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Comunicações Geológicas (2014) 101, Especial I, 573-576
IX CNG/2º CoGePLiP, Porto 2014
ISSN: 0873-948X; e-ISSN: 1647-581X
Análise paleoecológica baseada em foraminíferos da passagem
Aaleniano-Bajociano (Jurássico Médio) no perfil da Serra da
Boa Viagem II
Paleoecological analysis based on foraminifera of the AalenianBajocian (Middle Jurassic) boundary at the Serra da Boa
Viagem II section
S. Silva1*, M. H. Henriques1, M. L. Canales2
Artigo Curto
Short Article
© 2014 LNEG – Laboratório Nacional de Geologia e Energia IP
Resumo: Analisam-se, do ponto de vista paleoecológico, as
associações de foraminíferos bentónicos do Jurássico Médio
registadas no Aaleniano Superior (Zona Concavum, subzonas
Concavum e Limitatum) - Bajociano Inferior (Zona Discites) do
perfil da Serra da Boa Viagem II, através da aplicação de índices de
riqueza e de diversidade, que permitiram inferir que aquelas teriam
ocupado zonas de plataforma marinha, com salinidade normal e
bem oxigenadas. Contudo, foi detetado um importante decréscimo
na abundância e na diversidade das associações de foraminíferos
registadas na passagem Subzona Limitatum - Zona Discites. Este
bioevento foi igualmente reconhecido, não só no GSSP do
Bajociano (perfil da Murtinheira, Cabo Mondego), mas também em
outros perfis correlativos situados no Hemisfério Norte.
Palavras-chave: Bacia Lusitânica, Jurássico Médio, Foraminíferos,
Paleoecologia.
Abstract: The Middle Jurassic benthic foraminiferal assemblages
recorded at the Upper Aalenian (Concavum Zone, Concavum and
Limitatum subzones) – Lower Bajocian (Discites Zone) of the
Serra da Boa Viagem II section are analyzed from a
paleoecological point of view, using several richness and diversity
indexes. The results allowed us to infer that the assemblages would
have occupied areas of marine platform, and with normal salinity
and oxygen content. However, an important decrease on
foraminiferal assemblages’ richness and diversity has been detected
at the Limitatum Subzone – Discites Zone. This bioevent was also
recognized, not only at the Bajocian GSSP (Murtinheira section,
Cape Mondego), but also in other coeval sections located at the
Northern Hemisphere.
Keywords: Lusitanian Basin, Middle Jurassic, Foraminifera,
Paleoecology.
1. Introdução
Neste trabalho são analisadas as associações de
foraminíferos bentónicos registadas na passagem
Aaleniano Superior (Zona Concavum, subzonas
Concavum e Limitatum) – Bajociano Inferior (Zona
Discites) (Jurássico Médio) do perfil da Serra da Boa
Viagem II, localizado no setor setentrional da Bacia
Lusitânica (coordenadas UTM: 512065 m E; 4450058 m
N), a cerca de 6 km a W (tem de ser E) do GSSP do
Bajociano (perfil da Murtinheira, Cabo Mondego), com o
objetivo de inferir as condições paleoecológicas nas quais
se desenvolveram. Este estudo visa aprofundar o
conhecimento acerca das condições ambientais que terão
ocorrido, na Bacia Lusitânica, ao longo do intervalo
estratigráfico estudado, bem como compará-las com as já
inferidas para outros perfis situados na Península Ibérica,
nomeadamente nas Bacias Basco-Cantábrica e Ibérica.
O perfil estudado apresenta uma alternância rítmica de
calcários margosos e margas calcárias, integrando a
Formação de Cabo Mondego (Azerêdo et al., 2003), que
corresponde à parte distal da Bacia Lusitânica
caracterizada pela presença de fácies de rampa externa. O
registo abundante e significativo de amonóides permitiu o
estabelecimento de uma escala biostratigráfica detalhada
baseada naquele grupo de macrofósseis, bem como a
calibragem dos dados relativos ao registo de foraminíferos
(Henriques, 1992; Carapito & Henriques, 1999; Silva,
2013; Silva et al., 2014).
2. Metodologia
1
Department of Earth Sciences and Geosciences Centre, Faculty of Sciences
and Technology, University of Coimbra; Largo Marquês de Pombal, 3000-272
Coimbra, Portugal.
2
Department of Paleontology, Faculty of Geological Sciences, Universidad
Complutense of Madrid; c/José Antonio Novais, 12, 28040 Madrid, Spain.
*
Autor correspondente / Corresponding author: [email protected]
Para desenvolver o presente estudo foram recolhidas, ao
longo do perfil, e posteriormente analisadas em
laboratório, um total de 16 amostras. A amostragem teve
em conta as unidades biostratigráficas previamente
estabelecidas através do registo de amonóides, a
espessura de tais unidades e as condições de exposição
do afloramento. De cada uma das amostras estudadas
processaram-se 300 gramas, recorrendo às técnicas
574
clássicas de tratamento para a obtenção de foraminíferos
(Silva, 2013). Os exemplares obtidos classificaram-se a
nível supragenérico e genérico segundo a proposta de
Loeblich & Tappan (1988), e a nível específico através
de consulta sistemática da base de dados de Ellis &
Messina (1940-1990), tendo-se igualmente procedido à
contagem dos indivíduos correspondentes às diferentes
categorias taxonómicas identificadas.
O estudo paleoecológico das associações de
foraminíferos baseou-se na análise dos valores obtidos a
partir do cálculo das abundâncias relativas para as
diferentes categorias taxonómicas, bem como da
aplicação de um conjunto de índices, calculados através
do programa PAST, concebido por Hammer & Harper
(2006):
índices de riqueza (α de Fisher, que relaciona o
número de espécies e o número de indivíduos numa
associação; Margalef, que relaciona o número total de
espécies e o número de exemplares presentes em cada
associação);
índices baseados na abundância proporcional de
espécies (Simpson, que indica a probabilidade de dois
indivíduos, escolhidos aleatoriamente numa associação,
pertencerem à mesma espécie; Berger-Parker, que
relaciona o número de indivíduos da espécie mais
abundante e o número total de indivíduos presentes
numa associação; Shannon-Wiener, que avalia o grau de
incerteza em prever a que espécie pertencerá um
indivíduo escolhido ao acaso, de uma associação com S
espécies e N indivíduos; equitabilidade de Pielou, que
expressa a maneira pela qual os representantes de uma
determinada associação se distribuem pelas diferentes
espécies nela reconhecidas).
O material estudado encontra-se arquivado no
Departamento de Ciências da Terra da Faculdade de
Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra.
3. Resultados e conclusões
Das 16 amostras estudadas obteve-se um total de 2356
exemplares de foraminíferos, correspondentes a 4
subordens, 8 famílias, 16 géneros e 44 espécies. A análise
tafonómica realizada permitiu constatar que alguns
exemplares apresentam as seguintes alterações nas
carapaças: fragmentação, preenchimentos – calcários e/ou
ferruginosos -, deformações plásticas, desgastes nos
elementos ornamentais, bem como dissoluções ou
recristalizações que pontualmente dificultaram a
identificação dos exemplares a nível de espécie. No
entanto, estes mecanismos de alteração tafonómica, que
são relativamente frequentes nos foraminíferos do
Jurássico (Herrero & Canales, 2002), não terão alterado,
de forma significativa, a composição original das
associações estudadas, o que inviabilizaria a realização de
análises paleoecológicas baseadas em procedimentos
estatísticos.
Do ponto de vista taxonómico, as associações obtidas
neste perfil são constituídas por táxones típicos das
plataformas carbonatadas do Hemisfério Norte e
S. Silva et al. / Comunicações Geológicas (2014) 101, Especial I, 573-576
comparáveis com associações obtidas em outras bacias da
Península Ibérica para o mesmo intervalo estratigráfico.
Assim, ao longo do intervalo estratigráfico estudado, a
subordem mais abundante é Lagenina, sendo Lenticulina o
género que apresenta o maior número de exemplares,
seguido de Spirillina e Astacolus, o que também acontece
no perfil da Murtinheira (Stam, 1985; Canales &
Henriques, 2013). A nível específico, Lenticulina helios
(Terquem) é a espécie mais abundante, seguindo-se
Lenticulina muensteri (Roemer). A segunda subordem
mais abundante é Spirillinina, o que permite consolidar
cada vez mais a ideia de que os representantes desta
subordem mostram preferência por ambientes mais
profundos, tal como já foi sugerido anteriormente, a partir
dos dados obtidos, quer para o perfil da Murtinheira da
Bacia Lusitânica (Canales & Henriques, 2008, 2013), quer
para diferentes perfis da Bacia Basco-Cantábrica e da
Bacia Ibérica (Canales, 2001). Foram igualmente obtidos
representantes de outras duas subordens (Textulariina e
Robertinina), mas ambas podem ser consideradas
componentes minoritárias das associações estudadas.
Apesar da dificuldade no estabelecimento de escalas
zonais para o Jurássico baseadas em foraminíferos
bentónicos, que resulta da ampla distribuição que
costumam apresentar muitas das espécies deste grupo,
são conhecidas algumas propostas para diferentes bacias
europeias. Entre as espécies identificadas no perfil da
Serra da Boa Viagem II, a ocorrência de Lenticulina
quenstedti (Gümbel) e Ramulina spandeli Paalzow
permitiu identificar as correspondentes biozonas
baseadas neste grupo de microfósseis, estabelecidas na
Bacia Basco-Cantábrica (Canales, 2001) e na Bacia
Lusitânica (Canales & Henriques, 2013; Silva, 2013;
Silva et al., 2014) (Fig. 1).
Além disso, no perfil estudado foram ainda
reconhecidos alguns bioeventos com interesse
biostratigráfico, não só à escala local, mas também à
escala regional, dado serem comparáveis com outros já
descritos no perfil de Murtinheira (Canales & Henriques,
2008, 2013). Estes bioeventos baseiam-se em primeiras e
últimas ocorrências de algumas espécies, assim como em
variações na abundância relativa de alguns táxones ou na
abundância e/ou na diversidade das associações
registadas. Entre estes últimos, destaca-se a drástica
diminuição da abundância e diversidade das associações
correspondentes à parte superior da Subzona Limitatum
(Aaleniano Superior) e à parte inferior da Zona Discites
(Bajociano Inferior), já detetada em níveis correlativos da
Bacia Basco-Cantábrica (Canales, 2001), na Bacia
Ibérica (Canales & Herrero, 2000) e no GSSP do
Bajociano na Bacia Lusitânica (Canales & Henriques,
2013). Na Grã-Bretanha, Morris & Coleman (1989)
referem igualmente a ocorrência de uma grande
renovação na composição das associações de
foraminíferos no intervalo estratigráfico entre a parte
superior da Zona Concavum e a parte inferior da Zona
Discites. No NW do Cáucaso, Ruban & Tyszka (2005)
também reconhecem uma renovação na composição das
Paleoecologia de foraminíferos do Aaleniano-Bajociano
associações de foraminíferos na passagem AalenianoBajociano.
Do ponto de vista paleoecológico, as associações de
foraminíferos registadas ao longo do perfil são
relativamente abundantes e diversas. Os valores obtidos
através da aplicação dos índices de riqueza e diversidade
permitem inferir que as associações se desenvolveram
num meio marinho, com salinidade normal e bem
oxigenadas, acima do nível de compensação da calcite, e
nenhuma das associações registadas reflete condições de
stress ambiental.
A análise das variações nestes índices permite
distinguir três episódios correspondentes a mudanças nas
condições ambientais (Fig. 1). O primeiro estende-se
desde a base da Subzona Concavum até à parte inferior
da Subzona Limitatum. Esta última regista um acentuado
incremento na componente calcária das sequências
margo-calcárias elementares (a partir de SBVII-110, e
particularmente expressiva nos cerca de 1,50 m da
camada SBVII-115 da última sequência), acompanhado
por escassez de amonóides e ausência de margas, o que
condiciona a recolha de amostras para o estudo das
associações de foraminíferos. As associações registadas
ao longo deste episódio são constituídas por
representantes das subordens Textulariina, Spirillinina e
Lagenina. Neste intervalo registam-se valores irregulares,
mas relativamente elevados nos índices de riqueza (α de
Fisher entre 3,8 e 6,9; Margalef entre 2,0 e 4,4), que
sugerem ambientes marinhos normais (Murray, 1991), e
de diversidade (Simpson entre 0,73 e 0,89; Berger-Parker
entre 0,20 e 0,40; Shannon-Wiener entre 2,19 e 2,59;
equitabilidade de Pielou entre 0,72 e 0,85), que refletem
condições ambientais instáveis, mas adequadas ao
desenvolvimento das populações originais, atendendo aos
valores relativamente elevados de diversidade
(Beerbower & Jordan, 1969), compatíveis com ambientes
de plataforma marinha com salinidade normal (Murray,
1991).
No segundo episódio, que corresponde à passagem
Aaleniano-Bajociano, as associações registadas são
constituídas por representantes das subordens Spirillinina
e Lagenina. Aqui, os valores dos índices de riqueza (α de
Fisher entre 1,03 e 3,95; Margalef entre 0,69 e 2,15) e de
diversidade (Simpson entre 0,54 e 0,73; Berger-Parker
entre 0,40 e 0,56; Shannon-Wiener entre 0,85 e 1,64;
equitabilidade de Pielou entre 0,72 e 0,79) são
comparativamente mais baixos, o que sugere condições
ambientais mais desfavoráveis para o desenvolvimento
das populações, corroboradas pelos valores moderados de
diversidade (entre 0,6 e 1; Beerbower & Jordan, 1969).
Por último, na Zona Discites, as associações
registadas são constituídas por representantes das
subordens Spirillinina, Lagenina e Robertinina. Aqui,
distingue-se um episódio com valores elevados e
homogéneos nos índices de riqueza (α de Fisher entre
3,69 e 3,99; Margalef entre 2,36 e 2,61) e de diversidade
(Simpson entre 0,80 e 0,84; Berger-Parker entre 0,25 e
0,36; Shannon-Wiener entre 1,97 e 2,08; equitabilidade
de Pielou entre 0,77 e 0,87), que refletem um ambiente
575
adequado e estável para o desenvolvimento das
associações, reforçado pelos valores elevados de
diversidade (superiores a 1; Beerbower & Jordan, 1969),
claramente compatíveis com ambientes de plataforma
marinha com salinidade normal, normalmente
caracterizadas por valores do índice de Shannon-Wiener
situados entre 0,7 e 2,7 (Murray, 1991).
Fig. 1. Representação gráfica dos valores obtidos para os índices de
riqueza e diversidade relativos às associações registadas de
foraminíferos bentónicos no perfil da Serra da Boa Viagem II. Coluna
A) Valores do Índice α de Fisher; Coluna B) valores do Índice de
Riqueza de Margalef; Coluna C) valores do Índice de Simpson; Coluna
D) valores do Índice de Berger-Parker; Coluna E) valores do Índice de
Shannon-Wiener e Coluna F) valores do Índice de equitabilidade de
Pielou. A análise dos valores dos índices de diversidade obtidos
permite diferenciar três episódios ao longo do intervalo estratigráfico
estudado, que refletem a evolução das condições ambientais nas quais
se desenvolveram as associações estudadas (modificado de Silva, 2013;
Silva et al., 2014).
Fig. 1. Graphical representation of the values of the diversity indices
obtained for the benthic foraminifera assemblages recorded at the Serra
da Boa Viagem II section. Column A) Values of α Fisher’s index;
Column B) values of the Margalef`s Diversity Index; Column C) values
of the Simpson index; Column D) values of the Berger-Parker index;
Column E) values of the Shannon-Wiener index and Column F) values
of the Pielou’s Evenness Index. The analysis of the values of the
diversity indices obtained enabled to differentiate three episodes over
the studied stratigraphic range. They traduce the environmental
conditions evolution which have controlled the development of the
studied assemblages (modified after Silva, 2013; Silva et al., 2014).
576
Na passagem Aaleniano-Bajociano regista-se um
significativo decréscimo na abundância e na diversidade
das associações (episódio II; Fig. 1), facto já reconhecido
em níveis correlativos de outras bacias ibéricas e do norte
da Europa, configurando um proxy de grande relevância,
quer biostratigráfica, quer paleoecológica, no âmbito da
datação e correlação de perfis e de sondagens.
Os resultados paleoecológicos agora obtidos, em
articulação com resultados biostratigráficos já
conhecidos, permitem contribuir para a ampliação do
conhecimento acerca do registo micropaleontológico do
Jurássico da Bacia Lusitânica, em particular no que
respeita
a
foraminíferos
bentónicos,
grupo
particularmente utilizado na interpretação de testemunhos
de sondagens no quadro das atividades de exploração de
hidrocarbonetos.
Agradecimentos
Este trabalho foi financiado pelos Projetos CGL201123947 e CGL2011-25894 (Ministerio de Educación y
Ciencia, Espanha) e pelo Grupo de Investigación UCM
910431 (Universidade Complutense, Madrid, Espanha). O
trabalho laboratorial foi apoiado pelo Consórcio PetrobrasGalp-Partex de Portugal. As autoras agradecem ao revisor
anónimo pelas sugestões apresentadas na sequência da
avaliação do trabalho.
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