Biografia
Ailton Francisco da Rocha é engenheiro agrônomo,
formado
pela
Universidade Federal
Rural
de
Pernambuco. Nasceu no bairro Oiterinhos, em Cedro
de São João SE, no dia 15 de maio de 1960, filho de
José Francisco da Rocha e Carmelita Souza.
Especializou-se em Irrigação e Recursos Hídricos pela
Utah State University, nos Estados Unidos e
representou o Brasil como Jovem Liderança da
América Latina em Meio Ambiente, em Tóquio, no
Japão. Foi professor de Matemática no Colégio Cenecista São João
Batista e de Economia Agrícola na Universidade Tiradentes. Ocupou o
cargo de Superintendente de Recursos Hídricos do Estado de Sergipe, de
setembro /1997 a março /2003. Foi presidente do comitê técnico e
coordenador geral do Estudo de Desenvolvimento dos Recursos Hídricos
do Estado Sergipe, através do acordo de cooperação técnica com a
Agência de Cooperação Internacional do Japão
JICA. Exerceu o cargo
de secretário executivo do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Sergipe
e do Conselho Estadual de Recursos Hídricos. Representou o Estado de
Sergipe no Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco. É
representante regional da Associação Brasileira de Recursos Hídricos
ABRH. Atuou como consultor na elaboração do Programa de Ações
Estratégicas para o Gerenciamento da Bacia do Rio São Francisco e da
sua Zona Costeira e no Plano Decenal de Recursos Hídricos da Bacia
Hidrográfica do Rio São Francisco (2004-2013). Doutorando do Curso
Gestão Empresarial: Nuevas Tendências en Dirección de Empresas ,
pela Universidad de Valladolid, na Espanha. Recebeu do Jornal Cinform a
homenagem de filho ilustre de Cedro de São João.
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Coisas da Vida (Orelha do Livro)
Ver passar o tempo, sem nada fazer, é o pior passatempo que o homem
pode praticar. É preciso cutucar a lógica evolutiva do tempo,
convencendo-o a não tornar velho o que é novo, ainda que através da
conservação do coração. É dizer em outras palavras: é preciso
convencer o tempo a aceitar que a eternidade da vida somente lhe fará
bem, pois assim conservará consigo os vestígios de todas as histórias,
transformando-o no próprio Senhor da História.
É o que fez o escritor Ailton Francisco da Rocha quando ousou, em livro,
eternizar as boas lembranças de sua infância. E, como competente
engenheiro agrônomo, fincou a semente de sua vida no livro Doces
Lembranças .
Fez na prática o que deve ter aprendido em sua infância, pois matou ele
dois coelhos com apenas uma cajadada, mais especificamente quando
fez brotar duas frondosas vidas de uma única semente. E o resultado
não poderia ser outro, o "cedro" que plantara e que adubara
com as lembranças de sua memória, hoje eterniza a sua vida e a da sua
querida Cedro de São João.
É claro que o tempo quedou-se convencido, carregando agora nos seus
braços e pelo mundo afora as vidas do Cedro Ailton e a de Cedro de São
João.
Bom para todos nós, que trouxemos para o presente as nossas
lembranças já esquecidas. Com Ailton, voltamos a lavar as roupas das
nossas vidas, carregando sonhos e estória, sem qualquer medo da
ignorância, até porque quando temos amigos desde a infância,
habitando uma "Terra de Gente Boa", as nossas doces lembranças
ficam a jogar com o destino, tornando-se nossos dias eternas festas de
São João.
Na terra de sua querida Cedro de São João, a árvore de sua vida não
poderia encontrar melhor solo para se desenvolver, fazendo com que os
galhos sombreiem outras vidas, gerando, com o seu exemplo, outras
árvores sempre plantadas, cedros ou não.
Cezar Britto
3
D OCES LEM BRAN ÇAS
4
Copyright© by Ailton Francisco da Rocha
Todos os direitos reservados ao autor
Revisão de João Costa
Editoração Eletrônica de
Capa do autor
Rocha, Ailton Francisco da
Doces Lembranças
Aracaju - Sergipe
_______________
2004
5
D oce s Le m br a n ça s
Ailton Francisco da Rocha
6
Creio que cada um deve ficar o mais
possível no lugar onde nasceu.
Nada de muita emenda ao soneto
da vida: ou do destino, que é o
mesmo.
Gilberto Freyre
A vida não é a que a gente viveu,
e sim a que a gente recorda,
e como recorda para contá-la.
Gabriel García Márquez
A vida de um homem
não deve ser medida,
efetivamente,
pela extensão,
mas pela intensidade.
Humberto de Campos
7
Agradecimentos
A meus pais, José e Carmelita,
a minha esposa Verônica,
a minha filha Laura,
a meus avós (in memoriam),
a meus irmãos e tios,
e ao povo da minha terra,
pela presença firme
e permanente na minha vida.
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Prefácio
Como propriaense que sou, e face à proximidade, sempre estive ligado a
Cedro de São de João, cidade, no passado, também banhada pelas
então abundantes e caudalosas águas do Velho Chico que, nas
constantes cheias de fim-de-ano, quando ainda não existiam as
barragens que decretaram o raquitismo do Baixo São Francisco,
ornamentavam a terra cedrense, como se fora um presépio natalino
assentado
no
delicado
promontório
formado
volumosas águas das suas duas famosas lagoas:
pela
conexão
das
a Lagoa do Cedro e a
Lagoa Salomé. Aquela imensa massa líquida lacustre interligando as
duas cidades, além de permitir a navegação, a pesca e a prática de
esportes náuticos, realizava o milagre da multiplicação da fauna
aquática, já que se constituía num imenso berçário onde se reproduziam
exponencialmente as espécies peixeiras que faziam as delícias das
mesas ricas e pobres daquela gente feliz. Só quem saboreou um gordo
mandim-papo-amarelo com cuscuz no café-da-manhã sabe do que
estou falando. Para tristeza de cedrenses, propriaenses e demais
ribeirinhos, essa espécie de peixe que se reproduzia nas várzeas quando
das cheias anuais do São Francisco está praticamente extinta.
Mas o Cedro era também a labuta do seu povo criativo. Comerciantes
natos, os cedrenses, com suas mercadorias de diversas procedências,
eram soberanamente os maiores vendedores das chamadas miudezas
na grande feira semanal de Propriá, além de produzirem a melhor
carne-de-sol de Sergipe, conhecida e disputada em todo o Nordeste
pelas suas qualidades organolépticas. Também há que se ressaltar a
legendária massa seca produzida na Panificação Nossa Senhora do
9
Socorro que, até hoje, continua em atividade, abastecendo um amplo
mercado regional com seus deliciosos produtos. De minha parte, sempre
que vou ao Condado de São Vicente, obrigatoriamente faço escala no
Cedro, para adquirir as bolachas da sua famosa padaria, onde sou
gentilmente atendido pelos amigos Casquinha e Cascata, mestres da
milenar arte panificadora e do bem-servir.
É, sobretudo, também o Cedro, cultura e inteligência, cabendo aqui citar
as ilustres figuras de Jessé Trindade, odontólogo, poeta e político,
cognominado o orador do verbo inflamado , que honrou o parlamento
sergipano, quando deputado estadual; Thiers Gonçalves, educador e
íntegro juiz de direito; Célio Bezerra, valoroso general do exército
brasileiro; Dilermando Nascimento, geólogo, descobridor de minérios
raros e meu amigo de adolescência; Iradir Batista, filósofo e intelectual
autodidata e outros tantos vultos nascidos na cidade que fizeram
história por onde passaram. Com efeito, as novas gerações continuam
honrando essas tradições, e uma prova disto está materializada neste
livro de autoria do engenheiro agrônomo Ailton Francisco da Rocha,
oriundo de frondosa árvore genealógica que produziu importantes e
gloriosas ramificações nas pessoas do médico sanitarista Guido Rocha;
do economista e professor universitário Paulo Rocha de Novaes e do seu
irmão José Rocha de Novaes, pioneiro da aviação civil em Sergipe; do
engenheiro químico e mestre da informática Francisco Rocha; do
médico-veterinário e ex-Secretário de Estado da Casa Civil, Roberto
Rocha Messias e do médico e senador Gilvan Rocha.
Alicerçado nas suas memórias da infância, Ailton Rocha, nessas suas
D oce s Le m br a nça s, faz uma pungente declaração de amor à sua
cidade ao mesmo tempo em que oferece ao leitor um elenco de belas
crônicas teluricamente vividas pelo menino de olhos bem abertos às
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imagens das lavadeiras de roupa, de ouvidos atentos às estórias
contadas pelo genial Desidério, de sensibilidade aguçada ao observar os
trabalhadores da carne, da alegria contagiante nos folguedos juninos, da
consciência precoce no aprendizado escolar, na bela metáfora da
amizade consubstanciada no coqueiro amigo, na fé do padroeiro São
João Batista, na paisagem onírica da sua Aldeia, no lado boêmio e
musical do povo que homenageou o grande Orlando Silva, quando
cantou na cidade no inicio dos anos cinqüenta, no sentimento que faz do
ser humano o ápice da criação suprema. E sentimento é o que não falta
nos escritos de Ailton.
Portanto, além do profissional competente que realizou excelente
trabalho à frente da Superintendência de Recursos Hídricos, órgão da
Secretaria de Planejamento do Estado, Ailton Rocha revela-se, agora,
um inspirado cronista da sua querida Cedro de São João e, com certeza,
essas suas D oce s Lembranças já fazem parte da melhor literatura
memorialística produzida em nosso Estado.
Aracaju, agosto de 2004
Marcos Melo
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Apresentação
Ailton Francisco da Rocha estréia nas
letras com um livro de crônicas de sabor
memorialista.
O cronista consegue, com a variedade dos
aspectos que lhe servem de tema, traçar
um painel de recordações da infância
vivida em sua cidade natal. Não se apega,
entretanto,
às
vivências
pessoais,
enclausurando-se em si mesmo, alheio ao
ambiente da sociedade de Cedro de São
João. É Ailton o narrador que carrega
consigo os hábitos da gente cedrense do
tempo de sua meninice.
Quem
ler
D oce s
Le m br a nça s
desfrutará do sabor que têm as crônicas
desse sergipano, ora escritas com a leveza
de seu estilo, ora indo até o mais fundo de
sensações da ternura que ele consegue
trazer à tona, como prova de amor à terra
onde nasceu.
José Fernandes de Lima
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ÍNDICE
1. A bola e a ginga
14
2. As lavadeiras
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3. Carregadores de sonhos
22
4. Combatentes da ignorância
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5. Contadores de estórias
30
6. Doces lembranças
35
7. Jogadores do destino
38
8. O homem que fabricava caxinguelê
41
9. Terra de gente boa
44
10. Trabalhadores da carne
47
11. Um amigo de infância
49
12. Véspera de São João
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A bola e a ginga
Em criança dividia as minhas ocupações entre o gosto de estudar e o de
perambular pelos campos de pelada que havia espalhados pelos bairros
do Cedro. Entre eles destacavam-se o da Draga no bairro Oiterinhos, o
Esquadrão no Alto do Cemitério, o Forró no Cruizeiro Redondo, o do
Carvãozinho e o da Lagoa Nova, sem contar com os improvisados
campos da escola que eram sempre utilizados durante os recreios, como
também os espaços das ruas e das praças. Ainda se utilizava a Baixa
Fria, nome do campo oficial dos principais times do município: Cedro
E.C. e Botafogo E.C. e cenário dos grandes clássicos das tardes de
domingo, que se transformavam em campos de pelada nos horários em
que não era utilizado para treinos.
Dos times que se formaram de pelada praticada por meninos, o mais
famoso recebeu o nome de Os Oito Perigos . Parecia título de filme de
cow-boy americano. Era assim composto: Ailton de Zé de Mindom,
Alberto de Tonho Monteiro, Dado de Manoel, Dia de Carmélio, Diogo de
João Grilo, Nô de Zé Guarda, Paulo de Tonho de Beijo e Raimundo de Zé
Louro.
As lembranças que dele guardo na mente e no coração se sucedem
como num filme: vejo-o na disputa de jogos difíceis e ganhando todos,
com os seus craques mirins, tocando com os pés descalços a bola de
borracha, entre dribles desconcertantes, tabelas precisas e o chute
fulminante em direção ao gol. Era tamanha a nossa superioridade
técnica, que passamos a ter torcedores infantis e adultos também. Ao
término de cada exibição, sempre éramos presenteados com uma
rodada de picolés por alguém de melhor poder aquisitivo.
Oito de cada lado e, para não confundir, um time fica como está. O
outro joga sem camisa.
Nessa pelada inocente é que se pode sentir a pureza de uma bola.
Afinal, tratava-se de uma bola dente-de-leite.
Já reparei numa coisa: bola de futebol, seja nova, seja velha, é um ser
muito compreensivo que dança conforme a música: se está numa
decisão de título, ela rola e quiçá com um ar dramático, mantendo
sempre a mesma pose adulta. Em compensação, num racha de menino,
Texto inspirado em Armando Nogueira.
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ninguém é mais sapeca: ela corre para cá, corre para lá, resvala no
meio-fio, pára de estalo no canteiro, lambe a canela de um, deixa-se
espremer entre mil canelas, depois escapa, rolando, doida, pela calçada.
Parece um bichinho, no entanto, aí está ela, correndo para cima e para
baixo, na maior farra do mundo, disputada, maltratada até, pois, de
quando em quando, acertam-lhe um bico, ela sai zarolha, vendo
estrelas, coitadinha.
Tristeza mesmo somente quando ocorria de um chute errante acertar
um adulto transeunte pela rua ou então quando a bola caía na casa de
velhos mal-humorados. O espantalho-gente pegava a bola, viva, ainda,
saca de um canivete ou uma faca e dá-lhe a primeira espetada. No
segundo golpe, a bola começa a sangrar. Num instante, o campo está
vazio, o mundo está vazio. Não deu tempo nem de desfazer as traves
feitas de camisas. Em cada gomo o coração de uma criança.
Cidadania também se conquista com sonhos, com utopia e projetos para
o futuro. O futebol é o caminho mais rápido para que as crianças se
tornem cidadãos com a força de um chute, num campo em que ganham
a identidade de craques destemidos. Os jovens que correm atrás da
bola, nos campos sem grama, driblam preconceitos, trabalham com
itens de condutas fundamentais para a sua formação: a liderança, o
espírito de coletividade e a igualdade de forças.
Lembro-me das peladas, na minha adolescência, entre os adultos no
campo da Draga, sempre realizadas com apostas em dinheiro. Eram
organizadas por pescadores, rizicultores e trabalhadores de olaria na
fabricação de tijolos que, ao final da tarde, se encontravam para
disputar uma boa peleja e aventurar o ganho de algum dinheiro extra.
De um lado estava o time de Pavão, sempre formado por Ailton, Dadá,
Pedro e Givaldo; do outro o time de Tista, composto de Dadalo, Lia,
Bebé e Valmir ou Gilvan, Manuel, Picote e Mirobaldo, ou ainda Géu,
Borges, Marimbelo e Moura. Não era nada fácil enfrentar as entradas
enfurecidas do Bebé que, se acertasse em qualquer parte do corpo,
seria enfermaria na certa e meses de recuperação sem poder jogar, ou
então disputar uma bola dividida com Valmir, cuja canela, era assim que
chamávamos o osso da tíbia, parecia uma haste de ferro encoberta de
pele humana. É lógico que o escrete escalado por Pavão, por ser um
time mais jovem e habilidoso, normalmente ganhava, e no rateio das
apostas, sempre sobrava uma recompensa em dinheiro, que terminava
ajudando na compra da merenda do recreio escolar do dia seguinte.
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Futebol é um dos esportes mais democráticos que existe. Dentro do
campo, por exemplo, não prevalecem sobrenomes, classes sociais ou
níveis de escolaridade. Todos os atletas são iguais e têm nas mãos
instrumentos parecidos. Por outro lado, a torcida vibra com a mesma
paixão, sentimento que reflete um convívio pacífico entre torcedores de
todas as camadas sociais, funciona como um meio do povo extravasar
todas as suas emoções.
O esporte pode ser o maior aliado na luta pelo combate aos vícios e o
melhor caminho que já provou ser bem mais eficaz do que severas
punições. Através do exercício físico, crianças e jovens são atraídos para
uma convivência em grupo marcada pela solidariedade. As necessidades
de respeitar os limites estabelecidos e as regras da competição acabam
se tornando um aprendizado essencial ao processo de desenvolvimento
humano. A prática de se exercitar e de ultrapassar a cada dia os
próprios limites do corpo, como único objetivo de subir mais um degrau,
direciona o atleta. O saldo é uma vida centrada, saudável. Tudo isso
dentro de um ambiente de diversão, mas com responsabilidade. O
potencial educativo e de socialização do esporte é muito maior do que
se imagina. Por outro lado, temos a possibilidade de descobrir talentos
em todas as faixas etárias.
A nossa essência está onde passamos a infância. Continuo, para
sobreviver, driblando os adversários, vencendo os obstáculos, buscando
o companheirismo, correndo atrás das vitórias, sem, contudo, esquecer
ética e respeito ao próximo. Louvado seja tudo que me foi ensinado e as
oportunidades que me foram apresentadas.
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As lavadeiras
Era fácil identificar uma lavadeira. A visão de uma mulher descalça, com
uma trouxa de roupa à cabeça, andando pelas ruas, saias meio
arregaçadas, em direção a um dos pontos preferidos para a limpeza das
roupas, fosse na lagoa Salomé, Porto das Pedras ou as Dragas na
várzea do Cedro, seguida normalmente à curta distância por uma ou
mais crianças, que normalmente aprendiam a nadar, sob os seus
auspícios, em torno de um banco de lavar roupas.
As lavadeiras podiam ser classificadas de várias formas: as que lavavam
na casa da patroa; as que lavavam nas fontes; as que lavavam por
peça; as que lavavam por mês; as que apenas lavavam e as que
lavavam e passavam.
As que lavavam na casa da patroa não tinham um horário muito rígido.
Em lares organizados, principalmente de líderes políticos ou de
fazendeiros, a exemplo de Miguel Seixas, José Dantas, Euclides, João
Gomes, Jonas Trindade, Fraga, Lealdo, José Soares, Antônio Melo, Paulo
Alves, Jesuíno, Desi, em que havia dia e hora para tudo, a lavadeira
tinha dias pré-estabelecidos para molhar a roupa.
Se, em algumas residências, as pias de cimento, chamadas lavanderias,
eram bem construídas, até que o serviço não era dos piores. Mas, se era
para lavar no tempo, sem gamela nem lugar para quarar, a situação não
era de causar inveja. Com muito jeito e algum empenho, o trabalho ia
sendo feito mais ou menos a contento das partes.
A lavadeira que se empregava nas casas tinha a vantagem de comer
melhor ou, pelo menos, comer, na hora certa.
A que lavava na fonte, por peça, fazia suas exigências e tentava modos
malcriados. Fazia o que queria. A que lavava por mês (à razão de
trouxas), estava mais sujeita à exploração: As patroas pechincheiras
mandavam mais roupas do que o combinado na hora do ajuste. Ia
buscar a trouxa na segunda-feira, entregando no sábado tudo pronto,
salvo contratempo de chuva ou doença, bem como quando lhes pediam
uma peça ou outra para determinado dia. Algumas viviam chorando
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adiantamento, alegando necessidade de comprar sabão e anil. Nunca
confessava que o dinheiro era para comprar o alimento do sustento da
família, principalmente dos filhos.
As mãos de quem lavava sofriam injúrias terríveis. Roupas grossas ou
muito sujas exigiam longa esfrega, rasgando as cutículas, fazendo
nascer espigas. A potassa do sabão irritava a pele e os problemas
surgiam. Os dedos começavam a inchar, infeccionavam em volta da
unha, supuravam. Os dedos despelavam, e a unha apodrecia, caía. O
terrível unheiro continuava resistindo a tudo, produzindo vergões e
ínguas, parentas próximas da erisipela.
Durante todo o sofrimento, sem deixar de lavar, a lavadeira
experimentava tudo quanto estivesse ao seu alcance. Mandava rezar.
Punha emplastros para amadurecer o pus. Basilicão, cabeça de quiabo
pisado com sabão virgem, papa de farinha crua com azeite doce, hortelã
grosso pisado, mastruço pisado, eram as mezinhas mais usadas. A falta
de resguardo de boca e a necessidade constante de estar com as mãos
na água dificultavam a cura, mas as lavadeiras não desanimavam.
Viviam a sua vida torturada de pobre, presas às técnicas primitivas de
lavar.
Na segunda-feira, alguém esvaziava a cesta de roupa suja, despejandoa ao chão, inspecionando meticulosamente, peça por peça, depois de
especular o interior dos bolsos e catar agulhas e alfinetes esquecidos
nas golas dos vestidos, formando assim, pequenos montes de roupas de
vestir, roupas de mesa e roupas de cama e de banho.
Terminada a contagem e feito o rol, punha tudo dentro de uma toalha
ou lençol mais resistente, fazendo a trouxa com as pontas amarradas. A
lavadeira chegava, ouvia as reclamações acerca da roupa limpa que
tinha entregue no sábado. Desculpava-se ou justificava-se, como podia,
as faltas, os desbotados de sol, as manchas adquiridas, os rasgões,
despedindo-se com mesuras e promessas.
Em casa, quando era conscienciosa, tornava a contar toda a roupa,
separando as brancas das de cor. Como a maioria era analfabeta, a
contagem era realizada utilizando códigos.
As roupas eram postas de molho para largar a sujeira, ensaboadas com
sabão de pedra e batidas sobre um banco de madeira. O método
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consistia em espremer bem toda a umidade da peça, correr o sabão
nas partes mais imundas, enrolar o pano sobre si, tudo muito bem
apertado e deixar de parte para amolecer, até a hora de esfregar.
Entre as esfregações e batidas, a roupa acabava no quarador para o sol
esquentar.
Meio dia para molhar a roupa; meio dia para secar; o resto da semana
para engomar e passar, esta era a regra para as que lavavam com mais
cuidado. As lavadeiras cumpriam seu destino. Nada de queixas, nada de
lamúrias. Que é que elas iriam fazer? Se se nascia lavadeira, lavadeira
se tinha de morrer.
Desde meninas, quando esfregavam bacias e mais bacias de roupas às
margens da várzea, lagoas e açudes, as lavadeiras, eventualmente
escutavam o ronco de algum avião passando por entre as nuvens. E lá
embaixo elas cantavam; Avião, avião avuadô. Nem aqui nem em
Propriá, avião nunca pouso .
Entre morros paralelos, que a guardavam, a várzea e a lagoa Salomé se
estiravam na frescura do vale como rio parado. Ajoelhadas na água
rasa da margem, as lavadeiras batiam nas tábuas as camisas da cidade.
Corpos metálicos. Fisionomias graves, as fisionomias brandas, e
fisionomias que se iluminavam a vozes tagarelas. Negras murchas, e
negras luzidias, e negras menos negras, que se diriam douradas: mães
fatigadas de sol e trabalho, moças de encantos presentes, meninas
compridas, indecisas.
Mulheres e trabalho de mulheres. A elas o encargo das tarefas imediatas
e necessárias. A elas os meneios amáveis, os cuidados úteis, as penas
fecundas. A elas os gestos diretos, que se aliam às exigências do corpo.
Tratar da casa, dar o de-comer, lavar a roupa, aleitar o filho, deleitar o
leito!
Nem as boninas e outras flores, nem a mais humilde relva, nem os
ventos, nada participava da quietude absoluta, eternamente absoluta
daquele banco de madeira, compacto, liso, desprezado. Nem ninguém
se lembrava da criatura e de seus sofrimentos e de sua atormentada
vida ali deixada. Nem tristeza talvez, nem alegria, não mais perpassam
sobre a sua face parada, indiferente mesmo à morte que ela encerrou
em treva, e esquecimento, e o próprio esquecimento abandonou.
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E medo mesmo somente das vacas paridas que as perseguiam pelo
pasto, pisoteando as roupas estendidas no lajedo, quarando ao sol.
O coral das lavadeiras fazia parte de um patrimônio cultural como uma
das manifestações artísticas da região. Elas eram guardiãs das
cantigas, que foram sendo esquecidas ao longo dos anos. São cantigas
com influências portuguesa, africana, transmitindo uma alegria
contagiante .
As cantigas lavavam a roupa das lavadeiras. As cantigas eram tão
bonitas, que as lavadeiras ficavam tristes e pensativas!
Na presença azul da tarde faziam-se mais vivas todas as variações do
verde
tons inumeráveis, diversos de árvore a árvore, inconfundíveis
no chão ervoso. Sombra na tarde azul, uma adolescente cantava
Cantava, e seu canto voava no vale como um pássaro solto: diz o
Senhor que eu sou sua
Lá vem a lua saindo,
Com três estrelas do lado,
A do meio vem dizendo
Que Maria tem namorado
Ou ainda quando gostava da patroa:
A roupa de Dona Palmira,
Não se lava com sabão,
Se lava com água rosa
Dentro do meu coração
Como me lembro ainda das lavadeiras, a esfregar a roupa, a batê-las no
banco, sempre ao ritmo das cantigas que estavam a entoar!
Era lavadeira a Arababela, Carminho de Adão, Crizelide, Ginole, Izaura
de Epifânio, Jeruza de Francisquinho, Jolinda de Janjão, Leopoldina,
Lindimar, Maria Rosa, Marieta de Tama, Margarida, Maria José, Maria
José de Zeca, Mariinha, Maria de Zafira, Naeze, Ozana de João Pinto,
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Zafira, Zequinha de Argemiro, Irmelina e Júlia. Estas últimas me
ensinaram a nadar.
Onde estão vocês, lavadeiras de roupa? De saudade, as lágrimas lavamme os olhos.
21
Carregadores de sonhos
Intensa beleza que a todos deslumbrava, porque esta várzea excede
cada uma das outras em vários aspectos. Circundada por montanhas em
linhas contínuas, forma ilhas de relvas brilhantes. Tudo misturado a
construções singelas e habitada por gente humilde e trabalhadora,
coroada de imponente igreja matriz. Um tão delicioso clima, com o
frescor da água que evapora, tudo isso se reunia para tornar o Cedro
cena das mais encantadora que a imaginação pode conceber.
Não havia banheiro na maioria das casas. Usava-se o quintal para
satisfazer as necessidades fisiológicas, ou os penicos ou urinóis. Os mais
ricos tinham até penicos de louça e porcelana, e como não existia
espaço arquitetônico destinado para abrigar esses objetos dentro das
casas, alguns locais eram especialmente escolhidos para depósito da
sujeira recolhida.
Era desta forma precária que funcionava o sistema de esgotamento
sanitário da cidade até o final da década de 1970.
A água era conduzida da várzea, lagoas, açude e distribuída para uso
doméstico pelos carregadores de água que levavam o líquido em latas
de querosene Jacaré ou barris, transportada em jumento ou carroças
com burro para o interior das casas, até mesmo para as moradias das
famílias mais tradicionais.
Quando transportavam água em jumento, cada um levava quatro latas,
distribuídas duas de cada lado, acomodadas em caixotes de madeira.
Algumas latas, por não resistirem ao intenso uso, eram todas
remendadas, permitindo que parte da água caísse no trajeto da fonte
até o destino, deixando para trás as marcas de uma vida sinuosa, que
parecia desenhar as linhas da sobrevivência.
Os mais destacados transportadores de água foram: Eliezer, João Jabá,
Joca de Bel, Joca de Tatá, José, Lió, Ramos e Teo.
22
Cantando apenas nos intervalos, passavam a caminho da cidade em
silêncio quando tinham os animais com cargas. Lá seguiam, continuando
seu trote lento e sacudido! Usavam calças que terminavam nos joelhos,
um barbante que a prendia ao redor da cintura, e nas mãos um pequeno
relho improvisado, feito de couro, preso a um cabo de madeira e na
ponta caroá, com o qual iam tocando os animais, marcando o compasso
e abrindo caminho.
Como atores encenando poema de Manuel Bandeira, só mesmo estas
pessoas raquíticas, iam bem com estes animais descadeirados. O dia
ingênuo parecia feito para eles. Pequenina, ingênua miséria! Adoráveis
carregadores de água que trabalhais como se brincásseis!
Entre uma viagem e outra, vinham mordendo um pão, apostando
corrida, dançando e bamboleando nas cangalhas como espantalhos
desamparados.
Pela boca da noite chegava sempre o representante de alguma família,
solicitar-lhes água para o dia seguinte.
Enquanto os carregadores de água faziam o transporte com um único
animal, normalmente o jumento, por ser de estatura baixa e dócil, para
os outros tipos de cargas, usava-se um comboio, formado por mulas,
popularmente conhecidas como burros .
Um dos animais era amestrado para conduzir os demais. Esse - que era
geralmente escolhido pela sua prática e conhecimento dos caminhos,
além de outras qualidades - levava em geral um chocalho pendurado no
pescoço e caminhava sempre à frente dos outros. Os animais
geralmente eram magrinhos e velhos. A carga era repartida, igualmente
nos dois lados e fixada sobre uma cangalha de palha e coberta de couro
cru com dois cabeços para cima nos quais se fixavam, sendo mais difícil
evitar que a cangalha ferisse o animal pelo atrito.
Os Comboieiros do Cedro foram componentes importantes, trazendo
para esta cidade o progresso, transportando em lombos de animais:
carne, arroz, algodão, milho, feijão, farinha, tijolo, telha e tecido para
em caminhadas longas aqui serem comercializados, produtos de
Maruim, enfrentando chuvas ou o sol quente tropical.
23
O aspecto rústico, a inteligência e a bonomia davam à fisionomia do
comboieiro umas expressões peculiares, diferentes da dos homens que
normalmente habitavam por aqui. Atrás da cinta, usavam uma faca
bastante pontuda, que era utilizada para cortar mato, consertar arreios,
e não raro servia como instrumento de defesa.
Entre os comboieiros merecem destaque Antônio Coca, Antônio Correa,
Antônio de Ernesto, Antônio Pavão, Baio, Beijo Deita, Deda de Neo
Bispo, Dionísio, Eldo de Neo Bispo, Ernesto Cabeça Preta, Expedito de
Deralia, Francisco de Lixandra, João de Conceição, João de Inês, José de
Caçula, Joca de Manuel de Lixandra, José Leite de Deralia, José de
Manuel de Lixandra, Manuel Jabá, Loba, Luís Caldas, Lia Deita, Manuel
Correia, Maninho Correia, Mano de Deralia, Manuel de Lixandra, Miguel
de José Dias, Mindom, Neuzinho de Inês, Taniel da Velha Dona, Zezé
dos Cocos. Não podemos esquecer o carro de carneiro de Cícero
Aleijado que transportava carne e animais e o carro de boi de José
Machado, transportando passageiros para Propriá.
Brava gente que fez dos seus próprios caminhos o seu destino, Via
Crucis Cedrense encontro com Deus, reencontros com homens hoje
em decorrência do progresso eles já não existem mais, porém bem que
se poderia comemorar uma data alusiva ou se erguer um monumento,
como símbolo de garra e amor à sua terra, na preservação dos
costumes e tradições do seu povo.
24
Fot os 1 e 2 . Vist a s pa nor â m ica s da vá r ze a do Ce dr o, for m a da pe la s á gu a s do
r ia cho Ja ca r é e pe la con t r ibuiçã o do r io Sã o Fr a n cisco na ocor r ê n cia da s
cheias cíclicas
25
Combatentes da ignorância
Concluí o ABC e a Cartilha, estudando com professora particular que
ocupava a sala da sua casa para ensinar às crianças as primeiras letras
do alfabeto e as quatro operações da Aritmética.
Depois fui estudar, aos oito anos de idade, o primário no Grupo Escolar
Municipal 31 de Março . Localizado a certa distância da nossa
residência, andava com orgulho, mostrando um corpo franzino e
pequeno, sob a farda escolar e, debaixo do braço, uma pasta com
cadernos e livros, sonhos e esperanças. Ao concluir o primário, estudei o
curso ginasial no Colégio Cenecista São João Batista.
Até os vinte anos há dentro de nós, adormecida, mas pronta a
despertar, uma alma que não conhecemos. É nessa altura da viagem
que a estrada se bifurca, levando ao Paraíso ou ao Inferno. É nessa
estalagem do caminho que o homem se veste para a festa da vida,
tomando a indumentária definitiva. Por isso, quero prestar esta
homenagem aos professores e professoras do Cedro, que nos ajudaram
a percorrer esta marcha, desde as vizinhanças do berço, e lutou,
conosco, contra todos os obstáculos da sua própria condição e contra
todas as tentações que nos assaltaram pelo caminho.
Seria oportuno se, por instantes, nos lembrássemos daqueles
professores que passaram por nossas vidas e distingui-los dos que
fizeram parte delas. Desejo com isto enfatizar a marca que cada um
deles deixou em nosso caráter, influenciando nossa postura,
acrescentando
conhecimentos
e
a
maneira
de
adquiri-los.
Conhecimentos transmitidos com dedicação e paciência, frente às
dificuldades individuais e limitações de cada aluno. Quanta motivação!
Alguns deles talvez nos tenham marcado simplesmente pela bondade
que tiveram conosco em nos valorizar e acreditar em nosso
crescimento.
Entre os mestres e mestras que mais se destacaram e influenciaram
gerações, relacionamos: D. Alexandrina, D. Anita, D. Anzinha, D.Cecília,
D. Cida, D. Didi, D. Edna, D. Estela, D. Etelvina, Prof. João Alberto
26
(Faquir), Prof. José Carlos(Cacau), D. Marinalva, D. Marclea, D.
Midinha, D. Miralda, D. Nelma, Prof. Paulo Alves, Prof. Plácido, D.
Purezinha, D. Laiz, D. Lídia, D.Luzinete, Prof. Valdemar(Mazinho),
D.Zélia e D.Zélia Sá.
Ao refletir sobre o destino que tiveram seus discípulos, a impressão que
se tem é que um risonho bando de crianças e jovens conseguiram,
vencendo todo tipo de dificuldades, transformar-se em verdadeiros
cidadãos. Grande número deles ostentam títulos de advogados,
agrônomos,
economistas,
engenheiros,
matemáticos,
médicos,
odontólogos, chegando a conseguir altos postos na administração, na
política, nas letras, nas ciências.
Na arte especial que é ensinar, métodos não bastam. É preciso interesse
pelo aluno e muito afeto para azeitar as relações em sala de aula
auxiliando no desenvolvimento intelectual e afetivo dos alunos.
Compartilhar momentos de alegria, tristeza, descoberta, birra, manha,
acertos e erros, professor e aluno vão juntos vivendo emoções,
construindo o conhecimento e a afetividade.
Se há uma criatura que tenha necessidade de formar e manter
constantemente firme uma personalidade segura e complexa, essa é o
professor.
Destinado a pôr-se em contato com a infância e a adolescência, nas
suas mais várias modalidades, tendo de compreender as inquietações da
criança e do jovem, para bem os orientar, deve ter um contínuo
aperfeiçoamento, uma concentração permanente de energias que
sirvam para chegar a apreender cada fenômeno, conciliando todos os
desacordos aparentes, todas as variações humanas, nessa visão
indispensável aos educadores.
É de grande importância consolidar-se uma personalidade que é ao
mesmo tempo um resultado - como todos somos - da época, do meio,
da família, descer à sua alma, feita de mil arestas, para se pôr em
contato com ela, e estimular-lhe a evolução.
Como que num quadro cujo desenho perdeu a nitidez pela ação do
tempo, mesclam-se em minha memória imagens de uma época que,
27
como diz o poeta, eu era feliz e não sabia. Lembro-me daqueles que
me ensinaram as primeiras letras, os primeiros números e aguçaram a
minha curiosidade pelos mistérios da vida. Recordo-me, com imenso
carinho e saudade, daquela que me ajudou a superar as dificuldades da
fala.
Não me esqueço também dos que me estimularam o gosto pela leitura e
me ajudaram a compreender que, se é importante saber ler, é
fundamental saber como ler e ter uma atitude crítica diante do que se
lê. Foi uma professora que me fez ver que também era importante ler
aqueles assuntos que consideramos chatos, mas que, na verdade, dizem
respeito às decisões que podem mudar nossas vidas.
Lembro-me até hoje da tensão e, em alguns casos, do clima de terror,
do dia da prova. Na verdade, aprendi muito mais com aqueles
professores que estimularam a reflexão crítica, a curiosidade e a busca
do saber, e concediam a liberdade e as condições necessárias para
desenvolver o aprendizado. O aprender é um processo que pressupõe
compromisso pessoal com algo que está para além do passar de ano.
O professor é o arado que semeia, a mão que cultiva, a semente que
germina. Sócrates foi professor de Platão. Platão ensinou a Aristóteles.
Aristóteles fez o melhor que pôde por Alexandre. Se Alexandre não
ensinou, aumentou o mundo para que outros ensinassem.
28
Foto 3. Escola de 1º Grau Padre Manuel Guimarães , antigo Grupo Escolar
M u n icipa l 3 1 de M a r ço , onde cu r se i o pr im á r io
Foto 4.Grupo Escolar Municipal Governador Antônio Carlos Valadares
Foto 5. Colégio Estadual Manoel Dantas
Foto 6. Colégio Cenecista São João Batista , onde cursei o ginasial
29
Contadores de estórias*
De todo os materiais de estudo, o conto popular é justamente o mais
amplo e mais expressivo e também o menos examinado, reunido e
divulgado.
Para nós é o primeiro leite intelectual. Os primeiros heróis, as primeiras
cismas, os primeiros sonhos, os movimentos de solidariedade, amor,
ódio, compaixão vêm com as estórias fabulosas, ouvidas na infância.
O gosto de contar é idêntico ao de escrever
são os antepassados anônimos.
e os primeiros narradores
A arte de narrar está em vias de extinção. Refiro-me a um tipo de
narração que se aproxima à do antigo contador de estórias,
responsável, nas sociedades primitivas, pela preservação e transmissão
da memória coletiva. O acervo de tradições, lendas e costumes era
passado de geração a geração, através das estórias contadas por um
velho, detentor, não apenas de uma rica experiência, como também da
habilidade de convertê-las em prazer e sabedoria para os ouvintes.
A arte de contar estórias se perdeu porque as pessoas perderam o dom
de ouvir. O problema não estava apenas na incapacidade de contar, mas
também na de ouvir.
Meu pai me influenciou na infância a gostar de estórias. Eu gosto de ler
porque meu pai contou muitas estórias para mim, quando eu era
criança. Eu ficava encantado com aquele mundo mágico dos
personagens.
Era assim que as crianças cresciam, perambulando pelas ruas do Cedro,
ouvindo os contadores de estórias, espalhados pelas calçadas, a narrar a
sabedoria popular, contando estórias de reis, princesas e príncipes,
feiticeiras, fadas, velhas e padres, bichos e lugares, com as quais
*
Texto inspirado em Luiz Antônio Barreto
30
alimentaram as gerações que ao redor da casa ouviram, atentas e
crédulas, os relatos encobertos pelo escuro da noite contar estória de
dia cria rabujo - desculpava-se Desidério Melo, para quem o galo é
chantecler e o gato é cara-de-onça, ao mesmo tempo que contava a
estória do medo grande e o medo pequeno :
Um menino, - desses meninos bicho-de-rua, - vai passando, tava um
moço trabalhando numa sapataria, ele pára junto e diz:
- Mestre, o senhor quer que eu venha morar aqui com o senhor?
O homem era sozinho e disse:
- É bom, serve até para um mandado. Fica, mesmo, aí.
O menino ficou.
- Menino, vá ali comprar umas brochas. Olha, venha já.
- Sim, senhor.
Ele saía, por exemplo, 8 horas do dia; chegava 7 horas da noite, por 8
horas.
- Menino, eu não disse pra você não demorar na viagem? Que viesse
logo?
- É, mestre, mas eu me entreti, coisa e tal.
- Ainda um dia, tu tem um medo.
- Mestre, o que é medo?
- Você um dia ainda vai saber.
O mestre criava um macaco e tudo quanto o homem fazia, o senhor do
macaco, o macaco fazia também. Macaco, um bicho inteligente. Quando
é um dia ele manda o menino fazer uma compra.
- Olha, menino, tu não demora.
- Sim, senhor mestre.
Foi embora o dia, entrou com a noite. Vai o homem e diz:
- Eu vou fazer medo àquele menino.
Tinha uma Santa Cruz na beira do mato. O sapateiro pegou um pano
branco, fez uma trouxinha, botou debaixo do braço.
O macaco, sem o homem ver, pegou também um pano, fez uma
trouxinha e saiu atrás do patrão. Quando o homem chegou no lugar da
Santa Cruz, se encapotou no pano branco - o sapateiro - e deitou-se
31
como um morto. O macaco se encapotou também e deita-se encostado
a ele, sem ele ver.
Quando é umas horas, lá vem o menino, cantando, assoviando, coisa e
tal. Quando foi chegando perto da Santa Cruz, olhou aqueles dois
vultos, e disse:
- Ué, ali tem umas coisas deitado; será que é aquilo que é medo?
Nisso o patrão dele, o sapateiro, se levanta. Quando se levantou...
- É aquilo que é o medo.
Vai o macaco por detrás do patrão, e levantou-se também; o macaco
era mais baixo. Disse o menino:
- Ora é dois medo: um medo grande e um medo pequeno!
Quando o sapateiro olha pra trás
não se lembrava do macaco
vê
aquele embrulhado, de noite, perto dele... Aqui se fez no mundo! E o
macaco atrás dele em toda a carreira.
O menino gritava:
- Corre, medo grande, que senão o medo pequeno lhe pega!
Aí que esse homem mesmo corria. E o macaco em cima. Macaco não
cansa. Em cima, em cima, em cima.
- Corre, medo grande! Medo pequeno lhe pega!
Até quando o sapateiro chegou em casa, caiu. O macaco cai de mentira,
se acabando junto dele.
Quando chegou, o homem estava cansado.
- Mestre, o que é isso?
- Menino, foi o medo que tive que quase morro.
- O que é medo, meu senhor?
O sapateiro disse:
- Basta. Você não sabe o que é medo não.
Nunca mais fez medo ao menino, mas quem quase morre foi o
sapateiro, com medo do macaco .
Era prazeroso também ouvir os relatos cômicos de Fio de Antônio de
Beijo, que dentre inúmeros casos conhecidos, transcrevo aquele que me
chamou mais à atenção.
32
Num início de noite dominical chuvosa, encontrava-se Fio sentado na
calçada da casa comercial de Zé de Doro, a contemplar os pingos da
chuva que caía. As primeiras chuvas que caem sobre uma rua calçada,
forma com a sujeira um limo escorregadio, que sempre provoca quedas
em crianças peraltas e velhos descuidados. E lá vinha uma beata em
direção à Igreja, para assistir à missa das sete, vestida com a sua saia
comprida rodada. Era comum as senhoras usarem esta saia sobre uma
anágua, sem calcinha. Quando menos se espera, escorrega e cai com
todo o corpo, com as pernas abertas viradas para Fio. Demonstrando
habilidade e pouco sem graça, por conta da queda, levantou-se
rapidamente e ao observar a presença de Fio, indagou:
- Viu, Fio, a minha ligeireza?
- E ele, sem pestanejar, respondeu: Vi, Fia. Só não sabia que ela tinha
mudado de nome .
Ou então ouvir os causos narrados por Mangueira:
Certo dia estava sentado em uma das calçadas, jogando conversa fora,
aguardando escurecer e ir para casa, pois a mulher estava prestes a
ganhar neném. Ao se dirigir para casa, formou-se uma grande trovoada,
com bastantes relâmpagos e trovões. Ao chegar em casa, encontrou a
mulher reclamando de dores para parir. Morava numa choupana de
barro, esburacada, e naquele momento lembrou que não tinha
comprado querosene para acender o candeeiro. E, no meio daquela
noite escura, entre relâmpagos e trovões, chuva forte e as dores da
mulher, cada vez mais aumentando, abriu-se um relâmpago que clareou
tudo como se fosse o sol do meio-dia. Ele correu, fechou as portas do
fundo e da frente, guardando a luz do relâmpago dentro de casa. E
nesta claridade, nasceu a criança, que ele batizou pelo nome de Mauro .
Costumava sair para pescar, bem cedinho, ainda em jejum,
acompanhado do filho Mauro. Pescava para garantir a refeição do dia.
Numa dessas manhãs, saiu a tarrafear pela Barreta. Era época de rio
cheio. Jogava a tarrafa e quando puxava, nada de peixe. As horas foram
passando e a fome aumentando e Mauro reclamando da fome. Quando
ele olhou em frente, viu um redemoinho flutuando na água. Não pensou
duas vezes, jogou a tarrafa e ao puxa-la, surpreendentemente, era um
cuscuz e bule com café quente .
33
Quando a várzea secava, que chegava a época de bater o arroz,
desciam aos bandos as cardinheiras vindas do sertão para se alimentar.
Mauro saiu para caçar com uma espingarda velha. Ao chegar próximo a
um pé de mulungu, percebeu que estava cheio de cardinheira de cima
até embaixo, e pensou: - se eu atirar, só vou matar algumas
cardinheiras e as outras voarão. É melhor voltar para casa e pegar o
machado, e assim o fez. Ao retornar armado com o machado, cortou o
mulunguzeiro pela cepa, pôs no ombro e trouxe. Dentro de casa, catou
todas as cardinheiras, enchendo sacos e mais sacos .
34
Doces lembranças
Tenho obtido notícias a respeito do propósito da CODEVASF 4ª SR de
desenvolver um projeto para revitalização da Lagoa Salomé, inclusive
tive a satisfação de estar presente ao lançamento, cuja iniciativa é
extremamente louvável, não só pelo aspecto ambiental, como também
pela importância sócio-econômica, cultural e política que este manancial
representa para o município de Cedro de São João.
Como filho natural dessa cidade, ponho me a recordar os bons
momentos de infância e juventude, testemunhados pelas águas da
Lagoa Salomé, que nas cheias cíclicas do rio São Francisco recebia suas
águas e ficava rejuvenescida. Era como se o grande rio, não querendo
chegar ao oceano, fosse se alargando, preenchendo as várzeas com
suas águas barrentas, após percorrer um longo caminho, desde as
Minas Gerais, passando pela Bahia e Pernambuco e, ao chegar na lagoa,
parecia deleitar-se no aconchego da bem-amada, que na sua formação
profunda, circundada por montes escarpados, concedia a calma e a
tranqüilidade ao grande rio para o merecido repouso, mesmo tendo que
deixar enciumado o riacho do Jacaré.
Este cenário de abundância e conquista irradiava por toda a cidade uma
energia extremamente positiva, que servia de festa para todos:
crianças, animais, lavadeiras de roupa, jogadores de futebol de lagoa,
pescadores, transportadores de água, lavadores de carro, seresteiros,
além de servir como fonte de inspiração para a intelectualidade que
punha a nossa cidade na vanguarda do conhecimento e do saber.
Como esquecer dos quadros pintados pelo artista plástico José de
Manoel, as poesias e os discursos inteligentes de Dr. Jessé Trindade, dos
ensinamentos da professora Maria Alexandrina, da disciplina e dedicação
da professora Maria Lídia, das aulas da professora Marinalva Alves, que
há trinta e cinco anos educava os seus alunos e os pais sobre a
importante viagem através da leitura, só demonstrada recentemente na
campanha educativa da Rede Globo. Quantas vezes adormeci ouvindo a
leitura dinâmica que meu pai fazia nos livros emprestados por esta
nobre mestra, uma das quais ficou na minha memória. Era um conto do
escritor Humberto de Campos, que falava de uma criança que, subindo
35
numa árvore, podia ver as areias de Portugal e os mares da Espanha.
Na minha ingenuidade infantil, no dia seguinte, subindo num coqueiro
que havia no quintal da minha casa, só consegui avistar o telhado das
casas e a torre da igreja matriz. E logo depois, ao narrar esta minha
pequena curiosidade, receber a orientação do meu pai, de que a árvore
na qual eu deveria subir chamava-se educação.
Como não lembrar-me das discussões geradas sobre política, literatura,
filosofia, religião? A sensação que se tinha, era de que a contra-cultura
francesa era discutida nos bares do Cedro no mesmo molde em que se
discutia nos bares de Paris. Outro exemplo marcante foi o uso do
biquíni, lançado ao mesmo tempo pelas garotas da praia de Ipanema e
pelas belas moças que procuravam se banhar nas águas da lagoa,
fazendo a festa dos adolescentes e tendo a reprovação do padre Manoel
Guimarães na homilia da missa dos domingos. Talvez por conta desse
comportamento de vanguarda, nós tenhamos elegido no ano mais
censurável da ditadura militar um prefeito de oposição, aliás, feito único
em todo o Estado de Sergipe.
Desta forma começamos a nos destacar em tudo o que fazíamos, quer
fosse produzindo carne de sol, biscoito, requeijão, artesanato, arroz,
como também nos concursos escolares e de trabalho, nas oportunidades
e na profissão que cada um escolhia.
Hoje, sem a presença das águas do velho Chico, a Lagoa Salomé
começa a definhar, a dar sinais de fragilidade, já não reflete com a
mesma beleza o brilho dos raios do sol e da lua. E a sensação é de que,
junto com ela, toda uma sociedade, outrora tão progressista e
conquistadora, vai também perdendo o seu esplendor.
Por conta destes e outros valores existentes na memória do nosso povo,
tenho a convicção de que revitalizar a lagoa Salomé não é uma boa ação
apenas do ponto de vista ecológico, é possibilitar também a
revitalização de uma sociedade que parece ter perdido o rumo da vida e
o bonde da História. Parafraseando o poeta Augusto dos Anjos, poderia
afirmar que as águas da lagoa Salomé possuem a nossa alma.
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Foto 7. Vista panorâmica da lagoa Salomé
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Jogadores do destino
Até o final da década dos anos 70 do século passado, a economia do
município de Cedro de São João, em Sergipe, era impulsionada pelas
cheias cíclicas do rio São Francisco, que proporcionava uma abundância
de peixes, preenchendo as lagoas marginais, fertilizando as várzeas e
fomentando a produção do arroz, associada à comercialização da carne
de sol que passou a dar oportunidade de emprego e renda a dezenas de
famílias pobres.
A classe dos marchantes rivalizava com a dos pescadores que, apesar
de ser em maior número, economicamente era menos favorecida, pelo
baixo preço do pescado em decorrência da grande oferta e plantio de
arroz nas várzeas, em forma de meação, proporcionando geralmente
boas colheitas, mas que destinava grande parte do lucro ao dono das
terras.
Ao contrário, o comércio da carne-de-sol, ganhava cada vez mais a
preferência regional pela qualidade, proporcionando bons lucros. Esta
atividade ocupava a sua mão-de obra por apenas dois a três dias por
semana, que ia do abate à comercialização do produto.
O caminho encontrado, para ocupar o tempo ocioso e com o dinheiro no
bolso, era a participação em festas noturnas, conhecidas como farras,
que deliciava os corações dos apaixonados. Para o poeta Gibran, a alma
da música nasce do espírito e sua mensagem brota do coração.
Essa turma de cantores populares, dos quais destacamos Antônio de
Joninha, Cícero Henrique, Guel, João Jeremias, João Lelinha, José
Vaqueiro, Lamartine, Léus de Purezinha, Luís de Maninho, Murilo, Neu
Mulatinho, Raimundo de Marco, Renan e Tico de Alice, tinham a
companhia de Antônio Cego no violão e seu parceiro predileto Silte do
Cavaquinho. Havia outros como Augusto e seu irmão João, Lilá, Zé de
Antônio de Zalta e Zé Araújo no banjo. No pandeiro se destacavam Pipo,
Josa, Osvaldo e Magenço.
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Os marchantes também preenchiam o tempo em jogos de azar,
predominando cartas de baralho e sinuca. Havia ocasiões em que se
perdia em uma hora todo o dinheiro que se ganhava na semana.
Entre os jogadores de baralho, estavam Alfredo, Antônio Belém, Antônio
de Berto, Aprígio, Berto, Bita de Aluísio, Chico de Tita, Francisco de
Duia, Genésio de Izidório, José Belém, José de Mindon, Manuel
Carrasco, Raimundo, Valdivino e no sinuca Capitão, Duda de Cibele,
Eliseu de Maroca, Ivo, João Grilo, Tinderê, Tonho de Euclides, Tonho de
Pedro.
Havia um personagem que era utilizado para agilizar a formação
improvisada dos grupos, ganhava para isto. Chamava-se Né Aleijado,
assim conhecido por ser tetraplégico. Sentado sobre a cangalha de uma
jumenta, se necessário, percorria toda a cidade em busca de parceiros,
para viabilizar as farras ou jogo de cartas.
Assim, a mesma facilidade com que se ganhava dinheiro, também se
perdia e nesta relação trabalhadores e desocupados se misturavam,
porque, enquanto otários não surgiam, jogo bom não aparecia.
Transtornado periodicamente pela paixão do jogo, julgando encontrar a
solução para seus problemas, o jogador pensa conquistar a liberdade
pelo dinheiro: a posse do dinheiro é uma idéia, chefe de uma libertação,
à procura de uma plenitude. Mas esse dinheiro não é para ser
acumulado e sim para ser gasto, para servir à vida e seus objetivos
existenciais imediatos. Embutido em si mesmo, faz da experiência no
jogo a expressão da sua existência, não aceitando palpites ou conselhos
de fora, seguindo o próprio impulso.
É a busca do dinheiro fácil. É, mas nem tanto. No fundo é o prazer pelo
incerto, portanto essa busca, o jogo, não visa ao dinheiro em si, mas
sim a uma espécie de liberdade que se conquista através do poder,
entendido como a consciência, calma e solitária, de sua força. Ademais,
o dinheiro é o único caminho capaz de conduzir à nulidade. Só a
consciência de que os tendo entre as mãos e os joga à lama alimenta o
seu deserto interior.
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Para os desocupados, o jogo cumpria uma função eminentemente
bancária, no sentido de prover dinheiro quando este se fazia necessário
e, diante da miséria, o dinheiro estava sempre faltando. Daí a
necessidade de jogar, para pagar dívidas, transformando-se, num meio
de se ganhar o máximo com o mínimo de tempo e espaço, não
importando que seja isso lícito ou não.
Para estes, tal como a vida, o jogo não é preciso . A vida segue como a
roleta, que ao girar não sabe onde vai parar e que, ao parar, perde o
significado e o sentido, mesmo quando se ganha. Aliás, ganhar e perder
são a mesma coisa. A emoção não reside aí. O gosto pelo jogo está no
próprio jogo, no ato e não no seu desfecho. Ganhando ou perdendo, é
preciso prosseguir jogando. Assim é também a sorte, ora contemplando,
ora esquivando-se do indivíduo.
O jogador é um ser sozinho, confinado em si mesmo, entre a própria
sorte, decidindo, não pela razão, mas pelo impulso, baseado apenas na
lógica de algumas seqüências, sempre acreditando que tudo podia
mudar com uma simples carta ou excelente tacada na sinuca. É uma
questão de persistência, obstinada vida. Quem sabe, não muda,
mudando-se de lugar, girando o mundo, tal como se gira a roleta!
A grande maioria desses jogadores, enleada no drama da falta de
dinheiro, prisioneiros pela falta de oportunidade e vencidos pela idade,
tece em seu pensamento os mais diversos caminhos possíveis para sua
sobrevivência. Não quiseram se valer do dinheiro para atingir na velhice
uma vida mais tranqüila. De todas as desgraças que penetram no
homem pela algibeira, e arruína o caráter pela fortuna, a mais grave,
sem dúvida, é o jogo.
40
O Homem que fabricava caxinguelê
Numa dessas manhãs tranqüilas de domingo, fiquei a lembrar dos meus
dias felizes de infância, na minha pequena Cedro de São João, mais
precisamente no bairro Oiterinhos, onde nasci e cresci em voltas às
brincadeiras de crianças, valendo-me dos tempos adequados para as
suas realizações. Como não tínhamos acesso aos brinquedos fabricados,
com exceção da bola de borracha de marca Canarinho ou Dente-deLeite, produzíamos os nossos próprios brinquedos, conforme a época do
ano. Havia tempo de tudo, para que cada um pudesse apresentar as
suas habilidades, tais como: arraia (pipa), pião, bola de marraio (gude),
castanha, triângulo, fubica, patinete, figurinhas para colecionar álbuns,
canoa e jogo de botões pelas calçadas. Para este último, elegíamos uma
comissão organizadora na escolha das calçadas que apresentavam
condições de se transformar em verdadeiros estádios de futebol. Não
era uma missão fácil, pois, além de poucas frentes de casa com calçada,
ainda esbarrávamos com a condição do piso e também com a permissão
do proprietário para realização dos jogos, sempre em meio à algazarra
natural de crianças, com direito a torcida organizada e decisões de jogos
sempre acompanhadas de uma charanga formada por instrumentos de
caniço de abóbora e latas de querosene vazias.
Os clubes de futebol eram todos dos estados do Rio de Janeiro e de São
Paulo. Recebíamos uma influência muito grande do Valmir da Bodega,
desportista, que possuía o único rádio de válvulas do bairro, do qual
ouvíamos os jogos dos campeonatos carioca e paulista e programas
esportivos. E assim, cada time de botão representava a torcida do seu
proprietário pelo time favorito, que eram fabricados artesanalmente com
formas adaptadas para cada função do jogador. Os de frente, possíveis
artilheiros, eram velozes, de formato curvo e pequeno, com pontaria
certeira que aterroriza os goleiros, construídos com caixa de fósforos
cheia de areia e recoberta com o escudo do time representado. Já os
zagueiros eram grandes e pesados para garantir a defesa,
principalmente na formação das barreiras, quando da cobrança de
faltas.
Escultura de madeira do caxinguelê. No Aurélio: Caxinguelê (Do quimb. Kaxinjiang elê, rato de
palmeira ). S.m.Bras. Designação comum a várias espécies de mamíferos roedores da família dos ciurídeos,
gêneros Sciurus L., usada sobretudo no N.E. e L. do País. (Sin. (em várias partes): caxinxe, caxixe, caitité,
caticoco, coxicoco, papa-coco, cutia-de-pau, esquilo, quatiaipé, quatipuru, quatimirim, serelepe).
41
Recordo-me dos times formados pelo Corinthians de Meio Homem, o
Santos de Niba, o São Paulo de Tonho Neto, o Vasco de Ademílson, o
Flamengo de Dia, o Fluminense de Flávio, o Botafogo de Dudu, que por
ser mais forte e briguento me tomou a condição de atuar com o meu
time favorito, tendo de me contentar em representar o América.
O campeonato tinha um regulamento rigoroso, em que os dias e
horários dos jogos eram religiosamente obedecidos, com direito a
acompanhamento de uma tabela elaborada antecipadamente com a
definição dos locais dos jogos e distribuídas juntos aos donos dos times,
que cuidavam de organizar as suas torcidas. Como era bom ter a
participação da torcida feminina, era a forma mais direta da paquera,
nas trocas de olhares ingênuos de conquista que nem sempre se
transformavam em namoro. De todos os times, eu menos gostava de
jogar contra o Botafogo. Por ser torcedor fanático, não me sentia bem
quando ganhava, mesmo que fosse a brincadeira de um jogo de botão
em calçada de cimento.
O nosso bairro era muito pobre, com ruas de chão batido. A única com
calçamento de pedras irregulares era a São Vicente. A maioria das casas
era de taipa, algumas cobertas com palhas de arroz, que se iluminavam
durante a noite à base de luz de candeeiro. Normalmente se dormia em
redes entrelaçadas, em quartos improvisados, que durante o dia se
transformavam em salas de estar e de visitas. O colchão era formado
por relvas retiradas da vegetação da várzea e cobertos com retalhos de
tecido, dando um colorido especial, e ficava restrito aos pais, que
ocupavam o único quarto da casa, sempre tendo a companhia de um
recém-nascido deitado no berço ao lado. Entretanto, neste ambiente de
pobreza, reinava um sentimento de alegria, harmonia e bondade, que
surgia não sei de onde, principalmente com a chegada das águas do rio
São Francisco, inundando a várzea e as lagoas marginais. Nunca me
esqueci das festas juninas, com a formação de grandes rodas,
quadrilhas e grupos de adivinhação, organizadas por Mané Grande, com
uma família enorme de filhos e parentes, quase todos artistas natos,
principalmente voltadas para a música e encenações teatrais, que
enfeitavam as ruas com bandeirinhas coloridas de papel hasteadas em
cordões e estendidas em forma de ziguezague. Todo esse clima festivo
era brindado com os foguetes e busca-pés produzidos pelo velho Doro.
42
Com relação aos meninos, havia, além das disputas acirradas de
futebol, as brincadeiras de pé em barra, bandeirinha e garrafão,
enquanto as meninas se ocupavam com bordados, para ajudar nas
despesas domésticas e brincavam principalmente de roda.
Nesse cenário de felicidade e conquistas, vivia o homem que fabricava
caxinguelê. Chamava-se Tonho de Lourdes. Tinha uns sessenta anos,
magarefe de profissão. O seu passatempo preferido era produzir
esculturas de madeira de mulungu e distribuí-las entre as crianças.
Adorador e torcedor das nossas atividades, produzia os nossos troféus,
para coroar os ganhadores, quer fossem dos campeonatos de time de
botões pelas calçadas, quer de futebol nos campeonatos de rua e de
bairros.
Foi dito que as almas vulgares pagam com o que fazem; as almas mais
nobres, com aquilo que são , porque uma natureza perspicaz desperta
em nós, graças a suas ações e palavras, a seus olhares e hábitos, o
mesmo poder e beleza que comunica uma galeria de esculturas ou
pinturas. É o espírito, e não o fato, que é idêntico. Por meio de uma
apreensão mais profunda, e não primariamente por uma aquisição
penosa de várias habilidades manuais, o artista adquire o poder de
despertar outras almas para uma dada atividade.
As atitudes de um dos nossos motivadores, formado de carne e osso,
residindo em nossa comunidade e convivendo o dia-a-dia de nossas
vidas, com certeza possibilitou o despertar de crianças, que na
totalidade se transformaram em cidadãos, cada um seguindo o seu
destino e fazendo a sua história. Bendito seja o homem que fabricava
caxinguelê.
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Terra de gente boa
Segundo minha mãe, nasci num alvorecer do dia 15 de maio,
justamente no momento em que o sino da igreja matriz anunciava a
hora do ofício. Cresci sem entender muito bem o significado de tal
anunciação, mas de qualquer forma, até hoje carrego dentro da minha
alma a sensação e a leveza de ter vindo ao mundo, numa hora
abençoada por Deus, com o auxílio da Mãe Maria. Era assim que se
tratava a única parteira do município, que sempre estava de prontidão
para atender a todas as parturientes, sem distinção de classe social ou
preferência partidária política.
Cresci numa década de revolução e contra-revoluções que tanto
contagiavam e inquietavam a libertária juventude da minha cidade. Era
o poder ultrajovem em ação, quebrando preconceitos, gritando por
liberdade, embriagados por cultura, em busca da conquista dos seus
espaços.
Como cedrense, tenho as minhas nostalgias. Tive as minhas noitadas de
estudantes, perambulando pelas ruas, praças e bares, participando de
bailes, pique-niques, peças de teatro, shows como Jovens ao Vivo no
cinema de Sebastião, festas promovidas por Aidé, e até experimentei o
fascínio pela contra-cultura expressa nos discursos de João Santana.
Havia pessoas comuns que davam duro para criar com honradez as suas
famílias, vivendo basicamente da atividade rural, como Antônio do Zé do
Graça, Buju, Gonzaguinha, Joãozinho Batista, João de Senhorinha,
Jesuíno, Juca, Manuel Curitiba, Manuel de Ireno, Mindom, Quelemente,
Tonho Fiô, Vavá, Zé Cabacinha e tantos outros. Existiam personagens
folclóricas, fazendo a alegria de crianças, jovens e velhos: Antônio de
Zalta, Biza, Bonito, Gigi e suas filhas a desfilarem num alegre Carnaval
de rua, João de Poncã, José Mateus, Mané Chuva, Manuel Bode,
Martiliano, Nozinho e seus presentes trazidos de Salvador e distribuídos
entre as crianças pobres na véspera de Natal, Tonho Coca e suas
poesias de cordel, Tonho Garupa e tantos outros. Este último conhecido
como o profeta, homem de hábito ermitão, que sobrevivia vendendo
hortaliças cultivadas no quintal da sua casa, que, ao ser interrogado se
ia chover, debaixo de sua enorme barba, estufava o peito e com as
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faces rubras, emitia no mesmo instante a previsão do tempo. Ou ainda
a presença contínua dos desportistas, que faziam a alegria das tardes do
domingo, no campo da Baixa Fria, principalmente quando se tratava do
clássico municipal entre Cedro e Botafogo e aí vale destacar os nomes
de Antônio de Chiquinho, Antônio de Tiquinho, Bebé de Coca, Carlos de
Tiquinho, Carmélio, Doro, Francisquinho, Guel, Henrique de Coca, João
de Coca, Manuel de Zé Vítor, Luís Carlos, Paulo Machado, Piteco, Renato
de Alvinho, Tota, Valmir, Zé Bebo, Zé de Mindom, Zé Taco.
Quem é gente boa? Não é fácil defini-la, mas a encontramos a todo o
momento à nossa volta. É gente honesta, direita e trabalhadora, gente
que leva bem sua família, que está sempre disposta a ajudar os outros,
é acolhedora, possui um olhar risonho e é como se tivesse a bondade
escrita na testa. Gente boa é a gente humilde da canção inigualável de
Chico Buarque, aqueles que vão em frente sozinhos sem ter ninguém
com quem contar.
O Cedro tem um jeito diferente no cultivo do gosto da convivência.
Como as tentações do lazer, não eram perdulárias, havia no cedrense o
gosto do encontro, o contacto pessoa a pessoa. A arte de comungar
afetos, trocar histórias e problemas. A cidade tinha esse interlúdio de
explorar ao máximo o prazer de conviver, de estar junto.
Para Leonardo Boff, o valor de um povo se mede pela quantidade de
gente boa que é capaz de produzir. Norberto Bobbio nos deixou esta
sábia lição: O valor de uma sociedade não se mede pela ordenação
jurídica, mas pelas virtudes que os cidadãos vivem. A gente boa vive de
virtudes, por isso, ela não nos deixa desesperar e nos dá boas razões
para continuar confiando .
Precisamos urgentemente resgatar estes valores na nossa comunidade,
para que possamos construir uma sociedade mais humana e feliz.
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Foto 8. Praça Miguel Seixas
Foto 9. Avenida Manoel Dantas
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Trabalhadores da carne
A carne-de-sol foi a base da economia durante um longo período da
história da cidade do Cedro. Serviu também de esteio para a fixação de
habitantes, na medida em que permitiu uma atividade econômica para
os estancieiros que aqui se fixaram.
Não sei precisar como surgiu a carne-de-sol no nosso município, porém
desde a sua criação já se produzia de maneira artesanal e em pequena
escala e, posteriormente, transportada por comboieiros e canoas de
tolda, passou a ser comercializada por marchantes em toda a região do
Baixo São Francisco, ganhando fama regional.
A partir desse momento, a produção de carne tornou-se o centro da
vida econômica da cidade, permitindo que famílias que antes viviam em
extrema pobreza, passassem a ganhar dinheiro, promovendo uma
geração de emprego e renda.
Todo o trabalho era desenvolvido, principalmente, no matadouro
municipal, também conhecido como curral do açougue. As instalações
eram simples, constando de um curral feito de madeira para prender o
gado e realizar o abate, um galpão semicoberto e piso de alvenaria para
retirada do couro, vísceras e despencar o animal. Depois de
esquartejado, as partes do boi seguiam para as salgadeiras, casas
simples de taipa, e aí eram retiradas as carnes, separando-as dos ossos.
A salmoura era depositada nos aloques, que guardavam todo o segredo
do sabor e cheiro da carne produzida. Esta função era feita pelos
magarefes , homens de origem simples, como Adai, Antônio de
Minervina, Brás, Caldinha, Clóvis, Duas, Durval, Geraldo, Majenço,
Manuel Genuário, Tonho Delera, Tonho Joninha, Zé de Tatai, Zé Neto e
tantos outros, que aprenderam o ofício de produzir a melhor carne-desol que o mundo já conheceu.
Quando criança, junto com o meu irmão mais velho, Antônio,
ajudávamos o nosso pai e os nossos tios nas lidas semanais da
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matança, como era conhecida a atividade de preparação da carne.
Lavávamos os panos sujos de sangue na Lagoa Salomé, quebrávamos o
sal bruto que chegava em saco plástico e púnhamos para secar na
calçada do curral.
A carne-de-sol, que sobrava da comercialização em feiras livres,
passava por um processo de limpeza e era posta para secar nos
secadores ao ar livre, para se transformar em carne seca.
Aquela carne vermelhinha, que desfia fácil e que, em geral, é a primeira
que a gente ataca na feijoada, é facilmente confundida entre carneseca, charque e carne-de-sol. Apesar de na aparência serem muito
semelhantes, no conceito elas têm diferença, sim. Vamos colocar de vez
um ponto final nesta confusão.
"Carne-seca: conhecida também como charque, carne-do-ceará ou
jabá, tem uma salga mais forte que a carne-de-sol. É seca também ao
sol e ao vento. Contém apenas 10% de água. Colocada em água para
dessalgar, perde grande parte de suas substâncias nutritivas. É muito
utilizada, principalmente no Nordeste do Brasil. No Sudeste, entra no
preparo da feijoada .
"Carne-de-sol: alimento muito popular no Nordeste do Brasil, é uma
carne salgada e seca ao sol e ao vento que mantém a cor avermelhada .
Tem salgação mais leve que a da carne-seca. Deve ser consumida até
uma semana depois de curada. Antes de ser utilizada, deixa-se de
molho por algum tempo, com a água sendo trocada várias vezes.
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Um amigo de infância
Até os meus dez anos de idade, morávamos em uma casa de taipa,
vizinha aos nossos avós paternos na praça Vereador Antônio Machado,
em Cedro de São João. Meu pai, após perder quase todo o dinheiro em
jogo de baralho, resolveu, num gesto sublime, com o dinheiro que ainda
lhe restava, adquirir uma casa de alvenaria, com vários cômodos,
inclusive banheiro e quintal. A casa era no mesmo bairro, Oiterinho.
Essa decisão agradou a todos, pois continuávamos próximos dos nossos
avós e tios.
No dia seguinte ao da mudança para a nova casa na rua São Bento, em
1970, toda ela cheirando ainda a argamassa, cal, e tinta fresca,
ofereceu-me meu pai, chegando da feira de Piaçabuçu, em Alagoas, um
amigo. Era uma muda de coqueiro gigante, que acabava de rebentar, no
desejo vegetal de ser árvore. A semente de coco guardava, ainda, as
duas primeiras folhas unidas e verdes, as quais eram como duas jóias
flexíveis que tentavam fugir do seu cofre.
- Mamãe, olhe o que me trouxe o papai! - gritei, contente, sustentando
na concha das mãos curtas e ásperas o pequeno vegetal que ainda
sonhava com o sol e com a vida.
- Planta, meu filho... Vai plantar... Planta no meio do quintal, longe da
cerca...
Precipito-me, feliz, com a minha semente viva. A dez ou quinze metros
da casa, estaco. Faço com a enxada uma pequena cova, enterro aí o
projeto de árvore, cerco-o de pedaços de tijolo e telha. Rego-o. Protejoo contra a fome dos porcos e a irreverência das galinhas. Acompanho
com afeto a multiplicação das suas folhas tenras. Vejo-as mudar de cor,
na evolução natural da clorofila. E cada uma, estirada e limpa, é como
uma língua verde e móbil, a agradecer-me o cuidado que lhe dispenso,
o carinho que lhe voto, a água gostosa que lhe dou.
O meu coqueiro sobe, desenvolve-se, prospera. Eu cresço, mas ele
cresce mais rapidamente do que eu. Passado um ano, estamos do
mesmo tamanho. Perfilamo-nos um junto do outro, para ver qual é o
Texto inspirado em Humberto de Campos.
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mais alto. É uma árvore adolescente, elegante, graciosa. Quando eu
completo doze anos, ele já sombreia com suas palhas. A cada rajada de
vento, ele se balança como um gigante jovem que embalasse nos
braços os sopros de Deus, até que, um dia, seguro da sua rijeza
hercúlea, não o deixo mais. Promovo-o a mastro do meu navio e, todas
as tardes, lhe subo ao ramo mais empinado, onde, com o braço
esquerdo cingindo o caule forte, de pé, solto, alto e sonoro, o canto da
liberdade.
Mão direita aberta acima dos olhos, como quem devassa o horizonte
equóreo, mas devassando, na verdade, apenas os quintais vizinhos, os
telhados das casas e a torre da Igreja Matriz, eu próprio respondo, com
minha voz gritada, que a ventania arrasta para longe, rasgando-a, como
uma camisa de som, nas suas palmas e nas estacas das cercas velhas,
enfeitadas de melão, que avistei terras de Espanha e areias de Portugal,
recordando-me da leitura que fizera meu pai na noite anterior de um
conto de Humberto de Campos.
O vento forte, vindo das bandas da várzea, dá-me a impressão da brisa
de cheia do rio São Francisco. O meu camisão branco, de criança do
interior, paneja, estalando, como uma bandeira solta. O coqueiro novo,
oscilando comigo, dá-me a sensação de um mastro erguido rolando
diante de mim, na curva do horizonte, onde o céu e o mar se beijam e
misturam, as terras claras de Espanha, e areias de Portugal.
Pouco a pouco, a noite vem descendo. Um véu de cinza envolve
docemente os coqueiros dos quintais próximos. Os bezerros de seu
Jesuíno berram com mais tristeza. As vacas, apartadas deles,
respondem com mais saudade. Os jumentos dos transportadores de
água zurram as cinco vogais e o estribilho "ípsilon", marcando
sonoramente às seis horas. E eu, gajeiro de uma nau ancorada na terra,
desço tristemente do mastro do meu coqueiro, sonhando com o rio alto,
invejando a vida tranqüila dos pescadores, que não tinham, pelo menos,
a obrigação de estudar, a lição do dia seguinte.
Aos quinze anos da minha idade, e cinco da sua, separamo-nos, o meu
coqueiro e eu. Embarco para o Colégio Agrícola Benjamin Constant ,
em São Cristóvão, e ele fica. Na hora, porém, de deixar a casa, vou
levar-lhe o meu adeus. Abraçando-me ao seu tronco, aperto-o de
encontro ao meu peito. No meio dos ramos mais altos abotoam os
primeiros cachos de flores miúdas e esbranquiçadas.
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- Adeus, meu coqueiro! Até à volta!
- Ele não diz nada, e eu me vou embora.
Da esquina da rua, olho ainda, por cima da cerca, a sua folha mais alta,
pequenino lenço verde agitado em despedida. E estou no Colégio
Agrícola, cursando o 2º grau, homem-menino, estudando, lutando pela
vida, enrijando o corpo no trabalho bruto e fortalecendo a alma no
sofrimento, quando recebo uma merenda acompanhando uma carta de
minha mãe: "Receberás com esta uma pequena lata com doce de coco.
São os primeiros frutos do teu coqueiro. São deliciosos, e ele te manda
lembranças... .
Recebendo a carta de minha mãe, choro, sozinho. Choro, pela
delicadeza da sua idéia. E choro, sobretudo, com inveja do meu
coqueiro. Por que não tivera eu, também, raízes como ele, para não me
afastar nunca, jamais, da terra em que eu, ignorando que o era, havia
sido feliz?
Volto, porém. O meu coqueiro estende, agora, os braços, na ânsia cristã
de dar sombra a tudo. O orvalho corre-lhe pelo tronco, mas ele se
embala, contente, à música dos mesmos ventos amigos. Tem flores
para os insetos faiscantes É um coqueiro moço e robusto. Está em toda
a força e em toda a glória ingênua da sua existência vegetal.
Um ano mais, e parto novamente. Outra despedida; outro adeus mais
surdo, porém mais feliz. Agora vou para uma cidade distante, cursar
Engenharia Agronômica, em Recife.
-Adeus, meu coqueiro!
E eu, quase morto de saudades, regresso de férias. Volto a ver minha
casa e a rever o meu amigo, que agora hospeda nos seus ramos um
alegre e cantador vim-vim.
- Meu coqueiro, aqui estou!
Recordo-me das despedidas, quando viajei para fazer curso nos Estados
Unidos e depois, no Japão. Com os seus ramos paralisados, tensos,
pareciam absorver as preocupações da minha avó, que não conseguia
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imaginar e compreender como tratariam o seu neto em terras tão
longínquas e estranhas.
Eu estou homem e ele mais velho. Ele está imenso e os seus ramos
sobrepondo-se à mangueira, à graviola, à carambola, à acerola,
ultrapassam a cerca. Sempre que retorno à minha casa, faço questão de
abraçá-lo e de saborear a deliciosa água dos seus frutos, que me ajuda
a saciar a sede e alimentar a minha alma de esperança.
Neste momento tenho uma viagem programada para a Espanha, onde
irei defender a minha tese de doutorado. Mais uma vez, irei ao encontro
do meu velho amigo para dizer-lhe:
- Adeus, meu amigo! Até o próximo reencontro
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Véspera de São João
O Cedro é circundada de várzeas e lagoas que formam um pantanal. A
água é quase irmã da terra, beijando a flor das ruas. Adotamos São
João Batista como padroeiro. Então, durante todo mês junino, é
comemorado em forma de noiteiros o dia em homenagem às profissões
que dão base de sustentação à vida econômico-social e política da
cidade, coroadas com uma missa em ação de graças, doações feitas
para ajudar as obras da igreja e fogos, muitos fogos. Há a noite dos
marchantes, dos funcionários públicos, dos casados, do sindicato, dos
pescadores, dentre outras. Sempre me despertava o interesse, quando,
em homilia, o Padre Manuel Guimarães, assim falava: São João, tinhas
um vestido de peles de camelo, e uma cinta de couro em volta de teus
rins; e a tua comida eram gafanhotos e mel silvestre. E a filha de
Herodias bailou, e era linda. E quando disse o que queria neste mundo,
o rei entristeceu. Eras a voz que clamara no deserto, e clamavas na
cadeia. E tua cabeça veio num prato para as mãos da bailarina .
João, esta geração de homens continua a mesma da qual disse o
Senhor: São semelhantes aos meninos que estão assentados no
terreiro, e que falam uns para os outros e dizem: nós temos cantado ao
som da gaita, para vos divertir, e vós não bailastes: temos cantado em
ar de lamentações, e vós não chorastes .
João, ontem foi a noite e véspera de teu dia. O povo dançava ao som de
trio elétrico. Não dancei nem chorei. Estive no Oiterinhos, rua dos
Camarões, rua da Igreja, Alto da Boa Vista, Cruizeiro Redondo, Alto do
Cemitério, Baixa da Égua, Barroca, Carvãozinho, Lagoa Nova,
Bananeiras e Poço dos Bois. E estive, por que não dizer, na zona
promíscua. E, em toda parte o povo te festejava, mas já não era com a
espontaneidade, a ingenuidade, a solidariedade e a alegria de antes.
Lembro-me, quando em criança, do povo em mutirão a enfeitar as ruas
com as bandeirinhas presas ao barbante, coladas com goma de farinha
de mandioca e estendidas, entre os postes, formando ziguezague aéreo
Texto inspirado em Rubem Braga.
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pelas ruas. As alvoradas de fogos promovidas pelo velho Doro,
despertando a população para mais um dia, com direito à exibição,
durante a noite de busca-pés e espadinhas, cujo brilho dos raios parecia
querer tocar nas estrelas. Nunca vi até hoje fogos com brilho tão belo e
intenso. Das noites de cantoria e dança, no bairro Oiterinhos, num
autêntico forró pé-de-serra, na casa de Mané Grande, que derrubava a
parede interna de uma humilde casa de apenas dois cômodos, para
transformá-la, junto com os seus filhos em um salão de festas. Sem
falar de Cristo com a sua sanfona a animar o povo da Barroca e sua
vizinhança. Ou das enormes rodas de cantigas juninas, que se
formavam nas ruas, puxadas por Asclé, que começava, entoando o
seguinte canto de entrada:
Minha gente entra na roda
Oi siu, siu, siu...
Que é pra vadiar
Oi siu, siu, siu...
E a roda ia crescendo, e o coro das vozes alegres ecoando cada vez
mais longe, e a cantoria prosseguia:
Pula a fogueira, Iaiá!
Pula a fogueira, Ioiô!
Cuidado para não se queimar
Olha que a fogueira
Já queimou o meu amor
Eu pedi numa oração
Ao querido São João
Que me desse um matrimônio
São João disse que não!
São João disse que não!
Isto é lá com Santo Antônio!
Eu pedi numa oração
Ao querido São João
Que me desse um matrimônio
Matrimônio! Matrimônio!
Isto é lá com Santo Antônio!
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Capelinha de melão
É de São João
É de cravo, é de rosa
É de manjericão
São João está dormindo
Não acorda, não
Acordai, acordai!
Acordai, João!
Ranchos alegres de homens e mulheres, de mãos dadas, brincavam ao
redor de uma fogueira, saltavam-na, tornavam-se compadres. Entravam
pelas casas cantando e, alegres, os grupos iam se formando e
terminavam na grande roda. Ali tudo era alegria, e os cantos das
plantações de arroz se sucediam. Ali todos cantavam e a roda punha no
corpo da gente uma vontade insopitável de dançar, de bailar, pois o
ritmo era convidativo. Ela congraçava os membros adultos da
comunidade, caíam as barreiras sociais, pobres e ricos, moradores das
casas de tijolos e das choupanas de palha, de mãos dadas, alegres,
cantavam, esquecendo-se das intrigas políticas, das desditas, das
mágoas, das rixas familiares, do bate-boca de comadres, dos desníveis
sociais, enquanto nas calçadas, aquecidos pela fogueira, entre uma
espiga de milho, carne de sol assada, pamonha e canjica, as pessoas
faziam estrofe de quatro versos que manifestavam a simplicidade e
beleza de sua poesia:
Esta noite eu tive um sonho
Mas que sonho atrevido!
Sonhei que era o babado
da barra do teu vestido .
Chegou a hora da fogueira
É noite de São João.
O céu fica todo iluminado, fica o céu todo estrelado
Pintadinho de balão.
Pensando na cabocla a noite inteira
Também fiz uma fogueira dentro do meu coração .
Às vezes chovia, às vezes o céu ficava parado e fechado, sem luz e sem
chuva. Mas na terra humilde, a noite era sempre a mesma. As casinhas,
à margem das ruas esburacadas, estavam alumiadas por fogueiras. Nas
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janelas e nas portas se penduravam balões. Esses balões estrelados,
cativos de parede, forneciam nas ruas uma imagem colorida e se
misturavam com as ruas enfeitadas de bandeirolas. Até as estrelas do
céu desciam para perto da lama, para as casinhas baixas, que
explodiam de alegria. E teu retrato, segurando o menino Jesus, estava
colado nelas. Pelas ruas, as fogueiras ardiam. Firmadas por estacas, as
fogueiras enfeitadas, de espaço a espaço, ensangüentavam a noite,
como flores de fogo.
E os fogos pipocavam. Eram foguetes, bombas, busca-pés. Os fogos
pipocavam pela noite adentro. Uns tinham estalos secos, intermitentes,
esparsos, outros rebentavam roucos; outros chiavam; outros
crepitavam; outros eram urros de pólvora. Eu não estava no meio da
noite, eu estava no centro de muitas noites.
João, eu não tenho mais dezenove anos. Alguém canta, moças agora
cantam e dançam em torno dos palanques. Entre canjicas, milho verde,
fogueiras, abraços, olhares, amores, outras noites me cercam. Eu tinha
quinze anos e naquela noite ela subitamente me amou. Amou-me talvez
apenas uma hora, sentiu uma ternura e me deu aquele lenço de seus
cabelos. Era um lenço grande, colorido, e aquela chita estava sempre
em volta de sua garganta ou amarrada em seus cabelos. Eu dormi na
praça e o lenço tinha um cheiro terno e quente de cabelos castanhos, e
aquele cheiro me entontecia. João, naquela noite também havia cantos,
e o vento soprado do rio São Francisco no ar escuro tinha o mesmo
cheiro.
João, são muitas noites antigas que me prendem no meio desta noite.
Pobres as noites sob as lâmpadas deste trio elétrico, tristes noites sem
ternura noturna.
João, o povo, na noite imensa, festeja a ti. Há fogueiras e amores e
bebedeiras, mas eu não irei a festa nenhuma. Amanhã, João, esse povo
continuará na vida e outra vez a mesquinharia dos líderes políticos
continuará deturpando a beleza da vida; as crianças continuarão a
crescer, magras e ignorantes; o suor dos homens será explorado. João,
ninguém dividiu as túnicas, nem os pães, como tu mandaste.
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Foto 10. Igreja Matriz São João Batista
Foto 11. Altar da Igreja Matriz
Foto 12. Imagem de São João Batista, padroeiro do Cedro
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