Editorial
E chegamos ao número 11 de Composição, Revista de Ciências Sociais da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Já são cinco anos. O primeiro número de
nosso periódico foi publicado em dezembro de 2007 com apenas três artigos, todos de
autoria de professores da UFMS. Desde então obtivemos o ISSN, houve a inclusão no
sistema Qualis da Capes, sendo avaliado com B4. Composição nasceu do esforço dos
professores do curso de Ciências Sociais com a finalidade de possibilitar a divulgação
de ciência de qualidade para toda comunidade acadêmica. Assim, como editor, agradeço
a todos que tem colaborado conosco nesse desafio. Nessa edição publicaremos artigos
oriundos de Mato Grosso do Sul, de pesquisadores do campus de Corumbá da UFMS;
de Sergipe sobre sociedade e ambiente; Rio Grande do Sul, Goiás, Paraíba, Bahia,
Rondônia e Santa Catarina. Isso tem demonstrado a importância que essa publicação
alcançou nesses cinco anos. Boa leitura a todos.
Prof. Dr. Aparecido Francisco dos Reis – editor.
2
SUMÁRIO
A cidade e os informantes – inserção etnográfica nos pontos de venda de drogas da cidade de
Corumbá/Brasil, na fronteira com Puerto Quijarro/Bolívia.
Giovanni França Oliveira e Gustavo Villela Lima da Costa.........................................................................4
A campanha cívica de Olavo Bilac e a criação da liga da Defesa Nacional.
Cesar Alberto Ranquetat Júnior...................................................................................................................25
Considerações acerca da globalização e do capitalismo atual.
Roseilda Maria da Silva e Vilson Cesar Schenato.......................................................................................44
Ciências Políticas: Conteúdo Tranversal aos conecimentos básicos e Afins Ministrados no curso de
Graduação em Ciências Contábeis.
Solange Mendes Garcia e José Moreira da Silva Neto................................................................................71
O Ambientalismo em Sergipe após a criação da lei do terceiro setor – Uma análise das ONGs e
OSCIPs entre 1999 e 2011.
Matheus Pereira Mattos Felizola e Fernando Bastos Costa.........................................................................91
O olhar machadiano sobre o cativo: a literatura como importante fonte de conhecimento da
oitocentista sociedade escravista carioca.
Murilo Vilarinho........................................................................................................................................135
Discursos sobre o sistema de cotas para Afro-descendentes na formação da opinião e contade
política: o mito da deliberação racional.
Victoria Espiñeira e Ruy Aguiar Dias.......................................................................................................148
Poesia e revolução: Resenha de Todo Caliban de Roberto Retamar.
Adriana Ines Strappazzon..........................................................................................................................167
Feios, sujos e malvados ob medida – a utopia médica do biodeterminismo.
Lizandro Lui e Francis Moraes de Almeida...............................................................................................190
3
A cidade e os informantes – inserção etnográfica nos pontos de venda de drogas da
cidade de Corumbá/Brasil, na fronteira com Puerto Quijarro/Bolívia 1
The city and its informants - ethnographic insertion on points of sale of drugs in the city
of Corumbá / Brazil, on the border of Puerto Quijarro / Bolivia
Giovanni França Oliveira2
Gustavo Villela Lima da Costa3
Resumo: Este artigo realiza uma reflexão sobre a pesquisa etnográfica na cidade de Corumbá na fronteira
entre Brasil-Bolívia, com o objetivo de analisar a inserção em campo do pesquisador em ambientes
“ditos” perigosos a partir dos “informantes”. É na vida das ruas que podemos enxergar as relações sociais
extremas envolvidas nessas modalidades de trabalho ilícito e a capilaridade deste fenômeno na vida
dessas cidades de fronteira.
Palavras-chaves: Etnografia; fronteira, trabalho ilícito.
Abstract: This paper presents an analysis on ethnographic research in the city of Corumbá on the border
between Brazil and Bolivia, in order to analyze the insertion of the researcher in fieldworks, which are
considered dangerous, with the help of the "informers". In the life of the streets we can understand the
social relations involved in these extreme forms of illicit work and the capillarity of this phenomenon in
the lives of these border towns.
Key words: Ethnograph;, border; illicit work.
Introdução
Atualmente vemos pelos meios de comunicação de massa o grande problema
que o comércio de drogas gera perante a sociedade, tanto no número crescente de
dependentes químicos quanto no aumento da violência relacionado a esse tipo de crime.
Recentemente vimos o poder bélico dos traficantes na ocupação realizada da polícia
1
Uma versão preliminar deste artigo foi apresentada no III Seminário Internacional Violência e Conflitos
Sociais: Ilegalismos e Lugares Morais. 6- 9 de Dezembro de 2011, Laboratório de Estudos da Violência,
na Universidade Federal do Ceará, em Fortaleza.
2
Mestrando do programa de Pós-Graduação em Estudos Fronteiriços da Universidade Federal do Mato
Grosso do Sul – Campus do Pantanal.( [email protected]).
3
Gustavo Villela Lima da Costa - Prof. Adjunto de Antropologia. Av. Rio Branco 1270, caixa postal 252
Bairro Universitário. CEP 79304-020 - Corumbá-MS. UFMS/ CPAN - Mestrado em Estudos
Fronteiriços. [email protected].
4
juntamente com as forças armadas no morro do Alemão no Rio de Janeiro que era
comandado pela facção criminosa denominada Comando Vermelho. No ano de 2006,
foi amplamente divulgado a demonstração de força de outra facção criminosa, chamada
Primeiro Comando da Capital (PCC), que atacou inúmeros postos e delegacias policiais,
incendiando diversos veículos em São Paulo mostrando assim toda sua organização e
poder (ADORNO e SALLES, 2006). Grandes centros urbanos como Rio de Janeiro e
São Paulo, são as cidades mais noticiadas quanto a esse tipo de crime e também são as
cidades mais estudadas no Brasil pela academia quanto a esse tipo de crime, como se
percebe a partir do grande volume bibliográfico produzidos. (ZALUAR, 2009; MISSE,
1997, 2003 entre outros).
O que pensar do comércio de drogas em uma cidade de fronteira como
Corumbá? Quais as peculiaridades dos problemas dessa região? São os mesmos de uma
cidade de outras partes do Brasil? O que há de diferente? Nos dias atuais observamos
um olhar crescente do Estado e de grande parte da população brasileira para as
fronteiras, fronteiras essas vistas sempre como o início do gigantesco problema que é o
comércio de drogas ilícitas nos grandes centros urbanos brasileiros. Assim, a partir de
estudos etnográficos ainda em curso, tentarei elucidar alguns desses questionamentos
em relação à cidade de fronteira, tomando como ponto de partida a cidade de
Corumbá/Brasil, que faz fronteira com a cidade de Puerto Quijarro/Bolívia4.
4
Corumbá cidade situada no extremo oeste do estado do Mato Grosso do Sul, erigida no meio da maior
planície alagada do mundo (Pantanal), é uma cidade histórica que desde sua gênese exerceu um
importante papel na formação e no controle das fronteiras do Estado brasileiro. A cidade faz fronteira
com a cidade de Puerto Quijarro/Bolívia, onde para chegar ao marco divisório fronteiriço, se faz
necessário trafegar por oito quilômetros pela rodovia Ramão Gomez. Atualmente Corumbá é a cidade de
entrada do gasoduto Brasil-Bolívia e também está em foco por causa corredor bioceanico. Além disso,
Corumbá é conhecida nos noticiários nacionais brasileiros e também é considerada pelas autoridades
estatais como uma das principais portas de entrada de pasta base de cocaína e de cocaína provindas da
Bolívia, mostrando assim a importância da cidade aos olhos estatais, sobretudo em questões de segurança
e soberania.
5
Corumbá: cidade fronteiriça
Cidades fronteiriças são frequentemente estigmatizadas pelo olhar do Estado,
como lugar das ilegalidades, contrabando, tráfico de drogas, armas e pessoas. Essa visão
distorcida do Estado em relação à cidade de fronteira gera um pensamento negativo em
grande parte dos indivíduos que vivem fora dessas regiões. Dessa maneira, para tentar
entender o que acontece de fato em uma cidade fronteiriça em relação aos vários tipos
de ilegalidades que ocorrem na região, é necessário se afastar dessa visão distorcida
produzida pelo Estado e tão difundida pelos meios de comunicação de massa, para
propiciar um melhor entendimento da vida de uma cidade fronteiriça.
Primeiramente, ao se falar em fronteiras de estados nacionais, pressupõe-se a
existência de dois ou mais limites políticos operando nessa região, o que gera uma
demanda estatal para uma melhor regulamentação, em forma de acordos para melhor
atender às demandas de fluxo de mercadorias dos países e também como forma de
barrar o vai e vem dos habitantes da fronteira. Essa passagem de um lado para o outro e
o contato de diferentes nacionalidades através da chamada integração informal, gera
laços sócio-economicos-culturais. Dessa maneira, a simples passagem de uma pessoa de
um lado para o outro para comprar um produto e voltar para seu país de origem é um ato
corriqueiro em sua vida fronteiriça. Dependendo das quantidades de produtos
comercializados, este ato pode se tornar prejudicial para o Estado. Observamos isso a
partir de diversas operações5 em conjunto deflagradas pelos órgãos de fiscalização e
repressão nas aduanas quanto nas estradas vicinais da região, onde são apreendidos
5
As Operações Sentinela, Cerco Fechado, Ágata1, 2 e 3, Fronteira Unida, Atalaia, Tríplice Aliança, foram
atualmente as operações de destaque nacional, deflagradas pela polícia nas fronteiras do estado do MS, é
importante pontuar que a fiscalização e feita cotidianamente nas fronteiras do MS, já que a maioria das
apreensões, tanto em relação ao contrabando e ao trafico de drogas, são feitas em fiscalização de rotinas
nas aduanas quanto nas estradas da região.
6
geralmente grande quantidade de roupas. As apreensões relacionadas ao tráfico drogas
ocorrem na grande maioria das vezes especificamente na BR 262 onde geralmente são
presos os chamados mulas6. E assim, para coibir esse tipo de comportamento são criadas
legislações especificas e mecanismos de controle e vigilância para essas regiões, para
tentar frear essa prática o máximo possível.
“En las fronteras la tensión entre legalidad e ilegalidad es parte constitutiva
de La vida cotidiana. Las transacciones comerciales entre las poblaciones son
consideradas muchas veces como «contrabando» por los Estados mientras es
La actividad más natural para la gente del lugar. (GRIMSON, 2000, p.3).
Ao trafegar por dois ou mais regimes jurídicos e econômicos, algumas
mercadorias adquirem o status de ilegalidade perante legislações nacionais, escapando
também ao recolhimento de tributos, o que propicia grandes lucros para os comerciantes
e baixos preços para os consumidores. O mesmo mecanismo de capitalização vale para
o comércio de drogas ilícitas. Esta operação de compra e venda característica das
fronteiras não apenas fornece o mecanismo de capitalização de comerciantes, como
dinamiza a vida econômica dessas cidades fronteiriças, gerando parte significativa dos
empregos (em sua maioria, informais), movimentando o consumo, atraindo mão-deobra fixa e transitória para essas localidades. Além disso, podemos pensar em que
medida a peculiaridade da situação das fronteiras nacionais condiciona certas práticas
de aquisição de lucro e configura um modo específico de fazer negócios, sejam eles
legais ou ilegais. A fronteira é entendida, assim, como um lugar onde há a possibilidade
de ascensão social para determinados indivíduos e onde existe certa liberdade de ação
em relação às leis nacionais, em função da existência de dois ou mais regimes jurídicos,
econômicos, políticos e sociais em um local de oportunidades para negócios em função
da ambigüidade de valores de moedas e por ser um ponto na rota de mercadorias entre
6
Pessoa contrata para transportar droga (pasta base de cocaína ou cocaína) em pequenas quantidades para
outras cidades fora da região fronteira.
7
países. A existência de dois câmbios de moedas é um dos fatores que torna tão atrativo
o comércio de drogas na região, pois ao passar para o lado brasileiro os comerciantes de
drogas conseguem grandes margens de lucro sobre o produto.
A partir da década de 1970 e 1980, a partir dessa integração informal são
formadas as redes ilegais do comércio de drogas nessa região fronteiriça de Corumbá e
Puerto Quijarro, com uma grande expansão a partir da década de 19907, notada pelo
aumento do número de pontos de venda de drogas nessa região. Dessa maneira, criou-se
uma grande rede de pessoas que trabalham (in) diretamente com esse comércio
fronteiriço influenciando diretamente os locais onde são comercializadas as drogas na
cidade de Corumbá e Ladário/Brasil e Puerto Suarez e Puerto Quijarro/Bolívia (Oliveira
e Costa, 2011). Os processos sociais dessa integração informal se deram a partir das
“relações de vizinhança” que vão desde as relações cotidianas de uma vizinhança
qualquer de um bairro, chegando até o outro lado da fronteira. São essas relações, que
até o momento dão sustentabilidade às redes ilegais do comércio 8 de drogas que operam
nessa região.
A cidade e os informantes: etnografia nas Bocas
Quando no início de 2010 me propus a pesquisar essa modalidade de trabalho
ilícito na fronteira, percebi que estava pisando em um “barril de pólvora”, e precisava de
alguém que me indicasse por onde começar as pesquisas de campo, haja vista que, na
cidade de Corumbá e região, há certo “silêncio” da população em relação aos pontos de
7
De acordo com Lauter da Silva Serra secretario de saúde de Corumbá, no debate do Encontro Estadual
de combate às Drogas, “hoje em Corumbá existem mais de 280 bocas cadastradas fora as que não
estão”. Seminário Estadual de Políticas Publicas de combate as drogas realizadas em Corumbá nos dias 1
e 2 de julho de 2011.
8
A partir desse momento utilizarei a categoria de comerciante e não mais a categoria de traficante para as
pessoas que trabalham com a venda de drogas ilícitas nessa região de fronteira, devido ao grau de
estigmatização que a categoria de traficante impõe a essas pessoas, representando ainda uma visão
construída a partir do Estado e da lei.
8
comercialização de drogas. Este “silêncio” torna muito difícil saber qual é o local certo
ou as pessoas certas para tentar uma possível aproximação, e mesmo se eu soubesse
qual a localização do ponto de venda, seria quase impossível estabelecer um contato
com este universo, pelo fato de eu ser uma pessoa estranha. Neste ponto da pesquisa eu
era o “estranho” (e ainda sou, em muitos sentidos e lugares) e dificilmente conseguiria
algum contato, a não ser que eu conhecesse algumas pessoas que trabalhassem com a
venda de drogas na cidade, mas (in) felizmente não conhecia ninguém, ou pelo menos
até então.
Nesse momento entra em cena a figura do “informante”, muito necessário na
minha inserção nesses ambientes ditos “perigosos” que chamarei pelo pseudônimo de
Alterna. Não me deterei em como eu conheci os “informantes”, mas sim, em como ele
(a) me possibilitou enxergar os ditos “submundos” da cidade de Corumbá e região, os
espaços usados e “reusados” na forma que convém aos atores sociais envolvidos nesse
tipo de comércio ilícito que é o comércio de drogas. Dessa maneira aprimorei meu olhar
para certos momentos e em lugares que dificilmente se imaginaria que poderia
comercializar esse tipo de produto.Só a partir da ajuda dessas pessoas é que pude
romper com a barreira do silêncio desses comerciantes e assim tentar entender as
possíveis razões que lhes induziram ou não, a realizar esse tipo de comércio (ZALUAR,
2009). Vale lembrar o trabalho etnográfico feito por Phillipe Bourgois em seu livro “Em
Busca Del Respeto”, que mostra com veemência a grande dificuldade que ele passou
para se inserir entre os traficantes de heroína do bairro.
“[...]La primera vez que caminé a mi casa desde La estación Del
subterrâneo,atravesé um passillo marginal que resulto ser uma “zona de
capeo” de heroína. Allí, media docena de “campañias” competían por La
venta de bolsas de $ 10 selladas[...]Tan pronto puse um pie em La cuadra,
desaté um vendaval de silbidos y gritos de “bajando”, los avisos em clave que
utilizan los vigilantes para advertir a los “joseadores”, encargados de lãs
9
ventasal por menor de La presencia de personas sospechas o posibles policías
encubiertos.[...]” (BOURGOIS, 2010, p. 58)
O autor enfrentou inúmeras dificuldades para conseguir sua inserção no campo
de pesquisa: por ser uma pessoa de fora do bairro e por ser branco emitia um estereótipo
de policial e de dependente químico 9 que afastava de si naquele local todos em sua
volta. A estratégia utilizada pelo autor foi fazer amizade na vizinhança de seu próprio
conjunto habitacional, passando a conviver com os moradores locais e progressivamente
deixando de ser uma figura “perigosa” para os envolvidos na venda de drogas. Este
procedimento de convivência tão importante na pesquisa etnográfica é que propiciou ao
autor o primeiro encontro com um gerente da casa de crack de seu prédio, que
posteriormente prestaria um papel fundamental como informante.
“[...]Mi preocupación fundamental era convencer al administrador de una
casa de crack de que yo no era uns policía encubierto.[...]Mi vicina
Carmem[...] me llevó ante El salón y Le dijo em español: “primo, te
apresento mi vicino Felipe. Él ES de La cuadra y quiere conecerte”. Primo,
soltó uma risa nerviosa. Giró me Dio La espalda y escondio La cara.” Em qué
precinto fue que lo recogiste?”, Le pergunto a Carmen em inglés, mirando
hacia La calle. Com um tono entre avergonzado y recrimatorio, Le aclare que
yo no era de La ‘ de La jara’ y que lo queria era escribir um libro sobre ‘La
calle y El vencidario’.[...]( BOURGOIS ,2010, p.67)
A partir do primeiro encontro do autor com Primo é que houve o suporte
necessário para que o autor conseguisse permanecer no local e também ganhar o
respeito de todos a sua volta, inclusive do chefe do comércio de crack daquela região.
Este processo foi mediado por Carmen, sua vizinha, que por sua vez já conhecia Primo
de longa data. Neste sentido, o pesquisador teve que mobilizar uma rede de pessoas,
conquistar sua confiança e respeito, para só então ser aceito na vizinhança e nos lugares
de pesquisa. O que é fundamental é analisar o papel da vizinha na inserção no campo do
autor, que justamente através do intermédio de alguém conseguiu, mesmo que de forma
9
O autor usa a expressão heroinumano.
10
abrupta e tensa, o primeiro contato com o traficante da casa de jogos, que tanto
almejava conhecer. Após o primeiro encontro, inicia-se todo um jogo de trocas
simbólicas do autor em relação a Primo a fim de ganhar sua confiança (bancando
rodadas de cerveja e principalmente o esforço do referido autor em mostrar que não
pertencia à corporação policial), para depois dar seu próximo passo que seria a
permanência no local de venda de heroína.
De suma importância também os relatos etnográficos do autor Willian Foote
Whyte em seu livro “Sociedade de Esquina”, onde ele cita toda a importância de seu
informante chamado Doc e de sua gangue de esquina. O referido autor consegue
contatos e acessos em diferentes ambientes em Cornerville e dessa forma pôde traçar
toda a estrutura de obrigações mútuas de uma gangue de esquina que era parte e reflexo
de um contexto maior de obrigações mútuas e de relações de poder que operavam
cotidianamente em Cornerville. Novamente notamos a figura do informante como base
inicial para estudos em locais ditos “perigosos”, tanto o Primo e Doc foram
fundamentais para a inserção nos ambientes pesquisados.
Quando iniciei meus trabalhos de campo não tinha idéia de como seria esse
primeiro contato com esse “outro” tão estigmatizado por grande parte da população, que
é o comerciante de drogas. Alterna, um dos “informantes” que desbrava caminho em
minhas pesquisas, faz um papel também muito parecido com o de Doc já que com ele
(a), pude transitar e conhecer as mais diferentes pessoas de diferentes classes sociais que
praticam esse tipo de comercio na cidade. Alterna, também faz um papel parecido com
o de Primo, em vista que o Alterna me propiciou minha ida na fonte10, conhecer a
realidade de que trabalha com esse tipo de comércio ilícito. Momentos antes do meu
10
Expressão nativa relacionada a algum local importante relacionado à venda de drogas.
11
primeiro contato com um comerciante de drogas ilícitas, vinha-me ao pensamento a
imagem de um traficante armado com fuzil veiculado tipicamente pelos meios de
comunicação, nos filmes e programas de TV, oriundo das favelas cariocas. Como será
esse primeiro contato? Qual seria o risco real para mim? Poderia ser vitima de
retaliações na rua? Como escapar da violência sempre eminente para a manutenção
“harmônica” desses meios?
A partir dessas incursões pela cidade, obtive o primeiro contato com um
comerciante de drogas, quando então percebi que naquele momento teria que “saber
entrar” e “saber sair” nos dizeres de Alba Zaluar, para conseguir ganhar a confiança
daquele individuo. Em um bairro qualquer da cidade de Corumbá, o primeiro contato:
- Giovanni: Onde é o local Alterna?
- Alterna: Calma cara é logo ali na frente.
A cena que eu vi era a seguinte: crianças brincando na rua, um senhor escutando
radio de pilha e carpindo seu quintal; um senhor construindo uma parte de uma parede
de uma casa qualquer; a senhora com idade avançada sentada na porta de sua casa na
sombra se refrescando com Tereré; uma vida cotidiana simples de um bairro qualquer
de Corumbá, até que chegamos ao ponto de venda (boca).
-Eu: é esse o local Alterna?!
-Alterna: é esse sim cara, vou chamar o cara!
Para minha surpresa, era uma casa de família qualquer, de um bairro qualquer da
região, onde toda a rotina da casa se contrastava com a atividade ilegal que era praticada
cotidianamente naquele local. E mais surpreendente ainda, o comerciante não era nada
daquilo que imaginava outrora. Ele me recebeu em sua casa, com um sorriso no rosto
12
sem qualquer tipo de arma na mão ou qualquer intimidação. O fato de que Alterna já o
conhecia facilitou um pouco a comunicação com aquele indivíduo e outros indivíduos
que conheceria posteriormente. Os comerciantes de drogas que conheci, nunca
praticaram nem um tipo de violência contra mim. O que houve, foi uma grande
desconfiança, até mesmo entre aqueles que conheci por “acaso” nas ruas da cidade,
nunca demonstraram nenhum tipo de agressividade ou intimidação contra minha pessoa
até este presente momento.
Com esse primeiro encontro, pude perceber uma das minhas grandes
dificuldades iniciais de pesquisa, que posteriormente seria ultrapassada em certos
pontos de vendas: a entrada no local (intramuros), ou seja, para que pudesse entender a
dinâmica interna da boca, teria que ganhar a confiança a ponto de ser reconhecido como
uma pessoa próxima, já que estamos falando de uma casa de família e que, para entrar
nesse recinto, teria que ganhar a confiança de todos da casa. Assim caiu por terra a
questão do traficante armado violento pronto para uma guerra aberta com a polícia, ou
com quem quer que possa intervir nos seus negócios. Ou seja, por causa do
“informante”, pude andar pela cidade e entrar em contato com várias pessoas que
comercializam esse tipo de produto ilícito e que ganham a vida essas atividades.
Outra grande dificuldade que tive, foi a questão de que poderiam suspeitar do
fato de eu ser ou não um policial disfarçado. Muitos boqueiros11 que Alterna me
apresentou, nunca no primeiro encontro diziam que trabalhavam com a venda da
mercadoria ilícita, sempre escutava a frase dita por eles (as) “já trabalhei há muito
tempo mas não faço mais essas fitas12”, ou “eu nunca trabalhei com isso mas andava
11
São chamados de boqueiros os dono do ponto de venda.
É uma palavra nativa que pode ser usada em varias ocasiões, dessa forma mudando seu sentido, neste
caso essa palavra esta denotando “fazer algo errado”.
12
13
com quem trabalhava” ou ainda “você tá doido Alterna nunca fiz essas fitas não”, isso
mostra a grande desconfiança que eu passava para essas pessoas e o medo delas de
serem presas.
Outra estratégia que utilizei para minha inserção no campo, além da ajuda de
Alterna, foi quando consegui o livro “Falcão: meninos do tráfico” de MV Bill e Celso
Athayde, que teve grande repercussão na mídia, ainda mais por se tratar de um rapper
famoso do Rio de Janeiro que tem legitimidade em comunidades carentes. Eu já o
carregava em mãos em todos os lugares, percebendo o tamanho da repercussão do
documentário no cotidiano dessas pessoas. Quando eu chegava ao local e mostrava o
livro, todos queriam manuseá-lo mesmo que não fossem ler nem uma pagina sequer. Só
o fato de poder tocar no livro e folheá-lo era a sensação de reconhecimento de sua
própria realidade como traficantes. O livro também gerava nestes atores sociais a
percepção de que talvez eu pudesse ser um interlocutor para o grande público, da
mesma forma que o MV Bill e Celso Athayde conseguiram com o documentário e com
o livro. Para não gerar falsas expectativas, que pudessem ameaçar os laços de confiança
já conquistados, eu sempre dizia que o alcance do trabalho ficaria restrito à academia.
Muito interessante como os diálogos começaram a fluir, depois que eu comecei a levar
esse livro junto quando ia fazer o trabalho de campo com Alterna. Aqueles que outrora
nunca tinham feitos as fitas13 começaram a falar sobre esses negócios (que fizeram e que
estão fazendo até este presente momento) contando histórias de suas vidas, o que foi de
suma importância para o entendimento da rotina de uma boca e a percepção das pessoas
que moram ao redor desses pontos de venda.
13
Começaram a falar como comercializam drogas, comentar em relação aos assaltos de veículos
automotivos que são trocados na Bolívia por droga e também da organização das bocas nessa região de
fronteira.
14
Pude perceber que através desse livro, que muitos desses comerciantes de
drogas, de fato, gostariam de ter uma voz que pudesse ecoar dentro da sociedade em
relação à sua opção em fazer esse tipo de comércio. Neste momento, muitos me viam
como se eu, até certo ponto, poderia dar essa voz a eles. Esta legitimidade conquistada
no campo de pesquisa foi de suma importância para a continuação das minhas
pesquisas, porque através de um boqueiro, pude conhecer outros boqueiros. Este é um
claro sinal de que eu conquistava o respeito entre uma parcela desses comerciantes e,
principalmente, adquiria sua confiança, o que é fundamental para a continuação do meu
trabalho.
“Entre os problemas práticos de pesquisar no meio do perigo, fugindo do
tiroteio, driblando omissões, dissimulações e mentiras de quem tem que
esconder suas atividades ilegais, está, pois, o da identidade que assumirá o
pesquisador. Não se pode ser nem infiltrado (o que equivaleria a decretar a
própria morte), nem iniciante (ardil posto ao que quer se tornar nativo e que
pode levá-lo a problemas com a lei, já apontados com regularidade na
literatura citada, ou na própria morte do antropo-traficante principiante ou
antropo-assaltante de primeira viagem)”. (ZALUAR 2009, P. 566).
Através de Alterna conheci Dio mais um (a) “informante” que me levou em
outros locais de vendas de drogas, diferentes das bocas familiares. Dio me apresentou
para outro tipo de local de comercialização de drogas em Corumbá, que venho a chamar
de boca bar14, locais esses, dependendo de sua localização, há um grande fluxo de
pessoas dos mais distintos estratos sociais. Quando fui apresentado para o boqueiro
(dono do bar) de um dos bares, também fui recebido “tranquilamente” e pude começar a
fazer o trabalho de campo nesse ambiente e também em outros bares que comercializam
ou que funcionam apenas como ponto de aviões (subordinados às bocas familiares) mas
que também lucram com o movimento que a comercialização de drogas ilícitas por
“terceiros” que trazem a mercadoria para seu estabelecimento. Nos bares é que se
percebe o numero de pessoas que ganham a vida (in) diretamente com esse tipo de
14
São diversos bares da região que funcionam como pontos de vendas de drogas ilícitas.
15
comércio nessa região, garotas de programa, garotas do programa, moto táxis
clandestinos ou não, os aviões (também chamados de correria), a boca familiar, e
principalmente o dono do bar. Os donos de bar normalmente têm duas ou três pessoas
subordinadas diretamente a ele, que por sua vez também já conhecem as pessoas que
estão vendendo o produto ilícito. Estes indivíduos também “ajudam” na hora da venda
indicando ao usuário (que não o julgam suspeito por medo da polícia) às pessoas que
estão vendendo as paradinhas no local.
Através de Dio e Alterna conheci outra pessoa que venho a chamar de Contraste
que viria a me lavar a alguns lugares do lado boliviano da fronteira. Como esse campo
ainda é muito recente dentro das minhas pesquisas, ainda é necessário um pouco mais
de tempo para fazer algumas análises a partir das informações colhidas. Entretanto,
algumas informações já podem ser analisadas com um pouco mais de clareza,
principalmente em relação a como são feitas as vendas de drogas na fronteira. Em
primeiro lugar, a venda dessa mercadoria do lado boliviano da fronteira só ocorre no
atacado. O comércio varejista praticamente não existe. Não é apenas dinheiro que é
utilizado como moeda de troca nas compras no atacado, já que normalmente são aceitos
produtos para fins de troca, como os veículos automotivos (são os mais visados)
roubados das cidades do lado brasileiro da fronteira, e que são trocados pela droga
(cocaína ou pasta base de cocaína). O ano do veiculo e o estado de conservação é que
vão delinear a quantidade de droga que vai ser trocada, essas trocas na maioria das
vezes envolvem organizações criminosas como o PCC, que estabelecem conexões com
outras cidades do país.
Ressalto que devido à minha transitoriedade nesses ambientes ditos “perigosos”,
entrei em outro campo de pesquisa, que perpassou o comércio de drogas “independente”
16
dessa região, comércio esse que não tem vínculo com o PCC, mas que respeita a “voz
do comando” nas ruas. Nas entrevistas que realizei começaram a aparecer informações
da atuação do PCC (Primeiro Comando da Capital) nessa região de fronteira. Uma das
informações importantes que colhi através de entrevistas com os ditos primos15 do PCC,
foi justamente em relação à fundação do PCC/MS e também a fundação de uma “filial”
nessa região de fronteira a partir do Presídio situado na cidade de Corumbá, o que nos
mostra uma interessante dinâmica social a partir das quais se percebe a existência de
“vozes” intra-murros se irradiando nas ruas de Corumbá e Ladário. Devido ao alto grau
de risco de minha segurança, tive que parar com minhas incursões até o momento nesse
campo, além do que, as formas de atuação do PCC ainda estão muito “obscuras” nessa
região, já que pouco ou quase nada se ouve dizer sobre essa organização criminosa.
Ressalto que a partir de pesquisas realizadas em material jornalístico na cidade de
Corumbá, desde 2009 apenas uma única noticia sobre o envolvimento do PCC foi
publicada. Nesta matéria16 noticiou-se o estouro de uma boca pela polícia em um bairro
da cidade, onde supostamente morava o administrador do PCC na região, informação
essa que pode ser alvo de críticas em relação à sua veracidade17.
A partir das minhas incursões nos vários pontos de vendas de drogas ilícitas na
cidade de Corumbá, pude perceber diferenças (na estruturação das redes ilegais tanto no
atacado quanto no varejo) entre o comércio de drogas dessa região de fronteira e os
15
São pessoas que tem um “certo” contato com o PCC, mas que não tem vínculo de fidelidade com a
organização. Diferentemente de outra categoria chamada de “irmãos” que indica pessoas que já estão
inserido por completo dentro da organização.
16
Corumbá online,
s=noticia&id=42155
4
de
março
de
2012.http://www.diarionline.com.br/index.php?
17
É difícil afirmar que exista apenas um administrador do PCC na região, devido à grande escassez de
informações em relação à sua forma de atuação e por si só em sua organização nessa fronteira, essa
informação noticiada em relação ao PCC, foi a primeira que puder apurar em arquivos de jornais nos
últimos dois anos, pressupõe-se que o PCC já vem atuando nessa região de fronteira á mais de dez anos.
Ver (OLIVEIRA e COSTA 2011).
17
grandes centros urbanos do Brasil. Dessa forma, comecei a pensar o grau de
periculosidade desses pontos de venda de drogas da região; qual sua influência nos
níveis de violência (conflitos de boqueiros por tomadas de territórios) e como esses
pontos de venda são percebidos por grande parte das pessoas da cidade de Corumbá.
Primeiramente, identifiquei a modalidade de ponto de comercialização de drogas ilícitas
que chamo de boca familiar, uma peculiaridade dessa região de fronteira, que é muito
importante na dinâmica de vendas e também nas possíveis disputas por territórios, e que
acaba se tornando ponto de referências para outros “jeitos” de se comercializar a
mercadoria ilícita. Outro pólo de comercialização de drogas ilícitas identificado em
minhas pesquisas, também já assinalado anteriormente, é a boca bar.
Michel Misse (1997, 2003), fornece informações de grande relevância em
relação ao comercio de drogas ilícitas no Rio de Janeiro. O referido autor analisa toda
uma hierarquização que se desenvolveu em torno dos pontos de vendas de drogas, a
pela organização do movimento pelo Comando Vermelho a partir dos anos de 1980,
organização calcada em uma militarização para proteção do ponto de venda contra
possíveis investidas policiais, traficantes rivais e posteriormente milicianos. No Rio de
Janeiro não há uma preocupação em esconder esses pontos de venda, dessa maneira a
visibilidade facilita a chegada do comprador ao ponto de venda. Segundo Misse, devido
a esse caráter território, político e militar que assumiu esse mercado ilícito no Rio de
Janeiro, criou-se uma insegurança cotidiana nas comunidades dominadas pelos
traficantes como também em toda a cidade. Dessa maneira, observamos todo o
problema social que esse comércio provoca na cidade do Rio de Janeiro, tanto em
questão de segurança publica quanto na área da saúde.
18
Hirata (2010) demonstra o papel da chamada biqueira (ponto de venda de drogas
ilícitas) em um determinado bairro da periferia da cidade de São Paulo. Segundo este
autor, a localização da biqueira tem relação direta com as altas taxas de violência no
bairro em questão, gerando insegurança e o medo da morte que pairava na região em
torno da biqueira. A partir do momento em que o Primeiro Comando da Capital (PCC)
começa a dominar o comércio de drogas na região, inicia-se também a diminuição da
violência nesses locais, e também nota-se uma mudança de percepção da população
local em relação à biqueira. Outrora a biqueira vista como um dos principais males do
bairro, agora devido há ação de “pacificação” promovida pelo PCC, a biqueira é vista
como instância de soluções de problemas locais mais corriqueiros, como briga de
marido e mulher, até mesmo brigas do futebol, soluções essas promovidas pelo
chamado debate, realizadas pelo patrão ou pelo gerente da biqueira. Se a questão
envolve morte, o debate assume outro caráter, que envolverão outras instâncias do PCC,
ou seja, a violência outrora tão visível nas ruas do bairro anteriormente, agora foi
realocada e promovida com hora marcada através do debate, onde serão decididas as
formas de violência (punição) contra o culpado, inclusive a morte dependendo do caso
em questão no debate (HIRATA, 2010).
Considerações finais
O que eu gostaria de pontuar nesses dois casos de pontos de vendas citados
acima é que, os pontos de vendas de drogas ilícitas no Rio de Janeiro e em São Paulo,
são vistos apenas como locais de vendas das mercadorias ilícitas, tanto para quem
pratica esse tipo de comércio e seus consumidores, quanto para os moradores da região.
Esta realidade difere completamente dos pontos de vendas de drogas ilícitas em
Corumbá. Como já foi dito anteriormente, em meu primeiro contato com um
19
comerciante de drogas ilícitas, se não fosse pelo informante, eu dificilmente saberia qual
era o ponto de venda de drogas naquela região, e qual eram casas de moradores; ou seja,
esses pontos de vendas preferem a invisibilidade para a venda da mercadoria ilícita do
que a visibilidade, ao contrário dos grandes centros urbanos mencionados. Esse
primeiro contato se deu na chamada boca familiar, como o nome já demonstra, o ponto
de venda da mercadoria ilícita se encontra na casa do comerciante e isso de certa forma
influencia diretamente na percepção dos moradores que habitam os arredores do ponto
de venda. Primeiramente, para uma pessoa mais desatenta, a boca é uma casa de
família, com crianças brincando no quintal, sua mãe lavando roupa e estendendo no
varal, ou seja, tudo que denota uma rotina normal de uma casa de família. Em Corumbá,
portanto, não há nem uma organização hierárquica “militar” guardando o território
pronto para um confronto, e nem uma hierarquia demarcada de funções como os
“fogueteiros” e nem “campanas” olhando o movimento da rua, o que pode haver é o
correria7 (que não são identificados em muitos dos pontos de venda que conheci) na
frente da casa de família. Neste sentido a venda de drogas na cidade tem, em geral, um
caráter familiar e funciona como uma extensão da própria casa.
Um fato muito interessante que pude perceber em minhas pesquisas de campo,
que afeta muito a vida da vizinhança (e que merece mais estudos) é a presença dos
usuários de droga, chamados zumbis ou pipeiros18. Esses compradores aparecem
geralmente quando a boca tem como sua principal especialidade de venda, a chamada
base19. Essas bocas atraem os zumbis, que geralmente habitam os terrenos baldios da
região, gerando discursos estigmatizantes e percepções por parte dos moradores de que
18
Expressão usada para os usuários de base que vagam dia e noite a procura de algum ganho para
comprar a droga, também e usada a expressão pipeiros para esses mesmos.
19
É derivado de pasta base, é a droga mais usada na região devido ao seu valor muito baixo para venda,
geralmente custando um real cada paradinha. “É a prima irmã do crack” como é conhecida pelas
associações de apoio a dependentes químicos da região.
20
os mesmos estariam “poluindo” a vizinhança através de sua presença, assim como por
sua aparência. Além disso, essa percepção de insegurança nas vizinhanças se deve ao
fato de que pequenos furtos começam a ocorrer na região. Através dessas observações,
o fator “poluição da vizinhança” tornou-se muito relevante para os estouros de bocas
pela polícia na cidade de Corumbá. Dessa maneira, o boqueiro procura novas estratégias
de venda da droga, para que os zumbis não cheguem perto da boca. A partir daí, o
boqueiro passa a atuar como avião ou paga (com paradinhas20 de base) algum zumbi de
sua “confiança” para que leve a droga para ser vendida na casa dos usuários de pasta
base (zumbis). Isso evita principalmente a “identificação” do local da boca pela polícia e
também evita o “stress” da vizinhança em relação aos zumbis, pois limita o vai e vem
dos usuários de droga em torno da boca na vizinhança.
Se a boca é especializada na venda de cocaína, o ambiente da vizinhança é
outro, devido ao não aparecimento dos zumbis, que não tem dinheiro para comprar essa
droga. Neste sentido, a cocaína é vista como a droga de “rico” e não traz consigo, aos
olhares da vizinhança a “poluição” visual e física que a base ocasiona. Geralmente a
compra da cocaína é muito discreta e não ocasiona “transtornos” aos olhares da
vizinhança, além do que os usuários de cocaína, em geral, não cometem os pequenos
furtos para manter o uso da droga.
Nenhuma pessoa da região gosta de ter uma boca por perto ou ao lado de sua
casa, mas devido às próprias relações de vizinhança que se configuram cotidianamente,
há certa “conivência” ou “tolerância” por parte dos vizinhos em relação à prática ilícita,
desde que não haja aumento da violência ou presença ostensiva dos usuários de droga
(zumbis). Há, de fato, um medo da vizinhança em relação ao comerciante, por mais que
20
São os papelotes onde são colocadas as quantidades de drogas.
21
se configurem essas relações de vizinhança, a possibilidade de coerção pela violência é
sempre constante nesse tipo de comércio devido ao medo constante do comerciante em
ser denunciado pelos seus vizinhos para a polícia. Por mais que haja essa coerção
embutida nessas relações, o comerciante tende a operar com certa tranquilidade
cotidiana, inserindo-se na vida cotidiana, ajudando os vizinhos nas mais variadas
dificuldades rotineiras21. Ou seja, devido a essas relações de vizinhança e parentesco,
praticamente não se nota que ali é um ponto de venda da droga ilícita, a não ser para o
observador mais atento. A movimentação é percebida a partir de pequenos detalhes,
como um aperto de mão de uma pessoa estranha, ou a presença de um carro ou moto
até mesmo de bicicletas, que de passagem, fingem fazer uma visita rápida e vão embora
tão rápido quanto chegaram.
A intenção dessa pesquisa não é de forma alguma romantizar, nem dizer que não
exista violência relacionada a esse tipo de comercio ilícito nessa região de fronteira. É
notório que a possibilidade de atos de violência está sempre presente nessas atividades
ilícitas, mas a violência relacionada a esse tipo de comercio se manifesta em proporções
bem diferentes dos grandes centros urbanos debatidos anteriormente22. O que as
pesquisas, em curso, apontam até o momento, é que se trata de um comércio de drogas
específico das bocas da cidade de Corumbá, com características distintas dos grandes
centros do Brasil. O comércio de drogas nesta cidade está baseado em formas de
organização e hierarquia, que obedecem a critérios de vizinhança e parentesco,
21
Ajuda-se nas pequenas reforma na casa do vizinho (ajuda braçal), ajuda age como “guarda” das casas
da redondeza evitando roubos (em muitos dos casos estudados).
22
Aqui vale a definição de economia criminal de PERALDI: “[...]atividades que visam à produção,
circulação, a comercialização de produtos proibidos de um ponto vista moral ou legal, de atividades, nas
quais a organização e a efetivação incorporam uma parte de violência física realmente exercida ou
potencialmente presente na própria organização do ciclo produtivo, e enfim, de atividades realizadas por
indivíduos, grupos marginais ou desviantes nas condições de total ou relativa clandestinidade.”
(PERALDI, 2007, p.111)
22
preferindo a invisibilidade de seus pontos de venda. Além disso, percebe-se que
prevalece a negociação, envolvida nessas relações face a face, ao invés do uso da
violência, sobretudo no que diz respeito aos possíveis assassinatos por dívida ou
disputas armadas por pontos de venda de drogas, que de fato não são tão frequentes em
Corumbá. Além disso, é preciso destacar, também, que alguns boqueiros estão
envolvidos no negócio de remessa de drogas para outras partes do Brasil (atacadistas) e
que, essas grandes operações dependem do sigilo e da ausência de conflito explícito, o
que se reflete também no varejo, ou seja, no comércio das ruas, seja nas bocas
familiares, seja nas bocas bares.
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23
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24
A Campanha Cívica de Olavo Bilac e a criação da Liga da Defesa Nacional
The Civic Campaign of Olavo Bilac and the creation of League of the National Defense
Cesar Alberto Ranquetat Júnior1
Resumo: Neste trabalho trataremos sobre o apostolado nacionalista do escritor e jornalista Olavo Bilac
nos anos de 1915 e 1916, que levou a criação de uma organização cívico-cultural atuante até os dias de
hoje a Liga da Defesa Nacional. Inicialmente situaremos histórica e intelectualmente a campanha cívica
de Olavo Bilac. Em um segundo momento, analisaremos seus discursos nacionalistas que enfatizavam a
necessidade de uma educação moral que forjasse um novo tipo humano. Finalmente examinaremos a
Liga da Defesa Nacional, destacando a organização, os objetivos e as principais atividades promovidas
por esta entidade nos dias atuais.
Palavras-chave: nacionalismo; intelectuais; pensamento social.
Abstract: This paper examines the nacionalist apostolated of the journalist and writer Olavo Bilac in
1915-16, what led to the creation of a civic-cultural organization active until today- The National Defense
League. Initially, we will explore historic and intellectually Olavo Bilac´s civic campaign. Secondly, we
will analyze his nationalism speeches which emphasized the need of a moral education that could form a
new kind of human being. Finally we will examine the National Defense League, emphasizing the
organization, the objectives and the main activities promoted by those agencies nowadays.
Key words: Nationalism, intellectuals, Social thinking
Refletindo sobre a nação
Na segunda metade do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, uma
série de intelectuais brasileiros começa a discutir e refletir acerca da identidade
nacional. Duas visões e interpretações da nação são predominantes neste período. Uma
de caráter pessimista que desvaloriza nossa cultura, e influenciada pelas teorias racistas,
concebe o povo brasileiro como “uma raça inferior”. Estes intelectuais 2 eram céticos
1
Doutorando em Antropologia Social pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul),
orientador professor Ari Pedro Oro. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Avenida Bento Gonçalves nº 9500, CEP: 91509-900 - Porto
Alegre-RS. Professor de Ciências Sociais na UNIPAMPA (Universidade Federal do Pampa) – Campus
Itaqui/RS. Email: [email protected]
2
Sílvio Romero, Nina Rodrigues e Arthur Ramos são os principais expoentes desta linha de pensamento.
25
quanto à realização de uma civilização “superior” nos trópicos (Oliven, 2006). A raça e
o meio geográfico eram os fatores determinantes na explicação de nossa formação e
constituição enquanto nação, de acordo com Renato Ortiz (2003, p. 16):
A história brasileira é desta forma, apreendida em termos deterministas,
clima e raça explicando a natureza indolente do brasileiro, as manifestações
tíbias e inseguras da elite intelectual, o lirismo quente dos poetas da terra, o
nervosismo e a sexualidade desenfreada do mulato.
Por outro lado, havia uma interpretação da nação que procurava prestigiar nossa
singularidade, destacando a extensão territorial, as riquezas naturais e o caráter cordial e
bondoso do homem brasileiro. A mistura de raças não era concebida negativamente
nesta interpretação. Este nacionalismo ufanista tem em Afonso Celso com sua obra
Porque me ufano do meu país publicada em 1900, um dos seus principais
representantes. Este livro foi escrito em homenagem ao quarto centenário do
descobrimento do Brasil. O homem brasileiro, as belezas naturais, a variedade do clima,
a ausência de calamidades, a grandeza de nosso território, a ação evangelizadora dos
jesuítas e o desbravamento de nossas terras pelos bandeirantes são exaltadas no livro.
Ao contrário de outros intelectuais da época que depreciavam a mistura racial e a
presença negra e indígena na formação da nação brasileira, Afonso Celso mostrava-se
como um admirador e defensor da mestiçagem e das qualidades das três raças
formadoras. Já se esboça neste texto a “mitologia das três raças”, que posteriormente foi
desenvolvida com maior profundidade por Gilberto Freyre.
Durante a República Velha, ainda existiam interpretações acerca da nação que
avaliavam positivamente o passado colonial e imperial. A colonização portuguesa e a
ação evangelizadora da Igreja Católica eram elogiadas. O período imperial era visto
como central na constituição da unidade nacional. Tal corrente era representada por
26
Eduardo Prado com sua obra A Ilusão Americana datada de 1893. Por sua vez, os
republicanos radicais desejavam libertar-se da influência lusa e católica, criticando
duramente o regime monárquico. Raul Pompéia foi um expoente desta tendência
(Oliveira, 1990).
Cabe aqui ressaltar que um ano antes de iniciar a Primeira Guerra Mundial, um
grupo de jovens oficiais brasileiros estivera fazendo um estágio no exército imperial
alemão. Estes jovens oficiais ficaram conhecidos como “jovens turcos” e quando
retornaram ao Brasil fundaram a revista A Defesa Nacional que foi publicada de 1913 a
1918. Nos artigos desta revista os jovens turcos3 advogavam pela modernização do
exército nacional, pelo serviço militar obrigatório e pelo papel da educação na formação
da identidade nacional. É neste contexto que se inicia a campanha nacionalista de Olavo
Bilac. Para Oliveira (1990, p.190): “O diagnóstico de falta de patriotismo se faz
presente nas falas de Olavo Bilac, que passa a ver no Exército o único caminho capaz de
criar no povo brasileiro o amor à pátria. A criação do serviço militar obrigatório teve
este significado.”
A campanha nacionalista de Olavo Bilac
O apostolado nacionalista de Olavo Bilac4 em prol do serviço militar obrigatório
e de uma educação cívico-patriótica ocorreu durante os anos de 1915 e 1916. Neste
período o poeta parnasiano proferiu uma série de palestras em São Paulo, Rio de
Janeiro, Porto Alegre, Curitiba e Belo Horizonte. O público principal destas palestras
3
Receberam esta denominação, pois anteriormente jovens oficiais da Turquia estiveram na Alemanha
estagiando no exército deste país e ao retornarem a Turquia defenderam a reforma de suas forças
armadas.
4
Bilac é o autor do Hino à Bandeira e um dos criadores da Academia Brasileira de Letras.
27
era composto por estudantes, intelectuais e militares. As palestras de Olavo Bilac foram
posteriormente publicadas em um livro intitulado A Defesa Nacional publicado no ano
de 1917.
O primeiro discurso foi realizado na Faculdade de Direito de São Paulo, em 9 de
outubro de 1915. Neste discurso inicial, como em outros, Bilac denunciava a apatia, a
indiferença e o comodismo: “O que me amedronta é a míngua de ideal que nos abate.
Sem ideal, não há nobreza de alma; sem nobreza de alma, não há desinteresse, sem
desinteresse, não há coesão; sem coesão, não há pátria (Bilac, 1917, p.5).”
Para Olavo Bilac, o Brasil atravessava uma terrível crise, crise esta que não era
de ordem política ou econômica, mas moral. O grande perigo estaria na possibilidade de
esfacelamento e desmembramento da nação, devido à ausência de um forte sentimento
de solidariedade nacional. O egoísmo, o interesse particular, a cobiça, a falta de coesão
social e a indisciplina campeavam, diante deste estado de coisas só haveria uma única
solução a educação cívica e o serviço militar obrigatório:
Quero e sempre quis a instrução e a defesa do país pelos livros e pelas
armas. Quero a escola dentro do quartel, e o quartel dentro da escola. A
segurança das pátrias depende da inteligência e da força: o estudo
defendendo a civilização, e a disciplina defendendo o estudo (Bilac, 1917,
p.100).
A defesa intransigente do civismo e da educação, como meio de inculcação dos
valores nacionais, é um dos pontos principais da campanha nacionalista de Bilac, que
idealizava a formação do cidadão-soldado:
Todo o brasileiro pode ser um admirável homem, um admirável soldado, um
admirável cidadão. O que é preciso é que todos os brasileiros sejam
educados. E o Brasil será uma das maiores, uma das mais formidáveis
nações do mundo, quando todos os brasileiros tiverem a consciência de ser
brasileiros (Bilac, 1917, p.133).
28
De acordo com Olavo Bilac, se fazia necessário transmitir às novas gerações as
virtudes cívicas e o sentimento de amor à pátria. A pátria só existiria se houvesse
disciplina, coesão, desinteresse e instrução. Neste sentido, era inadmissível, para o poeta
parnasiano, a existência em nosso país de uma legião de analfabetos e iletrados:
É inconcebível a vitória de uma democracia sem instrução da massa pública.
Estabelecemos a República; mas pode viver dignamente uma República,
uma pátria republicana , quando a maior parte dos seus filhos seja de
analfabetos, e, portanto,de inconscientes? (Bilac, 1917, p.137)
Mais adiante no mesmo discurso denominado A defesa nacional, proferido nos
estados do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e no Paraná, acrescenta que a instrução
primária e profissional são basilares para a construção de uma nação digna, entretanto
assevera:
A instrução não é completa, quando se refere unicamente à ciência e à arte, à
inteligência e ao trabalho. São indispensáveis também a saúde do corpo e da
alma, a força corporal e a disciplina. Terceiro ponto: a instrução militar.
Precisamos de instrução militar e de exército nacional, para a defesa do
nosso território e da nossa civilização, e para a defesa individual do
organismo físico e moral de cada brasileiro. Precisamos de exército
nacional, mas não do exército nacional que hoje temos: queremos um
exército verdadeiramente nacional, sendo a própria nação composta de
cidadão soldados, em que cada brasileiro seja o próprio exército e o exército
seja todo o povo (Bilac, 1917, p.138).
Não bastava a educação do espírito, o aprimoramento intelectual e o
desenvolvimento cultural, urgia também a formação do corpo e a disciplina física que
forjaria o cidadão-soldado, um tipo humano voltado para o heroísmo, com capacidade
para o sacrifício em prol da nação. O exército seria para Bilac uma escola e um centro
formador e transmissor de virtudes marciais, para tanto era necessário que cada
29
brasileiro do sexo masculino passasse obrigatoriamente pelo menos um ano nesse
“laboratório”:
O exército será um laboratório de civismo: uma escola de humanidade,
dentro do patriotismo; uma escola de energia social [...]. Ambicionamos que
todos os brasileiros passem pelo quartel, revezando-se: que cada um dê ao
menos um ano de sua vida ao serviço da vida da pátria(Bilac, 1917, p. 139).
Não aceitava a separação e o distanciamento entre o exército e o povo. As forças
armadas e a nação deveriam se reaproximar, vivendo em um clima de concórdia e
harmonia, pois Bilac concebia o exército como o braço armado da nação. Bilac argüia a
necessidade de militarização dos civis, como um antídoto contra o militarismo e a
supremacia de uma casta militar. Sobre isto assim se manifestava no discurso
pronunciado em 9 de outubro de 1915, na Faculdade de Direito de São Paulo:
Nunca fui, não sou, nem serei um militarista. E não tenho medo do
militarismo político. O melhor meio para combater a possível supremacia da
casta militar é justamente a militarização de todos os civis: a estratocracia é
impossível, quando todos os cidadãos são soldados. Que é o serviço militar
generalizado? É o triunfo completo da democracia: o nivelamento das
classes, a escola da ordem, da disciplina, da coesão; o laboratório da
dignidade própria e do patriotismo. É a instrução primária obrigatória; é a
educação cívica obrigatória; é o asseio obrigatório, a higiene obrigatória, a
regeneração muscular e psíquica obrigatória (Bilac, 1917, p. 7).
A vida no quartel, a caserna, apresentava-se como um espaço físico e social para
a recuperação e regeneração de homens animalizados, “sujos” e miseráveis, uma
concepção higienista desponta nesta passagem:
As cidades estão cheias de ociosos descalços, maltrapilhos, inimigos da
carta de “abc” e do banho, - animais brutos, que de homens têm apenas a
aparência e a maldade. Para esses rebotalhos da sociedade a caserna seria a
salvação. A caserna é um filtro admirável, que os homens se depuram e
apuram: dela saíram conscientes, dignos, brasileiros, esses infelizes sem
consciência, sem dignidade, sem pátria, que constituem a massa amorfa e
triste da nossa multidão (Bilac, 1917, p.7).
30
Em toda sua pregação nacionalista Olavo Bilac enfatizava a necessidade da
defesa nacional. A defesa seria um imperativo da própria existência, vista como uma
luta incessante, um combate sem tréguas: “Quem quer viver defende-se. Que é a vida,
senão um constante combate? Todo organismo, que não se defende, enfraquece-se e
elimina-se (Bilac, 1917, p. 128).”
Se no mundo biológico é indispensável a defesa, pois a vida é luta, o mesmo
ocorreria no mundo social. Bilac5, seguindo uma série de pensadores da época, traça um
paralelo entre o organismo biológico e o organismo social.
Para
a
defesa
da
nação era fundamental o papel do exército:
Agora, o nosso exército será, não uma escola de violência ofensiva, mas
uma escola de consciência defensiva, de paz altiva, e de civismo. E, aqui,
ainda são mais necessárias, e ainda mais rigorosas devem ser as virtudes do
oficial. No quartel, o oficial deve ser como o professor na escola primária:
um sacerdote, um diretor de inteligência e de caráteres (Bilac, 1917, p.103).
Todavia, a defesa da nacionalidade por meio das forças armadas, deveria ter um
caráter preventivo e defensivo. Para o pregador nacionalista, a nação brasileira não era
ameaçada por perigos iminentes e imediatos, mas por perigos latentes. O perigo externo
provinha da ação imperialista das grandes potências, que buscavam se apoderar das
nossas riquezas naturais e de nosso imenso território, o perigo interno estava na quebra
da unidade nacional e na fragmentação do país. Diante destas ameaças urgia defender o
patrimônio material e moral da pátria:
5
Vale lembrar aqui que Olavo Bilac estudou medicina no Rio de Janeiro, seu pai era médico. Entretanto,
o poeta largou o curso de medicina e foi estudar direito em São Paulo.
31
A nação não se arma unicamente para proteger a sua alimentação coletiva,
as suas searas, as suas usinas, os seus negócios, os seus gados, os seus
celeiros; arma-se também, para proteger o seu território, a sua possessão
material e moral, a memória dos seus maiores, a religião dos seus lares e dos
seus templos, as relíquias das suas tradições, o tesouro da sua língua e da sua
poesia, o culto do seu passado, o seu nome de nação (Bilac, 1917, p.129).
Como já ressaltamos anteriormente, Olavo Bilac denunciava o individualismo, o
egoísmo como um dos maiores males que afetam a nação. O patriotismo seria
justamente a antítese do individualismo. O homem é visto, pelo pregador nacionalista,
como um ser social, que potencializa suas virtudes e qualidades quando está integrado a
uma coletividade:
O verdadeiro patriotismo, o patriotismo que deveis compreender e cultivar,
é, antes de tudo, a renúncia do egoísmo. Nada valemos por nós,
individualmente. Valemos muito, e tudo, pela nossa comunhão. Todos
valemos, pelo bem que damos à Pátria.Os poetas, que lavram as almas, e os
políticos, que dirigem os povos, não valem mais do que os agricultores, que
aram a nossa terra, e os pastores, que guardam os nossos gados(Bilac, 1917,
p. 117).
Destaca-se nesta passagem uma concepção fortemente organicista da vida social,
onde cada ator, cada classe ou estamento cumpre uma função própria em benefício do
todo coletivo. O todo, a nação, surge como uma realidade mais alta, os indivíduos, as
partes devem sacrificar-se pela pátria, que é o valor supremo.
Bilac insurgia-se contra determinismos racialistas e geográficos, contrariando o
que argumentava boa parte dos intelectuais da época sobre a impossibilidade de uma
civilização superior em um país localizado nos trópicos, com clima quente e
miscigenação racial: “Insistamos. Não há homens irremediavelmente fracos, e não há
povos irremediavelmente fracos (Bilac, 1917, p.130).” De acordo com o poeta
32
parnasiano, todas as raças são boas para o trabalho e aptas intelectualmente, desde que,
se desse a elas as condições básicas para uma boa vida:
Dizem que no Brasil não pode viçar uma nacionalidade perfeita, porque não
temos uma raça já acabada e um clima excelente... Não acrediteis no que
dizem esses pobres professores de uma ciência falsa, maníacos do
fetichismo científico, que é mais ridículo e mais funesto do que o fanatismo
religioso. Essas invenções de influência de meio, clima, de raça, são todos
os dias desmentidas pela evidência dos fatos e dos acontecimentos (Bilac,
1917, p.131).
Afirma ainda no mesmo discurso, o caráter guerreiro e desbravador do mestiço e
a possibilidade de civilização em um país tropical como o Brasil:
Atendendo ao caso particular do Brasil, lembremos que foram os nossos
mestiços que, em grande parte, na época colonial, fizeram a exploração e a
defesa do território do país: e durante a época do Império, sustentaram com
a sua bravura e o seu sangue as terras do sul; e, ainda agora, estão
desbravando as regiões brutas do Acre... Podemos acreditar que esta mistura
de raças seja incapaz?Quanto ao clima, lembremos que as zonas tropical,
sub-tropical e temperada da Terra, em que está situado o território do Brasil,
são as mais aptas para o desenvolvimento e para a felicidade da espécie
humana(Bilac, 1917, p.131).
Coroando seu apostolado nacionalista é fundada em 7 de setembro de 1916 a
Liga da Defesa Nacional. Pedro Lessa6, Miguel Calmon7 e Olavo Bilac foram os
criadores desta organização8, cujas finalidades foram definidas no discurso de Bilac na
Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro em 7 de setembro de 1916, onde inicialmente foi
instalado o diretório central da Liga:
6
Jurista, político e professor nascido em Minas Gerais. Foi o primeiro ministro mulato do STF, nomeado
em 1907.
7
Deputado Federal, Senador, Ministro de Estado, engenheiro civil e escritor nascido na Bahia. Sobrinho
do marquês de Abrantes.
8
Na ata de fundação da Liga lavrada por Olavo Bilac, consta o nome dos fundadores dentre os quais
destacamos Wenceslau Braz, Rui Barbosa, Coelho Neto, João Pandiá Calógeras e general Caetano de
Farias.
33
[...] estimular o patriotismo consciente e coesivo; propagar a instrução
primária, profissional, militar e cívica; e defender: com a disciplina, o
trabalho; com a força, a paz; com a consciência, a liberdade; e, com o culto
do heroísmo, a dignificação da nossa história e a preparação de nosso porvir
(Bilac, 1917, p.76).
Os dois principais pontos do programa da Liga da Defesa Nacional eram o
serviço militar obrigatório9 e a educação cívica. Na esteira dos ideais patrióticas da Liga
da Defesa Nacional surgem outras organizações semelhantes. Em 1917 é criada a Liga
Nacionalista do Brasil com sede em São Paulo. O ideário da Liga Nacionalista se
aproximava com o programa da Liga da Defesa Nacional de Olavo Bilac.
Seguindo uma orientação ideológica semelhante, é criada em 1917 a revista
Brazílea. Álvaro Bomilcar e Arnaldo Damasceno foram os fundadores desta revista, que
foi o embrião para o surgimento de outra organização nacionalista a Propaganda
Nativista, criada em 1919. No ano de 1920 é fundada a Ação Social Nacionalista, que
publicava o panfleto Gil Blas. Esta organização unia ao nacionalismo o catolicismo, seu
lema era “Pela Brasilidade e Pelo Catolicismo” (Nagle, 1974). Em 1921 surge a revista
A Ordem e em 1922 é criado o Centro Dom Vital, sob a direção de Jackson de
Figueiredo. De alguma forma todas estas agremiações acabaram contribuindo para a
criação da Ação Integralista Brasileira de Plínio Salgado em 1932.
No que tange a questão do serviço militar no Brasil é preciso fazer aqui algumas
observações. Inicialmente, o serviço militar era uma atividade voltada às classes mais
baixas da população, sendo um dos únicos meios de ascensão social para esta parcela da
população brasileira. Havia, durante o império, o recrutamento forçado e o voluntariado.
O sorteio para o serviço militar surge através de uma lei de 1874, entretanto está lei não
9
O Decreto nº 58.222, de 19 de abril de 1966, institui Olavo Bilac como Patrono do Serviço Militar. O
Decreto - lei nº 1.908, de 26 de dezembro de 1939, instituiu o Dia do Reservista, comemorado no dia 16
de dezembro, data de nascimento de Olavo Bilac.
34
foi aplicada. Em 4 de janeiro de 1908, após muitas discussões foi aprovada a lei nº 1860
que “regula o alistamento e sorteio militar e reorganiza o exército” (Castro, 2006).
Porém, o primeiro sorteio só foi realizado em 10 de dezembro de 1916, com a presença
de Olavo Bilac, como ressalta Celso Castro (2006, p.5):
Apenas em 10 de dezembro de 1916, quase nove anos após a aprovação da
lei do sorteio militar, foi realizado o primeiro sorteio, no Quartel-General do
Exército, em solenidade aberta ao público a que compareceram o presidente
da República, o ministro da Guerra, o poeta Olavo Bilac e outras
autoridades. Quando o primeiro nome foi sorteado, de Alberto Garcia de
Maltas, do município de Santa Rita, todos gritaram vivas à República e ao
Exército. Foram sorteados 152 nomes para o primeiro grupo. Ao final o
ministro Caetano de Faria fez um discurso dizendo que a partir de então,
“ser soldado deixava de ser profissão para ser cumprimento de um dever
cívico.”
Apesar disso, uma série de problemas com o sorteio fez com que a questão do
serviço militar obrigatório só fosse resolvida nas décadas de 1930 e 1940, quando foram
tomadas uma série de medidas legais que exigiam o certificado de serviço militar para o
exercício de cargos públicos. Em 194510, o decreto-lei nº 7.343 extinguiu o sorteio
militar. Com este decreto, todos os brasileiros que cumprissem 21 anos deveriam se
apresentar para prestar o serviço militar, o jovem que não possuísse o documento militar
ficava impedido de ter carteira de identidade, passaporte e exercer cargos públicos
(Castro, 2006).
A Liga da Defesa Nacional na atualidade
Foi durante as décadas de 1930 e 1940 que a Liga da Defesa Nacional teve
maior influência na vida nacional. Em 1936, organizou o “Desfile da Mocidade e da
10
Em 1964 é promulgada a Lei do Serviço Militar válida até hoje. A Constituição Federal de 1988 em seu
artigo 143 determina a obrigatoriedade do serviço militar.
35
Raça”. Este evento foi criado pelo Ministério da Educação e Cultura, e era realizado no
Rio de Janeiro. Consistia basicamente de um desfile de jovens de escolas públicas e
particulares com idade entre os 11 e 18 anos. Os jovens desfilavam com o uniforme de
educação física, exibindo seus corpos sadios e atléticos, a cerimônia foi realizada por
dez anos na capital federal (Parada, 2006). Os desfiles das escolas de samba no Rio de
Janeiro também estiveram sob o controle da Liga, segundo Oliven (1983, p.115): “[...]
entre 1943 e 1945 os concursos oficiais de desfiles de escolas de samba são
patrocinados pela Liga de Defesa Nacional, estando a entrega de prêmios a cargo de um
general do Exército.”
A Liga da Defesa Nacional encontra-se atualmente espalhada por diversos
estados da federação. Possui como órgão central o diretório nacional com sede em
Brasília e diretorias estaduais no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Rio de
Janeiro, Ceará, Maranhão e Piauí. Possui ainda representações em São Paulo e
Amazonas. Há ainda os núcleos municipais da Liga.
O Presidente da República é o presidente de honra da Liga. Vale ressaltar que
boa parte dos membros é composta por militares. Os cargos exercidos são honoríficos,
sem qualquer tipo de remuneração. A Liga em nível federal, estadual e municipal não
pode envolver-se em pleitos político-partidários e adotar postura filosófica ou religiosa,
de acordo com dispositivo presente no estatuto da entidade.
O Decreto nº 67576, de 16 de novembro de 1970, declarou de utilidade pública
federal a Liga da Defesa Nacional, por seus serviços prestados à sociedade brasileira.
Um Decreto Federal de 7 de fevereiro de 1997 reafirmou o título de utilidade pública
federal a essa instituição.
36
O estatuto da Liga da Defesa Nacional define as principais diretrizes,
finalidades e objetivos desta organização. O artigo 2º do estatuto estabelece que cabe a
Liga defender a integridade territorial e a integridade nacional; promover a formação
moral da pessoa humana; valorizar a cultura nacional; difundir a educação cívica;
incentivar o estudo de nossa história e nossas tradições; incentivar a adoção de uma
bandeira nacional em cada escola, sindicato e entidade de classe; realizar anualmente a
corrida do fogo simbólico da pátria,dentre outras finalidades.
A Liga entrega anualmente ao cidadão ou organização que tenha se destacado
por seus serviços em prol da sociedade brasileira e na defesa de valores morais e
patrióticos, a medalha do mérito cívico que a partir do ano de 1999, por uma decisão do
conselho consultivo dessa entidade, começou a ser denominada ordem do mérito cívico.
Os símbolos da Liga são a bandeira nacional e o emblema de um cavaleiro medieval
com suas armas. Tal símbolo visa enfatizar o caráter militar e marcial da organização
em sua tarefa de defender a nação.
A principal atividade encabeçada e organizada pela Liga é a corrida do fogo
simbólico da pátria. Esta cerimônia cívica teve início em 1938, no estado do Rio Grande
do Sul. Nesta ocasião, a chama da pátria saiu da cidade de Viamão com destino a Porto
Alegre. Em 1945 o fogo simbólico da pátria saiu do cemitério de Pistoia na Itália, onde
se encontram sepultados os soldados brasileiros mortos na 2ª Guerra Mundial,
conduzido de avião até Natal, e desta cidade para Porto Alegre. No ano de 1972, quando
das festividades de comemoração do Sesquicentenário da Independência Nacional,
quatro chamas da pátria partiram de quatro regiões do país e uniram-se em uma única
chama, no dia 7 de setembro, no monumento do Ipiranga, em São Paulo. Na cidade do
37
Rio de Janeiro, a chama da pátria parte do Monumento aos Mortos da 2ª Guerra
Mundial, passando por diversas ruas e avenidas daquela cidade.
Na Praça dos Três Poderes em Brasília, há o Monumento da Pira da Pátria,
inaugurado em 1987, neste monumento a chama da pátria arde constantemente, sendo
erguido por proposta movida pela Liga. É lá que simbolicamente a chama da pátria é
transmitida para todo o país. Esta cerimônia cívica inicia-se com a recepção ao
Presidente da República ou seu representante. Neste momento as bandeiras dos estados
são desfraldadas e os archotes erguidos, é cantado o hino nacional, a seguir é feito o
colhimento do fogo na pira da pátria por um atleta representando o estado da Bahia, o
estado mais antigo de nosso país. O orador da Liga lê uma mensagem aos jovens, que
trata sobre o valor do patriotismo. O archote é levado pelo atleta ao Presidente da
República, ou alguém que o representa, que declara aberta a Semana da Pátria. O atleta
da Bahia acende o archote do atleta que representa o estado de Minas Gerais, pois é
neste estado que surgiram os ideais que conduziram a Independência, a seguir os atletas
da Bahia e de Minas Gerais acendem os archotes dos atletas que representam os outros
estados. Os archotes são erguidos e a bandeiras estaduais desfraldadas, em saudação à
pátria. Archotes e bandeiras retornam a posição inicial e é cantado o hino da
Independência. O Presidente da República, ou seu representante, retira-se de cena, com
as bandeiras desfraldas e os archotes erguidos, o governador do Distrito Federal assume
o comando da cerimônia, lhe é apresentado o fogo simbólico que é posteriormente
passado para os atletas que representam o Distrito Federal. Da Praça dos Três Poderes,
os atletas direcionam-se até suas cidades, quando o administrador regional recebe o
fogo simbólico.
38
A cerimônia de acendimento da pira do fogo simbólico da pátria segue um
rigoroso protocolo. Deve iniciar-se no dia 1º de setembro às 9 horas, findando no dia 7
de setembro às 18 horas. A pira ou archote deverá ser acesa com a luz do sol, por meio
de uma lupa ou através do círio de uma igreja, permanecendo constantemente acesa até
as 18 horas do dia 7 de setembro, quando será apagada. A cerimônia deve ocorrer em
um local espaçoso, que possibilite a colocação de um palanque e de um mastro para o
hasteamento da bandeira nacional. Inicialmente é feita a recepção da autoridade que irá
presidir a solenidade, em nível estadual a cerimônia será comanda pelo governador, no
município pelo prefeito. Em seguida é hasteada a bandeira nacional ao som do hino
nacional. A pira é acesa, é torna-se o fogo simbólico da pátria. Ato contínuo um atleta
portando um archote ardente dirige-se em frente da autoridade que preside o cerimonial,
dizendo: “Apresento a vossa excelência o fogo simbólico da pátria.” A autoridade então
diz: “Em nome do povo do (nome da localidade onde está sendo realizada a solenidade)
recebo o fogo simbólico da pátria.” É feita a leitura da mensagem da Liga ou uma
saudação cívica pela autoridade que encabeça o cerimonial, e a seguir é cantado o hino
da Independência. Terminada esta cerimônia o archote com o fogo simbólico da pátria é
transportado por atletas que dão início a corrida. A corrida deve ser realizada no período
das 8:00 às 18:00 horas, findando necessariamente no dia 7 de setembro. A pira da
pátria será protegida todo o tempo por uma guarda de honra, composta
preferencialmente por jovens.
Esta cerimônia se integra aos desfiles militares que ocorrem no Dia da Pátria.
Para DaMatta (1997), os desfiles militares do Dia da Pátria, são um ritual nacional, um
ritual de reforço da ordem, da estrutura e da hierarquia social. É um ritual diurno, claro,
que demarca os espaços de forma nítida, pois há o povo, que assiste ao desfile, separado
39
por um cordão de isolamento, os soldados que marcham na avenida, e as autoridades
civis e militares colocadas em um palanque. O foco do ritual é a celebração dos
símbolos nacionais.
Considerações finais
Boa parte dos escritos de Olavo Bilac inserem-se dentro da corrente do
nacionalismo ufanista. De acordo com Lúcia Lippi Oliveira (1997, p.187), o ufanismo
teve grande força intelectual nos primeiros anos do século XX. “Para esta corrente, a
nacionalidade é pensada não como resultado dos regimes políticos, mas sim como fruto
das condições naturais da terra.” Importante aqui destacar que a idealização de nossas
belezas naturais e da imensidão de nosso território, já é parte do imaginário social
brasileiro desde a época colonial, expressando aquilo que José Murilo de Carvalho
(1998) cunhou de motivo edênico. “A visão paradisíaca da terra começou com os
primeiros europeus que nela puseram o pé. Ela está presente já na carta de Caminha
(Carvalho, 1998, p. 1).” Entretanto, concluímos com esta exposição que os discursos
nacionalistas de Olavo Bilac, entre 1915 e 1916, centravam-se na questão do serviço
militar obrigatório e na necessidade de uma educação cívico-patriótica.
Para Bilac era
urgente reorganizar o país e fortalecê-lo, por meio do exército e de uma educação
fundamentada na transmissão dos valores nacionais. Defendia o poeta e pregador
nacionalista, a “nação em armas”, o “cidadão-soldado”. O forte ufanismo e o otimismo
naturalista presente em obras como Contos Pátrios, Através do Brasil e A Pátria e em
algumas de suas poesias foi suavizado, abrandado em sua pregação nacionalista. Bilac
pouco fala sobre a beleza de nossa natureza, a grandeza de nosso território, e demais
40
motivos edênicos em seus discursos. Constata que o país atravessa uma terrível crise,
que o povo é dominado pela apatia, o comodismo e o egoísmo e que desta forma se
fazia necessário uma reforma moral.
Um ponto que merece ser destacado no apostolado cívico de Bilac é o rechaço
que este intelectual tinha por teorias de teor racista e ambientalista. Para o pregador
nacionalista, o homem não era um produto da raça ou do meio geográfico, mas da
educação. Educação esta que não deveria cingir-se ao desenvolvimento intelectual, mas
também deveria basear-se no cultivo do corpo.
Os discursos patrióticos de Olavo Bilac redundaram na criação da Liga da
Defesa Nacional. Esta organização tem como base a defesa do patriotismo, possuindo
um estreito vínculo com as Forças Armadas, haja vista que boa parte de seus membros
são militares. A cerimônia do acendimento da pira da pátria e a corrida do fogo
simbólico da pátria, que ocorrem nas festividades da Semana da Pátria, são as principais
atividades patrocinadas atualmente por esta organização. Trata-se de um ritual cívico,
centrado no culto dos símbolos nacionais (DaMatta, 1997).
A guisa de conclusão pode-se afirmar que Olavo Bilac foi o típico intelectual
que Renato Ortiz (2003), define como mediador simbólico, responsável pela construção
de uma imagem da nação. “Se os intelectuais podem ser definidos como mediadores
simbólicos é porque eles confeccionam uma ligação entre o particular e o universal, o
singular e o global (Ortiz, 2003, p.139).” Os intelectuais, a maneira de Olavo Bilac,
Gilberto Freyre, Sílvio Romero e outros, são agentes fundamentais na criação da
identidade nacional. Além dos intelectuais, o Estado, os meios de comunicação de
massa e o sistema de ensino, bem como todo um aparato simbólico e litúrgico como o
41
hino nacional, a bandeira nacional, as cerimônias e festividades cívicas, são acionadas
para criar o “espírito nacional” e uniformizar a nação.
Referências
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1917.
CARVALHO, José Murilo de Carvalho. O Motivo Edênico no Imaginário Social Brasileiro.
Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 13, n. 38, Oct, 1998.
CASTRO, Celso. Insubmissos na Justiça Militar (1874-1945). Comunicação apresentada no
XII encontro regional de História da ANPUH-RJ, 2006. Disponível em:
http://www.rj.anpuh.org/Anais/2006/conferencias/Celso%20Castro.pdf. Acesso em 06/01/
2009.
DAMATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis: Para uma sociologia do dilema
brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
NAGLE, Jorge. Educação e Sociedade na Primeira República. São Paulo: EDUSP, 1974.
OLIVEIRA, Lúcia Lippi. A Questão Nacional na Primeira República. São Paulo: editora
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_____________. Questão Nacional na Primeira República. In: DA COSTA, Wilma Peres; DE
LORENZO, Helena Carvalho. (Orgs). A década de 1920 e as origens do Brasil moderno. São
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OLIVEN, Ruben. A Parte e o Todo: A diversidade cultural no Brasil-nação. Petrópolis:
Vozes, 2006.
42
_____________. A elaboração de símbolos nacionais na cultura brasileira. Revista de
Antropologia da USP, v. 26, 1983, p. 107-118.
ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira e Identidade Nacional. São Paulo: editora brasiliense,
2003.
PARADA, Maurício. Práticas Desportivas e Educação Física no Brasil sob o Estado Novo. In:
SANTOS, Ricardo Pinto dos; Silva, Francisco Teixeira da.(Orgs). Memória Social dos
Esportes, Vol. 2. São Paulo: Mauad, 2006. p. 155- 184.
43
Considerações acerca da globalização e do capitalismo atual
Considerations about globalization and capitalism today
Roseilda Maria da Silva1
Vilson Cesar Schenato2
Resumo: A tão falada “globalização” ou “mundialização” não é um fenômeno recente, mas que envolve
processos de (re) ordenação das relações econômicas, políticas e culturais enquanto instâncias interrelacionadas. É na articulação destas esferas em transformação, que podemos ver a globalização atual e
compreender que suas consequências são diversas. Destaca-se aqui o aprofundamento das desigualdades
entre ricos e pobres, entre países; a crise da política enquanto uma prática pública; a redefinição das
relações global-nacional-local e as consequências para as identidades culturais. Neste contexto, há
resistências que apresentam possibilidades emancipatórias.
Palavras-chave: Globalização. Capitalismo. Desigualdades. Resistências.
Abstract: The so-called "globalization" or "internationalization" is not a recent phenomenon, but it
involves processes for reordering of economic, political and cultural as interrelated. It is in the
articulation of these spheres in transformation, that we can see the current globalization and understand
that its consequences are different. We highlight here the deepening inequalities between rich and poor,
between countries, the crisis of politics as a public practice, the redefinition of relations global-nationallocal and the consequences for cultural identities. In this context, there are resistances exhibit that
emancipatory possibilities.
Key words: Globalization. Capitalism. Inequalities. Resistances.
Introdução
A mundialização ou globalização da economia não é um fenômeno novo, já se
processava certa integração desde o século XIV durante o mercantilismo, com a
exploração das colônias e o comércio transoceânico. Esse era o contexto de acumulação
primitiva do capital que se intensificou após a revolução francesa e, posteriormente,
com a revolução industrial entre os séculos XVIII e XIX. A gênese do modo de
1
Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Campina Grande – UFCG.
Doutorando e Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Campina Grande – UFCG.
Bolsista CAPES.
2
44
produção capitalista é caracterizada por processos violentos de expropriação dos
camponeses, artesões, corporações de ofício, produtores familiares, por meio da tomada
das terras, ou apropriando-se dos saberes dos produtores diretos, separando-os dos
meios de produzirem sua própria existência. Deste modo, um grande contingente de
trabalhadores “livres” se dirigiram para as cidades ficando disponíveis para “vender” o
seu trabalho em troca de um salário. A exploração crescente do proletariado urbano que
se formava, somada aos saques, pilhagens, especulações comerciais, tráficos de
trabalhadores escravos e exploração das colônias, possibilitou um acúmulo de riquezas
por parte da burguesia, que, por sua vez, reinvestiu na produção industrial.
Com a produção de mercadorias a burguesia industrial podia reproduzir de
forma expandida o capital, produzindo valores de troca por meio da extração da maisvalia absoluta e relativa do proletariado (MARX, [1867] 1982). Capital e trabalho eram
face de uma mesma moeda, se complementavam em uma unidade de contrários em que
os detentores dos meios de produção e do capital concentravam cada vez mais poder
econômico e político.
Articulada às mudanças sócio-econômicas, processava-se a mudança das idéias,
crenças, visões de mundo, um ethos que interferia no curso histórico do capitalismo,
favorecendo ainda mais o seu desenvolvimento. A ética protestante combinava com o
novo homem capitalista, na condução dos seus negócios ou no disciplinamento dos
trabalhadores, ao fornecer um quadro referencial de valores, tais como: poupança,
vocação, disciplina ascética, austeridade, amor ao trabalho, etc. orientando assim os
comportamentos dos indivíduos, (capitalistas ou trabalhadores) em uma nova
mentalidade, um novo estilo de vida que se contrapunha à atitude de renúncia da vida e
de contemplação contida no catolicismo (WEBER, 1985).
45
A cultura interferiu nos comportamentos individuais e na esfera econômica e
vice-versa. Tanto cultura como economia estão inter-relacionadas, de modo que, é
possível falar em relações dialéticas entre as mesmas e nunca em determinismos. Essa
influência mútua das instâncias econômicas, culturais e políticas, são próprias da era
industrial e vamos ver isso claramente com o fordismo que irá se constituir em um
modo de vida para a sociedade como um todo, extrapolando a esfera da produção
econômica.
No Manifesto Comunista Karl Marx e Frederich Engels já enfatizavam as
tendências globalizantes do capitalismo devido à acumulação ininterrupta de capital,
onde “a necessidade de mercados cada vez mais extensos para seus produtos impele a
burguesia para todo o globo terrestre. Ela deve estabelecer-se em toda a parte, instalarse em toda parte, criar vínculos em toda parte” (Marx & Engels, [1848], 2002 p. 49). E
longe de configurar relações estáveis de produção, o capitalismo desde sua gênese é um
eterno revolucionar-se a partir da “destruição criativa” permanente, da qual faz parte as
próprias crises. Estas seriam evidências claras de que a criatura fugia do controle de
seus criadores.
As crises periódicas de outrora, atualmente se fazem cada vez em intervalos
menores, são mais intensas e causam danos muito maiores a todos. Segundo a teoria
marxiana, era em meio a estas crises de sobre-acumulação e o acirramento da luta de
classes que os trabalhadores organizados poderiam por meio da revolta coletiva, destruir
o capitalismo na esperança de criar uma sociedade sob bases mais horizontais.
No entanto, não foi o que ocorreu, houve tentativas como a Revolução Russa de
1917 e ainda no século XX após as duas grandes guerras mundiais e várias crises
46
enfrentadas pelo sistema capitalista, o globo encontrava-se dividido entre o bloco
soviético, formado por países com socialismo real3 e o bloco capitalista comandado pela
hegemonia imperial dos EUA.
Nos dois tipos de sociedades industriais (ARON, 1981) predominava a
burocratização, a racionalização, a hierarquia rígida das instituições sociais em geral,
refletindo o modelo de organização das fábricas com as linhas de produção em série
articuladas com o consumo de ‘massas’. A vida dos indivíduos e dos grupos era
organizada a “longo prazo”, segundo a lógica da estabilidade, da durabilidade no tempo
e no espaço. Tanto os empregos assalariados permitiam planejar uma vida toda, como
os bens de consumo possuíam uma vida útil que atravessava gerações.
1. Da acumulação rígida à acumulação flexível
Foi nesse contexto que nos países centrais se desenvolveu o fordismo, ainda
caracterizado pela manutenção do controle político sobre o trabalhador do taylorismo,
em que o trabalhador expropriado do seu saber/poder lhe restava executar tarefas “úteis”
de forma fragmentária e rotinizada. Nesse modelo, a maquinaria, a linha de montagem é
que dava o ritmo da produção, intensificando ainda mais a extração da mais-valia
relativa. Tal controle não se limitava ao espaço da fábrica, mas chegava a outras esferas
da vida do trabalhador.
O estilo de vida da “massa” de trabalhadores assalariados era norteado pela
produção e consumo de massas, o pleno emprego, os salários estáveis e com poder de
compra eram, ao mesmo tempo, meio de propagar que o capitalismo era “superior” ao
comunismo. Tal conjuntura, só foi possível devido às lutas históricas dos trabalhadores,
resultando em avanços nas legislações trabalhistas e regulamentação da proteção social.
3
Em alguns países o socialismo era de uma realidade “dura” que soava mais como totalitarismos.
47
São entre 1945-1973 que o fordismo casado com o keneysianismo promoverá
forte crescimento e expansão da economia capitalista. O medo do comunismo forjava
um controle maior sobre os sindicatos operários, que eram obrigados a fazer acordos e
negociações salariais aceitando a disciplina de trabalho fordista. Entre capital e trabalho
se colocava um terceiro ator sempre presente neste período: o Estado; que influenciava
nos acordos salariais e nos direitos trabalhistas. Tal ator era capaz de intervir por meio
de políticas fiscais, monetárias, investimentos em infra-estrutura para produção e
consumo; seguridade social, assistência médica, educação, habitação etc. Era o chamado
Estado de bem-estar-social (HARVEY, 1992).
Um novo internacionalismo neste período globalizou matérias-primas e produtos
baratos, além da criação de novas atividades no campo do turismo e das finanças. Nessa
época, os EUA era o “banqueiro do mundo” após o acordo de Bretton Woods em 1944
em que o dólar virou reserva cambial mundial, ao mesmo tempo a sua hegemonia era
mantida com a abertura de novos mercados em favor das transnacionais e
multinacionais (HARVEY, 1992).
Apesar do “bolo ter crescido” com o fordismo, ele não foi dividido para grande
parte das “massas” que, cada vez mais ficavam excluídas do acesso ao consumo. Foi no
auge do fordismo, que movimentos sociais e contraculturais demonstraram insatisfação
com relação à padronização da vida, das cidades, da cultura. Além disso, as lutas por
libertação nacional em diversos países, inflação, crise do petróleo, desvalorização do
dólar entre outros fatores vão colocar em cheque o fordismo.
De 1965 a 1973 houve uma rigidez de investimentos de capitais fixos na
produção em massa, impedindo a flexibilidade de planejamento, tal rigidez se alastrava
48
no mercado, na alocação e contratos de trabalho. Ao mesmo tempo, a classe
trabalhadora resistia à flexibilização. Isso fez com que o fordismo / keynesianismo fosse
incapaz de dar conta das contradições do capitalismo, devido a um acordo de contrários
que evitava a expansão do capital. A crise gerou deflação que interferiu na organização
do trabalho, ocasionando a intensificação da automação e o surgimento de novos
mercados, etc.
O EUA, nesse período, adota uma política monetária frouxa, sob uma forte
inflação no mundo capitalista acaba gerando uma crise nos mercados imobiliários e nas
instituições financeiras. O petróleo fica mais caro devido à decisão da OPEP
(Organização dos Países Exportadores de Petróleo) em favor dos árabes já em 1973.
Deste mesmo ano até 1975 há uma forte deflação, que gera uma crise fiscal do Estado.
A solução encontrada era procurar acelerar o tempo de giro do capital, mas para isso era
preciso uma reestruturação produtiva e aumentar o controle sobre o trabalho, as
corporações passaram a buscar novas tecnologias, automação, novos mercados e
buscando mão de obra mais barata.
A crise de 1973 fez com que o compromisso fordista fosse pelos ares, iniciando
um conjunto de processos que levavam nas próximas décadas (1970 e 1980) a um novo
regime de acumulação, com novas formas de regulação política e social:
A acumulação flexível, como vou chamá-la, é marcada por um confronto
direto com a rigidez do fordismo. Ela se apóia na flexibilidade dos processos
de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo.
Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos,
novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e,
sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica
e organizacional (HARVEY, 1992, 140).
49
O novo regime de acumulação envolve a criação de postos de trabalho no setor
de serviços e ao mesmo tempo a industrialização de regiões novas, com baixo grau de
desenvolvimento. Ela envolve também a compressão tempo-espaço permitindo que as
decisões gerenciais sejam via satélite ou pelas novas tecnologias de informação. Exerce
um controle mais forte sobre o trabalho, que já enfraquecido pelas elevadas taxas de
desemprego dos anos anteriores e pela crise do poder sindical, permitiu a proliferação
de
contratos
flexíveis
de
trabalho,
trabalhos
informais,
temporários
e
as
subcontratações. Este é o tom do mercado de trabalho neste período até os dias atuais.
Nota-se no contexto histórico recente, um reavivamento de sistemas de trabalho
mais antigos, doméstico, artesanal, familiar (patriarcal) e paternalista, trabalho
doméstico, inserção massiva do trabalho feminino, juntamente com a subcontratação e
os pequenos negócios que são centrais no novo sistema de produção. Tais processos
estariam ligados ao solapamento da classe trabalhadora organizada em torno dos
sindicatos, já que a luta no interior da fábrica com o patrão é diferente da luta entre
familiares.
A produção flexível se dá em pequenos lotes, com redução da vida útil dos bens
de consumo, tal como no fordismo, o pós-fordismo orienta os estilos de vida das
pessoas, só que agora fica em voga o que é efêmero, a “obsolência programada”, a
moda, o espetáculo, a celebração da diferença, a mercatilização cultural. Tanto os
produtores como os consumidores agem no ritmo da aceleração da aceleração do
capital, ou seja, na velocidade ainda maior do giro da produção e do consumo, em nome
da expansão dos lucros capitalistas a “curto prazo”.
50
Apesar da aparência de desorganizado, por gerar muitas incertezas e
inseguranças para a maioria das pessoas, tal capitalismo de acordo com Harvey (1992)
está se tornando organizado, por meio do acesso à informação instantânea a nível
mundial, gerando espécies de “redes” de conhecimento técnico-científico por meio de
consultorias, reduzindo mais do que nunca o saber à mera mercadoria que pode gerar
inovações e, estas por sua vez, novos ganhos aos capitalista-investidores. O segundo
indício de que é uma reorganização do capitalismo é de que se desenvolve uma
completa reestruturação do sistema financeiro global com a emergência de imensos
poderes de coordenação financeira. A criação de um mercado global de ações, por meio
do intercâmbio de informações instantâneas, tornou possível a circulação veloz de
dinheiro, crédito, dívidas, moedas e de mercados futuros. Lucros estritamente
financeiros e sem vínculo com a produção real, o chamado dinheiro virtual, faz a
acumulação flexível se basear, em larga medida, no sistema financeiro, este, por sua
vez, torna-se o seu poder coordenador (HARVEY, 1992 p. 151- 152).
2. Globalização ideológica, neoliberalismo e desigualdades
A internalização das ideologias e o consentimento sempre foram mais eficazes
do que a repressão, na submissão dos interesses dos dominados ao dos dominantes. Por
meio do exercício hegemônico de poder dos países centrais, construíram-se consensos
de que a globalização era benéfica, com ela todos iriam “ganhar”. Porém, para isso era
preciso abrir as fronteiras e aceitar uma nova liberalização dos mercados e de fluxos de
capitais. Tais preceitos eram repetidos pelos organismos multilaterais (Banco Mundial,
FMI, OMC) em conjunto com os meios de comunicação de massa, transformando as
mentiras neoliberais repetidas, em verdades consentidas pelos governos e populações
51
dos países mais pobres4. Tentando fazer crer que os processos globalizantes são
inevitáveis, irreversíveis, unilaterais e irrecusáveis.
Tais orientações políticas para a economia, vieram em meados da década de
1980, de um consenso estabelecido pelos países mais ricos do globo, o “Consenso de
Washington”. Dali saiu um receituário neoliberal prescrevendo direcionamentos para a
economia mundial, tais como: privatizações, desregulamentações de direitos, “retirada”
do Estado da economia e do social (SOUZA SANTOS, 2005). Tal consenso econômico
neoliberal minimizou o papel do Estado na regulação da economia e subordinou-o aos
organismos multilaterais, sendo aplicado de maneira diversa em cada país capitalista
que aderiu ao mesmo.
Com o avanço da ciência e das tecnologias mais velozes, se tornou muito mais
fácil confundir os espíritos na compreensão dos fenômenos globais, que se apresentam
ideologicamente como benéficos, mas que estão fundados nos impérios da informação
distorcida, do “dinheiro em estado puro” consagrando o discurso do pensamento único
(M. SANTOS, 2006). É papel do intelectual crítico e dos “de baixo” (países pobres e
pessoas mais interessadas em um outro tipo de globalização) questionar o que está aí.
Para tanto, é preciso desconstruir os consensos vindos de cima, denunciando alguns
mitos.
Crenças míticas como: De que a globalização é o fim da história, e que devemos nos
render, pois não há mais porque resistir; mito de que a compreensão tempo-espaço é
para todos, quando na verdade, só é para aqueles que dominam os sistemas técnicos, ou
seja, as elites globais; mito de que o Estado seria mínimo, quando, na realidade, ele
continua forte para salvar o capital financeiro e contornar “crises” deixando de se
4
Inclusive o Brasil, nos dois governos de Fernando Henrique Cardoso.
52
responsabilizar pelo seres humanos, se ausentando das proteções e investimentos sociais
(M. SANTOS, 2006).
Atualmente, o processo de acumulação de capital, não se faz somente pela relação
capital-trabalho, e nem por intermédio do pagamento de um salário como na época de
Marx. O que vemos nos dias atuais é a articulação com processos anteriores, que não se
encaixavam nos tempos ‘modernos’, tais como o trabalho escravo, o trabalho
doméstico, em domicílio, com baixa tecnologia, informal e precário.
O capital se expande para as diversas instâncias da vida, a acumulação de capital
invade inclusive os direitos do cidadão, que é tido como um consumidor e deverá
comprar as mercadorias saúde, educação, previdência, água, transporte, etc.
Nem mesmo a atividade intelectual e a pesquisa científica saem ilesas. Se a ciência
sempre esteve atrelada ao desenvolvimento do capitalismo, agora mais do que nunca as
descobertas, criações e pesquisas estão subordinadas à lógica do capital, uma lógica
quantitativa, de ‘eficiência’ a “curto prazo”, que se orienta pela aplicabilidade do
conhecimento com fins lucrativos, acabando por cercear a reflexão desinteressada. Esta
última, mais do que nunca necessária para o entendimento da complexidade do mundo
atual, pensa também as possibilidades emancipatórias da humanidade.
2. 1 Consequências desumanas da globalização: as desigualdades sociais
O capitalismo segue um desenvolvimento desigual e combinado, sua lógica
excludente também é expandida, com um processo de “globalização das desigualdades
sociais”, onde para alguns, serem os “turistas”, ou parte da elite transnacional ou global
(BAUMAN, 1999), milhões acabam ficando na miséria e passando por privações. Tais
53
misérias humanas não se restringem aos aspectos econômicos, mas também morais,
éticos e civilizatórios.
Nessa “nova” desigualdade emerge uma nova classe capitalista transnacional,
que é responsável pela extração de uma “mais-valia universal”, possibilitada pela
unicidade da técnica e do tempo (M. SANTOS, 2006). Tal classe tem seus negócios
administrados por um setor de executivos, que fazem a ponte entre empresas
multinacionais, capital financeiro, elites locais e governantes do Estado. Essa nova
configuração das relações de poder gera desigualdades sociais tremendas, atingindo em
cheio os países da “periferia” do mundo. Há um aumento da desigualdade entre os
países pobres e ricos e uma “globalização da pobreza”:
Segundo o Relatório do Desenvolvimento humano do PNUD relativo a 1999, os
“20 % da população mundial a viver nos países mais ricos detinham, em 1997,
86% do produto bruto mundial, enquanto os 20% mais pobres detinham apenas
1%. Neste mesmo quinto mais rico concentravam-se 93,3% dos utilizadores da
internet. Nos últimos trinta anos a desigualdade na distribuição dos rendimentos
entre países aumentou dramaticamente. A diferença de rendimento entre o quinto
mais rico e o quinto mais pobre era, em 1960, de 30 para 1, em 1990, de 60 para
1 e, em 1997, de 74 para 1. As 200 pessoas mais ricas do mundo aumentaram
para mais do dobro a sua riqueza entre 1994 e 1998. Os valores dos três mais
ricos bilionários do mundo excedem a soma do produto interno bruto de todos os
países menos desenvolvidos do mundo onde vivem 600 milhões de pessoas
(SOUZA SANTOS, 2005 p. 34).
Resta ver em termos mais atuais como está a situação. A desigualdade ampliou
em 2006 segundo um relatório da ONU, afirmando que, os 2% dos adultos ricos
possuem mais da metade da riqueza global. Sendo que, 90% do total da riqueza mundial
estão nas mãos de moradores da América do Norte, da Europa e de países com renda
alta na Ásia e no pacífico5.
5
Fonte: Jornal O Globo (Economia) 05/12/2006.
54
Enquanto os pobres no consenso neoliberal sofreram com a redução de salários,
de direitos, de poder aquisitivo, ao mesmo tempo, a figura de consumidor substituiu a
de cidadão. E, os pobres, no máximo, são alvos de políticas compensatórias que não
eliminam a exclusão. Tal situação deixou um “mal-estar-social” ainda maior com as
propagandas incessantes, incentivando todos a um consumismo exacerbado.
Os avanços da tecnologia e da ciência tornam-se elementos-chave para o
estímulo à inovação dos sistemas produtivos, consoante com a lógica de produção e
consumo de “curto prazo”, diminuindo o tempo de giro de capitais e ampliando os
lucros e acúmulo de riquezas. Os atores hegemônicos são “globalizados” e podem se
movimentar livremente pelo globo, tal quais os capitais voláteis que possuem.
Enquanto, a pobreza cresce em escala global, e os trabalhadores, pobres,
marginalizados, sem dinheiro e nem poder, ficam “localizados”, vivendo de maneira
precária, privados da tal “liberdade” de movimento, até que sejam expulsos,
descartados, deslocados para outros lugares (BAUMAN, 1999).
Para os ideólogos defensores dos benefícios da globalização, ela só traria
integração entre os povos, superação das identidades locais e dos particularismos rumo
a uma civilização universal, no entanto, o que se vê é a destruição das economias de
subsistência, o desemprego em massa, migrações forçadas, refugiados da guerra e da
fome. Tais pessoas “deslocadas”, nem sempre são bem vindas em seus destinos, com o
reaparecimento de atitudes xenófobas, preconceituosas, racistas e fundamentalistas em
diversas partes do mundo com relação ao “outro”, que vira bode expiatório dos grupos
de extrema direita.
55
A expansão geográfica do capitalismo para territórios não-capitalistas cria a
expectativa para os atores hegemônicos de que eles gerem novos investimentos e
consumos, impulsionando de forma renovada a acumulação interminável de capital
(HARVEY, 2009). Paralelo a isso, há a criação de um exército industrial de reserva
mundial, mantendo os rendimentos dos trabalhadores baixos. Sendo assim o “novo”
capitalismo se utiliza da exclusão como ameaça aos que estão “incluídos” de forma
precária, e passa a re-incluir sob seus termos, em um tempo futuro, os trabalhadores que
foram excluídos no passado, que se “reciclaram” e estão “aptos” a se acotovelar nas
disputas pelos escassos postos de trabalho.
3. Espoliação, especulação financeira e crise da política
Uma das causas do agravamento das desigualdades sociais pode ser encontrada
nos processos violentos de espoliação na reprodução expandida do capital a nível
global. Tais processos se assemelham a acumulação primitiva de capital estudada por
Marx em que o roubo aos “vencidos” era uma prática embrionária do capitalismo.
A acumulação com base na fraude, violência e pilhagem para Harvey (2009),
não é somente uma etapa originária do capitalismo ou como para Rosa Luxemburgo,
“exterior” ao capitalismo, fazendo-se presente nos dias de hoje. A acumulação primitiva
inclui entre outras atividades a mercadificação e privatização da terra; a expulsão
violenta de populações camponesas; a conversão de várias formas de direitos de
propriedade comum, coletiva do Estado em propriedade privada; a extinção dos direitos
dos camponeses às terras (HARVEY, 2009). Inclui ainda a privatização da água; a
destruição de formas alternativas de produção e consumo; substituição da agricultura
familiar pelo agronegócio; “ressurgimento” do trabalho escravo, etc.
56
Tais processos de acumulação por espoliação, estão aprimorados nos dias de
hoje, são mais fortes que no passado, com o capital financeiro ampliam-se a
especulação e a predação, através de fraudes e enriquecimentos ilícitos. A acumulação
por espoliação na atualidade está também na: pilhagem de materiais genéticos
(sementes); destruição de recursos ambientais globais; mercadorização da cultura, da
história e da criatividade intelectual; privatizações de estatais, da saúde, educação, perda
dos direitos trabalhistas. Tais situações permitem que o capital sobreacumulado se
aproprie de ativos liberados pela espoliação, desta maneira, contorne as crises e de
prosseguimento para a sua reprodução de forma ampliada (HARVEY, 2009 P. 118 130).
Marx nos ensinou que o sistema capitalista está organizado para a busca cada
vez mais crescente de extração de mais-valia e de lucro, daí se explica a origem do valor
e das desigualdades sociais de nossa época. Onde o valor de troca se sobrepôs ao valor
de uso (e ao auto-consumo), a produção de mercadorias torna-se essencial para o
sistema, o que gera periodicamente crises de superprodução, agravadas pela crescente
financeirização, onde os capitais se “libertam” da forma mercadoria e entram em um
circuito de acumulação ampliada de capital. Desta forma, constata-se uma hegemonia
dos capitais móveis que não se fixam em nenhum território e seguem o movimento da
especulação em escala mundial. São capitais que não possuem vínculo direto com a
produção, são virtuais, pois não se fundamentam no sistema produtivo.
O capital financeiro especulativo se descola do capital produtivo para tornar
cifras virtuais que se deslocam pelo globo na velocidade das mensagens instantâneas.
Tais dinamismos deixam as economias nacionais mais frágeis diante das crises em
escala mundial, desencadeadas por uma culminância de fatores, entre eles os ‘joguetes’
57
dos investidores buscando o lócus provisório mais rentável para as suas finanças, sem
criarem vínculos reais com o capital industrial-produtivo.
Com relação à intervenção estatal cabe destacar de acordo com Polanyi ([1947],
2000) que até para o mercado-auto-regulável se estabelecer houve (e ainda há)
intervenções periódicas por parte do Estado na economia. Atualmente, apesar da
autonomização da economia com relação à política (OLIVEIRA & MOREIRA, 2008),
há tentativas de contornar as crises do capitalismo, mas agora, entram também em cena
órgãos supra-estatais e grupos multilaterais formados principalmente por países centrais,
sob a hegemonia ainda dos EUA.
Para Karl Polanyi (2000, [1947]) o credo liberal e o próprio mercado ‘livre’ se
formaram com a subordinação da sociedade ao mercado e da política em prol do “livre
mercado”, com intervenções contínuas, por vezes controladas e centralizadas por parte
do Estado. Recentemente o Estado passou por um processo de desregulamentação que
ele mesmo orquestrou. Ou seja, “o retraimento do Estado não pode ser obtido senão
através de forte intervenção estatal. O Estado tem de intervir para deixar de intervir, ou
seja, tem de regular a sua própria desregulação” (SOUSA SANTOS, 2005 p. 38).
Os Estados nacionais continuam “fortes” principalmente em manter a “ordem” e
reprimir manifestações contrárias à mesma (BAUMAN, 1999). No entanto, se tornaram
reféns do império do dinheiro, da tirania do sistema financeiro que tentam impor suas
leis e preceitos para todo o planeta (M. SANTOS, 2006). Há uma substituição do
princípio de Estado pelo princípio de mercado, ampliando as assimetrias de poder em
favor dos países do centro e das empresas multinacionais em detrimento dos países
periféricos (SOUZA SANTOS, 2005). Deste modo, a globalização política fundamenta-
58
se em acordos políticos inter-estatais, e na inferiorização dos Estados-nação frente às
agências financeiras internacionais.
Está se processando uma interconexão cada vez maior do “globo” que implica em
rearticulações local-nacional-gobal. No entanto, não podemos afirmar que o mundo é
uma imensa rede horizontal, sem hierarquizações, em que não haveria mais um centro
de poder, como defende Castells (2006). O que há é o agravamento da polarização
centro-periferia, onde grande parte da capacidade decisória fica nas mãos dos macroatores globais e dos países centrais, envolvendo adaptações e resistências por parte dos
países do Sul do mundo e dos atores não hegemônicos.
Hoje em dia os Estados nacionais estão jogando com a lógica do capital global,
intervindo sempre que necessário em seu favor, enquanto o mesmo se movimenta
“livremente” de um território para outro. A simples ameaça de deixá-los gera uma
espécie de chantagem que os Estados-nacionais acabam cedendo e se adaptando às
exigências especulativas para evitar a “fuga” de capitais.
No interior das sociedades nacionais, há o enfraquecimento das ideologias
partidárias e de certa retraída nas discussões de projetos societários, havendo uma
tecnicização da política (OLIVERIRA & MOREIRA, 2008), na qual há o entendimento
de que o Estado deve ser “administrado” por agências ou pessoas com “competência”
técnica, nos moldes de gerenciamento de uma empresa privada, ou seja, eliminando
“custos”,
enxugando
a
“máquina”,
buscando
parcerias
público-privadas
e
compartilhando suas tarefas com as ONGS. Deste modo, até mesmo as políticas
públicas (elaboração, demanda, execução) são pensadas pela racionalidade de mercado,
exigindo-se dos atores sociais muito mais “capital” técnico do que político.
59
Isto porque, nas políticas governamentais, tal como nos negócios o que
predomina são as idéias de curto prazo, “as formas mais lentas e constantes de
crescimento ficam sob suspeitas. Súbitas guinadas de políticas em instituições
empresariais geram insegurança ontológica e ansiedade flutuante; o mesmo nas políticas
públicas” (SENNET, 2006).
Nesse contexto, a tendência é a Política realizada com debates públicos em espaços
igualmente públicos, ser sufocada pela emergência do privado espetacularizado. O
espaço público fica esvaziado, sendo ocupado no máximo por interesses estritamente
individuais que são postos lado a lado, mas nunca como interesses coletivos. A figura
do indivíduo-consumidor-espectador ocupa o lugar do cidadão. Se o último buscava o
seu bem-estar em conjunto com o bem-estar coletivo, o primeiro busca somente o seu
interesse próprio. Portanto, o privado passa a colonizar o público que é esvaziado de
questões públicas (BAUMAN, 2001). Assiste-se a uma expropriação do sonho de
exercício pleno da cidadania, com a perda dos direitos conquistados. No lugar do papel
de cidadão, é oferecido o de consumidor-espectador, onde até mesmo a política formal,
vira um “circo-mercado” no qual o melhor “palhaço-marketeiro” consegue divertir e
vender a sua imagem para os eleitores de plantão.
Se a economia conseguiu se divorciar da política, esta última após a separação
entrou em crise, deixando se dominar pela economia (política) de mercado, mas não
para torná-la auto-regulável e autônoma, mas para subordiná-la a uma política de
interesses individuais, de desresponsabilização do Estado, de abandono da
solidariedade, uma política muito mais orientada pelo consumo, do Estado de bemestar-de-si, da fragmentação aliada ao pensar único, que sufoca, mas não chega a matar
a política que tem por base o debate, o conflito e o dissenso.
60
4. Globalização, culturas e identidades
No período classificado como fordismo, a cultura exercia pressões
homogeneizantes nos indivíduos e grupos, por meio da indústria cultural, transformando
criações artísticas em geral, como quadros de pintores famosos, filmes, revistas,
novelas, músicas, bem como trabalhos intelectuais em mercadoria vendável e
padronizada para o consumo de massa. Mesmo assim, as pessoas demonstravam sua
capacidade reflexiva e de filtrar o que lhes era oferecido, recriando a partir dos seus
contextos próprios, tais “produtos” culturais6.
Atualmente, não há sentido em falar de uma padronização universal da cultura.
Ao invés da emergência de uma “globalização da cultura”, o que se percebe é que a
globalização produz tanto pressões homogeneizantes como diversidades culturais locais.
No momento atual da economia capitalista só é possível falar em “culturas globais
parciais” que são definidas como “globais” pelos atores hegemônicos, “que controlam a
agenda de dominação política sob o disfarce da globalização cultural” (SOUZA
SANTOS, 2005). O processo de globalização e seu sistema de desigualdades, na busca
por homogeneizar (americanizar), têm causado extensos efeitos diferenciadores no
interior das sociedades ou entre as mesmas. Para Hall (2005) está havendo uma
proliferação subalterna da diferença que ele denomina como um paradoxo da
globalização contemporânea onde, embora culturalmente, as coisas pareçam mais ou
menos semelhantes entre si, há, no entanto, a proliferação das diferenças.
6
Esse era um dos debates que ocupava a Escola de Frankfurt.
61
As culturas localizadas resistem a esse ou aquele artefato cultural que se tornou
hegemônico e pretende-se global. Na dialética entre universal e particular, local e
global, processam-se resistências e adaptações, hibridizações e re-elaborações culturais.
Pois a complexidade da globalização pode ser retratada enquanto:
(...) um universo de diversidades, desigualdades, tensões e antagonismos,
simultaneamente às articulações, associações e integrações regionais,
transancionais e globais. Trata-se de uma realidade nova, que integra, subsume
e recria singularidades, particularidades, indiossincrasias, nacionalismos,
provincianismos, etnicismos, identidades ou fundamentalismos. Ao mesmo
tempo se constitui e movimenta, a sociedade global subsume e tensiona uns e
outros: indivíduos, famílias, grupos e classes, nações e nacionalidades,
religiões e línguas, etnias e raças. As identidades reais e ilusórias baralham-se,
afirmam-se ou recriam-se (IANNI, 1999 P. 27).
Nessa teia de articulações, as identidades culturais são cotidianamente
construídas com relação às diferenças locais e translocais.
Para Bauman (2003), a identidade nasce em um momento de crise e queda da
comunidade local como interpretada por ele. Na comunidade a vida social está tão
homogeneamente organizada, que, sendo ela, o mesmo – uma condição coletiva- não há
que se questionar quem é o outro. O diferente, nesse caso, está “naturalmente” dado:
todos os que estão fora da comunidade.
Assim, é só quando a comunidade entra em colapso que pode emergir a
identidade. Sendo assim, é a necessidade de se definir em relação à diferença, que é,
outra vez, reivindicada para se falar em identidade. De acordo com o supra-citado autor,
o desenvolvimento tecnológico, especialmente o advento da informática, foi
responsável pela derrocada da comunidade (BAUMAN, 2003, p. 18).
62
A comunidade impede a emergência da identidade. Quando a segurança obtida
pelo acordo tácito que traz unidade para a comunidade é substituída pela necessidade da
construção de um acordo artificialmente produzido, é que se torna possível surgir a
identidade. Assim, esta pressupõe a idéia de diferença, quando “toda homogeneidade
deve ser pinçada de uma massa confusa e variada por via de seleção, separação e
exclusão...” (BAUMAN, 2003, p. 19).
No entanto, o “outro” no capitalismo desde a colonização ou na própria
revolução industrial foi subjugado, humilhado e sua cultura colocada em descrédito. O
que levou a um “vazio cultural”, a desenraizamentos e novos enraizamentos, novas
territorializações (POLANYI, 2000 [1947]). Apesar de haver resistências nesses
processos, houve também muito de subordinação e adaptação do seu ethos7, seu modo
de vida à lógica do capital.
Na atualidade, a cultura do “outro” se tornou mais acessível sendo possível saber
sobre o modo de vida, as criações culturais, a maneira que vêem e significam o mundo
de forma muito mais abrangente.
Os sistemas técnicos, atualmente, possibilitam um abrangente “conhecimento do
mundo”, mas que nem sempre é acessível a todos (MILTON SANTOS). Poderia ser um
instrumento eficaz de aprendizado mútuo e de integração real entre os diferentes povos,
mas conforme a maneira que é utilizada (e a mídia faz muito isso) faz com que, ao
mesmo tempo em que saibamos de como as outras pessoas existem e vivem, torna-os
exóticos e acaba por reforçar o etnocentrismo ou então a insegurança ontológica, ao
7
A noção de ethos herdada da filosofia, é utilizada por vários autores e remete a ideia de uma ética
prática, um senso prático elaborado a partir de um “modo” ou “estilo” de vida específico. Para Bourdieu
(1983), seria a moral do grupo interiorizada pelo indivíduo, traduzindo-se nos valores em estado prático,
não-consciente, regendo a vida cotidiana.
63
questionar-se o própria maneira de ser e viver, gerando a dúvida da continuidade da
identidade no espaço-tempo.
A categoria de identidade no Ocidente é atualmente problemática, sendo a sua
historicidade questionada pela imediatez e pela intensidade das confrontações culturais
globais, que apontam para a produção de novas identidades (HALL, 2005, p. 84). A
globalização tem um efeito pluralizante, produzindo, de acordo com Hall (2005), uma
variedade de possibilidades e novas posições de identificação, tornando as identidades
mais posicionais, mais políticas, mais plurais e diversas, menos fixas, unificadas ou
trans-históricas, mas ainda relacionadas a lugares, embora que, múltiplos.
Através do conceito de “tradução”, Hall (2005) reflete sobre as pessoas que
pertencem a vários mundos culturais e que ao os assimilarem, passam a fazer parte de
todos, sem, necessariamente, estarem diretamente ligados a nenhum deles. De acordo
com o autor, esse tipo de identidade, diaspórica, formada pelas culturas híbridas, é um
dos vários tipos de identidade distintivamente novos produzidos na era da “modernidade
tardia”.
Estamos sempre em processo de formação cultural, sendo assim, a cultura não é
uma questão de ontologia, de ser, mas de se tornar. Nessa perspectiva, semelhança e
diferença só existem como um jogo, onde um está inscrito no outro. Nesse sentido,
segundo Hall (2003) não se pode apegar aos modelos fechados unitários e homogêneos
de pertencimento cultural, mas abarcar os processos mais amplos – o jogo da
semelhança e diferença que estão transformando a cultura no mundo inteiro.
64
Tais identidades e diferenças se integram e ao mesmo tempo tensionam com o
ethos do capitalismo que se pretende hegemônico por todo o globo. Ao estimular
comportamentos com base em um padrão de homem ideal.
Quem é esse “novo” homem do capitalismo? Um novo homem apequenado que
todos nós corremos o risco de nos tornar, como bem coloca Milton Santos (2006), um
homem que segue a espiritualidade do efêmero, volúvel, diluído, que não se apega a
nenhum lugar, não cria vínculos sociais duradouros, que está sempre pronto para partir,
para abandonar o que já conquistou, que está sempre atento a última moda, ao que dá
mais lucros, etc.
Seria essa a mentalidade, o ethos dos trabalhadores urbanos? Em partes
poderíamos dizer que sim, pois ali a fluidez atinge inclusive os empregos, fazendo com
que estes, escapem daqueles que os ocuparam, antes mesmo de criar laços sociais com
seus companheiros de trabalho. Além das cobranças por meio dos discursos
empresariais, da cultura organizacional das empresas que disseminam valores, crenças,
normas e hábitos que interferem nas maneiras de ser e de viver dos trabalhadores.
Se o trabalho no “capitalismo pesado”, com o fordismo, estava vinculado de
maneira complementar ao capital, e possuía horizontes no tempo de longo prazo e para
a vida toda fixados no mesmo espaço, da mesma fábrica, o que há atualmente são vidas
guiadas pela flexibilidade, com planos de curto prazo, imperando nesse jogo a incerteza,
pois as regras podem mudar repentinamente (BAUMAN, 1999). Com a falência do
Estado de bem-estar-social e com a nova mobilidade do capital, sua leveza se constitui
em nova técnica de poder, em desengajamento das redes sociais territiorializadas
65
(BAUMAN, 2001), permitindo escapar da alteridade, das negociações, acordos e
comprometimentos com os trabalhadores e com os Estados nacionais.
Nesse contexto, o homem que se valoriza é o que é “livre” de vínculos sociais, o
homem fluído está numa eterna busca pela aptidão, superando as normas, a rotina, não
havendo descansos entre sucessos momentâneos, acabando por fazer auto-cobranças
contínuas que geram também ansiedades constantes (BAUMAN, 2001).
É cada vez mais comum encontrarmos pessoas infelizes e compulsivas por mais
consumir, guiadas pelo princípio do prazer, pois a cultura do novo capitalismo atribui ao
consumo, significado de remédio para as incertezas e ansiedades perpétuas, pois as
mercadorias se transformam em “promessas de segurança” numa sociedade onde tudo
se compra. Inclusive as receitas para ser feliz.
O lema a ser seguido é “compre você mesmo” e exorcize seus medos e
fantasmas da insegurança (BAUMAN, 2001). Embora tais prescrições atinjam a todos,
elas são realizadas por uma pequena minoria no mundo, esta por sua vez compartilham
da “cultura do medo do ‘outro’” (aquele que fica à margem), para resolver isso foram
criados templos do consumo individual (shopping centers) “bem supervisionado,
apropriamente vigiado e guardado é uma ilha de ordem, livre de mendigos,
desocupados, assaltantes e traficantes” (BAUMAN, 2001 P. 114). Ou seja, a arte de
conviver com a diferença é substituída pela indiferença e intolerância aos “estranhos”,
isto também está ligado à decadência dos espaços públicos e de uma cultura política
privatista, onde a arte do diálogo, da negociação é substituída pelo desvio e a evasão,
pelo espetáculo das vidas privadas e pelo “faça você mesmo” divorciado do Estado.
66
Enfim, a cultura hegemônica do capitalismo é a do consumismo, do efêmero, do
presenteísmo de esquecimento fácil, sem passado, do medo do “outro”, da intolerância,
da violência sistêmica e cotidiana, da violência do dinheiro e da informação, da
desresponsabilização do Estado, do abandono da solidariedade, do individualismo e
competitividade elevada em escala global.
Mas como já observamos, tal cultura não se dissemina sem tensões e
resistências, que podem ser exemplificadas nas inúmeras iniciativas locais espalhadas
pelo mundo, que “visam criar ou manter espaços de sociabilidade de pequena escala,
comunitários assentes em relações face-a-face orientados para a auto-sustentabilidade e
regidos por lógicas cooperativas e participativas.” (SOUZA SANTOS, 2005 P. 72).
5. Considerações finais
A globalização ou mundialização, ao mesmo tempo em que mantém o
capitalismo, apresenta um conjunto de descontinuidades que denotam ser algo novo na
história mundial. Há recriações / reproduções de realidades sociais e elementos novos
que emergem da interconexão local-nacional-global. Tudo se movimenta e a mudança
constante é ritmada pela esfera econômica influenciando as instâncias política, cultural e
tecnológica. Nada ficando no lugar. Nem grupos, classes, empresas, estados, nações
culturas locais e específicas, todos são pressionados a se adaptarem ou serem
deslocados. No entanto, há também resistências, tensionamentos e reafirmações
identitárias e re-localizações.
O mundo parece ficar “menor”, com a diminuição das distâncias no tempo e no
espaço, isso gera um confronto com o “outro” contínuo, levando ao questionamento de
si pelos diversos “outros”. Tal diversidade tende a ser rearticulada pela alteridade
67
capitalista, que possui a hegemonia do processo e tenta subordinar outras formas de vida
ou incorporá-las à sua. No entanto, emerge culturas de resistência com espaços de
sociabilidade local, com certa liberdade em relação à lógica imperante, as populações
desses espaços, os pobres, os militantes anti-globalização, os militantes de causas
ambientais, camponesas, indígenas, feministas, de trabalhadores urbanos e rurais, etc.,
têm cada vez mais se utilizado da internet e de outros avanços tecnológicos para
articularem suas lutas para além dos seus espaços locais, promovendo debates e trocas
de experiências como nos Fóruns Sociais Mundiais. Embora a evidente diversidade de
interesse políticos envolvidos, estas iniciativas podem ser articuladas com a retomada da
consistência dos projetos nacionais, o fortalecimento das soberanias econômicopolíticas dos Estados-nações, e a não redução destes aos termos hegemônicos (como fez
a China e tem feito em alguma medida o Brasil, Venezuela e outros países da América
Latina) permitindo construir uma globalização contra-hegemônica sólida.
Por fim, apesar da crítica social e a sociologia não conseguirem dar conta da
velocidade das transformações atuais, elas se fazem mais do que nunca necessárias para
desmitificar, desconstruir os processos globalizadores, demonstrando que o sofrimento
humano não é fruto somente de causas individuais, e que a própria globalização é uma
grande construção da humanidade, podendo ser revertida em direção a sua
emancipação.
68
6.
Referências
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70
Ciências Políticas: Conteúdo Transversal aos Conhecimentos Básicos e Afins
Ministrados no Curso de Graduação em Ciências Contábeis
Political Science: Content Cross to Basics and Related Taught in the Graduate Course in
Accounting
Me. Solange Mendes Garcia1
Dr. José Moreira da Silva Neto2
Resumo. O presente estudo analisa como a disciplina de Ciências Políticas contribui na formação
profissional em um curso de Graduação em Ciências Contábeis ministrado na Universidade Federal de
Rondônia. Constatou-se a relevância do conteúdo de Ciências Políticas para o curso de Ciências
Contábeis, pois os fatos políticos interferem no cotidiano contábil já que resultam em implicações nas
questões econômicas, éticas e sociais, cenário de atuação dos profissionais da área.
Palavras-chave: Ciências Polítics; Ciências Contábeis; impactos econômicos.
Abstract. This study examines how the discipline of political science contributes to the training in a
graduate course in Accounting taught at the Federal University of Rondônia. It was noted the relevance of
the content of political science for the course in Accounting, because the facts interfere in the daily
accounting policy has implications that result in economic, ethical and social field of action of health
professionals.
Keywords: Political Science; accounting; economic impacts.
Introdução
Na conjuntura do conhecimento sobre os negócios e de políticas e controles sociais,
Romaniello e Amâncio (2005) argumentam que o crescente aumento da complexidade,
principalmente em decorrência do processo de rompimento de fronteiras internacionais,
de velocidade das inovações tecnológicas e de aumento das desigualdades sociais,
impõe às organizações uma nova maneira de trabalhar no mercado. Essa nova maneira,
por sua vez, depende da adoção de procedimentos de gestão e controle que lhes
1
Mestra do Programa de Pós Graduação Mestrado em Administração – PPGMAD - da Universidade
Federal de Rondônia. Endereço BR 364, Km 9,5, CEP: 76801-059 - Porto Velho – RO. Fone: (69)21822100, (69) 9258-8797. Contato: [email protected].
2
Professor Doutor do Programa de Pós Graduação Mestrado em Administração – PPGMAD - da
Universidade Federal de Rondônia. Endereço BR 364, Km 9,5, CEP: 76801-059 - Porto Velho – RO. Fone:
(69)2182-2100, (69) 9984-4348. Contato: [email protected].
71
garantam a condução dos negócios de maneira a tornarem-se parceiras e
corresponsáveis pelo desempenho ético e pelo desenvolvimento econômico e social.
E para que isso seja realidade no cenário das organizações, importa trabalhar a
contextualização de cenários nos cursos de graduação em negócios (nesta pesquisa
particularmente) o curso de Ciências Contábeis, pois é na academia que traçamos a
futura forma de portar dos profissionais que irão interferir nas tomadas de decisão. Essa
geração de profissionais necessita ter clara consciência da interligação de todas as
esferas, que nada é separado, tudo se inter-relaciona e se interconexa formando a
complexa teia que é o mundo globalizado e interdependente (Senge, 2004).
1. Objetivo da Pesquisa
No presente estudo busca-se compreender como a disciplina de Ciências
Políticas contribui com a formação profissional no curso de Graduação em Ciências
Contábeis, desenvolvido na Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Para tanto, foi
trabalhado a conscientização de interconexão junto aos alunos do quarto período de
Ciências Contábeis, no primeiro semestre de 2010, por meio de oficinas de estudo de
fatos de relevância nacional registrados em artigos publicados na Revista Veja, nos
últimos dez anos. Contextualizando cada fato político trazido pelos grupos a partir de
suas conseqüências éticas, econômicas ou sociais.
2. Desenvolvimento Textual
Segundo José Luiz Furtado prefaciando a obra de Azambuja (2008, p.11), a
política é uma dimensão essencial da vida humana. Aristóteles escreveu “O homem é
por natureza um animal político”. Tal afirmação não significa apenas a necessária
socialização da vida tendo em vista assegurar a proteção mútua dos indivíduos e a
cooperação no trabalho, porque isso também os animais podem fazê-lo. Dizer que o
72
homem é um animal político significa que, antes de ser uma associação econômicomilitar, a associação política, o Estado, é de natureza ético-jurídica. A finalidade da
política consiste em organizar a sociedade de tal modo que nela seja possível a cada
cidadão viver uma vida virtuosa e feliz e não apenas materialmente confortável.
Para Aristóteles (Edição publicada em 1998), a existência humana é
essencialmente política porque o homem é dotado não só de linguagem, mas
principalmente de logos. A linguagem não é a simples capacidade expressar
pensamentos, desejos ou sentimentos, ela é antes de tudo logos no sentido de
discernimento. Isto consiste, sobretudo, na capacidade de distinguir racionalmente o útil
do inútil, o bem do mal, o verdadeiro do falso, a justiça da injustiça e de chegar a um
consenso quanto a essas noções. Por essa via a política se dá como uma prática
racionalmente orientada para a construção e manutenção do bem comum.
Conforme Costa (2001, p.3), a política nasceu com a formação do Estado, com a
imposição de uma ordem assimétrica, baseada em leis e no seu uso coercitivo,
assegurando privilégios a poucos e trabalho para a maioria dos habitantes de um dado
território. E, com o Estado, nasceu a política, a forma de interpretar suas relações
internacionais e sua supremacia interna, bem como outros aspectos correlatos, todos
ligados à forma dele de se impor, através de leis escritas e da força das armas, se preciso
for, mas, de modo geral, através de consenso. Sobre a “expressão força das armas”, se
registra a necessidade de substituição, para uma expressão contemporânea de melhores
efeitos sociais, que é: “negociações – gerenciamento e controle de conflitos sociais”.
Conforme Weber (1998), a política é o reino do poder e da força; estes são os
instrumentos específicos de que dispõem os políticos, sendo o seu dilema ético quando e
de que forma usá-los e através de que mecanismos legitimá-los. As respostas a este
73
dilema, porém, não podem ser buscadas na consciência individual, pois as convicções
íntimas não chegam a se constituir em critério suficiente na política. Há que se
considerarem as prováveis consequências de uma determinada conduta política, ou seja,
o contexto e a inserção dos diferentes sujeitos políticos e do sujeito da ação nesse
contexto.
2.1. Ciência Política
Importa ressaltar, neste ponto, a contribuição dada por Machiavelli (1513), para
a formação da ciência política, pois conforme Costa (2001, p. 73), Maquiavel se afastou
dos tratados sistemáticos da escolástica medieval e instituiu as bases da nova ciência,
rompendo com o pensamento anterior, através da defesa do método da investigação
empírica. Maquiavel pretendia estudar a sociedade pela análise efetiva dos fatos
humanos, sem se emaranhar em especulações metafísicas. O objeto de suas reflexões
era a realidade política, pensada em termos de prática humana concreta, enquanto o
centro maior de seu interesse vinha a ser o fenômeno do poder formalizado na
instituição do Estado.
Segundo Lalande (1947) e Azambuja (2008), ciência é o conjunto de
conhecimentos e pesquisas com suficiente unidade e generalidade, capazes de levar a
conclusões concordantes, que não resultem de convenções arbitrárias, nem de gostos e
interesses individuais comuns, e sim de relações objetivas que se descobrem
gradualmente e são confirmadas por métodos definitivos de verificação. E, ciência
política é a ciência do Estado, conforme a própria etimologia da palavra “política”, que
vem do grego políticos, o que concerne ao Estado. É a ciência do governo dos Estados.
É o conhecimento de tudo que se relaciona com a arte de governar um Estado. E o seu
objeto é o poder político que se expressa por meio dos fatos políticos.
74
Para Bobbio (1987, p. 55), por ciência política entende-se uma investigação no
campo da vida política capaz de satisfazer a três condições: a) o princípio de verificação
ou de falsificação como critério da aceitabilidade dos seus resultados; b) o uso de
técnicas da razão que permitam dar uma explicação causal em sentido forte ou mesmo
em sentido fraco do fenômeno investigado; c) a abstenção ou abstinência de juízos de
valor, a assim chamada "avaloratividade”.
Bonavides (2000, p. 54) aduz que sem o conhecimento dos aspectos econômicos
em que se baseia a estrutura social, dificilmente se poderia chegar à compreensão dos
fenômenos políticos e das instituições pelas quais uma sociedade se governa. Reputa-se
pacífico o entendimento de cientistas políticos como Burdeau para reconhecer no fato
econômico “o fato fundamental de politização da sociedade”. Assinalando o grau
próximo de parentesco entre as disciplinas da ciência política e da economia, Burdeau
assevera que estão unidas por laços de “consangüinidade” e constituem uma única
ciência. O fato de a Economia Política haver transitado de sua velha acepção de ciência
das riquezas para a moderna acepção de ciência dos comportamentos econômicos, em
nada alterou a conexidade dos dois ramos, podendo-se, em verdade, passar da análise
econômica a uma política econômica, e da política econômica para uma ação política.
2.2. Fato Político
Para Burdeau (1964) e Azambuja (2008, p. 33), fato político é todo fato, ato ou
situação concernente à formação, estrutura ou atividade do poder do Estado. Para
Burdeau não há fatos políticos por si mesmos, por natureza. Qualquer fato pode tornarse político, muito embora não se possa negar que existam fatos que sempre serão
políticos, como exemplo, o Estado, um partido político, um Parlamento. Esses nunca
deixarão de ser políticos, ainda que possam ser vistos por outros aspectos.
75
Para Maquiavel (1513), política é a arte de conquistar, manter e exercer poder ou
governo. Seriam, portanto, os fatos políticos, os acontecimentos ou atos direcionados à
conquista, manutenção, exercício do poder, exercício do governo, e, também, os atos e
fatos direcionados à conquista do poder ou governo.
2.3 Acerca de Implicações Econômicas
Conforme Kumar (2008, p. 19), a economia teve duas origens, ambas
relacionadas à política, porém relacionadas de modos diversos, respectivamente
concernentes à "ética", de um lado, e ao que poderíamos denominar “engenharia” de
outro. A tradição ligada à ética remonta a Aristóteles. Logo no início de Ética a
Nicômaco, Aristóteles associa o tema da economia aos fins humanos, referindo-se à sua
preocupação com a riqueza. Ele considera a política “a arte mestra”. A política tem de
usar as demais ciências inclusive a economia.
O estudo da economia, embora relacionado imediatamente à busca da riqueza,
em um nível mais profundo está ligado a outros estudos, abrangendo a avaliação e
intensificação de objetivos mais básicos. Para Aristóteles (1998), a vida empenhada no
ganho é uma vida imposta, e a riqueza não é o bem que buscamos, sendo ela apenas útil
e no interesse de outra coisa. A economia relaciona-se ao estudo da ética e da política, e
esse ponto de vista é elaborado na Política de Aristóteles.
Sendo, pois, o objetivo maior da Economia, o bem comum. Todo fato político
deverá atender seu objetivo maior que é o bem da coletividade. Sendo esta apenas o
caminho para se chegar ao fim maior.
76
2.4 Acerca de Implicações Éticas
Segundo Moreira (1999), ética é o rol dos conceitos aplicáveis às ações
humanas, que fazem delas atitudes compatíveis com a concepção geral do bem e da
moral.
Conforme Cortina e Martinez (2005, p. 9), a ética é um tipo de saber normativo,
é um saber que pretende orientar as ações dos seres humanos. A moral também é um
saber que orienta para ação, contudo, a ética remonta à reflexão sobre as diferenças
morais e as diferentes maneiras de justificar racionalmente a vida moral, de modo que a
maneira da ética de orientar a ação é indireta, indica qual concepção moral é mais
razoável, para que, a partir dela, possamos orientar nossos comportamentos.
Na classificação aristotélica, os saberes práticos abarcavam a Ética, saber prático
destinado a orientar a tomada de decisões prudentes que nos levam a conseguir uma
vida boa, a Economia, saber prático encarregado da boa administração dos bens da casa
e da cidade e a Política, saber prático que tem por objeto o bom governo da polis.
Segundo Cortina e Martinez, frequentemente utiliza-se a palavra “ética” como
sinônimo do que chamamos de “moral”, esse conjunto de princípios, normas, preceitos
e valores que regem a vida dos povos e dos indivíduos. A palavra “ética” passou a
significar o caráter, o modo de ser que uma pessoa ou um grupo vai adquirindo ao longo
da vida.
Então, os termos “moral” e “ética” aparecem intercambiáveis em muitos
contextos cotidianos. Fala-se de uma atitude ética para designar uma atitude moralmente
correta segundo determinado código moral. Ou diz-se que um comportamento foi pouco
ético para designar que não se ajustou aos padrões habituais da moral vigente.
77
Weber (1974 como citado em Teixeira, 1999) diz que os valores políticos não
podem ser reduzidos a valores éticos; o universo da política não se confunde com o da
ética. Em um mundo concebido como uma totalidade hierarquizada, cada dimensão tem
uma ética particular que se integra ao todo, segundo uma cosmologia que atribui
preceitos distintos a inserções distintas (como ocorre, por exemplo, na ordem de castas
indiana e na doutrina de salvação cristã). Mas a ética no mundo moderno constitui-se a
partir de valores universalistas e igualitários, toma como referência o indivíduo e faz
exigências absolutas à sua consciência.
Para Teixeira (1999), ao contrário do que ocorre na esfera da ética, o dever
político tem como referência o indivíduo enquanto membro de uma coletividade
historicamente definida, e não o indivíduo como um valor em si. O político é um
indivíduo que vive e se move em configurações socioculturais específicas, em um duplo
sentido: por um lado, o que ele está disposto e inclinado a reconhecer como um
princípio de validade geral depende de suas próprias convicções íntimas e, estas, ele
adquiriu como participante em um determinado mundo; por outro, sua condição de
pertencimento leva-o a ter de responder por suas ações em face e a partir do grupo
social e cultural em que se insere. A política constitui-se, assim, sobre valores
particularistas, mas, ao mesmo tempo, não pode abdicar de preceitos éticos, na medida
em que engendra deveres e virtudes que, se específicos a essa esfera, nela se pretendem
valores universalizáveis.
Para Weber, a especificidade do dever político está no exercício ponderado da
responsabilidade, entendida como capacidade de agir e de responder pela retidão e
eficiência da conduta em situações concretas. Seria, portanto, inerente à própria
construção do sujeito político comprometer-se, no duplo sentido que esta ação
78
comporta: assumir compromisso e comprometer outrem. A condição de pertencer
mostra-se, assim, intrínseca à vida política.
2.5 Acerca de Implicações Sociais
Segundo Daft (1999), a responsabilidade social é a obrigação da administração
de tomar decisões e ações que irão contribuir para o bem-estar e os interesses da
sociedade e da organização.
O Instituto Ethos (2003) considera que a responsabilidade social vai além da
postura legal da empresa, da prática da filantropia ou do apoio à comunidade. Significa
mudança de atitude, numa perspectiva de gestão empresarial com foco na qualidade das
relações e na geração de valor para todos.
Segundo Romaniello e Amâncio (2005), a responsabilidade social empresarial
está entre as tendências mais importantes que influenciam a teoria e a prática da
administração neste início do novo milênio e está sendo, também, pauta de discussão
em várias organizações. Hoje, espera-se que as empresas ajam como os cidadãos
responsáveis e, cada vez mais, a sociedade está exigindo isso delas; que elas devolvam,
por meio de benefícios e boas ações, tudo o que elas utilizam a sociedade, como
matéria-prima e mão-de-obra, por exemplo.
Para os autores, a responsabilidade social é um modelo de gestão centralizado no
desenvolvimento social; uma empresa socialmente responsável é aquela que tem a
capacidade incorporar ao planejamento de suas atividades os interesses dos acionistas,
funcionários, prestadores de serviços, fornecedores, consumidores, comunidade,
governo e meio-ambiente, buscando atender às suas demandas.
79
Como conseqüência de uma orientação empresarial com responsabilidade social,
as empresas ganham confiança do mercado e esta confiança é uma grande vantagem
competitiva, pois organizações confiáveis atraem a lealdade à marca, o interesse dos
consumidores, a comunicação boca-a boca positiva, a lucratividade e a maior
participação no mercado (Romaniello e Amâncio, 2005).
No que se refere às implicações sociais na Administração Pública, convém
verificarmos a razão de ser do Estado, para Azambuja (2008, p.18), o Estado é uma
sociedade, pois se constitui essencialmente de um grupo de indivíduos unidos e
organizados permanentemente para realizar um objetivo comum. E se denomina
sociedade política, porque, tendo sua organização determinada por normas de direito
positivo, é hierarquizada na forma de governantes e governados e tem uma finalidade
própria, o bem público.
E será uma sociedade tanto mais perfeita quanto sua organização for mais
adequada ao fim visado e, quanto mais nítida for à consciência dos indivíduos a
representação desse objetivo, e a energia e a sinceridade com que a ele se dedicarem.
Na avaliação da realização social, Aristóteles relacionou-a a finalidade de
alcançar o bem para o homem, mas apontou algumas características especialmente
agregativas no exercício. “Ainda que valha a pena atingir esse fim para um homem
apenas, é mais admirável e mais divino atingi-lo para uma nação ou para cidadesestados” (Ética a Nicômaco, 2001, p.2).
2.6 Acerca de Implicações Contábeis
O objetivo da contabilidade e refletido - exposto por meio das suas mensurações,
evidenciações – demonstrações é fornecer informações sobre a posição patrimonial e
80
financeira, o desempenho e as mudanças na posição financeira da entidade, que sejam
úteis a um grande número de usuários em suas avaliações e tomadas de decisão
econômica.
As demonstrações contábeis atendem, portanto, às necessidades comuns da
maioria dos usuários. Entretanto, conforme o Comitê de Pronunciamentos Contábeis –
CPC 00 (R1/2011), pronunciamento conceitual básico sobre a estrutura conceitual para
elaboração e apresentação das demonstrações contábeis, elas não fornecem todas as
informações que os usuários possam necessitar, uma vez que elas retratam os efeitos
financeiros de acontecimentos passados e não incluem, necessariamente, informações
não financeiras.
Demonstrações contábeis também objetivam apresentar os resultados da atuação
da Administração na gestão da entidade e sua capacitação na prestação de contas quanto
aos recursos que lhe foram confiados. Aqueles usuários que desejam avaliar a atuação
ou prestação de contas da Administração fazem-no com a finalidade de estar em
condições de tomar decisões econômicas que podem incluir, por exemplo, manter ou
vender seus investimentos na entidade ou reeleger ou substituir a Administração.
As demonstrações contábeis e suas informações são constituídas por dois
pressupostos básicas: a) Regime de Competências - as demonstrações contábeis
preparadas pelo regime de competência informam aos usuários não somente sobre
transações passadas envolvendo o pagamento e recebimento de caixa ou outros recursos
financeiros, mas também sobre obrigações de pagamento no futuro e sobre recursos que
serão recebidos no futuro; e b) Continuidade – as demonstrações contábeis são
normalmente preparadas no pressuposto de que a entidade continuará em operação no
futuro previsível. Dessa forma, presume-se que a entidade não tem a intenção nem a
81
necessidade de entrar em liquidação, nem reduzir materialmente a escala das suas
operações; se tal intenção ou necessidade existir, as demonstrações contábeis terão que
ser preparadas numa base diferente e, nesse caso, tal base deverá ser divulgada.
Além dos pressupostos, as demonstrações – informações contábeis são
legitimadas por atributos de características qualitativas como: a) Compreensibilidade uma qualidade essencial das informações apresentadas nas demonstrações contábeis é
que elas sejam prontamente entendidas pelos usuários; b) Relevância – para serem úteis,
as informações devem ser relevantes às necessidades dos usuários na tomada de
decisões; c) Confiabilidade – para ser útil, a informação deve ser confiável, ou seja,
deve estar livre de erros ou vieses relevantes e representar adequadamente aquilo que se
propõe a representar; d) Comparabilidade – os usuários devem poder comparar as
demonstrações contábeis de uma entidade ao longo do tempo, a fim de identificar
tendências na sua posição patrimonial e financeira e no seu desempenho.
Portanto, a relação das Ciências Contábeis com as Ciências políticas,
primeiramente, deve impactar na conduta politizada do profissional de contabilidade e
posteriormente, refletir na clarificação e transparência do controle nas relações
econômicas e financeiras entre entidades políticas (partido político e atividades políticas
exercidas por entidade constituída juridicamente e/ou por desempenho econômico e
financeiro no exercício de cargos políticos) com entidades privadas, públicas e/ou civil.
Diante do exposto teórico apresentado, vislumbra-se que, todo ato ou fato
político deverá atender o bem comum (com ética, transparência e responsabilidade),
pois essa é a razão de existir da política, do Estado e das ações de governo.
82
3. Metodologia
Uma pesquisa científica pode ser classificada, segundo Siena (2009), em quatro
aspectos: quanto aos objetivos, quanto à forma de abordagem, quanto à natureza, e
quanto aos procedimentos adotados.
Quanto aos objetivos, o presente trabalho pode ser visto como pesquisa
exploratória, pois foi desenvolvido para obter maior familiaridade com o problema para
torná-lo explícito ou para construir hipóteses, e descritiva, pois objetiva a descrição das
características de certa população ou fenômeno e estabelecer relações entre variáveis.
Quanto à forma de abordagem, como qualitativa e seu escopo metodológico
orientou-se pelo conhecimento baseado na teoria contemporânea, o conhecimento de
fatos políticos nacionais publicados na Revista Veja nos últimos dez anos e a leitura
efetuada pelos alunos do quarto período do curso de graduação em Ciências Contábeis
acerca dos fatos políticos pesquisados.
Segundo Richardson (2007 como citado em Siena, 2009, p. 62), a pesquisa
qualitativa tem um processo de reflexão e análise da realidade através da utilização de
métodos e técnicas para compreensão detalhada do objeto de estudo em seu contexto
histórico e/ou segundo sua estruturação.
Quanto à natureza, como pesquisa aplicada, a geração de conhecimentos visando
aplicação prática, direcionados para a solução de problemas específicos.
Quanto aos procedimentos adotados, defini-se como de análise de conteúdo. O
tratamento dos fatos desenvolve-se em oficinas de estudos pelos discentes do quarto
período do curso de Ciências Contábeis da Universidade Federal de Rondônia no
primeiro semestre do ano de 2010. E para a categorização, levaram-se em consideração
83
as fases de análise descritas por Oliveira (2008), definindo-se em pré-análise;
codificação composta das unidades de: registro, contexto, construção de categorias e
análise categorial; e tratamento dos resultados: inferência e interpretação.
As oficinas de trabalho tiveram como finalidade propiciar condições básicas
para que o acadêmico fosse capaz de entender e analisar fatos políticos sob os aspectos
éticos, econômicos e sociais, utilizando a consciência da integralidade ambiental dos
fatos e suas conseqüências em todas as esferas: éticas, econômicas, sociais e políticas, a
fim de gerar decisões gerenciais conscientes da inter-relação de todas as matérias e
fatos.
Para instrumentalizar o procedimento foi elaborado quadro com os tópicos
unidade de registro, unidade de contexto, categorias dos trabalhos apresentados, análise
categorial e inferência.
Registra-se que todos os aspectos metodológicos aplicados, transcorreram-se na
aplicação da disciplina Noções Básicas de Ciências Políticas, para o Curso de Ciências
Contábeis da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), com carga horaria de quarenta
horas, cujos componentes principais do plano de aulas consistiam-se em:
 Objetivos: compreender e relacionar a ciência política com as demais
ciências sociais, principalmente, com as ciências: contábeis, administração,
jurídica e econômica; conhecer os principais fundamentos do estado,
governo e sociedade; compreender os conceitos: de ciência, de ciência
política e de filosofia política; identificar e relacionar os principais
componentes da ciência política no ambiente das ciências sociais; debater e
compreender aspectos formais e comportamentais dos sistemas eleitorais;
84
debater e compreender aspectos formais e comportamentais dos sistemas de
partidos e do partido político no Brasil; debater compreender aspectos
formais e comportamentais dos grupos de pressão e a tecnocracia; debater
compreender aspectos formais e comportamentais da opinião pública;
debater compreender aspectos e possibilidades da política (ideias para a
reforma democrática do Estado); e associar os conceitos e aspectos formais
e comportamentais da ciência política ao perfil do cidadão–profissional de
contabilidade, frente às inovações e transformações no saber contábil;
 Ementário: Estado, Poder, Governo: estudo do Estado, o Estado e o poder,
o fundamento do poder, Estado e direito, as formas de governo, as formas
de Estado, o fim do Estado, a democracia na teoria das formas de governo, a
democracia dos modernos; conceito de ciência e o conceito de ciência
política; a ciência política e as demais ciências sociais: ciência política e o
direito, ciência política e a economia, ciência política e a administração,
ciência política e a contabilidade (estrutura conceitual para elaboração e
apresentação das demonstrações contábeis), a sociologia política – uma
nova ameaça à ciência política; sistemas eleitorais; os sistemas de partidos –
o partido político no Brasil; os grupos de pressão e a tecnocracia; a opinião
pública; as possibilidades da política: ideias para a reforma democrática do
Estado; o profissional de contabilidade e a interfase com a ciência política;
 Estratégias: aulas expositivas; estudos dirigidos; pesquisas orientadas;
simulações e oficinas empíricas; seminários – workshops.
85
4. Análise dos Dados e Resultados
Após a realização de oficinas de estudos pelos discentes do quarto período de
Ciências Contábeis no primeiro semestre do ano de 2010, constatou-se a relevância do
conteúdo de Ciências Políticas para os cursos de negócios, pois as decisões interferem
no cotidiano da profissão e resultam em implicações nas questões econômicas, éticas e
sociais, cenário de atuação dos profissionais.
As oficinas tiveram como tema, diversos cenários de atuação política. Consoante
às etapas da análise de conteúdo descritas por Oliveira (2008), na categoria das
implicações éticas, econômicas e sociais de fatos políticos, o tema mais marcante, que
foi objeto de quatro das sete oficinas realizadas, foi o fenômeno da corrupção no Brasil.
Foi trazido a lume: 1) esquema de corrupção que adiantava o pagamento de
propina a parlamentares em 2006, 2) corrupção no governo do Distrito Federal em
2009, 3) corrupção no Senado e conivência do seu Conselho de Ética, em 2007, e 4)
propinas pagas regularmente a parlamentares na intenção de obter votos favoráveis nas
Casas Congressuais pelos representantes do Poder Executivo Federal em 2005.
Em todos os casos trazidos à colação, a conclusão foi que os fatos negativos
ligados à corrupção no Brasil afetaram a moralidade ética da classe política e geraram e
geram desajustes na economia pelo desvio de recursos destinados ao bem estar social,
que é o fim precípuo da política, consoante Aristóteles (1998).
Outro assunto registrado na mesma categoria foi à ação violenta promovida pelo
Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST) e a descoberta de materiais de
guerrilha urbana em seu poder, tendo como unidade de contexto a existência de ligação
de autoridades do Governo Federal com os líderes do Movimento, em 2009.
86
Na visão dos alunos, esse fato político afeta a moralidade ética brasileira pela
não aplicação da legislação e gera conseqüências econômicas por ameaçar as
propriedades privadas produtivas, desestabilizando o quadro social instituído na
aplicação das penalidades cabíveis. Para evitar maiores desastres e coibir a
disseminação da violência, o governo federal deveria utilizar as prerrogativas que lhe
confere a Constituição na aplicação das penalidades cabíveis.
Na categoria implicações econômicas de fatos políticos, o cenário foi o Estado
como órgão regulador da economia no caso da crise mundial das Bolsas de Valores
ocorrido em 2008. A conclusão dos alunos foi que o Estado brasileiro conseguiu atenuar
os efeitos da crise econômica, servindo como agente regulador da economia, fato que
afetou positivamente a economia brasileira conseguindo proporcionar o bem comum,
fim do Estado.
Outro fato registrado na categoria implicações econômicas de fatos políticos
foram os atritos gerados nas comunidades internacionais, no episódio em que Brasil e
Argentina se desentenderam quanto a atitudes de cada um dos países referente à
Comunidade do MERCOSUL, em 1999, quanto ao comércio entre esses países.
No entendimento dos alunos do quarto período que apresentaram o tema foi de
que ambos os países estavam ocupados apenas com suas próprias economias,
esquecendo o objetivo da existência do MERCOSUL que é a interação e facilitação
comercial para os países integrantes. Atitudes, essas, que afetaram a economia de ambos
os países e prejudicou a finalidade precípua da comunidade que é a facilitação do
comércio e serviços entre os países.
87
Conclusão
Ao término do presente, pode-se concluir que a disciplina de ciências políticas
encontra-se agregada intrinsecamente a todas as demais ciências e disciplinas, pois não
há como separar a organização da polis e a sua forma de agregar os seres de sua
comunidade de forma compartimentada.
A política é o elemento agregador de tudo o que ocorre no Estado, de modo que
o profissional de ciências econômicas deve estar inteirado os acontecimentos políticos
no Estado Moderno, em âmbito mundial, haja vista a globalização do mercado e o que
ocorre hoje em ponto do globo afetará inevitavelmente as organizações, ambiente de
atuação desses profissionais.
Levando-se em consideração a necessidade do entendimento e análise de fatos
políticos e suas implicações econômicas, éticas e sociais conclui-se que o acadêmico de
Ciências Contábeis deve ter ampla percepção do que ocorre no seu entorno político,
econômico e social para desenvolver as atividades do seu labor tendo consciência da
interconexão de todos os temas de forma a proporcionar a assertividade na tomada de
decisão na organização.
O tema mais marcante foi o fenômeno da corrupção no Brasil e a conclusão foi
que os fatos ligados à corrupção afetam a moralidade ética da classe política e do povo
brasileiro, geram desajustes na economia pelo desvio de recursos destinados ao bem
estar social, que é o fim precípuo da política.
No atual cenário político-organizacional não mais cabem profissionais que
olham apenas o seu próprio ofício sem visão holística de todas as disciplinas que
compõem o cenário econômico mundial com suas implicações sociais, ambientais e
políticas.
88
Estar consciente da vida da polis é dever do profissional de negócios no
exercício de sua atividade, pois proceder à decisão negocial sem considerar o contexto
político geram decisões desconectadas da realidade negocial o que não contribuirá com
a construção de organizações saudáveis para o atual contexto político mundial.
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90
O Ambientalismo em Sergipe após a criação da Lei do terceiro setor- Uma análise das
ONGs e OSCIPs entre 1999 e 2011
Environmentalism in Sergipe after the creation of the Third Sector Law-An analysis of NGOs
and OSCIPs between 1999 and 2011
Matheus Pereira Mattos Felizola1
Fernando Bastos Costa2
Resumo: A pesquisa teve por objetivo principal estudar o surgimento, o papel, e as possibilidades de
reivindicação dos movimentos ambientalistas sergipanos, perpassando por uma análise entre o período de
1999 e 2011. Os procedimentos metodológicos focaram a pesquisa bibliográfica, análise detalhada de
nove “movimentos” selecionados e entrevistas em profundidade, semi-estruturadas, com atores sociais
ligados ao tema. Como conclusão, observou-se que muito mais importante do que a cooptação de alguns
poucos personagens, foi a desmotivação que afugentou alguns da luta, das tentativas frustradas de buscar
uma carreira política de outros, da ineficiência organizacional que não permitia ações mais ousadas e que
embora tenha existido uma certa “profissionalização” das ONGS, esse trabalho não teve qualquer ligação
com a efetividade da luta ambiental em Sergipe.
Palavras-chave: ambientalismo; novos movimentos sociais; ONGs; OSCIPs
Abstract: The research was aimed at studying the emergence, role, and potential environmental
movements Sergipeans claim, the article provides an analysis of the period between 1999 and 2011. The
methodological procedures focused on the literature, detailed analysis of nine "movements" and selected
in-depth interviews, semi-structured interviews with social actors linked to the theme. In conclusion, we
found that much more important than the cooption of a few characters, was the motivation that drove
away some of the fight, the unsuccessful attempts to seek a political career of others, organizational
inefficiencies that did not allow that and bolder actions although there was a certain "professionalisation"
of NGOs that work had no connection with the effectiveness of environmental fight in Sergipe.
Key words: Environmentalism; new social movements; NGOs; OSCIPs
1
Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Professor Assistente da
Universidade Federal de Sergipe, e-mail: [email protected].
2
Doutor em Ciências Sociais, vinculado ao doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do
Rio Grande do Norte,e-mail: [email protected]
91
Introdução
Em 2002, a Organizações das Nações Unidas-ONU convocou um novo encontro
sobre a temática ambiental na Conferência sobre o Meio Ambiente, realizada no Rio de
Janeiro em 1992. Esse evento teve o nome de Rio + 10, e foi realizado em
Johanesburgo, na África do Sul. Os países membros da ONU tinham como objetivo
avaliar o avanço realizado nesse período de dez anos, o relatório dos compromissos
firmados, os avanços realizados e uma análise geral do problema ambiental no mundo.
Nesse evento, também se pretendia discutir novas possibilidades para uma
reestruturação do formato de desenvolvimento sustentável aplicado e uma maneira mais
eficiente de administrar essa problemática. Os resultados do encontro foram bastante
desanimadores e a conferência terminou sem nenhuma grande estratégia para conter o
problema ambiental.
Após a decepção com a Rio +10, em Sergipe, várias mudanças aconteceram na
questão ambiental, novas ONGs surgiram com um enfoque mais voltado para a atuação
em demandas não atendidas pelo governo, despontam nesse período a ONG Viva
Estância,3 fundada em 2002, o Centro de Pesquisas e Estudos Científicos e Sociais
(CEPECS), 4 fundado em 2003 em Aracaju, a Organização Sócio-Cultural Amigos do
Turismo e do Meio Ambiente – OSCATMA/BC,5 fundada em 2003 na cidade de Barra
3
A Viva Estância foi fundada em maio de 2002 e qualificada pelo Ministério da Justiça como
organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) em 29/04/2003, sendo uma OSCIP
socioambiental com forte atuação na cidade de Estância.
4
Surgida em 2003 e formada por um grupo de jovens universitários de Sergipe, seria chamada depois de
Instituto Árvore, teve uma atuação irregular ao longo dos anos, com algumas ações isoladas ligadas ao
meio ambiente.
5
Fundada em 2003, na cidade da Barra dos Coqueiros (Litoral Norte de Sergipe), tem atuação voltada
para o Turismo e o Meio Ambiente.
92
dos Coqueiros, o movimento Ciclo Urbano6 e a Associação Desportiva, Cultural e
Ambiental do Robalo também designada pela sigla- ADCAR7, fundadas em 2007 na
cidade de Aracaju. Além dessas instituições que foram investigadas na pesquisa,
apareceram diversas outras que ganharam força no Estado. Ainda nessa década,
começaram as mudanças estratégicas do Partido Verde no Estado e foi nesse período
que o governo do Partido dos trabalhadores ganhou força no país e também
internamente no Estado de Sergipe, vencendo as eleições em uma série de cidades do
interior e na capital Aracaju, além de governar o Estado de Sergipe, desde 2002.
Os movimentos sociais, desde a década de 2000 no Brasil, passaram a vivenciar
o predomínio da política e das reformas estatais, fazendo emergir um novo campo de
luta de dominação, em que foram compartilhados poderes políticos e econômicos,
tratando de discutir as relações sociais, sob a ótica da lógica de mercado, e da
inviabilidade ou incapacidade do Estado em atender os anseios e desejos da população.
As manifestações surgidas nesse período, tiveram “eco” com as cobranças
internacionais pela resolução dos nossos conflitos ambientais. Sendo que essa pressão
internacional já era sentida, no final da década de 1980, com a morte do líder
seringueiro Chico Mendes8.
6
A Associação tem por finalidade promover a utilização da bicicleta, como também o uso de outras
formas de locomoção e transporte à propulsão humana, com integração ao transporte público motorizado,
fiscalizando-o e propondo melhorias em sua qualidade e eficiência na cidade de Aracaju.
7
Com um enfoque socioambiental, a ONG vem desenvolvendo ações voltadas para a principal Zona de
Expansão imobiliária e tem participação ativa na discussão do Plano Diretor em Aracaju.
8
Francisco Alves Mendes Filho, seringueiro desde criança, dedicou praticamente toda a sua vida à defesa
dos trabalhadores e povos da floresta, sendo agraciado com vários prêmios internacionais e responsável
por denúncias no Senado norte-americano e também no FMI, essas denúncias geraram um grande
impacto e Chico foi acusado de tentar atrapalhar o crescimento no Acre.Chico Mendes foi assassinado em
22 de dezembro de 1988. Dados colhidos no instituto Chico Mendes. No dia 22 de dezembro de 1990 em
matéria registrada no Jornal de Sergipe, o MOPEC (Movimento popular ligado ao meio ambiente) fez
uma manifestação em uma escola pública de Sergipe, para lembrar a morte do ambientalista brasileiro, foi
a única manifestação registrada em jornais proposta por ONGs no Estado de Sergipe.
93
Sinalizando desde o início, um afastamento do caráter da luta de classes,
fundamental segundo a ótica marxista, onde se configurava os movimentos sindicais em
torno do mundo do trabalho.
Essas mudanças em volta do verdadeiro sentido da luta de classes e da
emergência de conflitos culturais receberam da academia, a partir da década de 1970, o
nome de teoria dos “novos movimentos sociais”. É partindo desse contexto apresentado,
e após uma análise documental e bibliográfica, que se procurou fazer uma analogia
entre o comportamento em Sergipe e as tendências observadas em nível internacional e
nacional, no tocante à motivação e formação de movimentos ambientalistas, pois, até
então, pouco se sabia a respeito desses movimentos em Sergipe e sua força de influência
enquanto disseminadores das ideias de desenvolvimento sustentável e da conservação
ambiental.
Essa representação da problemática ambiental em Sergipe perpassou pelo
aprofundamento da literatura da sociologia ambiental nas últimas décadas, quando um
grupo de estudiosos (Beck 1997,1998; Dupuy 1980; Redclift 1987, 1997) começou a
perceber a dinâmica nas agendas internacionais de governo, investigando as
Organizações Não Governamentais, os próprios movimentos ambientais e também os
efeitos no mercado internacional e forçando” os setores empresariais a adentrarem na
temática. O trabalho em tela, surgiu a partir de um projeto “mãe” analisando o
ambientalismo em Sergipe, e teve como objetivo específico identificar a atuação das
organizações ambientais em Sergipe a partir da criação da Lei das Oscips que foi
fundamental para ‘profissionalização” das Ongs no estado.
94
2- Metodologia
2.2-Entrevista com grupo focal
Na percepção de Combessie (2004, p.51) “A entrevista de grupo substitui o face
a face por um grupo tal de discussão. Ela tem desafio teórico. Trata-se de recolher uma
“fala coletiva”, produzida na interação de grupo”. Em relação à necessidade de buscar
maiores informações de uma determinada organização, que na pesquisa tinha
importância fundamental, optou-se por fazer uma entrevista em grupo, envolvendo o
diretor de meio ambiente atual da Sociedade de Estudos múltiplos Semear, o senhor
José Waldson, a antiga diretora de meio ambiente e atual diretora de estudos múltiplos,
a senhora Danielle Dutra e um importante ambientalista sergipano que participou de
alguns projetos da Sociedade Semear e atualmente é Superintendente federal da
Aquicultura e Pesca, o senhor Omar Pinto Monteiro9.
A necessidade de analisar esse grupo de forma diferenciada foi para mensurar
uma posição do grupo uniforme e comparar a percepção do José Waldson, na visão
conflitante entre ser o diretor de uma OSCIP, extremamente importante para o meio
ambiente em Sergipe, e ao mesmo idealizador de outra ONG que assumiu desde 2007
um importante papel no tocante à conscientização da importância do ciclismo, enquanto
estratégia de mobilidade urbana, principalmente na cidade Aracaju.
Utilizou-se entrevistas semiestruturadas com registro ou não de gravação. A
entrevista com as lideranças foi baseada em um roteiro de entrevista previamente
9
Omar Pinto Monteiro teve participação decisiva na década de 2000 na construção da Rede de educação
ambiental de Sergipe, sendo responsável pela moderação do grupo, tendo sido assessor de Ana Lúcia,
deputada estadual pelo PT e uma importante liderança na área ambiental do Estado.
95
elaborado, mas que sofreu adaptações em cada entrevista realizada. Para alguns
entrevistados algumas perguntas foram suprimidas, quando o pesquisador já tinha
conhecimento dos dados, através de indagações anteriores, ou mesmo de trabalhos
realizados por outros investigadores.
2.2 - Fases da pesquisa
A pesquisa foi desenvolvida em sete etapas, previamente planejadas.
1ª etapa: Revisão bibliográfica: Consulta a fontes de dados secundárias. Conforme a
bibliografia proposta. Foi realizada uma análise crítica, visando caracterizar
conceitualmente os diversos temas relacionados à pesquisa, de acordo com os seguintes
sub-temas:
- Movimentos Sociais: Conceito, e diferenciação entre Velhos x Novos movimentos,
histórico da luta ambiental mundial e brasileira, movimentos ambientais no mundo e no
Brasil, movimentos ambientais em Sergipe, a evolução da comunicação dos
movimentos sociais e a administração de organizações não governamentais;
- mapeamento das manchetes jornalistas relacionadas ao movimento ambiental no
período considerado;
- investigação das principais lideranças do movimento ambiental.
2ª etapa: Mapeamento dos principais movimentos no período histórico de 12 anos (1999
até 2011).
3ª etapa: Consulta a fontes de dados primárias: Coleta de dados e materiais de pesquisa
em localidades onde existiram movimentos ambientais em Sergipe.
96
- Visitas ao espaço físico, entrevistas com as lideranças, participantes e autoridades que
foram partícipes do movimento.
4ª Etapa: Coleta contínua de dados, através de procedimentos metodológicos
previamente definidos.
5ª Etapa: Sistematização contínua do material coletado, avaliação e registro dos
resultados.
6ª Etapa: Análise do material obtido através da técnica da análise de conteúdo proposta
por Bardin(2002), com a experiência de campo relacionando-o à contextualização
teórica e críticas desenvolvidas nas etapas 1 e 2;
7 ª Etapa: Retorno ao campo para refazer entrevistas e rever o material escrito, bem
como a análise dos dados.
8ª Etapa: Elaboração das conclusões do trabalho e redação final do artigo
3- Referencial teórico
3.1 - Movimentos sociais – Conceitos e premissas básicas
A própria discussão entre a utilização do termo movimento social, a partir da
visão das duas principais referências dessa pesquisa Touraine (1998 e 2003) ou ação
coletiva na visão de Melluci (2001) é algo questionável e que tem em sua etimologia,
grandes consequencias. Perpassar pelo conceito de ações coletivas é antes de tudo,
afirmar certo esgotamento oriundo do discurso marxista, que tinha o conceito de “classe
social” como estrutura principal. Nesse viés, e fazendo um contraponto com a percepção
97
de Picolotto (2008), os movimentos tradicionais ou clássicos têm tido pouco êxito na
contraposição da exclusão humana gerada pelo avanço do mercado liberal e, portanto,
muitos deles deslocam sua ênfase para a luta por direitos culturais, identidades locais e,
alguns buscam construir “alternativas ao modo capitalista de produção e consumo”,
sendo que, nessa dicotomia, estaria amparada a nova noção ou versão dos movimentos
sociais. Na perspectiva de Scherer-Warren (2005, p17) “ A categoria de sujeito popular,
para uns, e de ator social, para outros, passa a substituir a categoria de classe social, bem
como a de movimento popular e/ou de movimento social substitui a de luta de classe
[...]”. A autora citada ainda trata dessa mudança, em outros textos.
Na visão de Melluci (2001), talvez pela sua formação acadêmica e conceitual,
existe um real interesse pela própria dimensão interior do indivíduo, pois na sua ótica,
as pessoas não são apenas influenciadas por condições macroestruturais. A partir dessa
premissa, ter-se-ia, então, na ótica do autor, o surgimento dos diversos movimentos
sociais, a partir da década de 1960. Esses movimentos, que se iniciaram como
movimentos de mulheres, jovens, raciais e ecológicos, muito mais do que simplesmente
o acesso aos bens e a tomada do poder. Questionam as condutas, práticas e códigos e a
própria leitura da realidade. Aparentemente os grupos buscam a criação de novos
símbolos culturais. Esses novos movimentos sociais, embora ainda tenham relativa
ligação com as “disputas” de classe, também associação a exclusão de determinados
grupos sociais, além de um claro interesse de engajamento com a tomada de decisão do
espaço público, algo citado por (Doimo 1995; Scherer-Warren 2005; Melluci 2001).
Na percepção de Melluci (2001), um movimento social não poderia ser
considerado apenas uma resposta às crises sociais, e sim uma expressão focada na
existência de um conflito social. O autor alerta ainda para o fato do movimento social,
98
sendo uma ação coletiva, demonstra a solidariedade manifestada através dos mesmos
conflitos sociais. E como tal, para se analisar uma ação coletiva, seria fundamental
entender as relações individualizadas do movimento, pois os movimentos contêm uma
“pluralidade de significados“ e seria preciso analisar cada movimento para se ter a
noção exata dos “dogmas” e “símbolos” inseridos em cada discussão.
Melluci (2001), trás uma nova tipologia relacionada com os movimento de
reivindicação, ou os movimento políticos e os movimento antagonistas, sendo que os
movimentos de reivindicação estariam ligados às demandas pré-existentes em relação à
sociedade. Enquanto os movimentos políticos estariam relacionados diretamente com
ações referentes ao sistema político. Os movimentos antagonistas se ligam com a ação
coletiva, que seria mais ampla e poderia atingir o questionamento de todo o sistema
social. Na percepção do autor, existia uma diferenciação entre o conflito, do seu
elemento antagônico que seria o consenso da maioria.
É ponto pacífico de discussão, o fato de que a classe trabalhadora passou a um
status mais complexo e difuso na visão de Solla (1996) e Tavares (2004), e
consequentemente mais frágil no combate à exploração social, partindo da própria
reorientação neoliberal dos conceitos modernos de trabalho. Torna-se fundamental a
necessidade de novas leituras do capital e da identidade, embora o valor da
“mercadoria” e a premissa da “mais valia”, conceitos tão próximos da realidade
marxista, ainda permaneçam intactos no âmbito das novas estruturas sociais. Sendo
assim, não seria possível novas demandas sociais, com novos atores, também estão
associadas às interpretar o conceito de classe, como elemento formador da concepção
do conflito social, e é preciso não esquecer que as reivindicações monetárias e têm
fortes aspectos ideológicos e culturais. Fatores importantes foram associados à luta entre
99
empregadores e empregados, como a necessidade do respeito às condições de gênero, a
informalidade nas relações de trabalho, e a globalização do trabalho, são esses
elementos, formadores de um novo campo de luta do capital.
Partindo dessa
perspectiva, e de acordo com autores, como Castells (2008) e Offe (1982) a própria
ideia de classe social perdeu seu poder, devido principalmente ao esgotamento da
centralidade do trabalho, enquanto categoria reguladora das relações sociais.
Na ótica de Dalton (2005), o que move os movimentos sociais é seu ponto de
vista ideológico e sua identidade política. Na percepção do autor, a partir dessas
premissas é possível traçar os objetivos políticos e os potenciais de ação, definindo
assim os padrões de comportamento. Ele conclui que os movimentos sociais são
movidos por seus pontos de vista ideológicos e identidades políticas e que essas formam
a sua escolha de objetivos políticos, o seu potencial para a ação, e seu padrão de
comportamento. Na percepção de Melluci (2001), um movimento social não poderia ser
avaliado apenas como uma resposta às crises sociais, e sim uma expressão ou um
reflexo focado na própria existência de um conflito social, sendo assim um movimento
social enquanto ação coletiva demonstraria a solidariedade manifestada através dos
conflitos sociais. Partindo desse pressuposto, para que se analise uma ação coletiva, é
fundamental entender as relações individualizadas do movimento, pois uma
organização contém uma “pluralidade de significados“, enquanto terreno fértil para as
demandas coletivas.
100
Na perspectiva de Gonh (2009, p.62) :
[...] Um movimento social com certa permanência é aquele que cria sua
própria identidade a partir de suas necessidades e seus desejos, tomando
referentes com os quais se identifica. Ele assume ou “veste” uma identidade
pré-construída apenas porque tem uma etnia, um gênero ou uma idade. [...]
Outro ponto importante para discussão é a efetiva autonomia dos movimentos
sociais, enquanto ações coletivas isoladas de outras relações sociais, pois embora
autônomos em certas questões, torna-se impossível analisar de forma separada o seu
desenvolvimento. Isso sem fazer uma alusão às relações político-partidárias, as relações
com o Estado, com as empresas particulares e com todos os entes da esfera pública, que
de alguma maneira tenham relação com as temáticas discutidas nos novos movimentos
sociais. A autora em questão ainda discorre sobre esse assunto.
[...] A maioria dos que autodenominam movimentos, ou pior, aos quais é
atribuída a condição de ser ou representar um movimento, não tem um agir
coletivo autônomo porque são monitorados, coordenados por normas, regras
e escolhas externas presentes em projetos elaborados por terceiros (pode ser
uma ONG ou um grupo político-partidário, ou ainda um grupo de uma
secretaria estatal, nos marcos de uma política pública) [...] (GONH, 2009, p.
63)
Scherer-Warren (1999) assenta que os movimentos sociais são reações à
conjuntura histórico-social nos quais estão inseridos, resistindo por um projeto de
mudança, emaranhando ilusão, dedicação e práticas efetivas. Heller (1993) adiciona a
articulação por forças de instância, consentindo a emergência de sujeitos sociais
coletivos. Para Gohn (2003), os movimentos sociais seriam forças propulsoras da
sociedade, incumbidas da tarefa de apresentar resistência às explorações e
potencializando as forças sociais, que estariam desmotivadas ou desorganizadas, para
101
partir para uma ação coletiva. Como se intui, os movimentos sociais são territórios de
experimentação.
Na perspectiva de Castells (2008,p.144)
“[...] as três características
determinantes de um movimento social: identidade, adversário e objetivo. [...]”, fazendo
um contraponto com a perspectiva de Touraine (2003), que inúmera três esferas, o
propositor da demanda, o adversário e o conflito propriamente dito. A grande
inquietude do movimento ambiental, seria a dificuldade de apontar os adversários do
conflito, dentro do campo de luta tão dinâmico e mutável.
Os movimentos surgem para modificar as relações sociais e para questionar o
posicionamento do Estado, partindo do próprio paradigma histórico-estrutural, na ótica
de Bianchi (2010), ilustrado pela falta de capacidade do Estado em atender todas as
demandas da sociedade. Tornando-se imperativo estudar o movimento social a partir da
lógica das contradições do capital, por essa razão, antes de iniciar uma análise dos
novos movimentos sociais, decidiu-se analisar os “antigos” movimentos a partir de uma
ótica Marxista.
O pesquisador Chileno Carlos Aldunate Balestra, em seu livro “El factor
ecológico: Las mil caras del pensamiento verde” analisa o movimento social ambiental.
A crescente força domovimento ambiental em prol da qualidadede vida,
desencadeada a partir de 1962pela descriçao da catástrofe oriunda do livro
Primavera Silenciosa de Rachel, fundamental para o ambientalismo. O
aparecimentode uma tendênciaamplade desacreditar amodernidade, cujas
instituiçõessão fundadasna razãoe operadas por meio da ciênciae tecnologia,
as quais levariam o planeta para um desastre. (ALDUNATE, 2001, p.51,
tradução nossa)
102
Em função dessa crise da modernidade, amparada a partir na própria crise do
capital, ter relação direta com as mudanças na relação entre os empregados e os
empregadores, partindo dessa visão, busca-se no próximo capítulo, interpretar a visão
Marxista dos movimentos sociais.
3.2 - Novos movimentos sociais e os primórdios do ambientalismo moderno
Um dos grandes desafios dos movimentos sociais a partir da década de 1960 foi
lutar pelos direitos da classe trabalhadora, pois as sucessivas crises internacionais
surgidas a partir de 1973 (crise do petróleo) acabaram fragilizando as relações patronais
e gerando um clima de coercitividade da classe trabalhadora, essa fragilização em prol
de uma “defesa” de mercado enfraquece a união das massas, a prática tipicamente
neoliberal resulta em uma nova lógica do capital, que com a desregulamentação
trabalhista, repassa a ideia da necessidade de estar mais adaptado ao mercado como
força fundamental para garantia da empregabilidade.
Na ótica de Gohn (1997), o quadro analítico dos novos movimentos sociais
aponta para uma gradual eliminação do foco de um sujeito determinado pela
contradição do capitalismo. O que estaria em jogo aqui não seria mais a luta de uma
classe social para a tomada do poder, o novo sujeito social é complexo, não pressupõe
uma hierarquização, e está paradigmado nas próprias amarras da modernidade. Embora
esse sujeito faça exigências adaptadas a uma nova modernidade, ela também faz severas
criticas pelo caminho percorrido. Em relação à política, ela ganha status central na
analise, dimensão social que abarca todas as práticas sociais. A análise agora deveria
percorrer as relações micro sociais e culturais, a identidade e a ação coletiva são
103
analisadas separadamente e a cultura passa a fazer parte da discussão. A análise dos
novos movimentos privilegia os atores sociais, enquanto que o peso estruturante tende a
perder sua real importância. Partindo de um combate “ético”, a reorganização neoliberal
do capital, gera fenômenos como a terceirização e flexibilização das relações
trabalhistas. Com essa nova estruturação de trabalho, o Estado passa a ser um ente
parceiro do segundo setor, como regulador e interventor das relações socioeconômicas.
A insegurança é o maior reflexo do neoliberalismo, essa estratégia é refletida no
mercado de trabalho, na geração de renda, nas formas de contratação e na representação
dos trabalhadores. Em suma, o clima terrorista forçava o trabalhador a manter seu
emprego e não lutar por seus direitos. Isso está refletido nos "noventa dias" de
experiência e nos estágios probatórios.
Essa mudança no cenário está ligada diretamente ao esvaziamento e à
fragmentação da classe operária em função da crescente situação de desemprego e do
subemprego. A própria noção de incentivar o empreendedorismo, tão em voga a partir
da década de 1990, seria mais uma estratégia de solidificação das premissas neoliberais.
Siqueira (2002) traz uma visão interessante da dicotomia entre os antigos e novos
movimentos sociais ao afirmar
Os movimentos sociais, sejam novos ou tradicionais, encontram-se
contextualizados em meio às essas transformações ocorridas na economia, a
expansão dos mercados, marcados pela profunda crise estrutural da economia
mundial e pelas mudanças nos modelos de organização da produção e do
trabalho sob inspiração Fordista para um padrão de flexibilização das
relações de trabalho e produtivas baseadas no Toyotismo. (SIQUEIRA,
2002, p. 10)
Touraine (1977), ao analisar o movimento social, faz uso da concepção de uma
ação conflitante de agentes classistas em busca do controle do sistema, ou seja, o autor
104
não abandona completamente o pressuposto marxista, embora na sua ótica o sistema de
disputa tenha além da óbvia conotação social, também um aspecto relacionado a cultura
e seus confrontos ideológicos. A própria noção da identidade a partir da ótica do ator, a
analise do adversário da luta e a partir da visão totalizante ou aquilo que está em jogo no
conflito social, em sua perspectiva, existem três tipificações dos movimentos: Os
movimentos sociais, os movimentos culturais e os movimentos históricos. Antes de
adentrar nas tipificações, torna-se mister verificar que na ótica do autor, o ator social
não estaria apenas agindo de acordo com a posição dentro dos organismos sociais, mas
seria aquele que produz novos conceitos e paradigmas culturais, rompendo com os
padrões sociais estabelecidos, então esse novo sujeito não tinha um campo de disputa
linear nos novos movimentos sociais, pois o ator social, poderia estar lutando contra ou
a favor de personagens importantes da esfera de disputa, essa percepção aparentemente
corrobora com a visão de Gadea (2005).
Ainda segundo o autor, os movimentos a partir de 1960 não deveriam ser
chamados de movimentos societais, mas de movimentos culturais apenas, visto que as
ações coletivas desses tendem a defender ou a transformar uma figura em sujeito. Na
opinião de Touraine (2003), na sociedade pós-industrial, o movimento ecológico e
outros relacionados à defesa de minorias ganham mais sentido, a partir da noção da
origem ou de pertencimento ao grupo, e quanto esses movimentos adentram para um
conflito classista, entram em contradição e perdem as raízes do entendimento lógico.
Para Touraine (2003), os movimentos sociais devem agir como mediadores dos
conflitos entres os sujeitos e o Estado, a partir da necessidade de formação de sujeitos
livres e com autonomia, para alcançarem o objetivo de mediadores do conflito entre os
105
interesses da cidadania e o próprio Estado, na construção de um real direito
democrático.
Na ótica de Dalton (1994) o que move os movimentos sociais é seu ponto de
vista ideológico e sua identidade política, na percepção do autor a partir dessas
premissas é possível traçar os objetivos políticos e os potenciais de ação, definindo
assim os padrões de comportamento. Ele conclui que os movimentos sociais são
movidos por seus pontos de vista ideológicos e identidade política e que essas formam a
sua escolha de objetivos políticos, o seu potencial para a ação, e seu padrão de
comportamento.
Os movimentos sociais a partir da década de 1990, no Brasil passam a vivenciar
o predomínio da política e das reformas estatais, surgindo um novo campo de luta de
dominação, onde são compartilhados poderes políticos e econômicos, tratando de
discutir as relações sociais, sob a ótica da lógica de mercado, e da inviabilidade ou
incapacidade do estado de atender os anseios e desejos da população. Pode-se dizer que
a própria evolução do capitalismo, enquanto fonte de desenvolvimento das forças
antagônicas de mercado, trouxe a reboque a necessidade populista de desenvolvimento
de estratégias de comando, envolvendo modificações na estrutura dos processos
sociopolíticos e culturais que envolvem as classes sociais.
O risco cada vez mais eminente de problemas provocados pelo desrespeito à
natureza começava a fazer parte do cotidiano, a despeito desse posicionamento Giddens
(2001, p.36) afirma
106
A melhor maneira que encontrei para clarificar a distinção entre os dois tipos
de risco é a que se segue. Podemos afirmar que em todas as culturas
tradicionais, e também na sociedade industrial até ao início desta época, os
seres humanos tinham de se preocupar com os riscos originados pela natureza
exterior, más colheitas, inundações, pragas ou fomes. Contudo, a certa altura,
muito recente em termos históricos, começamos a preocupar-nos menos com
o que a natureza pode fazer e mais com aquilo que nós fizemos à natureza.
Essa nova percepção de risco, evidentemente tem ligação direta com todo o
discurso ambientalista, que foi a tônica a partir da década de 1960, em contraponto a
noção de risco, tão comum no período da Guerra Fria, associada a uma necessidade
urgente de rever conceitos primários em relação ao consumo exacerbado e de uma
ausência de espiritualidade, apoiado às novas tecnologias ligadas ao uso de energia
nuclear, é nesse clima de pessimismo e de risco eminente que grupos começam a lançar
ideais sustentáveis em buscar de uma reordenação na estrutura administrativa.
O próximo capitulo, evidencia a necessidade de uma discussão mais apropriada
na esfera ambiental, fazendo uma relação entre a emergência dos novos movimentos
sociais, que encontraram no movimento ambiental o apelo emocional e midiático,
principalmente a partir da década de 1960, foi com esse intuito, que decidiu-se analisar
os autores que dissecaram a discussão ambiental, amparados em um histórico de lutas e
conquistas dos movimentos.
107
3.3- A estrutura das organizações terceira fase do movimento ambiental em
Sergipe (2000-2011)
A partir da Lei 9.790 de 23/03/99, também conhecida como lei do “terceiro
setor”, o ministério da justiça criou um título para justificar a existência de um termo de
parceria entre o governo e as ONGS, tanto nas esferas federais, estaduais e municipais,
quanto na relação com as autarquias e mais recentemente com as agências reguladoras.
A partir dessa lei, toda associações de direito privado sem fins lucrativos são
qualificadas pelo poder público como OSCIP, a partir da leitura de (Barbosa 2001;
Ferrarezi 2002, 2003).
Ao adequar seus estatutos à Lei, podem formalizar parcerias com o governo.
Para isso, é preciso que o estatuto da instituição seja aprovado pelo Ministério da
Justiça, em outras palavras teoricamente qualquer organização não governamental
poderia ser considerada uma potencial OSCIP, desde que tivesse cumprido as premissas
legais.
De acordo com Sherer- Warem (1999, p.31)
[...] do ponto de vista formal, as ONGs são agrupamentos coletivos com
alguma institucionalidade, as quais se definem como: Entidades privadas com
fins públicos e sem fins lucrativos e contando com alguma participação
voluntária (engajamento não-remunerado, pelo menos do conselho diretor)”.
108
O movimento ambiental em Sergipe, a partir do final da década de 1990, ganhou
contornos mais profissionalizados. A interdisciplinaridade ou transdiciplinaridade típica
dos novos movimentos, alimenta a junção entre as entidades ambientalistas e o
ambientalistas
“independentes”
começam
a
penetrar
em
outras
dinâmicas
organizacionais e estruturais. Os grupos científicos começam a ganhar corpo na UFS –
Universidade Federal de Sergipe, no então CEFET – Escola Técnica Federal de Sergipe
e na UNIT- Universidade Tiradentes. O Programa de Desenvolvimento e Meio
Ambiente - PRODEMA está consolidado na UFS. Um dos melhores cursos de
Geografia do Brasil está localizado em Sergipe, redes ambientais com a Rease – Rede
de Educação Ambiental de Sergipe tem atuação no Estado e todas essas ações tem
ligações com empresas estatais e privadas. Essa atuação em redes foi debatida por
alguns autores , como (Machado 2007; Oliveira 2006, 2007).
Nessa década também tem-se a popularização da internet no Estado de Sergipe
as organizações começam a fazer suas divulgações na rede, pois, agora qualquer pessoa
poderia ser “jornalista”. O novo formato força instituições conhecidas na cidade de
Aracaju a mudarem sua estratégia e buscarem um novo formato de comunicação.
O ambientalismo ganhou força em outros movimentos do Estado, tendo
aproximação com o Movimento Sem-Terra - MST em seu projeto de Educação
Ambiental para os jovens camponeses. Grupos que não estavam focados diretamente ao
meio ambiente começam a aceitar projetos ligados à causa ambiental. Houve uma real
aproximação entre o meio ambiente e a luta sindical, principalmente no tocante aos
bancários e professores. Duas figuras despontam nesse período, o senhor “Chico
109
Buxinho”10, e a senhora Ana Lúcia11, que anos mais tarde colocariam em suas pautas
questões ligadas diretamente ao movimento ambiental.
Dados coletados através de pesquisas 200812, contabilizam 2100 organizações
não governamentais no Estado, incluindo nessa contagem, todas as associações,
fundações e igrejas, além das outras entidades, sendo que apenas 32 tinham a temática
ambiental em seus propósitos. Foram observadas uma a uma, cada missão (razão de ser
da organização) amparada a percepção de planejamento estratégico de cada instituição.
A partir dessas missões, foi possível identificar quais os objetivos principais das
organizações, possibilitando comparar se o discurso combinava com a prática.
A maior parte dessas ONGs não tinha sede, não tinha equipe profissionalizada,
não tinha estatuto ou qualquer outra prova jurídica de existência. Eram instituições
amadoras, que despertavam a atenção do público por certos instantes e logo depois
perdiam completamente o rumo. Os voluntários normalmente tinham alto Turnover13,
nas reuniões, além do absenteísmo ser bastante alto, o entusiasmo inicial era trocado por
uma grande decepção.
A troca de informações entre as ONGs ambientais locais e ONGs nacionais e
internacionais aumentou devido primeiramente à internet e ao grande número de fóruns,
e conselhos diretivos, comitês de bacias, planos diretores, agendas 21, planejamentos
participativos, conselhos de APAS e outras atividade que surgiram nesse período. Essas
ONGs saíram do perfil de instituições de denúncia, e começam a buscar objetivos mais
10
Francisco dos Santos (Chico Buchinho), em 2011 era subsecretário de Articulação com os Movimentos
Sociais e Sindicais e antigo sindicalista e defensor da causa ambiental no Estado.
11
Em 2011 era Deputada Estadual, com forte presença nas discussões ambientais do Estado.
12
Pesquisa realizada pelo pesquisador, juntamente com o diretor da OSCIP Instituto Árvore, o senhor
Carlos Eduardo Silva, entre os anos de 2005 e 2008.
13
Na área de Recursos Humanos seria a troca excessiva de funcionários ou no caso da ONGs de
voluntários, que acabam perdendo a motivação para continuar no grupo.
110
concretos, ao invés de apenas apontar problemas. Elas se transformam em realizadoras e
idealizadoras de projetos. As ONGs começam a buscar segmentos específicos de
mercado para continuar atuando, exemplo disso é a Sociedade Semear, que se considera
uma ONG de estudos múltiplos e fomentadoras de propostas da sociedade civil. Então
as ONGs sergipanas também têm em seus quadros consultores especialistas na gestão de
capacitações, eventos, cursos e outras atividades.
Estrategicamente uma das principais “vantagens” de se tornar uma OSCIP é a
possibilidade de remunerar seus dirigentes e, mesmo assim, continuar usufruindo dos
benéficos fiscais. Na teoria, o surgimento das OSCIPS, acabou gerando uma
possibilidade de aumentar a transparência administrativa, além de uma maior agilidade
e velocidade na execução dos serviços e na prestação de contas, associada à
possibilidade de planejar e analisar os resultados de maneira mais profissionalizada.
A lei do Terceiro Setor foi criticada por Montaño (2005, p.47)
[...] esta parceria entre o Estado e as “organizações sociais” (instituída
mediante a Lei n 9.790, de 23 de março de 1999), mais do que um estimulo
estatal para a ação cidadã, representa a desresponsabilização do Estado da
resposta à “questão social” e sua transferência para o setor privado
(privatização), seja para fins privados (visando o lucro), seja para fins
públicos.
As organizações surgidas a partir de 2000 em Sergipe, já são criadas com foco
voltado para obter recursos oriundos do FNMA-Fundo Nacional de Meio Ambiente e
também das empresas privadas que “patrocinam” as organizações, o próprio Ministério
do Meio Ambiente, torna-se parceiro das organizações, funcionando hora como
111
mediador, em outros momentos em total parceria. O objetivo já está ligado diretamente
à estrutura administrativa de cada organização.
Uma importante divisão para essa pesquisa surgiu da perspectiva de SchererWarren (1999, p. 69 e 70), onde a autora classifica categorias de organizações não
governamentais como ONGs, internacionais como Greenpeace e nacionais como a
Fundação Mata Atlântica, sendo “organismos privados com fins públicos”, a partir
dessa premissa poderíamos incluir o MOPEC, a ASPAM, O CICLO URBANO, A ONG
ÁGUA É VIDA. A autora ainda tipifica as OIGS, que são organizações intra
governamentais, e não atuam apenas como idealizadoras de ações estatais, mas também
abrem espaço para a comunidade participar, essas OIGS atuam de forma global, a
autora cita o exemplo da UNCED (conferência das Nações Unidas sobre o Meio
Ambiente e o Desenvolvimento) que foi a organizadora das conferências internacionais,
como a Rio 92, e mediadora entre ações governamentais e a sociedade civil. Ainda
dentro das tipificações, existem o que autora chama de MECs, que seriam movimentos
ecologistas comunitários que se formam quando atores diversos (organizações de base,
associações de bairro, ONGs locais e outros cidadãos) se articulam em torno de um
problema socioambiental local. Nessa conceituação, pode-se incluir aqui a AMABA,
sendo os MENs os movimentos ecologistas nacionais, a partir da articulação entre as
ONGS, os movimentos ambientalistas e os cidadãos, quando essa ação se dá em escala
nacional, como exemplo a autora cita o Fórum Brasileiro de ONGS e movimentos
sociais, por fim a autora tipifica as METs que seriam os movimentos transnacionais que
seriam as redes transnacionais que são mobilizadas como força de pressão.
112
Ao analisar as ONGs sergipanas, seria possível acrescentar os “fins políticos”
dessas organizações surgidas após o final da década de 1990. Na ótica de Montaño
(2005, p.57)
As chamadas organizações não-governamentais (ONGs), quando hoje
passam a ser financiadas por entidades, muitas destas de caráter
governamental, por meio de parcerias, ou quando são contratadas pelo Estado
(federal, estadual e municipal), para desempenhar, de forma terceirizada, as
funções a ele atribuídas, não parecem fiéis a seu dito caráter “nãogovernamental” e à sua condição de “autogovernada”.
Em outra lista bastante interessante para o movimento ambiental no Brasil, é a
ECOLISTA. Em pesquisas realizadas em 2010-2011, pode-se confirmar que apenas
cinco instituições tinham cadastro na ECOLISTA, sendo elas: Grupo de Estudo de
Elasmobrânquios de Sergipe – GEES, Instituto de Desenvolvimento Sócio-Econômico,
Científico, Ambiental e Tecnológico - Parque dos Falcões, Instituto Socioambiental
Árvore – Árvore, Movimento Popular Ecológico de Sergipe – MOPEC e a Sociedade de
Estudos Múltiplos, Ecológico e de Artes - SOCIEDADE SEMEAR, sendo que diversas
ONGs citadas na pesquisa, não foram cadastradas pela lista. Em pesquisas realizadas em
documentos do Ministério da Justiça, ainda foi possível registrar algumas outras
OSCIPs com ações pontuais no Estado, tais como a ASSOCIAÇÃO ECOLÓGICA DO
MUNICÍPIO DE CAPELA – AEMC E O INSTITUTO DO MEIO AMBIENTE DE
PRESERVAÇÃO À NATUREZA – IMBA, mas sem uma ação mais contundente que
justificasse um aprofundamento na pesquisa.
Outra ONG que chamou a atenção na pesquisa foi o Centro Dom José Brandão
de Castro, devido a certa exposição midiática, mas quando investigou-se o seu principal
objetivo, foi verificado que a instituição focava contribuir para o fortalecimento das
formas de organização e qualificação dos trabalhadores rurais sergipanos na luta pela
113
superação da exclusão social. Essa instituição tinha o meio ambiente apenas com um
dos temas transversais, mas não desenvolvia uma ação mais focada na área. Essa
inclusive era a tônica de outras instituições que aparecem em cadastros nacionais, elas
tem atuação bem limitada dentro da esfera ambiental, e não têm uma liderança que
desponte para a sociedade.
Torna-se fundamental tentar diferenciar as ONGs e sua atuação durante toda a
década, pois com o surgimento de OSCIPs organizadas como a sociedade Semear, por
exemplo, que contava em seu organograma com profissionais experientes e com forte
predomínio de influências políticas, no caso especifico da sociedade Semear, a grande
influência vem do PT. É interessante observar o pensamento de Coutinho (2005, p.
135), quando conclui em sua tese “Não será local aquilo que está articulado com ou
subordinado ao Estado, como empresas, instituições públicas e organizações não
governamentais que dependem de financiamento estatal para sua ação e seus projetos.”.
Interessante também, é analisar a dicotomia existente entre as organizações, os partidos
políticos e os sindicatos. Nessa tríade é possível observar fortes elementos de junção das
missões estratégicas relacionadas com o Meio Ambiente, pois os participantes das
organizações não governamentais, ora participam ativamente do movimento ambiental
ora voltam sua atenção para o seus sindicatos ou partidos, e mudavam completamente o
foco de “combate”. Nessa discussão Castells (2008, p.163) “lembra que o
ambientalismo não pode ser considerado meramente um movimento de conscientização.
Desde o início, procurou exercer influência na legislação e nas atitudes tomadas pelos
governos”. Essa postura foi constante no movimento ambiental em Sergipe.
114
Um pensamento que chama bastante a atenção é discutido por Loureiro (2006,
p.132)
O senso comum do discurso hegemônico ambientalista (pragmático e
tecnocrático), para desqualificar a militância ambientalista de combate,
costuma usar o chavão de que é preciso propor projetos para que as soluções
se concretizem e, para isso, é preciso que as pessoas que participam das
ONGs se profissionalizem. Tal posicionamento é um deslocamento
(ideológico ) da questão, simplificando-a, como mecanismo para justificar a
consolidação de um perfil empresarial e competitivo no interior das
entidades. Além disso, priorizar a dimensão da qualificação profissional
como pré-requisito nos embates é tirar a função cidadã das entidades e
deslocar a participação para grupos que possuem conhecimento técnico visto
como pertinente.
Esse profissionalismo alertado por Coutinho, é bastante observado em Sergipe,
formou-se uma geração de profissionais gabaritados no Terceiro Setor, que trouxeram
mais dinamismo e profissionalismo para a área em Sergipe, mas infelizmente não
trouxeram grandes avanços nos embates ambientais. Na ótica de Tarvolaro (2008, p.81),
“embora as ONGs viessem ganhando proeminência, com as conferências, houve um
salto qualitativo. Elas passaram a ser percebidas como atores relevantes e, além disso,
fizeram uso do ambiente favorável para fortalecer-se institucional e politicamente”.
Essa questão é fundamental para entender os meandros das ONGs ambientalistas em
Sergipe a partir da década de 2000, se a OSCIP Semear, tornou-se a principal
catalisadora de ações ambientais com parcerias importantes com o Ministério do Meio
Ambiente, Banco do Brasil e principalmente com a Petrobrás. Esse “sucesso” teve forte
ligação com a articulação política dos seus principais liderados, não é à toa que essa
ONG cresceu juntamente com a tomada do governo do PT, tanto em nível federal como
estadual, sendo que as suas principais lideranças também ganharam poder sendo que um
deles assumiu o cargo de Ministro do Supremo e o outro como presidente da OAB.
115
Evidentemente, que seria irresponsável não reconhecer os méritos administrativos da
SEMEAR, pois essa OSCIP demonstrou ter o maior índice de profissionalismo em
termos de gestão de todas as organizações investigadas na pesquisa, e desenvolveu
vários projetos interessantes de Educação Ambiental no Estado. Ainda na percepção de
Montaño (2005, p.57)
Efetivamente, o Estado, ao estabelecer “parceria” com determinada ONG e
não com outra, está certamente desenvolvendo uma tarefa seletiva, dentro e a
partir da política governamental, o que leva tendenciosamente à presença e
permanência de certas ONGs e não de outras, e determinados projetos e não
outros
Aqui é o caso de se identificar as fundações que tiveram importância no
ambientalismo em Sergipe, primeiramente analisa-se a influencia da Fundação Oviêdo
Teixeira, criada a partir da necessidade de aumentar as ações estratégicas de marketing
social do grupo Norcon. Tem em seu projeto Qualivida o patrocínio ao esporte, as
parcerias com instituições de combate ao Câncer ou até mesmo os projetos educacionais
e de saúde do colaborador. Partindo da perspectiva de Ferreira (1999, p.45), sobre o
movimento ambiental, quando analisa o impacto das ONGs a autora argumenta
Apesar da profunda diferenciação que caracteriza o universo das ONGs
quanto ao tamanho, montante de recursos financeiros e humanos, quanto à
ideologia, estrutura organizacional, cultura, abrangência da ação, e recursos
de poder, elas inegavelmente podem ser reconhecidas como agentes de
mudança social, pois são capazes de eleger um campo de luta e mobilizar
pessoas, recursos e instituições em defesa de determinada causa”.
O terceiro setor está ligado diretamente ao direito privado, pois é possível fazer
fundações a partir da palavra instituto, mesmo uma cooperativa, uma associação, esse é
116
talvez um dos grandes problemas de analisar o terceiro setor, pois a maior parte da
nomenclatura conclama para designações que não tem qualquer materialidade jurídica.
Embora, para a grande maioria das pessoas, o termo mais utilizado para legitimar o
surgimento de uma instituição independente da esfera pública e com objetivos
associados ao conceito de cidadania, seja o termo ONG. Nem sempre esse deveria ser a
denominação legal da organização.
De acordo com o Sebrae14 (2009), no direito
brasileiro não existe a figura das ONGS, pois em nenhuma lei é citada a palavra ONG,
na verdade o que existiria seria um reconhecimento “supra legal” que teria uma
conotação muito mais cultural e sociológica do que propriamente legal.
Pode-se dizer que as organizações não governamentais surgiram a partir de uma
própria necessidade estratégica do Estado, embora teoricamente afastadas dos tentáculos
estatais, com objetivos infinitos e forte influencia na esfera privada. Não é à toa que se
vivencia o surgimento de diversos institutos ligados diretamente a empresas particulares
a partir da década de 2000 em Sergipe, pois em 2003, surgiu um dos principais
institutos sergipanos, o Instituto Luciano Barreto Júnior (ILBJ) tendo como objetivo
principal possibilitar a infoinclusão social de adolescentes e jovens sergipanos, através
de diversos cursos, palestras, atividades socioeducativas, artes, preparação para o
mundo do trabalho e a cidadania. Esse instituto também desenvolveu algumas ações
relacionadas direta e indiretamente com a área ambiental, sendo importante destacar que
o instituto foi criado pela Celi uma das maiores construtoras de Sergipe. Makower
(2009, 66) chama esse fenômeno de Greenwashing ou “fazer um discurso ambiental
sem ações concretas” (greenwashing)”. Essa foi a tônica das construtoras sergipanas,
motivadas por ações de marketing ambiental, desenvolveram fortes associações dos
14
Vários materiais colhidos no SEBRAE no ano de 2009
117
suas construções com a preocupação ambiental, embora na prática sejam as principais
inimigas do meio ambiente no Estado.
Partindo dessa premissa, o que se observa é a quantidade de “entidades” que
levam sua denominação, pois todos os partidos políticos, as associação, as seitas, as
igrejas, os sindicatos, as associações de classe, as próprias faculdades e universidades,
podem ser consideradas ONGs. Essas novas OSCIPs ganham um corpo estratégico em
Sergipe a partir da década de 2000, elas começam a profissionalizar o trabalho, e várias
pessoas apostam suas carreiras dentro dessas organizações, principalmente pelo fato da
remuneração ter se tornado bastante atraente.
Novos editais e parcerias surgem, a Petrobrás a Vale e até a União de forma
direta começam a ajudar essas instituições, profissionais com currículos experientes são
contratados para prestar consultorias nas organizações, novos projetos estratégicos são
lançados. Essas organizações tornam-se protagonistas da discussão ambiental, servindo
de espaço e interlocução com as lideranças populares. Essas organizações servem de
guarda-chuva para “movimentos” menos organizados e sem condição de participar dos
editais de financiamento e incapazes de conseguir apoio das empresas particulares. Uma
questão importante é a diminuição do poder de mobilização do movimento, motivado
principalmente pelo jogo estratégico dos projetos.
No tocante às organizações não governamentais sergipanas, é destacado o perfil
da SOCIEDADE SEMEAR, que deu suporte técnico e institucional para a
administração estatal direta e indireta, fazem parceira com empresas de economia mista
e gozando de ótimo relacionamento com a esfera privada. A atuação da organização está
focada, principalmente, na demanda por projetos, que são conduzidos por profissionais
118
gabaritados e com muita experiência em ações não governamentais que aprovam os
projetos, primeiramente pela sua capacidade técnica e também pelo seu forte
relacionamento.
A Sociedade de Estudos Múltiplos, Ecológica e de Artes - Sociedade Semear foi
fundada em 2001, foi pensada e formatada pelo advogado Cézar Britto15 que idealizava
a possibilidade de uma ONG que pudesse fazer a diferença na área ambiental em
Sergipe. Segundo dados colhidos em repetidas entrevistas, a ideia inicial da ONG era
possibilitar ensino de qualidade para jovens carentes, só que a ONG foi mudando seu
foco a partir do pensamento agregado dos novos voluntários a ONG que inicialmente
pretendia ser focada na área educacional, acabou ganhando outros contornos e passou a
buscar a área ambiental como ponto focal.
A Sociedade Semear possui uma grande sede própria, com amplas salas,
auditórios, galeria de artes, e toda uma infraestrutura moderna capaz de abrigar qualquer
projeto de nível nacional. Tendo o título de OSCISP, pode pagar salários para seus
diretores, e contava em 2011 com 25 funcionários espalhados por diversas diretorias
tendo ligação com diversas empresas fundações e órgão federais. A partir da leitura do
seu estatuto, foi possível identificar a figura do diretor presidente atualmente exercida
pelo senhor Carlos Brito Aragão, geógrafo de formação e mestre em meio ambiente pela
rede PRODEMA.
A sociedade Semear manteve um perfil de profissionalização de seu quadro
organizacional, através de fluxogramas modernos, planejamentos estratégicos bem
elaborados, estrutura confortável e que gera segurança nos parceiros, uma grande
15
Advogado militante, foi presidente da OAB – Ordem dos Advogados do Brasil e irmão do senhor
Carlos Ayres Brito que é ministro do Supremo Tribunal Federal e tem fortes ligações do Partido dos
Trabalhadores.
119
qualidade técnica, com profissionais buscando sempre a profissionalização. A ONG
participa de conselhos e emite pareceres técnicos, participa da formulação de programas
governamentais e políticas públicas, tendo se tornado referência em termos de
profissionalismo no tocante às ONGs ambientais no Estado, e é citada como referencia,
mas ao mesmo tempo também perdeu sua força enquanto catalisadora de intenções
ambientais combativas e enquanto propositora de ações corajosas que lutam contra os
ditames da estrutura política vigente. A ONG cresceu, justamente no período da
chegada do PT ao poder tanto em nível federal, como em nível local, e resta a dúvida, se
manterá a sua força, quando os seus aliados políticos estiverem longe do poder. Embora
o discurso uníssono da entendida, é de total afastamento com relação às esferas
governamentais.
Uma questão controversa no estudo é a relação de parceria entre o poder público
e a perda de autonomia das organizações não governamentais sergipanas, além da
evidente prática da cooptação das lideranças ambientais. Ao mesmo tempo, após os
anos 2000 com a chegada do PT ao poder, tanto na esfera federal, quanto estadual, essa
ação foi cada vez mais sentida, principalmente devido ao fato da necessidade clara de
sobrevivência das ONGs, isso implica diretamente na necessidade de seguir uma
“cartilha” estabelecida e consequentemente perder o poder de contestação. Grandes
figuras ligadas ao meio ambiente em Sergipe perderam seu poder de contestação nesse
período, o senhor Genival Nunes, por exemplo, importante liderança da década de 1980
e 1990, durante a década de 2000, assumiu diversos cargos públicos e assessorias de
deputados, o senhor Reinaldo Nunes, nessa década, estava mais dedicado a ações
relacionadas com Partido Verde no Estado. Outras lideranças surgiram nesse período
como: Omar Pinto, Carlos Eduardo, Danielle Dutra, Graça Melo e Angélica Lima e
120
outras ambientalistas que tinham uma participação mais antiga no movimento
começaram a ganhar mais espaço na mídia, tais como o senhor Lisaldo Vieira e José
Firmo.
Outro caso emblemático em Sergipe foi a contínua atuação da ONG ÁGUA é
vida, na cidade de Estância. Essa organização teve uma postura de mediação e de
geração de processos democráticos de participação coletiva, e refletem os antagonismos
do Estado e da sociedade civil.
Além disso, o Instituto Árvore também aumentou sua penetração na esfera
jurídica, tendo algumas ações com o ministério público estadual. Sempre voltada para a
busca pelas parcerias com diversas entidades públicas. No tocante à forma de
penetração, é a atuação do instituto Árvore, que na tentativa de interagir com o estado,
propondo políticas públicas municipais e estaduais, participando de vários conselhos e
interagindo na assessoria parlamentar. Essa organização tinha na pessoa do senhor
Carlos Eduardo sua principal liderança, e uma gestão organizada, até mesmo pela
formação em administração do seu principal mentor. Tinha um perfil destacado na área
de comunicação, e um corpo técnico bem equilibrado em termos acadêmicos e com
experiência em outras áreas, mesmo com essas características, a instituição não
conseguiu idealizar muitos projetos na área ambiental, embora tenham no papel criado
diversas ações, a realização normalmente não acontecia devido à falta de financiamento
público. A ONG teve algumas ações pontuais em outros Estados, mas a falta de uma
sede acabou atrapalhando bastante o andamentos das ações, segundo palavras do
próprio presidente da OSCIP.
121
A OSCATMA na Barra dos Coqueiros teve como mérito durante o seu período
de atuação, o reconhecimento da entidade e o respeito na área de meio ambiente no
município. Segundo a sua principal liderança
A Empresa Torre (coletora de lixo) sempre está limpando o Canal de
Guaxinim que limpamos em Campanha por quatro anos, somos convidadas
para elaborar plano de atividades na área de meio ambiente no município
pelas Secretarias: Educação meio Ambiente, Participação Popular, Saúde e
Assistência Social, somos convidadas para fazer parte de Conselhos e
acompanhar os procedimentos dos conselhos. Conseguindo inserir um
projeto de processo de renovação dos membros do Conselho Cidadão e
alteração do Regimento Interno colocando a renovação dos membros com
eleição para a sociedade civil e cidadão comum através de Edital de
Convocação.
Outro ponto é a participação da sociedade civil e a organização dos documentos
oficiais destas entidades.
Outra ONG investigada nesse período foi a sociedade Organização SócioCultural Amigos do Turismo e do Meio Ambiente – OSCATMA/BC que nasceu de
uma capacitação na área de turismo para famílias do PETI- Programa de Erradicação do
Trabalho Infantil, com recursos da Previdência Social conveniado com a Secretaria de
Bem Estar Social repassado para a entidade executora NUTRAC em 04 de agosto de
2003. O objetivo dessa capacitação foi de criar uma entidade para geração de trabalho e
renda para as famílias participantes e com a missão de defender a água, o meio ambiente
e a vida, e para realizá-la, tem adotado, uma perspectiva própria, fundamentada na
compreensão de que a situação atual desses elementos é uma consequência do
comportamento humano. A organização tinha uma premissa de adotar uma postura
leve, provocativa e instigante a OSCATMA - BC promovia encontros culturais,
atividades esportivas, participava de campanhas, conferências, conselho e comitês. A
122
ideia geral era fazer uma relação, entre a água, o meio ambiente e a sociedade, com o
objetivo de provocar mudanças sutis e graduais, porém permanentes.
Uma questão importante foi a análise da atuação de ONGs internacionais, em
relação à atuação do Greenpeace em Sergipe, em contato feito com a senhora Pâmela
Gopi, ficou evidenciado que nunca foi realizada nenhuma atividade especifica em
Sergipe, a senhora Pâmela, também fez questão de explicar um pouco mais sobre as
ações do Greenpeace no Brasil
Nossas campanhas abordam temas globais, já que as ameaças ao meio
ambiente não têm fronteiras. No Brasil, direcionamos nossos esforços para
cinco campanhas: preservação da floresta amazônica, clima e adoção de
energias limpas e renováveis, nuclear, preservação dos oceanos e a adoção do
princípio da precaução na produção de alimentos transgênicos.
Essa questão de pautar ações específicas e criar metas para adentrar em alguma área, é
algo fundamental e muito forte dentro do trabalho das organizações. A senhora Pâmela
ainda continua sua afirmação dizendo
É parte do nosso trabalho promover investigações, com o objetivo de
modificar o comportamento das grandes empresas, governos e consumidores.
Além disso, pressionamos pela criação de legislações mais duras e por uma
fiscalização mais efetiva por parte dos órgãos responsáveis. Assim, também
fazemos denúncias, uma vez que não temos poder de fiscalização.
Essa parece ser a postura de outras Organizações com forte trabalho nacional, a
ONG SOS Mata Atlântica, de acordo com responsável pelo departamento de
Documentação Andrea Godoy Herrera, a ONG também não fez projetos diretamente em
Sergipe, e que também não tem ONGs parceiras, essa questão das parcerias, parece ser
um “tabu” na área das ONGs. Essa questão da imagem da instituição, é muito marcante
123
dentro das organizações não governamentais. Ainda nessa análise, outra instituição
investigada foi a rede WWF através de Maristela Pessoa, sendo que essa foi enfática
em afirmar “ Não temos projetos em Sergipe”.
Outra instituição importante surgida na década de 2000 foi a Associação
Desportiva, Cultural e Ambiental do Robalo também designada pela sigla ADCAR,
com sede no Povoado Robalo, município de Aracaju, na Zona de Maior expansão
dentro da cidade de Aracaju. Essa organização conseguiu atrair a atenção da grande
mídia no Estado, devido às constantes ações relacionadas com a discussão do Plano
Diretor, tendo em seu quadro de voluntários, experientes ambientalistas sergipanos, e
tem como principal liderança o senhor José Firmo, antigo ambientalista sergipano que
participou na década de 1990 do MOPEC.
Uma importante lista de ONGs ambientalistas nacionais a Ecolista, até 1999 não
tinha nenhuma entidade cadastrada em Sergipe, sendo que a partir do ano de 2000,
algumas entidades começaram a fazer parte do cadastro, chegando a ter em 2010 cinco
entidades, as já conhecidas MOPEC, Sociedade Semear o Instituto Árvore, e com duas
outras entidades, o Grupo de Estudo de Elasmobrânquios de Sergipe – GEES e o
Instituto de Desenvolvimento Sócioeconômico, Científico, Ambiental e Tecnológico Parque dos Falcões - IPF- INSTITUTO PARQUE DOS FALCÕES.
O Grupo de Estudo de Elasmobrânquios de Sergipe (GEES) é uma organização
não-governamental, tem o objetivo de realizar pesquisas referentes à biologia e pesca de
tubarões e arraias no litoral sergipano. Tem em seus quadros profissionais com
reconhecidos currículos na área ambiental, e busca, de forma especifica montar uma
coleção taxonômica de elasmobrânquios, incentivarem a preservação, defesa e
124
conservação do meio ambiente e estimular atividades educacionais e científicas com
fortes ligação com instituições privadas de ensino no Estado.
O Instituto Parque dos Falcões é uma ONG localizado na cidade de Itabaiana,
sendo até 2011, o único centro de criação, multiplicação e preservação de aves de rapina
da América do Sul. É também o único local do país com autorização do IBAMA para a
criação de aves de rapina. Tem na figura de José Percílio Costa16 o seu principal líder. O
grupo tem um trabalho de conservação ambiental importante na Serra de Itabaiana e
promove ações de educação ambiental em toda a região, na visão de Santos (2003).
A OSCIP Semear assumiu uma posição de liderança de outras organizações
menores através da participação de conselhos e conferências, a apropriação de
articulações políticas, assumindo em alguns momentos certos planos estratégicos de
políticos regionais. Aparentemente a OSCIP nunca teve o interesse de um projeto mais
completo de mudança social, na verdade as demandas do movimento sempre estiveram
associadas à questão mais localizadas e relacionadas com a Educação Ambiental, e
jamais buscaram uma mudança mais estruturada.
Outra instituição que teve uma profunda participação a partir da década de 2000
foi a Organização Sócio Cultural Amigos do Turismo e do Meio Ambiente –
OSCATMA/BC que nasceu de uma capacitação na área de TURISMO para famílias do
Programa de Erradicação do Trabalho Infantil- PETI em 2003, na Barra dos
Coqueiros/SE, com recursos da Previdência Social conveniado com a Secretaria de Bem
Estar Social repassado para a entidade executora NUTRAC. Após o monitoramento,
decidiram criar uma entidade para geração de trabalho e renda, visando o turismo, à
16
José Percílio da Costa é referência no manejo, reprodução e reabilitação de cerca de 350 aves de 29
espécies, entre falcões, gaviões e corujas, ele é uma referencia internacional na área, embora não tenha
ensino superior, sua opinião é analisada por especialista em todo mundo.
125
conservação e preservação do meio ambiente. A missão ou principal objetivo da ONG,
segundo sua principal liderança a senhora Ângela Lima é “Trabalhar nas causas,
alterando os efeitos de forma permanente e eficaz. Utilizando a arte e cultura como
instrumento, o ser humano como meio e a vida como o fim”.
Outra instituição que teve atuação na cidade de Estância foi a ONG Viva
Estância, fundada em maio de 2002, sendo em 2003 qualificada pelo Ministério da
Justiça como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), a principal
meta da associação segundo Eugênia Teixeira foi “Desenvolver trabalho na área social,
educacional, da saúde, da cultura, meio ambiente”. Tendo produzido diversas ações na
cidade de Estância, embora não fosse uma ONG Ambientalista, pois teve uma
conotação mais social, teve importância dentro da cidade de Estância, como
incentivadora do meio ambiente em ações de conversação de patrimônio natural e
educação ambiental, a OSCIP terminou suas atividades em 2011 segundo informações
repassadas pela sua liderança “Por falta de engajamento das pessoas da cidade, por falta
de capacidade de aprovar projetos e captar recursos, por total incapacidade de seguir
sozinha, capitulei e me arrependo”. Essa informação repassada pela senhora Eugênia
Teixeira, serve para entender um pouco da organização das ONGs no Estado de
Sergipe, na verdade elas se configuram muito mais como INGs ou Indivíduos Não
Governamentais, pois falta engajamento populacional. Esse pensamento corrobora com
a visão do senhor Reinaldo Nunes (PV), ele afirma que na década de 2000 “ ele
consegue lembrar-se de pessoas, de indivíduos que são ambientalistas, mas de ONGs eu
não lembro, tem o Lisaldo no Mopec, mas é ele sozinho, não existem outras pessoas
envolvidas”
126

Ainda na década de 2000, OSCIPs com um viés mais técnico assumira
uma postura de idealizadoras de projetos, perdendo um pouco o caráter da mobilização,
e adentram no Estado ajudando-o nas questões relacionadas à elaboração e posterior
ação ambiental, os governos tornam-se parceiros das organizações, e disponibilizam
“gordos” recursos estatais para a realização das ações individualizadas, a partir de
programas governamentais nacionais ou internacionais. Outro elemento primordial
nesse contexto é o papel das empresas privadas, pois em seus editais de financiamento
começam a fazer parceria com as organizações não governamentais, além dessa
parceria, algumas empresas criam seus próprios institutos, em Sergipe nesse período
histórico, os principais institutos com participação ligada ao meio ambiente, foram o
instituto Luciano Barreto Júnior (ligado diretamente à CELI7, uma das principais
construtoras do Estado) e o Instituto Oviedo Teixeira ligado à construtora Norcom8.
Na perspectiva de Montaño (2005, p.58) em relação a esses institutos
Nas organizações sem fins lucrativos (OSFL) são caracterizados diversos
tipos organizacionais. Algumas fundações, braços assistenciais de empresas
(fundações Rockefeller, Roberto Marinho, Bradesco, Bill Gates), não podem
esconder seu claro interesse econômico por meio da isenção de impostos, ou
da melhora de imagem de seus produtos (aumentando a venda ou o preço) ou
até na função propagandística que estas atividades exercem (ver a Parmalat,
as fundações Ronald Mac Donald, Albino Souza Cruz, Telefônica,
Odebrecht, Bradesco, entre outras). Têm, portanto, claro fim lucrativo, ainda
que indireto.
Essa questão ligada aos institutos merece toda a atenção, pois as construtoras em
Sergipe são apontadas por vários entrevistados como as principais culpadas da
destruição do ambiente local. Lisaldo Vieira do MOPEC, em uma das entrevistas deixou
7
Construtora fundada em 1968, tendo fundamental importância na construção das principais obras
públicas e condomínios residenciais no Estado de Sergipe.
8
Construtora responsável pela criação do Bairro Jardins atua desde 1958 no Estado de Sergipe.
127
claro que o principal motivador para o não surgimento de uma secretaria de meio
ambiente na cidade de Aracaju é a influência das construtoras. Um pensamento
compartilhado por Reinaldo Nunes do PV e do Saber Ambiental, que alguns ainda mais
enfático, “Eu acho que essa questão de nunca termos política ambiental na prefeitura de
Aracaju, não é uma coincidência, existe sim uma ingerência das empresas ligadas à
construção civil em Sergipe, tudo que foi feito nos último anos em Aracaju está errado”
A primeira ação de marketing ambiental ligada às construtoras sergipanas pode
ser observada ainda na década de 1990, com a Fundação Oviêdo Teixeira em 1991. Essa
fundação está ligada diretamente à Norcon, maior construtora da cidade e responsável
pela criação do Bairro Jardins na cidade de Aracaju. Embora esses institutos não tenham
em sua missão aspectos ligados ao meio ambiente, através de suas ações de marketing
social, melhoram a imagem das construtoras perante à sociedade e ofuscam as críticas
surgidas das mais diversas “forças ambientais”. No capítulo dedicado à comunicação
das ONGs, um dos mais emblemáticos casos de disputa hegemônica será explicitado,
envolvendo a CELI e um jornalista que trabalha com enfoque ambiental do Estado.
Outra construtora que teve uma participação importante nos últimos anos em Sergipe foi
a COSIL9, que tem investido em ações ligadas ao marketing ambiental, como os Kit
Sustentáveis em suas construções.
A relação entre as empresas e o meio ambiente, tornou-se bastante conflitante,
embora com o fortalecimento do debate ambiental, das pressões políticas nacionais e
principalmente internacionais, mudança na postura da opinião pública, modificações
sociais e econômicas estão, cada vez mais, desencadeando uma mudança na postura
relacionada às práticas ambientais das empresas.
9
Fundada em 1966 a construtora tem forte influência na esfera dos apartamentos residenciais em Aracaju.
128
Em 2007, surgiu em Sergipe a ONG Ciclo Urbano, com o objetivo de promover
a utilização da bicicleta, como também o uso de outras formas de locomoção e
transporte a propulsão humana, com integração ao transporte público motorizado, fiscalizandoo e propondo melhorias em sua qualidade e eficiência, em especia na cidade de Aracaju.
Essa ONG ganhou rapidamente notoriedade no Estado de Sergipe, devido
principalmente à emergência da sua discussão, em um momento em que a cidade de
Aracaju, principalmente pelos constantes problemas relacionados ao congestionamento
nas principais vias públicas, estuda a criação de novas ciclovias, o que aparentemente
seria uma forma de diminuir os problemas. A partir de entrevistas realizadas com José
Waldson, o fundador da ONG, ele explicita que a grande missão da instituição é
“Promover a assistência e apoio a programas, projetos ou planos voltados para melhoria
da mobilidade urbana, sejam eles para o uso da bicicleta ou transporte a propulsão
humana, como também os transportes públicos”.
Conclusões
Após a leitura das realidades, parece que fica claro que ou a ONG se
profissionaliza, ou os envolvidos diretamente vão precisar ter outros empregos e buscar
alternativas de vida. Ficou claro também que existe uma nova identidade do
ambientalismo sergipano estampado na trajetória de Jose Waldson, que tem seu “ganha
pão” na sociedade Semear, mas usa suas horas de folga para gerar o seu protesto no
Ciclo Urbano. Ficou claro também, que a semente dos primeiros idealizadores nos idos
da década de 1980, ainda continua forte, mas que eles necessitam ter capacidade técnica
para serem ouvidos, lidos e respeitados.
129
A presente pesquisa foi importante para evidenciar as mudanças de cargos
políticos comissionados na esfera pública em Sergipe, para a prática de cargos
escolhidos de forma mais técnica dentro dos órgãos ligados ao Meio Ambiente no
Estado. De emblemáticos juristas buscando capacitação na área ambiental, de
professores cada vez mais engajados com a luta ambiental, de trabalhos científicos
sendo cada vez mais publicados, mas fica um eco na frase de Porto Gonçalves, em abril
de 2011 em Aracaju, “quanto mais se falou de meio ambiente, mais se destruiu o meio
ambiente” e esse parece ser o destino de Sergipe, pois as construtoras continuam
loteando a cidade, as fábricas continuam sendo criadas, os animais continuam sendo
assassinados, as plantações devastadas, e a mídia não é proativa em buscar dados para
alertar a população, o que aumenta a responsabilidade das ONGs, que necessitam de
estruturas de comunicação eficazes para aumentar seu poder de explanação. Essa
estrutura de comunicação precisa ter um viés profissional de assessoria de comunicação
dentro de um viés focado na gestão integrada da comunicação.
Foco em missão estratégica, planejamentos anuais, e funcionários capazes, é a
melhor forma de competir de se estabelecer uma área cada vez mais competitiva. ONGs
que não se profissionalizaram não ganharam o respeito dos “patrocinadores”,
consequentemente, não tiveram como desenvolver projetos sustentáveis. Outro
problema encontrado foi a falta de separação entre a estratégia pessoal de conquista de
espaço público, e a estratégia de posicionamento das ONGs. Essa falta de separação
confundia sobremaneira a sociedade civil, ficando difícil separar a ONG da sua
principal liderança, essa imagem precisa ser dissociada se for levado em consideração o
grande propósito do beneficio público. ONGs que nunca tiveram envolvimento direto
com a política, historicamente, alcançaram melhor sorte. Evidentemente que levando
130
em conta as questões éticas e legais, essa associação da pessoa pública, a instituição que
ele fundou, pode “estragar” a imagem da instituição perante o público, o que levou a um
enfraquecimento do poder de denúncia das ONGs
A própria estrutura econômica mundial que diminuiu o poder de expressão, a
própria estrutura multissetorial que deu lugar a um binômio de disputa, essa
multissetorialiade complicou a “leitura” do campo de luta das ONGs, elas não sabem
qual o adversário, nem mesmo quais são os seus reais inimigos. Em Sergipe um dos
fatores principais que gerou essa complicação de leitura foi à forte presença das
construtoras nos gabinetes públicos, a forte associação ao poder público estadual e
municipal, e de envolvimento com o governo federal. As ONGs, ficam “impedidas” de
fazer mais fazer denúncias contra os crimes ambientais, pois os crimes ambientais são
criados e ironicamente cometidos pelas próprias construtoras.
As ONGs sergipanas, com raras exceções, acabaram não buscando
profissionalização, por isso foram sucumbidas pelas concorrentes nacionais (embora
elas nunca tenham chegado a Sergipe), ou simplesmente os financiamentos não vêm
para Estado. Nesse ponto, alguns fatores podem ter ajudado: a falta de um perfil
empreendedor social para os criadores das ONGs, falta de interesse dos voluntários em
assumir a organização, liderança autocrática, que não aceitava críticas e que por isso
atrapalhava o andamento das organizações, longas ausências dos seus lideres, devido a
cargos comissionados no Estado, cursos de capacitação ou mesmo campanhas políticas,
que tiram completamente o foco na organização e gestão da ONGs
A partir da década de 2000, os movimentos ambientais em Sergipe, ganharam
novos formatos, como já foi analisado a própria ação neoliberal ganhou força com as
131
reformar promovidas pelo governo de FHC, desde a segunda metade da década de 1990.
Essa nova forma de encarar a política, com uma pretensa divisão da responsabilidade
entre a sociedade civil, as empresas privadas e o governo em suas formas de
assimilação.
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134
O olhar machadiano sobre o cativo: a literatura como importante fonte de
conhecimento da oitocentista sociedade escravista carioca
The Machado’s look on the slave: the literature as important knowledge source of
the carioca slave society in nineteenth century
Murilo Vilarinho1
Resumo: O olhar machadiano - visão arguta e irônica – captou a consciência brasileira e anteviu a
modernidade em oposição à vida da patriarcalista e escravista sociedade carioca da corte (retrograda) do
século XIX. Por meio das personagens de seus romances, crônicas, contos etc., de fase Realista, Machado
de Assis representou o teatro social do Segundo Império. Assim, este trabalho versa discutir a
representação do cativo no pensamento literário e social machadiano.
Palavras-chave: Escravo; Machado de Assis; Literatura.
Abstract: The look Machadiano - clever and ironic vision – picked up awareness and foresaw Brazilian
modernity in opposition to slavery and life patriarchalist court Carioca society (retrograde) of the
nineteenth century. Through the characters of his novels, essays, short stories etc.., Realistic phase,
Machado represented the social theater of the Second Empire. Thus, this article going to discuss the
representation of the captive in Machado’s literary and social thought.
Key words: Slave; Machado de Assis; Literature.
Introdução
A literatura brasileira, marcada inicialmente pela cronística do descobrimento 2,
desenvolveu-se em solo brasileiro, seguindo as estruturas estruturadas estruturantes
(termo emprestado pelo pensamento de Bourdieu) do velho mundo - o centro. Todavia,
o modo de registrar o quotidiano nos trópicos, seja por meio de cartas, sermões,
1
Doutorando em Sociologia pelo PPGS - Universidade Federal de Goiás (UFG). Faculdade de Ciências
Sociais, Campus II/ UFG-CP. 131 CEP: 74001-970 – Goiânia –GO, fone: (62) 3521-1100. Bolsista da Capes.
Pesquisa as áreas: Pensamento Social Brasileiro, Sociologia da Literatura e Direitos Humanos. E-mail:
[email protected]
2
Caracterizada pela literatura informática (Carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei de Portugal), literatura
jesuítica, literatura barroca até as estéticas mais contemporâneas.
135
romances ou poesias, foi sendo ressemantizado, pois o contexto da periferia fornecia
outras substâncias e cores para a arquitetura da arte brasileira, a saber - a literatura
tupiniquim sofreu influência do local e esteve em formação desde os idos coloniais.
Assim sendo, muitos pesquisadores afirmam que uma literatura critica e
desvinculada do provincianismo estético do centro somente foi vista no Brasil a partir
do Realismo. Nesse sentido, Machado de Assis e seu escrito – “Memória Póstumas de
Brás Cubas” - seriam divisores de águas no século XIX.
Muitos escritores contemporâneos de Machado de Assis o acusaram do não
envolvimento com temas quotidianos da nação. Lima Barreto, por exemplo - quem
representou a sociedade escravocrata e a criticou - afirmou ser Machado um literato
desvinculado da literatura a serviço da denuncia e do engajamento. Silvio Romero
seguiu a mesma linha desse escritor. Contudo, Machado foi um homem comprometido
com tais causas, talvez não abertamente Ipsis Litteris, mas pautado na fina ironia – ato
de desnudar as verdades e apresenta-las, nas entrelinhas à sociedade consumidora de
cultura, a Corte3- que foi tecida abundantemente enquanto recurso estilístico, nos
escritos de fase madura de Machado de Assis- sob a égide do Realismo.
3
A Corte carioca foi o centro político, social, cultural e ideológico no século XIX. Sede da monarquia
portuguesa desde 1763, quando houve a mudança do eixo administrativo Salvador - Rio de Janeiro, a
Corte se tornou com a chegada da corte portuguesa em 1808 o epicentro dinâmico do Brasil. É desse
local e desse contexto temporal – o oitocentismo- que Machado de Assis redigiu e construiu sua
literatura incisiva. Por Corte, busca o entendimento em Lilia Schwarcz (1998, p.170), assim, “Na teoria,
nobres eram aqueles que recebiam títulos do imperador. Na prática, porém, a palavra era mais elástica.
A corte podia representar o grupo de pessoas mais chegadas ao rei, e também os titulados. Por outro
lado, era, ainda, “a corte do Rio de Janeiro”, tendo como referência o Paço de São Cristóvão. É essa
mesma “corte” que até os anos 80 funcionará como uma espécie de centro propulsor: a moda, as gírias,
a política, a cultura partiam de lá. Nesse sentido, se pertencer à corte — à carioca — era um direito
relativamente amplo, ser titular, ser nobre era um privilégio de poucos. Mais uma vez, nesse caso, a
balança ficava nas mãos da instituição monárquica, que prolongava sua memória cercando-se de um
círculo de selecionados. Era a elite, sobretudo carioca, que virava — literalmente — corte”.
136
Partindo do exposto, esse trabalho versa discutir brevemente sobre o negro nos
escritos machadianos, haja vista que o negro e a sociedade escravocrata foram dois
elementos contemporâneos ao escritor e para muitos, temas não abordados, com o tom
de denúncia, engajamento e crítica, pelo bruxo do Cosme Velho. Por fim, como
hipótese provisória, acredita-se que Machado de Assis foi um literato engajado, mas de
acordo com sua conveniência - Machado ascendeu à escala social, de descendentes de
escravos ao mérito de seus escritos os quais foram reconhecidos em vida. Foi
condecorado pelo Imperador Pedro II com a Ordem da Rosa. Presidiu a Academia
Brasileira de Letras. Machado foi um burguês não provinciano. Enxergou as mazelas do
seu contexto e de seu tempo, inclusive a sociedade farisaica e escravista.
O negro e a sociedade escravista: breves explanações
Fig.1 Óleo sobre tela - Johann Moritz Rugendas. Representação do
cativo no quotidiano da Corte carioca no século XIX. Fonte:
http://cultura.culturamix.com/arte/obras-de-rugendas
137
O entendimento sobre o papel do negro na terra brasilis remonta aos primeiros
tempos da empresa colonial portuguesa a qual encontrou no açúcar sua fonte inicial de
riquezas e no modo de produção escravista, implantado na possessão lusitana de alémmar, o elemento que estruturaria a vida social desde então. Assim,
Foi o modo de produção do açúcar aqui implantado que conformou nos
primeiros tempos da colonização o regime de terras e, demais, toda a
sociedade que então sobre ele se erguia. Modo de produção talvez sui
generis na história, pois que reunia elementos de dois regimes econômicos:
o feudal da propriedade e o regime escravista do trabalho (GUIMARÃES
apud GORENDER, 2001, p. 5).
Por meio das palavras acima, infere-se que a expansão mercantil portuguesa
(séculos XV e XVI), a constituição do patriarcalismo 4 brasileiro (família e agregados
estavam centrada na figura do senhor de terras – sistema semelhante ao feudal), as
unidades produtoras do açúcar, formavam um conjunto real o qual se traduziu no
universo onde o negro encena o seu papel, noutras palavras, um papel de engrenagem
do sistema escravista, de ser explorado, espoliado, e um papel de “raça inferior”.
O negro desde a colônia era tido como uma propriedade e objeto que se dispõe.
As palavras abaixo refletem essa perspectiva,
Em geral, tem sido dito que o escravo possui três características
definidoras: sua pessoa é a propriedade de outro homem, sua vontade está
sujeita à autoridade do seu dono e seu trabalho ou serviço são obtidos
através da coerção (DAVIS apud GORENDER, 2001, p. 47).
4
Assim como no feudalismo o modelo patriarcal brasileiro estava atrelado ao regime territorial.
138
No imperio, a mão de obra continuou sendo a escrava. Nem com a
Independencia do Brasil em 1822, as relações escravocratas modificaram. A base
economica do Império de Dom Pedro I e Pedro II foi respaldada pelo regime de
servidão. Esse contexto era marcado pela contração dialetica entre liberalismo e
conservadorismo. A ordem vigente no Brasil do século XIX foi uma miscelania entre
monarquia constitucional e regime escravocrata, quadro que só começaria a se
modificar depois da luta abolicionista nos moldes de Castro Alves (1847-1871) e José
do Patricinio (1853-1905). O império tinha ares de um regime moderno se se considerar
a Constituição de 1824- a primeira Constituição brasileira; contudo, essa resguardava os
traços do arcaico- eis o Poder Moderador que dava ao Imperador plenos poderes no
molde absolutista. A sociedade imperial sediada na corte, composta pelos senhores de
terras, titulos de nobreza e do capital contrapunha na balança social à classe pauperizada
da qual os escravos foram o naco menos previlegiado.
Embora, Leis como as de Eusébio de Queiroz (1850), do Ventre Livre (1871),
do Sexagenário (1887) virasaram o adocicamento da violência contra uma raça, foi
somente a Lei Aura de 1888 que quebrou as algemas da esravidão. Porém, mesmo solta
as amarras dos negros, essa grande parcela da população brasileira se viu desamparada
pelo estado e sociedade nos tempos que se seguiram - República (1889) -, como nos
lembra os escritos de Florestam Fernandes.
139
Um olhar sociológico sobre os escritos machadianos: pensando a sociedade
escravista carioca
Através de uma visão apurada e atenta às nuanças sociais do Brasil Império Corte do Rio de Janeiro do século XIX-, Lília Schwarcz, em “As barbas do Imperador”,
traça as linhas específicas sobre o contexto escravista na sociedade da Corte.
Por esse prisma descreve,
Na ótica da corte, o mundo escravo, o mundo do trabalho, deveria ser
transparente e silencioso. No entanto, o contraste entre as pretensões
civilizadoras da realeza — orgulhosa com seus costumes europeus — e a
alta densidade de escravos é flagrante. (...) os cativos representavam de
metade a dois quintos do total de habitantes da cidade do Rio de Janeiro no
decurso do século XIX. A corte reunia em 1851 (...) a maior concentração
urbana de escravos existente no mundo desde o final do Império romano:
110 mil escravos em 266 mil habitantes. Tal volume de cativos levava a uma
divisão fundamental: de um lado, a rua do Ouvidor, com seus hábitos
requintados e europeus; de outro, uma cidade quase negra em suas cores e
hábitos africanos. (SCHWARCZ, 1998, p.163.).
Em suas descrições, a autora também acrescenta,
Dividindo espaços, a corte da rua do Ouvidor tentava fazer da escravidão um
cenário invisível. Não obstante, entranhado não só no município neutro do
Império como em todo o território nacional, o cativeiro existente no Brasil
era uma ameaça constante à estabilidade da monarquia e contrastava com o
brilho civilizatório desse reino americano. (...) A escravidão era e seria, até o
final do reinado de d. Pedro II, a grande contradição de seu Império, que
pretendia, quase, europeu. (SCHWARCZ, 1998, p.164.).
Diante do cenário carioca oitocentista, a escritora descreveu alguns aspectos do
mundo social e ideológico da sociedade escravista à moderna, do Império. Tais
considerações demonstram o quanto as estruturas escravocratas eram rígidas em relação
ao período que preconizava o advento da República e da modernidade. O mundo era
capitalista. A ideologia da liberdade, igualdade e fraternidade se tornaram o lema no
140
velho mundo; contudo, no Brasil, esse lema se fundamentou em diretrizes para inglês
ver, segundo o vocabulário quotidiano. Em resumo, a sociedade da Corte era escravista,
patriarcalista, patrimonialista (no sentido Weberiano do termo, o administrador dos bens
públicos faz desses bens a extensão dos seus, em outras palavras a esfera publica é
sobreposta pela privada, assim, a burocracia pura não existe.).
...
Fig.2 Óleo sobre tela - Johann Moritz Rugendas. Representação do negro e
da sociedade da Corte – Rua Direita no Rio de Janeiro oitocentista. Fonte:
http://cultura.culturamix.com/arte/obras-de-rugendas
Machado de Assis, escritor e pensador de seu tempo, por meio das tramas da
literatura, não fez uma literatura sem corpo nem escopo. Não foi um literato distante dos
temas avassaladores e passíveis de investigação e crítica. Ao contrário, ele trabalhou nas
entrelinhas da intelectualidade e criticou ironicamente o espelho social da Corte
escravista e patriarcal. O público de sua época não compreendera o que Machado de
Assis escrevia. Eles certamente se viam nos romances, mas não enxergavam a dimensão
da ironia assaz, robusta e “fina” do Bruxo do Cosme Velho.
141
Sobre a postura de engajamento de Machão de Assis com as causas de seu
tempo, Octavio Ianni (1988) acredita que as discussões sobre a sociedade escravista, o
negro, encontram-se localizadas e situadas na obra machadiana, entretanto, seguindo
uma apresentação implícita, decantada, insidiosa e subjacente. Sob este ângulo, Brayner
(1976) salienta que os escritores do século XIX no Brasil utilizaram da ironia como
forma estilística de manifestar os paradoxos do período, isto é, liberalismo e escravismo
presentes no Brasil, por exemplo.
Nesse ponto, algumas passagens dos escritos de Machado de Assis justificarão o
engajamento do autor com as causas de sua época. No entanto, a ponte entre sociedade
escravista oitocentista e escritos machadianos pode ser mais bem compreendida à luz da
sociologia da literatura.
Cabe à sociologia da literatura entender as entrelinhas da obra, averiguar o jogo
de poder e sociedade impressos nessa e demonstrar como esses elementos foram
retratados pelo literato. Logo, os literatos são mais do que meros reprodutores da
realidade social de sua época, eles são formuladores de ideias e vinculadores dos
cenários de mundo que tangencia a sociedade. A ficção seria o elemento que, por si só,
justifica esses apontamentos, pois a ficção permite ao literato recriar os cenários
existentes e por meio da criação: criticar, esconder ou apresentar, ironizar, preencher
lacunas, desenterrar mortos, dar voz a quem não possui e retirá-la daqueles que a
possuem em demasia etc.
Com relação a essa criação, Lucien Goldmman, um clássico na sociologia da
literatura, comenta que o escrito (romance ou outras peças literárias) é uma “(...)
criação de um mundo cuja estrutura é análoga à estrutura essencial da realidade
social” (GOLDMANN, 1967, p. 195).
142
E mais, o literato é um sujeito coletivo à proporção que essa coletividade é
compreendida como uma complexa trama de relações entre indivíduos em que “(...) o
artista, sob o impulso de uma necessidade interior, usa certas formas e a síntese
resultante age sobre o meio” (CANDIDO, 1967, p. 25).
...
Tomando por base o exposto, apresentam-se algumas passagens dos escritos
machadianos os quais são reveladores (percebe-se a ironia do literato) no que concerne
ao sistema escravista e patriarcalista.
Na obra “Memórias Póstumas de Brás cubas” (1881), no capítulo XI– “O
menino é pai do homem”-, Machado de Assis, por meio do universo da personagem
Brás Cubas e de acordo com excerto abaixo, descreve o cenário de onde a personagem
adveio (contexto patriarcal); revela os traços da sociedade escravista, ao expor o escravo
como coisa que o nhônhô se dispunha a seu bel prazer; delineia o psicologismo do
individuo pertence à sociedade da Corte, ou seja, um indivíduo formado em um
contexto familiar que não apresentava barreiras às atrocidades contra o negro, portanto,
um espaço que formava o indivíduo livre a contemplar o egoísmo e a injustiça humana,
caracteres que seriam transplantados para a vida social pública (a cordialidade de
Buarque de Holanda?).
143
Cresci; e nisso é que a família não interveio; cresci naturalmente, como
crescem as magnólias e os gatos. Talvez os gatos são menos matreiros, e com
certeza, as magnólias são menos inquietas do que eu era na minha infância.
Um poeta dizia que o menino é pai do homem. Se isto é verdade, vejamos
alguns lineamentos do menino. Desde os cinco anos merecera eu a alcunha de
“menino diabo”; e verdadeiramente não era outra coisa; fui dos mais malignos
do meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. Por exemplo, um
dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher do doce de
coco que estava fazendo, e, não contente com o malefício, deitei um punhado
de cinza ao tacho, e, não satisfeito da travessura, fui dizer à minha mãe que a
escrava é que estragara o doce “por pirraça”; e eu tinha apenas seis anos.
Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as
mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepavalhe
ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro
lado, e ele obedecia, — algumas vezes gemendo, — mas obedecia sem dizer
palavra, ou, quando muito, um — “ai, nhonhô!” — ao que eu retorquia: —
Cala a boca, besta!” — Esconder os chapéus das visitas, deitar rabos de papel a
pessoas graves, puxar pelo rabicho das cabeleiras, dar beliscões nos braços das
matronas, e outras muitas façanhas deste jaez, eram mostras de um gênio
indócil, mas devo crer que eram também expressões de um espírito robusto,
porque meu pai tinha-me em grande admiração; e se às vezes me repreendia, à
vista de gente, fazia-o por simples formalidade: em particular dava-me beijos.
Não se conclua daqui que eu levasse todo o resto da minha vida a quebrar a
cabeça dos outros nem a esconder-lhes os chapéus; mas opiniático, egoísta e
algo contemptor dos homens, isso fui; se não passei o tempo a esconder-lhes
os chapéus, alguma vez lhes puxei pelo rabicho das cabeleiras. Outrossim,
afeiçoei-me à contemplação da injustiça humana, inclineime a atenuá-la, a
explicá-la, a classifiquei-a por partes, a entendê-la, não segundo um padrão
rígido, mas ao sabor das circunstâncias e lugares (...). (ASSIS, 1994, p.15)
Memórias Póstumas, escrito anterior à Lei Aura, apresenta ao leitor atento, sob o
ângulo do excerto acima, a instituição escravista e o psicologismo social que regava as
suas árduas estruturas. Machado não deixou de revelar a verdade dessa estrutura nas
entrelinhas de seu romance. Ele criou um universo análogo à realidade social,
reportando ao pensamento de Goldmman.
O mesmo panorama de analogia da sociologia de Goldmman pode ser aplicado
ao romance “Esaú e Jacó” (1904). Nessa obra, Machado analisa a vida social e a
estrutura da escravidão através da ótica do capitalista, ou seja, do Brasil imperial pósabolição e, portanto, já republicano. Talvez aqui, observa-se um Machado que antevia a
144
modernidade social em contrapartida à arcaica ordem do escravismo, ao contrapor as
ideias de Pedro a Paulo e vice – versa e, ao indicar que a escravidão é uma instituição
encravada na construção mental da sociedade e que deve ser revista tal posição, com a
finalidade de bradar os novos ventos trazidos pela modernidade. Talvez tal intento de o
branco se livrar do preconceito seria uma postura um tanto utópica- de acordo com
Florestan Fernandes o negro foi liberto, mas não encontrou lugar na sociedade de
classes do pós-Império .
Com a finalidade de ilustrar esse viés, notam-se as seguintes palavras de Paulo
sobre a escravidão, em um discurso em são Paulo, no dia 20 de maio, “a abolição é a
aurora da liberdade, esperemos o sol; emancipado o preto, resta emancipar o branco”
(1997, p. 992). Para Paulo a liberdade dos escravos é o principal caminho para a
autonomia, entretanto, é necessário que o pensamento senhorial seja modificado com
relação ao negro, no que tangencia a ideia de sua inferioridade. Assim, libertando-se o
branco do preconceito, a plenitude da liberdade escrava seria concluída.
Fig.3 Johann Moritz Rugendas e L. Deroi , “Negros no Porão”, litografia que ilustra Voyage
Pittoresque au Brésil (Paris, 1827-35), Biblioteca Municipal Mário de Andrade. Fonte:
http://www.usp.br/revistausp/30/04-diener.pdf
145
...
Em conclusão, acredita-se que Machado de Assis foi um homem de seu tempo e
de seu país. Com genialidade ele descreveu a sociedade do seu contexto e revelou a
estrutura real do cenário social dos homens da Corte tropicalizada (com resquícios da
corte que se volta à figura do Soberano, como nos ensina Norbert Elias; mas que guarda
os caracteres patriarcais, patrimoniais e escravistas tão típicos do Brasil Monárquico à
Imperial). O mundo escravo era transparente aos olhos da sociedade carioca, e o
mesmo se aplica aos demais núcleos sociais. A corte foi aqui tomada como referência,
pois foi a partir desse espaço que Machado de Assis pensou o seu tempo e os eventos
por ele assistido. Os romances em pauta – “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e “Esaú
e Jacó”- foram obras titulares entre outras, da representação da relação entre o negro e o
senhor- antes e depois da abolição da escravatura (1888). Tanto Brás Cubas, quanto
Paulo e seus respectivos espaços físicos e psicológicos foram elementos de fina
evidência diante do campo substancial, representado pela sociedade escravista. Em
resumo, a escravidão foi ironicamente discutida pelo literato em seus escritos.
Referências
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Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. v. I
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Nova Aguilar, 1997. v. 1, p. 945-1093.
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BRAYNER, Sônia. Uma definição de ironia. In: _____. Labirinto do espaço romanesco. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira: INL, 1976. p. 100-118.
CANDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade: estudos de teoria e história literária. 2ed. São
Paulo: Companhia Nacional, 1967.
146
___________. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 5.ed. Belo Horizonte:
Itatiaia; São Paulo: Universidade de São Paulo, 1975.
FERNANDES, Florestan. A Integração do Negro na Sociedade de Classes. 2 vol. São Paulo:
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GOLDMANN, Lucien (org.). Sociologia da Literatura. São Paulo: Mandacaru, 1989.
______. Sociologia do Romance. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.
GORENDER, Jacob. O Escravismo Colonial. 6ª ed. São Paulo: Ática, 2001.
GORENDER. Jacob. A escravidão reabilitada. 2º ed. São Paulo: Ática, 1991.
IANNI, Octávio. Literatura e consciência. In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros: edição
comemorativa do centenário da Abolição da Escravatura. São Paulo, n. 28,1988.
ROMERO, Sílvio. Machado de Assis. 2.ed. Rio de Janeiro: [s/i], 1936.
SCHWARCZ, Lilia Moritz As barbas do imperador, São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do
romance brasileiro. 5. ed. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2000a.
_______. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. 4. ed. São Paulo:
Duas Cidades; Editora 34, 2000b.
147
Discursos Sobre o Sistema de Cotas para Afro-descendentes na formação da
opinião e vontade política: o mito da deliberação racional
Speeches About System Quotas for Blacks in shaping opinion and political will: the
myth of rational deliberation
Ma. Victoria Espiñeira1
Ruy Aguiar Dias2
Resumo: Estudo realizado entre outubro/novembro de 2004 e 2006, abrangendo uma amostra de
aproximadamente 1.390 estudantes com objetivo de perceber os argumentos envolvidos no processo
deliberativo no espaço público, tendo como tema a questão do sistema de cotas para afro-descendentes.
Os resultados sugerem que a idéia de um “debate racional” não se sustenta e que o processo deliberativo
está limitado aos conjuntos particulares de valores e as diferentes perspectivas dos diferentes grupos
étnicos, de classes sociais que compõem o conjunto de públicos pesquisados. A leitura dos dados
confirma que a atitude para com o sistema de cotas varia significativamente conforme a classe social e o
grupo étnico a que pertence pesquisados sugerindo conotações de natureza nitidamente ideológicas.
Palavras Chaves: Opinião pública; políticas afirmativas; representações; tolerância.
Abstract: This study was conducted in the months of October 2004 through November 2006. The
objective of this project is to analyze the arguments used in the process of forming public opinion about
the quota system for African Brazilian students and the set of values involving altruism and tolerance
related to the perspectives of the different ethnic groups, social classes and genres that comprise the group
of students under analysis. A first reading of the data seems to confirm that the attitude towards the quota
system various greatly according to the social class and ethnic viewpoints of the subjects analyzed, which
points to commutations of a clearly ideological nature.
Key Words: Public opinion; affirmative acts; social representations; tolerance.
1
Professora Associada do Departamento de Ciência Política da UFBA
Professor Titular do Departamento de Ciências Humanas da UNEB
2
148
Apresentação
O conceito de opinião pública é central na concepção das democracias chamadas
deliberativas3. Sua presença pode ser depreendida já em estudos clássicos como o de
Rousseau que pressupunham um público virtuoso e educado politicamente, com o
interesse bem compreendido e voltado para o bem comum.
Uma Opinião Pública livre é um elemento essencial na maior parte das
formulações liberais de modelos democráticos, embora sua dimensão e relevância possa
variar bastante, assumindo uma maior ou menor importância a depender da linha
assumida, podendo resumir-se a apenas a expressão eleitoral, como defende Sartori, e
também autores que se alinham com o modelo da democracia participativa, ou um papel
mais amplo que se estenderia para além dos períodos eleitorais.
Habermas desenvolveu de forma bastante complexa e persistente uma
abordagem sociológica dos conceitos de esfera pública, sociedade civil e opinião
pública, enfatizando a polissemia deste termo, que segundo ele é intencional. Para
Habermas a gênese da OP moderna estaria no aparecimento de uma esfera pública
burguesa que mediaria o mundo da vida e o sistema político. A vontade da burguesia
comercial de participar e intervir nas decisões políticas no século XVIII aliado ao
surgimento de processos comunicativos massivos permite o aparecimento de um espaço
público intermediário entre o povo e o Estado e sistema político que se configura como
a sociedade civil moderna, espaço da constituição da vontade coletiva. Com isso o ator
do mundo privado assume um papel, um espaço que a torna contraparte do poder
3
O paradigma de democracia deliberativa é desenvolvido tanto por autores da teoria Liberal quanto por
seus críticos que adotam o modelo da teoria Critica.
149
público. É o mundo dos leitores que não é mais um ouvinte ou assiste uma
representação, mas um público que julga e que publiciza esse objeto julgado
(HABERMAS 2003). Essa perspectiva permite pensar a democracia como um processo
dialético e permanente, capaz de incorporar demandas da população com uma certa
agilidade, o que o sistema institucional da democracia representativa teria dificuldade de
fazer.
Na verdade é difícil visualizar numa sociedade complexa o processo no qual os
cidadãos tomam conhecimento de uma questão controversa, discutem sobre ela de
forma desinteressada e tomam uma decisão com base no consenso. As dificuldades para
realização de tal operação são inúmeras. Nos processos democráticos modernos a
ampliação da participação política através da inclusão de parcelas cada vez mais amplas
nos processos eleitorais torna praticamente impossível a presença de um público
vigilante, politicamente informado e disposto a discutir as questões. Contra essa fantasia
se interpõem inúmeros obstáculos que vão desde a incapacidade dos indivíduos se
manterem informados sobre todas as esferas que afetam a vida pública como o direito, a
saúde, a economia até a falta de interesse pessoal por determinados temas.
Pierre Bourdieu (1983) alega que a idéia de públicos instruídos, informados,
envolvidos num debate publico e que chegam a um consenso, não passa de uma ficção.
Justifica contestando a veracidade de tres postulados em que se baseiam as pesquisa de
OP: todo mundo pode ter uma opinião; todas as opiniões tem valor e; há consenso sobre
os problemas. O autor defende que a opinião pública, no moldes dos que defendem sua
existência não é na verdade uma opinião publica uma vez que esta exigira debate, livre
circulação de idéias e principalmente o consenso. Acrescenta ainda que falta interesse
dos públicos nas questões, falta ou deficiência de informações, e falta de competência
150
dos públicos para discutir determinados assuntos que exigiriam conhecimento técnico.
Com isso as pesquisas de opinião retratariam apenas respostas éticas em lugar de
respostas políticas.
As POP funcionariam como instrumentos de ação política e
legitimação da força.
Entendemos que um tema como reúna alguns elementos que permitem analisar a
questão da opinião publica de forma empírica é o das cotas para afro-descendentes, pois
trata-se de um tema do interesse do público estudado e que gerou um processo de
discussão na mídia. Nosso objetivo neste estudo foi o de procurar identificar e
compreender a possível existência deste possível processo deliberativo e para isto
buscamos identificar as atitudes, representações e valores relacionados com a política de
cotas e a origem e natureza dos argumentos envolvidos.
Políticas Redistributivas
Os primeiros registros de aplicação das chamadas ações afirmativas remontam
aos anos 60 do século passado nos Estados Unidos da América (EUA), com a
promulgação dos direitos civis. Ao longo dos anos, estas medidas foram largamente
difundidas não somente nas universidades americanas como em outras atividades dessa
sociedade, tendo a Suprema Corte daquele país, de forma ambígua, se manifestado pela
constitucionalidade de sua aplicação4.
4
O editorial do jornal o Globo, republicado em www.universia.com.br/html/noticia/noticia
_clipping_gbag.html, destaca que “A decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos de referendar as
políticas afirmativas para garantir a diversidade étnica e social nas universidades ajuda a entender a
dimensão das propostas de se privilegiar o acesso dos negros ao ensino superior brasileiro. Por apenas 5
a 4, os juízes mantiveram um voto dado pela mesma Corte em 1978. E por uma margem maior (6 a 3)
declararam ilegais os sistemas que burocraticamente distribuam bônus a candidatos de minorias na
151
A pressão de grupos de defesa dos direitos humanos e de associações
profissionais nos EUA conseguiu impor um sistema de cotas em diversas atividades
profissionais, a ponto de condicionar as produções cinematográficas, por exemplo, à
presença obrigatória no elenco e na equipe técnica de uma porcentagem de afroamericanos, gerando situações bastante curiosas, como a atuação de protagonistas
negros em pé de igualdade com brancos, em filmes do gênero western, ambientados no
Oeste americano do século 19, época em que qualquer tipo de integração seria
inimaginável naquela sociedade segregacionista.
No Brasil, estas medidas começaram a ser postas em prática no ano 2001 5, na
Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), com a adoção do sistema de cotas
para afro-descendentes. Em 2002, foi criado, no âmbito da Administração Pública
Federal, o Programa de Ações Afirmativas, que resultou na elaboração do Sistema de
Cotas das universidades de Brasília (UnB) e do Estado da Bahia (UNEB). O critério
adotado para caracterizar o beneficiado pelas medidas foi, na maior parte das
instituições, a chamada autodefinição, ou seja, a declaração voluntária do candidato ao
benefício. A conveniência desta forma de inclusão no Programa está no fato do
candidato ter de se declarar negro ou afro-descendente, o que contribui para a
reafirmação da identidade cultural e da auto-estima dos negros.
O modelo esboçado por Jonh Rawls em “justiça com eqüidade” (1993) e outros
textos compreende que decisões redistributivas e compensatórias podem resultar de uma
situação deliberativa. Uma intervenção de natureza redistributiva ou compensatória,
como o caso de um sistema de cotas para afro descendentes, não seria inteiramente
compatível com o postulado liberal, uma vez que representaria uma forma de
avaliação para a matrícula num curso superior”.
5
Portaria MJ, no 1156, de 20 de dezembro de 2001.
152
intervenção dos poderes públicos sobre os direitos individuais e sobre o equilíbrio
“natural” em favor de uma justiça social. Em outras palavras, a teoria de Rawls se
baseia em “decisões sociais”, o que significa que as decisões que beneficiariam o
individualismo, o auto-interesse e no qual os agentes que buscam a maximização de
seus interesses, perderiam espaço para as decisões deliberativas de caráter mais
coletivas (sociais). Essa noção de deliberação retomaria também a noção rousseauniana
de cidadãos educados politicamente. Já a linha da escolha racional se sustenta em cima
das preferências individuais.
O debate sobre as cotas
A implantação do sistema de cotas para afro-descendentes, adotado pela UNEB
e pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), demonstrou que a questão é ainda
bastante controversa, provocando diversos pronunciamentos e acalorados debates no
meio acadêmico. Apesar da polêmica e da falta de um consenso em torno do tema esta
política vem se generalizando. Recentemente, a discussão foi retomada na Internet, com
ampla participação de professores da UFBA, sendo que a maioria dos pronunciamentos
se colocava contra a medida6.
O crescente interesse no tema influi na formação e na ampliação da opinião
pública, pela aquisição de novos conhecimentos e pela atribuição de outros significados
a um objeto, o que não pode ser desprezado. Um conjunto de novas informações sobre
um assunto, sem dúvida influencia a formação das atitudes e das representações sociais
que são fundamentadas em bases cognitivas. No entanto, é oportuno observar o grau em
que o componente afetivo está presente nas posturas diante do sistema de cotas.
6
Debate ocorrido no segundo semestre de 2004, no grupo de discussão da UFBA, via Internet.
153
Atitudes de natureza afetiva são, devido à sua intensidade, menos propensas a mudanças
do que as de base cognitiva. O debate livre, racional e descompromissado da
perspectiva democrática deliberativa pressupõe a superação do auto-interesse e atitudes
de natureza afetiva não são compatíveis com o tipo de consenso almenjado.
Nosso objetivo principal ao realizar este estudo foi, para além da clássica
divergência entre protagonistas e antagonistas, identificar, no meio estudantil, quais as
atitudes dos estudantes em relação às cotas, procurando compreender, ainda, como tais
atitudes se estruturavam em suas possíveis vinculações com a estrutura de classe social.
Buscamos perceber, também, as ordens de fatores mais sutis, subjacentes aos processos
de formação de opinião e tomada de decisão, e os repertórios simbólicos a respeito do
nosso objeto. Com base nos resultados, acreditamos poder entender como se processam
as resistências às mudanças no interior dos grupos.
Entendemos que a consolidação democrática pressupõe uma boa dose de
valores, como tolerância e altruísmo, este último entendido como a capacidade do
indivíduo de se preocupar com o outro, sem levar em conta os seus próprios interesses.
Visto de uma perspectiva moral, o altruísmo poderia ser entendido como um imperativo
categórico.
Por tolerância compreende-se
el espacio que dá? vida a la comunidad política, es decir, a los métodos,
reglas y procedimientos que hacen posible procesar las diferencias en torno a
lo que cada individuo o grupo entienden por vida políticamente asociada, que
significa vida en común. (CISNEROS, apud SALAZAR, [s.d.])
154
A tolerância aparece como um conceito central nas análises de espaços de
convivência nos quais ocorrem trocas de diversas naturezas. No Brasil, essas trocas vêm
se consolidando, historicamente, de forma desigual. Acreditamos que quaisquer
medidas que envolvam mudanças em tais situações devem desencadear resistências
muito fortes e tentativas de (re)produção de um discurso legitimador da situação de
desigualdade, por parte dos estratos médios e superiores da sociedade.
Com base na formulação teórica de atitudes, foi elaborado um conjunto de
aproximadamente cem questões, relativas ao tema, que foram submetidas a uma
avaliação pela qual foram selecionadas “as seis de maior escore” para compor a escala
de atitude.
Um questionário contendo as seis questões selecionadas foi então submetido
inicialmente a um teste, junto a uma amostra de 70 estudantes do universo a ser
pesquisado. Além das seis perguntas sobre atitude, introduzimos outras questões,
relativas à intensidade das respostas para com o objeto, aos determinados conjuntos
simbólicos (valores) e às representações presentes nas argumentações dos estudantes.
Para compreender as perspectivas de base étnica, introduziu-se uma questão pela qual
os entrevistados se autoclassificavam etnicamente, e o teste serviu para antecipar
possíveis alternativas de respostas a esta autoclassificação.
A previsão inicial seria aplicar os questionários corrigidos a uma amostra de 850
estudantes para o ano de 2004.2 o que não pode ser inteiramente realizado devido às
limitações de tempo da disciplina e às greves. Foram entrevistados em 2004 apenas 692
estudantes de segundo e terceiro graus distribuídos entre Rede Privada 7; Rede Pública8e
de alunos da Uneb e da UFBA.
7
8
Colégio Salesiano, Anchieta e Isba
Colégio Góes Calmon e Colégio Central
155
Tanto a elaboração quanto a aplicação dos questionários revestiu-se de certos
cuidados para garantir uma maior veracidade das respostas. A distribuição dos
questionários entre as diversas instituições de ensino foi feita por cotas, sendo aleatória
a escolha dos entrevistados.
O questionário também continha itens que foram introduzidos para se tentar
perceber se o sistema de cotas podia ser caracterizado (ou estar se caracterizando) como
uma representação social, e quais valores estruturavam as argumentações dos
entrevistados.
Moscovici entende que as representações se constituem em “universos
consensuais do pensamento”, definindo o conceito como “uma modalidade específica
de conhecimento que tem por função a elaboração de comportamentos e a comunicação
entre indivíduos, no quadro da vida cotidiana” (apud SÁ, 1995, p. 22).
Procuramos observar as representações sociais para perceber como estas
orientam comportamentos e a comunicação, e são adequadas a análises sobre visões de
mundo, de classes e segmentos de classes (SPINK, 1995, p. 90). Nosso pressuposto foi
que as diferentes compreensões do objeto estavam orientadas por um nível ideológico,
ou concepções de mundo, dos grupamentos enfocados.
Os resultados obtidos foram digitados e processados no pacote estatístico SPSS,
pelo qual procurou se observar possíveis correlações entre os diversos grupos e
respostas.
Na segunda etapa do trabalho repetiu-se o mesmo questionário, desta vez a uma
amostra de 698 alunos no ano de 2005 procurando estabelecer um estudo de corte
longitudinal.
156
Analise dos dados
A primeira questão de conteúdo formulada solicitava ao estudante
que se
classificasse etnicamente. O objetivo principal foi obter um conjunto de respostas que
nos permitissem avaliar e estabelecer correlações com as diversas perspectivas étnicas, e
perceber, ao mesmo tempo, as diferentes formas de classificação criadas para escapar à
autodefinição de negro. Buscou-se verificar ainda a viabilidade do critério adotado no
processo de seleção dos candidatos a serem beneficiados pelo SCAD.
As respostas demonstraram um índice surpreendentemente baixo de estudantes
que “não sabem” se classificar na escala étnica apresentada. Em 2004, apenas 7,5%
optaram pela resposta “não sei”, e somente 5,4% escolheram “outros” como alternativa
às opções: branco, pardo, amarelo e negro. Esta facilidade de auto-enquadramento se
deve ao teste do questionário que, em certa medida, funcionou como um levantamento
exploratório junto aos estudantes9. De qualquer modo, é possível perceber uma mudança
neste quesito, pois, no censo dos anos 80, o processo de autoclassificação gerou mais de
vinte alternativas à categoria “negro”.
Apenas 21,4% dos entrevistados se autodefiniu como branco. Pelas respostas
obtidas depreende-se que 62% dos estudantes são candidatos em potencial ao sistema de
cotas. Nas escolas privadas, o número de alunos que se declararam “brancos” é cerca de
quatro vezes maior que nas escolas públicas (36,0% contra 9,5%). Na UNEB, o número
de “brancos” também é elevado em relação à rede pública de 2º grau (21,0% e 9,5%,
9
Tendo em conta que o sistema de classificação dos afro-descendentes funciona com base na
autodefinição dos candidatos, procuramos empregar o mesmo sistema para definir os grupos étnicos.
Numa pesquisa piloto foi solicitado, a uma amostra de estudantes, que estes se autoclassificassem.
Deste levantamento inicial, obtivemos as categorias “branco”, “negro”, “pardo”, “amarelo”, “outros” e
“não sei”, que passaram a integrar o questionário final.
157
respectivamente), mas o número de alunos “negros” nesta instituição supera o de
“brancos”.
Estes resultados reforçam a tese que defende uma mudança na forma de inclusão
no sistema de cotas, substituindo a autoclassificação étnica por um modelo mais amplo
que contemple, de forma generalizada, os egressos da rede pública, onde o índice de
alunos “negros” ou “pardos” é de 79%. Uma mudança neste sentido teria a vantagem de
beneficiar tanto os afro-descendentes como os alunos de baixa renda, mas com um
efeito distributivo maior.
O resultado obtido nesta mesma questão, em 2005, não apresentou uma variação
significativa do ponto de vista estatístico como pode ser visto na tabela I a seguir.
Tabela I COMO SE CLASSIFICAM ETNICAMENTE (2004-2005)
Ano
2004
2005
Branco
21,4%
22.9%
Pardo
36,1%
33.9%
Negro
26,1%
28.6%
Amarelo
3,5%
2.9%
Outros
5,4%
3.0%
Não sei
7,5%
8.7%
100,0%
100.0%
Total
Fonte: Pesquisa de campo.
n2003=690, n2004=698
A topologia do entrevistado, na escala étnica adotada, foi extremamente
significativa para a análise do resto das respostas dadas, ao longo da entrevista,
158
permitindo o estabelecimento de perfis bem definidos10. Com base nestes perfis,
podemos retornar e avaliar melhor os aspectos intervenientes na classificação étnica.
Percebemos que aqueles que se classificaram como “outros” ou “não sei” apresentam
um perfil de respostas muito semelhante ao dado pelos “brancos” e “amarelos”. Isto
sugere que muitos entrevistados preferiram evitar, por algum motivo, a sua
autoclassificação como brancos, por não se sentirem, por algum motivo, confortáveis
nesta classificação.
No ano de 2004, verificou-se que a maioria dos entrevistados (58,2%) afirmava
conhecer o significado do SCAD, contra 10,6% que desconheciam. Para garantir uma
maior veracidade das respostas, foi formulada uma pergunta adicional pela qual era
solicitado ao pesquisado que esclarecesse o que ele entendia como sistema de cotas. As
respostas dúbias foram desconsideradas, não computando no número dos que afirmaram
conhecer o significado do SCAD.
Um número significativo de estudantes, cerca de 31,2%, preferiu relativizar suas
respostas, afirmando conhecer o significado apenas em parte. Este tipo de resposta
(mais ou menos) pode mascarar o desconhecimento da questão. O entrevistado, para não
demonstrar sua falta de conhecimento de um fato, opta por uma resposta intermediária
que não o comprometa. O índice alto de respostas deste tipo sugere que isso de fato
possa ter ocorrido. Ao todo, em 2004, cerca de 89% dos depoentes afirmaram e
demonstraram ter algum conhecimento sobre o assunto. Já em 2005, o número dos que
afirmavam conhecer o significado do SCAD aumentou para 62,2%, sugerindo que as
discussões ocorridas no período podem ter ampliado a oferta de informações sobre o
tema.
10
Ver quadro comparativo do conjunto das respostas de números 13 a 20.
159
Este resultado se altera significativamente, quando analisado entre os diferentes
tipos étnicos consultados. Os que se autodeclararam negros foram aqueles que
demonstraram o menor índice de conhecimento do significado do sistema de cotas
(47,2%). Os que aparentemente possuíam mais informação foram os que não souberam
se classificar em termos étnicos (82,7%), seguidos pelos “brancos”, com 64,2%.
Comparando os resultados desta questão, entre os tipos de instituições
pesquisadas (escolas públicas e privadas de 2º Grau, UNEB e UFBA), vemos que o
maior índice de desinformação ocorre entre os alunos da rede pública de 2º Grau, nas
quais, em 2004, apenas 24,5% declararam saber o significado do SCAD, contra 69,7%
dos alunos da rede privada e 73,2% da UNEB. Em 2005, o número de estudantes da
rede pública que não sabiam o significado do SCAD aumenta de 31,5% para 37,0%,
mas esta diferença de resultados deve ser vista com um certo cuidado, pois está no
limite da margem de erro. De todo modo, os resultados indicam que existe uma lacuna
de informação significativa entre os alunos da rede pública, que poderia ser preenchida
por uma campanha de esclarecimento da UNEB e da UFBA, que adotou o SCAD, com
algumas diferenças nos critérios de seleção dos beneficiados em relação à UNEB
No campo das atitudes, observamos, em 2004 que 26% dos entrevistados se
declararam contra o sistema de cotas. Este percentual cai para 16%, em 2005 Entre os
que se denominaram “brancos, 37,9% se colocaram abertamente contra a medida. Esta
oposição também é grande (32,2%) nos que escolheram “outro” como classificação
étnica e nos que não souberam se classificar (30,0%). Entre os “negros”, apenas 16% se
opuseram à medida. A atitude negativa em relação ao sistema de cotas cresce no
segmento que se classificou como pardos (25,6%). Observa-se neste resultado que a
oposição à medida cresce segundo a tendência de clareamento da pele, mesmo que esta
160
visão étnica dos estudantes não corresponda à realidade dos fatos ou tenha bases
científicas.
A rejeição às cotas também é maior nas escolas da rede privada, de maneira
geral, o que é explicável, por ser nestas instituições que estariam, em tese, os principais
prejudicados pela medida. No entanto, foi possível perceber uma diferença significativa
entre as respostas dos entrevistados no Colégio Anchieta e no Instituto Social da Bahia
(ISBA). Enquanto no primeiro, 18% dos entrevistados se colocaram francamente contra
a adoção de qualquer sistema de cotas, no ISBA este número cai para apenas 10%.
Dois aspectos podem estar influindo neste resultado. O Colégio Anchieta é
conhecido pela ênfase que dá à competitividade na publicidade, baseada no grande
número de aprovados no vestibular, enquanto o projeto pedagógico do ISBA enfatiza
aspectos sociais, afirmando dimensões como a responsabilidade social e valores como o
altruísmo. Não podemos esquecer, contudo, que a escolha da instituição de ensino pelo
aluno e seus pais é feita com base no conjunto de texto de cada grupo familiar e na
atribuição de significados que é dada a cada uma das instituições. Assim, podemos
supor que, em princípio, o ISBA atraia estudantes que compartilhem do mesmo sistema
de valores defendido pela instituição.
Analisando o primeiro conjunto de questões sobre as respostas atitudinais dos
pesquisados, observou-se a presença de uma atitude positiva de fraca intensidade
(escore >0) em relação ao SCAD, ou seja, a maioria considera que o SCAD é uma
forma de reparação das desigualdades (+1); nega que seja uma forma de racismo (+1) e
que venha a prejudicar a qualidade do ensino nas universidades (+1), considerando a
medida de certo modo eficaz (+1). Ao mesmo tempo, acredita que a medida não vai
contribuir para a redução do preconceito (-2), nem da injustiça social (-1).(Quadro I)
161
QUADRO I RESUMO DE ESCORES
O sistema de
cotas é uma
forma de
reparação das
desigualdades
raciais
O sistema
de cotas é
uma forma
de racismo
N
1232
1233
Missing
158
Mean
Std Error of
Mean
Median
O sistema
de cotas é
uma
medida
que
O sistema de
cotas é uma
medida
ineficaz
O sistema de
cotas vai
contribuir para
a redução do
preconceito
racial
O sistema de
cotas vai
prejudicar a
qualidade do
ensino nas
universidade
s
1231
1232
1231
1232
157
159
158
159
158
-.01
-.24
-.32
-.12
-.94
-.43
6.09E-02
6.20E-02
5.88E-02
5.81E-02
5.42E-02
6.00E-02
1
-1
-1
-1
-2
-1
1.49
1.54
1.49
1.44
1.42
1.53
diminui a
injustiça
social
Std Derivation
Fonte: Pesquisa de campo
No conjunto a seguir, as questões foram apresentadas de forma dicotômica (sim
x não). Os resultados indicaram que o conjunto dos estudantes considera a medida
“demagógica, desnecessária, paliativa, insuficiente, antidemocrática e desigual”, mas a
compreende como uma ação reparadora e, curiosamente, justa. A aparente contradição
parece decorrer do fato de que os estudantes reconhecem a situação racial brasileira,
como injusta e desigual, mas não estão dispostos a abrir mão de determinados espaços,
como forma de contribuir para a redução das desigualdades.
Quando analisados sob a perspectiva de cada grupamento étnico, os dois
conjuntos de questões vão apresentar resultados bem diversos, desvelando uma
ideologização do tema geralmente não admitida pelos participantes do debate.
162
A análise da Tabela I a seguir apresenta uma correlação quase perfeita entre a
escala étnica e as avaliações sobre o SCAD. Os negros, em geral, rejeitam a
classificação do SCAD como “demagógica”, “desnecessária”, “injusta”, “privilégio”, e
mesmo quando aceitam classificações pejorativas, como “antidemocrática”, “paliativa”,
“insuficiente”, “desigual”, o fazem numa percentagem bem menor que os outros
grupamentos étnicos. À medida que a autoclassificação apresenta um branqueamento, as
respostas tendem a ser mais negativas nas avaliações do SCAD. Respostas contrárias à
política de cotas buscam sua fundamentação tanto em valores políticos da democracia
liberal, na defesa de critérios meritocráticos, como em concepções mais substantivas de
democracia, alegando-se que o sistema de cotas fere o princípio da igualdade.
TABELA II CLASSIFICAÇÃO DO SCAD- 2004
13
14
15
16
17
18
19
20
Demagógic
a
Injust
a
Desnecessári
a
Um
Privilégio
Insuficient
e
Antidemocrática
Desigua
l
Paliativa
Brancos
61,2
65,0
66,4
61,4
87,0
86,3
91,4
78,6
Pardos
57,8
45,7
48,4
38,4
80,3
73,4
80,4
75,8
Negros
41,9
34,8
35,3
27,6
75,0
58,3
72,4
68,4
Outros
80,6
51,6
71,0
32,3
90,3
98,8
93,5
83,4
Não Sei
66,0
56,0
60,0
40,0
92,0
78,0
87,8
74,6
Fonte: Pesquisa de campo.
n = 615
O mesmo tipo de análise, tomando-se como referência a instituição de ensino,
apresentou um resultado mais complexo. As suposições de que os alunos da rede
privada deveriam apresentar atitudes mais negativas do que os da rede pública se
confirmaram, mas surpreendentemente os alunos da UNEB assumem em determinadas
respostas uma posição contrária ao SCAD, com mais intensidade que os alunos da rede
163
privada. Isto sugere que em determinadas situações, outros condicionantes possam estar
interferindo nas respostas, como se observou no caso do ISBA e Colégio Anchieta.
Na questão em que se avalia se o SCAD significa uma ameaça à qualidade do
ensino por exemplo, obtivemos repostas diametralmente opostas entre os estudantes das
redes privada e pública, evidenciando que o argumento de que as cotas vão afetar a
qualidade das universidades não é difuso e pertence a um segmento social específico.
Algumas considerações sobre a pesquisa
Embora as análises não tenham sido totalmente concluídas, é possível perceber
alguns pontos significativos sobre o tema. Observou-se que a questão não pode ser
traduzida apenas pelos argumentos apresentados nos debates, entre partidários e
antagonistas das políticas afirmativas, e a posição dos indivíduos e grupos na discussão
vai depender de um conjunto de elementos que determinam a priori a topologia social
dos protagonistas.
O estudo confirma nossos pressupostos de que a atitude em relação ao SCAD
decorre fundamentalmente da adscrição econômico-social e étnica do pesquisado,
indicando que a questão das cotas está se configurando como uma representação no
sentido clássico do termo, como dois conhecimentos, duas concepções distintas de
mundo, em disputa pela hegemonia e legitimação, “cujo objetivo é criar a realidade”,
como defende Moscovici (apud SÁ, 1995, p. 33).
Os argumentos a favor ou contra a política de cotas possuem uma significativa
afiliação específica a cada segmento social estudado. A classe social e a etnia atribuem
164
significados distintos ao objeto e utilizam conjuntos de argumentos e valores
específicos.
Concepções de mundo de natureza mais individual podem interferir
significativamente nas respostas, como foi possível observar na diferença de
comportamento entre alunos do Colégio Anchieta e do ISBA, observando-se neste
último que uma maior adesão a valores axiológicos e um maior comprometimento com
a justiça social por parte da instituição e dos estudantes interferiu nas respostas dadas,
confirmando as afirmações de Bourdieu de que as escolhas dos atores não decorrem de
um consenso com base processo deliberativo livre e racional no espaço público, mas de
posições com base em valores e identidades grupais.
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166
Poesia e revolução: Resenha de Todo Caliban de Roberto Retamar1
Poetry and revolution: A review of Roberto Retamar's Todo Caliban
Adriana Ines Strappazzon2
Resumo: Todo Caliban é uma compilação de ensaios do escritor e poeta cubano Roberto Retamar. São
escritos que falam da descolonização do pensamento, redimensionando a posição colonial de Próspero e
Caliban. Percorrendo a latino-américa pós revolução cubana, até a hegemonia do discurso liberal e de
subdesenvolvimento do terceiro mundo, é um texto anti-colonial que vislumbra e inspira o póscolonialismo.
Palavras-chave: Anti-colonialismo, Caliban, latino-américa.
Abstract: Todo Caliban is a compilation of essays by the Cuban writer and poet Roberto Retamar. These
texts tells about the decolonization of mind, reshaping the colonial position of Prospero and Caliban.
Going through Latin American post Cuban revolution, to the hegemony of the liberal and
underdevelopment of the Third World discourse, it is an anti-colonial text that envision and inspires the
postcolonialism.
Key words: Anti-colonialism, Caliban, Latin America.
Eu sempre começava um jogo previamente
perdido. Experimentei minha hereditariedade. Fiz
um balanço completo de minha doença. Queria
ser tipicamente negro – mas isso não era mais
possível. Queria ser branco – era melhor rir. E,
quando tentava, no plano das ideias a da atividade
intelectual, reivindicar minha negritude,
arrancavam-na de mim. Demonstravam-me que
minha iniciativa era apenas um polo na dialética
(Frantz Fanon).
1
Artigo redigido para conclusão da disciplina Tópicos Especias: Teoria Pós-colonial: antropologia,
poética e política 2011-2, ministrada pela Professora Ilka Boaventura Leite.
2
Aluna de mestrado no Programa de Pós Graduação em Antropologia Social, Centro de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Caixa Postal 476, CEP 88.040-900,
Florianópolis, SC. Fone/Fax: 3721-9714. Bolsista do Cnpq. E-mail: [email protected]
167
Los independentistas, blancos y negros, hicieran
suyo con honor lo que el colonialismo quiso que
fuera una injuria (Retamar).
O cubano Roberto Fernández Retamar, joga com o termo “caliban”, anagrama
de “canibal”, que por sua vez, provem de Caribe. Deste lugar emergiu, para a percepção
colonial, o homem bestial, selvagem, distante da civilização. “Caliban” se trata pois, de
uma visão degradada que o colonizador oferece sobre o ser colonizado. Mas, para
Retamar, “caliban” é nosso símbolo e o temos que assumir. Isso é buscar em nossa
realidade as condições para nossa emancipação. Da revolução, da negação ao
colonialismo, da afirmação de nossa real existência, emergirá nossa cultura. Nesse
sentido, a Revolução Cubana representa um marco porque foi fiel à tradição popular
latino-americana, partindo desde a realidade mesma daqueles que por ela lutaram.
Todo Caliban é uma compilação de ensaios de Rematar. O primeiro, e mais
importante, é “Caliban”, escrito em 1971, retomando as literaturas e emergências de
Caliban e inspirando os demais ensaios e conferências que Retamar realizaria até o final
dos anos 90. Além de “Caliban”, portanto, estão os escritos “Caliban Revisitado” de
1986, “Caliban en esta Hora de Nuestra América” de 1991, “Caliban Quinientos Años
Más Tarde” de 1992 e “Caliban ante la Antropofagia” de 1999. Os ensaios em conjunto
não falam somente de uma revisão ou referência daquele que Retamar chamou de
“conceito-metáfora”, Caliban. Mas também perpassam a vida política e intelectual do
autor, marcada com a presença recente do triunfo da Revolução Cubana em 1959, dos
ventos da chamada guerra fria, com a seguinte invenção dos termos primeiro, segundo e
terceiro mundo, que logo denotariam outros termos como desenvolvimento e
subdesenvolvimento, principalmente depois do declínio dos países socialistas e a
168
configuração de um mundo não mais bipolar, mas unipolar, centrado nos países
capitalistas, no que se chama ocidente e sua prática liberal. Retamar foi um socialista
que escreveu desde este lugar nos diferentes momentos experienciados por esse ideal de
mundo. Um escritor que também falava desde o ser caliban. E desde a poesia em uma
Cuba que fervilhava de artistas.
Como mencionou no prefácio do livro Fredric Jameson, quem qualifica
“Caliban” como o equivalente latino-americano do livro Orientalismo de Edward Said,
os ensaios reunidos
podem ser lidos como uma comprida mas múltipla meditação sobre o
problema do próprio internacionalismo, e sobre as possíveis relações que se
devem estabelecer entre o fato de um sistema global desigual, por uma parte,
e as coordenadas duais, por outra, de um projeto socialista coletivo e do
contexto inevitavelmente nacional da produção cultural em si (Retamar,
2004, p. 14)3.
“Caliban” foi publicado pela primeira vez em Casa de las Américas, número 68,
setembro-outubro de 1971. A pergunta feita a Retamar por um jornalista europeu,
“Exite uma cultura latina-americana?” deu o pontapé inicial para as longas páginas que
seguem. Para o autor a pergunta soava o mesmo que “existem vocês?” pois para ele
colocar em dúvida nossa cultura é colocar em dúvida a nossa própria
existência, nossa realidade humana mesma, e portanto estar dispostos a tomar
partido a favor de nossa irremediável condição colonial, já que se suspeita
que não seríamos senão eco desfigurado do que sucede em outra parte (Ibid,
p. 19).
Uma “outra parte” que se configura como metrópole, centros colonizadores,
aonde as direitas usurparam e as esquerdas quiseram orientar. Esta outra parte que
proclama, em oposição ao mestiço, uma suposta homogeneidade para si mesma,
passando por cima de suas diferenças internas. Em
contrapartida, na América, a
mestiçagem é a “essência” a linha “central”, advoga Retamar. Uma mestiçagem que não
3
Todas as citações de Retamar são tradução minha.
169
tem a ver com a “quinta raça” de José Vasconcelos, nem com uma cultura aprendiz
daquela dos europeus – mesmo que utilize o idioma do colonizador para comunicar.
Nas páginas seguintes do ensaio, Retamar faz uma revisão da história de
Caliban, anagrama forjado por Shakespeare a partir de “caníbal”, que por sua vez
provém de “caribe”. O Diário de navegação de Cristóvão Colombo fala de homens de
um olho comedores de gente e explica que “caniba” é a gente do grande Can. Também
ele oferece a outra imagem do homem americano, aquele pacífico, manso e até mesmo
covarde. Ambas visões seriam nada menos que constituidoras do arsenal ideológico da
burguesia nascente, ainda que a primeira abundaria nas teses da direita como
justificativa do aniquilamento e a segunda nas da esquerda, como bem demostra a
Utopia de Tomas More. A versão da direita, do extermínio, muitas vezes acabou
fazendo parte de nossas percepções e justificando o extermínio dos outros mais
distantes, como os negros da África, por exemplo. Para completar, como bem recordou
Retamar, se a direita justificava o aniquilamento da bestialidade, do caníbal, deixou de
explicar porque também aniquilou os vistos como doces e pacíficos. Essa visão que
Retamar chama de direitista, apresenta-se como aquele discurso que apresenta o
colonizado “como uma população de tipos degenerados com base na origem racial de
modo a justificar a conquista e estabelecer sistemas de administração e instrução” como
falou Homi Bhabha (1998).
O ensaio de Montaigne de 1580, em espanhol, “De los caníbales”, foi um dos
mais difundidos trabalhos na linha utópica. A tradução ao inglês seria realizada em 1603
por Giovanni Floro, amigo pessoal de Shakespeare quem escreveria em 1611 A
tempestade. Mas se na obra de Montaigne ilustra-se a visão idealista de caníbal,
Shakespeare assume a outra opção, a do escravo selvagem e deformado, demonstrando
170
que ambas maneiras de considerar o americano são conciliáveis. Seria óbvio mas não
inútil dizer que “A Tempestade alude a América, que sua ilha é uma mistificação de
uma de nossas ilhas” e que, o mais importante, “Caliban é nosso caribe” (Retamar,
2004, p. 26).
Em 1878, Ernest Renan publicou Caliban, continuação do livro shakespeariano,
e com forte alusão à Comuna de Paris de sete anos antes, onde Caliban escarnava o
povo, cuja conspiração contra Próspero teve êxito e chegou ao poder, ainda que não ali
permanecendo. Nessa obra, segundo Retamar, Renan não somente demonstra o ódio ao
povo de seu país, mas ainda mais aos habitantes das colônias. Vinte anos depois da
publicação de Renan, dar-se-ia o primeiro destino do mito de Caliban em terras
americanas: os Estados unidos intervieram na guerra de Cuba contra Espanha por sua
independência (1898) e colocou o país centro-americano sob sua tutelagem como neocolônia a partir de 1902 até 1959.
O escritor franco-argentino Paul Groussac, de 1898, e o uruguaio José Enrique
Rodó, em Ariel de 1900, identificariam Caliban aos Estados Unidos, o que seria
certamente incorreto. Em 1928, o francês Jean Guéhenno escreveu Caliban Fala
(Caliban parle em francês) retomando à obra de Renan mas dando uma apreciação
positiva à identificação Caliban-povo. Pouco depois, o argentino Aníbal Ponce, em obra
de 1935, que teria influenciado Che, Humanismo burguês e humanismo proletário,
identifica-se Próspero com “o tirano ilustrado que o Renascimento ama; Miranda, sua
linhagem; Caliban, as massas sofridas; Ariel, o gênio do ar, sem ataduras com a vida” quatro seres onde já está toda a época (Aníbal Ponce apud Retamar, 2004, p. 30-31).
171
No entanto, o escrito de Ponce ainda se fez tomando em conta exclusivamente o
mundo europeu. Para uma nova consideração do problema e leitura de A tempestade,
segundo Retamar, ter-se-ia que esperar até a emergência dos países coloniais depois da
Segunda Guerra Mundial, ou o que as Nações Unidas chamariam “zona
economicamente subdesenvolvida” (Ibid, p.31).
O livro de 1950 de Mannoni, Psicologia da colonização, identifica Caliban com
o colonial, ainda que com as ressalvas feitas por Fanon em Pele Negra, Máscaras
Brancas quanto ao “complexo de Próspero”. George Lamming em Os prazeres do
exílio, de 1960, foi, para Retamar, o primeiro escritor latino-americano e caribenho a
assumir a nossa identidade, e especialmente a do Caribe, com Caliban.
Então no final dos anos sessenta, Caliban será assumido como símbolo do latinoamericano por três escritores antilhanos: Aimé Césaire em Uma tempestade, adaptação
da Tempestade de Shakespeare para um teatro negro, Edward Kamau Brathwaite em
Islas, e o próprio Retamar no ensaio “Cuba até Fidel”.
Nosso símbolo é então Caliban,
Próspero invadiu as ilhas, matou nossos ancestrais, escravizou a Caliban e lhe
ensinou seu idioma para se entender com ele: Que outra coisa pode fazer
Caliban se não utilizar esse mesmo idioma para maldizer, para desejar que
caia sobre ele a “praga vermelha”? Não conheço metáfora mais acertada de
nossa situação cultural, de nossa realidade (Ibid, p. 34)4.
Ao propor Caliban como nosso símbolo, Retamar se dá conta de que ele não é
inteiramente nosso, mas também uma elaboração alheia, ainda que desta vez partido de
nossa realidade concreta (Ibid, p. 36). Ariel, por sua vez, não constitui uma polaridade
com Caliban, uma vez que ambos são servos de Próspero, o “feiticeiro estrangeiro”,
4
Nesse momento Retamar cita uma lista exaustiva de artistas, escritores e intelectuais latino-americanos
que seria demasiado reproduzir aqui.
172
Caliban sendo o “duro e inconquistável dono da ilha” e Ariel, aéreo ainda que também
dono da ilha, é o intelectual, como Ponce e Césaire (Ibid, p. 37).
E então cabe voltar e falar de José Martí e indagar sobre seu desconhecimento,
bem como de seu texto “Nuestra América”, de janeiro de 1891, considerado por
Retamar um dos escritos mais importantes da América, um manifesto para reivindicar o
conhecimento latino-americano. Esse esquecimento seria resposta da forma como o
colonialismo teria calado em nós, de modo que só leríamos com “respeito a autores
anticolonialistas difundidos desde as metrópoles” (Ibid, p. 39-40). E continua,
Para ser consequentes com nossa atitude anticolonialista, temos que nos
voltar efetivamente aos nossos homens e mulheres que em sua conduta e
pensamento encarnaram e iluminaram essa atitude. E nesse sentido, nenhum
exemplo mais útil que o de Martí (Ibid, p. 40).
Para Martí, América deveria voltar à suas raízes verdadeiras, de seu povo, bem
como por si mesma alcançar a modernidade. No lugar do livro europeu ou yanqui, da
universidade europeia – a imposição de Próspero – , deveria ceder à realidade de
Caliban. Não se poderia tampouco prolongar a divisão de Sarmiento, contemporâneo de
Martí, entre civilização e barbárie. Nomes dados por aqueles que desejavam tomar a
terra alheia, como bem enfatizava Martí.
Para Retamar, o diálogo entre Sarmiento e Martí era sobretudo um
enfrentamento classista. O primeiro, um ideólogo da burguesia argentina que tentava
copiar os esquemas da burguesia metropolitana, estadunidense, para seu país. O
segundo, um vocero das classes exploradas e que fazia causa comum com os oprimidos,
os negros e índios – ao contrário de Sarmiento que via no seu extermínio o caminho
para o desenvolvimento. Martí não rejeitava o que de positivo poderia oferecer outras
realidades, mas insistia que o tronco, que a matriz, que albergaria todas as repúblicas do
173
mundo, deveria estar em nossas repúblicas. Esse era um grande diferencial de não
negação do outro, do antirracismo de Martí.
Depois do chamado “mundo livre” nossos países estreariam uma nova forma de
não ser independentes através do neocolonialismo. Borges, quem vem nesse momento, é
considerado por Retamar um “típico escritor colonial”, como aquele que conhece quase
mais do que ninguém a literatura europeia. A escrita de Borges estaria em próximo
diálogo com sua leitura, num “processo de fagocitose que indica com claridade que é
colonial e que representa uma classe que se extingue” (:52). Borges era para Retamar
um assumido homem de direita.
A pretensão de entramos ao “mundo livre” era uma versão moderna daquela
pretensão das classes exploradoras do século XIX de nos submeter a uma suposta
“civilização”, que estava em concordância com os propósitos dos conquistadores
europeus. Mas frente a essa pretensão, foi-se forjando “nossa genuína cultura”, aquela
gestada pelo povo mestiço,
Esses descendentes de índios, de negros e de europeus que souberam
capitanear Bolívar e Artigas; a cultura das classes exploradas, a pequena
burguesia radical de José Martí, o campesinato pobre de Emiliano Zapata, a
classe trabalhadora de Luis Emilio Recabarren e Jesús Menéndez, a cultura
“das massas famintas de índios, de camponeses sem terras, de trabalhadores
explorados” de que fala a Segunda Declaración de la Habana (1962), “dos
intelectuais honestos e brilhantes que tanto abundam em nossas sofridas
terras da América Latina”, a cultura desse povo que agora integra “uma
família de duzentos milhões de irmãos” e “disse: basta!, e começou a andar”
(Ibid, p. 61).
Uma cultura que começou a andar e que tem características próprias, ainda que
nascida de uma “síntese”. A sublevação de Tupac Amaru, a independência de Haiti, e os
movimentos revolucionários em várias colonias na América, a Revolução Mexicana, a
Coluna Prestes, a Revolução Cubana, dentre tantos outros eventos mencionados por
Retamar, marcam o advento dessa cultura. Uma cultura filha da revolução, “da nossa
174
recusa multissecular a todos os colonialismos; nossa cultura, que como toda cultura,
requer como primeira condição nossa própria existência” (Ibid, p. 63). Ainda que esta
não seja a única cultura forjada aqui, uma vez que está também a “cultura da antiAmérica”, dos opressores, daqueles que tem os olhos e o pensamento na metrópole.
E citando Mariátegui, Retamar indica que o amanhã da América Latina será o
socialismo, um amanhã que já começou e que torna ociosa a pergunta sobre nossa
existência. E Ariel, o intelectual da ilha de Caliban, pode escolher servir a Próspero ou
se unir a Caliban na luta pela verdadeira liberdade. Sabido é que parte importante da
intelectualidade do lado das classes exploradas provêm das classes exploradoras, das
quais se desvincula radicalmente, como bem foi o caso de Marx e Engels (Ibid, p. 64).
Mas no caso dos intelectuais de nossos países, há uma segunda ruptura a assinalar, a
dizer, uma ruptura com “a dependência da cultura metropolitana que lhe ensinou, no
entanto, a linguagem, e o aparelho conceitual e teórico”. Uma “transformação cultural
em marcha” que leve também ao povo os mais altos níveis do saber e da criação.
Retamar termina seu ensaio com uma parte do discurso do Che na Facultad de
Padagogía, Universidad de las Villas, em dezembro de 1959, enfatizando que o povo
debe ser trazido à universidade, uma vez que o conhecimento, assim como a
universidade, a ele também pertence.
No livro, Todo Caliban, logo adjunto ao ensaio vem a posdata à edição japonesa,
publicada em Casa de las Américas em 1993, com o título “Adiós a Caliban”. Ali,
Retamar faz alguns comentários a cerca do ensaio escrito anos antes. Dentre eles está o
reconhecimneto da execiva presença de homens, ou melhor, da ausência de mulheres
em “Caliban, revelando como ele mesmo chamou, sua “triste partida machista”.
Também salienta que fala de mestiçagem mais no sentido cultural do que étnico –
175
mestizagem vista desde as oligarquias e que propõe a superioridade de algumas raças
sobre outras, de qua haja raças, concepção inaceitável. É no antirracismo de Martí que
se apega seu conceito de mestiçagem e é este que Retamar toma como referência. E
segue, falando daqueles latino-americanos que nem sabem o que isso significa, que têm
outras línguas e culturas, e daqueles que sobrevivem nas camadas mais inferiores do
sistema capitalista. Termina concluindo que não é por imposição que se conseguirá uma
“mestiçagem fértil”, “tal mestiçagem só pode nascer da interpenetração das matrizes
culturais originárias de uns e outros”, que somente se alcança quando se extingue a
exploração (Ibid, p. 78). Uma mestiçagem que não seguisse ao modelo da mestiçagem
homogênea, mas que abrigasse e permitisse a diferença. Uma mestiçagem que não fosse
neutra, mas que tomasse em conta as questões políticas, sociais e culturais pelas quais
atravessa.
O seguinte ensaio do livro é “Caliban Revisitado” que são notas que
acompanham as seleções de ensaios do autor feitas em vários países e publicadas em
Casa de las Américas número 157 julho-agosto de 1986. Retamar fala então dos anos
sessenta, o momento em que escrevia seu “Caliban”, quando em muitos países a vida
intelectual estava hegemonizada pela esquerda. Foram os anos da Revolução Cubana,
da Argelina, de Vietnam, quando a direita conviveu com movimentos das comunidades
oprimidas, das mulheres, dos povos marginais. Foi a época dos hippies, do Che, de
Allende.
Já no início da guerra fria, os Estados Unidos organizou o anticomunista
Congresso pela Liberdade da Cultura, cuja revista se chamou em espanhol Cuadernos,
naufragando em seu número 100 e sendo substituída pela revista Nuevo Mundo. A
intenção era disputar desde a Europa a hegemonia da linha intelectual do continente
176
americano. Segundo Retamar, tentava-se criar um ambiente confuso e não bem se
conseguia detectar as verdadeiras intenções da revista. Criava-se por exemplo, a ilusão
de que alguns intelectuais positivos à Revolução Cubana estavam a questioná-la
negativamente.
O próximo ensaio, “Caliban en esta hora de nuestra América”, lido em
conferências de universidades do México e de Cuba, publicou-se pela primeira vez em
Casa de las Américas número 185, outubro-dezembro de 1991. “Caliban”, comenta
Retamar, foi escrito dentro da perspectiva aberta pela Revolução e na tentativa de
desenvolver aquele que havia sido um constante orientador da revolução, Martí, em um
momento bastante difícil para Cuba. Muito mudou o mundo desde então. As décadas
seguintes marcaram muitas perdas para a esquerda: a conquista de Salvador Allende e
do socialismo no governo do Chile em 1970 logo seria derrocado com o Golpe Militar
de Pinochet e o assassinato de Allende em 73; em 1979 regimes revolucionários chegam
ao poder em Granada e Nicaragua e quatro anos depois, o primeiro destes regimes foi
derrotado pela invasão dos Estados Unidos; em 1990 a Frente Sandinista de Libertación
Nacional perdeu as eleições; em 1989 os Estados Unidos invadiram o Panamá.
Avançada a década de 80, a União soviética desencadeou as transformações
conhecidas como perestroika, juntando-se a outros fatores e fazendo desaparecer o
“socialismo real” e com ela quase todos os países que o integravam, num trânsito ao
“capitalismo real”. Começava a deixar de existir o mundo bipolar nascido da Segunda
Guerra Mundial. A guerra contra Iraque – porque este havia invadido o Kuwait assim
como os Estados Unidos haviam invadido o Panamá – mostrava quais seriam as novas
regras do plano internacional. A direitização do mundo não deixaria de repercutir em
nosso Continente, manifestando-se no político, no cultural e em ambos.
177
“Caliban” havia sido escrito na década de sessenta com esperanças que haviam
também sido alimentadas pela emergência do Terceiro Mundo. O demógrafo francês
Alfred Sauvy teria utilizado a expressão pela primeira vez em 1952; denotando de
Primeiro Mundo os países capitalistas desenvolvidos, os de Segundo a União Soviética
acompanhada pelos países socialistas europeus, e o Terceiro Mundo, os países pobres já
conhecidos como subdesenvolvidos, muitos dos quais haviam sido até recentemente
colônias e que em conjunto abrigavam a maioria da população mundial.
Mas esse mundo [o terceiro] não alcançou romper com o círculo de fogo do
desenvolvimento, seguiu sendo saqueado pelo Primeiro Mundo, foi imerso
ainda mais na miséria e no marasmo, e perdeu interesse aos olhos de muitos,
para quem apenas havia sido motivo de devaneio intelectual. Não obstante
isso, a contradição entre os países superdesenvolvidos [subdesarrollantes] e
os países subdesenvolvidos por aqueles, não só tem se conservado mas
também acrescentado sua vigência, e é hoje a contradição principal da
humanidade (Ibid, p. 101).
Contradição que logo se daria o nome de relação Norte-Sul e que penduraria por
muito tempo.
Em seguida Retamar discute os conceitos de modernidade e modernismo na
América Latina. A modernidade aqui seria “o resultado de um processo de
modernização do capitalismo dependente na zona”, ou seja, uma modernidade que não
nasce interna e autonomicamente, mas por meio de um chamado externo, e que não
conduziu nenhum de nossos países a um desenvolvimento capitalista, pelo contrário,
conservaram uma dependência econômica e política e “essas aberrações estruturais que
ainda que desagrade a palavra não há mais remédio que considerar características do
subdesenvolvimento” (Ibid, p. 105). Mas o mesmo não se poderia dizer das expressões
artísticas de nossos povos que sempre desfrutaram de certa margem de autonomia.
Sendo o modernismo hispano-americano a expressão literária de entrada da América à
referida modernidade (Ibid, p. 106).
178
Partindo das etapas do capitalismo oferecidas por Jameson – capitalismo de
mercado; monopolista e imperialista; e pós-industrial ou melhor, capitalismo
multinacional, aquele que vivemos – culminando na condição para a chamada pósmodernidade, Retamar pergunta se poderia se falar em pós-modernidade na América
Latina. Sim, responde, pensando-se a internacionalização, ou
“transnacionalização
capitalista do mundo” (termo cunhado por Yúdice com quem Retamar dialoga) a
América Latina não poderia permanecer indiferente à pós-modernidade. Afinal, o
capitalismo multinacional não nos é, e não pode nos ser alheio, e acrescenta Retamar,
“nos concerne fatalmente, ainda que seja desde o lado da sombra” (Ibid, p. 111).
O ensaio que segue, “Caliban quinientos años más tarde”, foi escrito em 1992
para conferências em universidades americanas e cujas partes foram utilizadas em
escritos para alguns países latino-americanos e europeus, no mesmo ano. Foi publicado
pela primeira vez em Nuevo Texto Crítico, número 11, primeiro semestre de 1993.
Retamar inicia-o falando que o “conceito-metáfora” Caliban alude não somente
a América Latina e Caribe, mas aos “condenados da terra” em conjunto, em alusão a
Frantz Fanon. A sua tarefa, diz ele, é “falar desde Caliban, não sempre sobre ele” (Ibid,
p. 118). Quando então Retamar nos convida a olhar Europa mil anos atrás, nos mostra
que “pouquinha coisa” era e indaga como a realidade mil anos depois é outra. Pois que
junto com o genovês que arribou nessas terras, veio também um grande projeto que
germinava na sociedade europeia: o capitalismo, que precisava da pilhagem do resto do
planeta para florescer e dar a uma parte dos europeus a “acumulação originária de
capital” (Ibid, p. 119). Pois assim chegou a modernidade, e nela incluída a pósmodernidade, o mundo ocidental, o capitalismo.
179
“Oste”, “Ocidente”, “mundo, cultura, civilização, ou sociedade ocidental”
são os trajes com que sai a passeio o capitalismo. Às vezes se acrescenta
(sem nenhum direito verdadeiro) o nome de “cristão”, e então considera que
está precioso: ou seja, perfumado e letal”(Ibid, p. 120).
Um florescimento sempre a custa do extermínio, do genocídio, da exploração e
da pobreza dos outros países e de partes de seus próprios povos. E, embora os países
ibéricos tenham sido os primeiros europeus a se estabelecer na América, e contribuído
para o desenvolvimento de outros países europeus como Holanda, Inglaterra, França e
Alemanha, não puderam atingir o desenvolvimento destes - “os mais ocidentais do
continente europeu, ficaram ao cabo da periferia do Ocidente” (Ibid, p. 121).
É o lugar ocupado por Portugal entre centro e periferia, aquilo que Boaventura
de Souza Santos (2001) mencionou como um Caliban na Europa, um Próspero com
colonialismo periférico, subalterno e a mercê de um Próspero mais grande. Nem
Próspero nem Caliban, mas algo na fronteira, na liminaridade. Não sendo nem ele
considerado branco pela Europa que o abriga em suas margens. Portugal é um
misturado. Se o chamado “descobrimento” iniciou-se com os países ibéricos, é sabido
que a partir do século XVII essa história passou a ser escrita principalmente em inglês.
E cabe aqui a questão proposta por Boaventura de como infere no colonizado o
problema de auto-representação do colonizador, um colonizador também ele
colonizado?
Retornando a Retamar, linhas adiante ele irá descartar o termo “descobrimento”
e indicará que com ele também se deveria descartar o sistema terminológico e
conceitual desta denominação, ou seja, a ideologia de Próspero. O termo “raça”,
inventado no século XVI, justificou o saqueio do mundo com a afirmativa de que as
diferenças “implicavam significantes fixos de significados não menos fixos”, e que
180
esses significados eram negativos para aqueles de pele de cor e positivos para aqueles
de pele branca – ou, ironiza Retamar, “mais claros” ou “rosados”, uma vez que nunca se
viu um ser humano fantasmagoricamente branco (Ibid, p. 124). O termo “civilização”,
inventado em mediados do século XVIII, designou-se ao estado que era então Ocidente,
e considerou-se a única forma de vida realmente humana, nomeando as demais
comunidades humanas como bárbaras ou selvagens. Depois da Segunda Guerra, a ONU
viria a rebatizar bárbaros e selvagens com as denominações “zonas economicamente
subdesenvolvidas”, e pouco depois, países “subdesenvolvidos” ou “países em vias de
desenvolvimento”.
Como se trata, como nos casos anteriores, de termos de relações (povos
brancos/povos de cor ou coloreados, civilização/barbárie ou selvagismo,
países colonizadores/países colonizados), é necessário conhecer o outro polo.
E se disse que esse era “países subdesenvolvidos”. A nova relação seria pois
países desenvolvidos/países subdesenvolvidos. E disso se pode inferir que se
estes últimos se comportavam bem aprendiam suas lições, podiam chegar a
ser os primeiros, os grandes, as pessoas mais velhas. Essa aberração, cândida
ou malintencionada, se chamou “desenvolvimentismo” [desarrollismo].
Como se viu, comportar-se bem supõe por exemplo se submeter às soluções
drásticas, de choque, do Fundo Monetário Internacional, que baixo o ensino
letal do neoliberalismo está devastando de novo as terras de Caliban (Ibid, p.
126).
Isso porque muitos países cresceram a custa de outros e nenhum se
subdesenvolveu
sozinho:
os
países
superdesenvolvidos
subdesenvolveram
e
subdesenvolvem aos demais. E a contradição entre uns e outros, entre os grandes
senhores e os condenados da terra, entre Póspero e Caliban percorreu todos esses anos
desde 1492 e se constitui, como já mencionado em ensaio anterior, a maior contradição
da humanidade (Ibid, p. 128).
As diferenças entre países ricos e pobres cresceu muito e com elas o discurso
direitista que sanciona e normaliza essas diferenças. Para tanto, utiliza-se de máscaras,
silêncios, reticências, “ou palavras pomposas ou reluzentes que mudam de aspecto mas
181
não de função” (Ibid, p. 129). A “palavra”, o “conceito” imperialismo desapareceu dos
textos de muitos teóricos, ainda que não, como sabemos, o imperialismo. E os povos
agredidos nem souberam que ele morreu no papel e renasceu como “globalização,
neoliberalismo, mercado selvagem, debilitação do Estado nos países pobres,
transnacionalização, privatização, nova ordem mundial … e até democracia e direitos
humanos, que é levar o sarcasmo um pouco longe” (Ibid, p. 130).
Pensando quinhentos anos depois de 1492, o que pode dizer Caliban sobre nosso
século, nossos dias? Se os economistas diziam que a década de oitenta foi perdida para
América Latina e Caribe, Caliban perguntaria se o século XX não terá sido um século
perdido.
E depois da Guerra Fria, começaram as “guerras quentes”, as guerras
interétnicas, e aquelas silenciosas que são a morte por fome, doenças curáveis, pelo
consumo exagerado de drogas. Além disso, as espécies animais extinguidas, os mares e
rios sem peixes e os céus sem pássaros, atmosferas poluídas, criando um ambiente
quase impossível para a sobrevivência.
E então aqueles do Sul começam a bater as portas das cidades do Norte. Quando
o Norte “se considera finalmente vencedor de tudo”, “os muros de suas cidades se vêm
rodeados por seres ruidosos, multicolores e carnais que vêm do Sul e não de outro
pesadelo; do Sul e não do passado” (Ibid, p. 137-8).
Essa questão faz lembrar aquilo que menciona Manuela Ribeiro Sanches (2006),
de que a Europa moderna, fechada para uma livre circulação dentro dela, é ao mesmo
tempo, contraditoriamente, atravessada pelos variados fluxos da globalização, capitais e
pessoas provenientes dos antigos impérios, que “batem à porta da fortaleza, fazendo das
182
sequelas do passado momentos incontornáveis que revelam a complexidade, se não a
fatalidade, dos laços construídos ao longo de toda a história da modernidade”. Nesse
sentido, na montagem narrada por ela, feita pelo Estado Novo português de uma
cartografia que afirma a não pequenez de Portugal, “a identidade nacional não pode ser
dissociada de um passado colonial, bem como o 'lá fora' não deixa de fazer, agora de
modo diferente, parte do 'cá dentro'” (Sanches, 2006: 7-8).
E para terminar o ensaio, Retamar sugere que a opção de América Latina e
Caribe é perdoar aquele começo e fazer culminar um verdadeiro descobrimento:
Neste caso, o descobrimento do múltiplo ser humano “ondulante e diverso: o
ser humano total, homem, mulher, pansexual; amarelo, negro, pele vermelha,
cara-pálida, mestiço; produtor (criador) antes que consumidor; habitante da
Humanidade, a única pátria real (…), sem Leste nem Oeste, sem Norte nem
Sul, pois seu centro será também sua periferia” (:139).
O último ensaio recolhido em Todo Caliban é “Caliban ante la antropofagia”,
publicado em Nuevo Texto Crítico, número 23-24 de 1999. Então ele fala sobre a
ausência de Oswald de Andrade em “Caliban”, a quem, em 1971, ele desconhecia. Para
tanto Retamar aborda brevemente a antropofagia e a atuação de Oswald de Andrade e
logo, encontra nela a semelhança com seu “Caliban”, no sentido de que ambos
buscavam reivindicar e esgrimir como símbolos válidos, uma parte da América que a
história oficial havia negado. No entanto, a antropofagia era nascida de um manifesto
vanguardista, o que Retamar vê como uma dívida, como uma espécie de “vontade de
sobressaltar ao burguês, ou a quem fosse, mediante uma redução ao absurdo da
metáfora antropofágica: sem deixar de reconhecer a esta, não obstante, seu achado”
(Ibid, p. 148).
“Caliban”, esse Outro de que fala Retamar, é uma estratégia discursiva
construída pelo ocidente, um “esteriótipo”, nas palavras de Homi Bhabha (1998). Um
183
discurso colonial que depende da fixidez, dessa criação com sabor de realidade, depende
e se funda nesse esteriótipo. Pois a construção do outro tem um efeito de realidade e o
discurso colonial, enquanto aparato de poder, apoia-se no reconhecimento e no repúdio
de diferenças em relação aquilo que ele criou. Afirma-se e recusa-se a diferença a uma
só vez, num jogo de ambiguidade. O colonizador cria Próspero e Caliban, e os torna
reais, não mais meros personagens, e de tão reais, o próprio Caliban passa a se
reconhecer como Caliban no sentido que Próspero dá a ele – e não na imagem que ele
cria a partir dele mesmo, desde seus povos, como parece ser o esforço de Martí que
Retamar a todo tempo retoma. E esse Caliban, aos olhos de Próspero é o invisível
necessário, a negação e o desejo. Talvez, como parece sugerir a leitura de Retamar,
aquela imagem ambígua que o próprio Shakespeare havia desenhado tomando a ideia
utópica de Montaigne para construir um personagem degenerado.
Um pequeno trecho de Stuart Hall enfatiza o que se quer dizer: “Nenhum local,
seja 'lá' ou 'aqui', em sua autonomia fantasiada ou in-diferença, poderia se desenvolver
sem levar em consideração seus 'outros' significativos e/ou abjetos” e, acrescenta ele, a
“exterioridade é constitutiva” (Hall, 2003:116).
Partindo de uma “perspectiva de contato” Mary Louise Pratt (1999), coloca em
relevo como os indivíduos se constituem nas e pelas relações que têm com outros.
Colonizadores e colonizados, viajantes e visitados, têm uma presença em comum, uma
interação, possuem entendimentos e práticas interligadas e permeadas por relações
assimétricas de poder.
Embora possamos pensar os ensaios de Retamar usando de teorias pós-coloniais,
ele não é um autor pós-colonial. Não o é porque está entre seus antecessores.
184
Como aponta Manuela Ribeiro Sanches (2006) a condição pós-colonial vive de
um novo modo de se entender o passado e o presente, num olhar alternativo,
revisitando-os. Segundo Stuart Hall (2003) o pós-colonial é uma resposta à
“necessidade de superar a crise de compreensão produzida pela incapacidade das velhas
categorias de explicar o mundo” (Hall, 2003: 123). Enquanto conceito, pode nos
auxiliar no entendimento das mudanças das relações globais, vivenciadas na transição
irregular da era dos Impérios para as pós-independências ou pós-descolonização. Porém
o pós-colonial não é homogêneo, não deve ser universalizado, mas apreendido em suas
diferenças, uma vez que as sociedades pós-coloniais não o são em um mesmo sentido.
Em concordância, para Mary Louise Pratt (1999) o termo pós-colonial faz referência a
disponibilidade para reflexão crítica da presença das manobras do colonialismo
atualmente. Numa reflexão que vai por caminhos que não haviam sido assim traçados
até agora. Esse termo, segundo ela, não deve ser usado partindo desde uma concepção
de que o imperialismo ficou pra trás e que suas manobras não são relevantes para pensar
o mundo que temos hoje (Pratt, 1999: 16). Boaventura de Sousa Santos (2001), ao falar
de uma identidade pós-colonial sugere o rompimento com a distinção entre a identidade
do colonizador e aquela do colonizado. Essa identidade pós-colonial deve pois ser
construída “nas margens das representações e através de um movimento que vai das
margens para o centro”. A cultura e o crítico pós-colonial estão portanto num “espaçoentre”, num liminar, num lugar de fronteira, “de extremidade ou de linha de frente onde
só é possível a experiência da proximidade da diferença”. Espaço esse em que se
constrói e negocia a “diferença cultural” (Santos, 2001:33). No mesmo sentido, Sonia
Almeida sugere que o debate pós-colonial quebra com os lugares fixados de dominantes
e dominados, como posições antagônicas e distintas. A periferia vira centro e o centro
185
vira periferia. Instabilizam-se esses lugares essencializados, criados em contexto de
dominação5.
Em um livro mais recente, Manuela Ribeiro Sanches aborda que a teoria póscolonial, somente pode ser entendida em todo seu alcance ao ser considerada em relação
a teorias e histórias que se destacaram por sua proposta anticolonial, que em sua
diversidade, contribuíram para uma mudança na ordem mundial. São escritos que
começaram a aparecer na segunda metade do século XX e que reivindicavam o direito à
autodeterminação e à independência total das antigas metrópoles (Sanches, 2011, p. 11).
Esse momento caracterizar-se-ia pela afirmação da identidade negra ou
africana e pelas reivindicações de uma descolonização fora e dentro da
Europa, nomeadamente através do questionamento das narrativas
eurocêntricas, da luta pela independência, bem como pela criação de uma via
alternativa aos dualismos da Guerra Fria, através da noção de Terceiro
Mundo (Ibid).
Vemos que é exatamente neste contexto e momento que devemos situar os
ensaios de Ratamar. Num discurso anticolonial, que marca a oposição entre Caliban e
Próspero, o centro e a periferia. Retamar desenha, mas não dá um passo além que seria
de superar essas polaridades. Ele está mais próximo de Du Bois, Amílcar Cabral, Frantz
Fanon ou Aimé Césaire, que são precursores do discurso pós-colonial. Por exemplo, seu
“Caliban”, assemelha-se em muito sentidos à reivindicação de Du Bois, em The Souls
of Black Folks, publicado em 1903, da recuperação de uma dignidade perdida,
enfatizando a importância da cultura africana para construção do continente americano,
denunciando a ausência de direitos civis e políticos para os negros nesses países e
voltando-se para a luta contra a opressão aos negros africanos, aqueles na África ou na
diáspora (Ibid, p. 17). O mesmo pode-se dizer com relação a Frantz Fanon. Seu livro
5
Anotações do seminário ministrado pela Profª Sonia Vespeira de Almeida (Un. Nova Lisboa) no
PPGAS/UFSC, “Cultura Popular, construção da nação e pós-colonialismo”, nos dias 25 a 29 de agosto de
2011.
186
Pele Negra, Máscaras Brancas, de 1959, sugere que a existência da problemática do
negro somente deve ser pensada se em sua relação com o branco. O negro é um Caliban,
uma criação do branco Próspero que o visibiliza para invisibilizar. E o negro antilhano
se assume e reconhece nessa realidade construída na polarização e hierarquização da
diferença: quer falar o dialeto francês, quer a mulher branca, o homem branco, obedece
à posição oferecida de inferioridade e dependência, vê na sua viagem a França um
desenvolvimento em sua personalidade, potencializa a sexualidade, traz o branco em si.
Um pouco mais tarde lemos livros brancos e assimilamos paulatinamente os
preconceitos, os mitos e o folclore que nos chegam da Europa. Mas não
aceitamos tudo, pois alguns preconceitos não são adaptáveis as Antilhas. [..]
Sem querer falar de catarse coletiva, seria fácil demonstrar que o preto,
irrefletidamente, aceita ser portador do pecado original. Para este papel, o
branco escolhe o negro, e o negro, que é branco, também escolhe o negro. O
negro antilhano é escravo desta imposição cultural. Após ter sido escravo do
branco, ele se auto-escraviza. O preto é, na máxima acepção do termo, uma
vítima da civilização branca (Fanon, 2008, p. 162).
E também como Retamar, Fanon nos deixa a esperança da reviravolta, um
recomeço, para ele numa transformação de brancos e negros em conjunto, em que
ambos se afastem “das vozes desumanas de seus ancestrais, a fim de que nasça uma
autêntica comunicação”. “Superioridade? Inferioridade? Por que simplesmente não
tentar sensibilizar o outro, sentir o outro, revelar-me outro? (Ibid, p. 191).
Finalmente cabe uma breve aproximação, como já sugerida por Fredric Jameson
no prefácio à edição estadunidense Caliban and Other Essays, do “Caliban” de Retamar
com o Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente de Edward Said. Este
tampouco é um texto pós-colonial, mas certamente um de seus precursores e
inspiradores. Para Said, o orientalismo é um discurso. O Oriente não é um dado da
natureza, como se estivesse “meramente lá, assim como o próprio Ocidente não está
apenas lá”. “O Oriente é uma ideia que tem uma história e uma tradição de pensamento,
187
imagística e vocabulário que lhe deram realidade e presença no e para o Ocidente”
(Said, 1990, p. 16-17). Um discurso orientalista que não é de todo uma fantasia, mas
está alicerçado em um teoria e uma prática, recebe investimento material e a ação de
uma hegemonia (em referência ao conceito cunhado por Gramsci) de um pensamento
que concebe a cultura europeia como superior.
O escrito de Said demonstra a potência do discurso cultural ocidental. Ilustra a
estrutura de dominação e o perigo de, para os povos dominados, se empregar essa
estrutura sobre si e sobre seus outros. Que o Oriental se veja com o espelho orientalista,
que Caliban se veja como o Caliban escravo, selvagem e merecedor de injúrias.
Retamar se apropria de Caliban para desenhar nele a cultura mestiça latinoamericana. Mas, continua usando a dicotomia criada pelo colonizador destas terras. Ele
propõe que se rompa com as matrizes epistemológicas das metrópoles (em partes,
porque a lógica de completa negação do outro é exatamente aquela que subjaz esse
pensamento), mas mantém a polaridade entre Caliban e Próspero. Mesmo fazendo uma
releitura de seus sentidos e símbolos, Retamar não chega a enfatizar a ambiguidade de
cada personagem, não questiona o ser da dicotomia em si. Talvez a arrancada póscolonial de Retamar seja a sua percepção de um novo descobrimento: “o descobrimento
do múltiplo ser humano 'ondulante e diverso'” ... “sem Leste nem Oeste, sem Norte nem
Sul, pois seu centro será também sua periferia” (Retamar, 2009, p. 139).
Fica a questão de que será possível romper essas polaridades criadas pelo
pensamento colonial? Será válido? É disso que se trata? Como pensar Caliban e
Pŕospero dentro de um discurso pós-colonial? Como seria pensar a história de nossos
188
países, nosso pensamento, nossas culturas, nossos povos, sem essa dicotomia? Como
descolonizar o pensamento, nossos espíritos, como dizia Bolívar?
Referências
BHABHA, Homi (1998). “A outra questão: esteriótipo, discriminação e discurso do
colonialismo” “Da mímica e do homem: a ambivalência do discurso colonial”. In: O local da
cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG.
FANON, Frantz (2008). Pele Negra, Máscaras Brancas. Tradução de Renato da Silveira.
Salvador: EDUFBA.
HALL, Stuart (2003). “Quando foi o pós-colonial?” In: Da diáspora: identidades e mediações
culturais. Belo Horizonte: Ed.UFMG.
RETAMAR, Fernández Retamar (2004). Todo Caliban. Buenos Aires: CLACSO.
PRATT, Mary Louise (1999). “Introdução: crítica na zona de contato”. In: Os olhos do
império:relatos de viagem e transculturação. Bauru, SP: EDUSC.
SAID, Edward (1990). “Introdução”. In: Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente.
São Paulo: Companhia das Letras.
SANCHES, M. R. (eds) (2006). “Introdução”. In:Portugal não é um País Pequeno. Contar o
Império na pós-colonialidade. Lisboa: Cotovia.
SANCHES, M. R. (2011). “Viagens da teoria antes do pós-colonial”. In: As malhas que os
impérios tecem: textos anti-coloniais,contextos pós-coloniais. Lisboa: Cotovia.
SANTOS, Boaventura de Sousa (2001). “Entre Próspero e Caliban: Colonialismo, póscolonialismo e inter-identidade”. In: Ramalho, Ma. Irene e Ribeiro, Antônio Sousa. Entre ser e
estar: raízes, percursos e discursos da identidade. Porto: Afrontamento.
189
Feios, sujos e malvados sob medida – a utopia médica do biodeterminismo
Lizandro Lui1
Francis Moraes de Almeida2
O trabalho que segue tem como objetivo analisar a tese de doutorado em História
de Luis Ferla defendida em 2005 na Universidade de São Paulo com o título: "Feios,
sujos e malvados sob medida - do crime ao trabalho, a utopia médica do
biodeterminismo em São Paulo (1920-1945)”. A tese trata recepção das ideias do
determinismo biológico defendidas pela Escola Positivista praticadas em São Paulo no
período de 1920 a 1945. Descreve a chegada das teses de Cesare Lombroso no Brasil no
período em que já estavam em decadência na Europa. Ferla discute o processo de
assimilação destas ideias e o modo como foram implementadas em certas instituições
sociais. O trabalho de estâncias como o Estado, sistema carcerário são postos em debate
como também o mundo do trabalho, formação de profissionais da área da medicina e
direito.
As ideias defendidas pela Escola Positivista afirmavam que conhecendo a biologia
do ser humano poder-se-ia aliviar a sociedade de seus males sociais. As disfunções e
desequilíbrios do corpo humano eram relacionadas às disfunções sociais. O Curso de
Medicina Legal da Faculdade de Medicina de São Paulo criado em 1918 e a posterior
criação da Sociedade de Medicina Legal e Criminologia de São Paulo em 1921. Haverá
1
Graduando em Ciências Sociais na Universidade Federal de Santa Maria. Bolsista de pesquisa do CNPq.
E-mail: [email protected]
2
Doutor em Sociologia e Professor do departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de
Santa Maria. E-mail: [email protected]
190
também uma nítida aproximação entre as escolas de medicina e direito nesse período. A
escola biodeterminista de Lombroso via o comportamento antissocial como uma
patologia, assim o crime seria um sintoma e a pena ideal um tratamento. As ações que
não condiziam com as normas sociais eram consideradas patológicas. Esse termo
“patológico” era usado para designar ações que não condiziam com as normas impostas
pela sociedade e estava em voga usar termos médicos para definir fatos sociais. As
ações entendidas como não condizentes eram duramente reprimidas e a ideia da Escola
Biodeterminista era que se tratassem esses males sociais como se trata uma doença num
organismo. A punição deveria ser acompanhada de um tratamento, ou ser o tratamento
em si a punição a fim de que o indivíduo não reincidisse mais e se curasse.
Na virada para o século XX começou a se esboçar uma tendência em deixar de
lado as teses da Escola Clássica que focava sua atenção na ação criminosa para se
adotar as teses da Escola Positiva que concedia mais importância ao indivíduo. Esse
movimento provocou mudanças na forma de julgar um caso e na presença do médico
dentro dos tribunais. A criminalidade passou a ser entendida sob um novo enfoque a
partir desse momento: não mais no ato criminoso conforme dava a Escola Clássica, mas
ao indivíduo que deveria ser tratado como um portador de uma patologia. As estruturas
bioantropológicas seriam as determinantes do comportamento antissocial, dessa forma,
o crime já nascia com o indivíduo, desde criança ele apresentaria sinais anatômicos que
acusariam sua patologia. A função do médico, segundo nos explica Ferla durante todo
livro é identificar essas patologias e as tratar antes que o indivíduo cometa um ato. A
ideia de punição também foi reformulada pela Escola Positiva, ela não era mais
entendida como simplesmente encarceramento, ou sequestração desses indivíduos da
sociedade. A casa de punição também teria função terapêutica, ou seja, depois de ter
191
deixado de lado o ritual do suplício, o próximo passo seria deixar de lado o
encarceramento sem terapia. Toda pessoa que fosse presa passaria por um tratamento
oferecido a fim de disciplinar o corpo já que estava de certa forma “infectado” por uma
patologia. A terapia teria como fim recuperar essa pessoa a fim de que ela possa viver
em sociedade. A punição era entendida como ineficiente para esses casos em que o
indivíduo estivesse com esse mal.
A Escola Positiva negava o livre-arbítrio, seus teóricos defendiam a ideia da pena
enquanto tratamento e não como punição. Essa concepção marca a diferença da Escola
Positiva para a Escola Clássica que tinha como principais teóricos Beccaria e Bentham
que associavam o crime ao livre arbítrio, portanto culminava em culpa e punição. O fato
do crime seria uma ruptura com o pacto social. A ação tinha mais relevância do que o
sujeito segundo os pressupostos da Escola Clássica. Contrariando toda essa forma de
procedimento judicial, a Escola Positiva enfrentou o grande desafio de deslocar o
enfoque para o sujeito e não mais para o ato.
O discurso dos seguidores de Lombroso no Brasil -destaca-se Nina Rodrigues e
Flamínio Fávero -seguia na direção de que seria possível identificar na criança de um
ano se ela seria um futuro criminoso. Já na infância ou na puberdade os primeiros traços
de comportamento antissocial poderiam ser identificáveis. Era necessário prever o ato
criminoso e por isso que era importante a identificação dos corpos perigosos antes
mesmo deles praticarem o crime. Prevenir o crime antes que acontecesse, reconhecer o
criminoso antes que ele atuasse. (Ferla, 2009, p.15)
Medicina e direito estavam muito próximos nas universidades de São Paulo e Rio
de Janeiro nas décadas de 20 e 30. O olho especializado do médico seria capaz de
192
identificar os sinais de desvio numa pessoa. A defesa social se baseava, sobretudo, na
sequestração do indivíduo antissocial. Mas ocorreram mudanças nesse ponto como a
prevenção, segundo Ferla ganhava maior relevância. Se o crime era resultado de
problemas físicos e psíquicos, ele já estava presente antes mesmo dele ser cometido.
Assim era necessário que o individuo sege encontrado e tratado, antes dele cometer o
ato.
Ferla faz uso da teoria de Michel Foucault no que diz respeito à evolução das
técnicas de tratar com aqueles que infligiram à norma. Desde as cenas chocantes do
suplício em praça pública até os dispositivos disciplinares de “adestramento do corpo”,
muito mais sutis e disseminadas. (Ferla, 2009, p.36). Era necessário fazer uso de
técnicas de controle e punição eficientes a fim de manter a ordem. Aparentemente as
teorias de Lombroso respondiam a todos os quesitos de eficiência e eram legitimadas
por grande parte dos médicos e da polícia. Formou-se uma multidão em torno das
grandes cidades, na sua maioria pobre. Os operários das fábricas provinham dessa
grande massa. Garantir que as crianças desde cedo não fiquem nas ruas, e se preparam
para serem bons funcionários obedientes era umas das preocupações da Escola Positiva
no Brasil. Pensavam ser possível com o auxílio de a medicina biodeterminista
redirecionar melhor as energias humanas dentro das fábricas a fim de evitar perda de
funcionários por acidentes, ou queda do rendimento da produção.
A tese faz a história do desenvolvimento da Escola Positiva de Medicina e da
Sociedade de Medicina de São Paulo. Mas é preciso ter em mente que essas ideias
foram se modificando até chegar em torno da década de 40 quando já tinha se
modificado em vários pontos. Como a entrada de médicos endocrinologistas para medir
os hormônios dos sujeitos e dos odontólogos para verificar se as cáries tinham relação
193
com a conduta moral da pessoa. As teses dos discípulos de Lombroso não davam mais
conta de explicar a realidade que se apresentava. Muitos testes foram feitos e
apresentavam resultados frustrantes para os que ainda acreditavam no biodeterminismo.
Surge também no decorrer da década de 40 a endocrinologia criminal, mais sofisticada,
mas igualmente assentada nas teses positivistas: essa corrente de pensamento afirmava
haver uma relação entre os hormônios, e a atitude criminosa. Assim por meio de exames
seria possível identificar as pessoas que estariam biologicamente propensas a cometer
atos antissociais: roubo, agressão, vadiagem, estelionato, etc.
Neste ponto do texto é que se configura a parte mais importante da obra de
Ferla, quando ele afirma que a valorização do papel do Estado na construção de uma
sociedade moderna. Essa modernização sendo subsidiada pelo discurso científico.
(Ferla, 2009, p.55). Percebe-se a confiança que era depositada na ciência enquanto
sistema de produção da verdade associado a interesses políticos. Esses últimos
contribuíram para o reforço de uma postura política autoritária no sentido de se apoderar
dos corpos das pessoas a fim de executar exames, medições e experimentos. A
disciplinariedade dos corpos como descreve Foucault vem ao encontro destas ações
praticadas pelo Estado. Este tomava posse dos corpos dos indivíduos encarcerados a fim
de realizar exames que comprovariam sua natureza supostamente criminosa. Fazia isso
por que tinha ao seu lado a esfera legitimadora da ciência representada pela Escola
Positivista.
Pessoas de grande importância tal como Flamínio Fávero então presidente
do Conselho Penitenciário e deixava claro sua concepção do criminoso como doente,
logo, posicionava a favor das teses biodeterministas. É nesse sentido que a teoria de
194
Foucault quanto à legitimação de um discurso se confirma. Eram pessoas que detinham
em suas mãos algum tipo de poder que poderiam fazer valer na sociedade tais teses.
Ferla chama de simbiose do aparelho repressivo associado à modernização
científica que se aprofundava e terminava por favorecer as estratégias da Escola Positiva
(Ferla, 2009, p.56). Foi uma construção social de um inimigo objetivo que também ia ao
encontro dos interesses de controle da população por parte do Estado.
O livro se detém em algumas partes no pensamento de Flamínio Fávero,
também professor de Medicina legal e ocupante de cargos públicos na área repressiva
do estado. Em suas próprias palavras transcritas por Ferla, Fávero afirma: “no direito
penal moderno, as ideias dominantes visam, por certo, a reforma e a readaptação dos
criminosos. (...) merecem ser afastados do seu habitat, enquanto não se restabeleçam
para depois voltar ao convívio social” (Fávero apud Ferla, 2009, p.84).
O novo código penal estabelecido em promulgado em 1940 manteve a
instituição da pena e a responsabilidade moral, mas estabeleceu medidas de segurança,
dispositivos jurídicos que restringiam a liberdade e o movimento e que tinham as
condições de sua aplicação e duração dependentes da periculosidade do indivíduo
(Ferla, 2009, p.87-88). Defendia Fávero que cada doente era portador de uma feição
especial que caracterizava sua doença que o tratamento médico orientará uma terapia.
O exame médico legal era feito a princípio para diagnosticar se aquele
criminoso apresentava características anormais. Fez-se por alguns, como veremos mais
adiante, esse exame com empregados de fábricas a fim de verificar a aptidão do sujeito
a certas atividades e a propensão daquele individuo em provocar acidentes. O exame
médico legal da Escola Positiva nunca alcançou seu total objetivo de examinar
195
praticamente toda a população, mas conseguiu por várias medidas em prática. Uma
delas e que persiste até hoje é a presença de psiquiatras nos tribunais a fim de verificar a
sanidade mental do acusado e a criação do manicômio judiciário foi uma nítida vitória
do projeto positivista que existe até nossos dias.
Os médicos eram chamados aos tribunais sempre que necessário avaliar um
criminoso, expediam seus laudos, em seus pareceres criminológicos atribuíam
características aos delinquentes como criminoso psicótico, acidental, etc. As ciências da
mente ocupavam lugar decisivo no que se refere à criminologia. Isso significa como
explica Ferla um recuo significativo da antropometria, pouca coisa sobrara de Lombroso
no início dos anos 40. As medições antropométricas continuavam a ser feitas pelos
exames médicos legais, os indivíduos continuavam a ser classificados, os resultados
produzidos tinham agora pouca importância (Ferla, 2009, p.183-184). As avaliações
psiquiátricas tinham muito peso nos laudos, mas as medições de corpos haviam perdido
completamente de sentido.
Em outro ponto do livro, o autor dedica atenção à grupos que receberam
atenção especial pelo projeto positivista. Dentre eles, trabalhadores urbanos, menores e
homossexuais. O trabalho era considerado a mais importante estratégia de regeneração
de um condenado. A regeneração é no sentido da utilidade social do sujeito, Ferla usa
Foucault para justificar seu argumento. No que se refere ao autor francês, quando este
afirma que o trabalho é um princípio de ordem e regularidade, sujeita os corpos a
movimentos regulares, exclui a agitação e a distração. (Foucault apud Ferla, 2009,
p.241).
196
A causa mais importante da entrada da medicina legal no ambiente de
trabalho foi no sentido de auxiliar a racionalização do trabalho enfocando o melhor
aproveitamento das forças de trabalho. O acidente de trabalho era algo que deveria ser
evitado a fim de evitar prejuízos, além do mais, era pensado como um ato antissocial
que acontecia nas fábricas. O autor continua explicando que se o criminoso era portador
de predisposições biológicas para o ato antissocial, potencializadas pelo ambiente, assim
também o trabalhador com relação ao ambiente de trabalho. O médico então deveria
avaliar e classificar as melhores predisposições do trabalhador ao posto de trabalho que
mais lhe era conveniente a fim de dinamizar o processo de produção e diminuir
acidentes de trabalho.
Os pós-lombrosianos da década de 30 atribuíam o conceito de predisposição
ao crime e conferiam ao ambiente o papel de elemento chave para o ato criminal. Se o
lar expulsava a criança, a rua a atraia (Ferla, 2009, 284). As ruas estavam cheias de
crianças e jovens e como elas ficavam em casa todo dia por que seus pais iam trabalhar,
eram atraídas para este ambiente que era considerado imoral. Assim a função do Estado
seria garantir que as crianças ficassem em suas casas ou nas escolas. Esse espaço de
vícios e desejos deveria ser evitado. A tese biodeterminista perdia fôlego, mas ainda a
ideia de que o ambiente corrompe a pessoa continuava forte.
Ferla faz uso da teoria de Foucault sobre biopoder, quando se refere à norma
que disciplinava não somente os corpos, mas toda a população. “o biopoder seria, então,
não apenas a poder sobre a vida do corpo, mas também sobre a vida da população.
(Foucault apud Ferla, 2009, p.314). As tecnologias disciplinadoras eram empregadas a
fim de controlar a ação criminal. O poder regulador do Estado não exitou quando o
assunto foi disciplinar os corpos considerados patológicos a fim de oferecer-lhes terapia.
197
Esses grupos citados por Ferla, os trabalhadores, os menores e também os
homossexuais ganharam atenção por que representavam para o Estado grupos
importantes. A criança representava o amanhã do Brasil, não podia se perder essa futura
força de trabalho, as bases do país para o futuro, o menor desviante seria a corrosão
dessas bases. O homossexual representaria uma ameaça ao próprio crescimento
vegetativo do Brasil e o trabalhador produtivo e disciplinado, segundo o autor, seria o
ponto de chegada, o fim último das estratégias de biopoder.
Se aproximando da parte conclusiva do livro, Ferla faz um balanço entre as
conquistas que teve a Escola Positiva como também as resistências. Se tratando das
conquistas, pode-se ressaltar a criação dos laboratórios de antropologia criminal, que ao
longo do livro é descrito todo o seu funcionamento, a não criminalização da
homossexualidade no código penal de 1940, criação de manicômios judiciários, e a
identificação civil obrigatória. Em relação as derrotas, pode se dizer que a fragmentação
que a teoria sofreu, as mudanças que ela precisou passar para se adaptar aos novos
desafios e as novas questões que a sociedade trazia. Outro problema que Ferla ressalta é
o alto custo econômico que a instituição plena do projeto acarretaria. Também uma
resistência que foi sempre encontrada foi por partes dos teóricos do direito penal que
não acreditavam em predisposição para o crime, ou como crime como fato social natural
e sim, como um ato feito por livre arbítrio. O juiz não foi substituído pelo médico no
tribunal, e a prisão não se tornou um hospital, mas a presença do médico se tornou uma
peça importante para desvendar vários crimes, aparentemente irracionais.
A consolidação do programa de criação do manicômio judiciário foi uma
nítida vitória do projeto positivista que existe até nossos dias. A não definição do tempo
da pena, o tratamento individualizado, a concepção de criminosos que sofrem de
198
transtornos mentais precisarem mais de tratamento do que punição é o que de mais
relevante sobrevive hoje da Escola Positiva. A avaliação do acusado por um médico e
não apenas por um juiz. Ferla se esforça no sentido de trazer toda a concepção dessa
escola e sua efetiva aplicação no Brasil no período entre guerras. Este livro serve muito
para pensarmos hoje como funciona o sistema coercitivo do Estado, em que pilares
teóricos ele se baseia para efetuar suas leis.
Este livro também serve pra pensar historicamente o processo como se deu a
mudanças de paradigmas com o exemplo da própria Escola Positiva e sua ideia
biodeterminista do criminoso nato. E como depois a medicina, o direito e o Estado
passaram a confiar nessas concepções e de que maneira elas foram perdendo campo
para outras teorias que foram ganhando força na década de 40. Ressalta também como a
escola trouxe para o centro do debate o criminoso e não o ato antissocial em si. A
questão da liberdade vigiada também é algo novo por que se pensava que a partir daí é
que se reforçaria a questão se realmente certo individuo tem ou não propensão a ser
criminoso.
Este livro oferece instrumentos para pensar vários temas da atualidade, a
leitura da obra torna-se indispensável para os que se interessam não só por História, mas
todos os estudantes de ciências humanas que se interessam pelas questões aqui
abordadas. Utilizar este autor para tal feito será um exercício no mínimo interessante.
Bibliografia:
Feios, sujos e malvados sob medida: a utopia médica do Biodeterminismo, São Paulo
(1920-1945) Luis Ferla São Paulo: Alameda, 2009
199
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Décima Primeira edição - Composição