Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 MOSAICOS Dezembro de 2012 Unidade Universitária de Campo Grande Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MATO GROSSO DO SUL REITOR Fábio Edir dos Santos Costa VICE-REITOR Eleuza Ferreira Lima GERENTE DA UUCG José Barreto dos Santos COORDENAÇÃO DA MOSAICOS José Barreto dos Santos CONSELHO EDITORIAL EXTERNO Prof. Dr. Cesar Aparecido Nunes (Unicamp) Prof. Dr. Gilberto Luiz Alves (Uniderp) Prof. Dr. Marcelo Donizete da Silva (UFOP) Profa. Dra. Maria Silvia Brito (UFMS) Profa. Dra. Ordália Alves de Almeida (UFMS) Prof. Dr. Pascoal Farinaccio (UFF) Prof. Dr. Silvio Ancisar Sanchez Gamboa (Unicamp) Profa. Dra. Silvia Helena Andrade de Brito (UFMS) Prof. Dr. Wedencley Alves Santana (UFJF) Prof. Dr. José Pereira da Silva (CiFEFiL/UFAC) Prof. Dr. Marcelo Tadeu Schincariol (University of Colorado – USA) Profa. Dra. Natalia Fernandes Soares (Universidade do Minho – Portugal) Profa Dra. Tania Martuscelli (University of Colorado – USA) Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 CONSELHO EDITORIAL INTERNO Prof. Dr. Daniel Abrão Prof. Dr. Fábio Dobashi Furuzato Prof. Dr. José Barreto dos Santos Profa. Dra. Léia Teixeira Lacerda Prof. Dr. Marlon Leal Rodrigues Prof. Dr. Miguel Ângelo Batista dos Santos Prof. Dr. Nataniel dos Santos Gomes Prof. Dr. Roberto Ortiz Paixão Profa. Dra. Samira Saad Pulchério Lancillotti Prof. Dr. Walter Guedes DIAGRAMAÇÃO E FORMATAÇÃO Responsável pela edição TÉCNICO RESPONSÁVEL Joab Cavalcanti da Silva O conteúdo dos artigos e a revisão linguística e ortográfica dos textos são de responsabilidade dos seus autores. Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 SUMÁRIO Apresentação..................................................................................................................05 Cultura urbana: relações entre a arte e a cidade contemporânea............................06 Alessandra Mello Simões Paiva (PG – USP) Diálogos entre Nietzsche e Dostoiévski........................................................................26 Fábio Dobashi Furuzato (UEMS) Os pressupostos econômicos, ideológicos e políticos das propostas educacionais neoliberais e pós-modernas nos anos de 1980-1990.........................................................46 Marcelo Donizete da Silva (UFOP) A metáfora da máscara na transição da sociedade feudal para a burguesa............65 Paulo Edyr Bueno de Camargo (UEMS) Mídia, enunciação e ideologia.......................................................................................85 Rosemere de Almeida Aguero (UEMS) A Universidade pública brasileira: autonomia e democracia em debate...............101 José Barreto dos Santos (UEMS) Sérgio Sant’Anna - O livro de Praga: narrativas de amor e arte (resenha).............114 Pascoal Farinaccio (UFF) Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 APRESENTAÇÃO Esta primeira edição eletrônica da Revista Mosaicos é uma conquista da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, UEMS, especialmente da Unidade Universitária de Campo Grande, local onde se concentram os seus organizadores. A Mosaicos já foi publicada como veículo acadêmico impresso da área de Letras, em nossa Universidade, mas infelizmente o projeto não sobreviveu por muito tempo. Agora, mais de cinco anos depois, o projeto é retomado, ampliando-se a área para as humanidades e adequando-se os meios do impresso para o online. Além dessas adequações, conseguimos formar um conselho editorial externo fortíssimo, com nomes de peso de importantes Universidades brasileiras e internacionais. O conselho editorial interno também foi reformulado, com o objetivo de contemplar diferentes áreas das ciências humanas. Nessa primeira edição da nova fase da Mosaicos, contamos com os seguintes trabalhos: - Alessandra de Melo Simões Paiva , pesquisadora da USP, escreve sobre cultura urbana; - Fábio Dobashi Furuzato, professor da UEMS, analisa a relação entre Nietzsche e Dostoiévski; - Marcelo Donizete da Silva, professor da UFOP, discute políticas educacionais; - Paulo Edyr Bueno de Camargo, professor da UEMS, fala sobre a transição do feudalismo para o capitalismo; - Rosemere Aguero, professora da UEMS, apresenta uma pesquisa na área da análise do discurso; - José Barreto dos Santos, professor da UEMS, discute a questão da autonomia universitária; - Pascoal Farinaccio, professor da UFF, apresenta uma bela resenha do Livro de Praga: narrativas de amor e arte, de Sérgio Sant’Anna. Agradecemos as valiosas contribuições dos autores acima e esperamos, com esta primeira edição online, atrair o interesse da comunidade acadêmica para contarmos cada vez mais com a participação de colaboradores das mais diversas instituições de ensino superior, que trabalhem na área das ciências humanas. Até a próxima Mosaicos! Os editores 5 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 CULTURA URBANA: RELAÇÕES ENTRE A ARTE E A CIDADE CONTEMPORÂNEA Alessandra Mello Simões Paiva (PG – USP)1 RESUMO: Qual a relação entre a cidade e a arte produzida nas ruas? Este é a questão primordial deste trabalho, vinculado à pesquisa de doutorado interdisciplinar. Com destaque às expressões artísticas na América Latina, o objetivo é contribuir para a construção de uma nova História da Arte em contraposição à historiografia oficial de caráter elitista e excludente. Para isso, são abordadas as relações entre arte e cidade por meio de aporte teórico proveniente dos Estudos Culturais, da Cultura Visual, da Historiografia, da Crítica e da Teoria da Arte. A partir deste território conceitual híbrido - no qual mesclam-se as estabelecidas teorias da arte e o campo emergente da Cultura Visual – a proposta é contribuir para um conceito de “arte urbana”, com o objetivo de somar esforços para uma nova construção da História da Arte na América Latina. PALAVRAS-CHAVE: arte urbana; arte de rua; História da Arte; cidades; cultura urbana. ABSTRACT: What is the relationship between the city and the art produced in the streets? That is the issue raised by this work linked to an interdisciplinary doctorate research. With distinction to the artistic expressions in Latin America, the aim is to contribute to a new construction of the History of Art, in contraposition to the historiography of the elitist and banned character. The relationship between art and the city is analyzed through theoretical support from the Cultural Studies, the Visual Culture, History, Theory and Criticism of Art. From this conceptual territory hybrid - in which are included the established theories of art and the emerging field of Visual Culture - the proposal is to contribute to a concept of "urban art" in order to join efforts for a new building in the History of Art in Latin America. KEYWORDS: urban art; street art; History of Art; cities; urban culture. 1 Mestre em História da Arte. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina (PROLAM), Universidade de São Paulo (USP). Vencedora do Prêmio Jovem Crítico de Arte 2012 (Associação Internacional de Críticos de Arte - AICA). 6 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 CULTURA URBANA: RELAÇÕES ENTRE A ARTE E A CIDADE CONTEMPORÂNEAS Os primeiros registros visuais da pré-história, as figuras votivas no interior das cavernas, são a prova de que a produção imagética em espaços públicos acompanha o homem desde seus tempos mais remotos. Do paleolítico até as grandes metrópoles pós-industriais do século XXI pode-se concluir que o espaço coletivo público é mediado pela linguagem visual. Na contemporaneidade, pôsteres, outdoors, folhetos publicitários, telões eletrônicos dividem o espaço com outros elementos do ambiente urbano, como edificações, vias de tráfego, praças, parques, para criar o complexo aparato imagético da cidade. Considerada atualmente como o espaço por excelência da cultura humana, a cidade deixou de ser apenas um lugar, no sentido físico, para tornar-se experiência e prática social. Segundo Canevacci (2004, p. 43): “A cidade é o lugar do olhar. Por este motivo a comunicação visual se torna o seu traço característico.”. Esta temática vem ganhando cada vez mais relevância entre as análises das diversas ciências humanas em uma tentativa interdisciplinar para se compreender a questão urbana na contemporaneidade2. Segundo Silva (2011, p. XXVI), a psicanálise e a semiótica, por exemplo, podem propor uma recategorização do 2 Se, inicialmente, sociólogos (ex. Georg Simmel) compunham o perfil principal do pesquisador debruçado sobre as questões da urbanidade, seguiram-se a estes os antropólogos (ex. Massimo Canevacci), os arquitetos (ex. Rem Koolhaas), os filósofos (ex. Armando Silva), os geógrafos (ex. Milton Santos), etc.. A estes somam-se as riquíssimas contribuições de formações interdisciplinares, como as de Walter Benjamin, Jean Baudrillard e Edgar Morin. Cabe destacar aqui a importância do pensamento do sociólogo mexicano Néstor García Canclini para este trabalho, especialmente, em função da aplicação dos Estudos Culturais à realidade na América Latina. Outro pensador de relevância nesta pesquisa é o filósofo colombiano Armando Silva, que vem liderando uma verdadeira “força tarefa” entre pesquisadores e instituições de países ibero-americanos para a produção de uma série de estudos e publicações sobre os “imaginários urbanos”, categoria criada por Silva para estudar as cidades enquanto acontecimentos simbólicos. Este filósofo, inclusive, tem mantido estreita relação com o Brasil, especialmente, por meio do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Integração da América Latina (PROLAM), Universidade de São Paulo (USP). 7 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 urbano, situando-o como sujeito real e imaginário: “A cidade possui motivos suficientes para que dela se ocupem as ciências do simbólico que aparecem em cena como a organização de um saber [...]”. Esta diversidade de olhares vem contribuindo de maneira significativa para o campo das artes visuais, uma vez que, entre as manifestações culturais engendradas no tecido urbano, destacam-se as expressões artísticas visuais. A partir de múltiplas técnicas e com objetivos variados, a arte feita no espaço público das cidades induz a diversas reflexões que dizem respeito não apenas às problemáticas do próprio território da historiografia e da crítica da arte, mas de outras disciplinas que consideram a vida nas cidades como um dos grandes problemas da contemporaneidade, especialmente, aquelas que tratam da cultura simbólica, como a psicanálise e a filosofia. Trata-se de apreender esta nova dimensão da cidade pós-industrial, especialmente das grandes metrópoles, marcadas pela descontinuidade de espaços, por novas formas de relações sociais, pela degradação de grandes áreas anteriormente ocupadas, por espaços informais autoorganizados, por novos usos de antigas infra-estruturas, pela não regulamentação fundiária, pelas novas necessidades de circulação e estadia. Enfim, processos instáveis que alteraram a natureza do espaço público e seus significados culturais. Entre as novas significações culturais das mega-cidades contemporâneas está a arte de rua e suas variadas vertentes. Um olhar para a história mostra que arte e cidade sempre caminharam juntas, em mútua influência: [...] Cada cidade tem seu próprio estilo. Se aceitamos que a relação entre a coisa física, a cidade, sua vida social, seu uso e representação, suas escrituras, formam um conjunto de trocas constantes, então vamos concluir que em uma cidade o físico produz efeitos do simbólico: suas escrituras e representações. E que as representações se façam da urbe, do mesmo modo, afetam e conduzem seu uso social e modificam a concepção do espaço. (SILVA, 2011, apr., p. XXVI). Assim, enquanto as transformações urbanas de final do século XIX ocorreram no clima dos surtos industriais, os artistas das vanguardas históricas procuraram se manifestar em espaços públicos abertos (por exemplo, as 8 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 performances Dadaístas e Surrealistas) para lutar contra a irracionalidade das guerras e os valores vigentes das elites da época. Nos Pós-Guerras, os movimentos artísticos em espaços urbanos abertos se intensificaram por meio de iniciativas como: “[...] ações do Movimento Fluxus, iniciado por George Maciunas, os happenings de Allan Kaprow, as performances de Joseph Beuys, Gilbert e George e Yves Klein.” (ESTRELLA e GONÇALVES, 2007, p. 101). A infinidade de movimentos artísticos após o modernismo procura, em suma, novas formas de aproximação entre arte e vida, entre estética e ética, entre sensibilidade e cotidiano. Uma nova configuração de “monumento público” também ganhou as ruas, como as esculturas do norte-americano David Smith feitas da combinação de refugos e materiais descartáveis. A escala urbana ganhou ainda contribuições como a do artista contemporâneo norte-americano Richard Serra, que utiliza materiais industriais (aço, borracha, chumbo, etc.) para fazer imensas esculturas em locais públicos. Serra foi autor da Tilted Arc (1981), uma gigantesca parede de aço inclinada, instalada na Federal Plaza, Nova York, que, oito anos depois, foi retirada do local, em função dos sucessivos conflitos entre o artista e a opinião pública (ENCICLOPÉIA DE ARTES VISUAIS ITAÚ CULTURAL, 2011). Outro importante exemplo da arte urbana contemporânea é a produção do casal Christo e Jeanne-Claude, que ficou conhecido por “embrulhar” com materiais diversos grandes obras arquitetônicas ou elementos da natureza. 9 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 FIGURA 1 Imagem do parlamento alemão “embrulhado” pelos artistas Christo e Jeanne-Claude, em 1995 Fonte: www.bundestag.de Crédito: Wolfgang Volz/Christo Os anos 1960 foram marcados pelos happenings que, nos países latinoamericanos, ganharam dimensão política, a exemplo de Helio Oiticica no Brasil. Neste período, também surgiram na América Latina os grafites como meio de manifestação política, especialmente, a partir dos ambientes universitários. A década de 1980 assiste à expansão do grafite na América Latina, que se desliga das antigas formas panfletárias para recorrer a “[...] novos subterfúgios formais; introduzir o afeto (e o afeto social), mas também a forma de arte, a figura, e não só a palavra, para conceber um novo projeto estético de sua iconoclástica contemporânea.” (SILVA, 2011, p.4). A ruptura com o mercado de consumo, a desmaterialização da arte, as novas tecnologias, o nomadismo estão entre as temáticas apresentadas pela arte urbana contemporânea. E a cidade, como a arte, é palco para a discussão destas mesmas temáticas: a relação entre capital financeiro e apropriação do espaço público; a 10 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 desmaterialização (como a noção de “não-lugar” para shoppings, aeroportos, hotéis); as novas tecnologias (reveladas em sistemas tecnológicos de comunicação e discursos de poder). O artista Krzysztof Wodiczco, além de criar intervenções em monumentos públicos nos Estados Unidos e Europa, produz obras que são o emblema de uma importante questão na cidade contemporânea: os marginalizados, entre eles, os migrantes, os sem-teto, os comerciantes informais, os catadores de lixo. Em analogia aos carrinhos ambulantes destas populações, o artista constrói “máquinas” - veículos feitos com diversos materiais - para que estas populações sobrevivam nas regiões metropolitanas. Ao serem colocados em ação, em locais bastante movimentados, estes veículos chamam à atenção dos transeuntes, que muitas vezes acabam parando suas atividades cotidianas para participar ou observar a intervenção artística. Outro grupo artístico urbano representativo é o BijaRi que, nos últimos anos, vem realizando uma série de intervenções na cidade de São Paulo. Em seu manifesto (fornecido a esta pesquisadora), o grupo defende que a cidade não deve ser “[...] um espaço pronto e estabelecido por vontades políticas impostas de cima para baixo”. Seus projetos procuram destacar a importância da apropriação do espaço público pelos cidadãos por meio de diversas temáticas, entre elas, as relações de poder ocultas no cotidiano (por exemplo, por meio dos discursos publicitários), a segregação social reforçada pelos processos de reurbanização, a cultura do medo, enfim, processos que mais afastam do que aproximam cidadãos de uma noção de espaço público enquanto lugar da coletividade. A intervenção artística “Antipop Galinha”, realizada em 2002, em São Paulo, procurou instigar reações as mais diversas nos transeuntes, com a soltura de galinhas em dois bairros próximos, porém, frequentados por classes sociais bem distintas. No Largo da Batata, reduto tradicional de ambulantes nordestinos, a galinha causou reboliço e alegria. Já em frente ao Shopping Iguatemi, local mais elitizado, surtiu estranhamento, inclusive, com a intervenção da polícia. O projeto “Cartazes Gentrificação”, realizado em 2005, em São Paulo, foi outra intervenção de destaque do grupo. Os cartazes, em estilo lambe-lambe, espalhados em diversas regiões da cidade, inclusive, em locais habitados por sem-tetos e em momentos de 11 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 manifestação política, traziam a seguinte inscrição: “Gentrificação: Processo de restauração e/ou melhoria de propriedade urbana deteriorada realizado pela classe média ou emergente, geralmente resultando na remoção da população de baixa renda”. FIGURA 2 Projeto Cartazes Gentrificação, grupo BijaRi (SP) Fonte: fornecido pelo grupo a esta pesquisadora (2010) Crédito: BijaRi Enquanto expressões artísticas, como o Grupo BijaRi, colocam em xeque as configurações rígidas da cidade capitalista, outros artistas vêm criando seus trabalhos utilizando a cidade como suporte. Grandes megalópoles no mundo são os principais exemplos dessa tendência, acentuada especialmente nas duas últimas décadas. Silva3 destaca São Paulo como a cidade mais prolífera em nível mundial no que se refere a artistas de rua, cujas formações são de origens variadas: aqueles que formalmente cursaram universidade de artes visuais ou curso que equivalha a esta formação; autodidatas (de diversas classes sociais, mas principalmente das 3 SILVA, Armando. Em palestra no Instituto Cervantes, São Paulo (09/06/2011). 12 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 periferias); e graduados em desenho gráfico que, inclusive, atuam como ilustradores profissionais. Os resultados chegam a ser inusitados, como mostra a obra do artista Zezão. Autodidata, o artista nasceu em 1971, em São Paulo. Passou a adolescência no ambiente do skate, entre punks e na pichacão. Chegou a ser trabalhador rural em Portugal, motorista de caminhão e motoboy. Atualmente, suas obras ocupam espaços inóspitos em grandes cidades, como bueiros, canais pluviais e catacumbas. Uma de suas marcas mais características é um grafismo azul que pode ser visto em diversos locais do mundo. O artista também fotografa os locais de suas intervenções, aprendendo “[...] a ver beleza, onde a maioria das pessoas só consegue enxergar lixo, sujeira e desolação.” (RIBEIRO, 2011). FIGURA 3 Obra de Zezão, Estação da Luz (São Paulo, 2010) Fonte: Galeria Choque Cultural Crédito: Zezão 13 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 FIGURA 4 Obra de Zezão, Canal de St. Martin (Paris) Fonte: Galeria Choque Cultural Crédito: Zezão Também há artistas que se aproximam da vertente mais pictórica, como Daniel Melim, de São Bernardo do Campo (SP), graduado em artes visuais, em 1979, e que utiliza a técnica do stêncil (máscaras com contornos de imagens vazados sobre os quais é aplicada a tinta). Em um de seus trabalhos mais recentes (2011), Melim pintou um painel de 25 x 33 metros em um prédio na Avenida Prestes Maia, 931, centro de São Paulo. Na gigantesca obra, que teve apoio financeiro da empresa KLM Royal Dutch Airlines e da Galeria Choque Cultural (fundada em 2003 e especializada em arte urbana) misturam-se elementos da pop art, ilustrações e imagens de publicidades dos anos 1950. 14 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 FIGURA 5 Detalhe da obra de Daniel Melim, na Av. Prestes Maia (2011) Fonte: Choque Cultural Crédito: Michelle Campos Além da carreira em galerias e museus, Daniel Melim desenvolveu o Projeto Limpão, um site specific4 em proporção gigantesca, em São Bernardo do Campo. Trata-se da ocupação de todo um morro, com pinturas nas fachadas das casas, nos corredores e praças do lugar, construído aos poucos, em parceria com a própria comunidade. Esta característica de work-in-progress, trabalho feito em grandes extensões sem data para terminar, está presente na obra de outros artistas, como o paulistano Stephan Doitschinoff, conhecido como Calma, autodidata, que teve sua formação influenciada pela convivência com os mais diversos tipos de crenças e rituais religiosos. Um de seus projetos mais audaciosos foi pintar grande parte da cidade de Lençóis (BA), onde morou por três anos (de 2005 a 2008). Calma realizou intervenções na cidade e seus arredores, em fachadas de casebres, na igreja e no 4 Em português, “sítio específico” relaciona-se a obras criadas de acordo com o ambiente e com um espaço determinado. São trabalhos planejados, no qual os elementos dialogam com o meio circundante. Enciclopédia Itaú Cultural, verbete Site Specific (www.itaucultural.org.br) 15 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 cemitério, formando uma espécie de grande instalação urbana, que envolveu toda a população da cidade. FIGURA 6 Obra do artista Calma, em Lençóis (2005 a 2008) Fonte: Galeria Choque Cultural Crédito: Nicole Heiniger A cidade do México é outro grande cenário da arte de rua contemporânea, fazendo jus à tradição muralista de seus artistas modernos. O artista Neuzz aka Miguel Mejía, designer gráfico, pintor e ilustrador, faz belos painéis em paredes e muros, nos quais resgata imagens da cultura genuína de seu país. É importante destacar o caso da cidade de Tijuana, no México, onde há uma escola tradicional de grafiteiros. A propósito, as manifestações do grafite compõem grande parte de uma poética urbana voltada à crítica social em muitas cidades da América Latina. Bogotá, por exemplo, tem se tornado um dos principais centros desta manifestação, onde artistas se destacam pela diversidade de técnicas, entre eles, os coletivos Excusado Print System e Toxicómano. A prefeitura chegou a criar, em 2006, o programa Muros Libres, que se transformou depois em uma grande galeria de arte urbana ao ar livre. Em Buenos Aires, destaca-se, entre os diversos nomes, o grupo 16 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 Bs As Stencil que, a partir da técnica do stencil, produziu a popular imagem do expresidente dos EUA, George Bush, com orelhas de Mickey Mouse. Na mesma cidade, existe uma galeria totalmente dedicada à arte de rua, a Hollywood In Cambodia. Mas que reflexões a respeito do urbano podem ser fomentadas a partir das análises da arte praticada nestes espaços? Qual a relação entre pensar a cidade e pensar a arte feita na cidade? Estas perguntas podem ser respondidas a partir da constatação de que, no decorrer das transformações urbanas ao longo de todo o século XX, a cidade deixou de ser analisada apenas em seu aspecto físico e estrutural para se revestir de uma dimensão simbólica. “Ao capital financeiro e industrial costuma-se hoje somar o capital cultural. A competição internacional entre as cidades produziu uma mutação das tradicionais cidades industriais em cidades de arte ou de cultura.” (CANEVACCI, 2004, p. 38). É deste ponto de vista que deve-se partir para a elaboração de um pensamento a respeito do imaginário urbano no século XXI. Cabe destacar também considerações específicas sobre as cidades na América Latina, suas características e contradições. Ao elaborar um longo processo de análise do ponto de vista geopolítico, Silva (2010, p. 44) aponta caminhos valiosos ao sistematizar as afinidades entre realidade e imaginário: “[...] a América Latina não existe como unidade e o que existe é um desejo coletivo, um imaginário de ser latino-americano.”. Da mesma forma como mudaram as teorias a respeito do pensamento urbano, mudaram as percepções sobre a arte. As categorias artísticas, tradicionalmente divididas entre o culto, o popular e o massivo, não são mais suficientes para abarcar um entendimento aprofundado sobre a complexidade cultural da atualidade. Por exemplo, em relação à arte feita nas ruas, buscam-se novas terminologias para a construção de conceitos5: arte pública, arte urbana, arte de rua, etc. Canclini (1997), ao utilizar o termo “hibridização”, argumenta que não há mais como legar às disciplinas seus conteúdos específicos (a história da arte e a literatura que se ocupam 5 Armando Silva, em palestra no Instituto Cervantes, São Paulo (09/06/2011), afirmou que nos próximos meses lançará um livro com definições a respeito da arte feita nas ruas. O pesquisador que, em outros livros, já havia assinalado algumas definições, traz novas contribuições neste sentido. Diferencia, por exemplo, o “grafite” (feito a partir dos anos 1960), do “pós-grafite” (atual). Também define “arte urbana” como a arte feita na rua, porém com autorização institucional prévia (o que a diferencia do grafite). 17 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 do culto; o folclore e a antropologia, do popular; a comunicação, da cultura massiva): “Precisamos de ciências sociais nômades, capazes de circular pelas escadas que ligam os pavimentos. Ou melhor: que redesenhem esses planos e comuniquem os níveis horizontalmente.” (CANCLINI, 1997, p. 19). Portanto, é preciso tecer um pensamento complexo para se compreender a história da arte, da cultura e sua relação com as cidades. Canclini (1997), inclusive, resgata das ciências sociais um termo mais abrangente para superar a noção dualista entre o culto e o popular: a “cultura urbana” (que inspira o título deste trabalho). Afinal, a expansão urbana é uma da causas que intensificaram a hibridação cultural na contemporaneidade. “A assim chamada sociedade pós-moderna remultiplica geometricamente a comunicação urbana de interesse antropológico-cultural porque destrói a distinção entre cultura de elite e cultura de massa.” (CANEVACCI, 2004, p. 43). Cada vez mais, uma nova ordem estética vem desmantelando o esquema tradicional do entendimento da expressão cultural contemporânea para dar lugar às hibridizações das mais diversas ordens. O grafite nos muros da cidade, por exemplo, se tornou “um meio sincrético e transcultural”, afirma Canclini (1997, ps. 338-339), completando este pensamento com a conclusão de que alguns grafites fundem a palavra e a imagem em um estilo descontínuo: “(...) a aglomeração de signos de diversos autores em uma mesma parede é como uma versão artesanal do ritmo fragmentado e heteróclito do videoclip”. Portanto, seriam estas imagens um meio para o entendimento do fenômeno das novas comunidades periféricas, que criam vínculos de condescendência e espaços culturais específicos? Ou as microcomunidades (a igreja, o clube, o escritório) se desarticularam completamente para se refugiar na estagnação ideológica? Como vêm ocorrendo as relações presenciais na cidade e seus espaços públicos, uma vez que a midiatização do mundo substitui cada vez mais o embate pessoal pela ficção? Em que instância a arte, a partir das manifestações de rua, deixou de ser utilizada pelas elites como meio de edificação moral e diferenciação social para se expressar como processo de libertação? Não se trata aqui de fazer apologia da suposta democracia cultural nos ambientes urbanos na contemporaneidade. Pelo contrário, é preciso enfatizar o 18 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 vertiginoso processo que vincula cultura e arte aos interesses financeiros privados e transnacionais com o intuito de manter privilégios, sejam econômicos ou de ordem simbólica. Jameson (1997, p. 30) afirma: “[...] a produção estética hoje está integrada à produção das mercadorias em geral: a urgência desvairada da economia em produzir novas séries de produtos que cada vez mais pareçam novidades [...]”. O mesmo autor explica: “De todas as artes, a arquitetura é a que está constitutivamente mais próxima do econômico, com que tem, na forma de encomendas e no valor dos terrenos, uma relação virtualmente imediata.” (JAMESON, 1997, p. 30). Este pensamento é de fundamental importância para o entendimento da cultura urbana na América Latina, onde as contradições são expressivas, como se pode atestar pelo encontro entre democracia moderna e relações de poder arcaicas. Basta lembrar, por exemplo, como o desenvolvimento industrial e urbano a partir da segunda metade do século 19 ocorreu em paralelo com a larga profissionalização de artistas, porém com o analfabetismo de metade da população. Uma dos temas mais importantes em torno da discussão a respeito do caráter financeiro da cultura é a questão da autonomia da arte, isto é, o “suposto” fim de sua dependência em relação às estruturas de poder, como a política e a igreja (por exemplo, na Grécia e na Idade Média), e seu revestimento de uma força envolta na aura da unicidade e autenticidade. Se o Renascimento foi incensado por seus entusiastas como o momento em que o rompimento da arte com fatores extra-estéticos ocorreu, um olhar para a história revela como se deu a sistematização maniqueísta que concebeu valores específicos para cada tipo de manifestação cultural, isto é, como o artesanato foi parar nas feiras e a arte nos museus (e como se deve pensar hoje a questão de que o design foi parar nos museus?). Entretanto, enquanto alguns teóricos6 exaltaram a independência que o processo de secularização trouxe à arte, as forças econômicas e de mercado, e a comunicação massiva, no sistema capitalista, reataram a dependência da arte com um sistema fora do âmbito estético, isto é, o financeiro: 6 É importante enfatizar que, de Umberto Eco a Kant, muitos teóricos falaram que arte é quando a forma prevalece sobre a função. 19 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 As normas que estabelecem quais objetos devem reunir qualidades estéticas ou as que exigem que alguns objetos artísticos, para atingir a perfeição, preencham requisitos práticos, são determinadas pelo sistema produtivo. E são as suas transformações, ou a passagem de um sistema de produção a outro que transformaram, por exemplo, as máscaras africanas ou as vasilhas pré-colombianas, de objetos religiosos ou domésticos em obras de arte. (CANCLINI, MCMLXXX, p. 11). Apesar desta forte vertente marxista, da qual muitos autores se utilizam, é preciso enfatizar que a arte, além de representar as relações de produção, também as realiza. Assim como o sistema capitalista influi na produção artística, ditando tendências e modificando o modo de produzir e circular a arte, no próprio meio artístico pode se constatar como há um forte esquema em que artistas, marchands, curadores, críticos acabam delimitando um “circuito de artes” que deve seguir o mercado. Notam-se contaminações em todas as direções. Se arte é mercadoria, mercadoria também passou a ser tratada como arte. Arantes (2005), em texto atualíssimo, fala em uma “nova virada cultural”7. Citando textos “clássicos” do pensamento contemporâneo, como Daniel Bell e Fredric Jameson, para falar das contradições do capitalismo tardio, a autora mostra o quanto a: À atual ‘apoteose do dinheiro' se deve o ímpeto peculiar de três setores (em termos de 'acumulação'), o financeiro, o de tecnologia de ponta (informática, telecomunicações, aeroespacial etc.) e justamente o da cultura mercantilizada, dita multimídia: ou seja, o triunfo da economia de mercado redundando numa brutal concentração e financeirização da riqueza. A ‘cultura’ tornou-se um grande negócio - da indústria cultural de massa (clássica) ao passo mais recente da intermediação cultural e correspondente consumo gentrificado (quando as próprias administrações das cidades lançam mão da cultura como pólo de sinalização para as elites: trata-se de um lugar seguro para morar e fazer negócios). (ARANTES, 2005, 63) Voltando à arte de rua, há considerações neste mesmo âmbito. Dois casos são emblemáticos: a dupla OsGêmeos que, da periferia paulistana, alcançou as graças da 7 Supõe-se que se trata de uma referência ao termo “virada cultural”, sugerido por autores influenciados pelos Estudos Culturais (campo surgido no Pós-Guerra na Inglaterra), como Stuart Hall. 20 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 crítica internacional devido à excelente qualidade poética de seu trabalho; e o artista londrino Banksy, que nunca revelou sua identidade pública, mas que virou uma das grandes estrelas internacionais da arte urbana. OsGêmeos foram parar em exposições em galerias e museus internacionais, e chegaram até a colaborar com o design de superfície de um famoso tênis de marca americana. Já Banksy, recentemente, teve várias de suas obras arrancadas, juntamente com partes de muros e paredes onde estavam pintadas, em Los Angeles, para serem leiloadas e arrematadas por artistas do showbusiness americano. É importante lembrar ainda que a arte de rua ganhou, nas últimas décadas, diversos espaços legitimadores. Podem ser vistos em grande parte das metrópoles eventos destinados oficialmente à arte de rua. No Brasil, um decreto lei oficializou o dia do grafite (27 de março). O projeto Arte/Cidade, iniciado em 1994, em São Paulo, transformou arte em manifesto político-urbano, e atualmente passou a lidar com questões complexas, como a relação de mega extensões urbanas e espaços industriais altamente modificadores da paisagem. O evento Bienal do Mercosul também tem enfatizado esta questão. Museus passaram a expor arte de rua; galerias a vendê-las. Entretanto, onde estão realmente sendo efetivadas medidas profundas e libertadoras? No endereço eletrônico do recém-criado Ministério das Cidades (www.cidades.gov.br), não há uma única menção à questão cultural da cidade, enquanto prevalecem informações a respeito dos programas habitacionais que apregoam a suposta felicidade dos cidadãos em troca de moradias de baixíssima qualidade por meio do chavão “Minha casa minha vida”. Assim, continua-se a provar que: “O papel da administração pública passa a ser o de estrategista para a implantação de empreendimentos privados internacionais.” (PEIXOTO, 2004, p.396). Em maio deste ano, durante a despedida comemorativa do jogador Ronaldo, esta pesquisadora assistiu, no canal de TV Globo, uma entrevista com o mesmo. A cena, que parecia se passar em sua residência, tinha como fundo uma pintura dos OsGêmeos. Assim, pergunta-se: de natureza transgressora e crítica, como a arte urbana passa a ser entendida após ser adotada por espaços legitimadores? Como os artistas se colocam em relação à dominação por parte dos sistemas de arte, do ponto 21 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 de vista mercadológico ou institucional? Esta legitimação da arte urbana afetou seu caráter de provocação? Até que ponto estes artistas participam de uma construção coletiva de liberdade? Os “pichadores” (termo que diferencia os grafiteiros dos grupos que utilizam a tinta spray para imprimir grafias quase indecifráveis em partes de difícil acesso em edificações), em São Paulo, parecem sinalizar com alguma resposta. Em 2008, por exemplo, cerca de 40 deles invadiram o prédio da Bienal para pichar as paredes de um dos andares do prédio. A polícia entrou no local e chegou a prender um deles. “Enquanto o grafite é aceito e foi incorporado pelo mainstream artístico, o pixo é agressivo e marginal. E quer ficar assim”, relata Abos (2010). Na edição seguinte da Bienal, foi criada uma sessão para receber esta arte, representada principalmente por fotografias. Mesmo assim, o fato surtiu diversos protestos, especialmente, entre “pichadores” contrários a qualquer institucionalização de suas ações. Qual seria, então, o alcance crítico efetivo das manifestações de arte de rua? Elas resgatam algum sentido para a cidade contemporânea, cuja capacidade de organizar o espaço tradicional entrou em total conflito com as novas transformações estruturais e culturais? Se a metrópole se converteu em uma nebulosa mancha urbana – feita de modelos complexos e imprevistos –, como as iniciativas individuais podem cerzir este complicado conjunto, um espaço quase abstrato? Canclini (1997, p. 287) fala em uma “(...) perda do sentido da cidade”, que estaria relacionada às dificuldades em se realizar trabalhos coletivos não rentáveis. Neste sentido, a arte teria também suas limitações: Espera-se que os espectadores respondam às supostas ações “conscientizadoras” com “tomadas de consciência” e “mudanças reais” em suas condutas. Como isso não acontece quase nunca, chega-se a conclusões pessimistas sobre a eficácia das mensagens artísticas. (CANCLINI, 1997, p. 338). Para Bourriaud (2009, p. 108), a chave deste dilema encontra-se na “[...] instauração de processos e práticas que nos permite passar e uma cultura do consumo para uma cultura a atividade, a passividade diante do estoque disponível de 22 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 signos para práticas de responsabilidade”. Muito se fala em investir em cultura, que as novas governanças devem conferir à cultura seu papel definidor para o rumo das cidades. “Uma outra simbiose íntima entre cultura e cidade precisa ser formulada, num processo de reinvenção do cotidiano”, afirma Coelho (2008, p. 9). Entretanto, o investimento parece se direcionar em grande parte para o mega marketing, especialmente, aquele feito em torno dos eventos de esporte e seus benefícios provisórios. Não se critica aqui este fato em si. Porém, a banalização das diferenças sociais continua a imperar de forma expressiva nas sociedades capitalistas, como mostram as considerações a respeito das relações entre individualismo e grandes metrópoles: A situação crítica da sociedade brasileira manifesta-se com particular dramaticidade nos grandes centros urbanos, cenários e produtores de novas formas de interação social onde o conflito assume proporções assustadoras. As ideologias individualistas, ao lado de seu papel inovador e muitas vezes criativo, não produziram uma cidadania político-cultural onde houvesse, simultaneamente, maior igualdade político-econômica e espaço mais legítimo para a riqueza e complexidade culturais se desenvolverem com plenitude. (VELHO, 2000, p.26) Arantes (2005, p. 75), ao avaliar a possibilidade de afirmações artísticas pontuais em resistência às engrenagens de poder, aponta para a complexidade deste impasse e a dificuldade de uma ruptura sistêmica a partir de iniciativas pontuais: “Sabemos que saídas individuais não são saídas, e que as institucionais são as que vimos”. Por institucionais, entenda-se, no caso do Brasil, o Estado e as elites coniventes com os interesses das grandes corporações transnacionais. Se o orgulho urbano é “[...] feito da imbricação entre a cidade real e a cidade imaginada, sonhada por seus habitantes e por aqueles que a trazem à luz, detentores de poder e artistas.” (GOFF, 1998, p. 119), talvez a cidade imaginada pelos detentores do poder seja bem diferente daquela imaginada pelos artistas. No primeiro caso, a cidade parece estar mais próxima daquela apregoada pelo termo “gentrificação”, por meio do qual se busca um enobrecimento urbano em que ricos e pobres continuam separados, mediados por imagens supostamente conciliadoras, como as veiculadas pela publicidade. Aos artistas, resta a árdua tarefa de remar contra a maré. 23 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 REFERÊNCIAS: ARANTES, Otília. A “virada cultural” do sistema das artes. In: editores (Org.) Margem Esquerda – Ensaios Marxistas, v.6, ps. 62-75. São Paulo: Boitempo, 2005. BOURRIAUD, Nicolas. Pós-Produção - Como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2009 CANEVACCI, Massimo. A Cidade Polifônica - Ensaio sobre a Antropologia da Comunicação Urbana. São Paulo: Studio Nobel, 2004. CANCLINI, Néstor García. A Socialização da Arte - teoria e prática na América Latina. 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Disponível em: http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm. em: 15 mar. 2011 Acesso 25 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 DIÁLOGOS ENTRE NIETZSCHE E DOSTOIÉVSKI Fábio Dobashi Furuzato (UEMS)8 RESUMO: Este trabalho trata de um possível diálogo entre o pensamento filosófico de Friedrich Nietzsche (1844-1900) e a obra literária de Fiódor Dostoiévski (1821-1881). PALAVRAS-CHAVE: Literatura, filosofia, Nietzsche, Dostoiévski. ABSTRACT: This work presents a plausible dialogue between Friedrich Nietzsche’s (1844-1900) philosophical thought and Fiódor Dostoiévski’s (1821-1881) literary work. KEYWORDS: Literature, philosophy, Nietzsche, Dostoiévski. 8 Professor de Literatura da UEMS (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul), em Campo Grande. Doutor em Teoria e História Literária, pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). 26 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 1. INTRODUÇÃO O presente trabalho se propõe a apresentar uma questão tratada pelo professor Oswaldo Giacoia Jr. (2001), em Nietzsche como psicólogo, para, em seguida, arriscar outras considerações que nos parecem pertinentes para a compreensão do diálogo entre o pensamento filosófico de Friedrich W. Nietzsche (1844-1900) e a obra literária de Fiódor M. Dostoiévski (1821-1881). Basicamente, Giacoia nos mostra como a “psicologia do ressentimento”, em Nietzsche, possui uma profunda relação com as Memórias do subsolo, a célebre novela de Dostoiévski. Procuraremos demonstrar que, apesar dos possíveis pontos de contato entre os dois autores, também há muita divergência entre eles. Trata-se apenas de um ensaio, na medida em que as dimensões deste trabalho não permitem investigar de modo satisfatório as hipóteses que aqui serão levantadas; mesmo porque, o pensamento e a obra dos dois autores escolhidos são de amplitude e complexidade gigantescas: Nietzsche e Dostoiévski nos colocam diante de tais paradoxos, que nossa reação imediata não passa de um sentimento de perplexidade, cuja superação é trabalho para longos anos. De qualquer forma, por mais longo que seja o percurso, sempre é necessário dar o primeiro passo. E, sendo assim, vamos à nossa questão inicial: qual a relação que a “psicologia do ressentimento”, de Nietzsche, possui com as Memórias do subsolo? A proximidade entre os dois autores é tal, que nenhum estudo a respeito da novela de Dostoiévski deixa de citar a admiração do filósofo alemão por este trabalho do escritor russo. A introdução de uma edição francesa, por exemplo, já começa com a conhecida citação da carta ao amigo Overbeck: “Une trouvaille fortuite dans une librarie: Notes d’un souterrain, de Dostoïevski (...) La voix du sang (comment l’appeler autrement?) se fit aussitôt entendre, et ma joie fut extrême” (NIETZSCHE apud Todorov, 1995, p.4). Isso para não falar de considerações exageradas, como esta de Máximo Górki: “Para mim, todo Nietzsche está em Memórias do Subsolo. Neste livro – e até hoje não o 27 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 sabem ler – se dá para toda a Europa a fundamentação do niilismo e do anarquismo. Nietzsche é mais grosseiro que Dostoiévski” (GÓRKI apud Schneiderman, 2000, p.10). Ora, esta influência, claramente admitida por Nietzsche, é justamente uma das principais questões tratadas por Giacoia (2001). Depois de apresentarmos os principais pontos de Nietzsche como psicólogo, faremos outras considerações sobre os diálogos entre Dostoiévski e Nietzsche, através da análise de um conto do escritor russo, a saber, “O sonho de um homem ridículo”. 2. NIETZSCHE COMO PSICÓLOGO EM QUATRO MOVIMENTOS O problema central do estudo de Giacoia (2001) consiste em um aparente paradoxo gerado por duas declarações de Nietzsche: a primeira, em Ecce Homo, em que ele afirma ser o “primeiro psicólogo da Europa”; e a segunda, em Crepúsculo dos ídolos, em que considera Dostoiévski como o único autor com quem aprendeu psicologia. Como observa Giacoia (2001), se Dostoiévski precede Nietzsche no estudo da psicologia, o filósofo alemão não pode se considerar o precursor dessa ciência. Faz-se necessário, portanto, esclarecer em que sentido Nietzsche se considera o primeiro psicólogo da Europa para, em seguida, examinar de que modo ele teria aprendido psicologia com o escritor russo. Com base nestas duas indagações, Giacoia (2001) traça o percurso de sua pesquisa, dividindo-a em quatro partes, que denomina de movimentos interpretativos. 2.1 PRIMEIRO MOVIMENTO No primeiro movimento, são discutidos os motivos que levam Nietzsche a se autoproclamar o primeiro psicólogo europeu. Isso se dá devido ao fato de, até então, a 28 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 definição corrente de psicologia estar relacionada aos fenômenos da consciência. Assim, o filósofo se considera o primeiro psicólogo, na medida em que: para ele, o reconhecimento de processos psíquicos inconscientes, ou a dissociação entre a subjetividade e a unidade da consciência - dito metafisicamente, a dissolução da unidade substancial da “alma” - constitui um dos principais efeitos de sua crítica da moral, da religião e da metafísica. (GIACOIA, 2001, pp. 25-26) Em outras palavras, para Nietzsche, os estudos que até então haviam sido realizados na área da psicologia não eram dignos deste nome, porque estavam baseados num grande equívoco metafísico: a associação entre a subjetividade e uma suposta “unidade de consciência” ou “unidade da alma”. Para que a psicologia viesse a ocupar a posição que lhe cabe – como “a senhora das ciências, para cujo serviço e preparação existem todas as outras ciências”, tornandose “o caminho que conduz aos problemas fundamentais” (NIETZSCHE apud Giacoia, 2001, p.09) –, seria necessário nos desembaraçarmos de toda a tradição filosófica, baseada neste mesmo fetichismo metafísico. Daí a relevância da psicologia no pensamento nietzscheano e o papel central da declaração do filósofo como o primeiro psicólogo europeu. 2.2 SEGUNDO MOVIMENTO Em seguida, Giacoia (2001) examina o modo como, de acordo com Nietzsche, a tradição do pensamento ocidental, desde o idealismo platônico, está baseada na mesma crença de que a subjetividade se constitui na unidade da consciência: É de um platonismo difuso que se teria nutrido e consolidado a crença inveterada no privilégio da parte racional da alma, fonte do conhecimento 29 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 verdadeiro, pelo qual se testifica nosso parentesco originário com o mundo das essências inteligíveis. O intelecto, ou faculdade de conceber as ideias, seria, portanto, a parte nobre e sublime da alma, que nos permite o acesso possível ao que é, em si, verdadeiro, belo e bom. (GIACOIA, 2001, p. 47) Desse modo, a filosofia teria se estabelecido como um exercício ascético, através do qual a alma se libertaria do corpo, retornando à sua origem divina. Como metafísica, a filosofia teria se instituído “a partir da negação e desvalorização do sensível, do corpo, da materialidade, do transitório, do devir, do histórico” (GIACOIA, 2001, p.48). Dito isso, não é difícil compreender por que Nietzsche considera o cristianismo como uma forma de vulgarização do platonismo. Mas a crítica de Nietzsche, ainda de acordo com Giacoia (2001), também se volta contra o materialismo científico, que teria simplesmente substituído a crença na unidade da alma pela crença na unidade dos átomos: “A ingenuidade dos ‘naturalistas’ consiste em pretender substituir a alma por partículas elementares de matéria, sem perceber que tais unidades são sucedâneos, transfigurações da mesma hipóstase”. (GIACOIA, 2001, p. 57) A argumentação de Nietzsche, em seu ataque às mais diversas manifestações da “metafísica da unidade”, está baseada em uma crítica ainda mais profunda contra os fundamentos do pensamento racional. De acordo com o filósofo, os erros da razão estariam inscritos na própria estrutura da linguagem, como se observa pelo seguinte trecho do Crepúsculo dos ídolos: Segundo seu aparecimento, a linguagem pertence ao tempo da forma mais rudimentar de psicologia. Inserimo-nos em um fetichismo grosseiro quando trazemos à consciência os pressupostos fundamentais da linguagem metafísica: ou, em alemão, da razão. Esse fetichismo vê por toda parte agentes e ações; ele crê na vontade enquanto causa em geral; ele crê no “Eu”, no Eu enquanto Ser, no Eu enquanto Substância, e projeta essa crença no Eu-Substância para todas as coisas. (NIETZSCHE, 2000, pp. 28-29, grifo do autor) 30 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 Desse modo, seria o fato de a linguagem estruturar-se a partir de certas categorias, como as de sujeito e predicado, que teria levado Descartes a concluir a existência de um “Eu”, a partir do predicado “penso”. E, se considerarmos que o pensamento racional é sempre mediado pela linguagem, perceberemos que qualquer acesso direto à estrutura do real torna-se impossível. O conhecimento, portanto, é sempre uma interpretação a partir de uma determinada perspectiva. Diante dessa constatação, caberia ao novo psicólogo uma atitude de permanente reflexão – em que o pensamento volta sobre si mesmo, em atitude de auto-desconfiança, questionando-se a todo momento –, sem nunca perder de vista que todo pensamento é sempre uma interpretação. O campo de reflexão do novo psicólogo giraria, então, em torno das possibilidades e dos limites da razão e da linguagem. 2.3 TERCEIRO MOVIMENTO Na estapa seguinte, Giacoia (2001) analisa as divergências de Nietzsche contra Schopenhauer. Basicamente, segundo Nietzsche, Schopenhauer teria transferido a metafísica da unidade ao “impulso cego e insaciável”, à “essência do universo”, que denominou de “Vontade”. Seguindo o mesmo raciocínio que lhe permite considerar o pensamento de Descartes como um preconceito baseado na linguagem, Nietzsche faz, no Crepúsculo dos ídolos, a seguinte alusão ao autor de O mundo como vontade e representação: “No começo, encontra-se a grande imposição do erro: a assunção de que a vontade é algo que atua – de que a vontade é uma faculdade... Hoje sabemos que ela é meramente uma palavra...” (NIETZSCHE, 2000, p.29, grifo do autor). Em Para além de bem e mal, conforme demonstra o estudo de Giacoia (2001), Nietzsche descreve a vontade – o ato volitivo de um indivíduo – como um jogo de forças, composto por uma diversidade de sentimentos, impulsos, pensamentos, afetos, em que um determinado ato de vontade predomina e se realiza. O “Eu” seria uma síntese, criada pela consciência, dessa diversidade de forças que constituem o corpo: 31 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 A consciência é, então, apenas a “classe dirigente”, a função psíquica superior, de regência do conjunto, de governo da “coletividade”. Ela se identifica com os sucessos da comunidade, que ela representa, com os êxitos de que ela é copartícipe, apoiando-se e equilibrando-se sobre um prodígio de força e “racionalidade” que ela não apenas não domina como, em grande medida, desconhece. (GIACOIA, 2001, p. 72, grifo do autor) Assim, cada um de nós seria constituído por uma “coletividade de almas”. E todo ato volitivo estaria inserido numa “teia complexa de relações de domínio”. Conforme nos explica o pesquisador, a moral, no sentido nietzscheano, é a “doutrina de relações de domínio sob as quais a vida surge e se desenvolve” (GIACOIA, 2001, p.73). 2.4 QUARTO MOVIMENTO Dito isso, as relações entre Nietzsche, Dostoiévski e a psicologia são retomadas, já no quarto e último movimento interpretativo. A partir de alguns dados biográficos, o pesquisador nos apresenta sua hipótese de que a “psicologia do ressentimento” teria tomado como modelo acabado o protagonista das Memórias do subsolo, “como se essa novela traçasse os contornos de uma figura prototipicamente ressentida, no exato sentido nietzscheano desse termo” (GIACOIA, 2001, p.77). Em seguida, Giacoia (2001) discorre sobre os principais conceitos que nos permitem compreender a “psicologia do ressentimento”, em Nietzsche, para depois apontar a presença destes mesmos conceitos na novela de Dostoiévski. Inicialmente, explica a diferenciação entre a moral dos senhores e a moral dos escravos, mostrando como a primeira é afirmativa, enquanto a segunda é negativa. O conceito de “bom”, na moral aristocrática, nasceria de uma “sensação de plenitude e força, de auto-satisfação”, consistindo numa auto-afirmação espontânea da própria identidade. O oposto disso seria aquilo que está distante, o diferente de si mesmo; isto seria o “ruim”, o “mau”, mas não o malvado, no sentido moral. 32 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 Já a moral dos escravos estabeleceria seus valores a partir da negação de um valor externo, tendo uma existência parasitária. Sendo assim, é negando os valores da moral aristocrática que o escravo estabelece sua moral. Trata-se, portanto, de uma inversão dos valores morais dos nobres: Para o escravo, bom é o compassivo, o que renuncia à ira, à vingança, o que é humilde, comum, o que nega a si mesmo, o altruísta. Mau (agora em sentido de malvado, que pratica o mal) é o que separa, o que diferencia, o que seleciona, o que age, agride, ataca, afirma orgulhosamente o próprio eu. (GIACOIA, 2001, p.79) Em Genealogia da moral, Nietzsche utiliza a figura das aves de rapina e das ovelhas como metáforas dos tipos fortes e fracos. É assim que o trecho abaixo ilustra a idéia da moral afirmativa dos nobres e negativa dos plebeus: E se as ovelhas dizem entre si: “essas aves de rapina são más; e quem for menos ave de rapina, e sim o seu oposto, ovelha – este não deveria ser bom?”, não há o que objetar a esse modo de erigir um ideal, exceto talvez que as aves de rapina assistirão a isso com ar zombeteiro, e dirão para si mesmas: “nós nada temos contra essas boas ovelhas, pelo contrário, nós as amamos: nada mais delicioso que uma tenra ovelhinha”. (NIETZSCHE, 1998, pp. 35-36) Em seguida, é necessário compreender os conceitos nietzscheanos de ação e reação, uma vez que a moral dos nobres foi definida como “ativa e afirmativa”. Haveria, para Nietzsche, dois tipos de atividade: uma delas, mais espontânea, gerada por estímulos internos; outra gerada quando, a partir de um estímulo externo, um ser pratica uma ação elaborada. No segundo caso, trata-se de uma reação, mas não de uma reação meramente mecânica. O tipo aristocrático seria predominantemente ativo, de acordo com o primeiro tipo de atividade. Já o escravo, além de necessitar de um estímulo externo, seria incapaz também de reagir a ele praticando uma ação elaborada. Assim, o plebeu seria um 33 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 ressentido, ou seja, um ser tomado pelo “sentimento de vingança”, incapaz de promover uma descarga externa dessa energia afetiva. Quanto a essa descarga externa, ela seria necessária por funcionar como uma espécie de narcótico contra o sofrimento. Em outras palavras, considerando que todo ser vivo está exposto ao sofrimento, uma das formas de aliviar a dor seria através da vingança, ou seja, de uma energia afetiva direcionada para um suposto culpado pelo sofrimento. Mas, no tipo ressentido, haveria um bloqueio na capacidade de descarga de energias e afetos em direção ao exterior. E em alguns casos, o ressentimento voltar-se-ia contra o próprio ser, através do sentimento de culpa, como se vê em outro trecho da Genealogia da moral: “‘Eu sofro: disso alguém deve ser culpado’ - assim pensa toda ovelha doente. Mas seu pastor, o sacerdote ascético, lhe diz: ‘Isso mesmo, minha ovelha! Alguém deve ser culpado: mas você mesma é esse alguém – somente você é culpada de si!...’” (NIETZSCHE, 1998, p.117, grifo do autor). Neste ponto, é preciso esclarecer, como o faz Giacoia (2001), que os tipos psicológicos nietzscheanos do nobre e do plebeu devem ser tomados, não como categorias sociológicas ou políticas, mas no sentido abstrato. Sendo um crítico da cultura, Nietzsche acrescenta que o homem moderno seria a manifestação de um tipo psicológico fundamentalmente fraco, apontando a evidência da fraqueza nos mais diversos aspectos culturais: na ciência, devido ao privilégio de conceitos como reação e adaptação, que ocupam posição central no darwinismo, por exemplo; na filosofia, devido à metafísica da unidade que, como vimos, se reproduz no pensamento dos principais autores, desde Platão; e finalmente, em moral e política, devido aos “valores de rebanho” que predominariam no século XIX. Em síntese, o homem moderno é um tipo psicologicamente doente: porque é puramente artifício, porque em sua alma não vibram mais as forças vitais autênticas. Ele configura aquele tipo de aleijão por excesso, que Zarastustra tanto ironizava, o aleijado cuja monstruosidade não consiste na 34 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 privação de um órgão, mas no hiperdesenvolvimento de um deles, em detrimento da integridade do corpo. (GIACOIA, 2001, p.89) Desse modo, o homem culto do século XIX teria sua consciência hiperdesenvolvida, sofrendo, ao mesmo tempo, de uma atrofia de seus outros órgão vitais. Concluída assim a síntese sobre a “psicologia do ressentimento”, em Nietzsche, Giacoia (2001) passa a apontar paralelos entre ela e os traços que definem o protagonista da novela de Dostoiévski. É assim, por exemplo, que, na primeira parte da novela, encontramos a associação, feita pelo próprio narrador, entre a “doença” e sua “consciência hiperdesenvolvida”: Juro-vos, senhores, que uma consciência muito perspicaz é uma doença, uma doença autêntica, completa. Para o uso cotidiano, seria mais do que suficiente a consciência humana comum, isto é, a metade, um quarto a menos do que cabe a um homem instruído do nosso infeliz século XIX e que tenha, além disso, a infelicidade de habitar Petersburgo, a cidade mais abstrata e meditativa de todo o globo terrestre. (DOSTOIÉVSKI, 2000, p.18) Sua incapacidade de agir também o caracteriza como “homem ressentido”, que se contrapõe aos “homens de ação”. Outro traço característico seria a tendência à autodegradação, que o faz definir-se como um “homem do subsolo”, um rato, amargurado e fechado em si mesmo, em sua própria consciência, ao mesmo tempo sofisticada e insuficiente para a vida. E, como confirmação final da hipótese de seu estudo – a de que Nietzsche teria encontrado na novela de Dostoiévski o modelo pronto do homem ressentido –, Giacoia (2001) nos apresenta uma análise do episódio de vingança do protagonista contra o jogador de bilhar. Como sabemos, trata-se de um acontecimento irrisório que, visto do ponto de vista do anti-herói dostoievskiano, ganha as dimensões de um intenso conflito, embora 35 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 nunca adquira grandeza, justamente devido à consciência dele próprio de que se trata de um fato insignificante. Resumidamente, o protagonista entra em um bar, onde há diversos jogadores ao redor de uma mesa de bilhar. Um deles, sem ao menos tomar conhecimento do nosso “homem do subsolo”, simplesmente o carrega pelo ombro, como se fosse um mero objeto, deslocando-o do lugar, pois estava atrapalhando a jogada. A partir de então, o protagonista passa a planejar minuciosamente a vingança, que leva anos para se realizar, e só se realiza quando ele havia finalmente desistido de seu plano. Cabe observar ainda que o ato em si consistia apenas em trombar contra o outro, sem lhe ceder a passagem no passeio. Assim, confirma-se a hipótese de Nietzsche como psicólogo, esclarecendo-se o aparente paradoxo inicial. Em primeiro lugar, compreendemos que o filósofo alemão se intitulou como o primeiro psicólogo da Europa, pelo fato de considerar que, antes dele, não havia psicologia, uma vez que os estudos na área baseavam-se no equívoco da unidade metafísica. Além disso, percebemos que Nietzsche aprendera psicologia com Dostoiévski, por tomar o protagonista das Memórias do subsolo como modelo do tipo cultural ressentido, o que não significa que o escritor russo deva ser considerado propriamente um psicólogo. 3. DOSTOIÉVSKI COMO FILÓSOFO A partir do estudo de Giacoia, parece-nos lícito supor que a proximidade entre o pensamento de Nietzsche e a obra de Dostoiévski seja bastante grande. Os dois autores são quase contemporâneos e viveram em uma atmosfera cultural semelhante. Além disso, sabemos que o escritor russo possuía uma formação filosófica bastante sólida, o que lhe possibilitava discutir, em sua obra, questões centrais da filosofia. 36 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 O artigo de Boris Schneiderman (1994, p.242), “Dostoiévski: a ficção como pensamento”, por exemplo, narra um episódio biográfico que ilustra muito bem a inclinação do escritor para a reflexão filosófica. Diz o ensaísta que, em 1854, ao ser libertado dos trabalhos forçados na Sibéria, Dostoiévski escreveu uma carta ao irmão Mikhail, solicitando-lhe urgentemente uma quantia em dinheiro e uma lista de livros. Na relação dos livros solicitados, constavam: a Crítica da razão pura, de Kant; a História da filosofia, de Hegel; além de Vico, dos “padres da Igreja” e do Corão. Não é à toa, portanto, que a obra de Dostoiévski seja constantemente estudada através das mais diversas aproximações com o pensamento de autores como Kant, Hegel e os existencialistas. Mas, no que toca ao objeto de nosso estudo, cabe perguntar até que ponto a aproximação entre Dostoiévski e Nietzsche pode ir além do diálogo das Memórias do subsolo com a “psicologia do ressentimento”. Nossa hipótese é a de que, naquilo que há de mais central na obra do escritor russo, ela se afasta – e muito – do pensamento de Nietzsche. Buscaremos comprovar esta hipótese, com uma análise do conto “O sonho de um homem ridículo”, publicado em 1877, como parte do Diário de um escritor. 3.1 “O SONHO DE UM HOMEM RIDÍCULO” Dividido em cinco partes, este conto de Dostoiévski tem a simplicidade de seu enredo sustentada pelas digressões do narrador e pelas belas imagens descritivas do sonho. Inicialmente o protagonista anônimo se apresenta de um modo muito semelhante ao que ocorre nas Memórias do subsolo: “Sou um homem ridículo. Agora já quase me têm por louco. O que significaria ter ganho em consideração, se não continuasse sendo um homem ridículo”. (DOSTOIÉVSKI, 1995, p.1213) Além da semelhança na maneira de se apresentar, associando à própria personalidade um adjetivo que poucos desejariam para si, o protagonista desta história possui outros traços em comum com o homem “doente”, “mau” e “desagradável” da novela anterior. A tendência ao isolamento social e à reflexão, em detrimento da ação; o 37 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 sentimento de culpa, torturando-o constantemente; a sensação de impotência diante da vida e do sofrimento que ela causa; enfim, quase todos os traços psicológicos do “homem ridículo” fazem dele um ser estreitamente aparentado ao “homem do subsolo”. Por outro lado, logo na sequência do trecho supracitado, pode-se perceber uma diferença fundamental entre os dois personagens: Mas eu já não me aborreço por causa disso [de ser um homem ridículo], agora já não guardo rancor a ninguém e gosto de toda a gente, ainda que se riam de mim... sim, senhor; agora, não sei por quê, mas sinto por todos os meus próximos uma ternura especial. Teria muito gosto em acompanhálos no vosso riso... não precisamente nesse riso à minha custa, mas sim pelo carinho que me inspiram, se não me fizesse tanta pena vê-los. É pena que não saibam a verdade. (DOSTOIÉVSKI, 1995, p.1213) E, ao contrário do que talvez possa parecer, a expressão desse sentimento de “ternura” e “carinho” pelo próximo não é fruto da ironia do narrador. Podemos confirmar isso pela sequência da narrativa, cujo propósito é justamente o de revelar a verdade ignorada pelos demais. Como dissemos, o enredo é simples. O homem ridículo chega a tal sentimento de indiferença diante da vida, que resolve se matar. Ele compra um revólver e o conserva guardado na gaveta de uma mesa no quarto alugado em que vive, e simplesmente espera: No entanto, tinham já passado dois meses e o tal revólver continuava na minha gaveta; tão indiferente me era tudo, que queria esperar por um momento em que assim não fosse, embora ignorrasse o motivo desse adiamento. E, quando voltava a casa todas as noites, durante esses dois meses, julgava que ia ser essa a noite em que eu dava o tiro. Estava sempre à espera do momento. E, de repente, aquela estrelinha sugeriu-me a ideia e resolvi terminantemente meter a bala no corpo nessa noite. (DOSTOIÉVSKI, 1995, p.1215) 38 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 O que ocorre é que o protagonista voltava à sua casa, numa determinada noite chuvosa, e avistara uma estrela. Conforme se vê no trecho acima, esta estrela lhe surge como um sinal para consumar o ato há tanto tempo planejado. Mas eis que lhe aparece uma garota maltrapilha, cuja idade deveria girar em torno de oito anos, no meio daquela noite fria, em busca de ajuda para sua mãe que estava à beira da morte. O homem não atende ao pedido de socorro da menina e se dirige ao seu quarto, pronto para executar o plano de suicídio. Ele então se senta numa poltrona e coloca a arma diante de si. Mas fica paralisado, simplesmente pensando no que acabara de lhe acontecer. É que, embora acreditasse ter atingido um sentimento de absoluta indiferença diante de tudo, causava-lhe perplexidade o fato de a garota ter despertado sua compaixão: Não, não consigo descrever bem o meu fugidio sentimento de então; mas esse sentimento ainda perdurava no meu espírito depois de eu ter entrado no meu quarto e depois de eu estar já sentado à mesa; e me encontrava tão agitado como havia muito não o estava. [...] Mas se eu, por exemplo, me mato dentro de duas horas, que pode importar-me essa pobre pequenina e que podem incomodar-me a vergonha e o mundo inteiro? Transformo-me num zero, num zero absoluto. (DOSTOIÉVSKI, 1995, p.1217) A partir dessa constatação – de que ainda era capaz de sentir algo, embora aquilo já não fizesse a menor diferença, se ele, de fato, se matasse dentro de poucas horas –, o homem ridículo vai tecendo as mais diversas especulações existenciais, que lhe surgem como problemas teóricos aos quais ele tem de responder antes da morte. Da mesma forma como o homem do subsolo se vê incapaz de agir devido à reflexão, também o protagonista deste conto não consegue nem ajudar a garota, nem se matar, porque se põe a pensar e não encontra respostas. A consciência hiperdesenvolvida surge, então, como uma doença. Mas a virada no enredo se dá justamente a partir deste ponto: em que o homem ridículo, perdido em suas meditações, subitamente adormece e sonha. No início, o 39 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 sonho do homem ridículo dá sequência ao seu plano de suicídio, com o disparo de um tiro contra o próprio peito. O personagem, então, presencia seu enterro, sentindo-se depois no interior do sepulcro, onde perde a noção do tempo. Além do frio e da umidade, sente uma dor física no local onde havia acertado o tiro e uma gota de água fria a cair insistentemente sobre o olho esquerdo, até que, não podendo mais suportar aquilo, grita “com todo o seu ser”: Ó quem quer que sejas, se é que existes e que há alguma coisa de mais razoável do que aquilo que me sucede, ordena-lhe que imponha aqui o seu domínio. Mas se queres castigar-me pelo meu insensato suicídio com a insensatez de continuar a existir, fica sabendo que nada do que me esteja reservado pode comparar-se com o desprezo que sentirei em silêncio, ainda que a minha tortura e meu martírio possam durar milhões de anos. (DOSTOIÉVSKI, 1995, p.1220) Passado um instante, abre-se o sepulcro e um ser obscuro se apodera do personagem, transportando-o pelo espaço até a estrela que ele avistara na noite do suicídio. O astro é uma espécie de “duplo” da Terra, onde o homem ridículo é deixado, em meio a seus habitantes: Aquela era a Terra, a Terra não manchada pelo pecado original, na qual viviam homens que não tinham pecado, e viviam num Paraíso idêntico àquele em que, segundo todas as tradições da Humanidade, viveriam os nossos primeiros pais antes da “queda”, a não ser que a Terra toda era, por todo lado, um só e mesmo Paraíso. (DOSTOIÉVSKI, 1995, p.1223) Neste ponto, já se percebe o quanto a obra de Dostoiévski pode ser distante do pensamento de Nietzsche. Mas vamos prosseguir até o final do conto, antes de nos centrarmos na discussão de nossa hipótese. Independentemente de quais sejam nossas conclusões, o sonho de um homem ridículo é de uma beleza extrema, com sua descrição inspiradíssima do que teria sido a “Idade de ouro”. 40 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 Não havia religião, nem ciência, mas os homens eram dotados de uma tal sabedoria e de um sentimento de comunhão tão intenso com a natureza, que se mantinham “numa identificação total com o Todo”: “Nunca vi dor nem lágrimas à cabeceira dum moribundo, mas um amor exaltado até o êxtase, até um fervor tranquilo e puro. Poder-se-ia acreditar que até depois da morte continuavam em comunicação com seus mortos, e que ela não interrompia a sua vida terrena”. (DOSTOIÉVSKI, 1995, p.1224) Também é digno de nota o comentário feito pelo narrador a respeito do “amor”, que: existia também entre eles e geravam filhos; mas nunca verifiquei que fossem vítimas desses arrebatamentos de cruel lascívia, que se apoderam de quase todos os homens desta nossa Terra, de todos, sem exceção de nenhum, e que constitui a única origem de quase todos os pecados da nossa humanidade. (DOSTOIÉVSKI, 1995, p.1224) Em meio a tais descrições sobre a harmonia em que viviam os habitantes daquele planeta, o narrador intercala considerações sobre como, apesar de se tratar de um sonho, sua sensação era tão forte, que o sonho não poderia deixar de ser verdadeiro. Além disso, o protagonista descreve também a reação das pessoas que, ao ouvirem seus relatos sobre o sonho, passam a considerá-lo ainda mais ridículo. Na sequência, como em todas as “tradições da humanidade”, ocorre a inevitável “queda”: os homens aprendem a mentir, conhecem o orgulho, a voluptuosidade, a inveja e a crueldade; começam os derramamentos de sangue, com o sentimento de posse e a divisão da espécie humana entre os diferentes povos. Tendo se afastado da verdade, os homens criam a ciência e as religiões. Tornando-se cirminosos, inventam a justiça: “Mal se recordavam daquilo que tinham perdido e não queriam acreditar que alguma vez tivessem sido inocentes e felizes. Riam-se até da possibilidade dessa sua felicidade passada e tachavam-na de fantástica”. (DOSTOIÉVSKI, 1995, p.1227) Depois de uma descrição igualmente inspirada da queda – da qual o narrador se acusa de ter sido o causador, embora não se lembre de como isso teria ocorrido –, o 41 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 sonhador sente uma dor intensa que lhe “trespassou a alma” e desperta. A partir de então, está completamente transformado diante da existência e proclama-se como uma espécie de profeta, que anuncia a boa nova: Pois eu vi a verdade, sei-o; os homens podem tornar-se belos ou felizes sem que, para isso, tenham de deixar de viver na Terra. Eu não posso nem quero crer que a maldade seja o estado natural do homem. Mas eles troçam desta minha crença. Não acreditam em mim! Eu vi a verdade! Não que a tenha descoberto com a minha inteligência, não; vi-a, o que se chama ver, e o seu rosto vivo penetrou a minha alma por toda a eternidade. (DOSTOIÉVSKI, 1995, p.1229) Depois de uma nova reflexão sobre como é indiferente o fato de a revelação ter vindo através de um sonho, uma vez que se tem convicção sobre a verdade, a narrativa termina com a lembrança da menina que fez com que o protagonista adiasse o suicídio: “Mas ando à procura daquela jovenzinha... E continuo, continuo...”. (DOSTOIÉVSKI, 1995, p.1230) 4. DE VOLTA AO DIÁLOGO ENTRE NIETZSCHE E DOSTOIÉVSKI Feito este resumo, nem seria preciso um exame muito aprofundado da obra de Nietzsche, para percebermos o quanto o sentido deste conto se afasta do pensamento nietzscheano. Basta citarmos um breve trecho de O crepúsculo dos ídolos, sobre a idéia do paraíso perdido, à guisa de comparação: E na Índia, tanto quanto na Grécia, cometeu-se o mesmo engano: “é preciso que já tenhamos estado ao menos uma vez em um mundo mais elevado (ao invés de em um muito inferior: o que teria sido a verdade!) e que aí tenhamos nos sentido em casa. É preciso que tenhamos sido divinos, pois temos a razão”. (NIETZSCHE, 2000, p.29, grifo nosso) 42 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 Ora, a “necessidade metafísica” não se justifica de forma alguma para o filósofo alemão. Trata-se de um raciocínio circular, que visa a disfarçar a ignorância, através de um malabarismo retórico (GIACOIA, 2001, p.53). E, como vimos, qualquer espécie de idealismo, como este sonho do homem ridículo, seria fruto do mesmo equívoco da “unidade metafísica” que se encontra na base de nossa tradição filosófica. Sendo assim, parece claro que este conto de Dostoiévski o afasta muito do pensamento de Nietzsche. Resta saber até que ponto a narrativa analisada apresenta algo de relevante para o sentido geral da obra do escritor russo. Vejamos, por exemplo, o que diria o próprio escritor sobre o seu pensamento: sou filho de meu século, filho da descrença e da dúvida, até hoje e (eu sei) até o túmulo. Que terríveis sofrimentos me custou e me custa agora esta ânsia de acreditar, que é tanto mais forte em minh’alma, quanto mais eu tenho argumentos em contrário. [...] acreditar que não existe nada mais belo, profundo, simpático, racional, valoroso e perfeito do que Cristo, e não só não existe, mas, digo isso a mim mesmo com um amor enciumado, nem pode existir. Mais ainda, se alguém me demonstrasse que Cristo está fora da verdade, e então realmente a verdade estaria fora de Cristo, eu gostaria mais de ficar com Cristo do que com a verdade. (DOSTOIÉVSKI apud Schneiderman, 1994, p.245-246) Ora, como observa Schneiderman (1994), é justamente este o conflito central em Os irmãos Karamazov, o último e mais bem acabado dentre os romances de maturidade do escritor. No trecho supracitado da carta de Dostoiévski a N. D. Fonvízina – esposa de um degredado político –, teríamos “prefigurado” o diálogo entre Aliocha e Ivã Karamazov. Assim, esse dialogismo da fé que se fortalece com os “argumentos em contrário” ilustraria muito bem uma característica fundamental na obra do escritor russo, conforme aponta Bakhtin (1981), nos Problemas da poética de Dostoiévski. Do mesmo modo, em “O sonho de um homem ridículo”, o conflito gira justamente em torno da fé religiosa. O narrador insistente na existência de um paraíso perdido, que poderia ser reconquistado se o homem assim o desejasse, mas sua fé se 43 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 baseia unicamente numa experiência que, como ele próprio confessa, não passa do sonho de um homem ridículo. Para finalizar, citemos dois trechos do longo estudo de Joseph Frank (1999), que confirmam mais uma vez a presença do problema da fé religiosa, em posição central tanto na vida do escritor, quanto em sua obra: “o problema da existência de Deus atormentou-o a vida inteira, mas isso apenas confirma que para ele sempre foi emocionalmente impossível acreditar em um mundo que não tivesse relação alguma com qualquer espécie de Deus”. (FRANK, 1999, p. 75) E, mais adiante, comentando a questão da fé em Os irmãos Karamazov: A genialidade de Dostoiévski como escritor está em ter sido capaz de sentir (e exprimir) os dois extremos, a rejeição e a aceitação. Não é verdade, como afirma Leo Chestov com tanta eloquência, que somente o polo negativo representa o “verdadeiro” ou “antêntico” Dostoiévski. (FRANK, 1999, p.86) Todas as considerações do presente trabalho nos levam a crer que há, sem dúvida, pontos de contato entre a obra e o pensamento de Dostoiévski e Nietzsche. Mas, pelo menos neste último ponto, no que diz respeito à existência ou não de Deus, eles divergem. Enquanto, para Dostoiéviski, isso é um problema fundamental; para Nietzsche, a resposta é clara: Deus é uma invenção, um equívoco da metafísica. É claro que a obra dos dois autores é bastante ampla, complexa e, como dissemos no início do trabalho, só se deixa compreender – para além da mera perplexidade –, depois de longos anos. Mas, para os limites deste ensaio, consideramos ter atingido os nossos objetivos, com a clareza de que este é apenas o primeiro passo de um caminho que ainda desejamos voltar a trilhar. 44 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1981. DOSTOIÉVSKI, Fiódor Mikhailovich. Memórias do subsolo. Trad. e prefácio de Boris Schneiderman. São Paulo: Editora 34, 2000. ––. “O sonho de um homem ridículo”. In: ––. Obra completa. Vol. IV. Trad. e notas de Natália Nunes e Oscar Mendes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar. 1995. FRANK, Joseph. Dostoiévski: as sementes da revolta (1821-1849). Trad. de Vera Pereira. São Paulo: Edusp, 1999. GIACOIA JR., Oswaldo. Nietzsche como psicólogo. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2001. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Crepúsculo dos ídolos: ou como filosofar com o martelo. Trad. de Marco Antonio Casa Nova. Rio de Janeiro: Relume: Dumará, 2000. ––. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. SCHNEIDERMAN, Boris. “Dostoiévski: a ficção como pensamento”. In: NOVAES, Adauto (org.). ARTEPENSAMENTO. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. ––. “Prefácio do tradutor”. In: DOSTOIÉVSKI, Fiódor Mikhailovich. Memórias do subsolo. Trad. e prefácio de Boris Schneiderman. São Paulo: Editora 34, 2000. TODOROV, Tzvetan. “Introducion”. In: DOSTOIÉVSKI, Fiódor Mikhailovich. Notes d'un souterrain. Traduction e notes de Lily Denis. Paris: GF-Flammarion, 1995. 45 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 OS PRESSUPOSTOS ECONÔMICOS, IDEOLÓGICOS E POLÍTICOS DAS PROPOSTAS EDUCACIONAIS NEOLIBERAIS E PÓS-MODERNAS NOS ANOS DE 1980-1990 Marcelo Donizete da Silva (UFOP)9 RESUMO: Neste artigo, analisaremos sobre as políticas educacionais dos anos de 1990 e suas relações com as abordagens contemporâneas presentes no contexto educacional brasileiro. Uma dessas abordagens se refere à teoria da complexidade de Edgar Morin, teoria essa que se tornou um dos eixos do debate sobre a Educação. Nesse sentido, nossa proposta será a de analisar as questões ideológicas que perpassam os fundamentos da teoria em questão e como as políticas públicas abraçaram essa causa como forma de transformação da prática pedagógica pensada, principalmente, na reforma educacional estruturada a partir dos anos 1990. PALAVRAS CHAVE: Epistemologia e Teorias da Educação, Políticas Públicas e Teoria da Complexidade. ABSTRACT: In this article we will analyze education policy of the 1990 and its relationship to contemporary approaches present in the Brazilian educational context. One such approach refers to the theory of complexity of Edgar Morin, who becameone of the axes of the debate on education. In this sense, our proposal was to analyze the ideological issues that underlie the foundations of this theory and how public policies have embraced this cause is a way to transform teaching practice in our context, especially in the structured educational reform from the year 1990. KEYWORDS: Epistemology and Theories of Education, Public Policy and Complexity Theory 9 Doutor em Educação pela Faculdade de Educação da Unicamp, participante do grupo Paidéia na linha de pesquisa em Epistemologia e Educação (EPISTEDUC), Professor Adjunto do Departamento de Educação (DEEDU) da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) nas disciplinas de Fundamentos e Políticas da Educação. 46 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 INTRODUÇÃO As abordagens epistemológicas da educação, que adentram a realidade brasileira, trazem consigo o fardo histórico da ideologia burguesa que se materializam pela legitimação das políticas educacionais. Por essa razão, o objetivo desse artigo farse-á na análise acerca dos apontamentos que influenciaram na produção destas políticas nos anos de 1990. Além desta fundamentação, toda a análise estará focada na reflexão sobre os pressupostos da modernidade e da pós-modernidade, que aqui são entendidos como alicerces da produção do pensamento e da política educacional. Assim, essa análise estará focada na leitura critica acerca dos fundamentos da chamada “crise dos paradigmas educacionais” elencados na teoria da complexidade de Edgar Morin. Esta referência à crise de paradigmas é utilizada, para legitimar este modelo de educação pensado sobre os pressupostos da pós-modernidade e do neoliberalismo. É salutar sinalizarmos que nosso objeto não se limita à discussão política do sistema educacional, porém ele pressupõe a análise a sobre a teoria da complexidade e sua influência na reflexão sobre a problemática da educação no Brasil. Assim, o objetivo proposto, será o de contribuir com a análise crítica em relação a essa abordagem, que se tornou referencial de debate e de reflexão acerca da prática pedagógica contemporânea. Sabemos que os anos 1980, apesar das contradições políticas que se inserem nesse contexto, o debate acerca da educação foi tema fundamental, para se pensar os rumos dados à escola em nosso país. Esses debates traduziram-se no projeto político pedagógico de cunho crítico que pensava alternativas para nossa realidade educativa. Embora esse período tenha sido considerado como a “década perdida” do contexto sócio-econômico, ela foi de uma relevância teórica fundamental, no que tange a crítica às abordagens reprodutoras da ideologia capitalista que, então, legitimavam o processo da reforma educacional nos anos de 1990. Nesse sentido, o que apresentaremos neste artigo terá como fundamento, a seguinte configuração: uma análise acerca da proposta dos paradigmas educacionais pós-modernos alinhados com as teorias educacionais contemporâneas, a sua articulação na produção do conhecimento e relação com as políticas neoconservadoras e sua relação com as políticas educacionais nos anos de 1990. O destaque fica, portanto, para a crítica 47 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 a esse período que marcou a educação brasileira, com a implantação de uma reforma neoconservadora de cunho ideológico e excludente proclamado pelo debate, falacioso, da necessidade da inserção da realidade brasileira as bases do capitalismo global. OS PRINCÍPIOS EPISTEMOLÓGICOS DAS REFORMAS EDUCACIONAIS NOS ANOS 1990 E SUA RELAÇÃO COM O PENSAMENTO COMPLEXO: OS “COMPLEXISMOS” EPISTEMOLÓGICOS DA EDUCAÇÃO As reformas se inseriram na lógica da revolução do modo de produção capitalista que ocorria no mundo todo e configura uma realidade infra e supra estrutural nova. Como pano de fundo das políticas adotadas estava o argumento de que o mundo vivia um processo de mudanças estruturais do ponto de vista de sua história econômica, com todas as conseqüências sociais e políticas que isso significa (HERMIDA, 2006 p. 55). O modo de produção dos anos 1990 se caracterizou pelo processo de inserção das novas tecnologias e dos sistemas informacionais aos métodos e processos da atividade produtiva, além de redefinir a produção da cultura aos fundamentos do capitalismo globalizado. Diante da complexidade deste fato, as condições de marginalização e barbárie que adentrou a realidade brasileira, já sinalizaram para que lado tendeu a reforma e as políticas educacionais neste contexto. Na perspectiva de transformação dos sistemas produtivos torna-se evidente o fato de que a discussão acerca das políticas educacionais se intensificou e se identifica com o projeto de reestruturação do capitalismo monopolista global10. 10 [...] A educação formal é profundamente integrada na totalidade dos processos sociais, e mesmo em relação à consciência do indivíduo particular suas funções são julgadas de acordo com a sua raison d´être identificável na sociedade como um todo. Nesse sentido, a crise atual da educação formal é apenas a “ponta do iceberg”. O sistema educacional formal da sociedade não pode funcionar tranqüilamente se não 48 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 Diante desse fato, a necessidade de inserção dos sistemas informacionais e a reestruturação do método pedagógico tiveram como objetivo, redefinir o objeto da educação aos princípios e as novas exigências do capital. Em uma realidade cuja perspectiva do trabalho é modelada sob a luz das novas tecnologias, o problema que se inseriu a realidade educacional brasileira, após a reforma se deu pela caracterização da sociedade do não trabalho devido a essa transformação “inorgânica” dos processos produtivos. Sobre essa questão, os referenciais políticos e epistemológicos da educação se caracterizaram pelas seguintes matrizes: Primeiro; o ideal de cidadania assumiu outra característica, cuja matriz é perpassada pela crítica à concepção de homem moderno e cujos processos de produção da ciência se encontravam “fechadas” à socialização do conhecimento; Segundo, a reforma dos anos 1990 evidenciou claramente os objetivos da educação brasileira para esse século, principalmente com a inserção das abordagens educacionais contrárias à concepção moderna e que defendem a tese de abertura aos processos de aquisição dos “novos” conhecimentos e novas culturas; Terceiro, o conceito de homem passa a ser compreendido a partir dessa visão global; aquele que se via encerrado em sua realidade, passou a ser agora considerado o cidadão do mundo. Por esse motivo, como diz Nosella (1992 p. 179): A instituição escolar, obviamente reflete o quadro produtivo nacional. Um industrialismo tardio e inorgânico, a periferia urbana, a miséria, o arcaísmo agrícola e o parasitismo produzem o assistencialismo educacional, que é a nossa grande ideologia pedagógica, pois fetichiza a miséria, fazendo-nos esquecer da pergunta de Marx: “quem educa o educador?” Ou seja, acostumados com a miséria, acabamos por legitimá-la, esquecendo que é o estiver de acordo com a estrutura educacional geral – isto é, com o sistema específico de “interiorização” efetiva – da sociedade em questão. A crise das instituições educacionais é então indicativa do conjunto de processos dos quais a educação formal é uma parte constitutiva. A questão central da atual “contestação” das instituições educacionais estabelecidas não é simplesmente o “tamanho das salas de aula”, a “inadequação das instalações de pesquisa” etc., mas a razão de ser da própria educação. Desnecessário dizer: tal questão envolve inevitavelmente não só a totalidade dos processos educacionais, “desde a juventude até a velhice”, mas também a razão de ser dos instrumentos e instituições de intercâmbio humano em geral. Se essas instituições – incluindo as educacionais – foram feitas para os homens, ou se os homens devem continuar a servir às relações sociais de produção alienadas – esse é o verdadeiro tema do debate. A “contestação” da educação, nesse sentido mais amplo, é o maior desafio ao capitalismo em geral, pois afeta diretamente os processos mesmos de “interiorização” por meio dos quais a alienação e a reificação puderam, até agora, predominar sobre a consciência dos indivíduos (MÉSZÁROS 2006 p. 275). 49 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 trabalho o princípio pedagógico geral e que o nosso educador, em última instância, é a forma produtiva. O assistencialismo nos faz esquecer que é justamente o trabalho que deve ser educado no Brasil. O populismo e o irracionalismo são a expressão política e filosófica desse esquecimento ou dessa ideologia; ocultam uma tremenda omissão educacional. O trabalho semi-livre, na sua forma geral, constitui a nossa infraestrutura, nosso reino da necessidade. É o nosso passado cristalizando o presente, é o nosso educador determinante. Ora, esse arcaico educador deve ser re-educado por uma moderna e revolucionária escola-do-trabalho. O estigma do trabalho escravo deve ser exorcizado através da catarse educativa. Em muitas palavras: precisamos transitar do reino da necessidade para o reino da liberdade, através do reconhecimento crítico de nosso legado histórico, invertendo assim a relação determinista entre infra-estrutura e superestrutura. As práticas engendradas na produção da pesquisa científica nesse contexto assumiram a característica de concepções conservadoras que se apresentaram como sendo posturas “inovadoras” e “emancipadoras” dos sistemas educativos. De certo modo, esse fato foi o que se traduziu no processo de fetichização da educação por meio da implantação ideológica de práticas pedagógicas de cunho pragmático e neoconservador. A escola é o meio pelo qual ainda podemos pensar acerca dos processos que legitimem as práticas emancipatórias dos seres humanos, porque é nela que se encontra engendrada todas as formas de alienação existentes na realidade. E é justamente da análise dessa realidade, que é possível pensar sobre a concepção de homem e de mundo que, segundo Gramsci (2001), possa conduzir à transformação do contexto histórico-social. No entanto, o que se assiste hoje é justamente o seu contrário; a defesa do neoliberalismo, cuja concepção é perpassada pela visão pósmoderna e “irracional” da ciência, como fundamento para a organização das políticas educacionais e postuladas pelos organismos internacionais, é que sinalizam, na prática, as novas formas de organização do capitalismo contemporâneo como questão ad hoc. No que concerne, nesse sentido, às postulações da ideologia burguesa para educação contemporânea os conceitos de “inovação”, “desconstrução/construção”, “pragmatismo”, “complexidade”, etc. Inseridos na prática educativa, principalmente na produção da pesquisa em educação, vem se tornando os “eixos norteadores” de sistematização do pensamento pedagógico, 50 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 sustentados sob a matriz do discurso ideológico de superação dos paradigmas da ciência moderna, entendidos como condição necessária para produção da ciência contemporânea. Com efeito, são sobre essas matrizes que se estruturam os pilares de sustentação da ideologia burguesa pelos quais se mantém o discurso do capitalismo global na esfera da produção, da alienação e da reificação dos seres humanos, consubstanciadas pela tônica da complexidade que hoje se faz presente no contexto pedagógico. Por outro lado, no que é referente à metodologia das categorias de análise dos referenciais expostos acima, a proposta de inserção dos sistemas de informação à educação é justificado pelo fato de que o processo de democratização do ensino pode conduzir a transformação dos sistemas educacionais, rumo à sociedade do conhecimento11. Nesse sentido, o processo de organização da sociedade do conhecimento é balizado pela redução do trabalho humano, com o advento das chamadas Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) à produção. A inserção dos sistemas tecnológicos e informacionais na esfera educativa, não só responderiam as necessidades transformação da força produtiva, como levaria uma parcela significativa da população para o processo de marginalização dos sistemas da produção . Nesse sentido, segundo Antunes (2008 p 125). Quando se olha o conjunto da estrutura produtiva, pode-se também constatar que o fordismo periférico e subordinado, que foi aqui estruturado desde os anos 30, cada vez mais se mescla, fortemente, com os novos processos produtivos, em grande expansão, conseqüência da liofilização organizacional, dos mecanismos próprios oriundos da acumulação flexível e as práticas toyotistas que foram e estão sendo intensamente assimiladas pelo setor produtivo brasileiro. Para os capitais (nacionais e transnacionais) produtivos interessa, portanto, a mistura entre força de trabalho “qualificada”, “polivalente”, “multifuncional”, apta para operar equipamentos informacioanais, recebendo salários bastante reduzidos, subremunerados, que se encontram em patamares muito inferiores àqueles alcançados pelos trabalhadores nas economias avançadas, vivenciando condições de trabalho amplamente flexibilizadas. 11 [...] o capitalismo do final do século XX e início do século XXI passa por mudanças que podemos sim considerar que estejamos vivendo uma nova fase do capitalismo. Mas isso não significa que a essência da sociedade capitalista tenha se alterado ou que estejamos vivendo uma sociedade radicalmente nova, que pudesse ser chamada de sociedade do conhecimento. A assim chamada sociedade do conhecimento é uma ideologia produzida pelo capitalismo, é um fenômeno no campo da reprodução ideológica do capitalismo. Dessa forma, para falar sobre algumas ilusões da sociedade do conhecimento é preciso primeiramente explicar que essa sociedade é, por si mesma, uma ilusão que cumpre determinada função ideológica na sociedade capitalista contemporânea (DUARTE, 2008 p 13). 51 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 Do ponto de vista político, uma das instâncias que abraçou essa causa da flexibilização cujo objetivo era pensar sobre a “inovação” e reestruturação das práticas pedagogias foi o Ministério da Educação (MEC) do então presidente da República Fernando Henrique Cardoso na figura de seu Ministro Paulo Renato Sousa. Para Sousa (2001), a implementação das novas tecnologias na educação, não só se tornara questão emergencial, como um dos principais desafios da educação deste século e cuja proposta estava em adequá-la aos princípios da economia global, que, de certo modo, significou reajustar a produção à economia de mercado mundial. Para evidenciar melhor o fato, apresentamos aqui os pontos essenciais levantados pelo Ministro em seu artigo publicado na revista da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina em 2001), como os desafios da educação para o novo século: El surgimiento de la informática revolucionó la tecnología de producción industrial, tornando obsoletas las antiguas especializaciones y requiriendo un nuevo tipo de trabajador, más versátil y mejor equipado intelectualmente. El gran salto de las comunicaciones, potenciado por el desarrollo de la tecnología espacial, rompió literalmente las barreras nacionales: a los países se les hizo imposible mantenerse aislados en un mundo con acceso instantáneo a la información, y se tornó inviable la aparición de procesos de desarrollo nacionales autóctonos12 (SOUSA, 2001 p. 68). Nesta perspectiva os propósitos para a educação dos anos 90 e século XXI, deveriam seguir a mesma perspectiva: En este mundo globalizado e interdependiente en una escala nunca antes vista en la historia universal, la superación de la pobreza y el arraigamiento de la democracia pasan necesariamente por la capacidad de apropiación y generación del conocimiento científico y tecnológico, raíz y motor del dinamismo del capitalismo contemporáneo, y por la afirmación de una 12 O surgimento da informática revolucionou a tecnologia de produção industrial, tornando obsoletas as antigas especializações e requerendo um novo tipo de trabalhador, mais versátil e melhor equipado intelectualmente. O grande salto das comunicações potenciado pelo desenvolvimento da tecnologia espacial, rompeu literalmente as barreiras nacionais, aos países seria impossível manter-se fechados a um mundo com acesso instantâneo a informação, e se tornou inviável a aparição de processos de desenvolvimento nacionais autóctones (Tradução livre). 52 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 ciudadanía dotada de los instrumentos para comprender, criticar e influir en la definición de los rumbos de dichas transformaciones. Para la educación, el desafío es doble: formar el individuo y preparar el país tanto para comprender un mundo nuevo cuyas bases se reorganizan por completo como para participar en él. Recuperar el tiempo perdido, superar las deficiencias básicas y esenciales heredadas del pasado y, al mismo tiempo, implantar la reforma educacional que exige la nueva sociedad, es una tarea gigantesca que exige de los gobiernos y la sociedad la asignación de una clara prioridad a la educación13 (Op. cit. p. 68). Pela argumentação exposta, o problema da educação está perpassado pela problemática do fardo histórico e por essa razão, a defesa de superação dessa problemática se traduz no fato emergencial da reforma educacional. Dessa forma, o problema da pobreza é colocado como questão candente desse legado histórico e a possibilidade de erradicá-la se consubstancia na idéia de que é necessária a apropriação dos conhecimentos científicos e educacionais para a transformação dos valores humanos. Não obstante a esse fato, a justificativa dada para se pensar em novos paradigmas da ciência é perpassada pela hipótese de que é possível construir a cidadania, quando se compreendem as novas linguagens dos sistemas tecnológicos inseridos ao dinamismo do capitalismo contemporâneo. Portanto, o que se percebe da argumentação é que o problema da pobreza não se encontra engendrado as formas de produção e ao avanço do capitalismo, mas sim no processo histórico, na reflexão crítica de se pensar a transformação social a partir da leitura da conjuntura social na qual se criam os fatores determinantes da dominação. Pelo presente exposto, percebemos que os desafios que se apresentam à educação contemporânea são extremamente complexos, devido a esse alinhamento imposto, nos anos de 1990, à realidade brasileira aos propósitos do capitalismo financeiro global. Além dessa aceitação tácita ao processo de globalização, essa se estendeu também à educação, cujas perspectivas se consubstanciam nos pressupostos 13 Neste mundo globalizado e interdependente em uma escala nunca antes vista na história universal, a superação da pobreza e o alargamento da democracia passam necessariamente pela capacidade de apropriação e geração do conhecimento científico e tecnológico, raiz e motor do dinamismo do capitalismo contemporâneo e pela afirmação de uma cidadania dotada dos instrumentos para compreender, criticar e influir na definição dos rumos destas transformações. Para a educação o desafio é duplo: formar o indivíduo e preparar o país tanto para compreender um mundo novo cujas bases se organizam por completo como para participar nele. Recuperar o tempo perdido, superar as deficiências básicas e essenciais herdadas do passado e, ao mesmo tempo, implantar a reforma educacional que exige a nova sociedade, é uma tarefa gigantesca que exige dos governos e a sociedade a assinação de uma clara prioridade à educação. (Tradução Livre) 53 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 de uma educação ao longo de toda vida14, balizados no dossiê de Jacques Delors (2001). Em suma, por assumir os aspectos ideológicos, massificadores e excludentes para a educação são perceptíveis, ao se observar também o distanciamento das diretrizes educacionais da LDB 9394-96, com a proposta elencada nos anos 1980, no projeto de lei 1256, para uma educação de cunho político emancipador. Se do ponto de vista político o problema educacional não se liga ao problema estrutural do capitalismo, mas sim a questão do método pelo qual se constituiu o pensamento pedagógico brasileiro. Do ponto de vista epistemológico, a proposta educacional vigente a essa realidade, não só se identificou com os paradigmas estruturados pelos organismos internacionais, como também acentuou essa estruturação a partir das tendências pós-modernas, pós-críticas, neoliberais e conservadoras da educação contemporânea. Há de se considerar que nesta situação os objetivos de uma educação emancipadora perdem o seu sentido real, quando se torna o instrumento ideológico do pensamento burguês para a manutenção da ordem vigente. Por essa razão, a análise ontológica do ser social se descaracteriza, uma vez que o sujeito passa ser considerado o “cidadão do mundo”, ou seja, essa idéia de sujeito que estava ligada às condições históricas de sua existência, agora passa a ser analisado sobre a matriz do neo-escolanovísmo, sedimentado também na perspectiva epistemológica da complexidade. Os anos 1990, nesse sentido, ficaram marcados pelos processos de desmobilização dos movimentos sociais, pelo enfraquecimento da lutas a favor de uma educação pública, cujo objetivo era pensar a identidade histórica dos sujeitos envolvidos nas causas sociais15. Nesta situação, as teorias que se colocaram 14 Para podermos compreender a crescente complexidade dos fenômenos mundiais e dominar o sentimento de incerteza que suscita, precisamos antes adquirir um conjunto de conhecimentos e em seguida aprender a relativizar os fatos e a revelar o sentido crítico perante o fluxo de informações. A educação manifesta aqui mais do que nunca o seu caráter insubstituível na formação da capacidade de julgar. Facilita uma compreensão verdadeira dos acontecimentos, para lá da visão simplificadora ou deformada transmitida muitas vezes pelos meios de comunicação social, e o ideal seria que ajudasse cada uma tornar-se cidadão deste mundo turbulento e em mudança que nasce a cada dia perante os nossos olhos (DELORS, 2001 p. 47). 15 Os adversários contemporâneos de Marx denunciam, com freqüência, o caráter supostamente “utópico” e “ideológico” do seu pensamento – em nome da “engenharia social”, da “atuação por acordos”, “passo a 54 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 contrárias ao projeto neoliberal, em especial a histórico crítica, viram seus espaços de atuação serem minimizados por tendências que se dizem superadoras das formas de “barbárie, do dogmatismo e do atraso educacional” presentes em nossa realidade. Em suma, a defesa das tendências e abordagens pós-modernas descaracteriza o fundamento político que envolve a questão educativa brasileira porque estão diretamente interligadas, no ponto de vista da produção conhecimento, à cultura do modismo. O clima cultural próprio dessa época vem sendo chamado de “pósmoderno”, desde a publicação do famoso livro de Lyotard, A condição pósmoderna, em 1979. Esse momento coincide com a revolução da informática. Se o moderno se liga a revolução centrada nas máquinas mecânicas, na conquista do mundo material, na produção de novos objetos, a pósmodernidade centra-se no mundo da comunicação, na informática, nas máquinas eletrônicas, na produção de símbolos. Isso significa que antes de produzir objetos se produzem os símbolos, ou seja, em lugar de experimentar, como fazia a modernidade, para ver como a natureza se comporta a fim de sujeitá-la ao desenvolvimento do homem, a pósmodernidade simula em modelos, por meio de computadores, a imagem dos objetos que pretende produzir. Em lugar de metanarrativas entram em cena os jogos de linguagem (SAVIANI, 2007 pp. 424-425). É nesse universo proscrito de rearranjos dos processos produtivos, de organização da realidade por intermédio da chamada engenharia social sedimentada pela concepção sistêmica, da teoria da informação, da cibernética e da incorporação de todos esses fatores à realidade, que se adentra aos objetivos do pensamento complexo, por um lado, e da reforma educacional brasileira, por outro. Nesse ponto, a defesa e o adensamento dessa abordagem no interior da pesquisa educacional, uma vez que a proposta é de supressão dos “paradigmas” da modernidade, se não há o aprofundamento claro na análise de suas proposições, esta já se apresenta como modismo ou o próprio “complexismo” da atividade produtiva. passo” etc. As críticas desse tipo, no entanto, não podem ser levadas a sério; pois a utopia é incompatível com a abrangência dialética da abordagem marxiana, que não atribuiu poder exclusivo a nenhum fator social particular, já que pressupõe a reciprocidade dialética de todos eles. A utopia é inerente a todas as tentativas que oferecem remédios meramente parciais para problemas globais – de acordo com as limitações sócio-históricas do horizonte burguês – encurtando a distância entre a parcialidade das medidas ad hoc defendidas e os resultados gerais, antecipando arbitrariamente um resultado ao seu próprio gosto. É precisamente isso que caracteriza os esforços ideológicos da “engenharia social” (todas as aspas são do autor) (MÉSZÁROS, 2006 p. 270). 55 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 A proposta de “inovação” e produção de um “novo” fundamento epistemológico para se pensar acerca do contexto educativo se soma às leituras da biologia molecular, e da concepção termodinâmica da física contemporânea; fatores que compreendem a Engenharia Social da complexidade. Nesse sentido, toda realidade é, sobretudo, entendida como parte da condição sistêmica que se encontra estruturada pela dinâmica de organização do real e é por essa questão que se adentra a hipótese hologramática dos organismos vivos ou o chamado holograma social. Pela reflexão exposta, a perspectiva de produção do conhecimento não passaria pela concepção sistematizadora e rigorosa de verificação dos problemas concretos do real. Ela, em tese, faz parte da relação incerta entre o acontecimento e o acaso. Nesse sentido, os seus fundamentos são prescritos pela instrumentalidade e pela lógica dos sistemas de informação, pelo distanciamento da análise dialética jogos de linguagem. Contrariamente a esse fato, se entendermos que a educação é parte fundamental para a efetivação da vida material dos seres humanos, o que determina essa efetivação se caracteriza pela História humana, lócus em que se materializa a práxis social. Assim, pelas condições observadas, as bases da “inovação” apresentadas por essas tendências se dão pela inserção dos sistemas tecnológicos ao processo de organização das práticas educativas. Ora, se a condição dada para que tais teorias adentrem ao repertório educacional se justifica pela tese de que é necessário “corrigir” os erros que herdamos de um passado recente da educação, justamente, para que se possa “incluir” os “excluídos” do processo de formação, cujo objetivo se vincula à participação de todos no processo de organização social e da vida para o trabalho; se observarmos claramente as palavras do ministro Paulo Renato de Sousa em seu artigo, perceberemos que a proposta de educação inclusiva assumida pelo governo tende a excluir cada vez mais os trabalhadores da atividade econômica. Nesse novo contexto não se trata mais da iniciativa do Estado e das instâncias de planejamento visando a assegurar, nas escolas, a preparação da mão-deobra para ocupar postos de trabalho definidos num mercado que se expandia em direção do pleno emprego. Agora é o indivíduo que terá de exercer sua capacidade de escolha visando a adquirir meios que lhe permitam ser competitivo no mercado de trabalho. E o que ele pode esperar das oportunidades escolares já não é o acesso ao emprego, mas apenas a conquista do status de empregabilidade. A educação passa a ser entendida 56 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 como um investimento de capital humano individual que habilita as pessoas para a competição pelos empregos disponíveis.(o grifo é nosso). O acesso a diferentes graus de escolaridade amplia as condições de empregabilidade do indivíduo, o que, entretanto, não lhe garante o emprego, pelo simples fato de que, na forma atual do desenvolvimento capitalista, não há emprego para todos: a economia pode crescer convivendo com altas taxas de desemprego e com grande contingentes populacionais excluídos do processo. É o crescimento excludente, em lugar do desenvolvimento inclusivo que se buscava atingir no período keynesiano. A teoria do capital humano foi, pois, refuncionalizada e é nessa condição que ela alimenta a busca de produtividade na educação. Eis porque a concepção produtivista, cujo predomínio na educação brasileira se iniciou na década de 1960 com a adesão à teoria do capital humano, mantém a hegemonia nos anos de 1990, assumindo a forma do neoprodutivismo (Op. cit. p. 428). Em tese, essa herança da educação neoliberal, foi de total processo de marginalização social dos que não se “capacitam”, para sua inserção em uma realidade do trabalho, na forma como esse se apresenta em nossos dias. Nesse sentido, não há possibilidade de inclusão no contexto neoliberal, pós fordista e keynesiano: a volatização do capital além das novas formas de acumulação da riqueza alteraram substancialmente as formas de aquisição da mais valia. Não obstante a isso, se a proposta de uma educação ao longo de toda vida está alicerçada pela de tese de que é necessária a subsunção de nosso legado histórico em relação aos novos paradigmas educacionais contemporâneos, o que constatamos dos anos de 1990, é que esses não só foram de continuidade ao processo de massificação ideológica da classe, como de recrudescimento das lutas históricas rumo ao processo de transformação social, alijada pelo princípio da teoria burguesa de organização do capital humano. Nesse sentido as instituições que não se “adequem” a essa nova realidade, em especial a escola, tendem a cair no esquecimento, ou, para utilizar a tese dos defensores dos paradigmas pós-críticos, tendem a viver sobre os auspícios desse “atraso histórico” em que se encontra a educação. Nos dizeres de Nunes (1999 p 34). Estamos vivendo hoje uma chamada terceira revolução industrial, marcada pela revolução da informática, pelo concurso da automação ou robótica. Se antes transferimos parcelas do trabalho manual para as máquinas hoje estamos transferindo as próprias operações intelectuais para as mesmas. Neste sentido, a qualificação parcial e específica tende a ser superada por uma qualificação geral do processo produtivo e do conjunto de produtores. A produção de trabalhadores omnilaterais passa a ser uma exigência própria 57 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 do processo produtivo. Em muitos países já se atingiu a universalização da educação básica e a massificação do ensino superior. Esta realidade já visualizada em muitos cenários atuais permite algumas aproximações teóricas: a primeira é a que, com acentuado otimismo, aponta para a necessidade da generalização do processo produtivo global o que levaria a uma superação das formações especializadas tayloristas. A segunda é a que aponta para a predominância dos processos de produção automatizados, auto-reguláveis, dispondo o homem para um potencial mundo de não trabalho, concebido como estudo ou lazer, convivência ou estética. As máquinas tomariam a maior carga do trabalho mecânico e intelectual possibilitando o desenvolvimento de novas potencialidades humanas de convivência, deleite ou liberdade. O cenário do trabalho como princípio educativo, em sua constituição histórica, em sua dualidade intrínseca (manual-intelectual), tenderia à uma unificação. Assim, o campo a produção das ciências curvou a vara para os ditames da ordem mundial cujos princípios se alicerçaram na forma de acumulação do capital. Nesta direção os impactos sociais derivados das inovações tecnológicas, organizacionais e gerenciais sobre o mundo do trabalho estariam decretando a produção linear, repetitiva e padronizada por um tipo marcado pela flexibilidade e integração de totalidade. A atual revolução científico-técnica manifesta no campo da micro-eletrônica e da micro-biologia, com suas expressões fantásticas na informática, na biotecnologia em engenharia nuclear ainda estão sob o temor de sua potencialidade. O amplo desenvolvimento tecnológico materializado deve ser política e eticamente analisado de modo a não conduzir a uma romantização apressada sem a adequada condução distributiva de suas capacidades. A tecnologia posta a serviço das atuais relações de produção pode somente ser uma nova fase de acumulação capitalista, concentração de riquezas e manutenção geopolítica das hierarquias institucionais e sociais do capitalismo globalizado.(o grifo é nosso). A tecnologia, entendida como a expressão teórico-prática da ciência, configura, na atual ordem mundial, uma agregação profunda de interesses político econômicos que trazem em si a consubstanciação de um novo tipo de poder (Op. cit. pp 34-35). O problema que implica nessa situação é que, com as transformações ocorridas no mundo do trabalho, a questão inevitável, devido os rumos da história para a composição desse quadro social explicitado por Nunes (1999), é dessa “romantização” pelo desenvolvimento tecnológico como questão essencial da educação o que infere diretamente nas condições de formação da consciência dos sujeitos em relação ao seu contexto histórico. As condições de sobrevivência porque passam os seres humanos, na atualidade, derivam dessa estigmatização da sociedade do “não trabalho”; com o afunilamento das práticas educacionais, a desvalorização 58 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 da docência16, do currículo em especial as ciências humanas no campo da formação e reflexão do real; assistimos, não só materializar esse estigma no interior da educação e da cultura, mas também a estigmatizar perspectiva da sociedade do não pensante que se tornou à “nova” forma de alienação e estranhamento classe trabalhadora. Diante de uma situação extremamente conflitante, a pergunta que fazemos é a seguinte: no interior da pesquisa em educação em especial as que intensificam sua materialidade na realidade escolar se a proposta está em analisar os saberes que as novas gerações necessitam para que possam enfrentar os desafios da sociedade contemporânea, quais são os fundamentos desses saberes? O caminho proposto pelas abordagens pós-modernas, em especial a complexidade para esse fato, sinaliza para o fato de “transformar”, “articular” e “unir” os conhecimentos para uma única causa “a construção de uma comunidade de destino”, ideologizada na sociedade de conhecimento. O objeto da produção do conhecimento escolar deixa de ser a sistematização dos conhecimentos produzidos pela sociedade, para a “organização” de uma escola “aberta” aos processos de produção de uma “ciência nova”, no qual se insere a linguagem das novas tecnologias e que, acima de tudo, seja capaz de “desatar” os nós com a concepção moderna de ciência. Nesse ponto segundo Nunes (1999 p.35). [...] o que temos visto é a crescente desigualdade da divisão internacional do trabalho, que acentua este processo de concentração e centralização de capital, notadamente tecnológico. Surgem novas dependências e mascaramse velhas parcerias. As matrizes das empresas transnacionais desenvolvem atividades de pesquisa e desenvolvimento e concentram recursos técnicos e financeiros, deixando às filiais somente a adaptação aos novos padrões tecnológicos centralmente definidos. Alguns apontam que as inovações tecnológicas aplicadas ao mundo do trabalho levariam a superação das organizações de base taylorista e fordistas por uma elevação da eficiência da produção que atingiria o conjunto da sociedade. Verifica-se hoje uma concorrência inter-capitalista no terreno das investigações científica e tecnológicas que implicarão numa requalificação profissional dos trabalhadores. As inovações tecnológicas e organizacionais marcadas por 16 O estigma do não-trabalho manifesta-se também, e muito gravemente, na relação didáticoadimisitrativa do Estado com a rede escolar em geral: ineficiente e cartorial, do ponto de vista qualitativo. Enquanto o industrialismo conseguiu disciplinar o horário dos trabalhadores, de forma que jamais a máquina fique desprovida de um operador competente, o Estado não conseguiu fazer com que a “cátedra” na sala de aula fique sem professor qualificado: professores leigos ou mal formados ocupam essas arcaicas e pobres “cátedras” que freqüentemente, ficam mesmo sem professor algum (NOSELLA, 1992 p, 161). 59 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 um movimento complexo e heterogêneo levam à necessidade de um novo padrão de apropriação cultural capaz de dar conta dos processos produtivos inovadores. O papel dos trabalhadores no novo mundo globalizado deve contemplar a possibilidade do desenvolvimento pleno das forças físicas e espirituais dos homens no modo de apropriação social das importantes transformações tecnológicas. Exige-se a institucionalização de uma escola que prepare para a flexibilidade produtiva, a intervenção criadora nos processos operacionais, a racionalização sistêmica dos meios organizacionais a capacidade conceitual e criativa de interpor-se como sujeito frente aos processos de agregação e mobilização de trabalhos. O novo conteúdo do trabalho exige uma menor dependência das funções sensoriais mecânicas e uma maior determinação às atividades de abstração, capacidade analítica e domínio de informações, isto exige uma elevação do padrão cultural dos novos trabalhadores e sua qualificação permanente no processo produtivo. Pressupõe a idealização de um trabalhador que articule dinamicamente uma base cultural científica, amplos processos técnicos, com lucidez e discernimento ético-político que resulte numa possibilidade de trabalho subjetivo, gestionário e emancipatório. O legado histórico dos anos de 1990 para a educação brasileira foi de total descaso com as condições de aprendizado da classe trabalhadora. Se a perspectiva era de “inclusão” e “democratização” do ensino, como o indicado em nossa reflexão acima, o que se prosperou fora justamente o seu contrário. Diante de uma situação de total empobrecimento dos sistemas educacionais e do distanciamento com a luta em favor de uma educação pública de cunho socialista, a classe trabalhadora viu esvair a sua razão revolucionária devida o processo coercitivo e ideológico de manutenção e ampliação das forças produtivas. Isso não significa dizer que esse estranhamento, que foi imposto, historicamente, ao homem pelo trabalho e que não é propriedade sua, tenha feito arrefecer a reflexão acerca das transformações sociais, elas estão presentes na realidade e se fazem necessárias. No entanto, falta a classe trabalhadora a formação necessária para que reconheça a sua condição nesse contexto em que está inserida, por um lado, para que possa analisar criteriosamente os fundamentos da ordem do capital no qual determina o destino histórico da sua condição social e cultural17. Por 17 Como todos sabemos, essa “dependência direta da natureza” é suplantada pelo desenvolvimento da das forças produtivas do capitalismo, implicando a realização da liberdade individual em sua universalidade formal. O avanço vitorioso das forças produtivas do capitalismo cria um modo de vida que coloca uma ênfase cada vez maior na privacidade. À medida que avança a liberação capitalista do homem em relação à sua dependência direta da natureza, também se intensifica a escravização humana ante a nova “lei natural” que se manifesta na alienação e reificação das relações sociais de produção. Diante das forças e dos instrumentos incontroláveis da atividade alienada sob o capitalismo, o indivíduo se refugia no seu 60 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 outro lado, essa análise é a que sofre com a imposição ideológica dos discursos reformadores da educação capitalista, presentes no dossiê da UNESCO, tanto nas análises de Delors, como em Morin, para a educação deste século. A concepção que se anuncia no discurso pós-moderno aponta para as questões ambientais, a formação da cidadania em nível global, o protagonismo jovem, a redução da violência e divisão equitativa da riqueza18, como eixos norteadores da educação contemporânea. De certo modo, esse discurso de preservação da Natureza não deixa transparecer, o que nem poderia, a natureza ideológica de quem a domina. A proposta metodológica do aprender a aprender, nesse sentido, que, na teoria, é colocada como necessária e urgente à mudança que ocorre no mundo, na prática, o que tudo indica, preserva as relações hegemônicas da produção capitalista, de maneira hostil sobre a realidade dos seres humanos. Portanto, “a educação, segundo Mészáros (2006), tem duas funções principais em uma sociedade capitalista: (1) a produção das qualificações necessárias para o funcionamento da economia, e (2) a formação dos quadros e a elaboração dos métodos de controle político”. Esse fato esclarece, o caráter excludente que se insere no quadro educacional contemporâneo. Diante do que fora exposto, entendemos que, toda transformação do real deve ser concebida a partir da práxis social. O que infere que, para que ela ocorra, de fato, seja necessário, conforme comenta Saviani (2000), que o dominado conheça claramente o que dominante conhece. Por essa via, é possível pensar na ação democrática. Nas relações capitalistas, por mais que se clame pelas transformações sociais e a preservação ambiental, essas não serão possíveis enquanto existir o sistema mundo privado “autônomo”. É o que pode fazer, porque o poder hostil da necessidade natural, que antes o unia aos seus semelhantes, agora parece estar sob controle (MÉSZÁROS, 2006 p. 236). 18 Em 1990, o Banco Mundial definia: “A educação é o maior instrumento para o desenvolvimento econômico social, ela é central estratégia do Banco Mundial para ajudar os países reduzir a pobreza e promover níveis de vida para o crescimento sustentável e investimento no povo. Essa dupla estratégia requer a promoção do uso produtivo do trabalho o principal bem do pobre e proporcionar serviços sociais básicos para o pobre”. (Banco Mundial,1990) Estas diretrizes consubstanciam a teoria do capital humano, identificando o setor educacional como forma específica de garantir o desenvolvimento econômico e social dependente. Em 1974, Robert Macna-mara afirmava a necessidade de ajudar os países em desenvolvimento a expandir seus sistemas educacionais como requisito para o desenvolvimento econômico, pois os sistemas educacionais desses países são mal concebidos e considerados não adaptados às suas necessidades de desenvolvimento (1974). A educação assume a forma de necessidade básica como política compensatória para proteger os países pobres incapazes de um auto-processo de modernização (NUNES 1999 p 35). 61 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 de acumulação da riqueza e manutenção da ordem vigente. Neste sentido, a proposta metodológica do aprender a aprender, por flexibilizar o conteúdo no sentido de se pensar na autonomia do sujeito, colabora não só com o processo de descaracterização dos modelos educacionais emancipatórios, como na manutenção da dominação que se inseriu pelos processos de políticas compensatórias. 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E, por fim, o Iluminismo, movimento iniciado às vésperas da Revolução Francesa, dispensa a metáfora da máscara utilizada anteriormente, pois o desenvolvimento das forças produtivas lhe permite adotar um tom desafiador. É chegada a era da vitoria da burguesia. PALAVRAS-CHAVE: Marxismo, educação, renascimento ABSTRACT: The Humanism, the Reformation and the Iluminism denote the dimension of the productive strenghts development promoted by the bourgeoisie and constitute the main point of the dimension for the incitement in the fight against the old pheudal regime. The Humanism studies willbe focued, mainly, in two outhors: Erasmo de Roterdam and Thormas Morus. It Will be observed that these authors dont´t make any open and declared criticism for the clergy and the nobleness, insted of it, they adopt a conciliated posture. We will call the Humanism time as the invitation age. The second time that points the transition from the pheudal society to the bourgeoisie society, the Protestant Reformation, it will be called the chalange age. And, at last, the Iluminism, an imitiated movement on the brink of the French Revolution, it dispenses with the metaphor of the mask used previously, whereas, the productive strenghts allow to adopt a chalange tone. It is the arrival of the bourgeoisie victory age. KEYWORDS: Marxism, education, renascence 19 Possui graduação em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1991) , especialização em Fundamentos da Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (1996) e mestrado em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (1999) . Atualmente é Professor Assistente da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Tem experiência na área de Educação. 65 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 INTRODUÇÃO Este estudo objetiva compreender o processo de transição da sociedade feudal para a sociedade burguesa. Esta transição não se deu de forma abrupta e nem foi fruto do esforço de homens excepcionais. O nosso entendimento da história aponta a sua compreensão no desvelamento do combate das classes sociais com interesses antagônicos atuantes naquele período. De um lado, a nova classe social que começa a se formar a partir do século XI, com o crescimento das cidades surgidas em torno do castelo do senhor feudal e no entroncamento das estradas. Estas cidades eram chamadas de burgos, daí o nome que recebe os seus habitantes: burgueses. A classe social denominada burguesia, composta de mercadores, será a responsável pela desintegração do feudalismo, a partir do século XV. Do outro lado, temos a nobreza e o clero como representantes e forças dominantes no antigo regime: o feudalismo. As idas e vindas, avanços e recuos na luta entre a nova classe em ascensão e a velha classe dominante definirão o processo de transição da sociedade feudal para a burguesa. Falamos em processo, pois os meios de produção e de troca, sobre cuja base se ergue a burguesia, foram gerados no seio da sociedade feudal. Portanto, já no interior da própria sociedade, podemos observar o germe de outra forma de organização social. A mudança não foi abrupta e levou muitos séculos até a sua consumação. De acordo com o historiador marxista Eric Hobsbawm, em seu livro A Era dos Extremos , vivemos numa “[...] civilização capitalista na economia; liberal na estrutura legal e constitucional; burguesa na imagem de sua classe hegemônica característica [...]” (HOBSBAWM, 1995, p. 16). De maneira que optamos pela denominação sociedade burguesa ao invés de liberal ou capitalista. O Humanismo, a Reforma e o Iluminismo denotam o grau de desenvolvimento das forças produtivas promovidas pela burguesia e constituem o eixo balizador do grau de acirramento na luta contra o antigo regime feudal. 66 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 O estudo do Humanismo será centrado, principalmente, em dois autores: Erasmo de Roterdam e Thomas Morus. Observaremos que estes autores não fazem uma crítica aberta e declarada ao clero e à nobreza, antes adotam uma postura conciliadora. O primeiro autor, no livro Elogio da loucura, personifica a própria loucura e passa a fazer críticas mordazes às pessoas consideradas ilustres do seu tempo. Porém, não é Erasmo quem fala, mas sim a loucura. Quem pode levar a sério a loucura? O outro autor, no livro Utopia, cria uma sociedade imaginária, o que lhe permite criticar os regimes políticos existentes, sem se expor à crítica abrasadora da Igreja, como dizia Voltaire. A burguesia neste período ainda era frágil. Ela estava em formação e acumulando forças e riquezas que permitiriam um confronto aberto nos séculos seguintes. Nesse momento era possível somente o tom conciliador. Nas duas obras citadas, os autores não se mostram, propriamente, como narradores das suas histórias, preferindo utilizar uma espécie de “máscara”– no caso de Erasmo, a loucura e no caso de Morus, um local imaginário – para assim poderem revelar certos acontecimentos. A máscara, neste caso, ao invés de esconder, revela, ou melhor, mostra a realidade ao passo que esconde o medo de se expor. Chamaremos o momento do Humanismo como a era do convite. O segundo momento que marca a transição da sociedade feudal para a sociedade burguesa, a Reforma, será denominado como a era do desafio. O estudo do período da Reforma mostra os alicerces da total emancipação, dizendo que o homem poderia contestar a instituição que lhe exigia obediência e fidelidade: a Igreja. Em termos educacionais, a obra Didática Magna, de Coménio, embora seja representante da época da Reforma, assume também um tom conciliador entre a Igreja e a burguesia. E, por fim, o Iluminismo, movimento iniciado às vésperas da Revolução Francesa, que não precisa mais de nenhuma máscara, pois o desenvolvimento das forças produtivas lhe permite adotar um tom desafiador. É chegada a era da vitória. 67 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 Antecipadamente, esclarecemos que para o adequado entendimento dos autores citados, foi necessária uma série de citações de suas obras. Embora as citações tornem o texto um pouco pesado é impossível dispensarmo-nos de fazê-lo. Por outro lado, por tratar-se de uma sátira, como no caso de Erasmo, o texto torna-se, em alguns momentos, hilário. As críticas de Erasmo à classe dominante do período medieval – leia-se nobreza e clero – são contundentes e fazem rir até mesmo os mais sisudos leitores. Procuramos evidenciar que o capitalismo, como uma nova forma social, só se constituiu após o esgotamento pleno de todas as possibilidades contidas no feudalismo. Este processo levou cerca de três séculos para se concretizar. De acordo com Marx: [...] uma organização social nunca desaparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas que ela é capaz de conter; nunca relações de produção novas e superiores se lhe substituem antes que as condições materiais de existência destas relações se produzam no próprio seio da velha sociedade (MARX, 1973, p. 29). Esta passagem mostra que o capitalismo, certamente, ainda possui muito fôlego para continuar vigente. No entanto, um rápido olhar pela história mostra que nenhuma classe social se eterniza no poder. Para lembrar uma clássica citação de Aristóteles: “Tudo o que um dia teve início não pode ser eterno”. Também é importante salientarmos que o embate da burguesia com o clero e a nobreza, não apresenta uma forma única e geral em toda a Europa. O embate na França, na Inglaterra e na Alemanha, possuía peculiaridades, que serão explicitadas no decorrer do texto e na medida em que tratarmos de autores como Voltaire, More e Coménio, respectivamente, representantes dos países citados. O HUMANISMO OU A ERA DO CONVITE Europa século XVI. Eram tempos de mudanças como os de hoje ou talvez mais. O homem desafiou os mares e partiu em busca de lugares desconhecidos, depositários de seus sonhos de encontrar não somente um lugar melhor para viver, mas 68 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 um outro modo de vida, uma vida mais verdadeira, mais cheia de sentido. Uma saída honrosa para um período de crises e indefinições. Crise de consciência por descobrir que a Terra não era o centro do universo e crise política com o surgimento de uma nova classe social ameaçando quebrar a rígida hierarquia medieval. Por detrás de tudo isso, o desejo da burguesia de ampliar os seus mercados e aumentar os seus lucros. Aliás, lucro será a nova palavra de ordem desta sociedade nascente. O conceito de lucro não podia ser contido nos estreitos limites da cultura medieval, que estava impregnada da idéia de que havia um ser supremo, além desta vida, ao qual toda a conduta terrena tinha de obedecer e conformar-se. A busca da riqueza pela riqueza era considerada incompatível com essa idéia. O capitalismo nascente empreendeu esforços na tarefa de transformar tal ideário para que se harmonizasse com os seus novos propósitos, pois as potencialidades da produção não podiam continuar sendo exploradas dentro dos limites do velho sistema. Surge, então, o Humanismo, não somente um movimento literário, mas um movimento intelectual, que pregava uma mudança de valores e uma nova autoconsciência do espírito humano. O Humanismo era um movimento liberal e que defendia a tolerância. A doutrina da Igreja medieval era a do pecado original, dividindo profundamente a alma e o corpo, este último considerado a ocasião e o lugar do pecado. O Humanismo tinha como doutrina a bondade original, a crença grega na unidade do corpo e da alma e que as ações do corpo expressam natural e adequadamente a humanidade da alma. Era patente o interesse pelos escritores clássicos da Grécia e de Roma. Lembremos o filme O Nome da Rosa, baseado na obra de Umberto Eco, mostrando a vida num mosteiro medieval. Inúmeros crimes aconteceram neste mosteiro porque as pessoas tinham contato com as páginas envenenadas de um livro proibido. O livro em questão era uma comédia. Para o teólogo medieval que envenenava as páginas do livro, o maior mal existente era o riso. Ora, compreendemos a sua preocupação, pois o riso leva à tolerância (todo fanático será sempre um sério). A tolerância abre caminho para novas idéias e novas maneiras de ver o mundo. 69 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 Erasmo de Roterdam baseia seu livro Elogio da Loucura, justamente, no riso. Nesta obra, Erasmo faz troça ao mesmo tempo da vida monástica, dos abusos da Igreja, dos filósofos escolásticos, dos valores da nobreza etc. Porém, seu gracejo nunca é uma injúria. O uso da sátira é um refúgio atraente para aqueles que não querem envolver-se profundamente nos princípios. Assim, o crítico pode manter-se à distância das questões mais fundas que levam os homens a tais atitudes. Através do riso, Erasmo não se sentia obrigado a ir mais longe na crítica. A bem da verdade, não poderia naquele momento fazer críticas abertas ao clero e à nobreza. A burguesia tinha, naquele momento, uma postura conciliadora. As suas forças produtivas ainda não estavam suficientemente desenvolvidas para uma crítica direta e um rompimento definitivo. Era apenas o momento do convite para o futuro embate. Elogio da Loucura foi publicada em 1511, e por ter sido escrita na casa de Sir Thomas Morus, o título, em sinal de reconhecimento, pretendia ser um jogo de palavras com o nome de Morus: Moriae Encomium, ou, em português, Elogio da Loucura. Erasmo era monge e por ser filho ilegítimo, sabia não ser possível esperar, por essa razão, uma grande carreira na Igreja. Conhecia a vida monástica muito bem e, por assim dizer, a conhecia por dentro. Alguns desses reverendos mostram, contudo, o hábito de penitência, mas evitam que se veja a finíssima camisa, e a roupa de lã sobre a pele. Os mais ridículos, a meu ver, são os que se horrorizam ao verem dinheiro, como se se tratasse de uma serpente, mas não dispensam o vinho nem as mulheres. Não podeis, enfim, imaginar quanto se esforçam por se distinguirem em tudo uns dos outros. Imitar Jesus Cristo? É o último dos seus pensamentos (ERASMO, 1984, p. 105). Nesta outra passagem, Erasmo critica novamente a Igreja e a vida dos religiosos. Os que mais concorrem para ouvi-los são as mulheres e os negociantes, cujo afeto os bons pregadores procuram conquistar. Os negociantes, vendo-se adulados e justificados, prestam-lhes de bom grado uma porção de benefícios imerecidos, pois encaram tais donativos como uma espécie de restituição. Quanto às mulheres, têm elas vários motivos secretos para amar os religiosos, quando mais não fosse por encontrarem neles um 70 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 bálsamo e um consolo contra os desgostos e o enjôo do laço conjugal (ERASMO, 1984, p.113). Erasmo, no entanto, estava perfeitamente ciente dos perigos da crítica à Igreja. E jamais a faria, sem a “máscara” da loucura. Talvez fosse melhor não falar dos teólogos, tão delicada é essa matéria e tão grande é o perigo de tocar em semelhante corda. Esses intérpretes das coisas divinas estão sempre prontos a acender-se como a pólvora, têm um olhar terrivelmente severo e, numa palavra, são inimigos muito perigosos. Se acaso incorreis na sua indignação, lançam-se contra vós como ursos furiosos [...]; mas, se recusais retratar-vos, condenam-vos logo como hereges.” (ERASMO, 1984, p. 95). Há inúmeras outras passagens na obra Elogio da Loucura, nas quais são tecidas críticas à Igreja. Mas a burguesia nascente, classe representada por Erasmo, não tinha só a Igreja como adversária. A nobreza também era dominante no período medieval. Então, Erasmo, com sua fina ironia, não poderia deixar de criticá-la. Logicamente, sem jamais cair no cinismo e no veneno. Lembramos, também, que neste mesmo fragmento observamos ainda críticas às relações de consangüinidade sob as quais se baseava a nobreza. Não é raro encontrar, entre estes, os que, com ânimo abjeto e vilíssimas e plebéias inclinações, vos pasmem à força de repetir: sou um fidalgo. Convém provar a antigüidade de suas estirpes? Um descende do piedoso Enéias; outro remonta do primeiro cônsul de Roma; este procede, em linha direta, do rei Artur. Além disso, mostram as estátuas e os retratos dos antepassados: enumeram os bisavós e os tataravós; recordam os antigos sobrenomes e os feitos dos seus maiores (ERASMO, 1984, p. 71 e 72). Elogio da Loucura também é repleto de críticas à filosofia escolástica, devido a sua desvinculação dos problemas relacionados aos saberes práticos e aplicáveis na vida cotidiana. Erasmo tem a compreensão de que um novo mundo nascera e que o pensamento escolástico era anacrônico. Para a burguesia, o domínio da natureza através da ciência deveria se sobrepor ao domínio da fé. Erasmo, no entanto, se limita a denunciar a infecundidade da 71 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 escolástica, utilizando a sátira e abrindo caminho para outro filósofo de fundamental importância para a classe social nascente, que iria propor as bases da ciência também nascente e dominaria o universo. Este filósofo é Francis Bacon. Mas, voltemos a Erasmo: [...] seria de desejar que não tivessem outro defeito a não ser o de falar demais; mas, por desgraça nossa, são sempre discussões de lana caprina, e, à força de discutir para sustentar a verdade (como pretendem eles), perdem de vista, o mais das vezes, a própria verdade. Esses eternos discutidores estão sempre contentes consigo mesmos e, armados de três ou quatro silogismos, sempre dispostos a desafiar para a controvérsia quem quer que seja e sobre qualquer argumento (ERASMO, 1984, p. 93). E, ainda, esta outra passagem muito ilustrativa: [...] contribuem para sutilizar ainda mais essas sutílíssimas sutilezas todos os diversos subtérfugios dos escolásticos; e assim é que seria menos difícil sair de um labirinto do que desembaraçar-se do embrulho dos realistas, dos nominalistas, dos tomistas, dos albertistas, dos occanistas, dos escotistas - ai de mim! Já me falta a respiração, e, contudo, só citei as principais seitas da escola, não falando de muitíssimas outras (ERASMO, 1984 , p. 97). Educação e sociedade estão umbilicalmente ligadas. Educação é o processo pelo qual a sociedade forma os seus membros à sua imagem e em função dos seus interesses. Portanto, a definição dos rumos do processo educativo implica, necessariamente, a compreensão da sociedade na qual a educação está inserida e da qual, em hipótese alguma, pode ser desvinculada. Dentro da obra de Erasmo, merecem destaque dois livros diretamente vinculados à questão educacional, traduzidos recentemente para o português. Trata-se de A civilidade pueril e De pueris (Dos meninos). Estes opúsculos trazem uma série de regras para o convívio social como aprender a comer, a vestir-se, a sorrir, a assear-se, entre outras coisas. Portanto, para Erasmo, “o homem não nasce homem, mas torna-se homem”. A natureza humana não é uma dádiva divina, pensamento típico do período medieval, mas, antes, uma atribuição do próprio homem. Talvez a principal 72 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 característica humana seja o seu caráter social. Nas palavras de Aristóteles, “o homem é um animal político”, quer dizer, um habitante da polis grega ou, por outra, um ente social. O segredo que torna a vida social possível, que permite a convivência humana – eis a importância dos livros de Erasmo – é a presença de algumas regras que tornam possível a vida em sociedade. A ausência de regras é a própria barbárie. Sem regras é a própria sociedade que sucumbe. Passaremos, agora, a discutir outro filósofo, contemporâneo e amigo pessoal de Erasmo: Thomas Morus. Este autor antecipa duas obras do pensamento utópico do século XVII, A Cidade do Sol de Campanella e Nova Atlântida de Bacon. A ficção e o enredo romanceado dos pensadores utópicos funcionam como um disfarce, pois estão claramente criticando a sociedade em que vivem e sugerindo princípios mais adequados para a sua regulamentação. Suas obras refletem o profundo impacto que as viagens de descobrimento tinham causado na mente dos homens. Em Morus, por exemplo, o narrador da história é um português. As viagens tinham destruído o provincialismo medieval, mostrando um crescente racionalismo e o interesse pela ciência e educação. Notamos, assim, que o surgimento da ciência moderna não ocorreu no seio da universidade, pois esta, à época, era hegemonizada pela Igreja e pelo pensamento medieval. Utopia foi escrita por Morus em 1515. O título do livro não poderia ser mais adequado, utopia significa “nenhures”, “em lugar nenhum”, ou seja, mais uma vez a utilização da “máscara” - referência a um lugar que não existe - permitiria falar a verdade sem se comprometer. Utopia era a descrição de uma ilha que não existia “em parte alguma” e narra como vivia o povo nesse estado ideal. Contudo, é um livro extraordinariamente realista. Morus era um homem de estado-escritor que captou claramente a realidade política e lidou com os problemas reais do seu tempo, tentando descobrir as causas dos malefícios políticos e oferecendo soluções concretas e cuidadosamente pensadas. Morus ergueu firmemente a sua Utopia sobre uma análise penetrante e realista da causa da miséria humana. Encontrou a causa do mal não nos caprichos de Deus ou 73 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 em numa conseqüência do pecado original, mas na estrutura social construída pelo homem. A solução proposta por Morus procura atacar aquilo que seria a raiz de todo o mal e a causa principal dos problemas sociais existentes. Na sua ilha seria abolida a propriedade privada. Eis o que invencivelmente me persuade que o único meio de distribuir os bens com igualdade e justiça, e de fazer a felicidade do gênero humano, é a abolição da propriedade. Enquanto o direito de propriedade for o fundamento do edifício social, a classe mais numerosa e mais estimável não terá por quinhão senão miséria, tormentos e desespero (MORE, 1984, p. 206). Com esta proposta, Morus cai nas graças dos pensadores do socialismo utópico do século XIX, principalmente Proudhon, para o qual “toda propriedade é um roubo”. Morus propõe em sua obra uma sociedade igualitária, contrapondo-se à rígida e hierarquicamente estratificada sociedade medieval. [...] aqueles que falam do interesse geral não cuidam senão do seu interesse pessoal; enquanto que lá, onde não se possui nada em particular, todo mundo se preocupa seriamente da causa pública, pois o bem particular realmente se confunde com o bem geral. [...] na Utopia, ao contrário, onde tudo pertence a todos, não pode faltar nada a ninguém, desde que os celeiros públicos estejam cheios. A fortuna do Estado nunca é injustamente distribuída naquele país; não se vêem nem pobres nem mendigos, e ainda que ninguém tenha nada de seu, todo mundo é rico (MORE, 1984 , p. 310). Dando seqüência a sua penetrante e realística análise dos problemas sociais, embora o título da sua obra sugira o contrário, a Utopia de Morus é uma metáfora da Inglaterra de seu tempo. Assim sendo, é destacado o grave problema fundiário de sua época: grandes extensões de terras que eram destinadas à agricultura, empregando inúmeras pessoas e fornecendo alimentação a população mais carente; passaram a ser destinadas a pastagens para rebanhos de carneiros. “Estes animais, tão dóceis e tão sóbrios em qualquer outra parte, são entre vós de tal sorte vorazes e ferozes que 74 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 devoram mesmo os homens e despovoam os campos, as casas, as aldeias” (MORE, 1984, p. 178). A Inglaterra, de fato, estava interessada em criar ovelhas em larga escala tendo em vista os lanifícios, seu principal produto de exportação desde o tempo de Morus até o século XVIII. No entanto, esta forma de uso da terra beneficia poucas pessoas, pois são poucos os donos dos rebanhos e poucos indivíduos na mão-de-obra. Conclusão: o desemprego e a fome aumentaram em proporções gigantescas. Sem terras para cultivar e sem ter como arrumar emprego, os homens partem errantes pelas estradas. Não lhes restando alternativa para não morrerem de fome; alguns passam a fazer assaltos, se tiverem coragem para tanto; outros se transformam em mendigos. Vale destacarmos aqui a peculiaridade do caso inglês, no qual ocorreu o aburguesamento da nobreza evidenciado na sua perpetuação como classe dominante na sociedade capitalista emergente, à proporção que passa a se dedicar à indústria têxtil. Contrário, vale lembrar, o que aconteceu em solo francês, quando ocorreu o acirramento entre burguesia e nobreza, desembocando na Revolução Francesa em 1789. Em sua análise, Morus levanta uma questão essencial, ainda presente, que é a grande quantidade de leis, formuladas pelos homens na tentativa de resolver os problemas, cuja origem está na forma de organização social. A velha e conhecida atitude reformista de resolver os problemas sociais mexendo apenas nos efeitos, sem tocar nas causas. O que os utopianos desaprovam especialmente nos outros povos é a quantidade infinita de volumes, leis e comentários, que, apesar de tudo, não são suficientes para garantir a ordem pública. Consideram como injustiça suprema enlear os homens numa infinidade de leis, tão numerosas que se torna impossível conhecê-las todas, ou tão obscuras que se torna impossível compreendê-las (MORUS, 1984, p. 275 e 276). A proposta de vida social em Utopia prevê um comportamento social repleto de regras. Observemos este fragmento no qual é descrita uma mesa coletiva (todas as refeições são coletivas em Utopia) na hora da refeição principal. 75 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 Preparam-se três mesas ou mais, de acordo com o número de convivas. Os homens assentam-se ao lado da parede, as mulheres ficam dispostas em frente, a fim de que, se alguma for acometida de uma indisposição súbita, o que acontece freqüentemente às mulheres grávidas, possa se retirar sem incomodar ninguém, e ir para os aposentos das amas. As amas se sentam à parte com as crianças de peito, em salas particulares [...]. Os meninos e as meninas, da puberdade até a época do casamento, servem a mesa. Os mais jovens, e que não tem força para servir, conservam-se de pé e em silêncio; comem o que lhes é dado pelos que estão à mesa, e não têm outro momento para fazer as refeições (MORUS, 1984, p. 239 e 240). É sugestivo contrastar esta sociedade com a Abadia de Thélème, uma comunidade laica e fictícia, criada por Rabelais no seu livro Gargantua. Seus membros eram homens e mulheres que tinham feito o voto de cultivar todas as formas de prazer, portanto, rejeitando completamente a vida ascética da Idade Média. Vejamos esta passagem na qual é descrita a forma de organização da vida nesta abadia: Toda a sua vida era orientada, não por leis, estatutos ou regras, mas de acordo com a própria vontade e livre-arbítrio. Levantam-se da cama quando bem lhes parecia; bebiam, comiam, trabalhavam e dormiam quando lhes vinha o desejo. Ninguém os despertava, ninguém os forçava a comer, nem a beber, nem a fazer qualquer outra coisa. Assim o estabelecera Gargantua. Todo o seu sistema se resumia nesta cláusula única: Faze o que quiseres (RABELAIS, 1986, p. 248). Por ironia do destino, um problema levantado por Morus na sua Utopia, foi a causa do seu trágico fim e constitui-se uma questão de difícil resposta mesmo na atualidade. Pode um homem honesto e ético atuar dentro de um governo, no qual estes princípios não são considerados e, mesmo assim, alcançar progressos para a causa pública? Esta questão afligia Morus, que recebera um convite para prestar serviço ao governo como conselheiro de Henrique VIII. Na Utopia, Morus considera impossível esta tarefa. Não há, pois, nenhuma maneira de ser útil ao Estado nessas altas regiões. O ar que aí se respira corrompe a própria virtude. Os homens que vos cercam, longe de corrigirem-se com os vossos ensinamentos, vos depravam com seu contato e pela influência de sua perversão; e, se conservais vossa alma pura e incorruptível, servireis de manto às suas imoralidades e loucuras. Não há, pois, esperança de transformar o mal em bem, trilhando o vosso caminho oblíquo, aplicando os vossos meios indiretos (MORE, 1984, p. 204). 76 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 A própria vida de Morus dá a resposta para esta questão. Na Utopia, o autor coloca a consciência individual em primeiro plano, sobrepondo-se à autoridade onipresente do poder e, assim, desaconselha qualquer pessoa a ser conselheira de um Estado corrupto. Porém, diante das promessas de Henrique VIII de “liberdade de consciência”, desrespeita seu próprio conselho. Em conseqüência da sua recusa em reconhecer o casamento de Henrique VIII com Ana Bolena e apesar da tal promessa de “liberdade de consciência”, Morus foi decapitado em 1535. A REFORMA OU A ERA DO DESAFIO O que Erasmo disse a rir, acerca da corrupção da Igreja, disse-o Lutero a sério pouco tempo depois. O Humanismo minou a fé nas tradições e práticas medievais e, inevitavelmente, Lutero transformou esse ataque numa nova teologia. No dia 31 de outubro de 1517 - véspera do dia de todos os santos - Martinho Lutero afixou as suas noventa e cinco teses sobre as indulgências à porta da Igreja de Wittenberg. Com este gesto levou o descontentamento à ação e colocou em movimento aquela série de acontecimentos a que chamamos Reforma. Estava inaugurada a era do desafio. Contudo, aqui, novamente, a luta da burguesia contra o clero e a nobreza deve ser compreendida levando-se em consideração as peculiaridades de cada país. Por exemplo, na Alemanha de Lutero a nobreza e o clero se aliam à burguesia para que a sua inevitável derrota e expropriação ficasse restrita à Igreja Católica Medieval. A Reforma não era contra a doutrina da Igreja Católica como um todo, mas contrária ao poder papal e à supremacia de Roma. Foi uma tentativa de redescoberta das condições da vida cristã. Os seus protagonistas acreditavam que o papa era o anticristo e que, portanto, a obediência ao papa punha em risco a salvação de suas almas. Observemos os limites da era do desafio, pois apesar dos conflitos militares gerados pela Reforma, os fundamentos da Igreja Católica e, portanto, da sociedade feudal, foram somente abalados. A sua total eliminação ficara a cargo da era da vitória, representada pelo Iluminismo. 77 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 Lutero era fundamentalmente um conservador em tudo o que dizia respeito à constituição social. Era contrário, por exemplo, à usura, assim como era hostil aos novos mecanismos de finanças capitaneados pela burguesia e acreditava numa organização social dominada pela revelação sobrenatural, cujos termos eram inteiramente medievais. A Reforma, no entanto, ajudou muito na divulgação do ideário burguês porque quebrou a supremacia de Roma, imprimindo um sério golpe na autoridade, abalando a influência da tradição medieval sobre a vida dos homens. Além disso, contestou as idéias dominantes, dando um profundo ímpeto às concepções da corrente racionalista. Na sociedade burguesa em formação é valorizado o esforço individual, principalmente no que se refere às novas oportunidades econômicas. O homem típico é o novo mercador, totalmente livre para comercializar; o novo explorador; o aventureiro de novas idéias e pensamentos. A era da Reforma foi pouco mais que o começo desse processo, no qual o desgaste da autoridade eclesiástica perdeu espaço para a emancipação do indivíduo. No bojo da Reforma surge a primeira proposta pedagógica burguesa mais profunda e de conjunto. João Amós Coménio é seu autor e a expressa, principalmente, no livro Didática Magna. Ao longo desta obra o autor defende a idéia de que a escola seja constituída ao nível das artes - a denominação da manufaturas na época, herdada do artesanato. Logo, toda a organização escolar é pensada tendo como parâmetro a produção manufatureira. Já na apresentação de sua obra, Coménio diz que um dos objetivos de seu livro é instruir com economia de tempo e fadiga. Na parte onde é descrita a utilidade da arte didática, diz ele que os professores por desconhecerem um verdadeiro método da arte de ensinar, perdem tempo e se fadigam utilizando ora um método e ora outro. O fator tempo é uma preocupação da sociedade burguesa. A pressa é burguesa e séculos mais tarde surgiria uma máxima criada por um ex-presidente americano, já num estágio mais avançado do capitalismo, que diz: tempo é dinheiro. 78 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 Quando Coménio fala em economia de fadiga, entende-se que somente devem ser ensinadas as matérias de comprovada utilidade prática. Com as grandes transformações ocorridas na sociedade burguesa, as necessidades humanas se modificaram e as escolas deveriam atender estas necessidades, e assim também se transformarem. A proposta educacional de Coménio é perfeitamente coerente com a sociedade burguesa. A nossa análise deve sempre se pautar no homem real, aquele que se fez historicamente. Quando falamos que a preocupação com o tempo é uma preocupação da sociedade burguesa, inevitavelmente, vem à nossa mente a imagem do instrumento responsável por marcar o tempo e que passa a ser o próprio símbolo desta sociedade: o relógio. Veja esta passagem da obra de Coménio: Com efeito, assim como o grande mundo é parecido com um enorme relógio, de tal modo fabricado segundo as regras da arte, com muitíssimas rodas e maquinismos que, para produzir movimentos contínuos e perfeitamente ordenados, uma parte os comunica à outra, através de todo o relógio, assim também o homem (COMÉNIO, 1985, p. 111). E ainda esta outra passagem a respeito do mesmo tema: Mas que força oculta anima o relógio? Nenhuma outra senão a força da ordem que manifestadamente reina em todas as suas partes, ou seja, a força proveniente da disposição de todas as suas peças que concorrem com seu número, as suas dimensões e a sua ordem para tornar aquela disposição tal que cada peça tem um papel determinado e meios para desempenhá-lo, ou seja, a proporção exata de cada peça com as outras, a harmonia de cada uma com as que lhe estão em relação e leis mútuas para comunicar reciprocamente a força umas às outras (COMÉNIO, 1985 , p.185). Fica, evidente, a vinculação da obra de Coménio com o capitalismo em sua fase manufatureira e, por conseguinte, a defesa da divisão do trabalho. Quais são os valores importantes para a formação da sociedade burguesa? Vamos enfatizar três destes valores e ilustrá-los com passagens da obra de Coménio, reforçando a vinculação do seu pensamento com o ideário burguês. Primeiro, a valorização da disciplina, e por conseqüência, o afastamento do ócio. 79 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 Importa, portanto, com todo o cuidado, manter longe da juventude todas as ocasiões de corrupção, como são as más companhias, as conversas grosseiras, as leituras frívolas e fúteis (pois os exemplos de vícios que se infiltram, quer pelos ouvidos, quer pelos olhos, são venenos para os espíritos); e, finalmente, a ociosidade, para que as crianças, estando sem fazer nada, não aprendam a fazer mal ou se deixam invadir pelo torpor da alma. Será bom, portanto, mantê-los sempre ocupados, quer em coisas sérias, quer em divertimentos. O essencial é que nunca se deixem entregues à ociosidade (COMÉNIO, 1985, p. 350). Segundo, a valorização do trabalho, ao contrário do que ocorria na Idade Medieval na qual era função exclusiva dos servos da gleba. “Os jovens adquirirão a perseverança no trabalho, se fizerem sempre qualquer coisa, ou a sério ou como divertimento” (COMÉNIO, 1985, p. 347). Terceiro, a importância dada à competição como fator essencial na sociedade burguesa. [...] se louvarem os alunos mais diligentes (distribuindo mesmo, pelas crianças, peras, maçãs, nozes, doces, etc.) [...] de tal maneira que todas as coisas, mesmo as mais sérias, sejam apresentadas num tom familiar e agradável, isto é, sob a forma de conversas e chamadas, que os alunos, em competição, procurem adivinhar (COMÉNIO, 1985, p. 234-236). A obra de Coménio é marcada por dois extremos: o misticismo, o homem ligado à religião e, por conseguinte, ao período medieval, e o realismo, ou seja, o homem vinculado às transformações da sua época. Como entender esta contradição? Ora, a proposta pedagógica de Coménio é marcada pela conciliação. A classe burguesa não tinha ainda desenvolvido suficientemente suas forças produtivas a ponto de adotar outra postura. Sua obra reflete o espírito de uma época em que se articulam os primeiros passos do Iluminismo. O ILUMINISMO OU A ERA DA VITÓRIA Os pensadores iluministas não precisam de nenhum tipo de “máscara”, ao contrário dos humanistas. Agora, devido ao poder material adquirido pela burguesia, as críticas poderiam ser abertas e diretas. Não era necessária a utilização de metáforas ou 80 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 verdades veladas. Chegou a era da vitória da burguesia. Porém, com exceção de Condorcet, todos os outros iluministas franceses morreram cerca de dez anos antes da Revolução de 1789. A luz foi assumida como símbolo pelo movimento Iluminista e revolucionário, por ser a luz da razão humana a responsável por espantar as trevas que tinham pesado sobre os homens dos séculos anteriores. Voltaire foi o mais emblemático pensador iluminista. Ele não fazia nenhum tipo de concessão ao passado medieval, ao contrário, por exemplo, de Rousseau, defensor da idéia que a ciência não havia contribuído para aprimorar os costumes dos homens. Voltaire era um ferrenho defensor da razão e da ciência. Ficou famosa a carta que ele enviou a Rousseau, comentando o seu livro Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade Entre os Homens. [...] não se pode pintar em cores mais fortes os horrores da sociedade humana, da qual nossa ignorância e fraqueza esperam tantas consolações. Jamais se empregou tanto engenho em querer tornar-nos animais; dá vontade de andar de quatro patas quando se lê vosso livro. Entretanto, havendo perdido esse hábito há mais de sessenta anos, sinto infelizmente que me é impossível retomá-lo, e deixo essa postura natural a quem dela seja mais digno que vós e eu (ROUSSEAU, 1989, p. 165). Na obra de Voltaire Cândido ou o otimismo, o preceptor de Cândido, Pangloss, é a personidificação do filósofo escolástico, cujo saber é infecundo para a sociedade burguesa. “Cândido, educado de maneira a não julgar coisa alguma por si, ficou espantado do que ouvia” (VOLTAIRE, 1977, p.117). Quanto à atuação do seu preceptor é ilustrativo o seguinte fragmento: “[...] o filósofo Pangloss, provando que a enseada de Lisboa havia sido expressamente feita para que aquele anabatista nela se afogasse. Enquanto assim a priori o demonstrava, o navio partiu-se e tudo pereceu” (VOLTAIRE, 1977, p. 41). A valorização da razão e da ciência dos iluministas se deve ao fato da burguesia ser a maior beneficiária com o desenvolvimento da ciência baseada na observação e na experimentação. 81 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 O domínio do conhecimento científico com vistas ao controle da natureza, através da invenção de instrumentos, aparelhos de navegação, armas de fogo etc., possibilitou à burguesia a ampliação dos seus negócios. Outra passagem de Voltaire é ilustrativa desta preocupação do conhecimento voltado para as coisas da vida prática e de comprovada utilidade: “[...] e como fosse um grande gênio compreendeu, pelo que de Cândido contaram, que se tratava de um jovem metafísico por demais ignorante das coisas deste mundo” (VOLTAIRE, 1977, p. 31). O Iluminismo emprega a arma da crítica racionalista para declarar que a liberdade é um bem e as restrições que se impunham são, em sua natureza intrínseca, um mal. É uma sociedade que rejeita as doutrinas do passado porque tem novas necessidades que essas doutrinas não consideram. Por exemplo, o trabalho e não o ócio é valorizado na sociedade burguesa. Na conclusão, notamos: “Trabalhemos sem maiores discussões disse Martinho, é a única maneira de tornar a vida suportável” (VOLTAIRE, 1977, p.136). CONSIDERAÇÕES FINAIS Procurei demonstrar que o processo de transição da sociedade feudal para a sociedade burguesa passou por três diferentes momentos: Humanismo, Reforma e Iluminismo. Em cada um destes momentos, observamos o acirramento da luta entre a burguesia - classe social em ascensão, que aos poucos foi se enriquecendo devido à intensificação do comércio – e as classes sociais dominantes no período feudal: a nobreza e o clero. A luta tornava-se mais acirrada à medida que a burguesia dispunha de uma base material mais consolidada. Por isso denominei estes três períodos, respectivamente, de a era do convite, a era do desafio e a era da vitória. Logicamente, sempre atento às peculiaridades locais onde esta luta de classes se desenvolvia. 82 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 Percebemos, também, que cada época histórica produz um ideal de homem que lhe seja compatível. Este homem deve ser educado para responder às necessidades sociais do seu tempo. A sociedade e a educação são fenômenos interligados e que não podem, jamais, ser analisados separadamente. No decorrer da história humana, observamos que cada formação social correspondia a um ideal de homem. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVES, Gilberto Luiz. O pensamento burguês no Seminário de Olinda: 1800-1836. 2. ed. Campo Grande, MS: Ed. UFMS; Campinas, SP: Autores Associados, 2001. BRONOWSKI, J.; MAZLISH, B. A tradição intelectual do ocidente. Lisboa: Edições 70, 1983. COMÉNIO, João Amós. Didáctica Magna: tratado da arte universal de ensinar tudo a todos. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985. ERASMO e MORE, Thomas. Elogio da loucura e A Utopia. 3. ed. Abril Cultural, 1984. (Coleção Os Pensadores) ERASMO. De Pueris (Dos Meninos); a civilidade pueril. São Paulo: Escala, s/d. (Coleção Grandes Obras do Pensamento Universal, n. 22). HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995. MARX, Karl. Contribuição para a crítica da economia política. Lisboa: Estampa, 1973. MIRANDOLA, Giovanni Pico della. A dignidade do homem. Tradução brasileira, notas e estudo introdutório de Luiz Feracine. São Paulo: GRD, 1988. RABELAIS, François. Gargantua. São Paulo: Hucitec, 1986. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. São Paulo: Ática, 1989. 83 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 VOLTAIRE. Cândido ou o Otimismo. São Paulo: Ediouro, 1977. (Coleção Universidade de Bolso). 84 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 MÍDIA, ENUNCIAÇÃO E IDEOLOGIA Rosemere de Almeida Aguero (UEMS)20 RESUMO: Trato, neste ensaio, das relações entre mídia e enunciação buscando apontar mecanismos ideológicos expressos em reportagens veiculadas pela mídia televisiva de MS e pela Rede Globo de Televisão, cuja temática trata da infância em situação de exploração do trabalho, em MS. Esta abordagem, fundamentada nos estudos enunciativos, na perspectiva de Bakhtin, considera o discurso televisivo como uma expressão do exercício de poder na sociedade, determinado pela situação social mais imediata que influencia ideologicamente na construção dos sentidos pelos enunciadores e, consequentemente, na formação da opinião pública. PALAVRAS-CHAVE: mídia, enunciação, ideologia. ABSTRACT: In this essay, I mention the relations between media and enunciation, seeking to identify ideological mechanisms which are featured on television reports in the state of Mato Grosso do Sul, Brazil, and also in Globo Television Network, about the exploitation of child labor in the state mentioned. This approach, based on enunciative studies, on Bakhtin’s view, considers the television discourse an expression of the exercise of power in society, defined by the most imminent social situation which ideologically influences on the construction of meanings by the speakers and, consequently, in the formation of public opinion. KEYWORDS: media, enunciation, ideology. 20 Docente do Curso de Letras da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), Mestre em Letras pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e doutoranda em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 85 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 Bem poderíamos [...] admirar o homem pelo fato de ser ele um poderoso gênio da arquitetura: ele conseguiu erigir uma catedral conceitual infinitamente complicada sobre fundações movediças [...]. Enquanto gênio da arquitetura, o homem supera em muito a abelha: esta constrói com a cera que recolhe da natureza, o homem o faz com a matéria bem mais frágil dos conceitos que é obrigado a fabricar com seus próprios meios (NIETZSCHE, 2001, p. 14). PRELIMINARES A mídia tem sido considerada um lugar privilegiado de circulação de sentidos em nossa sociedade, assumindo um papel indiscutível na construção de valores culturais, realizados nas instâncias da produção da linguagem e materializados nas formas da língua. Considerando que, na produção discursiva midiática, lugares e posições enunciativas entrecruzam-se e dialogam é importante compreender em que medida a mídia interfere na articulação e imposição dos valores sociais, influenciando na construção da opinião pública por meio dos enunciados que recorta e veicula. Este ensaio insere-se no anseio de ampliar esse debate. A partir de uma abordagem enunciativa, na perspectiva de Bakhtin, analiso dez reportagens veiculadas pela TV Morena e pela Rede Globo de Televisão, cuja temática é a infância em situação de exploração do trabalho, gravadas no Pantanal de Corumbá e demais regiões do Estado de MS, buscando determinar marcas históricas, temas, significações e valores apreciativos presentes nos enunciados das entrevistas. Considero a hipótese de que o todo enunciativo, presente nos enunciados, é constituído por marcas de natureza histórico-ideológica que expressam relações de forças, dispersas na sociedade. Nesse sentido, busco apontar essas marcas, uma vez que influenciam na construção da opinião pública. As matérias, aqui analisadas, foram exibidas na seguinte ordem: Crianças Catadoras de Iscas no Pantanal Sul-Mato-Grossense; Crianças que Catavam Iscas no Pantanal Vão à Escola Pela Primeira Vez; Crianças Vendedoras de Jornal no Trânsito de Campo Grande – MS; Crianças Catando Restos no Lixão, em Campo Grande – MS; Imagens de Crianças em 86 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 Várias Situações de Exploração de Trabalho Infantil e Reportagem de Convenção Contra o Trabalho Infantil, em Campo Grande – MS; Adolescentes Mirins e Trabalho Infantil nas Feiras Livres; Crianças Vendendo Jornais no Trânsito II; Exploração do Trabalho Infantil nas Carvoarias de MS; Exploração do Trabalho Infantil nas Carvoarias II e Exploração do Trabalho Infantil nas Carvoarias III. Os títulos de cada matéria foram atribuídos, para efeito de análise, de acordo com os temas de que tratavam. De todas as reportagens gravadas – cedidas pela TV Morena para este estudo– apenas a primeira encontra-se datada, com registro de maio de 2004. A primeira e a segunda tratam de crianças que, no coração do Pantanal de Mato Grosso do Sul, desenvolvem trabalhos de altíssima periculosidade, imersas nas águas pantaneiras, à noite, pescando pequenos peixes a serem vendidos como iscas. A exibição dessas matérias causou indignação e mobilizou a opinião pública, dando origem a projetos para a integração das crianças e suas famílias e a uma série de outras reportagens, com a mesma temática, que discutiam o trabalho infantil em MS. O percurso deste ensaio inicia-se com a apresentação das reportagens que constituem o corpus de pesquisa. Segue-se uma parte teórica com alguns conceitos bakhtinianos que respaldam o estudo. Em seguida, propõe-se um dispositivo de análise, seguido da análise propriamente dita. Por fim, apresenta-se conclusão do estudo. 1. BAKHTIN E O FENÔMENO DA ENUNCIAÇÃO Falar sobre a enunciação em Bakhtin não é tarefa fácil. Implica integrá-lo junto aos linguistas que desenvolvem estudos na área da Linguística da Enunciação, admitindo que o autor formula teorias em consonância com estudiosos desse campo (FLORES E TEIXEIRA, 2009, p. 147). Ao estudar a questão do sentido, na enunciação, e apontar distinções entre significação, tema e apreciação, em Marxismo e Filosofia da Linguagem (2004), Bakhtin parte de rejeições que faz às teses do Objetivismo Abstrato e do Subjetivismo Idealista, apontando o proton pseudos de cada concepção. Superando as perspectivas dessas correntes filosóficolinguísticas, Bakhtin inaugura o que denomina de método sociológico objetivo (BAKHTIN, 2004, p. 121), considerando a enunciação como um fenômeno de natureza sócio-ideológica, constituído no contexto social (Idem, p. 123). 87 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 Uma vez que a enunciação é produto da interação verbal e do momento histórico, seu significado é sempre provisório. Desse modo, o enunciado é sempre “[...] individual e não reiterável” (Idem, p. 128), como a própria enunciação. Sua investigação agrega duas dimensões distintas, porém, interrelacionadas. De um lado, há a dimensão de natureza lingüística e sistêmica e de outro, a investigação da palavra “[...] nas condições de uma enunciação concreta“ (Idem, p. 131). Essas duas dimensões relacionam-se ao que Bakhtin denomina de tema e significação. Ao universo da significação pertence tudo que é reiterável e repetível no sistema da língua. Já o tema é “[...] único [...] individual e não reiterável” (Idem, p. 128). Seu sentido depende da situação histórica em que se apresenta, entrando em sua composição, além das formas lingüísticas, uma série de elementos de natureza extra-linguística, tais como os gestos, as expressões faciais e, principalmente, a entonação que acompanha a enunciação. Ante a análise de qualquer enunciado, portanto, estarão presentes sentidos cristalizados ideologicamente, ao lado do tema sempre novo, passível de sofrer deslizes e reavaliações. A emergência de novos sentidos traz à cena a apreciação que acompanha toda enunciação. O papel da apreciação é importante na língua, pois é responsável pelas “[...] mudanças de significação” (Idem, p. 134) ou pela reavaliação dos seus sentidos. As enunciações são articuladas pela ideologia, que é de caráter social, e se constrói em todos os campos de interação. Está presente em várias esferas da vida humana, que constroem signos ideológicos para representá-la. O signo ideológico comporta crenças, valores e modos de interpretar a realidade. Admite, por isso, uma dupla dimensão que exibe, de um lado, uma significação autorizada, que o identifica com determinado grupo, e, de outro, uma necessidade constante de ressignificação construída nas relações sociais. A ideologia, nesse sentido, pode ser caracterizada como a regulação das relações entre os homens, transformada por meio da interação social. 2. DISPOSITIVO DE ANÁLISE Ao inaugurar o método sociológico, no estudo da linguagem, Bakhtin integra a dimensão da forma lingüística, concreta na língua, aos contextos histórico-sociais e aos acentos apreciativos, visualizados conjuntamente, sob o olhar analítico da ideologia e da linguagem. 88 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 Com base nessa concepção, a análise, neste estudo, parte do todo enunciativo, considerado como o conjunto de enunciados efetivamente produzidos, aqui compreendidos como de natureza individual e não reiterável, produto de situações históricas concretas e de relações ideológicas. Os enunciados são analisados buscando determinar as significações expressas que definem o sentido do todo. Na sequência, busca-se identificar os temas verificando, pelo olhar da linguagem e da ideologia, a existência ou não de marcas provenientes de um quadro social de relações de força. Os sujeitos das enunciações são considerados a partir das posições que ocupam na sociedade, assim como dos âmbitos institucionais de onde enunciam. Por fim, são verificados os valores apreciativos expressos nas enunciações, visando observar a incidência de mudanças de significações nos signos, decorrentes de deslocamentos de sentidos. Tal procedimento é feito de forma comparativa, considerando-se a enunciação proferida e a sua forma linguística habitual. A análise incide sobre recortes, efetuados ao corpus, compreendidos como fragmentos de situações enunciativas que resultam de processos de interação social. No foco analítico das reportagens, que se seguem, a enunciação dos sujeitos é observada como um fenômeno intermediado por complexas relações sociais, em que estão presentes a história, a ideologia e as relações de força que dão origem aos enunciados. 3. MÍDIA, ENUNCIAÇÃO E IDEOLOGIA A partir da teoria articulada, consideremos as enunciações a seguir, recortadas do corpus das reportagens: (1) Com o salário o menino compra o que precisa e ajuda a mãe. (Fragmento da 3ª reportagem). (2) [...] Crianças com a marca da fuligem, crianças carregando toneladas nas costas [...], crianças recolhendo restos no lixão municipal, para ajudar os pais no sustento.(Fragmento da 4ª reportagem) (3) Apesar dos programas e de incentivos para manter as crianças na escola, muitas saem de casa, pela manhã, para ajudar na renda familiar. (Fragmento da 4ª reportagem) (4) [...] Leandro, de 8 anos, fica o tempo todo embaixo de muita poeira, para ajudar o pai no transporte de carvão! (Fragmento da 8ª reportagem) (5) – É por causa que o dinheiro não veio. Eu tenho que ajudar o pai! (Fragmento da 10ª reportagem) (6) Outras crianças passam a metade do dia ajudando os pais, mas contrariando o objetivo do Programa, criado para acabar com o trabalho infantil! (Fragmento da 9ª reportagem) 89 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 Observando-se os enunciados recortados, pode-se verificar um conjunto recorrente de elementos nas proposições de (1) a (6), presentes nas formulações grifadas. Os enunciados destacados possuem marcas que os ancoram diretamente na situação histórica da enunciação: a justificativa do trabalho infantil como necessário à sobrevivência das famílias pobres, de crianças que habitam o Estado de MS, na primeira metade do século XXI. O tempo no enunciado, construído pela mídia televisiva, é o presente e refere-se ao momento em que ocorrem as entrevistas. O espaço é o Estado de MS. Os temas referem-se ao auxílio que as crianças prestam aos pais ou às famílias, mediante o trabalho que desenvolvem em contextos diferentes. Em (1) o contexto histórico é o trânsito de Campo Grande, MS, onde o menino ganha dinheiro com a venda de jornais. Em (2) e (3), o contexto é o Lixão Municipal, também em Campo Grande. Em (4), (5) e (6) o contexto é o de uma carvoaria, localizada em Ribas do Rio Pardo, MS. Todos os enunciados, com exceção do (5), foram construídos pela mídia televisiva em 3ª pessoa do singular. Essa opção discursiva é utilizada quando se pretende conseguir um efeito de distanciamento da cena enunciativa, como se observa nas sequências de (1) a (6). É interessante notar, entretanto, que, apesar de as enunciações terem sido construídas em terceira pessoa, os tempos verbais determinantes são de presente – conforme mostram os sintagmas verbais (V1), (V2), (V3), (V4) e (V5) compra, ajuda, saem, fica, passam - o que assinala um efeito enunciativo de concomitância em relação ao acontecimento das entrevistas. A escolha do presente verbal ganha, nesse aspecto, um valor dêitico, relacionando-se ao imediatismo que se pretende dar à informação divulgada e ao efeito de atualidade que se pretende criar, característico do trabalho da televisão. As escolhas verbais assinalam, também, um efeito de repetição, dando idéia de “hábito” e “frequência” às ações realizadas. Dessa forma, usando essa estratégia enunciativa, a mídia aproxima o telespectador ao momento de referência das entrevistas, fazendo com que este se sinta parte da cena, informando, ao mesmo tempo, aos interlocutores, que essas ações são rotineiras no cotidiano dos sujeitos entrevistados. Outro aspecto importante é que a necessidade de transportar o fato da realidade imediata para a realidade midiatizada faz com que os discursos sejam recortados, passando por intervenções técnicas, dando margem à parcialidade na construção dos sentidos históricos. A informação é construída de modo a se mostrar bastante nova, para impressionar o grande 90 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 público, proveniente de diferentes classes sociais e, ao mesmo tempo, suficientemente velha, cristalizada, para que esse mesmo público possa reconhecê-la, assimilá-la e dominá-la. Verifica-se, com algumas variações quanto ao modo de enunciação, que as formulações manifestam a repetibilidade de certos elementos linguísticos, a saber: (1) (2) (3) (4) (5) (6) [...] precisa ajudar a mãe. (3ª reportagem) [...] para ajudar os pais no sustento. (4ª reportagem) [...] para ajudar na renda familiar. (5ª reportagem) [...] para ajudar o pai no transporte do carvão! (8ª reportagem) [...] Eu tenho que ajudar o pai! (10ª reportagem) [...] passam a metade do dia ajudando os pais [...].(9ª reportagem) Embora produzidas sob condições históricas diversas, todas as formulações de (1) a (6) estão vinculadas a um mesmo sentido. Podem-se observar as marcas ideológicas de um discurso institucionalizado, característico da primeira metade do século XX. Os sujeitos, afetados pela ideologia, retomam sentidos construídos historicamente, aqui identificados com a visão ideológica do trabalho dignificante, motivado pela necessidade de ajudar os pais ou a família, mitificado pela figura da criança como pequeno herói. É o que acontece nas sucessivas repetições do sintagma verbal (V6) ajudar/ajudando, que quase assumem o estatuto da literalidade, nos processos enunciativos vistos de (1) a (6), não fosse o fato de serem produtos de momentos históricos diferentes. Estes são construídos com a finalidade de convencer o interlocutor de que são a própria voz da legitimidade e não produto da subjetividade de alguém. O repórter (enunciador), embora interaja numa mesma circunstância de tempo e espaço com os entrevistados, não lhes dá voz (com exceção de (5), em que se observa o discurso direto) e, ao mesmo tempo, não se coloca como responsável pelas enunciações, pois o “eu” não aparece. Bakhtin denomina tais enunciados de discurso citado (discurso de outrem). Para o filósofo, o discurso citado é “[...] o discurso no discurso, a enunciação na enunciação, mas é ao mesmo tempo, um discurso sobre o discurso, uma enunciação sobre a enunciação.” (BAKHTIN, 2004, p. 144). Note-se que, nesses enunciados, ocorre uma dupla operação: de um lado tem-se uma reconstrução porque se trata de tomar um enunciado proferido em outra situação histórica, para reintegrá-lo a outro tipo de enunciação; de outro, há um processo de desconstrução porque, partindo de um enunciado já proferido, nele opera-se uma reificação que serve para comprovar a 91 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 autenticidade do discurso. Assim, o sentido que se obtém é o de um enunciado de prova (“Eu sei o que estou afirmando”), tanto em relação ao outro como a si mesmo. Já na proposição (5), recortada da 10ª reportagem, a presença do pronome pessoal (dêitico D1) “eu”, cria um efeito discursivo de proximidade. Maingueneau (2005, p. 108), denomina essa operação linguística de embreagem; processo pelo qual o enunciado se ancora em sua situação de enunciação. Ao dar voz à criança, a mídia, além de valorizar a presença do narrador, instaura a presença do telespectador (D2 “tu”). Estabelece-se, portanto, uma relação (D3) “eu-tu”. O efeito que se obtém com esse discurso (direto) é que o telespectador parece estar diante do próprio entrevistado, no momento da entrevista, irmanando-se com ele no mesmo tempo e espaço da enunciação. Maingueneau (Idem, p. 140-1), adverte, entretanto, que mesmo quando o discurso direto relata falas consideradas como realmente proferidas, trata-se apenas de encenação, visando à criação de um efeito de autenticidade. Acrescente-se a isso o fato de que, nos estúdios midiáticos, esses discursos sofrem cortes e diferentes montagens e tem-se configurado o processo de encenação, em que a enunciação é reconstruída pelo sujeito que a remonta, por meio de mecanismos que lhe dão um enfoque pessoal. A opção pelo discurso direto proporciona um efeito de autenticidade ao enunciado, fazendo com que este adquira o estatuto da objetividade, da seriedade e da espontaneidade. Esta também é uma estratégia midiática para manifestar sua adesão ao que está sendo enunciado, no sentido de que as palavras do entrevistado referendem as suas próprias palavras, aqui compreendidas como oriundas da voz da autoridade (MAINGUENEAU, 2005, p. 142). Pelo viés ideológico, podem-se também analisar outras proposições presentes nos dados: (7) Então é um debate que tem que se fazer dentro da sociedade, né, para que a gente possa entender que o lugar da criança é na escola. (Fragmento da 4ª reportagem) (8) E o prejuízo para o Brasil, pois elas trabalham e deveriam estar na escola! (Fragmento da 5ª reportagem) Em (8), temos uma variação da enunciação proferida em (7), aqui tomada como ponto de referência em relação ao outro enunciado. São enunciações que trazem uma forte conotação ideológica, a partir da retomada de um discurso que atesta a presença de uma memória do passado, de natureza social, e que reivindica “toda criança na escola”. O sujeito, ao enunciar, resgata valores já estabelecidos na sociedade brasileira, compartilhados no solo comum das comunidades de fala, por meio dos discursos e valores difundidos pelos meios de comunicação 92 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 de massa. Em (7) a opção pelo discurso direto se repete, assim como a presença do elemento dêitico (D4) a gente, que adiciona efeitos de autenticidade e proximidade ao enunciado. O tema ainda é o trabalho infantil no Lixão de Campo Grande, agora associado ao discurso da educação para todos, também de natureza fortemente ideológica. Em (8) a locução verbal (V7) deveriam estar indica modalização, que associada à flexão verbal no futuro do pretérito ganha sentido de hipótese, incerteza, probabilidade de não concretização das crianças terem acesso à educação. A escolha do futuro do pretérito revela também um não comprometimento do falante, (senador Cristóvão Buarque), uma não responsabilidade em relação à temática tratada (a culpa das crianças não frequentarem a escola é do trabalho, e não do poder público que não cria condições ao acesso). O tema do trabalho infantil se reitera e se associa ao da educação, como elemento regenerador da infância pobre. Analisando a questão dos sujeitos, a partir da perspectiva dos lugares sociais que ocupam, verifica-se que eles enunciam segundo uma ordem estabelecida, que parte de sujeitos socialmente autorizados pela ideologia dominante, conforme o que se pode verificar a seguir: (9) [...] mas temos que buscar alternativas e vamos ter que encontrar uma fórmula, nem que seja uma escola flutuante para que possa atender essas crianças... que elas tenham acesso à educação! (Coordenadora do PETI – 1ª reportagem) (10) [...] Há criançinhas em situação de trabalho Escravo... Não poderá haver decisões de emergência! (Arnaldo Jabor, Comentarista da Rede Globo de Televisão – 1ª reportagem) (11) [...] A professora, Cristiane Velasco, diz: “É gratificante, no final, quando elas aprendem uma letrinha! “Diz [dizem]: “Professora, aprendi!” (Professora – 2ª reportagem) (12) Brasileiros que não tinham acesso à educação e tudo para eles é novidade! (Repórter da TV Morena – 2ª reportagem) (13) - São cidadãos brasileiros, que não eram conhecidos como tal! (Chefe do Núcleo de Educação de Corumbá – 2ª reportagem) (14) Esse debate tem que ser feito para que a criança possa ter direito a freqüentar a escola, direito a ter sua infância e não ter esse trabalho infantil! Consideramos ele penoso e, na verdade não contribui para a formação da criança! (Representante do poder público – 3ª reportagem) (15) [...] A DRT vem fazendo essa fiscalização, mas, veja bem, é complicada essa questão do Trabalho Infantil. Muitas vezes a própria família não aceita que ela... que a criança não trabalhe... Então é um debate que tem que se fazer, dentro da sociedade, né, para que a gente possa entender que o lugar da criança é na escola! (Chefe da DRT – 4ª reportagem) (16) O Trabalho Infantil é uma calamidade pública! Enquanto o trabalho infantil for apenas um problema... a gente vai devagar... Aí, diz “tá melhorando...” Leva 10 anos! Já pensou nesse sofrimento há 10 anos, para essas crianças que trabalham? E o prejuízo para o Brasil, pois elas trabalham e deveriam estar na escola?! (Senador Cristóvão Buarque – 5ª reportagem) (17) A luta pelo combate ao Trabalho Infantil tem uma tônica e a consciência de todos! Enquanto não tiver quem emprega uma criança... enquanto tiver aquele que emprega uma criança, nós não teremos combatido a totalidade do Trabalho Infantil! (Representante da sociedade organizada – 7ª reportagem) 93 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 (18) As crianças que trabalham... elas têm um problema físico e emocional, principalmente, além do que elas deixam de freqüentar a escola por cansaço físico, por falta de cumprir os seus deveres. No físico elas sentem dores de cabeça e depressão...(Chefe do DRT – 7ª reportagem) (19) Mas a exploração ao Trabalho Infantil está com os dias contados! Quem garante é a OIT – Organização Internacional do Trabalho – e a UNICEF. (Repórter da TV Morena – 8ª reportagem) (20) Reclama o prefeito : “Até agora só recebeu 20 mil reais, do Governo Federal!” (Prefeito de Ribas do Rio Pardo – MS, 10ª reportagem) Observa-se, nesses enunciados, a existência de um conjunto de posições dos sujeitos, expressas em diferentes modos de enunciação, que estão condicionados a discursos de doutrina, uma vez que reúnem enunciações legitimadas ideologicamente. Esses sujeitos, aqui interpretados sob a condição de socialmente autorizados, articulam seus enunciados a partir de uma posição social que lhes confere o direito de poder dizer, como representantes legítimos do poder público e da sociedade organizada. Suas enunciações ganham um significado a partir do lugar ou do status que ocupam na sociedade. Uma vez que falam de um lugar institucional, seus enunciados podem ser inscritos em vários campos ideológicos, tais como o pedagógico, presentes nas proposições (11) e (13); político em (9), (14), (15), (16), (17), (18) e (20), e jornalístico em (10), (12) e(19). Observa-se, ainda, nas enunciações (9), (12), (13), (14), (15) e (16) a reinterpretação de enunciados de origem, que gravitam em torno do mesmo tema: o direito constitucional do cidadão brasileiro à educação, emergentes nas proposições grifadas acesso à educação e na escola. A mídia, em (12), aqui identificada pelo repórter-locutor, ao reinterpretar enunciados de diferentes fontes, apaga as marcas da fala de sua fonte, reconstruindo-a de modo a criar a sua própria enunciação e um novo sentido (para os brasileiros que não têm acesso à educação, tudo é novidade). Note-se que o enunciado é construído mediante justaposição, o que caracteriza uma estratégia linguística para dar legitimidade e credibilidade à mídia, na posição de enunciador autorizado. Reconhece-se, ainda, nesses discursos, a existência de relações de forças, no contexto bakhtiniano da luta de classes, de natureza hierarquizada, e que se sustenta no poder dos diferentes lugares sociais ocupados por esses enunciadores. Entende-se que esses locutores se expressam não da maneira como lhes agrada, mas condicionados ao lugar que ocupam socialmente. Esse fato faz com que estruturem seus discursos por meio de marcas enunciativas, tais como de pessoa e de verbos, que organizam suas formulações. Como exemplo, tem-se as marcas temporais, em que a repetição de um mesmo verbo, nos sintagmas verbais (V8, V9 e V10) temos, que elas tenham, vamos ter que, na 1ª reportagem; (V11 e V12) são, eram, na 2ª 94 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 reportagem; (V13,V14 e V15) é, for, vai, na 5ª reportagem ( apenas para citar algumas) produz um segmento de tempo que liga presente, passado e futuro, em uma mesma enunciação, apagando quaisquer sinais de interrupções. Outra estratégia linguística é a organização de todo um ritual de enunciação, produzido por meio de um tempo ligado ao presente (como em V16 e V17) está, garante, na 8ª reportagem, cuja finalidade é apagar toda a impressão de descontinuidade da ação. Caso isso aconteça, a exemplo de (21), recortado a seguir, a ação será recuperada por meio de um efeito de ficção criado a partir da reconstituição. Esse efeito irá resgatar, analogicamente, um acontecimento passado (Em maio de 2004 você viu [...]), com a finalidade de situar o telespectador na sequência dos acontecimentos: (21) Em maio de 2004 você viu aqui, no “Jornal da Globo”, crianças no Pantanal que viviam a catar iscas, arriscando-se na água de um rio e nem sabiam o que era uma escola! (William Waac – jornalista da Rede Globo de Televisão – 2ª reportagem) Os outros enunciadores das proposições (11) e (13) falam a partir do discurso da educação. São enunciações legitimadas pertencentes à professora e à Chefe do Núcleo de Educação, enunciadoras que estão autorizadas socialmente a partir do conhecimento científico que lhes permite manifestar-se no aparelho midiático. Entretanto, é preciso considerar que, na ordem social, há regras enunciativas (controladas) que restringem e orientam as possibilidades de enunciação. Assim, não se enuncia a partir do que se quer dizer, mas do que se pode dizer, no contexto de relações de força definidas. Tem-se, ainda, a voz do comentarista-enunciador da Rede Globo, Arnaldo Jabor, em (10) que fala a partir do lugar de locutor jornalístico, característica que lhe confere o poder de dizer, uma vez que o espaço midiático televisivo é franqueado a poucos, mas usufrui de uma enorme capacidade de penetração na vida pública, devido à massificação das tecnologias de comunicação. Somam-se a esses enunciadores, os discursos dos repórteres da TV Morena, nas proposições (9) e (12) que falam também do lugar de representantes da mídia. A enunciação (22), recortada a seguir, em seu funcionamento oral, comum, pode ser compreendida como produto de um indivíduo que se apropria de enunciados institucionalizados, reinterpretando-os a sua maneira, de modo a perpetuar antigas tradições ideológicas do aparelho administrativo estatal. Embora inscreva-se em um campo enunciativo distinto, produto de um momento histórico diferente, perpassa a mesma fonte ideológica comum, que são os enunciados da classe dominante brasileira, dos séculos XIX e XX. A enunciação se assenta sobre marcas temáticas que, delineadas historicamente no período ditatorial brasileiro, (a partir do autoritarismo e da perseguição a toda forma de alteridade), e que tiveram a sua origem na 95 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 República de 1889, perpetuaram políticas desenvolvidas com o objetivo de domesticar as individualidades e garantir a obediência de sujeitos mantidos sob o rígido controle dos Regimes. Os dados seguintes demonstram essas formas de dominação: (22) O melhor remédio, hoje em dia, é estar no trabalho! Melhor do que na rua! O que a gente vê na rua! (Feirante Agnaldo - Fragmento da 6ª reportagem) Em (22), tem-se a edição do discurso de um sujeito que assimilou a ideologia remanescente dos discursos governamentais da Ditadura Vargas, baseada na política de disciplinamento, então vigente, que proclamava a educação para o trabalho, via institucionalização estatal e visando à criança pobre, como meta do Estado. Pregava-se, assim, a ideologia da preservação da ordem nacional a partir da integração da criança pelo trabalho disciplinado, desenvolvido em escolas para menores abandonados e delinquentes, como forma de resgate e elemento regenerador da infância pobre. Os sintagmas nominais (S1 e S2) remédio/trabalho, em sua forma lingüística, são determinantes para atestar a apropriação da ideologia do discurso dominante pelo enunciador. O acento apreciativo presente em (S1), avaliado no contexto histórico contemporâneo, desloca o sentido do sintagma que em sua interpretação linguística habitual tem o sentido de medicamento e que é reavaliado com o sentido de solução. O tema da enunciação é a educação pelo trabalho e o contexto é o de uma das feiras livres do município de campo Grande, MS. Outro dado importante é que essas reportagens, por estarem circunscritas a práticas orais de enunciação, privilegiam o uso de estratégias enunciativas manifestas por meio da utilização de formas curtas, de sintaxe enxuta; um falar mínimo adequado ao tempo e ao espaço midiático. O espaço midiático, nesse sentido, torna-se um lugar de manifestações ideológicas, dominado pelas formas dialógicas de interação verbal. De tudo que até agora foi dito, é possível atestar no corpus analisado que campos ideológicos se interrelacionam nas reportagens, numa luta pela imposição de valores e de visões de mundo. A ideologia está relacionada ao poder e opera no discurso que “[...] se torna arena onde se desenvolve a luta de classes” (BAKHTIN, 2004, p. 46). No âmbito dessas lutas, formas de comunicação ideológica são estabelecidas e impostas como verdades. Desse modo, todos os discursos das reportagens que partem de sujeitos autorizados, incluindo-se aí as enunciações postuladas pelos locutores midiáticos, funcionam como verdades que circulam na sociedade e constroem os sujeitos, de fora para dentro. É nesse sentido, que a mídia atua como poder 96 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 social, pela característica de possuir uma informação que a grande maioria não tem o que lhe dá uma posição de autoridade como informadora e formadora da opinião pública. No sentido de cumprir esse papel social, a mídia televisiva utiliza-se do comentário, estratégia por meio da qual problematiza os acontecimentos, avalia, mede, julga, buscando despertar o interesse dos interlocutores da informação, utilizando-se de modos de raciocínio simples e motivadores. É o que acontece em relação à 1ª reportagem, na veiculação do comentário de Arnaldo Jabor: (23) O que fazem diante das imagens?! Gritar, “Que horror!?” Chorar, pedir soluções urgentes? O quê?! A resposta, em geral, dos políticos. “É difícil!”, “Tudo é lento!”. A burocracia serve tanto para facilitar a corrupção como para justificar a incompetência, a preguiça. Falta de verba, dizem eles... Desse caso, é um em todos os cantos do Brasil! Há criançinhas em situação de trabalho escravo... Não poderá haver decisões de emergência! Será que o governador Zeca do PT vai fazer uma reunião para decidir com os “companheiros” o que falar ou vai mandar agir logo hoje... ontem, para impedir esse abuso?! Não se clama o tempo todo contra a poluição do Pantanal? “Precisamos salvar os animais!” E as criançinhas?! Isso é mais complexo. Talvez se o tráfico de drogas fosse bem combatido ali e se a famosa corrupção do Estado diminuísse, talvez sobrasse dinheiro para a proteção dos habitantes! Em último caso poderia incluir as criançinhas na proteção do Ibama, junto com as sucuris e as ararinhas azuis e os peixes bois... ou um trabalho sério na domesticação dos jacarés, para eles não devorarem as criançinhas, no seu trabalho noturno! (Arnaldo Jabor – Comentarista da Rede Globo de Televisão, 1ª reportagem) Note-se que o locutor problematiza o acontecimento de maneira agressiva, por meio de sucessivas interrogações, dirigidas ao interlocutor/telespectador invisível, instigando-o a se engajar na discussão. A problematização do acontecimento enunciado é uma estratégia argumentativa muito utilizada nas mídias. A partir do momento em que surge a interrogação, espera-se que o interlocutor mobilize argumentos favoráveis ou contrários à proposição. O estatuto pragmático do enunciador, ou seja, o valor pragmático (MAINGUENEAU, 2005, p. 201) de sua enunciação, estabelecida mediante a relação de credibilidade que ele consegue instituir com o interlocutor, durante o comentário, confere legitimidade e seriedade às interrogações (O que fazem diante das imagens?! Gritar, “Que Horror!?” Chorar, pedir soluções urgentes? O quê?! Será que o governador Zeca do PT vai fazer uma reunião para decidir com os “companheiros” o que falar ou vai mandar agir logo hoje... ontem, para impedir esse abuso?! Não se clama o tempo todo contra a poluição do Pantanal? E as criancinhas?!). Os temas tratados se diversificam. Trata-se, simultaneamente, das crianças flagradas catando iscas, no Pantanal; da corrupção política; da lentidão da burocracia que emperra 97 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 soluções; da incompetência do poder público; do trabalho escravo; do governador do PT e do tráfico de drogas, construídos numa mesma cena enunciativa. A opção pelo discurso citado manifesta-se na forma de transmissão do discurso, como uma “[...] reação da palavra à palavra” (BAKHTIN,2004, p. 145). As formas lingüísticas mobilizadas ironizam a fala dos políticos (É difícil!; Tudo é lento!). Por meio da ironia, o enunciador expressa a enunciação de personagens que ridiculariza (os políticos, o governador Zeca do PT e seus “companheiros”), colocados em cena, na enunciação, e dos quais ele se distancia, pela entonação. Os sintagmas nominais mobilizados, (S3, S4, S5, S6, S7 e S8) difícil, lento, corrupção, incompetência, preguiça e abuso desqualificam as personagens encenadas, registrando o valor depreciativo do enunciador. A opção por alguns dêiticos temporais (D5 e D6) hoje, ontem e espaciais (D7) ali ancoram o enunciado ao instante presente, reforçado pelos sintagmas verbais (V18, V19, V20, V21 e V22) fazem, é, serve, dizem, clama também em tempo presente, estratégia midiática que garante o sentido de atualidade à notícia. A entonação usada, durante o comentário, não está em sua normalidade, dando margem aos deslizes e a novos sentidos. Assim, (S9) companheiros sofre um deslocamento em seu sentido original de colegas, amigos, passando a referir-se aos partidários do PT (Partido dos Trabalhadores), a partir do uso dessa forma que se popularizou (companheiros e companheiras) no discurso de um dos seus líderes mais proeminentes, o Presidente Luis Inácio Lula da Silva. Torna-se, nesse sentido, um signo ideológico. Na enunciação que se segue, o enunciador midiático subverte sua própria enunciação, colorindo-a “[...] com as suas entonações, o seu humor, a sua ironia, o seu ódio, com o seu [...] desprezo” (Bakhtin, 2004, p. 150). (26) Em último caso poderia incluir as criançinhas na proteção do Ibama, junto com as sucuris e as ararinhas azuis e os peixes bois... ou um trabalho sério na domesticação dos jacarés, para eles não devorarem as criançinhas, no seu trabalho noturno! O humor e a ironia estão presentes nas construções incluir as criancinhas na proteção do IBAMA e na domesticação dos jacarés para eles não devorarem as criancinhas. Perpassa, ainda, nas reportagens, o ideário de uma infância mitificada pelo imaginário do adulto, conforma se vê nas proposições a seguir: (27) Pelo menos aqui criança não trabalha mais catando isca! 98 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 (28) Consideramos ele penoso e, na verdade não contribui para a formação da criança! (29) Já pensou nesse sofrimento há 10 anos, para essas crianças que trabalham? (30) O setor explora cerca de 2.500 crianças no trabalho sobre-humano. (31) Mas a exploração ao Trabalho Infantil está com os dias contados! (32) Nessa primeira fase, o Programa vai atingir mil crianças que ficarão livres da exploração nas carvoarias e reconquistarão o direito de estudar! A infância está representada nos enunciados recortados a partir de uma idéia de infelicidade expressa nos sintagmas nominais (S10), (S11), (S12), (S13) e (S14) penoso, sofrimento, trabalho sobre-humano, exploração, presentes nas enunciações de (28) a (32). Ao mesmo tempo, aparece concebida no ideário adulto, por meio de enunciados que exaltam a possibilidade de um futuro melhor, ancorado na educação. É o anseio do adulto projetando expectativas em torno de um futuro melhor e de uma idéia de felicidade em relação à infância pobre, conforme se observa em (27) e (32). PALAVRAS FINAIS Nos recortes analisados, observa-se a existência de três tipos de enunciações distintas. O primeiro tipo legitima o discurso moral, vinculado à possibilidade de um futuro melhor para a criança. O segundo enfatiza o discurso legal, fundamentado no direito da criança à educação, contrário à exploração ao trabalho infantil. O terceiro remete ao discurso do trabalho como elemento regenerador da infância pobre e delinquente, a partir da visão disciplinadora de afastar a criança da rua e da vadiagem. Nesse sentido, os enunciados recortados ora legitimam o fato de a criança trabalhar, ora se opõem ao trabalho. Há, portanto, um paradoxo na maneira como a televisão articula os enunciados, que acaba por influenciar na constituição da opinião pública. A análise dos dados aponta para uma mídia televisiva que embora queira passar uma imagem de distanciamento do poder institucionalizado, perpetua, na verdade, a ideologia do aparelho estatal, mediante um jogo de efeitos, que influenciam o interlocutor na construção do imaginário social. Essa construção, longe de ser pacífica, ocorre em um campo ativo de lutas 99 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 pelo poder, sucessivas disputas e batalhas enunciativas. Descrever esse universo foi o intuito desse ensaio, na perspectiva de elucidar valores ideológicos abraçados por determinados grupos, que se projetam como hegemônicos no quadro das relações sociais. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2004. FLORES, Valdir do Nascimento e TEIXEIRA, Marlene. “Enunciação, dialogismo, intersubjetividade: um estudo sobre Bakhtin e Benveniste”. In.: Bakhtiniana. São Paulo, v.1, n. 2, p. 143-164, 2º sem., 2009. MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. Trad. Cecília P. de Souza e Silva e Décio Rocha. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2005. NIETZSCHE, Friedrich. “Verdade e mentira no sentido extramoral”. In.: Comum. Rio de Janeiro, v. 6, n. 17, p. 5-23, jul./dez., 2001. 100 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 A UNIVERSIDADE PÚBLICA BRASILEIRA: AUTONOMIA E DEMOCRACIA EM DEBATE José Barreto dos Santos (UEMS)21 RESUMO: Neste artigo discutiremos sucintamente o processo de produção da Autonomia e Democracia Universitária nas Universidades Públicas Brasileiras. Especificamente, refletiremos a nossa singularidade, a da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul/UEMS, a partir dos pressupostos históricos, produzidos pelas relações entre os homens. Teceremos a nossa crítica baseado nos fundamentos teórico-metodológico nas obras de Karl Marx (1818-1883) /Friedrich Engels (1820-1895) na totalidade. PALAVRA-CHAVE: Educação superior, democracia, autonomia, sociedade. ABSTRACT: In this article we will discuss briefly the process of production of University Autonomy and Democracy in Brazilian Public Universities. Specifically, we will reflect our oddity, the State University of Mato Grosso do Sul / UEMS, based on historical assumptions, produced by relations between Human Nature. We will weave our criticism based on the theoretical and methodological foundations in the works of Karl Marx (18181883) /Friedrich Engels (1820-1895) in Totalitarianism. KEY WORDS: Higher Education, democracy, autonomy, society. 21 Professor e Pesquisador da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul – UEMS – Unidade Universitária de Campo Grande/MS. 101 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 INTRODUÇÃO Nossa reflexão incide sobre o processo histórico da produção da Autonomia Universitária nas Universidades Públicas Brasileiras como um espaço democrático de direito e, consolidado na forma da Lei na Constituição Federal de 1988, no seu Artº 207: “As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre o ensino, pesquisa e extensão”. Trabalhar sobre tais questões (Autonomia e Democracia) produzidas historicamente pelas relações entre os homens, portanto, como produção social é que pautamos nossa crítica, dada a dificuldade de apreensão das formas reais, mormente exposta pela doutrina liberal como um direito natural, o que leva a não distinção entre a realidade e o pensamento humano, que redunda, normalmente na sua distorção e, por consequência a sua aceitação harmônica. Categorizar as questões anunciadas é o nosso desafio diante do momento bastante delicado em que nós (docentes, discentes, administrativos etc.) passamos no interior de uma Universidade Pública, em específico a Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul/UEMS, frente ao alijamento do poder público do Estado de Mato Grosso do Sul/MS, no não cumprimento de sua atribuição legal, firmado no governo anterior, com o repasse financeiro, arrecadado através de um percentual ainda aleatório22, subtraído em cima do Imposto sobre Circulação de Mercadorias - (ICMs). Intento esse consumado, pelo governo do Estado do Estado de Mato Grosso do Sul/MS com apoio dos seus filiados, representados por diferentes partidos na sua base de sustentação política, revogou de forma arbitrária, no final do ano de 2008, a autonomia financeira da UEMS, conspirando contra a autonomia administrativa e a didático-científica. O que caracteriza o total desrespeito à Constituição Federal de 1988, incorrendo diretamente na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – (LDBEN Nº. 9394/96), principalmente no seu Artº 53, no seu inciso IX: “Administrar os rendimentos e deles dispor na forma prevista no ato de constituição, nas leis e nos respectivos estatutos”. 22 Grifo meu: O uso do termo aleatório traduz o descompromisso do Governo/MS em repassar apenas o percentual de custeio para UEMS. Tornando centralizadora a figura do Executivo na tomada de decisões internas e externas de investimentos estrutural e humano da UEMS. 102 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 A situação anunciada levou-me a refletir com meus pares sobre o que podemos fazer diante dos dilemas anunciados e, das possibilidades de uma gestão autônoma e democrática. O primeiro aspecto, que não devemos considerar, é a leitura a-histórica, onde não importa o passado, o presente é a única referência. Outro aspecto, a leitura idealizada, que como a primeira tangência a situação real, imaginando que as boas ideias advindas da benevolência dos atores dirigentes, distorcida da realidade do homem e das coisas materiais da vida, justificam sua imagem e semelhança. Ambas, acabam reforçando o senso comum, descontextualizando o seu entendimento a crítica do seu real conteúdo, o homem e o trabalho. Nesta perspectiva, é que propomos a refletir os conceitos Autonomia e Democracia que envolve a universidade pública brasileira, tendo como fundamento a sociedade capitalista, sustentando em seu aporte teórico as contribuições suscitadas nas obras de Karl Marx (1818-1883) /Friedrich Engels (1820-1895). Como afirma Alves (2001, p. 19), “a partir do domínio das leis que presidem a dinâmica do todo social [...]”; da história do objeto proposto, do movimento da sua base material produtiva, a formação política dos espaços de direito e as garantias institucionais, pressupostos que podemos categorizar o entendimento sobre a nossa singularidade, a UEMS. É importante salientar, que a nossa pretensão, além de anunciá-las, é forjá-las nos espaços de debate institucional, com intuito de incentivar as discussões em torno das temáticas anunciadas, com isso, buscaremos a melhor compreensão das nossas reais lutas no cotidiano das universidades públicas. A UNIVERSIDADE PÚBLICA E SUAS CONTRADIÇÕES HISTÓRICAS Suscitar tal discussão em torno dos conceitos anunciados, tendo como leitura a totalidade, leva-nos a assumir um olhar teórico-metodológico a crítica para entendermos quem somos nós frente às contradições emanadas historicamente pelo próprio modelo de sociedade capitalista. Daí a importância de salientar, que tais pressupostos engendrados do interior das universidades públicas, não pode ser apêndice inocente e neutro das relações que as produzem socialmente. Se formos produto deste próprio meio, daí vem o germe da necessidade de nós (docentes, discentes, administrativos etc.) sermos os únicos agentes 103 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 capazes de criarmos as condições materiais necessárias para desvelar as visões simplificadas de sociedade, concebidas como um todo homogêneo, neutro diante das contradições sociais do nosso tempo. Assim, o primeiro passo é procurar entender que os conceitos assinalados (Autonomia – Democracia) que surge no interior das instituições de ensino público, não são panacéias, longe de qualquer neutralidade científica, mas, como foco de novas idéias e valores que são consubstanciados ao nosso entendimento, para que sejam viabilizados em torno da racionalidade meramente produtivista. Do liberalismo ao neoliberalismo, como sistema de crenças e convicções, isto é, ideológico, tem como base um conjunto de princípios ou verdades, que formam a sua doutrina na qual se fundamenta o Estado contemporâneo. Quero ressaltar, que os pactos propostos, ganham credibilidade na medida em que criam procedimentos “consensuais” das Leis que regem a autonomia e a democracia. Com isso, o Estado é pensado em termos autônomos e democráticos, como instituição voltada para a manutenção dessa estrutura contraditória, entre o público e o privado, “onde o povo pode ver seus interesses manifestados e defendidos porque tal Estado existe como resultado de um pacto estabelecido coletivamente”. (Gonçalves, 2005, p. 144) A forma harmônica, encontrada pelos clássicos da revolução burguesa do século XVIII, dentre os quais destaco John Locke (1632-1704) e Jean-Jacques Rousseau (17121778), tiveram influência decisiva no pensamento liberal, que ao definir o Direito Natural (PÚBLICO) como a única base legítima do Direito Civil (PRIVADO); e que somente por meio da razão (A LEI) seria possível conhecer o Direito Natural para, com base nele, estabelecer os fundamentos de uma ordem política legítima. Estabeleceu com os tais pressupostos pela primeira vez na história humana uma clara separação entre Estado e sociedade civil, entre esfera pública e esfera privada, que até hoje se constitui na referência básica do Estado de Direito. Para Locke (Os Pensadores, 1978): No Estado Natural “nascemos livres na mesma medida em que nascemos racionais”. Os homens, por conseguinte, seriam iguais, independentes e governados pela razão. [...] Todos os homens participariam dessa sociedade singular que é a humanidade, ligando-se pelo liame comum da razão. No Estado Natural todos os homens teriam o destino de preservar a paz e a humanidade e evitar os direitos dos outros (p. XVII-XIX). 104 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 Assim, a verdadeira posição liberal exige a igualdade perante a lei, igualdade de direitos entre os homens, portanto, igualdade civil. Nesta perspectiva, defende que todos têm, por lei, iguais direito à vida, à liberdade, a propriedade, à proteção das leis, de acordo com Rousseau (1968): [...] em lugar de destruir a igualdade natural, o pacto fundamental (o Estado) substituí, ao contrário, por uma igualdade moral e legitima, o que a natureza tinha podido pôr de desigualdade física entre os homens, para que, podendo ser desiguais em força e em gênio, todos se tornassem iguais por convenção de direito. (p.97). Karl Marx & Friedrich Hegel (Obras Escolhidas) afirmam por outro lado, que a característica central da sociedade capitalista é o fato de que, estruturalmente, ela esta divida em duas classes – burguesia e proletariado – e que o antagonismo entre essas classes expressa a dinâmica da sociedade moderna. Com isso, podemos sintetizar que de um lado está o Estado institucionalizado como regulador e, do outro, o Estado institucionalizado como classista, que defende os interesses das minorias privilegiadas fazendo uso de um discurso geral e ilusório para o povo que consiste no “poder organizado de uma classe para a opressão de outra”. (p. 38) Em síntese, o Estado aparece como resultante do conjunto das relações de produção que ocorrem em determinada sociedade e é o elemento jurídico-político principal, encarregado de gerir negócios comuns da classe dominante. Friedrich Engels (1987) afirma sobre o propósito do Estado: Uma instituição que, numa palavra, não só perpetuasse a nascente divisão da sociedade em classes, mas também o direito de a classe possuidora explorar a não possuidora e o domínio da primeira pela segunda. E essa instituição nasceu. Inventou o Estado. (p.153) Desta forma, constatamos a marca histórica das contradições sociais e políticas inerentes à formação do Estado brasileiro: a perspectiva da camada senhorial não estabeleceu conexões vitais entre os avanços do conhecimento humano e as possibilidades de seu domínio sobre as forças da natureza, ao crescimento cultural e ao desenvolvimento das potencialidades de uma revolução nacional. O país não era visto como uma nação, mas, 105 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 ao contrário, como uma comunidade de interesses particularistas díspares, cuja articulação exigia que todos os senhores, do campo e da cidade, soubessem separar sua nação civilizada da barbárie dos outros, escravos e homens livres. A ideologia da exploração, tendo na sua base material o modelo escravocrata, sobrevivia no mundo colonial à visão estreita do universo da cultura, pois as necessidades existenciais não compunham mais do que uma escola superior com a função de atender o elo entre o desenvolvimento e o interior da civilização. Marilena Chauí (2001) salienta os traços marcantes deixados pela sociedade colonial escravista, ou pela chamada “cultura senhorial”, reforçando que [...]. A sociedade brasileira é marcada pelo predomínio do espaço privado sobre o público e, tendo o centro na hierarquia familiar, é fortemente hierarquizada em todos os seus aspectos: nela, as relações sociais e intersubjetivas são sempre realizadas como relação superior, quem manda e, um inferior, que obedece. (Chauí, p. 13) A sociedade estruturada, segundo o modelo do núcleo familiar traz na sua dependência política interna, a singularidade cultural do patriarcalismo, do coronelismo, enfim, da aristocracia rural. Temos assim o tripé da formação política: o escravismo, a monocultura e o latifúndio, sob os quais se alicerçou a estrutura econômica brasileira, durante grande parte da nossa história contemporânea. Importante salientar neste momento, o quanto a Universidade é parte integrante do tecido social, como acentua Saviani (1979): “A Universidade, enquanto instituição é produzida simultaneamente e em ação recíproca com a produção das condições materiais e das demais formas espirituais”. (p. 35-55). Desde seu aparecimento tardio, a universidade brasileira23 se deve à tradição portuguesa, uma das mais pobres na dinâmica da civilização. Foi preciso a transferência da Corte para modelar na nova sociedade a sua imagem, com a vinda de algumas instituições e de técnicas da civilização moderna. Com relação ao ensino superior, concentrou-se em fins utilitários, privilegiando as funções mais restritas das escolas necessárias. Por isso, o Brasil não viveu, nem como colônia nem posteriormente, a experiência histórica da universidade ilustrada, de pensar e produzir ciência; dadas às condições da economia escravista que contribuíram para reduzir ao mínimo as funções criativas do pensamento científico. 23 Até década de 1920, o Brasil não contava com nenhuma Universidade. 106 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 A UNIVERSIDADE PÚBLICA E SEUS DILEMAS ATUAIS Neste itinerário, devemos destacar em síntese, que a ideia de universidade como produção histórica remonta às fontes do pensamento filosófico e ao despertar da curiosidade científica, passando pela Academia de Platão, pelo Liceu de Aristóteles, pelas corporações de mestres e alunos da Idade Média, onde se fundiram as discussões, os embates, os diálogos em torno do objeto ou fenômeno desconhecido, cujos segredos vão pacientemente desvendando. Espaços organizados nos diferentes momentos históricos, mas, movidos pela vontade persistente de pensar a universidade no contexto das vicissitudes em que emergiu, e renovada a cada crise de transformação de suas bases materiais. A universidade, então, exprime de modo determinado a sociedade de que é e faz parte, absorve as ideias e práticas do seu tempo, o que dá a ela o significado de instituição social, para outorgar e franquear as novas, porém, velhas políticas externas que traduzem ou não, as alusões historicamente constituídas em torno do mercado. Da “mão invisível” do mercado, teorizada pelo economista escocês Adam Smith (1723-1790), como o maior tratado econômico dos liberais: “Uma investigação sobre a natureza e as causas das riquezas das Nações”; que agora é compensado pelos novos fundamentos teóricos neoliberais da Escola austríaca, Friedrich August Von Hayek (18991992), autor do livro “Caminhos da Servidão”, em 1944; e do economista americano Milton Friedman (1912-2006) da Escola de Chicago e outros, que oferecem um discurso da liberdade econômica, da eficiência e da eficácia, para dar respaldo a uma nova qualidade política e econômica de vida para os países dependentes e consumidores do mercado, não mais nacional, mas, do “mercado globalizado”. De acordo com Chesnais (1990): O termo designa o quadro político e institucional de funcionamento do capitalismo, foi se constituindo desde o inicio dos anos 1980, em decorrência das políticas de liberalização das trocas, do trabalho e das finanças, adotadas pelos governos dos países industriais, encabeçados pelos Estados Unidos e pela GrãBretanha. (p. 77) Razão pela qual, a chamada modernização ao “mercado globalizado”, remetendonos a uma “Reforma de Estado”, por aumento de eficiência e produtividade da 107 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 administração pública, de acordo Silva Junior & Sguissardi (2001, p. 28) será, para o Ministro Bresser Pereira24, resultado de um complexo projeto de reforma, que vise a um só tempo o fortalecimento da administração pública direta – núcleo estratégico do Estado – e a descentralização da administração pública com a implantação de “agências executivas” e de “organizações sociais” controladas por contrato de gestão. Para ele, a questão central “como reconstruir o Estado – como redefinir o novo Estado que está surgindo em um mundo globalizado”. (Bresser Pereira, 1997, p. 27) De fato, essas reformas, ao definir “organizações sociais” como os setores que compõem o Estado, vêm designando para alguns setores como “serviços” não exclusivos do Estado e nele colocou a Educação, a Saúde e a Cultura. Essa localização da educação no setor de serviços não exclusivos significou uma nova redefinição: a) Que a educação deixou de ser concebida como um direito e passou a ser considerado um serviço. b) Que a educação deixou de ser considerado um serviço público de direito, e passou a ser considerado um serviço que pode ser privado ou privatizado. Neste contexto anunciado, a instituição UEMS herdeira do universo colonial e autoritário, em que o poder repressivo do Estado ainda é utilizado para manter o status quo dessa democracia limitada, procurando justificar o moderno, a “organização social” pela conciliação pelo alto, por essa razão, não é apenas e simples vontade da elite dominante, mas uma exigência histórica à herança de nosso capitalismo periférico e dependente. A UNIVERSIDADE PÚBLICA E SUAS POSSIBILIDADES Diante das observações anunciadas, entendemos que a vigência da ideologia neoliberal, mostra que as concepções clássicas continuam validas para o nosso entendimento. Permitindo-nos olhar com mais clareza, as mudanças ocorridas nas universidades públicas brasileiras nós últimos anos, particularmente com a reforma do Estado, que começou na década de 1990, no Governo Fernando Henrique Cardoso, e que de alguma forma continua sendo operada pelos outros Governos da República. Urge compreender que a universidade brasileira reivindicada pelos liberais, deve ser posta em seus termos corretos, como uma questão pública de Estado, a quem caberia 24 Ministro Bresser Pereira – comanda no Governo Fernando Henrique Cardoso o Ministério da Administração Federal e da Reforma do Estado – MARE. 108 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 garantir sua homogeneidade, desenvolvê-la e protegê-la. A tese básica do liberalismo em matéria de ensino “afirma o primado da instrução pública e, em conseqüência, o dever indeclinável do Estado de organizar, manter e mesmo de impor a educação a toda à população”. (Saviani, 1991, p. 86) Neste sentido a universidade pública é concebida como espaço social único, dentro dos limites da sociedade capitalista, marcado pela manifestação de práticas contraditórias, onde os sujeitos constitutivos da organização precisam ter clareza das finalidades de sua instituição. Para tanto, evidencia-se a necessidade de se refletir sobre qual a proposta de formação acadêmica que queremos com relação a nossa real base produtiva. Para tanto, cabe cotejar o pensamento esposado por Marx (2003): Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha, mas sob aquelas circunstâncias com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. (p 15) Neste sentido é que possamos refletimos o papel educacional da universidade, com relação à sociedade. É com base nessa perspectiva que não há como deixar de entender que: “a universidade é o centro por excelência da dimensão humana e de seu peculiar estilo de compartilhar o conhecimento, sendo homem o eixo principal do seu fazer”. (Carvalho & Porfírio, 2001, p. 21) Assim, a universidade é uma instituição social e como tal exprime de maneira determinada a estrutura e o modo de funcionamento da sociedade como um todo. Tanto é assim que vemos no interior da instituição universitária a presença de opiniões, atitudes e projetos conflitantes que exprimem divisões sociais e as próprias contradições da sociedade. Entender que essa relação interna ou expressiva entre universidade e sociedade é o que explica, aliás, o fato de que, desde seu surgimento, a universidade pública sempre foi uma instituição social, isto é, uma ação social, uma prática social fundada no reconhecimento público de sua legitimidade e de suas atribuições, num princípio de diferenciação, que lhe confere autonomia perante outras instituições sociais, na qual é estruturada por ordenamentos, regras, normas e valores de reconhecimento e legitimidade internos a ela. 109 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 Compreender que a legitimidade social da Universidade Moderna não é algo novo, mas sim, histórica, dadas às conquistas fundadas da ideia de autonomia do saber em face da Religião e do Estado, portanto, na ideia de um reconhecimento guiado por sua própria lógica, por necessidades imanentes a ele, tanto do ponto de vista da sua invenção ou descoberta, como de sua transmissão. Em outras palavras, sobretudo depois das Revoluções Burguesas, a universidade concebe-se a si mesma como uma instituição Republicana e, portanto, pública e laica. A partir das questões sociais derivadas das mudanças científicas e políticas do Século XVIII, e com as lutas sociais desencadeadas a partir delas, na qual, educação e a cultura passaram a ser concebidas como constitutivas da cidadania liberal e, portanto, como direitos dos cidadãos a liberdade, fazendo com que, além da vocação republicana, a universidade se tornasse também uma instituição social inseparável da idéia de democracia e de democratização do saber: seja para realizar essa ideia, seja para opor-se a ela. O que por outro lado, reforçou a contradição entre o ideal democrático de igualdade e a realidade da divisão social do trabalho e as lutas de classe, obrigando a universidade a tomar cada vez mais posição diante de tais antagonismos. No sentido de contribuir para melhor distribuição das riquezas, com a organização da sociedade, com a organização política, com a definição do poder público, com as teorias de conhecimento, as ciências, as artes e as culturas. Sendo assim, instituição social de cunho republicano e democrático, a relação entre universidade e Estado também não pode ser tomada como relação de exterioridade, pois o caráter republicano e democrático da universidade é determinado pela presença ou ausência da “prática” republicana e democrática do Estado. Em outras palavras, a universidade como instituição social só é possível em um estado republicano e democrático. Postos os termos desta maneira, poderíamos supor em última instância, que a universidade mais do que determinada pela estrutura da sociedade e do Estado seria um reflexo deles. No entanto, a universidade por ser uma instituição social diferenciada e definida por sua autonomia intelectual que pode relacionar-se como o todo da sociedade e com o Estado nacional, vive de maneira conflituosa, desde sua constituição. Na realidade não deixará de ser conflituosa enquanto perdurarem os motivos da contradição. 110 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 CONSIDERAÇÕES FINAIS Por essas razões configuradas, é que assistimos nestes últimos anos uma clara evidencia da atual forma do capitalismo mundial, caracterizando-se pela fragmentação de todas as esferas da vida social, partindo da fragmentação da produção, da dispersão espacial e temporal do trabalho, da destruição dos referencias que balizam a identidade de classe e as formas de luta. É exatamente isso que percebemos no interior da universidade pública. A heteronomia é visível a olho nu: onde a docência é pensada como habilitação (profissional/técnica) rápida para graduados, que precisam entrar rapidamente num mercado de trabalho do qual serão expulsos em poucos anos, pois se tornam em pouco tempo, jovens absoletos e descartáveis; aula e os manuais didáticos são as prioridades justificadas para compor o tempo útil de trabalho docente e discente com o conhecimento; desgarrada da transmissão entre pesquisador e o preparo para novos pesquisadores, ou seja, eliminando do educador, o exercício de uma atividade planejada e sistematizada. Desapareceu, portanto, a marca essencial da docência: a formação. Entendemos que há formação quando há obra de pensamento, quando o presente é apreendido como aquilo que exige de nós o trabalho da interrogação, da reflexão e da crítica, de tal maneira que nos tornamos capazes de elevar ao plano do conceito o que foi experimentado, ao plano categórico para as novas metodologias. Por esses e outros motivos que a gestão Autônoma e Democrática implica num posicionamento histórico, que expressam as possíveis mudanças e as possíveis respostas a uma nova visão de homem e de sociedade, que fundamentem o direito e o poder que temos, de definir as normas de formação humana. A começar pela Autonomia Institucional em relação ao governo de Estado. Segundo, a Autonomia Intelectual em relação aos partidos políticos, credos religiosos, ideologia estatal, imposições empresariais e financeiras; por último, a Autonomia Financeira que lhe permita destinar os recursos segundo as necessidades da sociedade civil no seu todo, que demandam o ensino, pesquisa e extensão. Em outras palavras, a Autonomia deve ser pensada, como autodeterminação das políticas sociais, dos projetos e metas das instituições universitárias e da autonomia na condução administrativa, financeira e patrimonial. Isso significa, também, que a autonomia é inseparável da elaboração da peça orçamentária anual, pois são estas que definem as 111 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 prioridades acadêmicas de docência (ensino e pesquisa), metas teóricas e sociais, bem como as formas dos investimentos dos recursos citados no Art. 207 da Constituição Federal de 1988 e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – (LDBEN Nº. 9394/96), no seu Artº 53. Portanto, para que haja Autonomia com caráter público e Democrático é preciso realizar discussões amplas entre nós sujeitos universitários (docentes, discentes, administrativos etc.), em torno do entendimento desse cenário “de fora para dentro”, cunhado como “mercado globalizado”. Entender que não se pode analisar o seu desvirtuamento atual sem relacioná-lo a um contexto mais amplo, na raiz histórica, fincada no processo de constituição de nossa sociedade. Advinda de uma colonização reacionária, obscurantista e desumana, nos remete a razão fundamental pela qual a sociedade brasileira é, desde as suas origens, profundamente desigual, injusta e autoritária, assim como o neoliberalismo em vigor e sua ideologia que acompanha a nova forma de acumulação do capital. Finalmente, entender criticamente esse movimento é uma boa perspectiva para criarmos as condições reais de mudanças, sobretudo, para se evitar o pragmatismo criativo, de soluções ágeis e inovadoras fundadas pela lógica do mercado. Portanto, a crítica se pauta no esforço de que a autonomia universitária é uma conquista histórica que exerce funções de caráter ético e político como patrimônio público legal, respondendo às necessidades no campo educacional, por meio do ensino, pesquisa e extensão, no conhecer e pensar cientificamente os problemas da nossa sociedade. Importante tributo social e democrático, todavia, mal compreendido pela elite governante, dita burguesia brasileira, onde o ideal de sociedade distorcido da realidade humana, ainda é o único horizonte. BIBLIOGRAFIA ALVES, Gilberto Luiz. A produção da escola pública contemporânea. Campinas: Autores Associados, 2001. BRESSER, Pereira. Crise econômica e reforma do Estado no Brasil: para uma nova interpretação da América Latina. São Paulo: Editora 34, 1996. 112 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 _____________. “Estratégia e ruptura para um novo Estado”. Revista de Economia Política. V. 17, nº. 3-67, p. 24-38, jul./et./1997. CHAUÍ, M. Escritos sobre a Universidade. São Paulo: Editora UNESP, 2001. CHESNAIS, F. “Um programa de ruptura com o neoliberalismo”. In: A Crise dos Paradigmas em Ciências Sociais e os desafios para o Século XXI. Rio de Janeiro: Editora Contraponto Ltda., 1999. CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. ENGELS, F. 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Avulta nesta nova publicação a problemática do corpo, o qual é requisitado para a fruição artística de maneira inapelável; a arte só se perfaz aqui mediante sua passagem pela materialidade do corpo humano, o que implica certamente a sua determinação sexual, bem como suas múltiplas possibilidades de gerar prazer e dor. O apelo ao corpo, ao que tudo indica, responde à necessidade de situar a experiência artística no contexto dos novos meios de comunicação de massa e da atual onipresença da imagem técnica, buscando-se reativar certa sensibilidade crítica em sua recepção. Trata-se de trazer a expressão artística novamente à vida cotidiana enquanto experiência radical e transformadora – algo que se sente “na carne”, diríamos - em nítida intencionalidade de oposição à fruição artística enquanto mero entretenimento. Em cada capítulo do livro, dedicados ao relato de experiências com diversas modalidades artísticas, a música, a escultura, o teatro e a própria literatura, invoca-se o corpo para um verdadeiro confronto com o objeto artístico; propõe-se um embate deliberadamente cruento, no limite mesmo daquilo que é humanamente suportável. O resultado disso é a reativação do efeito sensível da arte na chamada “sociedade do espetáculo”, para usarmos a expressão clássica de Guy Debord, compreendendo-a justamente como organização social moderna que tende a transformar toda produção intelectual em espetáculo-mercadoria e amortecer a consciência crítica do receptor. Nessa perspectiva, cabe observar que o próprio romance, em um gesto ousado de metalinguagem, torna-se objeto de percepção em seu caráter mercadológico, na medida em que o protagonista-narrador, o escritor Antônio Fernandes, coloca em cena os pressupostos comerciais de sua criação, e isso já nas primeiras páginas do relato. Antônio Fernandes explica a uma funcionária do Museu Kampa, em Praga, que participa de “um projeto privado que envia escritores para cidades do mundo, como Pequim, Tóquio, Cairo, fora as de sempre, Berlim, Paris, Nova York, para escreverem histórias de amor ambientadas na cidade que coube a cada um” (p. 14). Ele refere-se aí, como deve saber o leitor que acompanha o movimento editorial contemporâneo, à coleção “Amores Expressos”, patrocinada pela editora Companhia das Letras. Antônio 115 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 Fernandes também se refere a seu editor, “um homem de trinta e cinco anos, bastante rico”, que de São Paulo, como um estrategista, comandava seus escritores e escritoras espalhados pelo mundo afora durante quarenta e cinco dias. Dizia ainda que se sentia coautor de todos os livros a serem escritos no projeto, e dos filmes que ia produzir a partir dessas obras (p.15). O editor é aqui chamado, não sem certa ironia, de “estrategista”, ou seja, alguém que domina as regras do mercado e sabe valer-se delas em proveito de seu negócio; mais importante, todavia, é o que se diz a seguir a propósito de uma provável adaptação dos romances para o cinema. Arte da imagem, o cinema é uma manifestação de massa capaz de alcançar um grande público, de gerar em alguns casos grandes lucros e ter uma ressonância social geralmente muito superior à atingida atualmente pelos livros. E são inúmeros os casos, como se sabe, nos quais as adaptações cinematográficas alavancam a venda de suas fontes literárias. Em suma, em relação ao próprio romance que será editado, O Livro de Praga, há a referência direta ao universo da imagem – como a lembrar-nos que, se um dia tudo existiu para acabar num livro, como dizia Mallarmé, hoje tudo parece existir para acabar numa imagem produzida pelas câmeras de fotografar e filmar... Insiste-se aqui na questão da imagem (e, por conseguinte, das novas mídias) porque ela efetivamente funciona como um pano de fundo sobre o qual se delineia a reflexão concernente à arte. Exemplar nesse sentido é a observação do narrador a propósito do suicídio de uma jovem no rio Moldávia, com a qual manteve uma breve relação afetiva e sexual; acontecimento trágico que é imediatamente transformado em espetáculo por aqueles que assistem à retirada do corpo das águas: Logo eles retirariam o corpo de Giorgya dali, era certo, mas àquela altura o conjunto devastador já teria sido fotografado e filmado por uma multidão de turistas, jornalistas e até artistas, que povoavam as ruas de Praga e que fixariam e retransmitiriam a cena para a quantidade incalculável de sites, computadores pessoais e celulares do mundo, criando, de fato, uma arte, uma instalação, ao mesmo tempo virtual e imperecível (p.60). 116 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 O grande problema em relação a esse tipo de “arte” referida é sua incapacidade de produzir efeito crítico e afetivo sobre o receptor na proporção mesma da exposição superabundante que lhe corresponde no campo imagético. Nesse sentido, a cena da morte de Giorgya relaciona-se com evento anterior narrado no romance: a visita de Antônio Fernandes à exposição de Andy Warhol no Museu Kampa. Uma das obras ali expostas é simplesmente uma foto de um terrível acidente automobilístico no qual se vê um corpo esmagado (uma foto de jornal, esclarece o narrador, “portanto o choque da realidade”); sob a foto, entretanto, pode-se ler uma frase de Andy Warhol: “Mas quando você vê uma foto aterrorizante um monte de vezes (over and over again), ela acaba por não produzir nenhum efeito” (p. 10). Como fazer com que a arte contemporânea produza efeito num universo já saturado de informação imagética e em que efetivamente tudo tende a ser fruído como mero espetáculo? É justamente aqui que entra o corpo, ou, mais precisamente, a possibilidade sempre aberta, conforme acena o narrador, para um tipo de fruição artística mais arrojada, que se deixa efetivamente contaminar por seu objeto – um tipo de fruição que se poderia chamar metaforicamente de “sexual”, na linha de raciocínio proposta pelo próprio romance, “o sexo como amor e força, como o é na natureza” (p.30). Isso é dito no capítulo “A Pianista”, em que se narra o encontro do escritor Antônio com a pianista Béatrice Kromnstadt; esta executa a obra musical Flores Mecânicas em um piano preparadíssimo, vale dizer, que possui gravações de outros instrumentos musicais (flauta, por exemplo) que são utilizadas na performance da artista, resultando disso a impressão de seu espetáculo como “uma farsa bem real” ou uma “espécie de jogo musical e cênico” – a ênfase no caráter de encenação parece indicar o perigo iminente de a experiência artística ser convertida em mero simulacro que nada objetiva além do entretenimento barato e do lucro. Não é o que ocorre aqui, entretanto; em determinado momento do jogo erótico que a ambos envolve miss Kromnstadt se apodera do órgão genital do escritor em favor da execução da composição: “agarrou o meu pau duro, grosso e comprido como nunca, e puxou-me por ele até as teclas do piano (...) batendo com o meu cacete, energicamente, por todo o teclado, prosseguiu com as mutáveis Flores Mecânicas” (p. 117 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 30). Antonio chega a ponto de quase gozar sobre os teclados, mas não consegue, e seu pênis cede por conta da dor das batidas. A pianista larga então seu “pau murcho e intimidado” e com evidente “desprezo” lhe diz: “- Está pensando o quê, meu querido? Que pode existir arte sem dor?” (p. 31; grifo nosso). Arte, prazer e dor são ingredientes que se misturam de forma inextricável em todos os capítulos do romance, seja, por exemplo, em “A Crucificação”, no qual o narrador tem uma experiência mítico-erótica com a estátua de Santa Francisca na Ponte Carlos (imagina a estátua de pedra transformada em mulher de carne e osso e com ela mantém uma delirante relação sexual), seja no capítulo “A tenente”, em que chega a “possuir” a própria cidade de Praga inteira através do corpo da agente policial Markova: “Sim, eu nunca a esqueceria. E pensei que eu havia penetrado ainda mais nos segredos de Praga, na intimidade mesma da cidade, e estava muito feliz com isso” (p.131). No capítulo “O texto tatuado”, por fim, alcançamos o ponto culminante da relação visceral entre arte e corpo. Narra-se o encontro de Antônio com Jana, uma jovem mulher que tem tatuado no corpo um texto cujo autor seria ninguém menos que Franz Kafka – um texto original e desconhecido do grande público... Obviamente, coloca-se claramente no relato a impossibilidade de se averiguar a autenticidade dessa autoria. O que importa aqui, de fato - como aliás em todos os capítulos de O Livro de Praga - é a possibilidade de uma fruição artística que deixe efetivamente marcas (como a marca de uma tatuagem no corpo) na sensibilidade do receptor. Enquanto exibe seu corpo nu e recita para Antônio o texto kafkiano que tem impresso no corpo, Jana coloca em evidência o caráter teatral, encenado – estamos aqui em pleno domínio da representação – de sua performance literária e dramática: “- Aqui é a linguagem que comanda tudo, só a linguagem” (p. 117). Com efeito, não se poderia esperar de um escritor tarimbado como Sérgio Sant’Anna, cuja vasta obra de ficção tem como um de seus pilares justamente o questionamento da própria representação literária, o apelo fácil e nostálgico a um pressuposto núcleo duro do real, que independeria das diversas representações que dele se faz... E, por outro lado, também não se escamoteia em O Livro de Praga a dimensão mercadológica que cerca a obra de arte na sociedade contemporânea, o que só serviria 118 Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03 ISSN: 1808-4028 / dez. 2012 para eliminar o mercado do horizonte da reflexão crítica. A radicalidade da abordagem de Sérgio Sant’Anna está em toda parte, com a coragem que lhe é inerente: Na noite silenciosa de Praga tudo me era permitido e nada me impedia de pensar que eu mesmo poderia viver o requinte de criar falsos Kafkas para serem gravados no corpo de Jana e lidos, vistos e ouvidos por aqueles que tivessem sensibilidade para fruí-los e que nos pagariam por esse privilégio (p. 122). 119