Morte presumida sem decretação de ausência e o retorno do cônjuge: efeitos jurídicos matrimoniais Amanda Cristina Freitas Pereira1 Sumário: 1. Introdução - 2. Fim da personalidade jurídica: A morte - 3. A morte presumida sem decretação de ausência e os efeitos jurídicos matrimoniais com o retorno do cônjuge 4. Conclusão - Referências 1. Introdução O Código Civil Brasileiro no artigo 7°, elenca de forma exaustiva os casos em que pode haver decretação de morte presumida sem declaração de ausência. Logo, somente pode ser decretada a morte presumida de alguém, se for extremamente provável que estava em perigo de vida, ou se tiver desaparecido em campanha ou feito prisioneiro e não for encontrado até dois anos após o término da guerra. Entretanto, o Código Civil de 2002 deixou de prever os efeitos jurídicos matrimoniais decorrentes do retorno do cônjuge com reconhecimento da morte presumida sem declaração de ausência, dedicando o capítulo III do título I ao instituto da ausência, ou seja, houve previsão dos efeitos da morte presumida com decretação de ausência. Prevê o Código Civil: Art 22: Desaparecendo uma pessoa do seu domicílio sem dela haver notícia, se não houver deixado representante ou procurador a quem caiba administrar-lhe os bens, o juiz, a requerimento de qualquer interessado ou do Ministério Público, declarará a ausência, e nomear-lhe-á curador. Art 23: Também se declarará a ausência, e se nomeará curador, quando o ausente deixar mandatário que não queira ou não possa exercer ou continuar o mandato, ou se os seus poderes forem insuficientes. 1 Advogada. Pós-graduada em Direito Público e Privado pela Universidade Estácio de Sá. Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 88, p.01-13, dez./2007 a jan./2008 www.presidencia.gov.br/revistajuridica 1 No que tange aos efeitos matrimoniais, o novo Código prevê, singelamente, que o casamento do ausente é dissolvido pela presunção de morte do mesmo, senão vejamos: Art. 1571, § 1°: O casamento válido só se dissolve pela morte de um dos cônjuges ou pelo divórcio, aplicando-se a presunção estabelecida neste Código quanto ao ausente. Verifica-se que o legislador apenas mencionou a hipótese do cônjuge supérstite ver dissolvido seu primeiro casamento, com a declaração de ausência do cônjuge que partiu, no caso, hipótese diferente da abordada no presente trabalho, mas necessário trazer a baila haja vista ser similar ao instituto ora analisado. Contudo, nada se cogitou a respeito da possibilidade da pessoa que teve a presunção de morte declarada, retornar. O novo casamento então contraído seria nulo ou anulável? Várias são as dúvidas que podem surgir, mas trataremos neste artigo científico, apenas dos efeitos matrimoniais do retorno do cônjuge que teve a morte presumida declarada, referente aos casos elencados no artigo 7º do Novo Código Civil. 2. Fim da personalidade jurídica: A morte Como é cediço, a morte completa o ciclo vital da pessoa humana. É o fim da existência. A personalidade é um atributo do ser humano e o acompanha por toda a sua vida. Como a existência da pessoa natural termina com a morte, somente com esta cessa a sua personalidade. Cessa a personalidade jurídica da pessoa natural com a morte, que é o desaparecimento das funções vitais e cerebrais do organismo, em que pese haver dificuldade científica para determinar o exato momento em que ocorre. Como nos ensina Rita Maria Paulina dos Santos2: Inicialmente morre a célula, depois o tecido e a seguir o órgão; trata-se de um fenômeno em cascata. Estabelecido o processo, ele pode atingir os órgãos dos quais depende a vida do indivíduo, os chamados órgãos vitais. Dessa forma, desencadeia-se a parada da respiração, do coração, da circulação e do cérebro. Com o evento morte, não ocorre apenas a cessação das atividades dos órgãos internos e externos do corpo humano, mas termina também a existência da personalidade jurídica, não mais podendo o defunto considerar-se sujeito de direitos e obrigações. Protege a lei o 2 Dos Transplantes de Órgãos à Clonagem. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 34. Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 88, p.01-13, dez./2007 a jan./2008 www.presidencia.gov.br/revistajuridica 2 corpo ou seus restos mortais, a memória do falecido, a sua imagem, os bens deixados, mas não remanesce a sua personalidade. É o que se extrai do parágrafo único do artigo 12 do Código Civil, assegurando o direito de indenização em favor do cônjuge sobrevivente e de certos parentes, se verificada a lesão ao nome do morto. As obrigações, porém, criam-se até o momento do óbito. As que posteriormente vierem criadas por causa da pessoa do morto são assumidas pela herança, ou por aquele que as firmou. Com a morte não mais persistem valores patrimoniais, culturais, morais de propriedade do morto. Tudo transmite-se aos herdeiros, que ocupam a posição de sujeitos ativos, e que podem exercitar ações ligadas à pessoa do morto desde que neles repercutam moral ou economicamente. Como acima narrado, o término da pessoa natural e conseqüente fim de sua personalidade jurídica ocorre com a morte, tratando primeiramente o Código Civil Brasileiro da morte natural, verificada à luz do cadáver humano. Tal morte é constatada, segundo a medicina, e nos termos da Lei n ° 9.434/973, com a morte encefálica constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante. Na Lei n° 9.434/97, há preocupação com a necessidade de salvar vidas e recuperar sentidos em falta, pois que se formam longas filas de candidatos nos hospitais especializados, chegou a tornar obrigatória a retirada, desde que não existisse proibição expressa da pessoa quanto ao futuro de seu corpo. A matéria, todavia, não poderia ser decidida de maneira tão simplista. Há que se respeitar a personalidade das pessoas. Cada um tem direito a dispor sobre o destino de seu corpo. Neste sentido, a Lei acima mencionada, foi alterada pela Lei n° 10.211/2001, que determinou caber aos familiares tomar a decisão adequada. Saliente-se não se admitir no sistema pátrio e na maioria das legislações modernas, a morte civil (ficta mors) dos condenados a penas perpétuas ou de religiosos que realizavam votos solenes de pobreza, obediência e castidade. Tratava-se de verdadeiro banimento do mundo civil, repugnando o Estado Democrático de Direito. A extinção da personalidade jurídica é o principal efeito da morte, sem embargo de outros. Como nos ensina a Professora Maria Helena Diniz4, a morte física ao cessar a personalidade jurídica da pessoa natural, faz com que esta deixe de ser sujeito de direitos e obrigações, acarretando: a. dissolução do vínculo conjugal e do regime matrimonial , 3 Dispõe sobre a remoção dos órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplantes e tratamento e dá outras providências. 4 DINIZ, Maria Helena. Código civil anotado. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 88, p.01-13, dez./2007 a jan./2008 www.presidencia.gov.br/revistajuridica 3 b. extinção do poder familiar, dos contratos personalíssimos, como prestação de serviço e mandato; c. cessação da obrigação de alimentos com o falecimento do credor, do pacto de preempção; da obrigação oriunda de ingratidão de donatário; d. extinção de usufruto, da doação em forma de subvenção periódica; do encargo da testamentária. Sobre o tema dispõe o artigo 6º do Código Civil Brasileiro: A existência da pessoa natural termina com a morte; presume-se esta, quanto aos ausentes, nos casos em que a lei autoriza a abertura de sucessão definitiva. O professor Arnaldo Rizzardo5, por sua vez, nos ensina que: Extinguindo-se a personalidade natural, dissolve-se a sociedade conjugal (art. 1.571, inc. I, do Código Civil e art. 2º, inc. I, da Lei 6.515/1977). De acordo, ainda, com o Código Civil, entre outros efeitos, extingue-se o poder familiar (art. 1.635, inc. I); cessamos contratos personalíssimos ou intuitu personae, sendo exemplo o de locação de serviços (art. 607), de mandato (art. 682, inc. II), de sociedade em relação a um sócio (art. 1.028), de gestão de negócio (art. 865), de fiança no pertinente à responsabilidade do fiador (art. 836); terminam as obrigações de prestar alimentos uma vez esgotado o patrimônio do alimentante falecido (art. 1.700), de fazer quando exigido o cumprimento pessoal (art.248); não mais prevalece o pacto de preempção (art. 520); extingue-se o direito para propor a ação assegurada ao doador por ingratidão do donatário (art. 560), o usufruto (art. 1.410, inc. I), a doação na modalidade de subvenção periódica (art. 545), o encargo testamentário (art. 1.985), os filhos menores são colocados sob tutela com o falecimento dos pais (art. 1728, inc. I); caduca o fideicomisso se o fideicomissário morrer antes do fiduciário, ou antes de realizar-se a condição resolutória (art. 1.958); morrendo o locador ou o locatário, transfere-se aos seus herdeiros a locação por tempo determinado (art. 577); nos casos de morte, ausência ou interdição do tutor, as contas serão prestadas por seus herdeiros ou representantes ( art. 1.759); cabe a indenização no caso de morte de paciente causada no exercício de atividade profissional, em que se apura a existência de negligência, imprudência ou imperícia (art. 951). A lei n ° 9.140/95 reconhece como mortas pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades políticas, no período de 02 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979. 5 RIZZARDO, Arnaldo. Direito civil: parte geral. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 88, p.01-13, dez./2007 a jan./2008 www.presidencia.gov.br/revistajuridica 4 No âmbito da Medicina, entende-se que a cessação da vida se dá com a morte cerebral ou encefálica. Alguns cientistas chegam a admitir que, ocorrendo esta, será lícita a remoção de órgãos para fins de transplante, ou outras finalidades científicas, com base na Resolução CFM n ° 1.480/97. A lei n º 9.434/97 que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento e dá outras providências, prevê: Artigo 3º - A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina. (grifo nosso). O Código Civil Brasileiro exige prova da morte no artigo 9°, a qual se verifica com a apresentação da certidão de óbito. Art. 9º - Serão registrados em registro público: I - os nascimentos, casamentos e óbitos; (...) A certidão de óbito é documento público que evidencia a morte de alguém a partir de declaração feita por profissional da Medicina, atestando, à luz do cadáver, o momento, a causa e o lugar do óbito, segundo dispõe a Lei 6.015/77: Art. 80. O assento de óbito deverá conter: a. a hora, se possível, dia, mês e ano do falecimento; b. o lugar do falecimento, com indicação precisa; c. o prenome, nome, sexo, idade, cor, estado civil, profissão, naturalidade, domicílio e residência do morto; d. se era casado, o nome do cônjuge sobrevivente, mesmo quando desquitado, se viúvo, o do cônjuge pré-defunto; e o cartório de casamento em ambos os casos (...). A prova do falecimento cabe a quem alega. Assim, quem requer a abertura de um inventário causa mortis, deve fazer a prova da morte alegada. Pode ocorrer o sepultamento sem certidão, nas hipóteses tratadas pela Lei de Registros Públicos, nos artigos 78,83 e 84. Cumpre asseverar a possibilidade de retificação do assento de óbito, devendo-se para tanto, seguir o rito previsto no artigo 109 e seguintes da Lei de Registros Públicos. Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 88, p.01-13, dez./2007 a jan./2008 www.presidencia.gov.br/revistajuridica 5 O prof. Cristiano Chaves de Farias6, enumera algumas hipóteses de morte real contempladas em dispositivos esparsos da nossa ordem jurídica. Vejamos: a) é caso de morte real, produzindo os regulares efeitos jurídicos previstos em lei, o óbito ocorrido nas circunstâncias previstas no art. 88 da Lei de Registros Públicos. Dessa maneira, as pessoas de quem não mais se tem notícias, desaparecidas em naufrágios, incêndios, inundações, maremotos, terremotos, enfim, em grandes catástrofes, podem ser reputadas mortas civilmente (morte real), por decisão judicial prolatada em procedimento especial iniciado pelo interessado (que pode ser, exemplificativamente, o cônjuge ou companheiro sobrevivente ou mesmo um parente próximo) e que se submeterá ao rito procedimental dos arts. 861 a 866 do CPC. Vale frisar que dois são os requisitos fundamentais para que se tenha a declaração de morte nessas circunstâncias: prova de que a parte estava no local em que ocorreu a catástrofe e de que, posteriormente, não mais há notícias dela. b) também a Lei n º 9.140/95 reconhece hipóteses de morte real, ao reputar mortas, para todos os fins de direito, as pessoas desaparecidas em razão de participação, ou simplesmente acusadas de participação, em atividades políticas, no período compreendido entre 2.9.61 e 15.8.79 (época da ditadura militar brasileira), inclusive fazendo jus os seus familiares a uma indenização correspondente. c)o Código Civil, por seu turno, no art. 7º também contempla hipóteses de morte real, sob a infeliz e atécnica expressão “morte presumida, sem decretação de ausência”. Trata-se de caso típico de morte real, ocorrida em situações excepcionais, não englobadas no art. 88 da Lei de Registros Públicos (que, como lei específica, continua em vigor), podendo ser justificado judicialmente o óbito quando alguém, desaparecido em campanha militar ou feito prisioneiro, não for encontrado até dois anos após o fim da guerra. Logo, a morte pode ser real como acima exposto, ou presumida, com ou sem decretação de ausência. A morte real e a morte presumida com decretação de ausência estão previstas respectivamente no artigo 6º, primeira e segunda parte do Código Civil Brasileiro. A morte presumida, sem decretação de ausência, objeto do presente trabalho, está prevista no artigo 7º do Diploma ora em comento, que assim dispõe: Artigo 7º - Pode ser declarada a morte presumida, sem decretação de ausência: 6 FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito civil: teoria geral. 3 ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2005. Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 88, p.01-13, dez./2007 a jan./2008 www.presidencia.gov.br/revistajuridica 6 I. se for extremamente provável a morte de quem estava em perigo de vida; II. se alguém, desaparecido em campanha ou feito prisioneiro, não for encontrado até dois anos após o término da guerra. Por sua vez, o parágrafo único do citado artigo exige que: A declaração de morte presumida, nesses casos, somente poderá ser requerida depois de esgotadas as buscas e averiguações, devendo a sentença fixar a data provável do falecimento. Não há artigo correspondente no Código Civil anterior. O sistema estabelecido pelo Código Civil de 1916, não se preocupava com situações de declaração de morte presumida, em que pese poder surgir vários problemas com o reaparecimento do presumido morto, acarretando situações que nem mesmo a melhor ficção pode imaginar. Com o atual sistema, existe a possibilidade de declaração de morte presumida, sem decretação de ausência. O reconhecimento de morte presumida reclama que antes se proceda e se esgote todas as averiguações. Apenas após tais procedimentos está o interessado apto a pedir a declaração em juízo. Cabe a quem pedir a declaração provar que esgotou as buscas e averiguações. Na sentença virá fixada a data provável do falecimento. O prof. Marco Aurélio S. Viana 7, sustenta não haver incompatibilidade entre o que está previsto na lei n.° 6.015/77, artigo 88, a qual admite a justificação para o assento de óbito e indica quando isso é possível, e o Novo Código Civil, artigo 7º. Para o mestre, é por meio da justificação que se obtém a declaração de morte presumida. Dissertando sobre o tema o ilustre Professor Gustavo Tepedino 8 nos ensina que: A declaração de morte presumida que prescinde da decretação de ausência, nos moldes do artigo em análise, prevista em alguns sistemas jurídicos, já nasce polêmica, apesar da saudável intenção de conferir segurança jurídica a situações em que a probabilidade de sobrevivência é quase desprezível, oferecendo uma maior celeridade na abertura da sucessão definitiva. Admite-se declaração judicial de morte presumida sem decretação de ausência em casos excepcionais, para viabilizar o registro do óbito, resolver problemas jurídicos gerados com o desaparecimento e regular a sucessão causa mortis, apenas depois de esgotadas todas as buscas e averiguações, devendo a sentença fixar a data provável do óbito. O óbito deverá ser justificado judicialmente, diante da presunção legal da ocorrência do evento morte. E a data provável do óbito, fixada em sentença, demarcará o dies a quo em 7 8 VIANA, Marco Aurélio da Silva. Direito civil: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2004. TEPEDINO, Gustavo et al. Código civil interpretado conforme a Constituição da República: parte geral e obrigações: arts 1º ao 420. Rio de Janeiro; São Paulo; Recife: Renovar, 2004. v. i. Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 88, p.01-13, dez./2007 a jan./2008 www.presidencia.gov.br/revistajuridica 7 que a declaração judicial da morte presumida irradiará efeitos jurídicos e determinará a lei que irá reger sua sucessão (Código Civil, artigo 2041). Tal sentença, na lição de Mário Luiz Delgado9, apesar de produzir efeitos erga omnes, não faz coisa julgada material, podendo ser revista a qualquer tempo, desde que surjam novas provas, se tenha notícia da localização do desaparecido ou se dê o seu retorno. O declarado morto, com o seu regresso, volta ao status quo ante e a sentença declaratória judicial do seu falecimento deixará de ter existência ex tunc. A título de enriquecimento, devemos mencionar o procedimento a ser adotado. Vejamos: A declaração de morte presumida busca-se através de declaração judicial. Ingressa a pessoa - parente em linha reta ou colateral, em grau próximo, ou um terceiro, sempre justificando o interesse - com a ação, na qual apresenta os fatos que justificam a presunção de morte. Requer a sua declaração, com a determinação do respectivo registro. Procede-se a citação da própria pessoa tida como morta, e do cônjuge ou de um parente mais próximo. Embora haja omissão de regras processuais a respeito, têmse como exigências mínimas estabelecer o contraditório, mesmo que simples, de modo a formar-se um juízo de convencimento, devendo participar obrigatoriamente o Ministério Público, conforme nos ensina prof. Arnaldo Rizzardo 10 . 3. A morte presumida sem decretação de ausência e os efeitos jurídicos matrimoniais com o retorno do cônjuge Dissertando sobre o tema supramencionado, o Prof. Caio Mário11 nos ensina que o Novo Código Civil revelou-se incompleto, deixando de esclarecer os efeitos da declaração de morte. Neste sentido fora mais preciso o Projeto de Código Civil de 1965 (comissão revisora composta por Orosimbo Nonato, Orlando Gomes, Caio Mário) que levantava o impedimento matrimonial, mas previa a nulidade do segundo casamento se reaparecesse o morto. Não obstante inexistir norma regulamentadora, alguns doutrinadores vislumbram teses para hipótese de morte presumida com decretação de ausência, que são análogos aos de morte presumida sem decretação de ausência, objeto da presente pesquisa. Logo, devemos considerar tais teses na tentativa de buscar soluções, deixadas de lado pelo legislador pátrio. Conforme informa o artigo 1.571, do Código Civil Brasileiro: Art. 1.571. A sociedade conjugal termina: 9 DELGADO, Mário Luiz. Problemas de direito intertemporal no novo código civil. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 138. 10 RIZZARDO, Arnaldo. Direito civil: parte geral. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. 11 Instituições de Direito Civil: introdução ao direito civil. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. v. i. Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 88, p.01-13, dez./2007 a jan./2008 www.presidencia.gov.br/revistajuridica 8 § 1º O casamento válido só se dissolve pela morte de um dos cônjuges ou pelo divórcio, aplicando-se a presunção estabelecida neste Código quanto aos ausentes. Nesse diapasão, cumpre trazer a baila o ensinamento da profª Maria Beatriz P. F. Câmara 12, comentando sobre artigo supramencionado afirma que: Com relação à parte final do parágrafo primeiro, deve esta ser suprimida, uma vez que totalmente inócua. No texto primitivo do anteprojeto do novo Código Civil figurava um inciso V, que introduzia a admissibilidade da declaração de ausência como uma das causas de dissolução da sociedade conjugal. Tal inciso acabou sendo suprimido seguindo sugestão do Desembargador Yussef Said Cahali, do Tribunal de Justiça de São Paulo, que ponderou e alertou sobre sua inutilidade prática, uma vez que obviamente haveria preferência pela possibilidade de adotar-se o simples decurso do prazo parta obtenção do divórcio direto. Face à ausência de norma regulamentadora no ordenamento jurídico pátrio, a solução mais adequada seria que o cônjuge supérstite ingressasse em juízo com a ação de divórcio direto, citando o réu por edital, após o decurso do prazo de dois anos de separação de fato, nos moldes do artigo 226, § 6°, da Constituição Cidadã de 1988 c/c artigo 1580 do Código Civil Brasileiro. Entretanto, devemos ter em mente que, no caso do cônjuge não proceder da forma acima mencionada, ou seja, caso não ingresse com a ação de divórcio direto, devemos, com o fito de não causar insegurança jurídica, aplicar o que dispõe brilhantemente o Código Alemão, ou seja, o novo casamento dissolve o antigo. Ora, outra não poderia ser a solução apresentada. Não podemos imaginar que o cônjuge que permaneceu entre os seus, e que queira reestruturar sua vida dignamente, também no aspecto sentimental, constituindo nova família, contraindo novas núpcias, tenha seu segundo casamento declarado nulo, pelo fato de que com o retorno do cônjuge, a morte até então presumida desaparece, bem como os efeitos daí decorrentes, deixando o cônjuge abandonado de ser viúvo e devendo ser considerado nulo o segundo casamento, como nos quer convencer o mestre Silvio Rodrigues13. Cumpre ressaltar que a importância do tema surge no seio constitucional, uma vez que a família é constitucionalmente protegida: Art. 226. A família, base da sociedade tem especial proteção do Estado. 12 13 AMIM, Andréa Rodrigues et al. O novo código civil: livro IV: do direito de família. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2004. RODRIGUES, Silvio. Direito civil: direito de família. 28. ed. Ver. e atual. por Francisco José Cahali de acordo com o novo Código Civil . São Paulo: Saraiva, 2004. v. vi, p. 431. Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 88, p.01-13, dez./2007 a jan./2008 www.presidencia.gov.br/revistajuridica 9 Quando o cônjuge deixa o lar, seja para ir à guerra ou para lugar que posteriormente faça com que corra risco de vida, causa tamanha preocupação para a família, principalmente quando deixa filhos, sendo certo que tal fato desestrutura a família, que fica à mercê do retorno do cônjuge, sem saber que rumo tomar. Cremos que a intenção do legislador objetivou dar maior tranqüilidade a essa família, que teve seu ente, muitas vezes querido, desaparecido e enquadrado nas hipóteses elencadas no artigo 7° do Código Civil. Entretanto, deixou o legislador de prever o procedimento a ser adotado pelo cônjuge supérstite. Como proceder no caso de querer constituir legalmente outra união? Qual casamento seria válido no caso do cônjuge que partiu, retornar? Será que o legislador fechou os olhos para essas hipóteses, ou acredita que essa pessoa queira e possa viver no regime de União Estável para o resto de sua vida? No que tange ao entendimento esposado pela doutrina estrangeira, cumpre trazer a baila o ensinamento do Prof. Silvio de Salvo Venosa 14: Na doutrina estrangeira que adota esse sistema, o regresso do morto que encontra seu cônjuge casado com terceiro deu margem a inúmeras interpretações. A melhor solução, presente no direito argentino, é entender como válido o segundo matrimônio e desfeito o primeiro. Parece mais adequado e razoável, concluir que os novos vínculos e afetos devem ser referidos aos pretéritos; tanto mais quanto é possível que o novo matrimônio haja gerado filhos, que, de plano, ver-se-ão em dolorosa situação de ver destruído seu lar, sendo este o entendimento do jurista Guillermo Borda15. Torna-se relevante tratar no presente trabalho, principalmente sobre o efeito jurídico dos casamentos contraídos perante a sociedade e o que deveria o cônjuge “supérstite” fazer para se precaver de eventual retorno do cônjuge com morte presumida declarada, uma vez que tal fato acarreta total insegurança jurídica. Não se pode olvidar que a falta de regulamentação dos efeitos matrimoniais do retorno do cônjuge que partiu, fere a dignidade da pessoa humana, insculpida no artigo 1°, inciso III da Constituição Cidadã de 1988, do cônjuge abandonado, que fica a mercê do acaso. Ressalte-se que a dignidade da pessoa humana, é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, como ressalta Moraes16: 14 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil. Direito de família. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003. v. i. BORDA, Guillermo A. Tratado de derecho civil: parte general. 10. ed. Buenos Aires: Perrot, 1991. v. i e ii. 16 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 12 ed. São Paulo: Atlas, 2002. p.50. 15 Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 88, p.01-13, dez./2007 a jan./2008 www.presidencia.gov.br/revistajuridica 10 é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar [...]. Solução apresentada pelo mestre Silvio Rodrigues17, ao tratar do tema morte presumida, mas com declaração de ausência, é que retornando o ausente, sua morte presumida desaparece, e também os efeitos daí decorrentes. Deixa o cônjuge abandonado de ser viúvo, e deve ser considerado nulo o segundo casamento, pela verificação de impedimento matrimonial (art. 1.548, II, c/c art. 1.521, VI), embora podendo emprestar-lhe os efeitos da putatividade. 4 Conclusão Como já salientado, há escassa produção doutrinária, jurisprudencial e principalmente legislativa, sobre o tema escolhido no presente artigo científico, em que pese a necessidade do estudo aprofundado, visando sanar as diversas dúvidas que podem surgir. Logo, objetivando analisar mais a questão suscitada, cremos que estimularemos a discussão e esta ganhará a importância que merece, encontrando soluções para os questionamentos apresentados e evitando assim que tenhamos insegurança jurídica no ordenamento pátrio. Não se pode olvidar que o presente trabalho visa também tranqüilizar a sociedade, as pessoas envolvidas em casos análogos e que até agora não encontram solução legislativa para a questão apresentada, ou seja, no caso de retorno do cônjuge que teve a morte presumida declarada, regressar, qual a união que prevalecerá? O casamento anterior ou o posterior contraído? Referências AMIM, Andréa Rodrigues et al. O novo código civil: do direito de família. Coordenação Heloísa Maria Daltro Leite. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2004. BORDA, Guillermo A. Tratado de derecho civil: parte general. 10.ed. Buenos Aires: Perrot, 1991. v.1 e 2. CAHALI, Yussef Said (Org.). Constituição Federal. Código civil. Código de processo civil. 7. ed. rev., atual, e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. (RT – mini- códigos). 17 RODRIGUES, op. cit., p. 433. Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 88, p.01-13, dez./2007 a jan./2008 www.presidencia.gov.br/revistajuridica 11 DELGADO, Mário Luiz. Problemas de direito intertemporal no novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 138. DINIZ, Maria Helena. Código civil anotado. 11 ed. São Paulo: Saraiva, 2005. FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito civil: teoria geral. 3 ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005. MÁRIO, Caio. Instituições de direito civil. Introdução ao direito civil. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2002. RIZZARDO, Arnaldo. Direito civil: parte geral. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. RODRIGUES, Silvio. Direito civil. Direito de família. 28 ed. ver. e atual. por Francisco José Cahali de acordo com o novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2004. SANTOS, Rita Maria Paulina dos. Dos transplantes de órgãos à clonagem. Rio de Janeiro: Forense, 2000. TEPEDINO, Gustavo et al. Código civil interpretado conforme a Constituição da República: parte geral e obrigações: arts 1º ao 420. Rio de Janeiro; São Paulo: Renovar, 2004. VIANA, Marco Aurélio da Silva. Direito civil: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2004. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil. 3. ed. São Paulo: Jurídica Atlas, 2003. Rio de Janeiro, 12 de Dezembro de 2006. Revista Jurídica www.presidencia.gov.br/revistajuridica Artigo recebido em 30/11/2007 e aceito para publicação em 31/12/2007 A Revista Jurídica destina-se à divulgação de estudos e trabalhos jurídicos abrangendo todas as áreas do Direito, com foco na análise de políticas públicas, legislação, processo legislativo, jurisprudência e hermenêutica constitucional. Os originais são submetidos à avaliação de especialistas, profissionais com reconhecida experiência nos temas tratados. Todos os artigos devem vir acompanhados de uma autorização expressa do autor para publicação do material, enviada pelo correio eletrônico, em arquivos específicos. Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 88, p.01-13, dez./2007 a jan./2008 www.presidencia.gov.br/revistajuridica 12