Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03
ISSN: 1808-4028 / dez. 2012
MOSAICOS
Dezembro de 2012
Unidade Universitária de Campo Grande
Mosaicos – Revista de humanidades da UEMS – ANO 08, Número 03
ISSN: 1808-4028 / dez. 2012
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MATO GROSSO DO SUL
REITOR
Fábio Edir dos Santos Costa
VICE-REITOR
Eleuza Ferreira Lima
GERENTE DA UUCG
José Barreto dos Santos
COORDENAÇÃO DA MOSAICOS
José Barreto dos Santos
CONSELHO EDITORIAL EXTERNO
Prof. Dr. Cesar Aparecido Nunes (Unicamp)
Prof. Dr. Gilberto Luiz Alves (Uniderp)
Prof. Dr. Marcelo Donizete da Silva (UFOP)
Profa. Dra. Maria Silvia Brito (UFMS)
Profa. Dra. Ordália Alves de Almeida (UFMS)
Prof. Dr. Pascoal Farinaccio (UFF)
Prof. Dr. Silvio Ancisar Sanchez Gamboa (Unicamp)
Profa. Dra. Silvia Helena Andrade de Brito (UFMS)
Prof. Dr. Wedencley Alves Santana (UFJF)
Prof. Dr. José Pereira da Silva (CiFEFiL/UFAC)
Prof. Dr. Marcelo Tadeu Schincariol (University of Colorado – USA)
Profa. Dra. Natalia Fernandes Soares (Universidade do Minho – Portugal)
Profa Dra. Tania Martuscelli (University of Colorado – USA)
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CONSELHO EDITORIAL INTERNO
Prof. Dr. Daniel Abrão
Prof. Dr. Fábio Dobashi Furuzato
Prof. Dr. José Barreto dos Santos
Profa. Dra. Léia Teixeira Lacerda
Prof. Dr. Marlon Leal Rodrigues
Prof. Dr. Miguel Ângelo Batista dos Santos
Prof. Dr. Nataniel dos Santos Gomes
Prof. Dr. Roberto Ortiz Paixão
Profa. Dra. Samira Saad Pulchério Lancillotti
Prof. Dr. Walter Guedes
DIAGRAMAÇÃO E FORMATAÇÃO
Responsável pela edição
TÉCNICO RESPONSÁVEL
Joab Cavalcanti da Silva
O conteúdo dos artigos e a revisão linguística e ortográfica dos textos são de responsabilidade dos
seus autores.
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SUMÁRIO
Apresentação..................................................................................................................05
Cultura urbana: relações entre a arte e a cidade contemporânea............................06
Alessandra Mello Simões Paiva (PG – USP)
Diálogos entre Nietzsche e Dostoiévski........................................................................26
Fábio Dobashi Furuzato (UEMS)
Os pressupostos econômicos, ideológicos e políticos das propostas educacionais
neoliberais e pós-modernas nos anos de 1980-1990.........................................................46
Marcelo Donizete da Silva (UFOP)
A metáfora da máscara na transição da sociedade feudal para a burguesa............65
Paulo Edyr Bueno de Camargo (UEMS)
Mídia, enunciação e ideologia.......................................................................................85
Rosemere de Almeida Aguero (UEMS)
A Universidade pública brasileira: autonomia e democracia em debate...............101
José Barreto dos Santos (UEMS)
Sérgio Sant’Anna - O livro de Praga: narrativas de amor e arte (resenha).............114
Pascoal Farinaccio (UFF)
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APRESENTAÇÃO
Esta primeira edição eletrônica da Revista Mosaicos é uma conquista da
Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, UEMS, especialmente da Unidade
Universitária de Campo Grande, local onde se concentram os seus organizadores.
A Mosaicos já foi publicada como veículo acadêmico impresso da área de Letras,
em nossa Universidade, mas infelizmente o projeto não sobreviveu por muito tempo. Agora,
mais de cinco anos depois, o projeto é retomado, ampliando-se a área para as humanidades
e adequando-se os meios do impresso para o online.
Além dessas adequações, conseguimos formar um conselho editorial externo
fortíssimo, com nomes de peso de importantes Universidades brasileiras e internacionais. O
conselho editorial interno também foi reformulado, com o objetivo de contemplar
diferentes áreas das ciências humanas.
Nessa primeira edição da nova fase da Mosaicos, contamos com os seguintes
trabalhos:
- Alessandra de Melo Simões Paiva , pesquisadora da USP, escreve sobre cultura urbana;
- Fábio Dobashi Furuzato, professor da UEMS, analisa a relação entre Nietzsche e
Dostoiévski;
- Marcelo Donizete da Silva, professor da UFOP, discute políticas educacionais;
- Paulo Edyr Bueno de Camargo, professor da UEMS, fala sobre a transição do feudalismo
para o capitalismo;
- Rosemere Aguero, professora da UEMS, apresenta uma pesquisa na área da análise do
discurso;
- José Barreto dos Santos, professor da UEMS, discute a questão da autonomia
universitária;
- Pascoal Farinaccio, professor da UFF, apresenta uma bela resenha do Livro de Praga:
narrativas de amor e arte, de Sérgio Sant’Anna.
Agradecemos as valiosas contribuições dos autores acima e esperamos, com esta
primeira edição online, atrair o interesse da comunidade acadêmica para contarmos cada
vez mais com a participação de colaboradores das mais diversas instituições de ensino
superior, que trabalhem na área das ciências humanas.
Até a próxima Mosaicos!
Os editores
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CULTURA URBANA: RELAÇÕES ENTRE A ARTE E A CIDADE
CONTEMPORÂNEA
Alessandra Mello Simões Paiva (PG – USP)1
RESUMO: Qual a relação entre a cidade e a arte produzida nas ruas? Este é a questão
primordial deste trabalho, vinculado à pesquisa de doutorado interdisciplinar. Com
destaque às expressões artísticas na América Latina, o objetivo é contribuir para a
construção de uma nova História da Arte em contraposição à historiografia oficial de
caráter elitista e excludente. Para isso, são abordadas as relações entre arte e cidade por
meio de aporte teórico proveniente dos Estudos Culturais, da Cultura Visual, da
Historiografia, da Crítica e da Teoria da Arte. A partir deste território conceitual híbrido
- no qual mesclam-se as estabelecidas teorias da arte e o campo emergente da Cultura
Visual – a proposta é contribuir para um conceito de “arte urbana”, com o objetivo de
somar esforços para uma nova construção da História da Arte na América Latina.
PALAVRAS-CHAVE: arte urbana; arte de rua; História da Arte; cidades; cultura
urbana.
ABSTRACT: What is the relationship between the city and the art produced in the
streets? That is the issue raised by this work linked to an interdisciplinary doctorate
research. With distinction to the artistic expressions in Latin America, the aim is to
contribute to a new construction of the History of Art, in contraposition to the
historiography of the elitist and banned character. The relationship between art and the
city is analyzed through theoretical support from the Cultural Studies, the Visual
Culture, History, Theory and Criticism of Art. From this conceptual territory hybrid - in
which are included the established theories of art and the emerging field of Visual
Culture - the proposal is to contribute to a concept of "urban art" in order to join efforts
for a new building in the History of Art in Latin America.
KEYWORDS: urban art; street art; History of Art; cities; urban culture.
1
Mestre em História da Arte. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Integração da América
Latina (PROLAM), Universidade de São Paulo (USP). Vencedora do Prêmio Jovem Crítico de Arte 2012
(Associação Internacional de Críticos de Arte - AICA).
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CULTURA URBANA: RELAÇÕES ENTRE A ARTE E A CIDADE
CONTEMPORÂNEAS
Os primeiros registros visuais da pré-história, as figuras votivas no interior
das cavernas, são a prova de que a produção imagética em espaços públicos
acompanha o homem desde seus tempos mais remotos. Do paleolítico até as grandes
metrópoles pós-industriais do século XXI pode-se concluir que o espaço coletivo
público é mediado pela linguagem visual. Na contemporaneidade, pôsteres,
outdoors, folhetos publicitários, telões eletrônicos dividem o espaço com outros
elementos do ambiente urbano, como edificações, vias de tráfego, praças, parques,
para criar o complexo aparato imagético da cidade. Considerada atualmente como o
espaço por excelência da cultura humana, a cidade deixou de ser apenas um lugar,
no sentido físico, para tornar-se experiência e prática social. Segundo Canevacci
(2004, p. 43): “A cidade é o lugar do olhar. Por este motivo a comunicação visual se
torna o seu traço característico.”.
Esta temática vem ganhando cada vez mais relevância entre as análises das
diversas ciências humanas em uma tentativa interdisciplinar para se compreender a
questão urbana na contemporaneidade2. Segundo Silva (2011, p. XXVI), a
psicanálise e a semiótica, por exemplo, podem propor uma recategorização do
2
Se, inicialmente, sociólogos (ex. Georg Simmel) compunham o perfil principal do pesquisador
debruçado sobre as questões da urbanidade, seguiram-se a estes os antropólogos (ex. Massimo
Canevacci), os arquitetos (ex. Rem Koolhaas), os filósofos (ex. Armando Silva), os geógrafos (ex. Milton
Santos), etc.. A estes somam-se as riquíssimas contribuições de formações interdisciplinares, como as de
Walter Benjamin, Jean Baudrillard e Edgar Morin. Cabe destacar aqui a importância do pensamento do
sociólogo mexicano Néstor García Canclini para este trabalho, especialmente, em função da aplicação dos
Estudos Culturais à realidade na América Latina. Outro pensador de relevância nesta pesquisa é o filósofo
colombiano Armando Silva, que vem liderando uma verdadeira “força tarefa” entre pesquisadores e
instituições de países ibero-americanos para a produção de uma série de estudos e publicações sobre os
“imaginários urbanos”, categoria criada por Silva para estudar as cidades enquanto acontecimentos
simbólicos. Este filósofo, inclusive, tem mantido estreita relação com o Brasil, especialmente, por meio
do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Integração da América Latina (PROLAM),
Universidade de São Paulo (USP).
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urbano, situando-o como sujeito real e imaginário: “A cidade possui motivos
suficientes para que dela se ocupem as ciências do simbólico que aparecem em cena
como a organização de um saber [...]”. Esta diversidade de olhares vem contribuindo
de maneira significativa para o campo das artes visuais, uma vez que, entre as
manifestações culturais engendradas no tecido urbano, destacam-se as expressões
artísticas visuais. A partir de múltiplas técnicas e com objetivos variados, a arte feita
no espaço público das cidades induz a diversas reflexões que dizem respeito não
apenas às problemáticas do próprio território da historiografia e da crítica da arte,
mas de outras disciplinas que consideram a vida nas cidades como um dos grandes
problemas da contemporaneidade, especialmente, aquelas que tratam da cultura
simbólica, como a psicanálise e a filosofia. Trata-se de apreender esta nova
dimensão da cidade pós-industrial, especialmente das grandes metrópoles, marcadas
pela descontinuidade de espaços, por novas formas de relações sociais, pela
degradação de grandes áreas anteriormente ocupadas, por espaços informais autoorganizados, por novos usos de antigas infra-estruturas, pela não regulamentação
fundiária, pelas novas necessidades de circulação e estadia. Enfim, processos
instáveis que alteraram a natureza do espaço público e seus significados culturais.
Entre as novas significações culturais das mega-cidades contemporâneas está
a arte de rua e suas variadas vertentes. Um olhar para a história mostra que arte e
cidade sempre caminharam juntas, em mútua influência:
[...] Cada cidade tem seu próprio estilo. Se aceitamos que a relação entre
a coisa física, a cidade, sua vida social, seu uso e representação, suas
escrituras, formam um conjunto de trocas constantes, então vamos
concluir que em uma cidade o físico produz efeitos do simbólico: suas
escrituras e representações. E que as representações se façam da urbe, do
mesmo modo, afetam e conduzem seu uso social e modificam a
concepção do espaço. (SILVA, 2011, apr., p. XXVI).
Assim, enquanto as transformações urbanas de final do século XIX
ocorreram no clima dos surtos industriais, os artistas das vanguardas históricas
procuraram se manifestar em espaços públicos abertos (por exemplo, as
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performances Dadaístas e Surrealistas) para lutar contra a irracionalidade das
guerras e os valores vigentes das elites da época. Nos Pós-Guerras, os movimentos
artísticos em espaços urbanos abertos se intensificaram por meio de iniciativas
como: “[...] ações do Movimento Fluxus, iniciado por George Maciunas, os
happenings de Allan Kaprow, as performances de Joseph Beuys, Gilbert e George e
Yves Klein.” (ESTRELLA e GONÇALVES, 2007, p. 101). A infinidade de
movimentos artísticos após o modernismo procura, em suma, novas formas de
aproximação entre arte e vida, entre estética e ética, entre sensibilidade e cotidiano.
Uma nova configuração de “monumento público” também ganhou as ruas, como as
esculturas do norte-americano David Smith feitas da combinação de refugos e
materiais descartáveis. A escala urbana ganhou ainda contribuições como a do
artista contemporâneo norte-americano Richard Serra, que utiliza materiais
industriais (aço, borracha, chumbo, etc.) para fazer imensas esculturas em locais
públicos. Serra foi autor da Tilted Arc (1981), uma gigantesca parede de aço
inclinada, instalada na Federal Plaza, Nova York, que, oito anos depois, foi retirada
do local, em função dos sucessivos conflitos entre o artista e a opinião pública
(ENCICLOPÉIA DE ARTES VISUAIS ITAÚ CULTURAL, 2011). Outro
importante exemplo da arte urbana contemporânea é a produção do casal Christo e
Jeanne-Claude, que ficou conhecido por “embrulhar” com materiais diversos
grandes obras arquitetônicas ou elementos da natureza.
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FIGURA 1
Imagem do parlamento alemão
“embrulhado” pelos artistas Christo e
Jeanne-Claude, em 1995
Fonte: www.bundestag.de
Crédito: Wolfgang Volz/Christo
Os anos 1960 foram marcados pelos happenings que, nos países latinoamericanos, ganharam dimensão política, a exemplo de Helio Oiticica no Brasil.
Neste período, também surgiram na América Latina os grafites como meio de
manifestação política, especialmente, a partir dos ambientes universitários. A década
de 1980 assiste à expansão do grafite na América Latina, que se desliga das antigas
formas panfletárias para recorrer a “[...] novos subterfúgios formais; introduzir o
afeto (e o afeto social), mas também a forma de arte, a figura, e não só a palavra,
para conceber um novo projeto estético de sua iconoclástica contemporânea.”
(SILVA, 2011, p.4).
A ruptura com o mercado de consumo, a desmaterialização da arte, as novas
tecnologias, o nomadismo estão entre as temáticas apresentadas pela arte urbana
contemporânea. E a cidade, como a arte, é palco para a discussão destas mesmas
temáticas: a relação entre capital financeiro e apropriação do espaço público; a
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desmaterialização (como a noção de “não-lugar” para shoppings, aeroportos, hotéis);
as novas tecnologias (reveladas em sistemas tecnológicos de comunicação e
discursos de poder). O artista Krzysztof Wodiczco, além de criar intervenções em
monumentos públicos nos Estados Unidos e Europa, produz obras que são o
emblema de uma importante questão na cidade contemporânea: os marginalizados,
entre eles, os migrantes, os sem-teto, os comerciantes informais, os catadores de
lixo. Em analogia aos carrinhos ambulantes destas populações, o artista constrói
“máquinas” - veículos feitos com diversos materiais - para que estas populações
sobrevivam nas regiões metropolitanas. Ao serem colocados em ação, em locais
bastante movimentados, estes veículos chamam à atenção dos transeuntes, que
muitas vezes acabam parando suas atividades cotidianas para participar ou observar
a intervenção artística.
Outro grupo artístico urbano representativo é o BijaRi que, nos últimos anos,
vem realizando uma série de intervenções na cidade de São Paulo. Em seu manifesto
(fornecido a esta pesquisadora), o grupo defende que a cidade não deve ser “[...] um
espaço pronto e estabelecido por vontades políticas impostas de cima para baixo”.
Seus projetos procuram destacar a importância da apropriação do espaço público
pelos cidadãos por meio de diversas temáticas, entre elas, as relações de poder
ocultas no cotidiano (por exemplo, por meio dos discursos publicitários), a
segregação social reforçada pelos processos de reurbanização, a cultura do medo,
enfim, processos que mais afastam do que aproximam cidadãos de uma noção de
espaço público enquanto lugar da coletividade.
A intervenção artística “Antipop Galinha”, realizada em 2002, em São Paulo,
procurou instigar reações as mais diversas nos transeuntes, com a soltura de galinhas
em dois bairros próximos, porém, frequentados por classes sociais bem distintas. No
Largo da Batata, reduto tradicional de ambulantes nordestinos, a galinha causou
reboliço e alegria. Já em frente ao Shopping Iguatemi, local mais elitizado, surtiu
estranhamento, inclusive, com a intervenção da polícia. O projeto “Cartazes
Gentrificação”, realizado em 2005, em São Paulo, foi outra intervenção de destaque
do grupo. Os cartazes, em estilo lambe-lambe, espalhados em diversas regiões da
cidade, inclusive, em locais habitados por sem-tetos e em momentos de
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manifestação política, traziam a seguinte inscrição: “Gentrificação: Processo de
restauração e/ou melhoria de propriedade urbana deteriorada realizado pela classe
média ou emergente, geralmente resultando na remoção da população de baixa
renda”.
FIGURA 2
Projeto Cartazes Gentrificação, grupo BijaRi (SP)
Fonte: fornecido pelo grupo a esta pesquisadora
(2010)
Crédito: BijaRi
Enquanto expressões artísticas, como o Grupo BijaRi, colocam em xeque as
configurações rígidas da cidade capitalista, outros artistas vêm criando seus
trabalhos utilizando a cidade como suporte. Grandes megalópoles no mundo são os
principais exemplos dessa tendência, acentuada especialmente nas duas últimas
décadas. Silva3 destaca São Paulo como a cidade mais prolífera em nível mundial no
que se refere a artistas de rua, cujas formações são de origens variadas: aqueles que
formalmente cursaram universidade de artes visuais ou curso que equivalha a esta
formação; autodidatas (de diversas classes sociais, mas principalmente das
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SILVA, Armando. Em palestra no Instituto Cervantes, São Paulo (09/06/2011).
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periferias); e graduados em desenho gráfico que, inclusive, atuam como ilustradores
profissionais.
Os resultados chegam a ser inusitados, como mostra a obra do artista Zezão.
Autodidata, o artista nasceu em 1971, em São Paulo. Passou a adolescência no
ambiente do skate, entre punks e na pichacão. Chegou a ser trabalhador rural em
Portugal, motorista de caminhão e motoboy. Atualmente, suas obras ocupam
espaços inóspitos em grandes cidades, como bueiros, canais pluviais e catacumbas.
Uma de suas marcas mais características é um grafismo azul que pode ser visto em
diversos locais do mundo. O artista também fotografa os locais de suas intervenções,
aprendendo “[...] a ver beleza, onde a maioria das pessoas só consegue enxergar
lixo, sujeira e desolação.” (RIBEIRO, 2011).
FIGURA 3
Obra de Zezão, Estação da Luz (São Paulo, 2010)
Fonte: Galeria Choque Cultural
Crédito: Zezão
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FIGURA 4
Obra de Zezão, Canal de St. Martin
(Paris)
Fonte: Galeria Choque Cultural
Crédito: Zezão
Também há artistas que se aproximam da vertente mais pictórica, como
Daniel Melim, de São Bernardo do Campo (SP), graduado em artes visuais, em
1979, e que utiliza a técnica do stêncil (máscaras com contornos de imagens vazados
sobre os quais é aplicada a tinta). Em um de seus trabalhos mais recentes (2011),
Melim pintou um painel de 25 x 33 metros em um prédio na Avenida Prestes Maia,
931, centro de São Paulo. Na gigantesca obra, que teve apoio financeiro da empresa
KLM Royal Dutch Airlines e da Galeria Choque Cultural (fundada em 2003 e
especializada em arte urbana) misturam-se elementos da pop art, ilustrações e
imagens de publicidades dos anos 1950.
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FIGURA 5
Detalhe da obra de Daniel
Melim, na Av. Prestes
Maia (2011)
Fonte: Choque Cultural
Crédito: Michelle Campos
Além da carreira em galerias e museus, Daniel Melim desenvolveu o Projeto
Limpão, um site specific4 em proporção gigantesca, em São Bernardo do Campo.
Trata-se da ocupação de todo um morro, com pinturas nas fachadas das casas, nos
corredores e praças do lugar, construído aos poucos, em parceria com a própria
comunidade. Esta característica de work-in-progress, trabalho feito em grandes
extensões sem data para terminar, está presente na obra de outros artistas, como o
paulistano Stephan Doitschinoff, conhecido como Calma, autodidata, que teve sua
formação influenciada pela convivência com os mais diversos tipos de crenças e
rituais religiosos. Um de seus projetos mais audaciosos foi pintar grande parte da
cidade de Lençóis (BA), onde morou por três anos (de 2005 a 2008). Calma realizou
intervenções na cidade e seus arredores, em fachadas de casebres, na igreja e no
4
Em português, “sítio específico” relaciona-se a obras criadas de acordo com o ambiente e com um
espaço determinado. São trabalhos planejados, no qual os elementos dialogam com o meio circundante.
Enciclopédia Itaú Cultural, verbete Site Specific (www.itaucultural.org.br)
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cemitério, formando uma espécie de grande instalação urbana, que envolveu toda a
população da cidade.
FIGURA 6
Obra do artista Calma, em Lençóis (2005 a 2008)
Fonte: Galeria Choque Cultural
Crédito: Nicole Heiniger
A cidade do México é outro grande cenário da arte de rua contemporânea,
fazendo jus à tradição muralista de seus artistas modernos. O artista Neuzz aka
Miguel Mejía, designer gráfico, pintor e ilustrador, faz belos painéis em paredes e
muros, nos quais resgata imagens da cultura genuína de seu país. É importante
destacar o caso da cidade de Tijuana, no México, onde há uma escola tradicional de
grafiteiros. A propósito, as manifestações do grafite compõem grande parte de uma
poética urbana voltada à crítica social em muitas cidades da América Latina.
Bogotá, por exemplo, tem se tornado um dos principais centros desta manifestação,
onde artistas se destacam pela diversidade de técnicas, entre eles, os coletivos
Excusado Print System e Toxicómano. A prefeitura chegou a criar, em 2006, o
programa Muros Libres, que se transformou depois em uma grande galeria de arte
urbana ao ar livre. Em Buenos Aires, destaca-se, entre os diversos nomes, o grupo
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Bs As Stencil que, a partir da técnica do stencil, produziu a popular imagem do expresidente dos EUA, George Bush, com orelhas de Mickey Mouse. Na mesma
cidade, existe uma galeria totalmente dedicada à arte de rua, a Hollywood In
Cambodia.
Mas que reflexões a respeito do urbano podem ser fomentadas a partir das
análises da arte praticada nestes espaços? Qual a relação entre pensar a cidade e
pensar a arte feita na cidade? Estas perguntas podem ser respondidas a partir da
constatação de que, no decorrer das transformações urbanas ao longo de todo o
século XX, a cidade deixou de ser analisada apenas em seu aspecto físico e
estrutural para se revestir de uma dimensão simbólica. “Ao capital financeiro e
industrial costuma-se hoje somar o capital cultural. A competição internacional entre
as cidades produziu uma mutação das tradicionais cidades industriais em cidades de
arte ou de cultura.” (CANEVACCI, 2004, p. 38). É deste ponto de vista que deve-se
partir para a elaboração de um pensamento a respeito do imaginário urbano no
século XXI. Cabe destacar também considerações específicas sobre as cidades na
América Latina, suas características e contradições. Ao elaborar um longo processo
de análise do ponto de vista geopolítico, Silva (2010, p. 44) aponta caminhos
valiosos ao sistematizar as afinidades entre realidade e imaginário: “[...] a América
Latina não existe como unidade e o que existe é um desejo coletivo, um imaginário
de ser latino-americano.”.
Da mesma forma como mudaram as teorias a respeito do pensamento urbano,
mudaram as percepções sobre a arte. As categorias artísticas, tradicionalmente
divididas entre o culto, o popular e o massivo, não são mais suficientes para abarcar
um entendimento aprofundado sobre a complexidade cultural da atualidade. Por
exemplo, em relação à arte feita nas ruas, buscam-se novas terminologias para a
construção de conceitos5: arte pública, arte urbana, arte de rua, etc. Canclini (1997),
ao utilizar o termo “hibridização”, argumenta que não há mais como legar às
disciplinas seus conteúdos específicos (a história da arte e a literatura que se ocupam
5
Armando Silva, em palestra no Instituto Cervantes, São Paulo (09/06/2011), afirmou que nos próximos
meses lançará um livro com definições a respeito da arte feita nas ruas. O pesquisador que, em outros
livros, já havia assinalado algumas definições, traz novas contribuições neste sentido. Diferencia, por
exemplo, o “grafite” (feito a partir dos anos 1960), do “pós-grafite” (atual). Também define “arte urbana”
como a arte feita na rua, porém com autorização institucional prévia (o que a diferencia do grafite).
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do culto; o folclore e a antropologia, do popular; a comunicação, da cultura
massiva): “Precisamos de ciências sociais nômades, capazes de circular pelas
escadas que ligam os pavimentos. Ou melhor: que redesenhem esses planos e
comuniquem os níveis horizontalmente.” (CANCLINI, 1997, p. 19).
Portanto, é preciso tecer um pensamento complexo para se compreender a
história da arte, da cultura e sua relação com as cidades. Canclini (1997), inclusive,
resgata das ciências sociais um termo mais abrangente para superar a noção dualista
entre o culto e o popular: a “cultura urbana” (que inspira o título deste trabalho).
Afinal, a expansão urbana é uma da causas que intensificaram a hibridação cultural
na contemporaneidade. “A assim chamada sociedade pós-moderna remultiplica
geometricamente a comunicação urbana de interesse antropológico-cultural porque
destrói a distinção entre cultura de elite e cultura de massa.” (CANEVACCI, 2004,
p. 43).
Cada vez mais, uma nova ordem estética vem desmantelando o esquema
tradicional do entendimento da expressão cultural contemporânea para dar lugar às
hibridizações das mais diversas ordens. O grafite nos muros da cidade, por exemplo,
se tornou “um meio sincrético e transcultural”, afirma Canclini (1997, ps. 338-339),
completando este pensamento com a conclusão de que alguns grafites fundem a
palavra e a imagem em um estilo descontínuo: “(...) a aglomeração de signos de
diversos autores em uma mesma parede é como uma versão artesanal do ritmo
fragmentado e heteróclito do videoclip”. Portanto, seriam estas imagens um meio
para o entendimento do fenômeno das novas comunidades periféricas, que criam
vínculos de condescendência e espaços culturais específicos? Ou as microcomunidades (a igreja, o clube, o escritório) se desarticularam completamente para
se refugiar na estagnação ideológica? Como vêm ocorrendo as relações presenciais
na cidade e seus espaços públicos, uma vez que a midiatização do mundo substitui
cada vez mais o embate pessoal pela ficção? Em que instância a arte, a partir das
manifestações de rua, deixou de ser utilizada pelas elites como meio de edificação
moral e diferenciação social para se expressar como processo de libertação?
Não se trata aqui de fazer apologia da suposta democracia cultural nos
ambientes urbanos na contemporaneidade. Pelo contrário, é preciso enfatizar o
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vertiginoso processo que vincula cultura e arte aos interesses financeiros privados e
transnacionais com o intuito de manter privilégios, sejam econômicos ou de ordem
simbólica. Jameson (1997, p. 30) afirma: “[...] a produção estética hoje está
integrada à produção das mercadorias em geral: a urgência desvairada da economia
em produzir novas séries de produtos que cada vez mais pareçam novidades [...]”. O
mesmo autor explica: “De todas as artes, a arquitetura é a que está constitutivamente
mais próxima do econômico, com que tem, na forma de encomendas e no valor dos
terrenos, uma relação virtualmente imediata.” (JAMESON, 1997, p. 30).
Este pensamento é de fundamental importância para o entendimento da
cultura urbana na América Latina, onde as contradições são expressivas, como se
pode atestar pelo encontro entre democracia moderna e relações de poder arcaicas.
Basta lembrar, por exemplo, como o desenvolvimento industrial e urbano a partir da
segunda metade do século 19 ocorreu em paralelo com a larga profissionalização de
artistas, porém com o analfabetismo de metade da população. Uma dos temas mais
importantes em torno da discussão a respeito do caráter financeiro da cultura é a
questão da autonomia da arte, isto é, o “suposto” fim de sua dependência em relação
às estruturas de poder, como a política e a igreja (por exemplo, na Grécia e na Idade
Média), e seu revestimento de uma força envolta na aura da unicidade e
autenticidade. Se o Renascimento foi incensado por seus entusiastas como o
momento em que o rompimento da arte com fatores extra-estéticos ocorreu, um
olhar para a história revela como se deu a sistematização maniqueísta que concebeu
valores específicos para cada tipo de manifestação cultural, isto é, como o artesanato
foi parar nas feiras e a arte nos museus (e como se deve pensar hoje a questão de que
o design foi parar nos museus?). Entretanto, enquanto alguns teóricos6 exaltaram a
independência que o processo de secularização trouxe à arte, as forças econômicas e
de mercado, e a comunicação massiva, no sistema capitalista, reataram a
dependência da arte com um sistema fora do âmbito estético, isto é, o financeiro:
6
É importante enfatizar que, de Umberto Eco a Kant, muitos teóricos falaram que arte é quando a forma
prevalece sobre a função.
19
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As normas que estabelecem quais objetos devem reunir qualidades
estéticas ou as que exigem que alguns objetos artísticos, para atingir a
perfeição, preencham requisitos práticos, são determinadas pelo sistema
produtivo. E são as suas transformações, ou a passagem de um sistema
de produção a outro que transformaram, por exemplo, as máscaras
africanas ou as vasilhas pré-colombianas, de objetos religiosos ou
domésticos em obras de arte. (CANCLINI, MCMLXXX, p. 11).
Apesar desta forte vertente marxista, da qual muitos autores se utilizam, é
preciso enfatizar que a arte, além de representar as relações de produção, também as
realiza. Assim como o sistema capitalista influi na produção artística, ditando
tendências e modificando o modo de produzir e circular a arte, no próprio meio
artístico pode se constatar como há um forte esquema em que artistas, marchands,
curadores, críticos acabam delimitando um “circuito de artes” que deve seguir o
mercado. Notam-se contaminações em todas as direções. Se arte é mercadoria,
mercadoria também passou a ser tratada como arte. Arantes (2005), em texto
atualíssimo, fala em uma “nova virada cultural”7. Citando textos “clássicos” do
pensamento contemporâneo, como Daniel Bell e Fredric Jameson, para falar das
contradições do capitalismo tardio, a autora mostra o quanto a:
À atual ‘apoteose do dinheiro' se deve o ímpeto peculiar de três setores
(em termos de 'acumulação'), o financeiro, o de tecnologia de ponta
(informática, telecomunicações, aeroespacial etc.) e justamente o da
cultura mercantilizada, dita multimídia: ou seja, o triunfo da economia de
mercado redundando numa brutal concentração e financeirização da
riqueza. A ‘cultura’ tornou-se um grande negócio - da indústria cultural
de massa (clássica) ao passo mais recente da intermediação cultural e
correspondente consumo gentrificado (quando as próprias administrações
das cidades lançam mão da cultura como pólo de sinalização para as
elites: trata-se de um lugar seguro para morar e fazer negócios).
(ARANTES, 2005, 63)
Voltando à arte de rua, há considerações neste mesmo âmbito. Dois casos são
emblemáticos: a dupla OsGêmeos que, da periferia paulistana, alcançou as graças da
7
Supõe-se que se trata de uma referência ao termo “virada cultural”, sugerido por autores influenciados
pelos Estudos Culturais (campo surgido no Pós-Guerra na Inglaterra), como Stuart Hall.
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crítica internacional devido à excelente qualidade poética de seu trabalho; e o artista
londrino Banksy, que nunca revelou sua identidade pública, mas que virou uma das
grandes estrelas internacionais da arte urbana. OsGêmeos foram parar em
exposições em galerias e museus internacionais, e chegaram até a colaborar com o
design de superfície de um famoso tênis de marca americana. Já Banksy,
recentemente, teve várias de suas obras arrancadas, juntamente com partes de muros
e paredes onde estavam pintadas, em Los Angeles, para serem leiloadas e
arrematadas por artistas do showbusiness americano.
É importante lembrar ainda que a arte de rua ganhou, nas últimas décadas,
diversos espaços legitimadores. Podem ser vistos em grande parte das metrópoles
eventos destinados oficialmente à arte de rua. No Brasil, um decreto lei oficializou o
dia do grafite (27 de março). O projeto Arte/Cidade, iniciado em 1994, em São
Paulo, transformou arte em manifesto político-urbano, e atualmente passou a lidar
com questões complexas, como a relação de mega extensões urbanas e espaços
industriais altamente modificadores da paisagem. O evento Bienal do Mercosul
também tem enfatizado esta questão. Museus passaram a expor arte de rua; galerias
a vendê-las. Entretanto, onde estão realmente sendo efetivadas medidas profundas e
libertadoras? No endereço eletrônico do recém-criado Ministério das Cidades
(www.cidades.gov.br), não há uma única menção à questão cultural da cidade,
enquanto prevalecem informações a respeito dos programas habitacionais que
apregoam a suposta felicidade dos cidadãos em troca de moradias de baixíssima
qualidade por meio do chavão “Minha casa minha vida”. Assim, continua-se a
provar que: “O papel da administração pública passa a ser o de estrategista para a
implantação de empreendimentos privados internacionais.” (PEIXOTO, 2004,
p.396).
Em maio deste ano, durante a despedida comemorativa do jogador Ronaldo,
esta pesquisadora assistiu, no canal de TV Globo, uma entrevista com o mesmo. A
cena, que parecia se passar em sua residência, tinha como fundo uma pintura dos
OsGêmeos. Assim, pergunta-se: de natureza transgressora e crítica, como a arte
urbana passa a ser entendida após ser adotada por espaços legitimadores? Como os
artistas se colocam em relação à dominação por parte dos sistemas de arte, do ponto
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de vista mercadológico ou institucional? Esta legitimação da arte urbana afetou seu
caráter de provocação? Até que ponto estes artistas participam de uma construção
coletiva de liberdade? Os “pichadores” (termo que diferencia os grafiteiros dos
grupos que utilizam a tinta spray para imprimir grafias quase indecifráveis em partes
de difícil acesso em edificações), em São Paulo, parecem sinalizar com alguma
resposta. Em 2008, por exemplo, cerca de 40 deles invadiram o prédio da Bienal
para pichar as paredes de um dos andares do prédio. A polícia entrou no local e
chegou a prender um deles. “Enquanto o grafite é aceito e foi incorporado pelo
mainstream artístico, o pixo é agressivo e marginal. E quer ficar assim”, relata Abos
(2010). Na edição seguinte da Bienal, foi criada uma sessão para receber esta arte,
representada principalmente por fotografias. Mesmo assim, o fato surtiu diversos
protestos,
especialmente,
entre
“pichadores”
contrários
a
qualquer
institucionalização de suas ações.
Qual seria, então, o alcance crítico efetivo das manifestações de arte de rua?
Elas resgatam algum sentido para a cidade contemporânea, cuja capacidade de
organizar o espaço tradicional entrou em total conflito com as novas transformações
estruturais e culturais? Se a metrópole se converteu em uma nebulosa mancha
urbana – feita de modelos complexos e imprevistos –, como as iniciativas
individuais podem cerzir este complicado conjunto, um espaço quase abstrato?
Canclini (1997, p. 287) fala em uma “(...) perda do sentido da cidade”, que estaria
relacionada às dificuldades em se realizar trabalhos coletivos não rentáveis. Neste
sentido, a arte teria também suas limitações:
Espera-se que os espectadores respondam às supostas ações
“conscientizadoras” com “tomadas de consciência” e “mudanças reais”
em suas condutas. Como isso não acontece quase nunca, chega-se a
conclusões pessimistas sobre a eficácia das mensagens artísticas.
(CANCLINI, 1997, p. 338).
Para Bourriaud (2009, p. 108), a chave deste dilema encontra-se na “[...]
instauração de processos e práticas que nos permite passar e uma cultura do
consumo para uma cultura a atividade, a passividade diante do estoque disponível de
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signos para práticas de responsabilidade”. Muito se fala em investir em cultura, que
as novas governanças devem conferir à cultura seu papel definidor para o rumo das
cidades. “Uma outra simbiose íntima entre cultura e cidade precisa ser formulada,
num processo de reinvenção do cotidiano”, afirma Coelho (2008, p. 9). Entretanto, o
investimento parece se direcionar em grande parte para o mega marketing,
especialmente, aquele feito em torno dos eventos de esporte e seus benefícios
provisórios. Não se critica aqui este fato em si. Porém, a banalização das diferenças
sociais continua a imperar de forma expressiva nas sociedades capitalistas, como
mostram as considerações a respeito das relações entre individualismo e grandes
metrópoles:
A situação crítica da sociedade brasileira manifesta-se com particular
dramaticidade nos grandes centros urbanos, cenários e produtores de
novas formas de interação social onde o conflito assume proporções
assustadoras. As ideologias individualistas, ao lado de seu papel inovador
e muitas vezes criativo, não produziram uma cidadania político-cultural
onde houvesse, simultaneamente, maior igualdade político-econômica e
espaço mais legítimo para a riqueza e complexidade culturais se
desenvolverem com plenitude. (VELHO, 2000, p.26)
Arantes (2005, p. 75), ao avaliar a possibilidade de afirmações artísticas
pontuais em resistência às engrenagens de poder, aponta para a complexidade deste
impasse e a dificuldade de uma ruptura sistêmica a partir de iniciativas pontuais:
“Sabemos que saídas individuais não são saídas, e que as institucionais são as que
vimos”. Por institucionais, entenda-se, no caso do Brasil, o Estado e as elites
coniventes com os interesses das grandes corporações transnacionais. Se o orgulho
urbano é “[...] feito da imbricação entre a cidade real e a cidade imaginada, sonhada
por seus habitantes e por aqueles que a trazem à luz, detentores de poder e artistas.”
(GOFF, 1998, p. 119), talvez a cidade imaginada pelos detentores do poder seja bem
diferente daquela imaginada pelos artistas. No primeiro caso, a cidade parece estar
mais próxima daquela apregoada pelo termo “gentrificação”, por meio do qual se
busca um enobrecimento urbano em que ricos e pobres continuam separados,
mediados por imagens supostamente conciliadoras, como as veiculadas pela
publicidade. Aos artistas, resta a árdua tarefa de remar contra a maré.
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_______ Culturas Híbridas - estratégias para entrar e sair da modernidade. São
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COELHO, Teixeira. Uma nova gestão cultural da cidade. In: COELHO, Teixeira
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VELHO, Gilberto. Individualismo, anonimato e violência na metrópole. Horizontes
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Sites
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ABOS, Márcia. Megazine. Pichadores que invadiram a última Bienal de São
Paulo agora voltam para debater a mais marginal das artes de rua. Site O
Globo
(http://oglobo.globo.com/megazine/mat/2010/09/22/pichadores-queinvadiram-ultima-bienal-de-sao-paulo-agora-voltam-para-debater-mais-marginaldas-artes-de-rua-921048120.asp). Acesso em: 13 mar. 2011
BAIXO, Ribeiro. Texto sobre o artista. Disponível em: www.choquecultural.com.br,
Acesso em: 13 mar. 2011.
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http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm.
em: 15 mar. 2011
Acesso
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DIÁLOGOS ENTRE NIETZSCHE E DOSTOIÉVSKI
Fábio Dobashi Furuzato (UEMS)8
RESUMO: Este trabalho trata de um possível diálogo entre o pensamento filosófico de
Friedrich Nietzsche (1844-1900) e a obra literária de Fiódor Dostoiévski (1821-1881).
PALAVRAS-CHAVE: Literatura, filosofia, Nietzsche, Dostoiévski.
ABSTRACT: This work presents a plausible dialogue between Friedrich Nietzsche’s
(1844-1900) philosophical thought and Fiódor Dostoiévski’s (1821-1881) literary work.
KEYWORDS: Literature, philosophy, Nietzsche, Dostoiévski.
8
Professor de Literatura da UEMS (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul), em Campo Grande.
Doutor em Teoria e História Literária, pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
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1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho se propõe a apresentar uma questão tratada pelo professor
Oswaldo Giacoia Jr. (2001), em Nietzsche como psicólogo, para, em seguida, arriscar
outras considerações que nos parecem pertinentes para a compreensão do diálogo entre
o pensamento filosófico de Friedrich W. Nietzsche (1844-1900) e a obra literária de
Fiódor M. Dostoiévski (1821-1881).
Basicamente, Giacoia nos mostra como a “psicologia do ressentimento”, em
Nietzsche, possui uma profunda relação com as Memórias do subsolo, a célebre novela
de Dostoiévski. Procuraremos demonstrar que, apesar dos possíveis pontos de contato
entre os dois autores, também há muita divergência entre eles.
Trata-se apenas de um ensaio, na medida em que as dimensões deste trabalho
não permitem investigar de modo satisfatório as hipóteses que aqui serão levantadas;
mesmo porque, o pensamento e a obra dos dois autores escolhidos são de amplitude e
complexidade gigantescas: Nietzsche e Dostoiévski nos colocam diante de tais
paradoxos, que nossa reação imediata não passa de um sentimento de perplexidade, cuja
superação é trabalho para longos anos.
De qualquer forma, por mais longo que seja o percurso, sempre é necessário dar
o primeiro passo. E, sendo assim, vamos à nossa questão inicial: qual a relação que a
“psicologia do ressentimento”, de Nietzsche, possui com as Memórias do subsolo?
A proximidade entre os dois autores é tal, que nenhum estudo a respeito da
novela de Dostoiévski deixa de citar a admiração do filósofo alemão por este trabalho
do escritor russo. A introdução de uma edição francesa, por exemplo, já começa com a
conhecida citação da carta ao amigo Overbeck: “Une trouvaille fortuite dans une
librarie: Notes d’un souterrain, de Dostoïevski (...) La voix du sang (comment l’appeler
autrement?) se fit aussitôt entendre, et ma joie fut extrême” (NIETZSCHE apud
Todorov, 1995, p.4).
Isso para não falar de considerações exageradas, como esta de Máximo Górki:
“Para mim, todo Nietzsche está em Memórias do Subsolo. Neste livro – e até hoje não o
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sabem ler – se dá para toda a Europa a fundamentação do niilismo e do anarquismo.
Nietzsche é mais grosseiro que Dostoiévski” (GÓRKI apud Schneiderman, 2000, p.10).
Ora, esta influência, claramente admitida por Nietzsche, é justamente uma das
principais questões tratadas por Giacoia (2001).
Depois de apresentarmos os principais pontos de Nietzsche como psicólogo,
faremos outras considerações sobre os diálogos entre Dostoiévski e Nietzsche, através
da análise de um conto do escritor russo, a saber, “O sonho de um homem ridículo”.
2. NIETZSCHE COMO PSICÓLOGO EM QUATRO MOVIMENTOS
O problema central do estudo de Giacoia (2001) consiste em um aparente
paradoxo gerado por duas declarações de Nietzsche: a primeira, em Ecce Homo, em que
ele afirma ser o “primeiro psicólogo da Europa”; e a segunda, em Crepúsculo dos
ídolos, em que considera Dostoiévski como o único autor com quem aprendeu
psicologia. Como observa Giacoia (2001), se Dostoiévski precede Nietzsche no estudo
da psicologia, o filósofo alemão não pode se considerar o precursor dessa ciência.
Faz-se necessário, portanto, esclarecer em que sentido Nietzsche se considera o
primeiro psicólogo da Europa para, em seguida, examinar de que modo ele teria
aprendido psicologia com o escritor russo. Com base nestas duas indagações, Giacoia
(2001) traça o percurso de sua pesquisa, dividindo-a em quatro partes, que denomina de
movimentos interpretativos.
2.1 PRIMEIRO MOVIMENTO
No primeiro movimento, são discutidos os motivos que levam Nietzsche a se
autoproclamar o primeiro psicólogo europeu. Isso se dá devido ao fato de, até então, a
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definição corrente de psicologia estar relacionada aos fenômenos da consciência. Assim,
o filósofo se considera o primeiro psicólogo, na medida em que:
para ele, o reconhecimento de processos psíquicos inconscientes, ou
a dissociação entre a subjetividade e a unidade da consciência - dito
metafisicamente, a dissolução da unidade substancial da “alma” - constitui
um dos principais efeitos de sua crítica da moral, da religião e da metafísica.
(GIACOIA, 2001, pp. 25-26)
Em outras palavras, para Nietzsche, os estudos que até então haviam sido
realizados na área da psicologia não eram dignos deste nome, porque estavam baseados
num grande equívoco metafísico: a associação entre a subjetividade e uma suposta
“unidade de consciência” ou “unidade da alma”.
Para que a psicologia viesse a ocupar a posição que lhe cabe – como “a senhora
das ciências, para cujo serviço e preparação existem todas as outras ciências”, tornandose “o caminho que conduz aos problemas fundamentais” (NIETZSCHE apud Giacoia,
2001, p.09) –, seria necessário nos desembaraçarmos de toda a tradição filosófica,
baseada neste mesmo fetichismo metafísico. Daí a relevância da psicologia no
pensamento nietzscheano e o papel central da declaração do filósofo como o primeiro
psicólogo europeu.
2.2 SEGUNDO MOVIMENTO
Em seguida, Giacoia (2001) examina o modo como, de acordo com Nietzsche, a
tradição do pensamento ocidental, desde o idealismo platônico, está baseada na mesma
crença de que a subjetividade se constitui na unidade da consciência:
É de um platonismo difuso que se teria nutrido e consolidado a crença
inveterada no privilégio da parte racional da alma, fonte do conhecimento
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verdadeiro, pelo qual se testifica nosso parentesco originário com o mundo
das essências inteligíveis. O intelecto, ou faculdade de conceber as ideias,
seria, portanto, a parte nobre e sublime da alma, que nos permite o acesso
possível ao que é, em si, verdadeiro, belo e bom. (GIACOIA, 2001, p. 47)
Desse modo, a filosofia teria se estabelecido como um exercício ascético, através
do qual a alma se libertaria do corpo, retornando à sua origem divina. Como metafísica,
a filosofia teria se instituído “a partir da negação e desvalorização do sensível, do corpo,
da materialidade, do transitório, do devir, do histórico” (GIACOIA, 2001, p.48). Dito
isso, não é difícil compreender por que Nietzsche considera o cristianismo como uma
forma de vulgarização do platonismo.
Mas a crítica de Nietzsche, ainda de acordo com Giacoia (2001), também se
volta contra o materialismo científico, que teria simplesmente substituído a crença na
unidade da alma pela crença na unidade dos átomos: “A ingenuidade dos ‘naturalistas’
consiste em pretender substituir a alma por partículas elementares de matéria, sem
perceber que tais unidades são sucedâneos, transfigurações da mesma hipóstase”.
(GIACOIA, 2001, p. 57)
A argumentação de Nietzsche, em seu ataque às mais diversas manifestações da
“metafísica da unidade”, está baseada em uma crítica ainda mais profunda contra os
fundamentos do pensamento racional. De acordo com o filósofo, os erros da razão
estariam inscritos na própria estrutura da linguagem, como se observa pelo seguinte
trecho do Crepúsculo dos ídolos:
Segundo seu aparecimento, a linguagem pertence ao tempo da forma
mais rudimentar de psicologia. Inserimo-nos em um fetichismo grosseiro
quando trazemos à consciência os pressupostos fundamentais da linguagem
metafísica: ou, em alemão, da razão. Esse fetichismo vê por toda parte
agentes e ações; ele crê na vontade enquanto causa em geral; ele crê no “Eu”,
no Eu enquanto Ser, no Eu enquanto Substância, e projeta essa crença no
Eu-Substância para todas as coisas. (NIETZSCHE, 2000, pp. 28-29, grifo do
autor)
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Desse modo, seria o fato de a linguagem estruturar-se a partir de certas
categorias, como as de sujeito e predicado, que teria levado Descartes a concluir a
existência de um “Eu”, a partir do predicado “penso”. E, se considerarmos que o
pensamento racional é sempre mediado pela linguagem, perceberemos que qualquer
acesso direto à estrutura do real torna-se impossível. O conhecimento, portanto, é
sempre uma interpretação a partir de uma determinada perspectiva.
Diante dessa constatação, caberia ao novo psicólogo uma atitude de permanente
reflexão – em que o pensamento volta sobre si mesmo, em atitude de auto-desconfiança,
questionando-se a todo momento –, sem nunca perder de vista que todo pensamento é
sempre uma interpretação. O campo de reflexão do novo psicólogo giraria, então, em
torno das possibilidades e dos limites da razão e da linguagem.
2.3 TERCEIRO MOVIMENTO
Na estapa seguinte, Giacoia (2001) analisa as divergências de Nietzsche contra
Schopenhauer. Basicamente, segundo Nietzsche, Schopenhauer teria transferido a
metafísica da unidade ao “impulso cego e insaciável”, à “essência do universo”, que
denominou de “Vontade”. Seguindo o mesmo raciocínio que lhe permite considerar o
pensamento de Descartes como um preconceito baseado na linguagem, Nietzsche faz,
no Crepúsculo dos ídolos, a seguinte alusão ao autor de O mundo como vontade e
representação: “No começo, encontra-se a grande imposição do erro: a assunção de que
a vontade é algo que atua – de que a vontade é uma faculdade... Hoje sabemos que ela
é meramente uma palavra...” (NIETZSCHE, 2000, p.29, grifo do autor).
Em Para além de bem e mal, conforme demonstra o estudo de Giacoia (2001),
Nietzsche descreve a vontade – o ato volitivo de um indivíduo – como um jogo de
forças, composto por uma diversidade de sentimentos, impulsos, pensamentos, afetos,
em que um determinado ato de vontade predomina e se realiza. O “Eu” seria uma
síntese, criada pela consciência, dessa diversidade de forças que constituem o corpo:
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A consciência é, então, apenas a “classe dirigente”, a função psíquica
superior, de regência do conjunto, de governo da “coletividade”. Ela se
identifica com os sucessos da comunidade, que ela representa, com os
êxitos de que ela é copartícipe, apoiando-se e equilibrando-se sobre um
prodígio de força e “racionalidade” que ela não apenas não domina como, em
grande medida, desconhece. (GIACOIA, 2001, p. 72, grifo do autor)
Assim, cada um de nós seria constituído por uma “coletividade de almas”. E
todo ato volitivo estaria inserido numa “teia complexa de relações de domínio”.
Conforme nos explica o pesquisador, a moral, no sentido nietzscheano, é a “doutrina de
relações de domínio sob as quais a vida surge e se desenvolve” (GIACOIA, 2001, p.73).
2.4 QUARTO MOVIMENTO
Dito isso, as relações entre Nietzsche, Dostoiévski e a psicologia são retomadas,
já no quarto e último movimento interpretativo. A partir de alguns dados biográficos, o
pesquisador nos apresenta sua hipótese de que a “psicologia do ressentimento” teria
tomado como modelo acabado o protagonista das Memórias do subsolo, “como se essa
novela traçasse os contornos de uma figura prototipicamente ressentida, no exato
sentido nietzscheano desse termo” (GIACOIA, 2001, p.77).
Em seguida, Giacoia (2001) discorre sobre os principais conceitos que nos
permitem compreender a “psicologia do ressentimento”, em Nietzsche, para depois
apontar a presença destes mesmos conceitos na novela de Dostoiévski.
Inicialmente, explica a diferenciação entre a moral dos senhores e a moral dos
escravos, mostrando como a primeira é afirmativa, enquanto a segunda é negativa. O
conceito de “bom”, na moral aristocrática, nasceria de uma “sensação de plenitude e
força, de auto-satisfação”, consistindo numa auto-afirmação espontânea da própria
identidade. O oposto disso seria aquilo que está distante, o diferente de si mesmo; isto
seria o “ruim”, o “mau”, mas não o malvado, no sentido moral.
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Já a moral dos escravos estabeleceria seus valores a partir da negação de um
valor externo, tendo uma existência parasitária. Sendo assim, é negando os valores da
moral aristocrática que o escravo estabelece sua moral. Trata-se, portanto, de uma
inversão dos valores morais dos nobres:
Para o escravo, bom é o compassivo, o que renuncia à ira, à vingança,
o que é humilde, comum, o que nega a si mesmo, o altruísta. Mau (agora em
sentido de malvado, que pratica o mal) é o que separa, o que diferencia, o que
seleciona, o que age, agride, ataca, afirma orgulhosamente o próprio eu.
(GIACOIA, 2001, p.79)
Em Genealogia da moral, Nietzsche utiliza a figura das aves de rapina e das
ovelhas como metáforas dos tipos fortes e fracos. É assim que o trecho abaixo ilustra a
idéia da moral afirmativa dos nobres e negativa dos plebeus:
E se as ovelhas dizem entre si: “essas aves de rapina são más; e quem
for menos ave de rapina, e sim o seu oposto, ovelha – este não deveria ser
bom?”, não há o que objetar a esse modo de erigir um ideal, exceto talvez
que as aves de rapina assistirão a isso com ar zombeteiro, e dirão para si
mesmas: “nós nada temos contra essas boas ovelhas, pelo contrário, nós as
amamos: nada mais delicioso que uma tenra ovelhinha”. (NIETZSCHE,
1998, pp. 35-36)
Em seguida, é necessário compreender os conceitos nietzscheanos de ação e
reação, uma vez que a moral dos nobres foi definida como “ativa e afirmativa”. Haveria,
para Nietzsche, dois tipos de atividade: uma delas, mais espontânea, gerada por
estímulos internos; outra gerada quando, a partir de um estímulo externo, um ser pratica
uma ação elaborada. No segundo caso, trata-se de uma reação, mas não de uma reação
meramente mecânica.
O tipo aristocrático seria predominantemente ativo, de acordo com o primeiro
tipo de atividade. Já o escravo, além de necessitar de um estímulo externo, seria incapaz
também de reagir a ele praticando uma ação elaborada. Assim, o plebeu seria um
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ressentido, ou seja, um ser tomado pelo “sentimento de vingança”, incapaz de promover
uma descarga externa dessa energia afetiva.
Quanto a essa descarga externa, ela seria necessária por funcionar como uma
espécie de narcótico contra o sofrimento. Em outras palavras, considerando que todo ser
vivo está exposto ao sofrimento, uma das formas de aliviar a dor seria através da
vingança, ou seja, de uma energia afetiva direcionada para um suposto culpado pelo
sofrimento.
Mas, no tipo ressentido, haveria um bloqueio na capacidade de descarga de
energias e afetos em direção ao exterior. E em alguns casos, o ressentimento voltar-se-ia
contra o próprio ser, através do sentimento de culpa, como se vê em outro trecho da
Genealogia da moral: “‘Eu sofro: disso alguém deve ser culpado’ - assim pensa toda
ovelha doente. Mas seu pastor, o sacerdote ascético, lhe diz: ‘Isso mesmo, minha
ovelha! Alguém deve ser culpado: mas você mesma é esse alguém – somente você é
culpada de si!...’” (NIETZSCHE, 1998, p.117, grifo do autor).
Neste ponto, é preciso esclarecer, como o faz Giacoia (2001), que os tipos
psicológicos nietzscheanos do nobre e do plebeu devem ser tomados, não como
categorias sociológicas ou políticas, mas no sentido abstrato.
Sendo um crítico da cultura, Nietzsche acrescenta que o homem moderno seria a
manifestação de um tipo psicológico fundamentalmente fraco, apontando a evidência da
fraqueza nos mais diversos aspectos culturais: na ciência, devido ao privilégio de
conceitos como reação e adaptação, que ocupam posição central no darwinismo, por
exemplo; na filosofia, devido à metafísica da unidade que, como vimos, se reproduz no
pensamento dos principais autores, desde Platão; e finalmente, em moral e política,
devido aos “valores de rebanho” que predominariam no século XIX.
Em síntese, o homem moderno é um tipo psicologicamente doente:
porque é puramente artifício, porque em sua alma não vibram mais as
forças vitais autênticas. Ele configura aquele tipo de aleijão por excesso, que
Zarastustra tanto ironizava, o aleijado cuja monstruosidade não consiste na
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privação de um órgão, mas no hiperdesenvolvimento de um deles, em
detrimento da integridade do corpo. (GIACOIA, 2001, p.89)
Desse modo, o homem culto do século XIX teria sua consciência
hiperdesenvolvida, sofrendo, ao mesmo tempo, de uma atrofia de seus outros órgão
vitais. Concluída assim a síntese sobre a “psicologia do ressentimento”, em Nietzsche,
Giacoia (2001)
passa a apontar paralelos entre ela e os traços que definem o
protagonista da novela de Dostoiévski.
É assim, por exemplo, que, na primeira parte da novela, encontramos a
associação, feita pelo próprio narrador, entre a “doença” e sua “consciência hiperdesenvolvida”:
Juro-vos, senhores, que uma consciência muito perspicaz é uma
doença, uma doença autêntica, completa. Para o uso cotidiano, seria mais do
que suficiente a consciência humana comum, isto é, a metade, um quarto a
menos do que cabe a um homem instruído do nosso infeliz século XIX e que
tenha, além disso, a infelicidade de habitar Petersburgo, a cidade mais
abstrata e meditativa de todo o globo terrestre. (DOSTOIÉVSKI, 2000, p.18)
Sua incapacidade de agir também o caracteriza como “homem ressentido”, que
se contrapõe aos “homens de ação”. Outro traço característico seria a tendência à autodegradação, que o faz definir-se como um “homem do subsolo”, um rato, amargurado e
fechado em si mesmo, em sua própria consciência, ao mesmo tempo sofisticada e
insuficiente para a vida.
E, como confirmação final da hipótese de seu estudo – a de que Nietzsche teria
encontrado na novela de Dostoiévski o modelo pronto do homem ressentido –, Giacoia
(2001) nos apresenta uma análise do episódio de vingança do protagonista contra o
jogador de bilhar.
Como sabemos, trata-se de um acontecimento irrisório que, visto do ponto de
vista do anti-herói dostoievskiano, ganha as dimensões de um intenso conflito, embora
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nunca adquira grandeza, justamente devido à consciência dele próprio de que se trata de
um fato insignificante.
Resumidamente, o protagonista entra em um bar, onde há diversos jogadores ao
redor de uma mesa de bilhar. Um deles, sem ao menos tomar conhecimento do nosso
“homem do subsolo”, simplesmente o carrega pelo ombro, como se fosse um mero
objeto, deslocando-o do lugar, pois estava atrapalhando a jogada. A partir de então, o
protagonista passa a planejar minuciosamente a vingança, que leva anos para se realizar,
e só se realiza quando ele havia finalmente desistido de seu plano. Cabe observar ainda
que o ato em si consistia apenas em trombar contra o outro, sem lhe ceder a passagem
no passeio.
Assim, confirma-se a hipótese de Nietzsche como psicólogo, esclarecendo-se o
aparente paradoxo inicial. Em primeiro lugar, compreendemos que o filósofo alemão se
intitulou como o primeiro psicólogo da Europa, pelo fato de considerar que, antes dele,
não havia psicologia, uma vez que os estudos na área baseavam-se no equívoco da
unidade metafísica.
Além disso, percebemos que Nietzsche aprendera psicologia com Dostoiévski,
por tomar o protagonista das Memórias do subsolo como modelo do tipo cultural
ressentido, o que não significa que o escritor russo deva ser considerado propriamente
um psicólogo.
3. DOSTOIÉVSKI COMO FILÓSOFO
A partir do estudo de Giacoia, parece-nos lícito supor que a proximidade entre o
pensamento de Nietzsche e a obra de Dostoiévski seja bastante grande. Os dois autores
são quase contemporâneos e viveram em uma atmosfera cultural semelhante. Além
disso, sabemos que o escritor russo possuía uma formação filosófica bastante sólida, o
que lhe possibilitava discutir, em sua obra, questões centrais da filosofia.
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O artigo de Boris Schneiderman (1994, p.242), “Dostoiévski: a ficção como
pensamento”, por exemplo, narra um episódio biográfico que ilustra muito bem a
inclinação do escritor para a reflexão filosófica. Diz o ensaísta que, em 1854, ao ser
libertado dos trabalhos forçados na Sibéria, Dostoiévski escreveu uma carta ao irmão
Mikhail, solicitando-lhe urgentemente uma quantia em dinheiro e uma lista de livros.
Na relação dos livros solicitados, constavam: a Crítica da razão pura, de Kant; a
História da filosofia, de Hegel; além de Vico, dos “padres da Igreja” e do Corão.
Não é à toa, portanto, que a obra de Dostoiévski seja constantemente estudada
através das mais diversas aproximações com o pensamento de autores como Kant,
Hegel e os existencialistas. Mas, no que toca ao objeto de nosso estudo, cabe perguntar
até que ponto a aproximação entre Dostoiévski e Nietzsche pode ir além do diálogo das
Memórias do subsolo com a “psicologia do ressentimento”.
Nossa hipótese é a de que, naquilo que há de mais central na obra do escritor
russo, ela se afasta – e muito – do pensamento de Nietzsche. Buscaremos comprovar
esta hipótese, com uma análise do conto “O sonho de um homem ridículo”, publicado
em 1877, como parte do Diário de um escritor.
3.1 “O SONHO DE UM HOMEM RIDÍCULO”
Dividido em cinco partes, este conto de Dostoiévski tem a simplicidade de seu
enredo sustentada pelas digressões do narrador e pelas belas imagens descritivas do
sonho. Inicialmente o protagonista anônimo se apresenta de um modo muito semelhante
ao que ocorre nas Memórias do subsolo: “Sou um homem ridículo. Agora já quase me
têm por louco. O que significaria ter ganho em consideração, se não continuasse sendo
um homem ridículo”. (DOSTOIÉVSKI, 1995, p.1213)
Além da semelhança na maneira de se apresentar, associando à própria
personalidade um adjetivo que poucos desejariam para si, o protagonista desta história
possui outros traços em comum com o homem “doente”, “mau” e “desagradável” da
novela anterior. A tendência ao isolamento social e à reflexão, em detrimento da ação; o
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sentimento de culpa, torturando-o constantemente; a sensação de impotência diante da
vida e do sofrimento que ela causa; enfim, quase todos os traços psicológicos do
“homem ridículo” fazem dele um ser estreitamente aparentado ao “homem do subsolo”.
Por outro lado, logo na sequência do trecho supracitado, pode-se perceber uma
diferença fundamental entre os dois personagens:
Mas eu já não me aborreço por causa disso [de ser um homem
ridículo], agora já não guardo rancor a ninguém e gosto de toda a gente, ainda
que se riam de mim... sim, senhor; agora, não sei por quê, mas sinto por todos
os meus próximos uma ternura especial. Teria muito gosto em acompanhálos no vosso riso... não precisamente nesse riso à minha custa, mas sim pelo
carinho que me inspiram, se não me fizesse tanta pena vê-los. É pena que não
saibam a verdade. (DOSTOIÉVSKI, 1995, p.1213)
E, ao contrário do que talvez possa parecer, a expressão desse sentimento de
“ternura” e “carinho” pelo próximo não é fruto da ironia do narrador. Podemos
confirmar isso pela sequência da narrativa, cujo propósito é justamente o de revelar a
verdade ignorada pelos demais.
Como dissemos, o enredo é simples. O homem ridículo chega a tal sentimento
de indiferença diante da vida, que resolve se matar. Ele compra um revólver e o
conserva guardado na gaveta de uma mesa no quarto alugado em que vive, e
simplesmente espera:
No entanto, tinham já passado dois meses e o tal revólver continuava
na minha gaveta; tão indiferente me era tudo, que queria esperar por um
momento em que assim não fosse, embora ignorrasse o motivo desse
adiamento. E, quando voltava a casa todas as noites, durante esses dois
meses, julgava que ia ser essa a noite em que eu dava o tiro. Estava sempre à
espera do momento. E, de repente, aquela estrelinha sugeriu-me a ideia e
resolvi terminantemente meter a bala no corpo nessa noite. (DOSTOIÉVSKI,
1995, p.1215)
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O que ocorre é que o protagonista voltava à sua casa, numa determinada noite
chuvosa, e avistara uma estrela. Conforme se vê no trecho acima, esta estrela lhe surge
como um sinal para consumar o ato há tanto tempo planejado. Mas eis que lhe aparece
uma garota maltrapilha, cuja idade deveria girar em torno de oito anos, no meio daquela
noite fria, em busca de ajuda para sua mãe que estava à beira da morte.
O homem não atende ao pedido de socorro da menina e se dirige ao seu quarto,
pronto para executar o plano de suicídio. Ele então se senta numa poltrona e coloca a
arma diante de si. Mas fica paralisado, simplesmente pensando no que acabara de lhe
acontecer. É que, embora acreditasse ter atingido um sentimento de absoluta indiferença
diante de tudo, causava-lhe perplexidade o fato de a garota ter despertado sua
compaixão:
Não, não consigo descrever bem o meu fugidio sentimento de então;
mas esse sentimento ainda perdurava no meu espírito depois de eu ter entrado
no meu quarto e depois de eu estar já sentado à mesa; e me encontrava tão
agitado como havia muito não o estava. [...] Mas se eu, por exemplo, me
mato dentro de duas horas, que pode importar-me essa pobre pequenina e que
podem incomodar-me a vergonha e o mundo inteiro? Transformo-me num
zero, num zero absoluto. (DOSTOIÉVSKI, 1995, p.1217)
A partir dessa constatação – de que ainda era capaz de sentir algo, embora aquilo
já não fizesse a menor diferença, se ele, de fato, se matasse dentro de poucas horas –, o
homem ridículo vai tecendo as mais diversas especulações existenciais, que lhe surgem
como problemas teóricos aos quais ele tem de responder antes da morte.
Da mesma forma como o homem do subsolo se vê incapaz de agir devido à
reflexão, também o protagonista deste conto não consegue nem ajudar a garota, nem se
matar, porque se põe a pensar e não encontra respostas. A consciência
hiperdesenvolvida surge, então, como uma doença.
Mas a virada no enredo se dá justamente a partir deste ponto: em que o homem
ridículo, perdido em suas meditações, subitamente adormece e sonha. No início, o
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sonho do homem ridículo dá sequência ao seu plano de suicídio, com o disparo de um
tiro contra o próprio peito.
O personagem, então, presencia seu enterro, sentindo-se depois no interior do
sepulcro, onde perde a noção do tempo. Além do frio e da umidade, sente uma dor física
no local onde havia acertado o tiro e uma gota de água fria a cair insistentemente sobre
o olho esquerdo, até que, não podendo mais suportar aquilo, grita “com todo o seu ser”:
Ó quem quer que sejas, se é que existes e que há alguma coisa de mais
razoável do que aquilo que me sucede, ordena-lhe que imponha aqui o seu
domínio. Mas se queres castigar-me pelo meu insensato suicídio com a
insensatez de continuar a existir, fica sabendo que nada do que me esteja
reservado pode comparar-se com o desprezo que sentirei em silêncio, ainda
que a minha tortura e meu martírio possam durar milhões de anos.
(DOSTOIÉVSKI, 1995, p.1220)
Passado um instante, abre-se o sepulcro e um ser obscuro se apodera do
personagem, transportando-o pelo espaço até a estrela que ele avistara na noite do
suicídio. O astro é uma espécie de “duplo” da Terra, onde o homem ridículo é deixado,
em meio a seus habitantes:
Aquela era a Terra, a Terra não manchada pelo pecado original, na
qual viviam homens que não tinham pecado, e viviam num Paraíso idêntico
àquele em que, segundo todas as tradições da Humanidade, viveriam os
nossos primeiros pais antes da “queda”, a não ser que a Terra toda era, por
todo lado, um só e mesmo Paraíso. (DOSTOIÉVSKI, 1995, p.1223)
Neste ponto, já se percebe o quanto a obra de Dostoiévski pode ser distante do
pensamento de Nietzsche. Mas vamos prosseguir até o final do conto, antes de nos
centrarmos na discussão de nossa hipótese. Independentemente de quais sejam nossas
conclusões, o sonho de um homem ridículo é de uma beleza extrema, com sua descrição
inspiradíssima do que teria sido a “Idade de ouro”.
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Não havia religião, nem ciência, mas os homens eram dotados de uma tal
sabedoria e de um sentimento de comunhão tão intenso com a natureza, que se
mantinham “numa identificação total com o Todo”: “Nunca vi dor nem lágrimas à
cabeceira dum moribundo, mas um amor exaltado até o êxtase, até um fervor tranquilo e
puro. Poder-se-ia acreditar que até depois da morte continuavam em comunicação com
seus mortos, e que ela não interrompia a sua vida terrena”. (DOSTOIÉVSKI, 1995,
p.1224)
Também é digno de nota o comentário feito pelo narrador a respeito do “amor”,
que:
existia também entre eles e geravam filhos; mas nunca verifiquei que
fossem vítimas desses arrebatamentos de cruel lascívia, que se apoderam de
quase todos os homens desta nossa Terra, de todos, sem exceção de nenhum,
e que constitui a única origem de quase todos os pecados da nossa
humanidade. (DOSTOIÉVSKI, 1995, p.1224)
Em meio a tais descrições sobre a harmonia em que viviam os habitantes
daquele planeta, o narrador intercala considerações sobre como, apesar de se tratar de
um sonho, sua sensação era tão forte, que o sonho não poderia deixar de ser verdadeiro.
Além disso, o protagonista descreve também a reação das pessoas que, ao ouvirem seus
relatos sobre o sonho, passam a considerá-lo ainda mais ridículo.
Na sequência, como em todas as “tradições da humanidade”, ocorre a inevitável
“queda”: os homens aprendem a mentir, conhecem o orgulho, a voluptuosidade, a inveja
e a crueldade; começam os derramamentos de sangue, com o sentimento de posse e a
divisão da espécie humana entre os diferentes povos. Tendo se afastado da verdade, os
homens criam a ciência e as religiões. Tornando-se cirminosos, inventam a justiça: “Mal
se recordavam daquilo que tinham perdido e não queriam acreditar que alguma vez
tivessem sido inocentes e felizes. Riam-se até da possibilidade dessa sua felicidade
passada e tachavam-na de fantástica”. (DOSTOIÉVSKI, 1995, p.1227)
Depois de uma descrição igualmente inspirada da queda – da qual o narrador se
acusa de ter sido o causador, embora não se lembre de como isso teria ocorrido –, o
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sonhador sente uma dor intensa que lhe “trespassou a alma” e desperta. A partir de
então, está completamente transformado diante da existência e proclama-se como uma
espécie de profeta, que anuncia a boa nova:
Pois eu vi a verdade, sei-o; os homens podem tornar-se belos ou
felizes sem que, para isso, tenham de deixar de viver na Terra. Eu não posso
nem quero crer que a maldade seja o estado natural do homem. Mas eles
troçam desta minha crença. Não acreditam em mim! Eu vi a verdade! Não
que a tenha descoberto com a minha inteligência, não; vi-a, o que se chama
ver, e o seu rosto vivo penetrou a minha alma por toda a eternidade.
(DOSTOIÉVSKI, 1995, p.1229)
Depois de uma nova reflexão sobre como é indiferente o fato de a revelação ter
vindo através de um sonho, uma vez que se tem convicção sobre a verdade, a narrativa
termina com a lembrança da menina que fez com que o protagonista adiasse o suicídio:
“Mas ando à procura daquela jovenzinha... E continuo, continuo...”. (DOSTOIÉVSKI,
1995, p.1230)
4. DE VOLTA AO DIÁLOGO ENTRE NIETZSCHE E DOSTOIÉVSKI
Feito este resumo, nem seria preciso um exame muito aprofundado da obra de
Nietzsche, para percebermos o quanto o sentido deste conto se afasta do pensamento
nietzscheano. Basta citarmos um breve trecho de O crepúsculo dos ídolos, sobre a idéia
do paraíso perdido, à guisa de comparação:
E na Índia, tanto quanto na Grécia, cometeu-se o mesmo engano: “é
preciso que já tenhamos estado ao menos uma vez em um mundo mais
elevado (ao invés de em um muito inferior: o que teria sido a verdade!) e que
aí tenhamos nos sentido em casa. É preciso que tenhamos sido divinos, pois
temos a razão”. (NIETZSCHE, 2000, p.29, grifo nosso)
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Ora, a “necessidade metafísica” não se justifica de forma alguma para o filósofo
alemão. Trata-se de um raciocínio circular, que visa a disfarçar a ignorância, através de
um malabarismo retórico (GIACOIA, 2001, p.53).
E, como vimos, qualquer espécie de idealismo, como este sonho do homem
ridículo, seria fruto do mesmo equívoco da “unidade metafísica” que se encontra na
base de nossa tradição filosófica.
Sendo assim, parece claro que este conto de Dostoiévski o afasta muito do
pensamento de Nietzsche. Resta saber até que ponto a narrativa analisada apresenta algo
de relevante para o sentido geral da obra do escritor russo. Vejamos, por exemplo, o que
diria o próprio escritor sobre o seu pensamento:
sou filho de meu século, filho da descrença e da dúvida, até hoje e (eu
sei) até o túmulo. Que terríveis sofrimentos me custou e me custa agora esta
ânsia de acreditar, que é tanto mais forte em minh’alma, quanto mais eu
tenho argumentos em contrário. [...] acreditar que não existe nada mais belo,
profundo, simpático, racional, valoroso e perfeito do que Cristo, e não só não
existe, mas, digo isso a mim mesmo com um amor enciumado, nem pode
existir. Mais ainda, se alguém me demonstrasse que Cristo está fora da
verdade, e então realmente a verdade estaria fora de Cristo, eu gostaria mais
de ficar com Cristo do que com a verdade. (DOSTOIÉVSKI apud
Schneiderman, 1994, p.245-246)
Ora, como observa Schneiderman (1994), é justamente este o conflito central em
Os irmãos Karamazov, o último e mais bem acabado dentre os romances de maturidade
do escritor. No trecho supracitado da carta de Dostoiévski a N. D. Fonvízina – esposa
de um degredado político –, teríamos “prefigurado” o diálogo entre Aliocha e Ivã
Karamazov. Assim, esse dialogismo da fé que se fortalece com os “argumentos em
contrário” ilustraria muito bem uma característica fundamental na obra do escritor
russo, conforme aponta Bakhtin (1981), nos Problemas da poética de Dostoiévski.
Do mesmo modo, em “O sonho de um homem ridículo”, o conflito gira
justamente em torno da fé religiosa. O narrador insistente na existência de um paraíso
perdido, que poderia ser reconquistado se o homem assim o desejasse, mas sua fé se
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baseia unicamente numa experiência que, como ele próprio confessa, não passa do
sonho de um homem ridículo.
Para finalizar, citemos dois trechos do longo estudo de Joseph Frank (1999), que
confirmam mais uma vez a presença do problema da fé religiosa, em posição central
tanto na vida do escritor, quanto em sua obra: “o problema da existência de Deus
atormentou-o a vida inteira, mas isso apenas confirma que para ele sempre foi
emocionalmente impossível acreditar em um mundo que não tivesse relação alguma
com qualquer espécie de Deus”. (FRANK, 1999, p. 75)
E, mais adiante, comentando a questão da fé em Os irmãos Karamazov:
A genialidade de Dostoiévski como escritor está em ter sido capaz de
sentir (e exprimir) os dois extremos, a rejeição e a aceitação. Não é verdade,
como afirma Leo Chestov com tanta eloquência, que somente o polo negativo
representa o “verdadeiro” ou “antêntico” Dostoiévski. (FRANK, 1999, p.86)
Todas as considerações do presente trabalho nos levam a crer que há, sem
dúvida, pontos de contato entre a obra e o pensamento de Dostoiévski e Nietzsche. Mas,
pelo menos neste último ponto, no que diz respeito à existência ou não de Deus, eles
divergem. Enquanto, para Dostoiéviski, isso é um problema fundamental; para
Nietzsche, a resposta é clara: Deus é uma invenção, um equívoco da metafísica.
É claro que a obra dos dois autores é bastante ampla, complexa e, como
dissemos no início do trabalho, só se deixa compreender – para além da mera
perplexidade –, depois de longos anos. Mas, para os limites deste ensaio, consideramos
ter atingido os nossos objetivos, com a clareza de que este é apenas o primeiro passo de
um caminho que ainda desejamos voltar a trilhar.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1981.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor Mikhailovich. Memórias do subsolo. Trad. e prefácio de
Boris Schneiderman. São Paulo: Editora 34, 2000.
––. “O sonho de um homem ridículo”. In: ––. Obra completa. Vol. IV. Trad. e notas de
Natália Nunes e Oscar Mendes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar. 1995.
FRANK, Joseph. Dostoiévski: as sementes da revolta (1821-1849). Trad. de Vera
Pereira. São Paulo: Edusp, 1999.
GIACOIA JR., Oswaldo. Nietzsche como psicólogo. São Leopoldo: Editora Unisinos,
2001.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Crepúsculo dos ídolos: ou como filosofar com o
martelo. Trad. de Marco Antonio Casa Nova. Rio de Janeiro: Relume: Dumará, 2000.
––. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
SCHNEIDERMAN, Boris. “Dostoiévski: a ficção como pensamento”. In: NOVAES,
Adauto (org.). ARTEPENSAMENTO. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
––. “Prefácio do tradutor”. In: DOSTOIÉVSKI, Fiódor Mikhailovich. Memórias do
subsolo. Trad. e prefácio de Boris Schneiderman. São Paulo: Editora 34, 2000.
TODOROV, Tzvetan. “Introducion”. In: DOSTOIÉVSKI, Fiódor Mikhailovich. Notes
d'un souterrain. Traduction e notes de Lily Denis. Paris: GF-Flammarion, 1995.
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OS PRESSUPOSTOS ECONÔMICOS, IDEOLÓGICOS E
POLÍTICOS DAS PROPOSTAS EDUCACIONAIS NEOLIBERAIS E
PÓS-MODERNAS NOS ANOS DE 1980-1990
Marcelo Donizete da Silva (UFOP)9
RESUMO: Neste artigo, analisaremos sobre as políticas educacionais dos anos de 1990
e suas relações com as abordagens contemporâneas presentes no contexto educacional
brasileiro. Uma dessas abordagens se refere à teoria da complexidade de Edgar Morin,
teoria essa que se tornou um dos eixos do debate sobre a Educação. Nesse sentido,
nossa proposta será a de analisar as questões ideológicas que perpassam os fundamentos
da teoria em questão e como as políticas públicas abraçaram essa causa como forma de
transformação da prática pedagógica pensada, principalmente, na reforma educacional
estruturada a partir dos anos 1990.
PALAVRAS CHAVE: Epistemologia e Teorias da Educação, Políticas Públicas e
Teoria da Complexidade.
ABSTRACT: In this article we will analyze education policy of the 1990 and its
relationship to contemporary approaches present in the Brazilian educational context.
One such approach refers to the theory of complexity of Edgar Morin, who becameone
of the axes of the debate on education. In this sense, our proposal was to analyze
the ideological issues that underlie the foundations of this theory and how public
policies have embraced this cause is a way to transform teaching practice in our context,
especially in the structured educational reform from the year 1990.
KEYWORDS: Epistemology and Theories of Education, Public Policy
and Complexity Theory
9
Doutor em Educação pela Faculdade de Educação da Unicamp, participante do grupo Paidéia na linha
de pesquisa em Epistemologia e Educação (EPISTEDUC), Professor Adjunto do Departamento de
Educação (DEEDU) da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) nas disciplinas de Fundamentos e
Políticas da Educação.
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INTRODUÇÃO
As abordagens epistemológicas da educação, que adentram a realidade
brasileira, trazem consigo o fardo histórico da ideologia burguesa que se materializam
pela legitimação das políticas educacionais. Por essa razão, o objetivo desse artigo farse-á na análise acerca dos apontamentos que influenciaram na produção destas políticas
nos anos de 1990. Além desta fundamentação, toda a análise estará focada na reflexão
sobre os pressupostos da modernidade e da pós-modernidade, que aqui são entendidos
como alicerces da produção do pensamento e da política educacional. Assim, essa
análise estará focada na leitura critica acerca dos fundamentos da chamada “crise dos
paradigmas educacionais” elencados na teoria da complexidade de Edgar Morin. Esta
referência à crise de paradigmas é utilizada, para legitimar este modelo de educação
pensado sobre os pressupostos da pós-modernidade e do neoliberalismo.
É salutar sinalizarmos que nosso objeto não se limita à discussão política do
sistema educacional, porém ele pressupõe a análise a sobre a teoria da complexidade e
sua influência na reflexão sobre a problemática da educação no Brasil. Assim, o
objetivo proposto, será o de contribuir com a análise crítica em relação a essa
abordagem, que se tornou referencial de debate e de reflexão acerca da prática
pedagógica contemporânea.
Sabemos que os anos 1980, apesar das contradições políticas que se inserem
nesse contexto, o debate acerca da educação foi tema fundamental, para se pensar os
rumos dados à escola em nosso país. Esses debates traduziram-se no projeto político
pedagógico de cunho crítico que pensava alternativas para nossa realidade educativa.
Embora esse período tenha sido considerado como a “década perdida” do contexto
sócio-econômico, ela foi de uma relevância teórica fundamental, no que tange a crítica
às abordagens reprodutoras da ideologia capitalista que, então, legitimavam o processo
da reforma educacional nos anos de 1990.
Nesse sentido, o que apresentaremos neste artigo terá como fundamento, a
seguinte configuração: uma análise acerca da proposta dos paradigmas educacionais
pós-modernos alinhados com as teorias educacionais contemporâneas, a sua articulação
na produção do conhecimento e relação com as políticas neoconservadoras e sua relação
com as políticas educacionais nos anos de 1990. O destaque fica, portanto, para a crítica
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a esse período que marcou a educação brasileira, com a implantação de uma reforma
neoconservadora de cunho ideológico e excludente proclamado pelo debate, falacioso,
da necessidade da inserção da realidade brasileira as bases do capitalismo global.
OS PRINCÍPIOS EPISTEMOLÓGICOS DAS REFORMAS
EDUCACIONAIS NOS ANOS 1990 E SUA RELAÇÃO COM O
PENSAMENTO COMPLEXO: OS “COMPLEXISMOS”
EPISTEMOLÓGICOS DA EDUCAÇÃO
As reformas se inseriram na lógica da revolução do modo de
produção capitalista que ocorria no mundo todo e configura uma
realidade infra e supra estrutural nova. Como pano de fundo das
políticas adotadas estava o argumento de que o mundo vivia um
processo de mudanças estruturais do ponto de vista de sua história
econômica, com todas as conseqüências sociais e políticas que isso
significa (HERMIDA, 2006 p. 55).
O modo de produção dos anos 1990 se caracterizou pelo processo de
inserção das novas tecnologias e dos sistemas informacionais aos métodos e
processos da atividade produtiva, além de redefinir a produção da cultura aos
fundamentos do capitalismo globalizado. Diante da complexidade deste fato, as
condições de marginalização e barbárie que adentrou a realidade brasileira, já
sinalizaram para que lado tendeu a reforma e as políticas educacionais neste
contexto.
Na perspectiva de transformação dos sistemas produtivos torna-se
evidente o fato de que a discussão acerca das políticas educacionais se intensificou e
se identifica com o projeto de reestruturação do capitalismo monopolista global10.
10
[...] A educação formal é profundamente integrada na totalidade dos processos sociais, e mesmo em
relação à consciência do indivíduo particular suas funções são julgadas de acordo com a sua raison d´être
identificável na sociedade como um todo. Nesse sentido, a crise atual da educação formal é apenas a
“ponta do iceberg”. O sistema educacional formal da sociedade não pode funcionar tranqüilamente se não
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Diante desse fato, a necessidade de inserção dos sistemas informacionais e a
reestruturação do método pedagógico tiveram como objetivo, redefinir o objeto da
educação aos princípios e as novas exigências do capital. Em uma realidade cuja
perspectiva do trabalho é modelada sob a luz das novas tecnologias, o problema que
se inseriu a realidade educacional brasileira, após a reforma se deu pela
caracterização da sociedade do não trabalho devido a essa transformação
“inorgânica” dos processos produtivos.
Sobre essa questão, os referenciais políticos e epistemológicos da
educação se caracterizaram pelas seguintes matrizes: Primeiro; o ideal de cidadania
assumiu outra característica, cuja matriz é perpassada pela crítica à concepção de
homem moderno e cujos processos de produção da ciência se encontravam
“fechadas” à socialização do conhecimento; Segundo, a reforma dos anos 1990
evidenciou claramente os objetivos da educação brasileira para esse século,
principalmente com a inserção das abordagens educacionais contrárias à concepção
moderna e que defendem a tese de abertura aos processos de aquisição dos “novos”
conhecimentos e novas culturas; Terceiro, o conceito de homem passa a ser
compreendido a partir dessa visão global; aquele que se via encerrado em sua
realidade, passou a ser agora considerado o cidadão do mundo. Por esse motivo,
como diz Nosella (1992 p. 179):
A instituição escolar, obviamente reflete o quadro produtivo nacional. Um
industrialismo tardio e inorgânico, a periferia urbana, a miséria, o arcaísmo
agrícola e o parasitismo produzem o assistencialismo educacional, que é a
nossa grande ideologia pedagógica, pois fetichiza a miséria, fazendo-nos
esquecer da pergunta de Marx: “quem educa o educador?” Ou seja,
acostumados com a miséria, acabamos por legitimá-la, esquecendo que é o
estiver de acordo com a estrutura educacional geral – isto é, com o sistema específico de “interiorização”
efetiva – da sociedade em questão. A crise das instituições educacionais é então indicativa do conjunto de
processos dos quais a educação formal é uma parte constitutiva. A questão central da atual “contestação”
das instituições educacionais estabelecidas não é simplesmente o “tamanho das salas de aula”, a
“inadequação das instalações de pesquisa” etc., mas a razão de ser da própria educação. Desnecessário
dizer: tal questão envolve inevitavelmente não só a totalidade dos processos educacionais, “desde a
juventude até a velhice”, mas também a razão de ser dos instrumentos e instituições de intercâmbio
humano em geral. Se essas instituições – incluindo as educacionais – foram feitas para os homens, ou se
os homens devem continuar a servir às relações sociais de produção alienadas – esse é o verdadeiro tema
do debate. A “contestação” da educação, nesse sentido mais amplo, é o maior desafio ao capitalismo em
geral, pois afeta diretamente os processos mesmos de “interiorização” por meio dos quais a alienação e a
reificação puderam, até agora, predominar sobre a consciência dos indivíduos (MÉSZÁROS 2006 p.
275).
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trabalho o princípio pedagógico geral e que o nosso educador, em última
instância, é a forma produtiva. O assistencialismo nos faz esquecer que é
justamente o trabalho que deve ser educado no Brasil. O populismo e o
irracionalismo são a expressão política e filosófica desse esquecimento ou
dessa ideologia; ocultam uma tremenda omissão educacional. O trabalho
semi-livre, na sua forma geral, constitui a nossa infraestrutura, nosso reino
da necessidade. É o nosso passado cristalizando o presente, é o nosso
educador determinante. Ora, esse arcaico educador deve ser re-educado por
uma moderna e revolucionária escola-do-trabalho. O estigma do trabalho
escravo deve ser exorcizado através da catarse educativa. Em muitas
palavras: precisamos transitar do reino da necessidade para o reino da
liberdade, através do reconhecimento crítico de nosso legado histórico,
invertendo assim a relação determinista entre infra-estrutura e
superestrutura.
As práticas engendradas na produção da pesquisa científica nesse
contexto assumiram a característica de concepções conservadoras que se
apresentaram como sendo posturas “inovadoras” e “emancipadoras” dos sistemas
educativos. De certo modo, esse fato foi o que se traduziu no processo de
fetichização da educação por meio da implantação ideológica de práticas
pedagógicas de cunho pragmático e neoconservador.
A escola é o meio pelo qual ainda podemos pensar acerca dos processos
que legitimem as práticas emancipatórias dos seres humanos, porque é nela que se
encontra engendrada todas as formas de alienação existentes na realidade. E é
justamente da análise dessa realidade, que é possível pensar sobre a concepção de
homem e de mundo que, segundo Gramsci (2001), possa conduzir à transformação
do contexto histórico-social. No entanto, o que se assiste hoje é justamente o seu
contrário; a defesa do neoliberalismo, cuja concepção é perpassada pela visão pósmoderna e “irracional” da ciência, como fundamento para a organização das políticas
educacionais e postuladas pelos organismos internacionais, é que sinalizam, na
prática, as novas formas de organização do capitalismo contemporâneo como questão
ad hoc.
No que concerne, nesse sentido, às postulações da ideologia burguesa
para
educação
contemporânea
os
conceitos
de
“inovação”,
“desconstrução/construção”, “pragmatismo”, “complexidade”, etc. Inseridos na
prática educativa, principalmente na produção da pesquisa em educação, vem se
tornando os “eixos norteadores” de sistematização do pensamento pedagógico,
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sustentados sob a matriz do discurso ideológico de superação dos paradigmas da
ciência moderna, entendidos como condição necessária para produção da ciência
contemporânea. Com efeito, são sobre essas matrizes que se estruturam os pilares de
sustentação da ideologia burguesa pelos quais se mantém o discurso do capitalismo
global na esfera da produção, da alienação e da reificação dos seres humanos,
consubstanciadas pela tônica da complexidade que hoje se faz presente no contexto
pedagógico.
Por outro lado, no que é referente à metodologia das categorias de análise
dos referenciais expostos acima, a proposta de inserção dos sistemas de informação à
educação é justificado pelo fato de que o processo de democratização do ensino pode
conduzir a transformação dos sistemas educacionais, rumo à sociedade do
conhecimento11. Nesse sentido, o processo de organização da sociedade do
conhecimento é balizado pela redução do trabalho humano, com o advento das
chamadas Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) à produção. A inserção
dos sistemas tecnológicos e informacionais na esfera educativa, não só responderiam
as necessidades transformação da força produtiva, como levaria uma parcela
significativa da população para o processo de marginalização dos sistemas da
produção . Nesse sentido, segundo Antunes (2008 p 125).
Quando se olha o conjunto da estrutura produtiva, pode-se também constatar
que o fordismo periférico e subordinado, que foi aqui estruturado desde os
anos 30, cada vez mais se mescla, fortemente, com os novos processos
produtivos, em grande expansão, conseqüência da liofilização
organizacional, dos mecanismos próprios oriundos da acumulação flexível e
as práticas toyotistas que foram e estão sendo intensamente assimiladas pelo
setor produtivo brasileiro. Para os capitais (nacionais e transnacionais)
produtivos interessa, portanto, a mistura entre força de trabalho
“qualificada”, “polivalente”, “multifuncional”, apta para operar
equipamentos informacioanais, recebendo salários bastante reduzidos, subremunerados, que se encontram em patamares muito inferiores àqueles
alcançados pelos trabalhadores nas economias avançadas, vivenciando
condições de trabalho amplamente flexibilizadas.
11
[...] o capitalismo do final do século XX e início do século XXI passa por mudanças que podemos sim
considerar que estejamos vivendo uma nova fase do capitalismo. Mas isso não significa que a essência da
sociedade capitalista tenha se alterado ou que estejamos vivendo uma sociedade radicalmente nova, que
pudesse ser chamada de sociedade do conhecimento. A assim chamada sociedade do conhecimento é uma
ideologia produzida pelo capitalismo, é um fenômeno no campo da reprodução ideológica do capitalismo.
Dessa forma, para falar sobre algumas ilusões da sociedade do conhecimento é preciso primeiramente
explicar que essa sociedade é, por si mesma, uma ilusão que cumpre determinada função ideológica na
sociedade capitalista contemporânea (DUARTE, 2008 p 13).
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Do ponto de vista político, uma das instâncias que abraçou essa causa da
flexibilização cujo objetivo era pensar sobre a “inovação” e reestruturação das
práticas pedagogias foi o Ministério da Educação (MEC) do então presidente da
República Fernando Henrique Cardoso na figura de seu Ministro Paulo Renato
Sousa. Para Sousa (2001), a implementação das novas tecnologias na educação, não
só se tornara questão emergencial, como um dos principais desafios da educação
deste século e cuja proposta estava em adequá-la aos princípios da economia global,
que, de certo modo, significou reajustar a produção à economia de mercado mundial.
Para evidenciar melhor o fato, apresentamos aqui os pontos essenciais
levantados pelo Ministro em seu artigo publicado na revista da CEPAL (Comissão
Econômica para a América Latina em 2001), como os desafios da educação para o
novo século:
El surgimiento de la informática revolucionó la tecnología de producción
industrial, tornando obsoletas las antiguas especializaciones y requiriendo un
nuevo tipo de trabajador, más versátil y mejor equipado intelectualmente. El
gran salto de las comunicaciones, potenciado por el desarrollo de la
tecnología espacial, rompió literalmente las barreras nacionales: a los países
se les hizo imposible mantenerse aislados en un mundo con acceso
instantáneo a la información, y se tornó inviable la aparición de procesos de
desarrollo nacionales autóctonos12 (SOUSA, 2001 p. 68).
Nesta perspectiva os propósitos para a educação dos anos 90 e século
XXI, deveriam seguir a mesma perspectiva:
En este mundo globalizado e interdependiente en una escala nunca antes
vista en la historia universal, la superación de la pobreza y el arraigamiento
de la democracia pasan necesariamente por la capacidad de apropiación y
generación del conocimiento científico y tecnológico, raíz y motor del
dinamismo del capitalismo contemporáneo, y por la afirmación de una
12
O surgimento da informática revolucionou a tecnologia de produção industrial, tornando obsoletas as
antigas especializações e requerendo um novo tipo de trabalhador, mais versátil e melhor equipado
intelectualmente. O grande salto das comunicações potenciado pelo desenvolvimento da tecnologia
espacial, rompeu literalmente as barreiras nacionais, aos países seria impossível manter-se fechados a um
mundo com acesso instantâneo a informação, e se tornou inviável a aparição de processos de
desenvolvimento nacionais autóctones (Tradução livre).
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ciudadanía dotada de los instrumentos para comprender, criticar e influir en
la definición de los rumbos de dichas transformaciones. Para la educación, el
desafío es doble: formar el individuo y preparar el país tanto para
comprender un mundo nuevo cuyas bases se reorganizan por completo como
para participar en él. Recuperar el tiempo perdido, superar las deficiencias
básicas y esenciales heredadas del pasado y, al mismo tiempo, implantar la
reforma educacional que exige la nueva sociedad, es una tarea gigantesca
que exige de los gobiernos y la sociedad la asignación de una clara prioridad
a la educación13 (Op. cit. p. 68).
Pela argumentação exposta, o problema da educação está perpassado pela
problemática do fardo histórico e por essa razão, a defesa de superação dessa
problemática se traduz no fato emergencial da reforma educacional. Dessa forma, o
problema da pobreza é colocado como questão candente desse legado histórico e a
possibilidade de erradicá-la se consubstancia na idéia de que é necessária a
apropriação dos conhecimentos científicos e educacionais para a transformação dos
valores humanos. Não obstante a esse fato, a justificativa dada para se pensar em
novos paradigmas da ciência é perpassada pela hipótese de que é possível construir a
cidadania, quando se compreendem as novas linguagens dos sistemas tecnológicos
inseridos ao dinamismo do capitalismo contemporâneo. Portanto, o que se percebe da
argumentação é que o problema da pobreza não se encontra engendrado as formas de
produção e ao avanço do capitalismo, mas sim no processo histórico, na reflexão
crítica de se pensar a transformação social a partir da leitura da conjuntura social na
qual se criam os fatores determinantes da dominação.
Pelo presente exposto, percebemos que os desafios que se apresentam à
educação contemporânea são extremamente complexos, devido a esse alinhamento
imposto, nos anos de 1990, à realidade brasileira aos propósitos do capitalismo
financeiro global. Além dessa aceitação tácita ao processo de globalização, essa se
estendeu também à educação, cujas perspectivas se consubstanciam nos pressupostos
13
Neste mundo globalizado e interdependente em uma escala nunca antes vista na história universal, a
superação da pobreza e o alargamento da democracia passam necessariamente pela capacidade de
apropriação e geração do conhecimento científico e tecnológico, raiz e motor do dinamismo do
capitalismo contemporâneo e pela afirmação de uma cidadania dotada dos instrumentos para
compreender, criticar e influir na definição dos rumos destas transformações. Para a educação o desafio é
duplo: formar o indivíduo e preparar o país tanto para compreender um mundo novo cujas bases se
organizam por completo como para participar nele. Recuperar o tempo perdido, superar as deficiências
básicas e essenciais herdadas do passado e, ao mesmo tempo, implantar a reforma educacional que exige
a nova sociedade, é uma tarefa gigantesca que exige dos governos e a sociedade a assinação de uma clara
prioridade à educação. (Tradução Livre)
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de uma educação ao longo de toda vida14, balizados no dossiê de Jacques Delors
(2001).
Em suma, por assumir os aspectos ideológicos, massificadores e
excludentes para a educação são perceptíveis, ao se observar também o
distanciamento das diretrizes educacionais da LDB 9394-96, com a proposta
elencada nos anos 1980, no projeto de lei 1256, para uma educação de cunho político
emancipador.
Se do ponto de vista político o problema educacional não se liga ao
problema estrutural do capitalismo, mas sim a questão do método pelo qual se
constituiu o pensamento pedagógico brasileiro. Do ponto de vista epistemológico, a
proposta educacional vigente a essa realidade, não só se identificou com os
paradigmas estruturados pelos organismos internacionais, como também acentuou
essa estruturação a partir das tendências pós-modernas, pós-críticas, neoliberais e
conservadoras da educação contemporânea. Há de se considerar que nesta situação
os objetivos de uma educação emancipadora perdem o seu sentido real, quando se
torna o instrumento ideológico do pensamento burguês para a manutenção da ordem
vigente. Por essa razão, a análise ontológica do ser social se descaracteriza, uma vez
que o sujeito passa ser considerado o “cidadão do mundo”, ou seja, essa idéia de
sujeito que estava ligada às condições históricas de sua existência, agora passa a ser
analisado sobre a matriz do neo-escolanovísmo, sedimentado também na perspectiva
epistemológica da complexidade.
Os anos 1990, nesse sentido, ficaram marcados pelos processos de
desmobilização dos movimentos sociais, pelo enfraquecimento da lutas a favor de
uma educação pública, cujo objetivo era pensar a identidade histórica dos sujeitos
envolvidos nas causas sociais15. Nesta situação, as teorias que se colocaram
14
Para podermos compreender a crescente complexidade dos fenômenos mundiais e dominar o
sentimento de incerteza que suscita, precisamos antes adquirir um conjunto de conhecimentos e em
seguida aprender a relativizar os fatos e a revelar o sentido crítico perante o fluxo de informações. A
educação manifesta aqui mais do que nunca o seu caráter insubstituível na formação da capacidade de
julgar. Facilita uma compreensão verdadeira dos acontecimentos, para lá da visão simplificadora ou
deformada transmitida muitas vezes pelos meios de comunicação social, e o ideal seria que ajudasse cada
uma tornar-se cidadão deste mundo turbulento e em mudança que nasce a cada dia perante os nossos
olhos (DELORS, 2001 p. 47).
15
Os adversários contemporâneos de Marx denunciam, com freqüência, o caráter supostamente “utópico”
e “ideológico” do seu pensamento – em nome da “engenharia social”, da “atuação por acordos”, “passo a
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contrárias ao projeto neoliberal, em especial a histórico crítica, viram seus espaços de
atuação serem minimizados por tendências que se dizem superadoras das formas de
“barbárie, do dogmatismo e do atraso educacional” presentes em nossa realidade. Em
suma, a defesa das tendências e abordagens pós-modernas descaracteriza o
fundamento político que envolve a questão educativa brasileira porque estão
diretamente interligadas, no ponto de vista da produção conhecimento, à cultura do
modismo.
O clima cultural próprio dessa época vem sendo chamado de “pósmoderno”, desde a publicação do famoso livro de Lyotard, A condição pósmoderna, em 1979. Esse momento coincide com a revolução da informática.
Se o moderno se liga a revolução centrada nas máquinas mecânicas, na
conquista do mundo material, na produção de novos objetos, a pósmodernidade centra-se no mundo da comunicação, na informática, nas
máquinas eletrônicas, na produção de símbolos. Isso significa que antes de
produzir objetos se produzem os símbolos, ou seja, em lugar de
experimentar, como fazia a modernidade, para ver como a natureza se
comporta a fim de sujeitá-la ao desenvolvimento do homem, a pósmodernidade simula em modelos, por meio de computadores, a imagem dos
objetos que pretende produzir. Em lugar de metanarrativas entram em cena
os jogos de linguagem (SAVIANI, 2007 pp. 424-425).
É nesse universo proscrito de rearranjos dos processos produtivos, de
organização da realidade por intermédio da chamada engenharia social sedimentada
pela concepção sistêmica, da teoria da informação, da cibernética e da incorporação
de todos esses fatores à realidade, que se adentra aos objetivos do pensamento
complexo, por um lado, e da reforma educacional brasileira, por outro. Nesse ponto,
a defesa e o adensamento dessa abordagem no interior da pesquisa educacional, uma
vez que a proposta é de supressão dos “paradigmas” da modernidade, se não há o
aprofundamento claro na análise de suas proposições, esta já se apresenta como
modismo ou o próprio “complexismo” da atividade produtiva.
passo” etc. As críticas desse tipo, no entanto, não podem ser levadas a sério; pois a utopia é incompatível
com a abrangência dialética da abordagem marxiana, que não atribuiu poder exclusivo a nenhum fator
social particular, já que pressupõe a reciprocidade dialética de todos eles. A utopia é inerente a todas as
tentativas que oferecem remédios meramente parciais para problemas globais – de acordo com as
limitações sócio-históricas do horizonte burguês – encurtando a distância entre a parcialidade das medidas
ad hoc defendidas e os resultados gerais, antecipando arbitrariamente um resultado ao seu próprio gosto.
É precisamente isso que caracteriza os esforços ideológicos da “engenharia social” (todas as aspas são do
autor) (MÉSZÁROS, 2006 p. 270).
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A proposta de “inovação” e produção de um “novo” fundamento
epistemológico para se pensar acerca do contexto educativo se soma às leituras da
biologia molecular, e da concepção termodinâmica da física contemporânea; fatores
que compreendem a Engenharia Social da complexidade. Nesse sentido, toda
realidade é, sobretudo, entendida como parte da condição sistêmica que se encontra
estruturada pela dinâmica de organização do real e é por essa questão que se adentra
a hipótese hologramática dos organismos vivos ou o chamado holograma social.
Pela reflexão exposta, a perspectiva de produção do conhecimento não
passaria pela concepção sistematizadora e rigorosa de verificação dos problemas
concretos do real. Ela, em tese, faz parte da relação incerta entre o acontecimento e o
acaso. Nesse sentido, os seus fundamentos são prescritos pela instrumentalidade e
pela lógica dos sistemas de informação, pelo distanciamento da análise dialética
jogos de linguagem. Contrariamente a esse fato, se entendermos que a educação é
parte fundamental para a efetivação da vida material dos seres humanos, o que
determina essa efetivação se caracteriza pela História humana, lócus em que se
materializa a práxis social. Assim, pelas condições observadas, as bases da
“inovação” apresentadas por essas tendências se dão pela inserção dos sistemas
tecnológicos ao processo de organização das práticas educativas. Ora, se a condição
dada para que tais teorias adentrem ao repertório educacional se justifica pela tese de
que é necessário “corrigir” os erros que herdamos de um passado recente da
educação, justamente, para que se possa “incluir” os “excluídos” do processo de
formação, cujo objetivo se vincula à participação de todos no processo de
organização social e da vida para o trabalho; se observarmos claramente as palavras
do ministro Paulo Renato de Sousa em seu artigo, perceberemos que a proposta de
educação inclusiva assumida pelo governo tende a excluir cada vez mais os
trabalhadores da atividade econômica.
Nesse novo contexto não se trata mais da iniciativa do Estado e das instâncias
de planejamento visando a assegurar, nas escolas, a preparação da mão-deobra para ocupar postos de trabalho definidos num mercado que se expandia
em direção do pleno emprego. Agora é o indivíduo que terá de exercer sua
capacidade de escolha visando a adquirir meios que lhe permitam ser
competitivo no mercado de trabalho. E o que ele pode esperar das
oportunidades escolares já não é o acesso ao emprego, mas apenas a
conquista do status de empregabilidade. A educação passa a ser entendida
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como um investimento de capital humano individual que habilita as pessoas
para a competição pelos empregos disponíveis.(o grifo é nosso). O acesso a
diferentes graus de escolaridade amplia as condições de empregabilidade do
indivíduo, o que, entretanto, não lhe garante o emprego, pelo simples fato de
que, na forma atual do desenvolvimento capitalista, não há emprego para
todos: a economia pode crescer convivendo com altas taxas de desemprego e
com grande contingentes populacionais excluídos do processo. É o
crescimento excludente, em lugar do desenvolvimento inclusivo que se
buscava atingir no período keynesiano. A teoria do capital humano foi, pois,
refuncionalizada e é nessa condição que ela alimenta a busca de
produtividade na educação. Eis porque a concepção produtivista, cujo
predomínio na educação brasileira se iniciou na década de 1960 com a adesão
à teoria do capital humano, mantém a hegemonia nos anos de 1990,
assumindo a forma do neoprodutivismo (Op. cit. p. 428).
Em tese, essa herança da educação neoliberal, foi de total processo de
marginalização social dos que não se “capacitam”, para sua inserção em uma
realidade do trabalho, na forma como esse se apresenta em nossos dias. Nesse
sentido, não há possibilidade de inclusão no contexto neoliberal, pós fordista e
keynesiano: a volatização do capital além das novas formas de acumulação da
riqueza alteraram substancialmente as formas de aquisição da mais valia. Não
obstante a isso, se a proposta de uma educação ao longo de toda vida está alicerçada
pela de tese de que é necessária a subsunção de nosso legado histórico em relação
aos novos paradigmas educacionais contemporâneos, o que constatamos dos anos de
1990, é que esses não só foram de continuidade ao processo de massificação
ideológica da classe, como de recrudescimento das lutas históricas rumo ao processo
de transformação social, alijada pelo princípio da teoria burguesa de organização do
capital humano.
Nesse sentido as instituições que não se “adequem” a essa nova realidade,
em especial a escola, tendem a cair no esquecimento, ou, para utilizar a tese dos
defensores dos paradigmas pós-críticos, tendem a viver sobre os auspícios desse
“atraso histórico” em que se encontra a educação. Nos dizeres de Nunes (1999 p 34).
Estamos vivendo hoje uma chamada terceira revolução industrial, marcada
pela revolução da informática, pelo concurso da automação ou robótica. Se
antes transferimos parcelas do trabalho manual para as máquinas hoje
estamos transferindo as próprias operações intelectuais para as mesmas.
Neste sentido, a qualificação parcial e específica tende a ser superada por
uma qualificação geral do processo produtivo e do conjunto de produtores.
A produção de trabalhadores omnilaterais passa a ser uma exigência própria
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do processo produtivo. Em muitos países já se atingiu a universalização da
educação básica e a massificação do ensino superior. Esta realidade já
visualizada em muitos cenários atuais permite algumas aproximações
teóricas: a primeira é a que, com acentuado otimismo, aponta para a
necessidade da generalização do processo produtivo global o que levaria a
uma superação das formações especializadas tayloristas. A segunda é a que
aponta para a predominância dos processos de produção automatizados,
auto-reguláveis, dispondo o homem para um potencial mundo de não
trabalho, concebido como estudo ou lazer, convivência ou estética. As
máquinas tomariam a maior carga do trabalho mecânico e intelectual
possibilitando o desenvolvimento de novas potencialidades humanas de
convivência, deleite ou liberdade. O cenário do trabalho como princípio
educativo, em sua constituição histórica, em sua dualidade intrínseca
(manual-intelectual), tenderia à uma unificação.
Assim, o campo a produção das ciências curvou a vara para os ditames da
ordem mundial cujos princípios se alicerçaram na forma de acumulação do capital.
Nesta direção os impactos sociais derivados das inovações tecnológicas,
organizacionais e gerenciais sobre o mundo do trabalho estariam decretando
a produção linear, repetitiva e padronizada por um tipo marcado pela
flexibilidade e integração de totalidade. A atual revolução científico-técnica
manifesta no campo da micro-eletrônica e da micro-biologia, com suas
expressões fantásticas na informática, na biotecnologia em engenharia
nuclear ainda estão sob o temor de sua potencialidade. O amplo
desenvolvimento tecnológico materializado deve ser política e eticamente
analisado de modo a não conduzir a uma romantização apressada sem a
adequada condução distributiva de suas capacidades. A tecnologia posta a
serviço das atuais relações de produção pode somente ser uma nova fase de
acumulação capitalista, concentração de riquezas e manutenção geopolítica
das hierarquias institucionais e sociais do capitalismo globalizado.(o grifo é
nosso). A tecnologia, entendida como a expressão teórico-prática da ciência,
configura, na atual ordem mundial, uma agregação profunda de interesses
político econômicos que trazem em si a consubstanciação de um novo tipo
de poder (Op. cit. pp 34-35).
O problema que implica nessa situação é que, com as transformações
ocorridas no mundo do trabalho, a questão inevitável, devido os rumos da história
para a composição desse quadro social explicitado por Nunes (1999), é dessa
“romantização” pelo desenvolvimento tecnológico como questão essencial da
educação o que infere diretamente nas condições de formação da consciência dos
sujeitos em relação ao seu contexto histórico. As condições de sobrevivência porque
passam os seres humanos, na atualidade, derivam dessa estigmatização da sociedade
do “não trabalho”; com o afunilamento das práticas educacionais, a desvalorização
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da docência16, do currículo em especial as ciências humanas no campo da formação e
reflexão do real; assistimos, não só materializar esse estigma no interior da educação
e da cultura, mas também a estigmatizar perspectiva da sociedade do não pensante
que se tornou à “nova” forma de alienação e estranhamento classe trabalhadora.
Diante de uma situação extremamente conflitante, a pergunta que
fazemos é a seguinte: no interior da pesquisa em educação em especial as que
intensificam sua materialidade na realidade escolar se a proposta está em analisar os
saberes que as novas gerações necessitam para que possam enfrentar os desafios da
sociedade contemporânea, quais são os fundamentos desses saberes?
O caminho proposto pelas abordagens pós-modernas, em especial a
complexidade para esse fato, sinaliza para o fato de “transformar”, “articular” e
“unir” os conhecimentos para uma única causa “a construção de uma comunidade de
destino”, ideologizada na sociedade de conhecimento. O objeto da produção do
conhecimento escolar deixa de ser a sistematização dos conhecimentos produzidos
pela sociedade, para a “organização” de uma escola “aberta” aos processos de
produção de uma “ciência nova”, no qual se insere a linguagem das novas
tecnologias e que, acima de tudo, seja capaz de “desatar” os nós com a concepção
moderna de ciência. Nesse ponto segundo Nunes (1999 p.35).
[...] o que temos visto é a crescente desigualdade da divisão internacional do
trabalho, que acentua este processo de concentração e centralização de
capital, notadamente tecnológico. Surgem novas dependências e mascaramse velhas parcerias. As matrizes das empresas transnacionais desenvolvem
atividades de pesquisa e desenvolvimento e concentram recursos técnicos e
financeiros, deixando às filiais somente a adaptação aos novos padrões
tecnológicos centralmente definidos. Alguns apontam que as inovações
tecnológicas aplicadas ao mundo do trabalho levariam a superação das
organizações de base taylorista e fordistas por uma elevação da eficiência da
produção que atingiria o conjunto da sociedade. Verifica-se hoje uma
concorrência inter-capitalista no terreno das investigações científica e
tecnológicas que implicarão numa requalificação profissional dos
trabalhadores. As inovações tecnológicas e organizacionais marcadas por
16
O estigma do não-trabalho manifesta-se também, e muito gravemente, na relação didáticoadimisitrativa do Estado com a rede escolar em geral: ineficiente e cartorial, do ponto de vista qualitativo.
Enquanto o industrialismo conseguiu disciplinar o horário dos trabalhadores, de forma que jamais a
máquina fique desprovida de um operador competente, o Estado não conseguiu fazer com que a “cátedra”
na sala de aula fique sem professor qualificado: professores leigos ou mal formados ocupam essas
arcaicas e pobres “cátedras” que freqüentemente, ficam mesmo sem professor algum (NOSELLA, 1992
p, 161).
59
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um movimento complexo e heterogêneo levam à necessidade de um novo
padrão de apropriação cultural capaz de dar conta dos processos produtivos
inovadores. O papel dos trabalhadores no novo mundo globalizado deve
contemplar a possibilidade do desenvolvimento pleno das forças físicas e
espirituais dos homens no modo de apropriação social das importantes
transformações tecnológicas.
Exige-se a institucionalização de uma escola que prepare para a flexibilidade
produtiva, a intervenção criadora nos processos operacionais, a
racionalização sistêmica dos meios organizacionais a capacidade conceitual
e criativa de interpor-se como sujeito frente aos processos de agregação e
mobilização de trabalhos. O novo conteúdo do trabalho exige uma menor
dependência das funções sensoriais mecânicas e uma maior determinação às
atividades de abstração, capacidade analítica e domínio de informações, isto
exige uma elevação do padrão cultural dos novos trabalhadores e sua
qualificação permanente no processo produtivo. Pressupõe a idealização de
um trabalhador que articule dinamicamente uma base cultural científica,
amplos processos técnicos, com lucidez e discernimento ético-político que
resulte numa possibilidade de trabalho subjetivo, gestionário e
emancipatório.
O legado histórico dos anos de 1990 para a educação brasileira foi de total
descaso com as condições de aprendizado da classe trabalhadora. Se a perspectiva
era de “inclusão” e “democratização” do ensino, como o indicado em nossa reflexão
acima, o que se prosperou fora justamente o seu contrário. Diante de uma situação de
total empobrecimento dos sistemas educacionais e do distanciamento com a luta em
favor de uma educação pública de cunho socialista, a classe trabalhadora viu esvair a
sua razão revolucionária devida o processo coercitivo e ideológico de manutenção e
ampliação das forças produtivas.
Isso não significa dizer que esse estranhamento, que foi imposto,
historicamente, ao homem pelo trabalho e que não é propriedade sua, tenha feito
arrefecer a reflexão acerca das transformações sociais, elas estão presentes na
realidade e se fazem necessárias. No entanto, falta a classe trabalhadora a formação
necessária para que reconheça a sua condição nesse contexto em que está inserida,
por um lado, para que possa analisar criteriosamente os fundamentos da ordem do
capital no qual determina o destino histórico da sua condição social e cultural17. Por
17
Como todos sabemos, essa “dependência direta da natureza” é suplantada pelo desenvolvimento da das
forças produtivas do capitalismo, implicando a realização da liberdade individual em sua universalidade
formal. O avanço vitorioso das forças produtivas do capitalismo cria um modo de vida que coloca uma
ênfase cada vez maior na privacidade. À medida que avança a liberação capitalista do homem em relação
à sua dependência direta da natureza, também se intensifica a escravização humana ante a nova “lei
natural” que se manifesta na alienação e reificação das relações sociais de produção. Diante das forças e
dos instrumentos incontroláveis da atividade alienada sob o capitalismo, o indivíduo se refugia no seu
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outro lado, essa análise é a que sofre com a imposição ideológica dos discursos
reformadores da educação capitalista, presentes no dossiê da UNESCO, tanto nas
análises de Delors, como em Morin, para a educação deste século.
A concepção que se anuncia no discurso pós-moderno aponta para as
questões ambientais, a formação da cidadania em nível global, o protagonismo
jovem, a redução da violência e divisão equitativa da riqueza18, como eixos
norteadores da educação contemporânea. De certo modo, esse discurso de
preservação da Natureza não deixa transparecer, o que nem poderia, a natureza
ideológica de quem a domina. A proposta metodológica do aprender a aprender,
nesse sentido, que, na teoria, é colocada como necessária e urgente à mudança que
ocorre no mundo, na prática, o que tudo indica, preserva as relações hegemônicas da
produção capitalista, de maneira hostil sobre a realidade dos seres humanos.
Portanto, “a educação, segundo Mészáros (2006), tem duas funções
principais em uma sociedade capitalista: (1) a produção das qualificações necessárias
para o funcionamento da economia, e (2) a formação dos quadros e a elaboração dos
métodos de controle político”. Esse fato esclarece, o caráter excludente que se insere
no quadro educacional contemporâneo.
Diante do que fora exposto, entendemos que, toda transformação do real
deve ser concebida a partir da práxis social. O que infere que, para que ela ocorra, de
fato, seja necessário, conforme comenta Saviani (2000), que o dominado conheça
claramente o que dominante conhece. Por essa via, é possível pensar na ação
democrática. Nas relações capitalistas, por mais que se clame pelas transformações
sociais e a preservação ambiental, essas não serão possíveis enquanto existir o sistema
mundo privado “autônomo”. É o que pode fazer, porque o poder hostil da necessidade natural, que antes o
unia aos seus semelhantes, agora parece estar sob controle (MÉSZÁROS, 2006 p. 236).
18
Em 1990, o Banco Mundial definia: “A educação é o maior instrumento para o desenvolvimento
econômico social, ela é central estratégia do Banco Mundial para ajudar os países reduzir a pobreza e
promover níveis de vida para o crescimento sustentável e investimento no povo. Essa dupla estratégia
requer a promoção do uso produtivo do trabalho o principal bem do pobre e proporcionar serviços sociais
básicos para o pobre”. (Banco Mundial,1990) Estas diretrizes consubstanciam a teoria do capital humano,
identificando o setor educacional como forma específica de garantir o desenvolvimento econômico e
social dependente. Em 1974, Robert Macna-mara afirmava a necessidade de ajudar os países em
desenvolvimento a expandir seus sistemas educacionais como requisito para o desenvolvimento
econômico, pois os sistemas educacionais desses países são mal concebidos e considerados não adaptados
às suas necessidades de desenvolvimento (1974). A educação assume a forma de necessidade básica como
política compensatória para proteger os países pobres incapazes de um auto-processo de modernização
(NUNES 1999 p 35).
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de acumulação da riqueza e manutenção da ordem vigente. Neste sentido, a proposta
metodológica do aprender a aprender, por flexibilizar o conteúdo no sentido de se
pensar na autonomia do sujeito, colabora não só com o processo de descaracterização
dos modelos educacionais emancipatórios, como na manutenção da dominação que se
inseriu pelos processos de políticas compensatórias.
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A METÁFORA DA MÁSCARA NA TRANSIÇÃO DA SOCIEDADE FEUDAL
PARA A BURGUESA
Paulo Edyr Bueno de Camargo (UEMS)19
RESUMO: O Humanismo, a Reforma e o Iluminismo denotam o grau de
desenvolvimento das forças produtivas promovidas pela burguesia e constituem o eixo
balizador do grau de acirramento na luta contra o antigo regime feudal. O estudo do
Humanismo será centrado, principalmente, em dois autores: Erasmo de Roterdam e
Thomas Morus. Observaremos que estes autores não fazem uma crítica aberta e
declarada ao clero e à nobreza, antes adotam uma postura conciliadora. Chamaremos o
momento do Humanismo como a era do convite. O segundo momento que marca a
transição da sociedade feudal para a sociedade burguesa, a Reforma Protestante, será
denominado de a era do desafio. E, por fim, o Iluminismo, movimento iniciado às
vésperas da Revolução Francesa, dispensa a metáfora da máscara utilizada
anteriormente, pois o desenvolvimento das forças produtivas lhe permite adotar um tom
desafiador. É chegada a era da vitoria da burguesia.
PALAVRAS-CHAVE: Marxismo, educação, renascimento
ABSTRACT: The Humanism, the Reformation and the Iluminism denote the
dimension of the productive strenghts development promoted by the bourgeoisie and
constitute the main point of the dimension for the incitement in the fight against the old
pheudal regime. The Humanism studies willbe focued, mainly, in two outhors: Erasmo
de Roterdam and Thormas Morus. It Will be observed that these authors dont´t make
any open and declared criticism for the clergy and the nobleness, insted of it, they adopt
a conciliated posture. We will call the Humanism time as the invitation age. The second
time that points the transition from the pheudal society to the bourgeoisie society, the
Protestant Reformation, it will be called the chalange age. And, at last, the Iluminism,
an imitiated movement on the brink of the French Revolution, it dispenses with the
metaphor of the mask used previously, whereas, the productive strenghts allow to adopt
a chalange tone. It is the arrival of the bourgeoisie victory age.
KEYWORDS: Marxism, education, renascence
19
Possui graduação em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1991) ,
especialização em Fundamentos da Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (1996) e
mestrado em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (1999) . Atualmente é Professor
Assistente da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Tem experiência na área de Educação.
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INTRODUÇÃO
Este estudo objetiva compreender o processo de transição da sociedade
feudal para a sociedade burguesa. Esta transição não se deu de forma abrupta e nem
foi fruto do esforço de homens excepcionais.
O nosso entendimento da história aponta a sua compreensão no
desvelamento do combate das classes sociais com interesses antagônicos atuantes
naquele período.
De um lado, a nova classe social que começa a se formar a partir do século
XI, com o crescimento das cidades surgidas em torno do castelo do senhor feudal e
no entroncamento das estradas. Estas cidades eram chamadas de burgos, daí o nome
que recebe os seus habitantes: burgueses. A classe social denominada burguesia,
composta de mercadores, será a responsável pela desintegração do feudalismo, a
partir do século XV.
Do outro lado, temos a nobreza e o clero como representantes e forças
dominantes no antigo regime: o feudalismo. As idas e vindas, avanços e recuos na
luta entre a nova classe em ascensão e a velha classe dominante definirão o processo
de transição da sociedade feudal para a burguesa.
Falamos em processo, pois os meios de produção e de troca, sobre cuja base
se ergue a burguesia, foram gerados no seio da sociedade feudal. Portanto, já no interior
da própria sociedade, podemos observar o germe de outra forma de organização social.
A mudança não foi abrupta e levou muitos séculos até a sua consumação.
De acordo com o historiador marxista Eric Hobsbawm, em seu livro A Era
dos Extremos , vivemos numa “[...] civilização capitalista na economia; liberal na
estrutura legal e constitucional; burguesa na imagem de sua classe hegemônica
característica [...]” (HOBSBAWM, 1995, p. 16). De maneira que optamos pela
denominação sociedade burguesa ao invés de liberal ou capitalista.
O Humanismo, a Reforma e o Iluminismo denotam o grau de
desenvolvimento das forças produtivas promovidas pela burguesia e constituem o eixo
balizador do grau de acirramento na luta contra o antigo regime feudal.
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O estudo do Humanismo será centrado, principalmente, em dois autores:
Erasmo de Roterdam e Thomas Morus. Observaremos que estes autores não fazem uma
crítica aberta e declarada ao clero e à nobreza, antes adotam uma postura conciliadora.
O primeiro autor, no livro Elogio da loucura, personifica a própria loucura e passa a
fazer críticas mordazes às pessoas consideradas ilustres do seu tempo. Porém, não é
Erasmo quem fala, mas sim a loucura. Quem pode levar a sério a loucura? O outro
autor, no livro Utopia, cria uma sociedade imaginária, o que lhe permite criticar os
regimes políticos existentes, sem se expor à crítica abrasadora da Igreja, como dizia
Voltaire.
A burguesia neste período ainda era frágil. Ela estava em formação e
acumulando forças e riquezas que permitiriam um confronto aberto nos séculos
seguintes.
Nesse momento era possível somente o tom conciliador. Nas duas obras
citadas, os autores não se mostram, propriamente, como narradores das suas histórias,
preferindo utilizar uma espécie de “máscara”– no caso de Erasmo, a loucura e no caso
de Morus, um local imaginário – para assim poderem revelar certos acontecimentos. A
máscara, neste caso, ao invés de esconder, revela, ou melhor, mostra a realidade ao
passo que esconde o medo de se expor.
Chamaremos o momento do Humanismo como a era do convite. O segundo
momento que marca a transição da sociedade feudal para a sociedade burguesa, a
Reforma, será denominado como a era do desafio.
O estudo do período da Reforma mostra os alicerces da total emancipação,
dizendo que o homem poderia contestar a instituição que lhe exigia obediência e
fidelidade: a Igreja.
Em termos educacionais, a obra Didática Magna, de Coménio, embora seja
representante da época da Reforma, assume também um tom conciliador entre a Igreja
e a burguesia.
E, por fim, o Iluminismo, movimento iniciado às vésperas da Revolução
Francesa, que não precisa mais de nenhuma máscara, pois o desenvolvimento das
forças produtivas lhe permite adotar um tom desafiador. É chegada a era da vitória.
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Antecipadamente, esclarecemos que para o adequado entendimento dos
autores citados, foi necessária uma série de citações de suas obras. Embora as citações
tornem o texto um pouco pesado é impossível dispensarmo-nos de fazê-lo. Por outro
lado, por tratar-se de uma sátira, como no caso de Erasmo, o texto torna-se, em alguns
momentos, hilário. As críticas de Erasmo à classe dominante do período medieval –
leia-se nobreza e clero – são contundentes e fazem rir até mesmo os mais sisudos
leitores.
Procuramos evidenciar que o capitalismo, como uma nova forma social, só se
constituiu após o esgotamento pleno de todas as possibilidades contidas no feudalismo.
Este processo levou cerca de três séculos para se concretizar. De acordo com Marx:
[...] uma organização social nunca desaparece antes que se desenvolvam
todas as forças produtivas que ela é capaz de conter; nunca relações de
produção novas e superiores se lhe substituem antes que as condições
materiais de existência destas relações se produzam no próprio seio da velha
sociedade (MARX, 1973, p. 29).
Esta passagem mostra que o capitalismo, certamente, ainda possui muito
fôlego para continuar vigente. No entanto, um rápido olhar pela história mostra que
nenhuma classe social se eterniza no poder. Para lembrar uma clássica citação de
Aristóteles: “Tudo o que um dia teve início não pode ser eterno”.
Também é importante salientarmos que o embate da burguesia com o clero e a
nobreza, não apresenta uma forma única e geral em toda a Europa. O embate na França,
na Inglaterra e na Alemanha, possuía peculiaridades, que serão explicitadas no decorrer
do texto e na medida em que tratarmos de autores como Voltaire, More e Coménio,
respectivamente, representantes dos países citados.
O HUMANISMO OU A ERA DO CONVITE
Europa século XVI. Eram tempos de mudanças como os de hoje ou talvez
mais. O homem desafiou os mares e partiu em busca de lugares desconhecidos,
depositários de seus sonhos de encontrar não somente um lugar melhor para viver, mas
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um outro modo de vida, uma vida mais verdadeira, mais cheia de sentido. Uma saída
honrosa para um período de crises e indefinições. Crise de consciência por descobrir
que a Terra não era o centro do universo e crise política com o surgimento de uma nova
classe social ameaçando quebrar a rígida hierarquia medieval. Por detrás de tudo isso, o
desejo da burguesia de ampliar os seus mercados e aumentar os seus lucros. Aliás, lucro
será a nova palavra de ordem desta sociedade nascente.
O conceito de lucro não podia ser contido nos estreitos limites da cultura
medieval, que estava impregnada da idéia de que havia um ser supremo, além desta
vida, ao qual toda a conduta terrena tinha de obedecer e conformar-se.
A busca da riqueza pela riqueza era considerada incompatível com essa idéia.
O capitalismo nascente empreendeu esforços na tarefa de transformar tal ideário para
que se harmonizasse com os seus novos propósitos, pois as potencialidades da produção
não podiam continuar sendo exploradas dentro dos limites do velho sistema. Surge,
então, o Humanismo, não somente um movimento literário, mas um movimento
intelectual, que pregava uma mudança de valores e uma nova autoconsciência do
espírito humano.
O Humanismo era um movimento liberal e que defendia a tolerância. A
doutrina da Igreja medieval era a do pecado original, dividindo profundamente a alma e
o corpo, este último considerado a ocasião e o lugar do pecado.
O Humanismo tinha como doutrina a bondade original, a crença grega na
unidade do corpo e da alma e que as ações do corpo expressam natural e
adequadamente a humanidade da alma. Era patente o interesse pelos escritores clássicos
da Grécia e de Roma.
Lembremos o filme O Nome da Rosa, baseado na obra de Umberto Eco,
mostrando a vida num mosteiro medieval. Inúmeros crimes aconteceram neste mosteiro
porque as pessoas tinham contato com as páginas envenenadas de um livro proibido. O
livro em questão era uma comédia. Para o teólogo medieval que envenenava as páginas
do livro, o maior mal existente era o riso. Ora, compreendemos a sua preocupação, pois
o riso leva à tolerância (todo fanático será sempre um sério). A tolerância abre caminho
para novas idéias e novas maneiras de ver o mundo.
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Erasmo de Roterdam baseia seu livro Elogio da Loucura, justamente, no riso.
Nesta obra, Erasmo faz troça ao mesmo tempo da vida monástica, dos abusos da Igreja,
dos filósofos escolásticos, dos valores da nobreza etc. Porém, seu gracejo nunca é uma
injúria. O uso da sátira é um refúgio atraente para aqueles que não querem envolver-se
profundamente nos princípios. Assim, o crítico pode manter-se à distância das questões
mais fundas que levam os homens a tais atitudes.
Através do riso, Erasmo não se sentia obrigado a ir mais longe na crítica. A
bem da verdade, não poderia naquele momento fazer críticas abertas ao clero e à
nobreza. A burguesia tinha, naquele momento, uma postura conciliadora. As suas
forças produtivas ainda não estavam suficientemente desenvolvidas para uma crítica
direta e um rompimento definitivo. Era apenas o momento do convite para o futuro
embate.
Elogio da Loucura foi publicada em 1511, e por ter sido escrita na casa de Sir
Thomas Morus, o título, em sinal de reconhecimento, pretendia ser um jogo de palavras
com o nome de Morus: Moriae Encomium, ou, em português, Elogio da Loucura.
Erasmo era monge e por ser filho ilegítimo, sabia não ser possível esperar, por
essa razão, uma grande carreira na Igreja. Conhecia a vida monástica muito bem e, por
assim dizer, a conhecia por dentro.
Alguns desses reverendos mostram, contudo, o hábito de penitência, mas
evitam que se veja a finíssima camisa, e a roupa de lã sobre a pele. Os
mais ridículos, a meu ver, são os que se horrorizam ao verem dinheiro,
como se se tratasse de uma serpente, mas não dispensam o vinho nem as
mulheres. Não podeis, enfim, imaginar quanto se esforçam por se
distinguirem em tudo uns dos outros. Imitar Jesus Cristo? É o último dos
seus pensamentos (ERASMO, 1984, p. 105).
Nesta outra passagem, Erasmo critica novamente a Igreja e a vida dos
religiosos.
Os que mais concorrem para ouvi-los são as mulheres e os negociantes,
cujo afeto os bons pregadores procuram conquistar. Os negociantes,
vendo-se adulados e justificados, prestam-lhes de bom grado uma porção
de benefícios imerecidos, pois encaram tais donativos como uma espécie
de restituição. Quanto às mulheres, têm elas vários motivos secretos para
amar os religiosos, quando mais não fosse por encontrarem neles um
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bálsamo e um consolo contra os desgostos e o enjôo do laço conjugal
(ERASMO, 1984, p.113).
Erasmo, no entanto, estava perfeitamente ciente dos perigos da crítica à Igreja.
E jamais a faria, sem a “máscara” da loucura.
Talvez fosse melhor não falar dos teólogos, tão delicada é essa matéria e
tão grande é o perigo de tocar em semelhante corda. Esses intérpretes das
coisas divinas estão sempre prontos a acender-se como a pólvora, têm um
olhar terrivelmente severo e, numa palavra, são inimigos muito perigosos.
Se acaso incorreis na sua indignação, lançam-se contra vós como ursos
furiosos [...]; mas, se recusais retratar-vos, condenam-vos logo como
hereges.” (ERASMO, 1984, p. 95).
Há inúmeras outras passagens na obra Elogio da Loucura, nas quais são
tecidas críticas à Igreja. Mas a burguesia nascente, classe representada por Erasmo, não
tinha só a Igreja como adversária. A nobreza também era dominante no período
medieval. Então, Erasmo, com sua fina ironia, não poderia deixar de criticá-la.
Logicamente, sem jamais cair no cinismo e no veneno. Lembramos, também, que neste
mesmo fragmento observamos ainda críticas às relações de consangüinidade sob as
quais se baseava a nobreza.
Não é raro encontrar, entre estes, os que, com ânimo abjeto e vilíssimas e
plebéias inclinações, vos pasmem à força de repetir: sou um fidalgo.
Convém provar a antigüidade de suas estirpes? Um descende do piedoso
Enéias; outro remonta do primeiro cônsul de Roma; este procede, em
linha direta, do rei Artur. Além disso, mostram as estátuas e os retratos
dos antepassados: enumeram os bisavós e os tataravós; recordam os
antigos sobrenomes e os feitos dos seus maiores (ERASMO, 1984, p. 71
e 72).
Elogio da Loucura também é repleto de críticas à filosofia escolástica, devido
a sua desvinculação dos problemas relacionados aos saberes práticos e aplicáveis na
vida cotidiana. Erasmo tem a compreensão de que um novo mundo nascera e que o
pensamento escolástico era anacrônico.
Para a burguesia, o domínio da natureza através da ciência deveria se sobrepor
ao domínio da fé. Erasmo, no entanto, se limita a denunciar a infecundidade da
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escolástica, utilizando a sátira e abrindo caminho para outro filósofo de fundamental
importância para a classe social nascente, que iria propor as bases da ciência também
nascente e dominaria o universo. Este filósofo é Francis Bacon. Mas, voltemos a
Erasmo:
[...] seria de desejar que não tivessem outro defeito a não ser o de falar
demais; mas, por desgraça nossa, são sempre discussões de lana caprina,
e, à força de discutir para sustentar a verdade (como pretendem eles),
perdem de vista, o mais das vezes, a própria verdade. Esses eternos
discutidores estão sempre contentes consigo mesmos e, armados de três
ou quatro silogismos, sempre dispostos a desafiar para a controvérsia
quem quer que seja e sobre qualquer argumento (ERASMO, 1984, p. 93).
E, ainda, esta outra passagem muito ilustrativa:
[...] contribuem para sutilizar ainda mais essas sutílíssimas sutilezas todos
os diversos subtérfugios dos escolásticos; e assim é que seria menos
difícil sair de um labirinto do que desembaraçar-se do embrulho dos
realistas, dos nominalistas, dos tomistas, dos albertistas, dos occanistas,
dos escotistas - ai de mim! Já me falta a respiração, e, contudo, só citei as
principais seitas da escola, não falando de muitíssimas outras (ERASMO,
1984 , p. 97).
Educação e sociedade estão umbilicalmente ligadas. Educação é o processo
pelo qual a sociedade forma os seus membros à sua imagem e em função dos seus
interesses. Portanto, a definição dos rumos do processo educativo implica,
necessariamente, a compreensão da sociedade na qual a educação está inserida e da
qual, em hipótese alguma, pode ser desvinculada.
Dentro da obra de Erasmo, merecem destaque dois livros diretamente
vinculados à questão educacional, traduzidos recentemente para o português. Trata-se
de A civilidade pueril e De pueris (Dos meninos). Estes opúsculos trazem uma série de
regras para o convívio social como aprender a comer, a vestir-se, a sorrir, a assear-se,
entre outras coisas. Portanto, para Erasmo, “o homem não nasce homem, mas torna-se
homem”.
A natureza humana não é uma dádiva divina, pensamento típico do período
medieval, mas, antes, uma atribuição do próprio homem. Talvez a principal
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característica humana seja o seu caráter social. Nas palavras de Aristóteles, “o homem é
um animal político”, quer dizer, um habitante da polis grega ou, por outra, um ente
social.
O segredo que torna a vida social possível, que permite a convivência humana
– eis a importância dos livros de Erasmo – é a presença de algumas regras que tornam
possível a vida em sociedade. A ausência de regras é a própria barbárie. Sem regras é a
própria sociedade que sucumbe.
Passaremos, agora, a discutir outro filósofo, contemporâneo e amigo pessoal
de Erasmo: Thomas Morus. Este autor antecipa duas obras do pensamento utópico do
século XVII, A Cidade do Sol de Campanella e Nova Atlântida de Bacon.
A ficção e o enredo romanceado dos pensadores utópicos funcionam como um
disfarce, pois estão claramente criticando a sociedade em que vivem e sugerindo
princípios mais adequados para a sua regulamentação. Suas obras refletem o profundo
impacto que as viagens de descobrimento tinham causado na mente dos homens.
Em Morus, por exemplo, o narrador da história é um português. As viagens
tinham destruído o provincialismo medieval, mostrando um crescente racionalismo e o
interesse pela ciência e educação. Notamos, assim, que o surgimento da ciência
moderna não ocorreu no seio da universidade, pois esta, à época, era hegemonizada
pela Igreja e pelo pensamento medieval.
Utopia foi escrita por Morus em 1515. O título do livro não poderia ser mais
adequado, utopia significa “nenhures”, “em lugar nenhum”, ou seja, mais uma vez a
utilização da “máscara” - referência a um lugar que não existe - permitiria falar a
verdade sem se comprometer.
Utopia era a descrição de uma ilha que não existia “em parte alguma” e narra
como vivia o povo nesse estado ideal. Contudo, é um livro extraordinariamente realista.
Morus era um homem de estado-escritor que captou claramente a realidade política e
lidou com os problemas reais do seu tempo, tentando descobrir as causas dos malefícios
políticos e oferecendo soluções concretas e cuidadosamente pensadas.
Morus ergueu firmemente a sua Utopia sobre uma análise penetrante e realista
da causa da miséria humana. Encontrou a causa do mal não nos caprichos de Deus ou
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em numa conseqüência do pecado original, mas na estrutura social construída pelo
homem.
A solução proposta por Morus procura atacar aquilo que seria a raiz de todo o
mal e a causa principal dos problemas sociais existentes. Na sua ilha seria abolida a
propriedade privada.
Eis o que invencivelmente me persuade que o único meio de distribuir os
bens com igualdade e justiça, e de fazer a felicidade do gênero humano, é a
abolição da propriedade. Enquanto o direito de propriedade for o
fundamento do edifício social, a classe mais numerosa e mais estimável não
terá por quinhão senão miséria, tormentos e desespero (MORE, 1984, p.
206).
Com esta proposta, Morus cai nas graças dos pensadores do socialismo
utópico do século XIX, principalmente Proudhon, para o qual “toda propriedade é um
roubo”.
Morus propõe em sua obra uma sociedade igualitária, contrapondo-se à rígida
e hierarquicamente estratificada sociedade medieval.
[...] aqueles que falam do interesse geral não cuidam senão do seu interesse
pessoal; enquanto que lá, onde não se possui nada em particular, todo
mundo se preocupa seriamente da causa pública, pois o bem particular
realmente se confunde com o bem geral. [...] na Utopia, ao contrário, onde
tudo pertence a todos, não pode faltar nada a ninguém, desde que os celeiros
públicos estejam cheios. A fortuna do Estado nunca é injustamente
distribuída naquele país; não se vêem nem pobres nem mendigos, e ainda
que ninguém tenha nada de seu, todo mundo é rico (MORE, 1984 , p. 310).
Dando seqüência a sua penetrante e realística análise dos problemas sociais,
embora o título da sua obra sugira o contrário, a Utopia de Morus é uma metáfora da
Inglaterra de seu tempo. Assim sendo, é destacado o grave problema fundiário de sua
época: grandes extensões de terras que eram destinadas à agricultura, empregando
inúmeras pessoas e fornecendo alimentação a população mais carente; passaram a ser
destinadas a pastagens para rebanhos de carneiros. “Estes animais, tão dóceis e tão
sóbrios em qualquer outra parte, são entre vós de tal sorte vorazes e ferozes que
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devoram mesmo os homens e despovoam os campos, as casas, as aldeias” (MORE,
1984, p. 178).
A Inglaterra, de fato, estava interessada em criar ovelhas em larga escala
tendo em vista os lanifícios, seu principal produto de exportação desde o tempo de
Morus até o século XVIII.
No entanto, esta forma de uso da terra beneficia poucas pessoas, pois são
poucos os donos dos rebanhos e poucos indivíduos na mão-de-obra. Conclusão: o
desemprego e a fome aumentaram em proporções gigantescas. Sem terras para cultivar
e sem ter como arrumar emprego, os homens partem errantes pelas estradas. Não lhes
restando alternativa para não morrerem de fome; alguns passam a fazer assaltos, se
tiverem coragem para tanto; outros se transformam em mendigos.
Vale destacarmos aqui a peculiaridade do caso inglês, no qual ocorreu o
aburguesamento da nobreza evidenciado na sua perpetuação como classe dominante na
sociedade capitalista emergente, à proporção que passa a se dedicar à indústria têxtil.
Contrário, vale lembrar, o que aconteceu em solo francês, quando ocorreu o
acirramento entre burguesia e nobreza, desembocando na Revolução Francesa em 1789.
Em sua análise, Morus levanta uma questão essencial, ainda presente, que é a
grande quantidade de leis, formuladas pelos homens na tentativa de resolver os
problemas, cuja origem está na forma de organização social. A velha e conhecida
atitude reformista de resolver os problemas sociais mexendo apenas nos efeitos, sem
tocar nas causas.
O que os utopianos desaprovam especialmente nos outros povos é a
quantidade infinita de volumes, leis e comentários, que, apesar de tudo, não
são suficientes para garantir a ordem pública. Consideram como injustiça
suprema enlear os homens numa infinidade de leis, tão numerosas que se
torna impossível conhecê-las todas, ou tão obscuras que se torna impossível
compreendê-las (MORUS, 1984, p. 275 e 276).
A proposta de vida social em Utopia prevê um comportamento social repleto
de regras. Observemos este fragmento no qual é descrita uma mesa coletiva (todas as
refeições são coletivas em Utopia) na hora da refeição principal.
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Preparam-se três mesas ou mais, de acordo com o número de convivas. Os
homens assentam-se ao lado da parede, as mulheres ficam dispostas em
frente, a fim de que, se alguma for acometida de uma indisposição súbita, o
que acontece freqüentemente às mulheres grávidas, possa se retirar sem
incomodar ninguém, e ir para os aposentos das amas. As amas se sentam à
parte com as crianças de peito, em salas particulares [...]. Os meninos e as
meninas, da puberdade até a época do casamento, servem a mesa. Os mais
jovens, e que não tem força para servir, conservam-se de pé e em silêncio;
comem o que lhes é dado pelos que estão à mesa, e não têm outro momento
para fazer as refeições (MORUS, 1984, p. 239 e 240).
É sugestivo contrastar esta sociedade com a Abadia de Thélème, uma
comunidade laica e fictícia, criada por Rabelais no seu livro Gargantua. Seus membros
eram homens e mulheres que tinham feito o voto de cultivar todas as formas de prazer,
portanto, rejeitando completamente a vida ascética da Idade Média. Vejamos esta
passagem na qual é descrita a forma de organização da vida nesta abadia:
Toda a sua vida era orientada, não por leis, estatutos ou regras, mas de
acordo com a própria vontade e livre-arbítrio. Levantam-se da cama quando
bem lhes parecia; bebiam, comiam, trabalhavam e dormiam quando lhes
vinha o desejo. Ninguém os despertava, ninguém os forçava a comer, nem a
beber, nem a fazer qualquer outra coisa. Assim o estabelecera Gargantua.
Todo o seu sistema se resumia nesta cláusula única: Faze o que quiseres
(RABELAIS, 1986, p. 248).
Por ironia do destino, um problema levantado por Morus na sua Utopia, foi a
causa do seu trágico fim e constitui-se uma questão de difícil resposta mesmo na
atualidade. Pode um homem honesto e ético atuar dentro de um governo, no qual estes
princípios não são considerados e, mesmo assim, alcançar progressos para a causa
pública? Esta questão afligia Morus, que recebera um convite para prestar serviço ao
governo como conselheiro de Henrique VIII. Na Utopia, Morus considera impossível
esta tarefa.
Não há, pois, nenhuma maneira de ser útil ao Estado nessas altas regiões. O
ar que aí se respira corrompe a própria virtude. Os homens que vos cercam,
longe de corrigirem-se com os vossos ensinamentos, vos depravam com seu
contato e pela influência de sua perversão; e, se conservais vossa alma pura
e incorruptível, servireis de manto às suas imoralidades e loucuras. Não há,
pois, esperança de transformar o mal em bem, trilhando o vosso caminho
oblíquo, aplicando os vossos meios indiretos (MORE, 1984, p. 204).
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A própria vida de Morus dá a resposta para esta questão. Na Utopia, o autor
coloca a consciência individual em primeiro plano, sobrepondo-se à autoridade
onipresente do poder e, assim, desaconselha qualquer pessoa a ser conselheira de um
Estado corrupto. Porém, diante das promessas de Henrique VIII de “liberdade de
consciência”, desrespeita seu próprio conselho. Em conseqüência da sua recusa em
reconhecer o casamento de Henrique VIII com Ana Bolena e apesar da tal promessa de
“liberdade de consciência”, Morus foi decapitado em 1535.
A REFORMA OU A ERA DO DESAFIO
O que Erasmo disse a rir, acerca da corrupção da Igreja, disse-o Lutero a sério
pouco tempo depois. O Humanismo minou a fé nas tradições e práticas medievais e,
inevitavelmente, Lutero transformou esse ataque numa nova teologia. No dia 31 de
outubro de 1517 - véspera do dia de todos os santos - Martinho Lutero afixou as suas
noventa e cinco teses sobre as indulgências à porta da Igreja de Wittenberg. Com este
gesto levou o descontentamento à ação e colocou em movimento aquela série de
acontecimentos a que chamamos Reforma. Estava inaugurada a era do desafio.
Contudo, aqui, novamente, a luta da burguesia contra o clero e a nobreza deve
ser compreendida levando-se em consideração as peculiaridades de cada país. Por
exemplo, na Alemanha de Lutero a nobreza e o clero se aliam à burguesia para que a
sua inevitável derrota e expropriação ficasse restrita à Igreja Católica Medieval.
A Reforma não era contra a doutrina da Igreja Católica como um todo, mas
contrária ao poder papal e à supremacia de Roma. Foi uma tentativa de redescoberta
das condições da vida cristã. Os seus protagonistas acreditavam que o papa era o
anticristo e que, portanto, a obediência ao papa punha em risco a salvação de suas
almas.
Observemos os limites da era do desafio, pois apesar dos conflitos militares
gerados pela Reforma, os fundamentos da Igreja Católica e, portanto, da sociedade
feudal, foram somente abalados. A sua total eliminação ficara a cargo da era da vitória,
representada pelo Iluminismo.
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Lutero era fundamentalmente um conservador em tudo o que dizia respeito
à constituição social. Era contrário, por exemplo, à usura, assim como era hostil aos
novos mecanismos de finanças capitaneados pela burguesia e acreditava numa
organização social dominada pela revelação sobrenatural, cujos termos eram
inteiramente medievais.
A Reforma, no entanto, ajudou muito na divulgação do ideário burguês
porque quebrou a supremacia de Roma, imprimindo um sério golpe na autoridade,
abalando a influência da tradição medieval sobre a vida dos homens. Além disso,
contestou as idéias dominantes, dando um profundo ímpeto às concepções da
corrente racionalista.
Na sociedade burguesa em formação é valorizado o esforço individual,
principalmente no que se refere às novas oportunidades econômicas. O homem típico é
o novo mercador, totalmente livre para comercializar; o novo explorador; o aventureiro
de novas idéias e pensamentos. A era da Reforma foi pouco mais que o começo desse
processo, no qual o desgaste da autoridade eclesiástica perdeu espaço para a
emancipação do indivíduo.
No bojo da Reforma surge a primeira proposta pedagógica burguesa mais
profunda e de conjunto. João Amós Coménio é seu autor e a expressa, principalmente,
no livro Didática Magna.
Ao longo desta obra o autor defende a idéia de que a escola seja constituída ao
nível das artes - a denominação da manufaturas na época, herdada do artesanato. Logo,
toda a organização escolar é pensada tendo como parâmetro a produção manufatureira.
Já na apresentação de sua obra, Coménio diz que um dos objetivos de seu
livro é instruir com economia de tempo e fadiga. Na parte onde é descrita a utilidade da
arte didática, diz ele que os professores por desconhecerem um verdadeiro método da
arte de ensinar, perdem tempo e se fadigam utilizando ora um método e ora outro.
O fator tempo é uma preocupação da sociedade burguesa. A pressa é burguesa
e séculos mais tarde surgiria uma máxima criada por um ex-presidente americano, já
num estágio mais avançado do capitalismo, que diz: tempo é dinheiro.
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Quando Coménio fala em economia de fadiga, entende-se que somente devem
ser ensinadas as matérias de comprovada utilidade prática.
Com as grandes transformações ocorridas na sociedade burguesa, as
necessidades humanas se modificaram e as escolas deveriam atender estas
necessidades, e assim também se transformarem. A proposta educacional de Coménio é
perfeitamente coerente com a sociedade burguesa. A nossa análise deve sempre se
pautar no homem real, aquele que se fez historicamente.
Quando falamos que a preocupação com o tempo é uma preocupação da
sociedade burguesa, inevitavelmente, vem à nossa mente a imagem do instrumento
responsável por marcar o tempo e que passa a ser o próprio símbolo desta sociedade: o
relógio. Veja esta passagem da obra de Coménio:
Com efeito, assim como o grande mundo é parecido com um enorme relógio,
de tal modo fabricado segundo as regras da arte, com muitíssimas rodas e
maquinismos que, para produzir movimentos contínuos e perfeitamente
ordenados, uma parte os comunica à outra, através de todo o relógio, assim
também o homem (COMÉNIO, 1985, p. 111).
E ainda esta outra passagem a respeito do mesmo tema:
Mas que força oculta anima o relógio? Nenhuma outra senão a força da ordem
que manifestadamente reina em todas as suas partes, ou seja, a força
proveniente da disposição de todas as suas peças que concorrem com seu
número, as suas dimensões e a sua ordem para tornar aquela disposição tal que
cada peça tem um papel determinado e meios para desempenhá-lo, ou seja, a
proporção exata de cada peça com as outras, a harmonia de cada uma com as
que lhe estão em relação e leis mútuas para comunicar reciprocamente a força
umas às outras (COMÉNIO, 1985 , p.185).
Fica, evidente, a vinculação da obra de Coménio com o capitalismo em sua
fase manufatureira e, por conseguinte, a defesa da divisão do trabalho.
Quais são os valores importantes para a formação da sociedade burguesa?
Vamos enfatizar três destes valores e ilustrá-los com passagens da obra de Coménio,
reforçando a vinculação do seu pensamento com o ideário burguês. Primeiro, a
valorização da disciplina, e por conseqüência, o afastamento do ócio.
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Importa, portanto, com todo o cuidado, manter longe da juventude todas as
ocasiões de corrupção, como são as más companhias, as conversas grosseiras,
as leituras frívolas e fúteis (pois os exemplos de vícios que se infiltram, quer
pelos ouvidos, quer pelos olhos, são venenos para os espíritos); e, finalmente,
a ociosidade, para que as crianças, estando sem fazer nada, não aprendam a
fazer mal ou se deixam invadir pelo torpor da alma. Será bom, portanto,
mantê-los sempre ocupados, quer em coisas sérias, quer em divertimentos. O
essencial é que nunca se deixem entregues à ociosidade (COMÉNIO, 1985, p.
350).
Segundo, a valorização do trabalho, ao contrário do que ocorria na Idade
Medieval na qual era função exclusiva dos servos da gleba. “Os jovens adquirirão a
perseverança no trabalho, se fizerem sempre qualquer coisa, ou a sério ou como
divertimento” (COMÉNIO, 1985, p. 347). Terceiro, a importância dada à competição
como fator essencial na sociedade burguesa.
[...] se louvarem os alunos mais diligentes (distribuindo mesmo, pelas
crianças, peras, maçãs, nozes, doces, etc.) [...] de tal maneira que todas as
coisas, mesmo as mais sérias, sejam apresentadas num tom familiar e
agradável, isto é, sob a forma de conversas e chamadas, que os alunos, em
competição, procurem adivinhar (COMÉNIO, 1985, p. 234-236).
A obra de Coménio é marcada por dois extremos: o misticismo, o homem
ligado à religião e, por conseguinte, ao período medieval, e o realismo, ou seja, o
homem vinculado às transformações da sua época. Como entender esta contradição?
Ora, a proposta pedagógica de Coménio é marcada pela conciliação. A
classe burguesa não tinha ainda desenvolvido suficientemente suas forças produtivas
a ponto de adotar outra postura. Sua obra reflete o espírito de uma época em que se
articulam os primeiros passos do Iluminismo.
O ILUMINISMO OU A ERA DA VITÓRIA
Os pensadores iluministas não precisam de nenhum tipo de “máscara”, ao
contrário dos humanistas. Agora, devido ao poder material adquirido pela burguesia, as
críticas poderiam ser abertas e diretas. Não era necessária a utilização de metáforas ou
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verdades veladas. Chegou a era da vitória da burguesia. Porém, com exceção de
Condorcet, todos os outros iluministas franceses morreram cerca de dez anos antes da
Revolução de 1789.
A luz foi assumida como símbolo pelo movimento Iluminista e
revolucionário, por ser a luz da razão humana a responsável por espantar as trevas que
tinham pesado sobre os homens dos séculos anteriores.
Voltaire foi o mais emblemático pensador iluminista. Ele não fazia nenhum
tipo de concessão ao passado medieval, ao contrário, por exemplo, de Rousseau,
defensor da idéia que a ciência não havia contribuído para aprimorar os costumes dos
homens.
Voltaire era um ferrenho defensor da razão e da ciência. Ficou famosa a carta
que ele enviou a Rousseau, comentando o seu livro Discurso Sobre a Origem e os
Fundamentos da Desigualdade Entre os Homens.
[...] não se pode pintar em cores mais fortes os horrores da sociedade
humana, da qual nossa ignorância e fraqueza esperam tantas consolações.
Jamais se empregou tanto engenho em querer tornar-nos animais; dá
vontade de andar de quatro patas quando se lê vosso livro. Entretanto,
havendo perdido esse hábito há mais de sessenta anos, sinto infelizmente
que me é impossível retomá-lo, e deixo essa postura natural a quem dela
seja mais digno que vós e eu (ROUSSEAU, 1989, p. 165).
Na obra de Voltaire Cândido ou o otimismo, o preceptor de Cândido,
Pangloss, é a personidificação do filósofo escolástico, cujo saber é infecundo para a
sociedade burguesa. “Cândido, educado de maneira a não julgar coisa alguma por si,
ficou espantado do que ouvia” (VOLTAIRE, 1977, p.117).
Quanto à atuação do seu preceptor é ilustrativo o seguinte fragmento: “[...] o
filósofo Pangloss, provando que a enseada de Lisboa havia sido expressamente feita
para que aquele anabatista nela se afogasse. Enquanto assim a priori o demonstrava, o
navio partiu-se e tudo pereceu” (VOLTAIRE, 1977, p. 41).
A valorização da razão e da ciência dos iluministas se deve ao fato da
burguesia ser a maior beneficiária com o desenvolvimento da ciência baseada na
observação e na experimentação.
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O domínio do conhecimento científico com vistas ao controle da natureza,
através da invenção de instrumentos, aparelhos de navegação, armas de fogo etc.,
possibilitou à burguesia a ampliação dos seus negócios.
Outra passagem de Voltaire é ilustrativa desta preocupação do conhecimento
voltado para as coisas da vida prática e de comprovada utilidade: “[...] e como fosse um
grande gênio compreendeu, pelo que de Cândido contaram, que se tratava de um jovem
metafísico por demais ignorante das coisas deste mundo” (VOLTAIRE, 1977, p. 31).
O Iluminismo emprega a arma da crítica racionalista para declarar que a
liberdade é um bem e as restrições que se impunham são, em sua natureza intrínseca,
um mal. É uma sociedade que rejeita as doutrinas do passado porque tem novas
necessidades que essas doutrinas não consideram.
Por exemplo, o trabalho e não o ócio é valorizado na sociedade burguesa. Na
conclusão, notamos: “Trabalhemos sem maiores discussões disse Martinho, é a única
maneira de tornar a vida suportável” (VOLTAIRE, 1977, p.136).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Procurei demonstrar que o processo de transição da sociedade feudal para a
sociedade burguesa passou por três diferentes momentos: Humanismo, Reforma e
Iluminismo.
Em cada um destes momentos, observamos o acirramento da luta entre a
burguesia - classe social em ascensão, que aos poucos foi se enriquecendo devido à
intensificação do comércio – e as classes sociais dominantes no período feudal: a
nobreza e o clero. A luta tornava-se mais acirrada à medida que a burguesia dispunha
de uma base material mais consolidada.
Por isso denominei estes três períodos, respectivamente, de a era do convite, a
era do desafio e a era da vitória. Logicamente, sempre atento às peculiaridades locais
onde esta luta de classes se desenvolvia.
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Percebemos, também, que cada época histórica produz um ideal de homem
que lhe seja compatível. Este homem deve ser educado para responder às necessidades
sociais do seu tempo.
A sociedade e a educação são fenômenos interligados e que não podem,
jamais, ser analisados separadamente. No decorrer da história humana, observamos que
cada formação social correspondia a um ideal de homem.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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tudo a todos. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985.
ERASMO e MORE, Thomas. Elogio da loucura e A Utopia. 3. ed. Abril Cultural,
1984. (Coleção Os Pensadores)
ERASMO. De Pueris (Dos Meninos); a civilidade pueril. São Paulo: Escala, s/d.
(Coleção Grandes Obras do Pensamento Universal, n. 22).
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Companhia das Letras, 1995.
MARX, Karl. Contribuição para a crítica da economia política. Lisboa: Estampa,
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ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da
desigualdade entre os homens. São Paulo: Ática, 1989.
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VOLTAIRE. Cândido ou o Otimismo. São Paulo: Ediouro, 1977. (Coleção
Universidade de Bolso).
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MÍDIA, ENUNCIAÇÃO E IDEOLOGIA
Rosemere de Almeida Aguero (UEMS)20
RESUMO: Trato, neste ensaio, das relações entre mídia e enunciação buscando apontar
mecanismos ideológicos expressos em reportagens veiculadas pela mídia televisiva de
MS e pela Rede Globo de Televisão, cuja temática trata da infância em situação de
exploração do trabalho, em MS. Esta abordagem, fundamentada nos estudos
enunciativos, na perspectiva de Bakhtin, considera o discurso televisivo como uma
expressão do exercício de poder na sociedade, determinado pela situação social mais
imediata que influencia ideologicamente na construção dos sentidos pelos enunciadores
e, consequentemente, na formação da opinião pública.
PALAVRAS-CHAVE: mídia, enunciação, ideologia.
ABSTRACT: In this essay, I mention the relations between media and enunciation, seeking to
identify ideological mechanisms which are featured on television reports in the state of Mato
Grosso do Sul, Brazil, and also in Globo Television Network, about the exploitation of child
labor in the state mentioned. This approach, based on enunciative studies, on Bakhtin’s view,
considers the television discourse an expression of the exercise of power in society, defined by
the most imminent social situation which ideologically influences on the construction of
meanings by the speakers and, consequently, in the formation of public opinion.
KEYWORDS: media, enunciation, ideology.
20
Docente do Curso de Letras da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), Mestre em
Letras pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e doutoranda em Letras pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
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Bem poderíamos [...] admirar o homem pelo fato
de ser ele um poderoso gênio da arquitetura: ele
conseguiu erigir uma catedral conceitual
infinitamente complicada sobre fundações
movediças [...]. Enquanto gênio da arquitetura, o
homem supera em muito a abelha: esta constrói
com a cera que recolhe da natureza, o homem o
faz com a matéria bem mais frágil dos conceitos
que é obrigado a fabricar com seus próprios
meios (NIETZSCHE, 2001, p. 14).
PRELIMINARES
A mídia tem sido considerada um lugar privilegiado de circulação de sentidos em nossa
sociedade, assumindo um papel indiscutível na construção de valores culturais, realizados nas
instâncias da produção da linguagem e materializados nas formas da língua.
Considerando que, na produção discursiva midiática, lugares e posições enunciativas
entrecruzam-se e dialogam é importante compreender em que medida a mídia interfere na
articulação e imposição dos valores sociais, influenciando na construção da opinião pública por
meio dos enunciados que recorta e veicula.
Este ensaio insere-se no anseio de ampliar esse debate. A partir de uma abordagem
enunciativa, na perspectiva de Bakhtin, analiso dez reportagens veiculadas pela TV Morena e
pela Rede Globo de Televisão, cuja temática é a infância em situação de exploração do trabalho,
gravadas no Pantanal de Corumbá e demais regiões do Estado de MS, buscando determinar
marcas históricas, temas, significações e valores apreciativos presentes nos enunciados das
entrevistas. Considero a hipótese de que o todo enunciativo, presente nos enunciados, é
constituído por marcas de natureza histórico-ideológica que expressam relações de forças,
dispersas na sociedade. Nesse sentido, busco apontar essas marcas, uma vez que influenciam na
construção da opinião pública.
As matérias, aqui analisadas, foram exibidas na seguinte ordem: Crianças Catadoras
de Iscas no Pantanal Sul-Mato-Grossense; Crianças que Catavam Iscas no Pantanal Vão à
Escola Pela Primeira Vez; Crianças Vendedoras de Jornal no Trânsito de Campo Grande –
MS; Crianças Catando Restos no Lixão, em Campo Grande – MS; Imagens de Crianças em
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Várias Situações de Exploração de Trabalho Infantil e Reportagem de Convenção Contra o
Trabalho Infantil, em Campo Grande – MS; Adolescentes Mirins e Trabalho Infantil nas Feiras
Livres; Crianças Vendendo Jornais no Trânsito II; Exploração do Trabalho Infantil nas
Carvoarias de MS; Exploração do Trabalho Infantil nas Carvoarias II e Exploração do
Trabalho Infantil nas Carvoarias III. Os títulos de cada matéria foram atribuídos, para efeito de
análise, de acordo com os temas de que tratavam.
De todas as reportagens gravadas – cedidas pela TV Morena para este estudo– apenas
a primeira encontra-se datada, com registro de maio de 2004. A primeira e a segunda tratam de
crianças que, no coração do Pantanal de Mato Grosso do Sul, desenvolvem trabalhos de
altíssima periculosidade, imersas nas águas pantaneiras, à noite, pescando pequenos peixes a
serem vendidos como iscas. A exibição dessas matérias causou indignação e mobilizou a
opinião pública, dando origem a projetos para a integração das crianças e suas famílias e a uma
série de outras reportagens, com a mesma temática, que discutiam o trabalho infantil em MS.
O percurso deste ensaio inicia-se com a apresentação das reportagens que constituem
o corpus de pesquisa. Segue-se uma parte teórica com alguns conceitos bakhtinianos que
respaldam o estudo. Em seguida, propõe-se um dispositivo de análise, seguido da análise
propriamente dita. Por fim, apresenta-se conclusão do estudo.
1. BAKHTIN E O FENÔMENO DA ENUNCIAÇÃO
Falar sobre a enunciação em Bakhtin não é tarefa fácil. Implica integrá-lo junto aos
linguistas que desenvolvem estudos na área da Linguística da Enunciação, admitindo que o
autor formula teorias em consonância com estudiosos desse campo (FLORES E TEIXEIRA,
2009, p. 147).
Ao estudar a questão do sentido, na enunciação, e apontar distinções entre
significação, tema e apreciação, em Marxismo e Filosofia da Linguagem (2004), Bakhtin parte
de rejeições que faz às teses do Objetivismo Abstrato e do Subjetivismo Idealista, apontando o
proton pseudos de cada concepção. Superando as perspectivas dessas correntes filosóficolinguísticas, Bakhtin inaugura o que denomina de método sociológico objetivo (BAKHTIN,
2004, p. 121), considerando a enunciação como um fenômeno de natureza sócio-ideológica,
constituído no contexto social (Idem, p. 123).
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Uma vez que a enunciação é produto da interação verbal e do momento histórico, seu
significado é sempre provisório. Desse modo, o enunciado é sempre “[...] individual e não
reiterável” (Idem, p. 128), como a própria enunciação. Sua investigação agrega duas dimensões
distintas, porém, interrelacionadas. De um lado, há a dimensão de natureza lingüística e
sistêmica e de outro, a investigação da palavra “[...] nas condições de uma enunciação concreta“
(Idem, p. 131). Essas duas dimensões relacionam-se ao que Bakhtin denomina de tema e
significação.
Ao universo da significação pertence tudo que é reiterável e repetível no sistema da
língua. Já o tema é “[...] único [...] individual e não reiterável” (Idem, p. 128). Seu sentido
depende da situação histórica em que se apresenta, entrando em sua composição, além das
formas lingüísticas, uma série de elementos de natureza extra-linguística, tais como os gestos, as
expressões faciais e, principalmente, a entonação que acompanha a enunciação. Ante a análise
de qualquer enunciado, portanto, estarão presentes sentidos cristalizados ideologicamente, ao
lado do tema sempre novo, passível de sofrer deslizes e reavaliações.
A emergência de novos sentidos traz à cena a apreciação que acompanha toda
enunciação. O papel da apreciação é importante na língua, pois é responsável pelas “[...]
mudanças de significação” (Idem, p. 134) ou pela reavaliação dos seus sentidos.
As enunciações são articuladas pela ideologia, que é de caráter social, e se constrói em
todos os campos de interação. Está presente em várias esferas da vida humana, que constroem
signos ideológicos para representá-la. O signo ideológico comporta crenças, valores e modos de
interpretar a realidade. Admite, por isso, uma dupla dimensão que exibe, de um lado, uma
significação autorizada, que o identifica com determinado grupo, e, de outro, uma necessidade
constante de ressignificação construída nas relações sociais. A ideologia, nesse sentido, pode ser
caracterizada como a regulação das relações entre os homens, transformada por meio da
interação social.
2. DISPOSITIVO DE ANÁLISE
Ao inaugurar o método sociológico, no estudo da linguagem, Bakhtin integra a
dimensão da forma lingüística, concreta na língua, aos contextos histórico-sociais e aos acentos
apreciativos, visualizados conjuntamente, sob o olhar analítico da ideologia e da linguagem.
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Com base nessa concepção, a análise, neste estudo, parte do todo enunciativo,
considerado como o conjunto de enunciados efetivamente produzidos, aqui compreendidos
como de natureza individual e não reiterável, produto de situações históricas concretas e de
relações ideológicas. Os enunciados são analisados buscando determinar as significações
expressas que definem o sentido do todo. Na sequência, busca-se identificar os temas
verificando, pelo olhar da linguagem e da ideologia, a existência ou não de marcas provenientes
de um quadro social de relações de força. Os sujeitos das enunciações são considerados a partir
das posições que ocupam na sociedade, assim como dos âmbitos institucionais de onde
enunciam. Por fim, são verificados os valores apreciativos expressos nas enunciações, visando
observar a incidência de mudanças de significações nos signos, decorrentes de deslocamentos
de sentidos. Tal procedimento é feito de forma comparativa, considerando-se a enunciação
proferida e a sua forma linguística habitual.
A análise incide sobre recortes, efetuados ao corpus, compreendidos como fragmentos
de situações enunciativas que resultam de processos de interação social.
No foco analítico das reportagens, que se seguem, a enunciação dos sujeitos é
observada como um fenômeno intermediado por complexas relações sociais, em que estão
presentes a história, a ideologia e as relações de força que dão origem aos enunciados.
3. MÍDIA, ENUNCIAÇÃO E IDEOLOGIA
A partir da teoria articulada, consideremos as enunciações a seguir, recortadas do
corpus das reportagens:
(1) Com o salário o menino compra o que precisa e ajuda a mãe.
(Fragmento da 3ª reportagem).
(2) [...] Crianças com a marca da fuligem, crianças carregando toneladas
nas costas [...], crianças recolhendo restos no lixão municipal, para ajudar
os pais no sustento.(Fragmento da 4ª reportagem)
(3) Apesar dos programas e de incentivos para manter as crianças na
escola, muitas saem de casa, pela manhã, para ajudar na renda familiar.
(Fragmento da 4ª reportagem)
(4) [...] Leandro, de 8 anos, fica o tempo todo embaixo de muita poeira,
para ajudar o pai no transporte de carvão! (Fragmento da 8ª reportagem)
(5) – É por causa que o dinheiro não veio. Eu tenho que ajudar o pai!
(Fragmento da 10ª reportagem)
(6) Outras crianças passam a metade do dia ajudando os pais, mas
contrariando o objetivo do Programa, criado para acabar com o trabalho
infantil! (Fragmento da 9ª reportagem)
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Observando-se os enunciados recortados, pode-se verificar um conjunto
recorrente de elementos nas proposições de (1) a (6), presentes nas formulações
grifadas. Os enunciados destacados possuem marcas que os ancoram diretamente na
situação histórica da enunciação: a justificativa do trabalho infantil como necessário à
sobrevivência das famílias pobres, de crianças que habitam o Estado de MS, na primeira
metade do século XXI. O tempo no enunciado, construído pela mídia televisiva, é o
presente e refere-se ao momento em que ocorrem as entrevistas. O espaço é o Estado de
MS. Os temas referem-se ao auxílio que as crianças prestam aos pais ou às famílias,
mediante o trabalho que desenvolvem em contextos diferentes. Em (1) o contexto
histórico é o trânsito de Campo Grande, MS, onde o menino ganha dinheiro com a
venda de jornais. Em (2) e (3), o contexto é o Lixão Municipal, também em Campo
Grande. Em (4), (5) e (6) o contexto é o de uma carvoaria, localizada em Ribas do Rio
Pardo, MS.
Todos os enunciados, com exceção do (5), foram construídos pela mídia televisiva em
3ª pessoa do singular. Essa opção discursiva é utilizada quando se pretende conseguir um efeito
de distanciamento da cena enunciativa, como se observa nas sequências de (1) a (6). É
interessante notar, entretanto, que, apesar de as enunciações terem sido construídas em terceira
pessoa, os tempos verbais determinantes são de presente – conforme mostram os sintagmas
verbais (V1), (V2), (V3), (V4) e (V5) compra, ajuda, saem, fica, passam - o que assinala um
efeito enunciativo de concomitância em relação ao acontecimento das entrevistas. A escolha do
presente verbal ganha, nesse aspecto, um valor dêitico, relacionando-se ao imediatismo que se
pretende dar à informação divulgada e ao efeito de
atualidade que se pretende criar,
característico do trabalho da televisão.
As escolhas verbais assinalam, também, um efeito de repetição, dando idéia de
“hábito” e “frequência” às ações realizadas. Dessa forma, usando essa estratégia enunciativa, a
mídia aproxima o telespectador ao momento de referência das entrevistas, fazendo com que este
se sinta parte da cena, informando, ao mesmo tempo, aos interlocutores, que essas ações são
rotineiras no cotidiano dos sujeitos entrevistados.
Outro aspecto importante é que a necessidade de transportar o fato da realidade
imediata para a realidade midiatizada faz com que os discursos sejam recortados, passando por
intervenções técnicas, dando margem à parcialidade na construção dos sentidos históricos. A
informação é construída de modo a se mostrar bastante nova, para impressionar o grande
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público, proveniente de diferentes classes sociais e, ao mesmo tempo, suficientemente velha,
cristalizada, para que esse mesmo público possa reconhecê-la, assimilá-la e dominá-la.
Verifica-se, com algumas variações quanto ao modo de enunciação, que as
formulações manifestam a repetibilidade de certos elementos linguísticos, a saber:
(1)
(2)
(3)
(4)
(5)
(6)
[...] precisa ajudar a mãe. (3ª reportagem)
[...] para ajudar os pais no sustento. (4ª reportagem)
[...] para ajudar na renda familiar. (5ª reportagem)
[...] para ajudar o pai no transporte do carvão! (8ª reportagem)
[...] Eu tenho que ajudar o pai! (10ª reportagem)
[...] passam a metade do dia ajudando os pais [...].(9ª reportagem)
Embora produzidas sob condições históricas diversas, todas as formulações de (1) a
(6) estão vinculadas a um mesmo sentido. Podem-se observar as marcas ideológicas de um
discurso institucionalizado, característico da primeira metade do século XX. Os sujeitos,
afetados pela ideologia, retomam sentidos construídos historicamente, aqui identificados com a
visão ideológica do trabalho dignificante, motivado pela necessidade de ajudar os pais ou a
família, mitificado pela figura da criança como pequeno herói. É o que acontece nas sucessivas
repetições do sintagma verbal (V6) ajudar/ajudando, que quase assumem o estatuto da
literalidade, nos processos enunciativos vistos de (1) a (6), não fosse o fato de serem produtos
de momentos históricos diferentes.
Estes são construídos com a finalidade de convencer o interlocutor de que são a
própria voz da legitimidade e não produto da subjetividade de alguém. O repórter
(enunciador), embora interaja numa mesma circunstância de tempo e espaço com os
entrevistados, não lhes dá voz (com exceção de (5), em que se observa o discurso
direto) e, ao mesmo tempo, não se coloca como responsável pelas enunciações, pois o
“eu” não aparece. Bakhtin denomina tais enunciados de discurso citado (discurso de
outrem). Para o filósofo, o discurso citado é “[...] o discurso no discurso, a enunciação
na enunciação, mas é ao mesmo tempo, um discurso sobre o discurso, uma enunciação
sobre a enunciação.” (BAKHTIN, 2004, p. 144). Note-se que, nesses enunciados, ocorre
uma dupla operação: de um lado tem-se uma reconstrução porque se trata de tomar um
enunciado proferido em outra situação histórica, para reintegrá-lo a outro tipo de
enunciação; de outro, há um processo de desconstrução porque, partindo de um
enunciado já proferido, nele opera-se uma reificação que serve para comprovar a
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autenticidade do discurso. Assim, o sentido que se obtém é o de um enunciado de prova
(“Eu sei o que estou afirmando”), tanto em relação ao outro como a si mesmo.
Já na proposição (5), recortada da 10ª reportagem, a presença do pronome pessoal
(dêitico D1) “eu”, cria um efeito discursivo de proximidade. Maingueneau (2005, p. 108),
denomina essa operação linguística de embreagem; processo pelo qual o enunciado se ancora
em sua situação de enunciação. Ao dar voz à criança, a mídia, além de valorizar a presença do
narrador, instaura a presença do telespectador (D2 “tu”). Estabelece-se, portanto, uma relação
(D3) “eu-tu”. O efeito que se obtém com esse discurso (direto) é que o telespectador parece
estar diante do próprio entrevistado, no momento da entrevista, irmanando-se com ele no
mesmo tempo e espaço da enunciação.
Maingueneau (Idem, p. 140-1), adverte, entretanto, que mesmo quando o discurso
direto relata falas consideradas como realmente proferidas, trata-se apenas de encenação,
visando à criação de um efeito de autenticidade. Acrescente-se a isso o fato de que, nos estúdios
midiáticos, esses discursos sofrem cortes e diferentes montagens e tem-se configurado o
processo de encenação, em que a enunciação é reconstruída pelo sujeito que a remonta, por
meio de mecanismos que lhe dão um enfoque pessoal. A opção pelo discurso direto proporciona
um efeito de autenticidade ao enunciado, fazendo com que este adquira o estatuto da
objetividade, da seriedade e da espontaneidade. Esta também é uma estratégia midiática para
manifestar sua adesão ao que está sendo enunciado, no sentido de que as palavras do
entrevistado referendem as suas próprias palavras, aqui compreendidas como oriundas da voz da
autoridade (MAINGUENEAU, 2005, p. 142).
Pelo viés ideológico, podem-se também analisar outras proposições presentes nos
dados:
(7) Então é um debate que tem que se fazer dentro da sociedade, né, para
que a gente possa entender que o lugar da criança é na escola. (Fragmento
da 4ª reportagem)
(8) E o prejuízo para o Brasil, pois elas trabalham e deveriam estar na
escola! (Fragmento da 5ª reportagem)
Em (8), temos uma variação da enunciação proferida em (7), aqui tomada como ponto
de referência em relação ao outro enunciado. São enunciações que trazem uma forte conotação
ideológica, a partir da retomada de um discurso que atesta a presença de uma memória do
passado, de natureza social, e que reivindica “toda criança na escola”. O sujeito, ao enunciar,
resgata valores já estabelecidos na sociedade brasileira, compartilhados no solo comum das
comunidades de fala, por meio dos discursos e valores difundidos pelos meios de comunicação
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de massa. Em (7) a opção pelo discurso direto se repete, assim como a presença do elemento
dêitico (D4) a gente, que adiciona efeitos de autenticidade e proximidade ao enunciado. O tema
ainda é o trabalho infantil no Lixão de Campo Grande, agora associado ao discurso da educação
para todos, também de natureza fortemente ideológica. Em (8) a locução verbal (V7) deveriam
estar indica modalização, que associada à flexão verbal no futuro do pretérito ganha sentido de
hipótese, incerteza, probabilidade de não concretização das crianças terem acesso à educação. A
escolha do futuro do pretérito revela também um não comprometimento do falante, (senador
Cristóvão Buarque), uma não responsabilidade em relação à temática tratada (a culpa das
crianças não frequentarem a escola é do trabalho, e não do poder público que não cria condições
ao acesso). O tema do trabalho infantil se reitera e se associa ao da educação, como elemento
regenerador da infância pobre.
Analisando a questão dos sujeitos, a partir da perspectiva dos lugares sociais que
ocupam, verifica-se que eles enunciam segundo uma ordem estabelecida, que parte de sujeitos
socialmente autorizados pela ideologia dominante, conforme o que se pode verificar a seguir:
(9) [...] mas temos que buscar alternativas e vamos ter que encontrar uma
fórmula, nem que seja uma escola flutuante para que possa atender essas
crianças... que elas tenham acesso à educação! (Coordenadora do PETI – 1ª
reportagem)
(10) [...] Há criançinhas em situação de trabalho Escravo... Não poderá
haver decisões de emergência! (Arnaldo Jabor, Comentarista da Rede Globo
de Televisão – 1ª reportagem)
(11) [...] A professora, Cristiane Velasco, diz: “É gratificante, no final,
quando elas aprendem uma letrinha! “Diz [dizem]: “Professora, aprendi!”
(Professora – 2ª reportagem)
(12) Brasileiros que não tinham acesso à educação e tudo para eles é
novidade! (Repórter da TV Morena – 2ª reportagem)
(13) - São cidadãos brasileiros, que não eram conhecidos como tal! (Chefe
do Núcleo de Educação de Corumbá – 2ª reportagem)
(14) Esse debate tem que ser feito para que a criança possa ter direito a
freqüentar a escola, direito a ter sua infância e não ter esse trabalho infantil!
Consideramos ele penoso e, na verdade não contribui para a formação da
criança! (Representante do poder público – 3ª reportagem)
(15) [...] A DRT vem fazendo essa fiscalização, mas, veja bem, é
complicada essa questão do Trabalho Infantil. Muitas vezes a própria família
não aceita que ela... que a criança não trabalhe... Então é um debate que tem
que se fazer, dentro da sociedade, né, para que a gente possa entender que o
lugar da criança é na escola! (Chefe da DRT – 4ª reportagem)
(16) O Trabalho Infantil é uma calamidade pública! Enquanto o trabalho
infantil for apenas um problema... a gente vai devagar... Aí, diz “tá
melhorando...” Leva 10 anos! Já pensou nesse sofrimento há 10 anos, para
essas crianças que trabalham? E o prejuízo para o Brasil, pois elas trabalham
e deveriam estar na escola?! (Senador Cristóvão Buarque – 5ª reportagem)
(17) A luta pelo combate ao Trabalho Infantil tem uma tônica e a
consciência de todos! Enquanto não tiver quem emprega uma criança...
enquanto tiver aquele que emprega uma criança, nós não teremos
combatido a totalidade do Trabalho Infantil! (Representante da sociedade
organizada – 7ª reportagem)
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(18) As crianças que trabalham... elas têm um problema físico e emocional,
principalmente, além do que elas deixam de freqüentar a escola por cansaço
físico, por falta de cumprir os seus deveres. No físico elas sentem dores de
cabeça e depressão...(Chefe do DRT – 7ª reportagem)
(19) Mas a exploração ao Trabalho Infantil está com os dias contados!
Quem garante é a OIT – Organização Internacional do Trabalho – e a
UNICEF. (Repórter da TV Morena – 8ª reportagem)
(20) Reclama o prefeito : “Até agora só recebeu 20 mil reais, do Governo
Federal!” (Prefeito de Ribas do Rio Pardo – MS, 10ª reportagem)
Observa-se, nesses enunciados, a existência de um conjunto de posições dos sujeitos,
expressas em diferentes modos de enunciação, que estão condicionados a discursos de doutrina,
uma vez que reúnem enunciações legitimadas ideologicamente. Esses sujeitos, aqui
interpretados sob a condição de socialmente autorizados, articulam seus enunciados a partir de
uma posição social que lhes confere o direito de poder dizer, como representantes legítimos do
poder público e da sociedade organizada. Suas enunciações ganham um significado a partir do
lugar ou do status que ocupam na sociedade. Uma vez que falam de um lugar institucional, seus
enunciados podem ser inscritos em vários campos ideológicos, tais como o pedagógico,
presentes nas proposições (11) e (13); político em (9), (14), (15), (16), (17), (18) e (20), e
jornalístico em (10), (12) e(19).
Observa-se, ainda, nas enunciações (9), (12), (13), (14), (15) e (16) a reinterpretação
de enunciados de origem, que gravitam em torno do mesmo tema: o direito constitucional do
cidadão brasileiro à educação, emergentes nas proposições grifadas acesso à educação e na
escola. A mídia, em (12), aqui identificada pelo repórter-locutor, ao reinterpretar enunciados de
diferentes fontes, apaga as marcas da fala de sua fonte, reconstruindo-a de modo a criar a sua
própria enunciação e um novo sentido (para os brasileiros que não têm acesso à educação, tudo
é novidade). Note-se que o enunciado é construído mediante justaposição, o que caracteriza uma
estratégia linguística para dar legitimidade e credibilidade à mídia, na posição de enunciador
autorizado.
Reconhece-se, ainda, nesses discursos, a existência de relações de forças, no contexto
bakhtiniano da luta de classes, de natureza hierarquizada, e que se sustenta no poder dos
diferentes lugares sociais ocupados por esses enunciadores. Entende-se que esses locutores se
expressam não da maneira como lhes agrada, mas condicionados ao lugar que ocupam
socialmente. Esse fato faz com que estruturem seus discursos por meio de marcas enunciativas,
tais como de pessoa e de verbos, que organizam suas formulações. Como exemplo, tem-se as
marcas temporais, em que a repetição de um mesmo verbo, nos sintagmas verbais (V8, V9 e
V10) temos, que elas tenham, vamos ter que, na 1ª reportagem; (V11 e V12) são, eram, na 2ª
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reportagem; (V13,V14 e V15) é, for, vai, na 5ª reportagem ( apenas para citar algumas) produz
um segmento de tempo que liga presente, passado e futuro, em uma mesma enunciação,
apagando quaisquer sinais de interrupções. Outra estratégia linguística é a organização de todo
um ritual de enunciação, produzido por meio de um tempo ligado ao presente (como em V16 e
V17) está, garante, na 8ª reportagem, cuja finalidade é apagar toda a impressão de
descontinuidade da ação. Caso isso aconteça, a exemplo de (21), recortado a seguir, a ação será
recuperada por meio de um efeito de ficção criado a partir da reconstituição. Esse efeito irá
resgatar, analogicamente, um acontecimento passado (Em maio de 2004 você viu [...]), com a
finalidade de situar o telespectador na sequência dos acontecimentos:
(21) Em maio de 2004 você viu aqui, no “Jornal da Globo”, crianças no
Pantanal que viviam a catar iscas, arriscando-se na água de um rio e nem
sabiam o que era uma escola! (William Waac – jornalista da Rede Globo de
Televisão – 2ª reportagem)
Os outros enunciadores das proposições (11) e (13) falam a partir do discurso da
educação. São enunciações legitimadas pertencentes à professora e à Chefe do Núcleo de
Educação, enunciadoras que estão autorizadas socialmente a partir do conhecimento científico
que lhes permite manifestar-se no aparelho midiático. Entretanto, é preciso considerar que, na
ordem social, há regras enunciativas (controladas) que restringem e orientam as possibilidades
de enunciação. Assim, não se enuncia a partir do que se quer dizer, mas do que se pode dizer,
no contexto de relações de força definidas.
Tem-se, ainda, a voz do comentarista-enunciador da Rede Globo, Arnaldo Jabor, em
(10) que fala a partir do lugar de locutor jornalístico, característica que lhe confere o poder de
dizer, uma vez que o espaço midiático televisivo é franqueado a poucos, mas usufrui de uma
enorme capacidade de penetração na vida pública, devido à massificação das tecnologias de
comunicação. Somam-se a esses enunciadores, os discursos dos repórteres da TV Morena, nas
proposições (9) e (12) que falam também do lugar de representantes da mídia.
A enunciação (22), recortada a seguir, em seu funcionamento oral, comum, pode ser
compreendida como produto de um indivíduo que se apropria de enunciados institucionalizados,
reinterpretando-os a sua maneira, de modo a perpetuar antigas tradições ideológicas do aparelho
administrativo estatal. Embora inscreva-se em um campo enunciativo distinto, produto de um
momento histórico diferente, perpassa a mesma fonte ideológica comum, que são os enunciados
da classe dominante brasileira, dos séculos XIX e XX. A enunciação se assenta sobre marcas
temáticas que, delineadas historicamente no período ditatorial brasileiro, (a partir do
autoritarismo e da perseguição a toda forma de alteridade), e que tiveram a sua origem na
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República de 1889, perpetuaram políticas desenvolvidas com o objetivo de domesticar as
individualidades e garantir a obediência de sujeitos mantidos sob o rígido controle dos Regimes.
Os dados seguintes demonstram essas formas de dominação:
(22) O melhor remédio, hoje em dia, é estar no trabalho! Melhor do que na
rua! O que a gente vê na rua! (Feirante Agnaldo - Fragmento da 6ª
reportagem)
Em (22), tem-se a edição do discurso de um sujeito que assimilou a ideologia
remanescente dos discursos governamentais da Ditadura Vargas, baseada na política de
disciplinamento, então vigente, que proclamava a educação para o trabalho, via
institucionalização estatal e visando à criança pobre, como meta do Estado. Pregava-se, assim, a
ideologia da preservação da ordem nacional a partir da integração da criança pelo trabalho
disciplinado, desenvolvido em escolas para menores abandonados e delinquentes, como forma
de resgate e elemento regenerador da infância pobre. Os sintagmas nominais (S1 e S2)
remédio/trabalho, em sua forma lingüística, são determinantes para atestar a apropriação da
ideologia do discurso dominante pelo enunciador. O acento apreciativo presente em (S1),
avaliado no contexto histórico contemporâneo, desloca o sentido do sintagma que em sua
interpretação linguística habitual tem o sentido de medicamento e que é reavaliado com o
sentido de solução. O tema da enunciação é a educação pelo trabalho e o contexto é o de uma
das feiras livres do município de campo Grande, MS.
Outro dado importante é que essas reportagens, por estarem circunscritas a práticas
orais de enunciação, privilegiam o uso de estratégias enunciativas manifestas por meio da
utilização de formas curtas, de sintaxe enxuta; um falar mínimo adequado ao tempo e ao espaço
midiático. O espaço midiático, nesse sentido, torna-se um lugar de manifestações ideológicas,
dominado pelas formas dialógicas de interação verbal.
De tudo que até agora foi dito, é possível atestar no corpus analisado que campos
ideológicos se interrelacionam nas reportagens, numa luta pela imposição de valores e de visões
de mundo. A ideologia está relacionada ao poder e opera no discurso que “[...] se torna arena
onde se desenvolve a luta de classes” (BAKHTIN, 2004, p. 46). No âmbito dessas lutas, formas
de comunicação ideológica são estabelecidas e impostas como verdades. Desse modo, todos os
discursos das reportagens que partem de sujeitos autorizados, incluindo-se aí as enunciações
postuladas pelos locutores midiáticos, funcionam como verdades que circulam na sociedade e
constroem os sujeitos, de fora para dentro. É nesse sentido, que a mídia atua como poder
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social, pela característica de possuir uma informação que a grande maioria não tem o que lhe dá
uma posição de autoridade como informadora e formadora da opinião pública.
No sentido de cumprir esse papel social, a mídia televisiva utiliza-se do comentário,
estratégia por meio da qual problematiza os acontecimentos, avalia, mede, julga, buscando
despertar o interesse dos interlocutores da informação, utilizando-se de modos de raciocínio
simples e motivadores. É o que acontece em relação à 1ª reportagem, na veiculação do
comentário de Arnaldo Jabor:
(23) O que fazem diante das imagens?! Gritar, “Que horror!?” Chorar,
pedir soluções urgentes? O quê?! A resposta, em geral, dos políticos. “É
difícil!”, “Tudo é lento!”. A burocracia serve tanto para facilitar a corrupção
como para justificar a incompetência, a preguiça. Falta de verba, dizem
eles... Desse caso, é um em todos os cantos do Brasil! Há criançinhas em
situação de trabalho escravo... Não poderá haver decisões de emergência!
Será que o governador Zeca do PT vai fazer uma reunião para decidir com
os “companheiros” o que falar ou vai mandar agir logo hoje... ontem, para
impedir esse abuso?! Não se clama o tempo todo contra a poluição do
Pantanal? “Precisamos salvar os animais!” E as criançinhas?! Isso é mais
complexo. Talvez se o tráfico de drogas fosse bem combatido ali e se a
famosa corrupção do Estado diminuísse, talvez sobrasse dinheiro para a
proteção dos habitantes! Em último caso poderia incluir as criançinhas na
proteção do Ibama, junto com as sucuris e as ararinhas azuis e os peixes
bois... ou um trabalho sério na domesticação dos jacarés, para eles não
devorarem as criançinhas, no seu trabalho noturno! (Arnaldo Jabor –
Comentarista da Rede Globo de Televisão, 1ª reportagem)
Note-se que o locutor problematiza o acontecimento de maneira agressiva, por meio
de sucessivas interrogações, dirigidas ao interlocutor/telespectador invisível, instigando-o a se
engajar na discussão. A problematização do acontecimento enunciado é uma estratégia
argumentativa muito utilizada nas mídias. A partir do momento em que surge a interrogação,
espera-se que o interlocutor mobilize argumentos favoráveis ou contrários à proposição. O
estatuto pragmático do enunciador, ou seja, o valor pragmático (MAINGUENEAU, 2005, p. 201) de sua enunciação, estabelecida mediante a relação de credibilidade que ele consegue instituir
com o interlocutor, durante o comentário, confere legitimidade e seriedade às interrogações (O
que fazem diante das imagens?! Gritar, “Que Horror!?” Chorar, pedir soluções urgentes? O
quê?! Será que o governador Zeca do PT vai fazer uma reunião para decidir com os
“companheiros” o que falar ou vai mandar agir logo hoje... ontem, para impedir esse abuso?!
Não se clama o tempo todo contra a poluição do Pantanal? E as criancinhas?!).
Os temas tratados se diversificam. Trata-se, simultaneamente, das crianças flagradas
catando iscas, no Pantanal; da corrupção política; da lentidão da burocracia que emperra
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soluções; da incompetência do poder público; do trabalho escravo; do governador do PT e do
tráfico de drogas, construídos numa mesma cena enunciativa. A opção pelo discurso citado
manifesta-se na forma de transmissão do discurso, como uma “[...] reação da palavra à palavra”
(BAKHTIN,2004, p. 145). As formas lingüísticas mobilizadas ironizam a fala dos políticos (É
difícil!; Tudo é lento!). Por meio da ironia, o enunciador expressa a enunciação de personagens
que ridiculariza (os políticos, o governador Zeca do PT e seus “companheiros”), colocados em
cena, na enunciação, e dos quais ele se distancia, pela entonação. Os sintagmas nominais
mobilizados, (S3, S4, S5, S6, S7 e S8) difícil, lento, corrupção, incompetência, preguiça e
abuso desqualificam as personagens encenadas, registrando o valor depreciativo do enunciador.
A opção por alguns dêiticos temporais (D5 e D6) hoje, ontem e espaciais (D7) ali ancoram o
enunciado ao instante presente, reforçado pelos sintagmas verbais (V18, V19, V20, V21 e V22)
fazem, é, serve, dizem, clama também em tempo presente, estratégia midiática que garante o
sentido de atualidade à notícia.
A entonação usada, durante o comentário, não está em sua normalidade, dando
margem aos deslizes e a novos sentidos. Assim, (S9) companheiros sofre um deslocamento em
seu sentido original de colegas, amigos, passando a referir-se aos partidários do PT (Partido dos
Trabalhadores), a partir do uso dessa forma que se popularizou (companheiros e companheiras)
no discurso de um dos seus líderes mais proeminentes, o Presidente Luis Inácio Lula da Silva.
Torna-se, nesse sentido, um signo ideológico.
Na enunciação que se segue, o enunciador midiático subverte sua própria enunciação,
colorindo-a “[...] com as suas entonações, o seu humor, a sua ironia, o seu ódio, com o seu [...]
desprezo” (Bakhtin, 2004, p. 150).
(26) Em último caso poderia incluir as criançinhas na proteção do Ibama,
junto com as sucuris e as ararinhas azuis e os peixes bois... ou um trabalho
sério na domesticação dos jacarés, para eles não devorarem as criançinhas,
no seu trabalho noturno!
O humor e a ironia estão presentes nas construções incluir as criancinhas na
proteção do IBAMA e na domesticação dos jacarés para eles não devorarem as
criancinhas.
Perpassa, ainda, nas reportagens, o ideário de uma infância mitificada pelo imaginário
do adulto, conforma se vê nas proposições a seguir:
(27) Pelo menos aqui criança não trabalha mais catando isca!
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(28) Consideramos ele penoso e, na verdade não contribui para a formação
da
criança!
(29) Já pensou nesse sofrimento há 10 anos, para essas crianças que
trabalham?
(30) O setor explora cerca de 2.500 crianças no trabalho sobre-humano.
(31) Mas a exploração ao Trabalho Infantil está com os dias contados!
(32) Nessa primeira fase, o Programa vai atingir mil crianças que ficarão
livres da exploração nas carvoarias e reconquistarão o direito de estudar!
A infância está representada nos enunciados recortados a partir de uma idéia de
infelicidade expressa nos sintagmas nominais (S10), (S11), (S12), (S13) e (S14) penoso,
sofrimento, trabalho sobre-humano, exploração, presentes nas enunciações de (28) a (32). Ao
mesmo tempo, aparece concebida no ideário adulto, por meio de enunciados que exaltam a
possibilidade de um futuro melhor, ancorado na educação. É o anseio do adulto projetando
expectativas em torno de um futuro melhor e de uma idéia de felicidade em relação à infância
pobre, conforme se observa em (27) e (32).
PALAVRAS FINAIS
Nos recortes analisados, observa-se a existência de três tipos de enunciações distintas.
O primeiro tipo legitima o discurso moral, vinculado à possibilidade de um futuro melhor para a
criança. O segundo enfatiza o discurso legal, fundamentado no direito da criança à educação,
contrário à exploração ao trabalho infantil. O terceiro remete ao discurso do trabalho como
elemento regenerador da infância pobre e delinquente, a partir da visão disciplinadora de afastar
a criança da rua e da vadiagem. Nesse sentido, os enunciados recortados ora legitimam o fato de
a criança trabalhar, ora se opõem ao trabalho. Há, portanto, um paradoxo na maneira como a
televisão articula os enunciados, que acaba por influenciar na constituição da opinião pública.
A análise dos dados aponta para uma mídia televisiva que embora queira passar uma
imagem de distanciamento do poder institucionalizado, perpetua, na verdade, a ideologia do
aparelho estatal, mediante um jogo de efeitos, que influenciam o interlocutor na construção do
imaginário social. Essa construção, longe de ser pacífica, ocorre em um campo ativo de lutas
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pelo poder, sucessivas disputas e batalhas enunciativas. Descrever esse universo foi o intuito
desse ensaio, na perspectiva de elucidar valores ideológicos abraçados por determinados grupos,
que se projetam como hegemônicos no quadro das relações sociais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do
método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São
Paulo: Hucitec, 2004.
FLORES, Valdir do Nascimento e TEIXEIRA, Marlene. “Enunciação, dialogismo,
intersubjetividade: um estudo sobre Bakhtin e Benveniste”. In.: Bakhtiniana. São Paulo, v.1, n.
2, p. 143-164, 2º sem., 2009.
MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. Trad. Cecília P. de Souza
e Silva e Décio Rocha. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2005.
NIETZSCHE, Friedrich. “Verdade e mentira no sentido extramoral”. In.: Comum. Rio de
Janeiro, v. 6, n. 17, p. 5-23, jul./dez., 2001.
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A UNIVERSIDADE PÚBLICA BRASILEIRA: AUTONOMIA E DEMOCRACIA EM
DEBATE
José Barreto dos Santos (UEMS)21
RESUMO: Neste artigo discutiremos sucintamente o processo de produção da Autonomia e
Democracia Universitária nas Universidades Públicas Brasileiras. Especificamente,
refletiremos a nossa singularidade, a da Universidade Estadual de Mato Grosso do
Sul/UEMS, a partir dos pressupostos históricos, produzidos pelas relações entre os homens.
Teceremos a nossa crítica baseado nos fundamentos teórico-metodológico nas obras de Karl
Marx (1818-1883) /Friedrich Engels (1820-1895) na totalidade.
PALAVRA-CHAVE: Educação superior, democracia, autonomia, sociedade.
ABSTRACT: In this article we will discuss briefly the process of production of University
Autonomy and Democracy in Brazilian Public Universities. Specifically, we will reflect our
oddity, the State University of Mato Grosso do Sul / UEMS, based on historical
assumptions, produced by relations between Human Nature. We will weave our criticism
based on the theoretical and methodological foundations in the works of Karl Marx (18181883) /Friedrich Engels (1820-1895) in Totalitarianism.
KEY WORDS: Higher Education, democracy, autonomy, society.
21
Professor e Pesquisador da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul – UEMS – Unidade Universitária
de Campo Grande/MS.
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INTRODUÇÃO
Nossa reflexão incide sobre o processo histórico da produção da Autonomia
Universitária nas Universidades Públicas Brasileiras como um espaço democrático de direito
e, consolidado na forma da Lei na Constituição Federal de 1988, no seu Artº 207: “As
universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira
e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre o ensino, pesquisa e
extensão”.
Trabalhar sobre tais questões (Autonomia e Democracia) produzidas historicamente
pelas relações entre os homens, portanto, como produção social é que pautamos nossa
crítica, dada a dificuldade de apreensão das formas reais, mormente exposta pela doutrina
liberal como um direito natural, o que leva a não distinção entre a realidade e o pensamento
humano, que redunda, normalmente na sua distorção e, por consequência a sua aceitação
harmônica.
Categorizar as questões anunciadas é o nosso desafio diante do momento bastante
delicado em que nós (docentes, discentes, administrativos etc.) passamos no interior de uma
Universidade Pública, em específico a Universidade Estadual de Mato Grosso do
Sul/UEMS, frente ao alijamento do poder público do Estado de Mato Grosso do Sul/MS, no
não cumprimento de sua atribuição legal, firmado no governo anterior, com o repasse
financeiro, arrecadado através de um percentual ainda aleatório22, subtraído em cima do
Imposto sobre Circulação de Mercadorias - (ICMs).
Intento esse consumado, pelo governo do Estado do Estado de Mato Grosso do
Sul/MS com apoio dos seus filiados, representados por diferentes partidos na sua base de
sustentação política, revogou de forma arbitrária, no final do ano de 2008, a autonomia
financeira da UEMS, conspirando contra a autonomia administrativa e a didático-científica.
O que caracteriza o total desrespeito à Constituição Federal de 1988, incorrendo diretamente
na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – (LDBEN Nº. 9394/96), principalmente
no seu Artº 53, no seu inciso IX: “Administrar os rendimentos e deles dispor na forma
prevista no ato de constituição, nas leis e nos respectivos estatutos”.
22
Grifo meu: O uso do termo aleatório traduz o descompromisso do Governo/MS em repassar apenas o
percentual de custeio para UEMS. Tornando centralizadora a figura do Executivo na tomada de decisões internas
e externas de investimentos estrutural e humano da UEMS.
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A situação anunciada levou-me a refletir com meus pares sobre o que podemos
fazer diante dos dilemas anunciados e, das possibilidades de uma gestão autônoma e
democrática. O primeiro aspecto, que não devemos considerar, é a leitura a-histórica, onde
não importa o passado, o presente é a única referência. Outro aspecto, a leitura idealizada,
que como a primeira tangência a situação real, imaginando que as boas ideias advindas da
benevolência dos atores dirigentes, distorcida da realidade do homem e das coisas materiais
da vida, justificam sua imagem e semelhança. Ambas, acabam reforçando o senso comum,
descontextualizando o seu entendimento a crítica do seu real conteúdo, o homem e o
trabalho.
Nesta perspectiva, é que propomos a refletir os conceitos Autonomia e Democracia
que envolve a universidade pública brasileira, tendo como fundamento a sociedade
capitalista, sustentando em seu aporte teórico as contribuições suscitadas nas obras de Karl
Marx (1818-1883) /Friedrich Engels (1820-1895). Como afirma Alves (2001, p. 19), “a
partir do domínio das leis que presidem a dinâmica do todo social [...]”; da história do
objeto proposto, do movimento da sua base material produtiva, a formação política dos
espaços de direito e as garantias institucionais, pressupostos que podemos categorizar o
entendimento sobre a nossa singularidade, a UEMS.
É importante salientar, que a nossa pretensão, além de anunciá-las, é forjá-las nos
espaços de debate institucional, com intuito de incentivar as discussões em torno das
temáticas anunciadas, com isso, buscaremos a melhor compreensão das nossas reais lutas no
cotidiano das universidades públicas.
A UNIVERSIDADE PÚBLICA E SUAS CONTRADIÇÕES HISTÓRICAS
Suscitar tal discussão em torno dos conceitos anunciados, tendo como leitura a
totalidade, leva-nos a assumir um olhar teórico-metodológico a crítica para entendermos
quem somos nós frente às contradições emanadas historicamente pelo próprio modelo de
sociedade capitalista.
Daí a importância de salientar, que tais pressupostos engendrados do interior das
universidades públicas, não pode ser apêndice inocente e neutro das relações que as
produzem socialmente. Se formos produto deste próprio meio, daí vem o germe da
necessidade de nós (docentes, discentes, administrativos etc.) sermos os únicos agentes
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capazes de criarmos as condições materiais necessárias para desvelar as visões simplificadas
de sociedade, concebidas como um todo homogêneo, neutro diante das contradições sociais
do nosso tempo.
Assim, o primeiro passo é procurar entender que os conceitos assinalados
(Autonomia – Democracia) que surge no interior das instituições de ensino público, não são
panacéias, longe de qualquer neutralidade científica, mas, como foco de novas idéias e
valores que são consubstanciados ao nosso entendimento, para que sejam viabilizados em
torno da racionalidade meramente produtivista.
Do liberalismo ao neoliberalismo, como sistema de crenças e convicções, isto é,
ideológico, tem como base um conjunto de princípios ou verdades, que formam a sua
doutrina na qual se fundamenta o Estado contemporâneo. Quero ressaltar, que os pactos
propostos, ganham credibilidade na medida em que criam procedimentos “consensuais” das
Leis que regem a autonomia e a democracia. Com isso, o Estado é pensado em termos
autônomos e democráticos, como instituição voltada para a manutenção dessa estrutura
contraditória, entre o público e o privado, “onde o povo pode ver seus interesses
manifestados e defendidos porque tal Estado existe como resultado de um pacto estabelecido
coletivamente”. (Gonçalves, 2005, p. 144)
A forma harmônica, encontrada pelos clássicos da revolução burguesa do século
XVIII, dentre os quais destaco John Locke (1632-1704) e Jean-Jacques Rousseau (17121778), tiveram influência decisiva no pensamento liberal, que ao definir o Direito Natural
(PÚBLICO) como a única base legítima do Direito Civil (PRIVADO); e que somente por
meio da razão (A LEI) seria possível conhecer o Direito Natural para, com base nele,
estabelecer os fundamentos de uma ordem política legítima. Estabeleceu com os tais
pressupostos pela primeira vez na história humana uma clara separação entre Estado e
sociedade civil, entre esfera pública e esfera privada, que até hoje se constitui na referência
básica do Estado de Direito. Para Locke (Os Pensadores, 1978):
No Estado Natural “nascemos livres na mesma medida em que nascemos
racionais”. Os homens, por conseguinte, seriam iguais, independentes e
governados pela razão. [...] Todos os homens participariam dessa sociedade
singular que é a humanidade, ligando-se pelo liame comum da razão. No Estado
Natural todos os homens teriam o destino de preservar a paz e a humanidade e
evitar os direitos dos outros (p. XVII-XIX).
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Assim, a verdadeira posição liberal exige a igualdade perante a lei, igualdade de
direitos entre os homens, portanto, igualdade civil. Nesta perspectiva, defende que todos
têm, por lei, iguais direito à vida, à liberdade, a propriedade, à proteção das leis, de acordo
com Rousseau (1968):
[...] em lugar de destruir a igualdade natural, o pacto fundamental (o Estado)
substituí, ao contrário, por uma igualdade moral e legitima, o que a natureza tinha
podido pôr de desigualdade física entre os homens, para que, podendo ser
desiguais em força e em gênio, todos se tornassem iguais por convenção de direito.
(p.97).
Karl Marx & Friedrich Hegel (Obras Escolhidas) afirmam por outro lado, que a
característica central da sociedade capitalista é o fato de que, estruturalmente, ela esta divida
em duas classes – burguesia e proletariado – e que o antagonismo entre essas classes
expressa a dinâmica da sociedade moderna. Com isso, podemos sintetizar que de um lado
está o Estado institucionalizado como regulador e, do outro, o Estado institucionalizado
como classista, que defende os interesses das minorias privilegiadas fazendo uso de um
discurso geral e ilusório para o povo que consiste no “poder organizado de uma classe para a
opressão de outra”. (p. 38)
Em síntese, o Estado aparece como resultante do conjunto das relações de produção
que ocorrem em determinada sociedade e é o elemento jurídico-político principal,
encarregado de gerir negócios comuns da classe dominante. Friedrich Engels (1987) afirma
sobre o propósito do Estado:
Uma instituição que, numa palavra, não só perpetuasse a nascente divisão da
sociedade em classes, mas também o direito de a classe possuidora explorar a não
possuidora e o domínio da primeira pela segunda. E essa instituição nasceu.
Inventou o Estado. (p.153)
Desta forma, constatamos a marca histórica das contradições sociais e políticas
inerentes à formação do Estado brasileiro: a perspectiva da camada senhorial não
estabeleceu conexões vitais entre os avanços do conhecimento humano e as possibilidades
de seu domínio sobre as forças da natureza, ao crescimento cultural e ao desenvolvimento
das potencialidades de uma revolução nacional. O país não era visto como uma nação, mas,
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ao contrário, como uma comunidade de interesses particularistas díspares, cuja articulação
exigia que todos os senhores, do campo e da cidade, soubessem separar sua nação civilizada
da barbárie dos outros, escravos e homens livres.
A ideologia da exploração, tendo na sua base material o modelo escravocrata,
sobrevivia no mundo colonial à visão estreita do universo da cultura, pois as necessidades
existenciais não compunham mais do que uma escola superior com a função de atender o elo
entre o desenvolvimento e o interior da civilização. Marilena Chauí (2001) salienta os traços
marcantes deixados pela sociedade colonial escravista, ou pela chamada “cultura senhorial”,
reforçando que [...].
A sociedade brasileira é marcada pelo predomínio do espaço privado sobre o
público e, tendo o centro na hierarquia familiar, é fortemente hierarquizada em
todos os seus aspectos: nela, as relações sociais e intersubjetivas são sempre
realizadas como relação superior, quem manda e, um inferior, que obedece.
(Chauí, p. 13)
A sociedade estruturada, segundo o modelo do núcleo familiar traz na sua
dependência política interna, a singularidade cultural do patriarcalismo, do coronelismo,
enfim, da aristocracia rural. Temos assim o tripé da formação política: o escravismo, a
monocultura e o latifúndio, sob os quais se alicerçou a estrutura econômica brasileira,
durante grande parte da nossa história contemporânea. Importante salientar neste momento,
o quanto a Universidade é parte integrante do tecido social, como acentua Saviani (1979):
“A Universidade, enquanto instituição é produzida simultaneamente e em ação recíproca
com a produção das condições materiais e das demais formas espirituais”. (p. 35-55).
Desde seu aparecimento tardio, a universidade brasileira23 se deve à tradição
portuguesa, uma das mais pobres na dinâmica da civilização. Foi preciso a transferência da
Corte para modelar na nova sociedade a sua imagem, com a vinda de algumas instituições e
de técnicas da civilização moderna. Com relação ao ensino superior, concentrou-se em fins
utilitários, privilegiando as funções mais restritas das escolas necessárias. Por isso, o Brasil
não viveu, nem como colônia nem posteriormente, a experiência histórica da universidade
ilustrada, de pensar e produzir ciência; dadas às condições da economia escravista que
contribuíram para reduzir ao mínimo as funções criativas do pensamento científico.
23
Até década de 1920, o Brasil não contava com nenhuma Universidade.
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A UNIVERSIDADE PÚBLICA E SEUS DILEMAS ATUAIS
Neste itinerário, devemos destacar em síntese, que a ideia de universidade como
produção histórica remonta às fontes do pensamento filosófico e ao despertar da curiosidade
científica, passando pela Academia de Platão, pelo Liceu de Aristóteles, pelas corporações
de mestres e alunos da Idade Média, onde se fundiram as discussões, os embates, os
diálogos em torno do objeto ou fenômeno desconhecido, cujos segredos vão pacientemente
desvendando. Espaços organizados nos diferentes momentos históricos, mas, movidos pela
vontade persistente de pensar a universidade no contexto das vicissitudes em que emergiu, e
renovada a cada crise de transformação de suas bases materiais.
A universidade, então, exprime de modo determinado a sociedade de que é e faz
parte, absorve as ideias e práticas do seu tempo, o que dá a ela o significado de instituição
social, para outorgar e franquear as novas, porém, velhas políticas externas que traduzem ou
não, as alusões historicamente constituídas em torno do mercado.
Da “mão invisível” do mercado, teorizada pelo economista escocês Adam Smith
(1723-1790), como o maior tratado econômico dos liberais: “Uma investigação sobre a
natureza e as causas das riquezas das Nações”; que agora é compensado pelos novos
fundamentos teóricos neoliberais da Escola austríaca, Friedrich August Von Hayek (18991992), autor do livro “Caminhos da Servidão”, em 1944; e do economista americano Milton
Friedman (1912-2006) da Escola de Chicago e outros, que oferecem um discurso da
liberdade econômica, da eficiência e da eficácia, para dar respaldo a uma nova qualidade
política e econômica de vida para os países dependentes e consumidores do mercado, não
mais nacional, mas, do “mercado globalizado”. De acordo com Chesnais (1990):
O termo designa o quadro político e institucional de funcionamento do
capitalismo, foi se constituindo desde o inicio dos anos 1980, em decorrência das
políticas de liberalização das trocas, do trabalho e das finanças, adotadas pelos
governos dos países industriais, encabeçados pelos Estados Unidos e pela GrãBretanha. (p. 77)
Razão pela qual, a chamada modernização ao “mercado globalizado”, remetendonos a uma “Reforma de Estado”, por aumento de eficiência e produtividade da
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administração pública, de acordo Silva Junior & Sguissardi (2001, p. 28) será, para o
Ministro Bresser Pereira24, resultado de um complexo projeto de reforma, que vise a um só
tempo o fortalecimento da administração pública direta – núcleo estratégico do Estado – e a
descentralização da administração pública com a implantação de “agências executivas” e de
“organizações sociais” controladas por contrato de gestão. Para ele, a questão central “como
reconstruir o Estado – como redefinir o novo Estado que está surgindo em um mundo
globalizado”. (Bresser Pereira, 1997, p. 27)
De fato, essas reformas, ao definir “organizações sociais” como os setores que
compõem o Estado, vêm designando para alguns setores como “serviços” não exclusivos do
Estado e nele colocou a Educação, a Saúde e a Cultura. Essa localização da educação no
setor de serviços não exclusivos significou uma nova redefinição: a) Que a educação deixou
de ser concebida como um direito e passou a ser considerado um serviço. b) Que a educação
deixou de ser considerado um serviço público de direito, e passou a ser considerado um
serviço que pode ser privado ou privatizado.
Neste contexto anunciado, a instituição UEMS herdeira do universo colonial e
autoritário, em que o poder repressivo do Estado ainda é utilizado para manter o status quo
dessa democracia limitada, procurando justificar o moderno, a “organização social” pela
conciliação pelo alto, por essa razão, não é apenas e simples vontade da elite dominante, mas
uma exigência histórica à herança de nosso capitalismo periférico e dependente.
A UNIVERSIDADE PÚBLICA E SUAS POSSIBILIDADES
Diante das observações anunciadas, entendemos que a vigência da ideologia
neoliberal, mostra que as concepções clássicas continuam validas para o nosso
entendimento. Permitindo-nos olhar com mais clareza, as mudanças ocorridas nas
universidades públicas brasileiras nós últimos anos, particularmente com a reforma do
Estado, que começou na década de 1990, no Governo Fernando Henrique Cardoso, e que de
alguma forma continua sendo operada pelos outros Governos da República.
Urge compreender que a universidade brasileira reivindicada pelos liberais, deve
ser posta em seus termos corretos, como uma questão pública de Estado, a quem caberia
24
Ministro Bresser Pereira – comanda no Governo Fernando Henrique Cardoso o Ministério da Administração
Federal e da Reforma do Estado – MARE.
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garantir sua homogeneidade, desenvolvê-la e protegê-la. A tese básica do liberalismo em
matéria de ensino “afirma o primado da instrução pública e, em conseqüência, o dever
indeclinável do Estado de organizar, manter e mesmo de impor a educação a toda à
população”. (Saviani, 1991, p. 86)
Neste sentido a universidade pública é concebida como espaço social único, dentro
dos limites da sociedade capitalista, marcado pela manifestação de práticas contraditórias,
onde os sujeitos constitutivos da organização precisam ter clareza das finalidades de sua
instituição.
Para tanto, evidencia-se a necessidade de se refletir sobre qual a proposta de
formação acadêmica que queremos com relação a nossa real base produtiva. Para tanto, cabe
cotejar o pensamento esposado por Marx (2003):
Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre
vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha, mas sob aquelas
circunstâncias com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo
passado. (p 15)
Neste sentido é que possamos refletimos o papel educacional da universidade, com
relação à sociedade. É com base nessa perspectiva que não há como deixar de entender que:
“a universidade é o centro por excelência da dimensão humana e de seu peculiar estilo de
compartilhar o conhecimento, sendo homem o eixo principal do seu fazer”. (Carvalho &
Porfírio, 2001, p. 21)
Assim, a universidade é uma instituição social e como tal exprime de maneira
determinada a estrutura e o modo de funcionamento da sociedade como um todo. Tanto é
assim que vemos no interior da instituição universitária a presença de opiniões, atitudes e
projetos conflitantes que exprimem divisões sociais e as próprias contradições da sociedade.
Entender que essa relação interna ou expressiva entre universidade e sociedade é o
que explica, aliás, o fato de que, desde seu surgimento, a universidade pública sempre foi
uma instituição social, isto é, uma ação social, uma prática social fundada no
reconhecimento público de sua legitimidade e de suas atribuições, num princípio de
diferenciação, que lhe confere autonomia perante outras instituições sociais, na qual é
estruturada por ordenamentos, regras, normas e valores de reconhecimento e legitimidade
internos a ela.
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Compreender que a legitimidade social da Universidade Moderna não é algo novo,
mas sim, histórica, dadas às conquistas fundadas da ideia de autonomia do saber em face da
Religião e do Estado, portanto, na ideia de um reconhecimento guiado por sua própria
lógica, por necessidades imanentes a ele, tanto do ponto de vista da sua invenção ou
descoberta, como de sua transmissão.
Em outras palavras, sobretudo depois das Revoluções Burguesas, a universidade
concebe-se a si mesma como uma instituição Republicana e, portanto, pública e laica. A
partir das questões sociais derivadas das mudanças científicas e políticas do Século XVIII, e
com as lutas sociais desencadeadas a partir delas, na qual, educação e a cultura passaram a
ser concebidas como constitutivas da cidadania liberal e, portanto, como direitos dos
cidadãos a liberdade, fazendo com que, além da vocação republicana, a universidade se
tornasse também uma instituição social inseparável da idéia de democracia e de
democratização do saber: seja para realizar essa ideia, seja para opor-se a ela.
O que por outro lado, reforçou a contradição entre o ideal democrático de igualdade
e a realidade da divisão social do trabalho e as lutas de classe, obrigando a universidade a
tomar cada vez mais posição diante de tais antagonismos. No sentido de contribuir para
melhor distribuição das riquezas, com a organização da sociedade, com a organização
política, com a definição do poder público, com as teorias de conhecimento, as ciências, as
artes e as culturas.
Sendo assim, instituição social de cunho republicano e democrático, a relação entre
universidade e Estado também não pode ser tomada como relação de exterioridade, pois o
caráter republicano e democrático da universidade é determinado pela presença ou ausência
da “prática” republicana e democrática do Estado. Em outras palavras, a universidade como
instituição social só é possível em um estado republicano e democrático.
Postos os termos desta maneira, poderíamos supor em última instância, que a
universidade mais do que determinada pela estrutura da sociedade e do Estado seria um
reflexo deles. No entanto, a universidade por ser uma instituição social diferenciada e
definida por sua autonomia intelectual que pode relacionar-se como o todo da sociedade e
com o Estado nacional, vive de maneira conflituosa, desde sua constituição. Na realidade
não deixará de ser conflituosa enquanto perdurarem os motivos da contradição.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por essas razões configuradas, é que assistimos nestes últimos anos uma clara
evidencia da atual forma do capitalismo mundial, caracterizando-se pela fragmentação de
todas as esferas da vida social, partindo da fragmentação da produção, da dispersão espacial
e temporal do trabalho, da destruição dos referencias que balizam a identidade de classe e as
formas de luta.
É exatamente isso que percebemos no interior da universidade pública. A
heteronomia é visível a olho nu: onde a docência é pensada como habilitação
(profissional/técnica) rápida para graduados, que precisam entrar rapidamente num mercado
de trabalho do qual serão expulsos em poucos anos, pois se tornam em pouco tempo, jovens
absoletos e descartáveis; aula e os manuais didáticos são as prioridades justificadas para
compor o tempo útil de trabalho docente e discente com o conhecimento; desgarrada da
transmissão entre pesquisador e o preparo para novos pesquisadores, ou seja, eliminando do
educador, o exercício de uma atividade planejada e sistematizada. Desapareceu, portanto, a
marca essencial da docência: a formação.
Entendemos que há formação quando há obra de pensamento, quando o presente é
apreendido como aquilo que exige de nós o trabalho da interrogação, da reflexão e da crítica,
de tal maneira que nos tornamos capazes de elevar ao plano do conceito o que foi
experimentado, ao plano categórico para as novas metodologias.
Por esses e outros motivos que a gestão Autônoma e Democrática implica num
posicionamento histórico, que expressam as possíveis mudanças e as possíveis respostas a
uma nova visão de homem e de sociedade, que fundamentem o direito e o poder que temos,
de definir as normas de formação humana. A começar pela Autonomia Institucional em
relação ao governo de Estado. Segundo, a Autonomia Intelectual em relação aos partidos
políticos, credos religiosos, ideologia estatal, imposições empresariais e financeiras; por
último, a Autonomia Financeira que lhe permita destinar os recursos segundo as
necessidades da sociedade civil no seu todo, que demandam o ensino, pesquisa e extensão.
Em outras palavras, a Autonomia deve ser pensada, como autodeterminação das
políticas sociais, dos projetos e metas das instituições universitárias e da autonomia na
condução administrativa, financeira e patrimonial. Isso significa, também, que a autonomia é
inseparável da elaboração da peça orçamentária anual, pois são estas que definem as
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prioridades acadêmicas de docência (ensino e pesquisa), metas teóricas e sociais, bem como
as formas dos investimentos dos recursos citados no Art. 207 da Constituição Federal de
1988 e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – (LDBEN Nº. 9394/96), no seu
Artº 53.
Portanto, para que haja Autonomia com caráter público e Democrático é preciso
realizar discussões amplas entre nós sujeitos universitários (docentes, discentes,
administrativos etc.), em torno do entendimento desse cenário “de fora para dentro”,
cunhado como “mercado globalizado”. Entender que não se pode analisar o seu
desvirtuamento atual sem relacioná-lo a um contexto mais amplo, na raiz histórica, fincada
no processo de constituição de nossa sociedade. Advinda de uma colonização reacionária,
obscurantista e desumana, nos remete a razão fundamental pela qual a sociedade brasileira é,
desde as suas origens, profundamente desigual, injusta e autoritária, assim como o
neoliberalismo em vigor e sua ideologia que acompanha a nova forma de acumulação do
capital.
Finalmente, entender criticamente esse movimento é uma boa perspectiva para
criarmos as condições reais de mudanças, sobretudo, para se evitar o pragmatismo criativo,
de soluções ágeis e inovadoras fundadas pela lógica do mercado. Portanto, a crítica se pauta
no esforço de que a autonomia universitária é uma conquista histórica que exerce funções de
caráter ético e político como patrimônio público legal, respondendo às necessidades no
campo educacional, por meio do ensino, pesquisa e extensão, no conhecer e pensar
cientificamente os problemas da nossa sociedade. Importante tributo social e democrático,
todavia, mal compreendido pela elite governante, dita burguesia brasileira, onde o ideal de
sociedade distorcido da realidade humana, ainda é o único horizonte.
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SÉRGIO SANT’ANNA
O LIVRO DE PRAGA: NARRATIVAS DE AMOR E ARTE
São Paulo, Companhia das Letras, 2011.
(RESENHA)
Pascoal Farinaccio (UFF)25
25
Professor Adjunto de Literatura Brasileira na UFF; Doutor em Teoria e História Literária pela
Unicamp.
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Como em outros romances de Sérgio Sant’Anna (penso especialmente no
excelente Um Crime Delicado, de 1997) o leitor encontrará neste O Livro de Praga uma
reflexão sobre a arte, que busca apreendê-la em estreita relação com a experiência do
amor e do sexo. Avulta nesta nova publicação a problemática do corpo, o qual é
requisitado para a fruição artística de maneira inapelável; a arte só se perfaz aqui
mediante sua passagem pela materialidade do corpo humano, o que implica certamente
a sua determinação sexual, bem como suas múltiplas possibilidades de gerar prazer e
dor. O apelo ao corpo, ao que tudo indica, responde à necessidade de situar a
experiência artística no contexto dos novos meios de comunicação de massa e da atual
onipresença da imagem técnica, buscando-se reativar certa sensibilidade crítica em sua
recepção. Trata-se de trazer a expressão artística novamente à vida cotidiana enquanto
experiência radical e transformadora – algo que se sente “na carne”, diríamos - em
nítida intencionalidade de oposição à fruição artística enquanto mero entretenimento.
Em cada capítulo do livro, dedicados ao relato de experiências com diversas
modalidades artísticas, a música, a escultura, o teatro e a própria literatura, invoca-se o
corpo para um verdadeiro confronto com o objeto artístico; propõe-se um embate
deliberadamente cruento, no limite mesmo daquilo que é humanamente suportável. O
resultado disso é a reativação do efeito sensível da arte na chamada “sociedade do
espetáculo”, para usarmos a expressão clássica de Guy Debord, compreendendo-a
justamente como organização social moderna que tende a transformar toda produção
intelectual em espetáculo-mercadoria e amortecer a consciência crítica do receptor.
Nessa perspectiva, cabe observar que o próprio romance, em um gesto ousado de
metalinguagem, torna-se objeto de percepção em seu caráter mercadológico, na medida
em que o protagonista-narrador, o escritor Antônio Fernandes, coloca em cena os
pressupostos comerciais de sua criação, e isso já nas primeiras páginas do relato.
Antônio Fernandes explica a uma funcionária do Museu Kampa, em Praga, que
participa de “um projeto privado que envia escritores para cidades do mundo, como
Pequim, Tóquio, Cairo, fora as de sempre, Berlim, Paris, Nova York, para escreverem
histórias de amor ambientadas na cidade que coube a cada um” (p. 14). Ele refere-se aí,
como deve saber o leitor que acompanha o movimento editorial contemporâneo, à
coleção “Amores Expressos”, patrocinada pela editora Companhia das Letras. Antônio
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Fernandes também se refere a seu editor, “um homem de trinta e cinco anos, bastante
rico”, que
de São Paulo, como um estrategista, comandava seus escritores e escritoras
espalhados pelo mundo afora durante quarenta e cinco dias. Dizia ainda que
se sentia coautor de todos os livros a serem escritos no projeto, e dos filmes
que ia produzir a partir dessas obras (p.15).
O editor é aqui chamado, não sem certa ironia, de “estrategista”, ou seja, alguém
que domina as regras do mercado e sabe valer-se delas em proveito de seu negócio;
mais importante, todavia, é o que se diz a seguir a propósito de uma provável adaptação
dos romances para o cinema. Arte da imagem, o cinema é uma manifestação de massa
capaz de alcançar um grande público, de gerar em alguns casos grandes lucros e ter uma
ressonância social geralmente muito superior à atingida atualmente pelos livros. E são
inúmeros os casos, como se sabe, nos quais as adaptações cinematográficas alavancam a
venda de suas fontes literárias. Em suma, em relação ao próprio romance que será
editado, O Livro de Praga, há a referência direta ao universo da imagem – como a
lembrar-nos que, se um dia tudo existiu para acabar num livro, como dizia Mallarmé,
hoje tudo parece existir para acabar numa imagem produzida pelas câmeras de
fotografar e filmar...
Insiste-se aqui na questão da imagem (e, por conseguinte, das novas mídias)
porque ela efetivamente funciona como um pano de fundo sobre o qual se delineia a
reflexão concernente à arte. Exemplar nesse sentido é a observação do narrador a
propósito do suicídio de uma jovem no rio Moldávia, com a qual manteve uma breve
relação afetiva e sexual; acontecimento trágico que é imediatamente transformado em
espetáculo por aqueles que assistem à retirada do corpo das águas:
Logo eles retirariam o corpo de Giorgya dali, era certo, mas àquela altura o
conjunto devastador já teria sido fotografado e filmado por uma multidão de
turistas, jornalistas e até artistas, que povoavam as ruas de Praga e que
fixariam e retransmitiriam a cena para a quantidade incalculável de sites,
computadores pessoais e celulares do mundo, criando, de fato, uma arte, uma
instalação, ao mesmo tempo virtual e imperecível (p.60).
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O grande problema em relação a esse tipo de “arte” referida é sua incapacidade
de produzir efeito crítico e afetivo sobre o receptor na proporção mesma da exposição
superabundante que lhe corresponde no campo imagético. Nesse sentido, a cena da
morte de Giorgya relaciona-se com evento anterior narrado no romance: a visita de
Antônio Fernandes à exposição de Andy Warhol no Museu Kampa. Uma das obras ali
expostas é simplesmente uma foto de um terrível acidente automobilístico no qual se vê
um corpo esmagado (uma foto de jornal, esclarece o narrador, “portanto o choque da
realidade”); sob a foto, entretanto, pode-se ler uma frase de Andy Warhol: “Mas quando
você vê uma foto aterrorizante um monte de vezes (over and over again), ela acaba por
não produzir nenhum efeito” (p. 10). Como fazer com que a arte contemporânea
produza efeito num universo já saturado de informação imagética e em que
efetivamente tudo tende a ser fruído como mero espetáculo?
É justamente aqui que entra o corpo, ou, mais precisamente, a possibilidade
sempre aberta, conforme acena o narrador, para um tipo de fruição artística mais
arrojada, que se deixa efetivamente contaminar por seu objeto – um tipo de fruição que
se poderia chamar metaforicamente de “sexual”, na linha de raciocínio proposta pelo
próprio romance, “o sexo como amor e força, como o é na natureza” (p.30). Isso é dito
no capítulo “A Pianista”, em que se narra o encontro do escritor Antônio com a pianista
Béatrice Kromnstadt; esta executa a obra musical Flores Mecânicas em um piano
preparadíssimo, vale dizer, que possui gravações de outros instrumentos musicais
(flauta, por exemplo) que são utilizadas na performance da artista, resultando disso a
impressão de seu espetáculo como “uma farsa bem real” ou uma “espécie de jogo
musical e cênico” – a ênfase no caráter de encenação parece indicar o perigo iminente
de a experiência artística ser convertida em mero simulacro que nada objetiva além do
entretenimento barato e do lucro.
Não é o que ocorre aqui, entretanto; em determinado momento do jogo erótico
que a ambos envolve miss Kromnstadt se apodera do órgão genital do escritor em favor
da execução da composição: “agarrou o meu pau duro, grosso e comprido como nunca,
e puxou-me por ele até as teclas do piano (...) batendo com o meu cacete,
energicamente, por todo o teclado, prosseguiu com as mutáveis Flores Mecânicas” (p.
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30). Antonio chega a ponto de quase gozar sobre os teclados, mas não consegue, e seu
pênis cede por conta da dor das batidas. A pianista larga então seu “pau murcho e
intimidado” e com evidente “desprezo” lhe diz: “- Está pensando o quê, meu querido?
Que pode existir arte sem dor?” (p. 31; grifo nosso).
Arte, prazer e dor são ingredientes que se misturam de forma inextricável em
todos os capítulos do romance, seja, por exemplo, em “A Crucificação”, no qual o
narrador tem uma experiência mítico-erótica com a estátua de Santa Francisca na Ponte
Carlos (imagina a estátua de pedra transformada em mulher de carne e osso e com ela
mantém uma delirante relação sexual), seja no capítulo “A tenente”, em que chega a
“possuir” a própria cidade de Praga inteira através do corpo da agente policial Markova:
“Sim, eu nunca a esqueceria. E pensei que eu havia penetrado ainda mais nos segredos
de Praga, na intimidade mesma da cidade, e estava muito feliz com isso” (p.131).
No capítulo “O texto tatuado”, por fim, alcançamos o ponto culminante da
relação visceral entre arte e corpo. Narra-se o encontro de Antônio com Jana, uma
jovem mulher que tem tatuado no corpo um texto cujo autor seria ninguém menos que
Franz Kafka – um texto original e desconhecido do grande público... Obviamente,
coloca-se claramente no relato a impossibilidade de se averiguar a autenticidade dessa
autoria. O que importa aqui, de fato - como aliás em todos os capítulos de O Livro de
Praga - é a possibilidade de uma fruição artística que deixe efetivamente marcas (como
a marca de uma tatuagem no corpo) na sensibilidade do receptor. Enquanto exibe seu
corpo nu e recita para Antônio o texto kafkiano que tem impresso no corpo, Jana coloca
em evidência o caráter teatral, encenado – estamos aqui em pleno domínio da
representação – de sua performance literária e dramática: “- Aqui é a linguagem que
comanda tudo, só a linguagem” (p. 117).
Com efeito, não se poderia esperar de um escritor tarimbado como Sérgio
Sant’Anna, cuja vasta obra de ficção tem como um de seus pilares justamente o
questionamento da própria representação literária, o apelo fácil e nostálgico a um
pressuposto núcleo duro do real, que independeria das diversas representações que dele
se faz... E, por outro lado, também não se escamoteia em O Livro de Praga a dimensão
mercadológica que cerca a obra de arte na sociedade contemporânea, o que só serviria
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para eliminar o mercado do horizonte da reflexão crítica. A radicalidade da abordagem
de Sérgio Sant’Anna está em toda parte, com a coragem que lhe é inerente:
Na noite silenciosa de Praga tudo me era permitido e nada me impedia de
pensar que eu mesmo poderia viver o requinte de criar falsos Kafkas para
serem gravados no corpo de Jana e lidos, vistos e ouvidos por aqueles que
tivessem sensibilidade para fruí-los e que nos pagariam por esse privilégio (p.
122).
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