundamental saber como ler e ter uma atitude crítica diante do que se lê. Foi uma professora que me fez ver que também era importante ler aqueles assuntos que consideramos chatos, mas que, na verdade, dizem respeito às decisões que podem mudar nossas vidas. Lembro-me até hoje da tensão e, em alguns casos, do clima de terror, do dia da prova. Na verdade, aprendi muito mais com aqueles professores que estimularam a reflexão crítica, a curiosidade e a busca do saber, e concediam a liberdade e as condições necessárias para desenvolver o aprendizado. O aprender é um processo que pressupõe compromisso pessoal com algo que está para além do passar de ano. O professor é o arado que semeia, a mão que cultiva, a semente que germina. Sócrates foi professor de Platão. Platão ensinou a Aristóteles. Aristóteles fez o melhor que pôde por Alexandre. Se Alexandre não ensinou, aumentou o mundo para que outros ensinassem. 28 Foto 3. Escola de 1º Grau Padre Manuel Guimarães , antigo Grupo Escolar M u n icipa l 3 1 de M a r ço , onde cu r se i o pr im á r io Foto 4.Grupo Escolar Municipal Governador Antônio Carlos Valadares Foto 5. Colégio Estadual Manoel Dantas Foto 6. Colégio Cenecista São João Batista , onde cursei o ginasial 29 Contadores de estórias* De todo os materiais de estudo, o conto popular é justamente o mais amplo e mais expressivo e também o menos examinado, reunido e divulgado. Para nós é o primeiro leite intelectual. Os primeiros heróis, as primeiras cismas, os primeiros sonhos, os movimentos de solidariedade, amor, ódio, compaixão vêm com as estórias fabulosas, ouvidas na infância. O gosto de contar é idêntico ao de escrever são os antepassados anônimos. e os primeiros narradores A arte de narrar está em vias de extinção. Refiro-me a um tipo de narração que se aproxima à do antigo contador de estórias, responsável, nas sociedades primitivas, pela preservação e transmissão da memória coletiva. O acervo de tradições, lendas e costumes era passado de geração a geração, através das estórias contadas por um velho, detentor, não apenas de uma rica experiência, como também da habilidade de convertê-las em prazer e sabedoria para os ouvintes. A arte de contar estórias se perdeu porque as pessoas perderam o dom de ouvir. O problema não estava apenas na incapacidade de contar, mas também na de ouvir. Meu pai me influenciou na infância a gostar de estórias. Eu gosto de ler porque meu pai contou muitas estórias para mim, quando eu era criança. Eu ficava encantado com aquele mundo mágico dos personagens. Era assim que as crianças cresciam, perambulando pelas ruas do Cedro, ouvindo os contadores de estórias, espalhados pelas calçadas, a narrar a sabedoria popular, contando estórias de reis, princesas e príncipes, feiticeiras, fadas, velhas e padres, bichos e lugares, com as quais * Texto inspirado em Luiz Antônio Barreto 30 alimentaram as gerações que ao redor da casa ouviram, atentas e crédulas, os relatos encobertos pelo escuro da noite contar estória de dia cria rabujo - desculpava-se Desidério Melo, para quem o galo é chantecler e o gato é cara-de-onça, ao mesmo tempo que contava a estória do medo grande e o medo pequeno : Um menino, - desses meninos bicho-de-rua, - vai passando, tava um moço trabalhando numa sapataria, ele pára junto e diz: - Mestre, o senhor quer que eu venha morar aqui com o senhor? O homem era sozinho e disse: - É bom, serve até para um mandado. Fica, mesmo, aí. O menino ficou. - Menino, vá ali comprar umas brochas. Olha, venha já. - Sim, senhor. Ele saía, por exemplo, 8 horas do dia; chegava 7 horas da noite, por 8 horas. - Menino, eu não disse pra você não demorar na viagem? Que viesse logo? - É, mestre, mas eu me entreti, coisa e tal. - Ainda um dia, tu tem um medo. - Mestre, o que é medo? - Você um dia ainda vai saber. O mestre criava um macaco e tudo quanto o homem fazia, o senhor do macaco, o macaco fazia também. Macaco, um bicho inteligente. Quando é um dia ele manda o menino fazer uma compra. - Olha, menino, tu não demora. - Sim, senhor mestre. Foi embora o dia, entrou com a noite. Vai o homem e diz: - Eu vou fazer medo àquele menino. Tinha uma Santa Cruz na beira do mato. O sapateiro pegou um pano branco, fez uma trouxinha, botou debaixo do braço. O macaco, sem o homem ver, pegou também um pano, fez uma trouxinha e saiu atrás do patrão. Quando o homem chegou no lugar da Santa Cruz, se encapotou no pano branco - o sapateiro - e deitou-se 31 como um morto. O macaco se encapotou também e deita-se encostado a ele, sem ele ver. Quando é umas horas, lá vem o menino, cantando, assoviando, coisa e tal. Quando foi chegando perto da Santa Cruz, olhou aqueles dois vultos, e disse: - Ué, ali tem umas coisas deitado; será que é aquilo que é medo? Nisso o patrão dele, o sapateiro, se levanta. Quando se levantou... - É aquilo que é o medo. Vai o macaco por detrás do patrão, e levantou-se também; o macaco era mais baixo. Disse o menino: - Ora é dois medo: um medo grande e um medo pequeno! Quando o sapateiro olha pra trás não se lembrava do macaco vê aquele embrulhado, de noite, perto dele... Aqui se fez no mundo! E o macaco atrás dele em toda a carreira. O menino gritava: - Corre, medo grande, que senão o medo pequeno lhe pega! Aí que esse homem mesmo corria. E o macaco em cima. Macaco não cansa. Em cima, em cima, em cima. - Corre, medo grande! Medo pequeno lhe pega! Até quando o sapateiro chegou em casa, caiu. O macaco cai de mentira, se acabando junto dele. Quando chegou, o homem estava cansado. - Mestre, o que é isso? - Menino, foi o medo que tive que quase morro. - O que é medo, meu senhor? O sapateiro disse: - Basta. Você não sabe o que é medo não. Nunca mais fez medo ao menino, mas quem quase morre foi o sapateiro, com medo do macaco . Era prazeroso também ouvir os relatos cômicos de Fio de Antônio de Beijo, que dentre inúmeros casos conhecidos, transcrevo aquele que me chamou mais à atenção. 32 Num início de noite dominical chuvosa, encontrava-se Fio sentado na calçada da casa comercial de Zé de Doro, a contemplar os pingos da chuva que caía. As primeiras chuvas que caem sobre uma rua calçada, forma com a sujeira um limo escorregadio, que sempre provoca quedas em crianças peraltas e velhos descuidados. E lá vinha uma beata em direção à Igreja, para assistir à missa das sete, vestida com a sua saia comprida rodada. Era comum as senhoras usarem esta saia sobre uma anágua, sem calcinha. Quando menos se espera, escorrega e cai com todo o corpo, com as pernas abertas viradas para Fio. Demonstrando habilidade e pouco sem graça, por conta da queda, levantou-se rapidamente e ao observar a presença de Fio, indagou: - Viu, Fio, a minha ligeireza? - E ele, sem pestanejar, respondeu: Vi, Fia. Só não sabia que ela tinha mudado de nome . Ou então ouvir os causos narrados por Mangueira: Certo dia estava sentado em uma das calçadas, jogando conversa fora, aguardando escurecer e ir para casa, pois a mulher estava prestes a ganhar neném. Ao se dirigir para casa, formou-se uma grande trovoada, com bastantes relâmpagos e trovões. Ao chegar em casa, encontrou a mulher reclamando de dores para parir. Morava numa choupana de barro, esburacada, e naquele momento lembrou que não tinha comprado querosene para acender o candeeiro. E, no meio daquela noite escura, entre relâmpagos e trovões, chuva forte e as dores da mulher, cada vez mais aumentando, abriu-se um relâmpago que clareou tudo como se fosse o sol do meio-dia. Ele correu, fechou as portas do fundo e da frente, guardando a luz do relâmpago dentro de casa. E nesta claridade, nasceu a criança, que ele batizou pelo nome de Mauro . Costumava sair para pescar, bem cedinho, ainda em jejum, acompanhado do filho Mauro. Pescava para garantir a refeição do dia. Numa dessas manhãs, saiu a tarrafear pela Barreta. Era época de rio cheio. Jogava a tarrafa e quando puxava, nada de peixe. As horas foram passando e a fome aumentando e Mauro reclamando da fome. Quando ele olhou em frente, viu um redemoinho flutuando na água. Não pensou duas vezes, jogou a tarrafa e ao puxa-la, surpreendentemente, era um cuscuz e bule com café quente . 33 Quando a várzea secava, que chegava a época de bater o arroz, desciam aos bandos as cardinheiras vindas do sertão para se alimentar. Mauro saiu para caçar com uma espingarda velha. Ao chegar próximo a um pé de mulungu, percebeu que estava cheio de cardinheira de cima até embaixo, e pensou: - se eu atirar, só vou matar algumas cardinheiras e as outras voarão. É melhor voltar para casa e pegar o machado, e assim o fez. Ao retornar armado com o machado, cortou o mulunguzeiro pela cepa, pôs no ombro e trouxe. Dentro de casa, catou todas as cardinheiras, enchendo sacos e mais sacos . 34 Doces lembranças Tenho obtido notícias a respeito do propósito da CODEVASF 4ª SR de desenvolver um projeto para revitalização da Lagoa Salomé, inclusive tive a satisfação de estar presente ao lançamento, cuja iniciativa é extremamente louvável, não só pelo aspecto ambiental, como também pela importância sócio-econômica, cultural e política que este manancial representa para o município de Cedro de São João. Como filho natural dessa cidade, ponho me a recordar os bons momentos de infância e juventude, testemunhados pelas águas da Lagoa Salomé, que nas cheias cíclicas do rio São Francisco recebia suas águas e ficava rejuvenescida. Era como se o grande rio, não querendo chegar ao oceano, fosse se alargando, preenchendo as várzeas com suas águas barrentas, após percorrer um longo caminho, desde as Minas Gerais, passando pela Bahia e Pernambuco e, ao chegar na lagoa, parecia deleitar-se no aconchego da bem-amada, que na sua formação profunda, circundada por montes escarpados, concedia a calma e a tranqüilidade ao grande rio para o merecido repouso, mesmo tendo que deixar enciumado o riacho do Jacaré. Este cenário de abundância e conquista irradiava por toda a cidade uma energia extremamente positiva, que servia de festa para todos: crianças, animais, lavadeiras de roupa, jogadores de futebol de lagoa, pescadores, transportadores de água, lavadores de carro, seresteiros, além de servir como fonte de inspiração para a intelectualidade que punha a nossa cidade na vanguarda do conhecimento e do saber. Como esquecer dos quadros pintados pelo artista plástico José de Manoel, as poesias e os discursos inteligentes de Dr. Jessé Trindade, dos ensinamentos da professora Maria Alexandrina, da disciplina e dedicação da professora Maria Lídia, das aulas da professora Marinalva Alves, que há trinta e cinco anos educava os seus alunos e os pais sobre a importante viagem através da leitura, só demonstrada recentemente na campanha educativa da Rede Globo. Quantas vezes adormeci ouvindo a leitura dinâmica que meu pai fazia nos livros emprestados por esta nobre mestra, uma das quais ficou na minha memória. Era um conto do escritor Humberto de Campos, que falava de uma criança que, subindo 35 numa árvore, podia ver as areias de Portugal e os mares da Espanha. Na minha ingenuidade infantil, no dia seguinte, subindo num coqueiro que havia no quintal da minha casa, só consegui avistar o telhado das casas e a torre da igreja matriz. E logo depois, ao narrar esta minha pequena curiosidade, receber a orientação do meu pai, de que a árvore na qual eu deveria subir chamava-se educação. Como não lembrar-me das discussões geradas sobre política, literatura, filosofia, religião? A sensação que se tinha, era de que a contra-cultura francesa era discutida nos bares do Cedro no mesmo molde em que se discutia nos bares de Paris. Outro exemplo marcante foi o uso do biquíni, lançado ao mesmo tempo pelas garotas da praia de Ipanema e pelas belas moças que procuravam se banhar nas águas da lagoa, fazendo a festa dos adolescentes e tendo a reprovação do padre Manoel Guimarães na homilia da missa dos domingos. Talvez por conta desse comportamento de vanguarda, nós tenhamos elegido no ano mais censurável da ditadura militar um prefeito de oposição, aliás, feito único em todo o Estado de Sergipe. Desta forma começamos a nos destacar em tudo o que fazíamos, quer fosse produzindo carne de sol, biscoito, requeijão, artesanato, arroz, como também nos concursos escolares e de trabalho, nas oportunidades e na profissão que cada um escolhia. Hoje, sem a presença das águas do velho Chico, a Lagoa Salomé começa a definhar, a dar sinais de fragilidade, já não reflete com a mesma beleza o brilho dos raios do sol e da lua. E a sensação é de que, junto com ela, toda uma sociedade, outrora tão progressista e conquistadora, vai também perdendo o seu esplendor. Por conta destes e outros valores existentes na memória do nosso povo, tenho a convicção de que revitalizar a lagoa Salomé não é uma boa ação apenas do ponto de vista ecológico, é possibilitar também a revitalização de uma sociedade que parece ter perdido o rumo da vida e o bonde da História. Parafraseando o poeta Augusto dos Anjos, poderia afirmar que as águas da lagoa Salomé possuem a nossa alma. 36 Foto 7. Vista panorâmica da lagoa Salomé 37 Jogadores do destino Até o final da década dos anos 70 do século passado, a economia do município de Cedro de São João, em Sergipe, era impulsionada pelas cheias cíclicas do rio São Francisco, que proporcionava uma abundância de peixes, preenchendo as lagoas marginais, fertilizando as várzeas e fomentando a produção do arroz, associada à comercialização da carne de sol que passou a dar oportunidade de emprego e renda a dezenas de famílias pobres. A classe dos marchantes rivalizava com a dos pescadores que, apesar de ser em maior número, economicamente era menos favorecida, pelo baixo preço do pescado em decorrência da grande oferta e plantio de arroz nas várzeas, em forma de meação, proporcionando geralmente boas colheitas, mas que destinava grande parte do lucro ao dono das terras. Ao contrário, o comércio da carne-de-sol, ganhava cada vez mais a preferência regional pela qualidade, proporcionando bons lucros. Esta atividade ocupava a sua mão-de obra por apenas dois a três dias por semana, que ia do abate à comercialização do produto. O caminho encontrado, para ocupar o tempo ocioso e com o dinheiro no bolso, era a participação em festas noturnas, conhecidas como farras, que deliciava os corações dos apaixonados. Para o poeta Gibran, a alma da música nasce do espírito e sua mensagem brota do coração. Essa turma de cantores populares, dos quais destacamos Antônio de Joninha, Cícero Henrique, Guel, João Jeremias, João Lelinha, José Vaqueiro, Lamartine, Léus de Purezinha, Luís de Maninho, Murilo, Neu Mulatinho, Raimundo de Marco, Renan e Tico de Alice, tinham a companhia de Antônio Cego no violão e seu parceiro predileto Silte do Cavaquinho. Havia outros como Augusto e seu irmão João, Lilá, Zé de Antônio de Zalta e Zé Araújo no banjo. No pandeiro se destacavam Pipo, Josa, Osvaldo e Magenço. 38 Os marchantes também preenchiam o tempo em jogos de azar, predominando cartas de baralho e sinuca. Havia ocasiões em que se perdia em uma hora todo o dinheiro que se ganhava na semana. Entre os jogadores de baralho, estavam Alfredo, Antônio Belém, Antônio de Berto, Aprígio, Berto, Bita de Aluísio, Chico de Tita, Francisco de Duia, Genésio de Izidório, José Belém, José de Mindon, Manuel Carrasco, Raimundo, Valdivino e no sinuca Capitão, Duda de Cibele, Eliseu de Maroca, Ivo, João Grilo, Tinderê, Tonho de Euclides, Tonho de Pedro. Havia um personagem que era utilizado para agilizar a formação improvisada dos grupos, ganhava para isto. Chamava-se Né Aleijado, assim conhecido por ser tetraplégico. Sentado sobre a cangalha de uma jumenta, se necessário, percorria toda a cidade em busca de parceiros, para viabilizar as farras ou jogo de cartas. Assim, a mesma facilidade com que se ganhava dinheiro, também se perdia e nesta relação trabalhadores e desocupados se misturavam, porque, enquanto otários não surgiam, jogo bom não aparecia. Transtornado periodicamente pela paixão do jogo, julgando encontrar a solução para seus problemas, o jogador pensa conquistar a liberdade pelo dinheiro: a posse do dinheiro é uma idéia, chefe de uma libertação, à procura de uma plenitude. Mas esse dinheiro não é para ser acumulado e sim para ser gasto, para servir à vida e seus objetivos existenciais imediatos. Embutido em si mesmo, faz da experiência no jogo a expressão da sua existência, não aceitando palpites ou conselhos de fora, seguindo o próprio impulso. É a busca do dinheiro fácil. É, mas nem tanto. No fundo é o prazer pelo incerto, portanto essa busca, o jogo, não visa ao dinheiro em si, mas sim a uma espécie de liberdade que se conquista através do poder, entendido como a consciência, calma e solitária, de sua força. Ademais, o dinheiro é o único caminho capaz de conduzir à nulidade. Só a consciência de que os tendo entre as mãos e os joga à lama alimenta o seu deserto interior. 39 Para os desocupados, o jogo cumpria uma função eminentemente bancária, no sentido de prover dinheiro quando este se fazia necessário e, diante da miséria, o dinheiro estava sempre faltando. Daí a necessidade de jogar, para pagar dívidas, transformando-se, num meio de se ganhar o máximo com o mínimo de tempo e espaço, não importando que seja isso lícito ou não. Para estes, tal como a vida, o jogo não é preciso . A vida segue como a roleta, que ao girar não sabe onde vai parar e que, ao parar, perde o significado e o sentido, mesmo quando se ganha. Aliás, ganhar e perder são a mesma coisa. A emoção não reside aí. O gosto pelo jogo está no próprio jogo, no ato e não no seu desfecho. Ganhando ou perdendo, é preciso prosseguir jogando. Assim é também a sorte, ora contemplando, ora esquivando-se do indivíduo. O jogador é um ser sozinho, confinado em si mesmo, entre a própria sorte, decidindo, não pela razão, mas pelo impulso, baseado apenas na lógica de algumas seqüências, sempre acreditando que tudo podia mudar com uma simples carta ou excelente tacada na sinuca. É uma questão de persistência, obstinada vida. Quem sabe, não muda, mudando-se de lugar, girando o mundo, tal como se gira a roleta! A grande maioria desses jogadores, enleada no drama da falta de dinheiro, prisioneiros pela falta de oportunidade e vencidos pela idade, tece em seu pensamento os mais diversos caminhos possíveis para sua sobrevivência. Não quiseram se valer do dinheiro para atingir na velhice uma vida mais tranqüila. De todas as desgraças que penetram no homem pela algibeira, e arruína o caráter pela fortuna, a mais grave, sem dúvida, é o jogo. 40 O Homem que fabricava caxinguelê Numa dessas manhãs tranqüilas de domingo, fiquei a lembrar dos meus dias felizes de infância, na minha pequena Cedro de São João, mais precisamente no bairro Oiterinhos, onde nasci e cresci em voltas às brincadeiras de crianças, valendo-me dos tempos adequados para as suas realizações. Como não tínhamos acesso aos brinquedos fabricados, com exceção da bola de borracha de marca Canarinho ou Dente-deLeite, produzíamos os nossos próprios brinquedos, conforme a época do ano. Havia tempo de tudo, para que cada um pudesse apresentar as suas habilidades, tais como: arraia (pipa), pião, bola de marraio (gude), castanha, triângulo, fubica, patinete, figurinhas para colecionar álbuns, canoa e jogo de botões pelas calçadas. Para este último, elegíamos uma comissão organizadora na escolha das calçadas que apresentavam condições de se transformar em verdadeiros estádios de futebol. Não era uma missão fácil, pois, além de poucas frentes de casa com calçada, ainda esbarrávamos com a condição do piso e também com a permissão do proprietário para realização dos jogos, sempre em meio à algazarra natural de crianças, com direito a torcida organizada e decisões de jogos sempre acompanhadas de uma charanga formada por instrumentos de caniço de abóbora e latas de querosene vazias. Os clubes de futebol eram todos dos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo. Recebíamos uma influência muito grande do Valmir da Bodega, desportista, que possuía o único rádio de válvulas do bairro, do qual ouvíamos os jogos dos campeonatos carioca e paulista e programas esportivos. E assim, cada time de botão representava a torcida do seu proprietário pelo time favorito, que eram fabricados artesanalmente com formas adaptadas para cada função do jogador. Os de frente, possíveis artilheiros, eram velozes, de formato curvo e pequeno, com pontaria certeira que aterroriza os goleiros, construídos com caixa de fósforos cheia de areia e recoberta com o escudo do time representado. Já os zagueiros eram grandes e pesados para garantir a defesa, principalmente na formação das barreiras, quando da cobrança de faltas. Escultura de madeira do caxinguelê. No Aurélio: Caxinguelê (Do quimb. Kaxinjiang elê, rato de palmeira ). S.m.Bras. Designação comum a várias espécies de mamíferos roedores da família dos ciurídeos, gêneros Sciurus L., usada sobretudo no N.E. e L. do País. (Sin. (em várias partes): caxinxe, caxixe, caitité, caticoco, coxicoco, papa-coco, cutia-de-pau, esquilo, quatiaipé, quatipuru, quatimirim, serelepe). 41 Recordo-me dos times formados pelo Corinthians de Meio Homem, o Santos de Niba, o São Paulo de Tonho Neto, o Vasco de Ademílson, o Flamengo de Dia, o Fluminense de Flávio, o Botafogo de Dudu, que por ser mais forte e briguento me tomou a condição de atuar com o meu time favorito, tendo de me contentar em representar o América. O campeonato tinha um regulamento rigoroso, em que os dias e horários dos jogos eram religiosamente obedecidos, com direito a acompanhamento de uma tabela elaborada antecipadamente com a definição dos locais dos jogos e distribuídas juntos aos donos dos times, que cuidavam de organizar as suas torcidas. Como era bom ter a participação da torcida feminina, era a forma mais direta da paquera, nas trocas de olhares ingênuos de conquista que nem sempre se transformavam em namoro. De todos os times, eu menos gostava de jogar contra o Botafogo. Por ser torcedor fanático, não me sentia bem quando ganhava, mesmo que fosse a brincadeira de um jogo de botão em calçada de cimento. O nosso bairro era muito pobre, com ruas de chão batido. A única com calçamento de pedras irregulares era a São Vicente. A maioria das casas era de taipa, algumas cobertas com palhas de arroz, que se iluminavam durante a noite à base de luz de candeeiro. Normalmente se dormia em redes entrelaçadas, em quartos improvisados, que durante o dia se transformavam em salas de estar e de visitas. O colchão era formado por relvas retiradas da vegetação da várzea e cobertos com retalhos de tecido, dando um colorido especial, e ficava restrito aos pais, que ocupavam o único quarto da casa, sempre tendo a companhia de um recém-nascido deitado no berço ao lado. Entretanto, neste ambiente de pobreza, reinava um sentimento de alegria, harmonia e bondade, que surgia não sei de onde, principalmente com a chegada das águas do rio São Francisco, inundando a várzea e as lagoas marginais. Nunca me esqueci das festas juninas, com a formação de grandes rodas, quadrilhas e grupos de adivinhação, organizadas por Mané Grande, com uma família enorme de filhos e parentes, quase todos artistas natos, principalmente voltadas para a música e encenações teatrais, que enfeitavam as ruas com bandeirinhas coloridas de papel hasteadas em cordões e estendidas em forma de ziguezague. Todo esse clima festivo era brindado com os foguetes e busca-pés produzidos pelo velho Doro. 42 Com relação aos meninos, havia, além das disputas acirradas de futebol, as brincadeiras de pé em barra, bandeirinha e garrafão, enquanto as meninas se ocupavam com bordados, para ajudar nas despesas domésticas e brincavam principalmente de roda. Nesse cenário de felicidade e conquistas, vivia o homem que fabricava caxinguelê. Chamava-se Tonho de Lourdes. Tinha uns sessenta anos, magarefe de profissão. O seu passatempo preferido era produzir esculturas de madeira de mulungu e distribuí-las entre as crianças. Adorador e torcedor das nossas atividades, produzia os nossos troféus, para coroar os ganhadores, quer fossem dos campeonatos de time de botões pelas calçadas, quer de futebol nos campeonatos de rua e de bairros. Foi dito que as almas vulgares pagam com o que fazem; as almas mais nobres, com aquilo que são , porque uma natureza perspicaz desperta em nós, graças a suas ações e palavras, a seus olhares e hábitos, o mesmo poder e beleza que comunica uma galeria de esculturas ou pinturas. É o espírito, e não o fato, que é idêntico. Por meio de uma apreensão mais profunda, e não primariamente por uma aquisição penosa de várias habilidades manuais, o artista adquire o poder de despertar outras almas para uma dada atividade. As atitudes de um dos nossos motivadores, formado de carne e osso, residindo em nossa comunidade e convivendo o dia-a-dia de nossas vidas, com certeza possibilitou o despertar de crianças, que na totalidade se transformaram em cidadãos, cada um seguindo o seu destino e fazendo a sua história. Bendito seja o homem que fabricava caxinguelê. 43 Terra de gente boa Segundo minha mãe, nasci num alvorecer do dia 15 de maio, justamente no momento em que o sino da igreja matriz anunciava a hora do ofício. Cresci sem entender muito bem o significado de tal anunciação, mas de qualquer forma, até hoje carrego dentro da minha alma a sensação e a leveza de ter vindo ao mundo, numa hora abençoada por Deus, com o auxílio da Mãe Maria. Era assim que se tratava a única parteira do município, que sempre estava de prontidão para atender a todas as parturientes, sem distinção de classe social ou preferência partidária política. Cresci numa década de revolução e contra-revoluções que tanto contagiavam e inquietavam a libertária juventude da minha cidade. Era o poder ultrajovem em ação, quebrando preconceitos, gritando por liberdade, embriagados por cultura, em busca da conquista dos seus espaços. Como cedrense, tenho as minhas nostalgias. Tive as minhas noitadas de estudantes, perambulando pelas ruas, praças e bares, participando de bailes, pique-niques, peças de teatro, shows como Jovens ao Vivo no cinema de Sebastião, festas promovidas por Aidé, e até experimentei o fascínio pela contra-cultura expressa nos discursos de João Santana. Havia pessoas comuns que davam duro para criar com honradez as suas famílias, vivendo basicamente da atividade rural, como Antônio do Zé do Graça, Buju, Gonzaguinha, Joãozinho Batista, João de Senhorinha, Jesuíno, Juca, Manuel Curitiba, Manuel de Ireno, Mindom, Quelemente, Tonho Fiô, Vavá, Zé Cabacinha e tantos outros. Existiam personagens folclóricas, fazendo a alegria de crianças, jovens e velhos: Antônio de Zalta, Biza, Bonito, Gigi e suas filhas a desfilarem num alegre Carnaval de rua, João de Poncã, José Mateus, Mané Chuva, Manuel Bode, Martiliano, Nozinho e seus presentes trazidos de Salvador e distribuídos entre as crianças pobres na véspera de Natal, Tonho Coca e suas poesias de cordel, Tonho Garupa e tantos outros. Este último conhecido como o profeta, homem de hábito ermitão, que sobrevivia vendendo hortaliças cultivadas no quintal da sua casa, que, ao ser interrogado se ia chover, debaixo de sua enorme barba, estufava o peito e com as 44 faces rubras, emitia no mesmo instante a previsão do tempo. Ou ainda a presença contínua dos desportistas, que faziam a alegria das tardes do domingo, no campo da Baixa Fria, principalmente quando se tratava do clássico municipal entre Cedro e Botafogo e aí vale destacar os nomes de Antônio de Chiquinho, Antônio de Tiquinho, Bebé de Coca, Carlos de Tiquinho, Carmélio, Doro, Francisquinho, Guel, Henrique de Coca, João de Coca, Manuel de Zé Vítor, Luís Carlos, Paulo Machado, Piteco, Renato de Alvinho, Tota, Valmir, Zé Bebo, Zé de Mindom, Zé Taco. Quem é gente boa? Não é fácil defini-la, mas a encontramos a todo o momento à nossa volta. É gente honesta, direita e trabalhadora, gente que leva bem sua família, que está sempre disposta a ajudar os outros, é acolhedora, possui um olhar risonho e é como se tivesse a bondade escrita na testa. Gente boa é a gente humilde da canção inigualável de Chico Buarque, aqueles que vão em frente sozinhos sem ter ninguém com quem contar. O Cedro tem um jeito diferente no cultivo do gosto da convivência. Como as tentações do lazer, não eram perdulárias, havia no cedrense o gosto do encontro, o contacto pessoa a pessoa. A arte de comungar afetos, trocar histórias e problemas. A cidade tinha esse interlúdio de explorar ao máximo o prazer de conviver, de estar junto. Para Leonardo Boff, o valor de um povo se mede pela quantidade de gente boa que é capaz de produzir. Norberto Bobbio nos deixou esta sábia lição: O valor de uma sociedade não se mede pela ordenação jurídica, mas pelas virtudes que os cidadãos vivem. A gente boa vive de virtudes, por isso, ela não nos deixa desesperar e nos dá boas razões para continuar confiando . Precisamos urgentemente resgatar estes valores na nossa comunidade, para que possamos construir uma sociedade mais humana e feliz. 45 Foto 8. Praça Miguel Seixas Foto 9. Avenida Manoel Dantas 46 Trabalhadores da carne A carne-de-sol foi a base da economia durante um longo período da história da cidade do Cedro. Serviu também de esteio para a fixação de habitantes, na medida em que permitiu uma atividade econômica para os estancieiros que aqui se fixaram. Não sei precisar como surgiu a carne-de-sol no nosso município, porém desde a sua criação já se produzia de maneira artesanal e em pequena escala e, posteriormente, transportada por comboieiros e canoas de tolda, passou a ser comercializada por marchantes em toda a região do Baixo São Francisco, ganhando fama regional. A partir desse momento, a produção de carne tornou-se o centro da vida econômica da cidade, permitindo que famílias que antes viviam em extrema pobreza, passassem a ganhar dinheiro, promovendo uma geração de emprego e renda. Todo o trabalho era desenvolvido, principalmente, no matadouro municipal, também conhecido como curral do açougue. As instalações eram simples, constando de um curral feito de madeira para prender o gado e realizar o abate, um galpão semicoberto e piso de alvenaria para retirada do couro, vísceras e despencar o animal. Depois de esquartejado, as partes do boi seguiam para as salgadeiras, casas simples de taipa, e aí eram retiradas as carnes, separando-as dos ossos. A salmoura era depositada nos aloques, que guardavam todo o segredo do sabor e cheiro da carne produzida. Esta função era feita pelos magarefes , homens de origem simples, como Adai, Antônio de Minervina, Brás, Caldinha, Clóvis, Duas, Durval, Geraldo, Majenço, Manuel Genuário, Tonho Delera, Tonho Joninha, Zé de Tatai, Zé Neto e tantos outros, que aprenderam o ofício de produzir a melhor carne-desol que o mundo já conheceu. Quando criança, junto com o meu irmão mais velho, Antônio, ajudávamos o nosso pai e os nossos tios nas lidas semanais da 47 matança, como era conhecida a atividade de preparação da carne. Lavávamos os panos sujos de sangue na Lagoa Salomé, quebrávamos o sal bruto que chegava em saco plástico e púnhamos para secar na calçada do curral. A carne-de-sol, que sobrava da comercialização em feiras livres, passava por um processo de limpeza e era posta para secar nos secadores ao ar livre, para se transformar em carne seca. Aquela carne vermelhinha, que desfia fácil e que, em geral, é a primeira que a gente ataca na feijoada, é facilmente confundida entre carneseca, charque e carne-de-sol. Apesar de na aparência serem muito semelhantes, no conceito elas têm diferença, sim. Vamos colocar de vez um ponto final nesta confusão. "Carne-seca: conhecida também como charque, carne-do-ceará ou jabá, tem uma salga mais forte que a carne-de-sol. É seca também ao sol e ao vento. Contém apenas 10% de água. Colocada em água para dessalgar, perde grande parte de suas substâncias nutritivas. É muito utilizada, principalmente no Nordeste do Brasil. No Sudeste, entra no preparo da feijoada . "Carne-de-sol: alimento muito popular no Nordeste do Brasil, é uma carne salgada e seca ao sol e ao vento que mantém a cor avermelhada . Tem salgação mais leve que a da carne-seca. Deve ser consumida até uma semana depois de curada. Antes de ser utilizada, deixa-se de molho por algum tempo, com a água sendo trocada várias vezes. 48 Um amigo de infância Até os meus dez anos de idade, morávamos em uma casa de taipa, vizinha aos nossos avós paternos na praça Vereador Antônio Machado, em Cedro de São João. Meu pai, após perder quase todo o dinheiro em jogo de baralho, resolveu, num gesto sublime, com o dinheiro que ainda lhe restava, adquirir uma casa de alvenaria, com vários cômodos, inclusive banheiro e quintal. A casa era no mesmo bairro, Oiterinho. Essa decisão agradou a todos, pois continuávamos próximos dos nossos avós e tios. No dia seguinte ao da mudança para a nova casa na rua São Bento, em 1970, toda ela cheirando ainda a argamassa, cal, e tinta fresca, ofereceu-me meu pai, chegando da feira de Piaçabuçu, em Alagoas, um amigo. Era uma muda de coqueiro gigante, que acabava de rebentar, no desejo vegetal de ser árvore. A semente de coco guardava, ainda, as duas primeiras folhas unidas e verdes, as quais eram como duas jóias flexíveis que tentavam fugir do seu cofre. - Mamãe, olhe o que me trouxe o papai! - gritei, contente, sustentando na concha das mãos curtas e ásperas o pequeno vegetal que ainda sonhava com o sol e com a vida. - Planta, meu filho... Vai plantar... Planta no meio do quintal, longe da cerca... Precipito-me, feliz, com a minha semente viva. A dez ou quinze metros da casa, estaco. Faço com a enxada uma pequena cova, enterro aí o projeto de árvore, cerco-o de pedaços de tijolo e telha. Rego-o. Protejoo contra a fome dos porcos e a irreverência das galinhas. Acompanho com afeto a multiplicação das suas folhas tenras. Vejo-as mudar de cor, na evolução natural da clorofila. E cada uma, estirada e limpa, é como uma língua verde e móbil, a agradecer-me o cuidado que lhe dispenso, o carinho que lhe voto, a água gostosa que lhe dou. O meu coqueiro sobe, desenvolve-se, prospera. Eu cresço, mas ele cresce mais rapidamente do que eu. Passado um ano, estamos do mesmo tamanho. Perfilamo-nos um junto do outro, para ver qual é o Texto inspirado em Humberto de Campos. 49 mais alto. É uma árvore adolescente, elegante, graciosa. Quando eu completo doze anos, ele já sombreia com suas palhas. A cada rajada de vento, ele se balança como um gigante jovem que embalasse nos braços os sopros de Deus, até que, um dia, seguro da sua rijeza hercúlea, não o deixo mais. Promovo-o a mastro do meu navio e, todas as tardes, lhe subo ao ramo mais empinado, onde, com o braço esquerdo cingindo o caule forte, de pé, solto, alto e sonoro, o canto da liberdade. Mão direita aberta acima dos olhos, como quem devassa o horizonte equóreo, mas devassando, na verdade, apenas os quintais vizinhos, os telhados das casas e a torre da Igreja Matriz, eu próprio respondo, com minha voz gritada, que a ventania arrasta para longe, rasgando-a, como uma camisa de som, nas suas palmas e nas estacas das cercas velhas, enfeitadas de melão, que avistei terras de Espanha e areias de Portugal, recordando-me da leitura que fizera meu pai na noite anterior de um conto de Humberto de Campos. O vento forte, vindo das bandas da várzea, dá-me a impressão da brisa de cheia do rio São Francisco. O meu camisão branco, de criança do interior, paneja, estalando, como uma bandeira solta. O coqueiro novo, oscilando comigo, dá-me a sensação de um mastro erguido rolando diante de mim, na curva do horizonte, onde o céu e o mar se beijam e misturam, as terras claras de Espanha, e areias de Portugal. Pouco a pouco, a noite vem descendo. Um véu de cinza envolve docemente os coqueiros dos quintais próximos. Os bezerros de seu Jesuíno berram com mais tristeza. As vacas, apartadas deles, respondem com mais saudade. Os jumentos dos transportadores de água zurram as cinco vogais e o estribilho "ípsilon", marcando sonoramente às seis horas. E eu, gajeiro de uma nau ancorada na terra, desço tristemente do mastro do meu coqueiro, sonhando com o rio alto, invejando a vida tranqüila dos pescadores, que não tinham, pelo menos, a obrigação de estudar, a lição do dia seguinte. Aos quinze anos da minha idade, e cinco da sua, separamo-nos, o meu coqueiro e eu. Embarco para o Colégio Agrícola Benjamin Constant , em São Cristóvão, e ele fica. Na hora, porém, de deixar a casa, vou levar-lhe o meu adeus. Abraçando-me ao seu tronco, aperto-o de encontro ao meu peito. No meio dos ramos mais altos abotoam os primeiros cachos de flores miúdas e esbranquiçadas. 50 - Adeus, meu coqueiro! Até à volta! - Ele não diz nada, e eu me vou embora. Da esquina da rua, olho ainda, por cima da cerca, a sua folha mais alta, pequenino lenço verde agitado em despedida. E estou no Colégio Agrícola, cursando o 2º grau, homem-menino, estudando, lutando pela vida, enrijando o corpo no trabalho bruto e fortalecendo a alma no sofrimento, quando recebo uma merenda acompanhando uma carta de minha mãe: "Receberás com esta uma pequena lata com doce de coco. São os primeiros frutos do teu coqueiro. São deliciosos, e ele te manda lembranças... . Recebendo a carta de minha mãe, choro, sozinho. Choro, pela delicadeza da sua idéia. E choro, sobretudo, com inveja do meu coqueiro. Por que não tivera eu, também, raízes como ele, para não me afastar nunca, jamais, da terra em que eu, ignorando que o era, havia sido feliz? Volto, porém. O meu coqueiro estende, agora, os braços, na ânsia cristã de dar sombra a tudo. O orvalho corre-lhe pelo tronco, mas ele se embala, contente, à música dos mesmos ventos amigos. Tem flores para os insetos faiscantes É um coqueiro moço e robusto. Está em toda a força e em toda a glória ingênua da sua existência vegetal. Um ano mais, e parto novamente. Outra despedida; outro adeus mais surdo, porém mais feliz. Agora vou para uma cidade distante, cursar Engenharia Agronômica, em Recife. -Adeus, meu coqueiro! E eu, quase morto de saudades, regresso de férias. Volto a ver minha casa e a rever o meu amigo, que agora hospeda nos seus ramos um alegre e cantador vim-vim. - Meu coqueiro, aqui estou! Recordo-me das despedidas, quando viajei para fazer curso nos Estados Unidos e depois, no Japão. Com os seus ramos paralisados, tensos, pareciam absorver as preocupações da minha avó, que não conseguia 51 imaginar e compreender como tratariam o seu neto em terras tão longínquas e estranhas. Eu estou homem e ele mais velho. Ele está imenso e os seus ramos sobrepondo-se à mangueira, à graviola, à carambola, à acerola, ultrapassam a cerca. Sempre que retorno à minha casa, faço questão de abraçá-lo e de saborear a deliciosa água dos seus frutos, que me ajuda a saciar a sede e alimentar a minha alma de esperança. Neste momento tenho uma viagem programada para a Espanha, onde irei defender a minha tese de doutorado. Mais uma vez, irei ao encontro do meu velho amigo para dizer-lhe: - Adeus, meu amigo! Até o próximo reencontro 52 Véspera de São João O Cedro é circundada de várzeas e lagoas que formam um pantanal. A água é quase irmã da terra, beijando a flor das ruas. Adotamos São João Batista como padroeiro. Então, durante todo mês junino, é comemorado em forma de noiteiros o dia em homenagem às profissões que dão base de sustentação à vida econômico-social e política da cidade, coroadas com uma missa em ação de graças, doações feitas para ajudar as obras da igreja e fogos, muitos fogos. Há a noite dos marchantes, dos funcionários públicos, dos casados, do sindicato, dos pescadores, dentre outras. Sempre me despertava o interesse, quando, em homilia, o Padre Manuel Guimarães, assim falava: São João, tinhas um vestido de peles de camelo, e uma cinta de couro em volta de teus rins; e a tua comida eram gafanhotos e mel silvestre. E a filha de Herodias bailou, e era linda. E quando disse o que queria neste mundo, o rei entristeceu. Eras a voz que clamara no deserto, e clamavas na cadeia. E tua cabeça veio num prato para as mãos da bailarina . João, esta geração de homens continua a mesma da qual disse o Senhor: São semelhantes aos meninos que estão assentados no terreiro, e que falam uns para os outros e dizem: nós temos cantado ao som da gaita, para vos divertir, e vós não bailastes: temos cantado em ar de lamentações, e vós não chorastes . João, ontem foi a noite e véspera de teu dia. O povo dançava ao som de trio elétrico. Não dancei nem chorei. Estive no Oiterinhos, rua dos Camarões, rua da Igreja, Alto da Boa Vista, Cruizeiro Redondo, Alto do Cemitério, Baixa da Égua, Barroca, Carvãozinho, Lagoa Nova, Bananeiras e Poço dos Bois. E estive, por que não dizer, na zona promíscua. E, em toda parte o povo te festejava, mas já não era com a espontaneidade, a ingenuidade, a solidariedade e a alegria de antes. Lembro-me, quando em criança, do povo em mutirão a enfeitar as ruas com as bandeirinhas presas ao barbante, coladas com goma de farinha de mandioca e estendidas, entre os postes, formando ziguezague aéreo Texto inspirado em Rubem Braga. 53 pelas ruas. As alvoradas de fogos promovidas pelo velho Doro, despertando a população para mais um dia, com direito à exibição, durante a noite de busca-pés e espadinhas, cujo brilho dos raios parecia querer tocar nas estrelas. Nunca vi até hoje fogos com brilho tão belo e intenso. Das noites de cantoria e dança, no bairro Oiterinhos, num autêntico forró pé-de-serra, na casa de Mané Grande, que derrubava a parede interna de uma humilde casa de apenas dois cômodos, para transformá-la, junto com os seus filhos em um salão de festas. Sem falar de Cristo com a sua sanfona a animar o povo da Barroca e sua vizinhança. Ou das enormes rodas de cantigas juninas, que se formavam nas ruas, puxadas por Asclé, que começava, entoando o seguinte canto de entrada: Minha gente entra na roda Oi siu, siu, siu... Que é pra vadiar Oi siu, siu, siu... E a roda ia crescendo, e o coro das vozes alegres ecoando cada vez mais longe, e a cantoria prosseguia: Pula a fogueira, Iaiá! Pula a fogueira, Ioiô! Cuidado para não se queimar Olha que a fogueira Já queimou o meu amor Eu pedi numa oração Ao querido São João Que me desse um matrimônio São João disse que não! São João disse que não! Isto é lá com Santo Antônio! Eu pedi numa oração Ao querido São João Que me desse um matrimônio Matrimônio! Matrimônio! Isto é lá com Santo Antônio! 54 Capelinha de melão É de São João É de cravo, é de rosa É de manjericão São João está dormindo Não acorda, não Acordai, acordai! Acordai, João! Ranchos alegres de homens e mulheres, de mãos dadas, brincavam ao redor de uma fogueira, saltavam-na, tornavam-se compadres. Entravam pelas casas cantando e, alegres, os grupos iam se formando e terminavam na grande roda. Ali tudo era alegria, e os cantos das plantações de arroz se sucediam. Ali todos cantavam e a roda punha no corpo da gente uma vontade insopitável de dançar, de bailar, pois o ritmo era convidativo. Ela congraçava os membros adultos da comunidade, caíam as barreiras sociais, pobres e ricos, moradores das casas de tijolos e das choupanas de palha, de mãos dadas, alegres, cantavam, esquecendo-se das intrigas políticas, das desditas, das mágoas, das rixas familiares, do bate-boca de comadres, dos desníveis sociais, enquanto nas calçadas, aquecidos pela fogueira, entre uma espiga de milho, carne de sol assada, pamonha e canjica, as pessoas faziam estrofe de quatro versos que manifestavam a simplicidade e beleza de sua poesia: Esta noite eu tive um sonho Mas que sonho atrevido! Sonhei que era o babado da barra do teu vestido . Chegou a hora da fogueira É noite de São João. O céu fica todo iluminado, fica o céu todo estrelado Pintadinho de balão. Pensando na cabocla a noite inteira Também fiz uma fogueira dentro do meu coração . Às vezes chovia, às vezes o céu ficava parado e fechado, sem luz e sem chuva. Mas na terra humilde, a noite era sempre a mesma. As casinhas, à margem das ruas esburacadas, estavam alumiadas por fogueiras. Nas 55 janelas e nas portas se penduravam balões. Esses balões estrelados, cativos de parede, forneciam nas ruas uma imagem colorida e se misturavam com as ruas enfeitadas de bandeirolas. Até as estrelas do céu desciam para perto da lama, para as casinhas baixas, que explodiam de alegria. E teu retrato, segurando o menino Jesus, estava colado nelas. Pelas ruas, as fogueiras ardiam. Firmadas por estacas, as fogueiras enfeitadas, de espaço a espaço, ensangüentavam a noite, como flores de fogo. E os fogos pipocavam. Eram foguetes, bombas, busca-pés. Os fogos pipocavam pela noite adentro. Uns tinham estalos secos, intermitentes, esparsos, outros rebentavam roucos; outros chiavam; outros crepitavam; outros eram urros de pólvora. Eu não estava no meio da noite, eu estava no centro de muitas noites. João, eu não tenho mais dezenove anos. Alguém canta, moças agora cantam e dançam em torno dos palanques. Entre canjicas, milho verde, fogueiras, abraços, olhares, amores, outras noites me cercam. Eu tinha quinze anos e naquela noite ela subitamente me amou. Amou-me talvez apenas uma hora, sentiu uma ternura e me deu aquele lenço de seus cabelos. Era um lenço grande, colorido, e aquela chita estava sempre em volta de sua garganta ou amarrada em seus cabelos. Eu dormi na praça e o lenço tinha um cheiro terno e quente de cabelos castanhos, e aquele cheiro me entontecia. João, naquela noite também havia cantos, e o vento soprado do rio São Francisco no ar escuro tinha o mesmo cheiro. João, são muitas noites antigas que me prendem no meio desta noite. Pobres as noites sob as lâmpadas deste trio elétrico, tristes noites sem ternura noturna. João, o povo, na noite imensa, festeja a ti. Há fogueiras e amores e bebedeiras, mas eu não irei a festa nenhuma. Amanhã, João, esse povo continuará na vida e outra vez a mesquinharia dos líderes políticos continuará deturpando a beleza da vida; as crianças continuarão a crescer, magras e ignorantes; o suor dos homens será explorado. João, ninguém dividiu as túnicas, nem os pães, como tu mandaste. 56 Foto 10. Igreja Matriz São João Batista Foto 11. Altar da Igreja Matriz Foto 12. Imagem de São João Batista, padroeiro do Cedro 57 This document was created with Win2PDF available at http://www.win2pdf.com. The unregistered version of Win2PDF is for evaluation or non-commercial use only.