Anais eletrônicos do
III Encontro do Grupo de Estudo e
Trabalho em História e Linguagem:
Política das narrativas políticas
FAFICH – UFMG
08, 09 e 10 de abril de 2014
Anais eletrônicos do
III Encontro do Grupo de Estudo e
Trabalho em História e Linguagem:
Política das narrativas políticas
Márcio dos Santos Rodrigues
Renata Moreira
(organizadores)
ISBN: 978-85-62707-64-3
FAFICH – UFMG
2015
Reitor da UFMG
Prof. Dr. Jaime Arturo Ramírez
Diretor da Fafich
Prof. Dr. Fernando de Barros Filgueiras
Chefe do Departamento de História
Prof. Dr. Tarcísio Rodrigues Botelho
Coordenador do curso de História
Profª Drª Adriane A. Vidal Costa
Comissão de Organização do III Encontro do GETHL
Alexandre Bellini Tasca
Isabella Batista de Souza
Luiz Arnaut
Márcio dos Santos Rodrigues
Renata Moreira
Warley Alves Gomes
Crédito da imagem da capa:
Esboço do mural iniciado primeiro no RCA Building e depois destruído O
Homem na Encruzilhada, Olhando Pleno de Esperança para um Futuro
Melhor, 1932. Fonte:
KETTENMANN, Andrea. Diego Rivera: 1886 - 1957. Köln: Taschen, c2006.
Normatização e revisão dos textos:
Márcio dos Santos Rodrigues
Renata Moreira
Diagramação e arte gráfica:
Márcio dos Santos Rodrigues
Apoio:
PAIE/UFMG
Pró-Reitorias Acadêmicas
Realização:
GETHL
http://www.fafich.ufmg.br/hist_lingua/
Apresentação
Provenientes do III Encontro do Grupo de Estudo e Trabalho em
História e Linguagem – Política das narrativas políticas, realizado entre os
dias 08, 09 e 10 de abril de 2014, os textos que integram o presente
volume colocam em evidência as complexas e intercambiantes
relações entre a narrativa e a política. Tais trabalhos explicitam, em
maior ou menor grau, essa relação, caracterizada por um duplo e
simultâneo movimento: a narrativa é política e a política é conformada
por mecanismos narrativos. Trata-se de um movimento complexo e
construído por meio da linguagem (imagética ou linguística), que nos
textos tão dispares e de composições extremamente plurais acaba
sendo o principal objeto de interesse.
Nos três dias de evento foram apresentados trabalhos que
buscaram aprofundar a narrativa como uma dimensão intrínseca ao
humano na condição de animal político, dentro de uma perspectiva
que extrapolou o domínio exclusivamente ficcional ou mesmo da
narrativa histórica e que passou a abranger todos e quaisquer materiais
linguístico-imagéticos que mobilizem elementos para o contar. O evento
foi aberto ao público em geral e contou com a participação de
profissionais das Humanidades (estudantes e professores das redes
municipal, estadual, federal e particular de ensino), de diferentes
instituições e localidades.
Agradecemos
a
todos
aqueles
que
contribuíram
para
a
realização deste III Encontro do Grupo de Estudo e Trabalho em História e
Linguagem (GETHL) e convidamos o leitor – acadêmico ou não – para
que possa avaliar a pertinência e a relevância dos temas explorados
nos textos destes anais. Enfim, boa leitura e até o próximo encontro!
GETHL
PORTUGUESES E BOTOCUDOS:
NARRATIVAS E SUJEIÇÃO CRIMINAL NO BRASIL COLÔNIA
Alessandro da Silva Leite1
Em 1808, D. João VI, por meio da Carta Régia de 13 de maio,
autorizou o genocídio dos Botocudos que habitavam os “sertões”
situados nas fronteiras das capitanias de Minas Gerais e do Espírito Santo.
Esse episódio da história colonial brasileira durou, oficialmente, até 1831,
porém os conflitos na região entre colonos e nativos estenderam-se até
meados do século XIX. Nas narrativas, correspondências e documentos
régios do período encontram-se termos como selvagens, bárbaros,
violentos, invasores e criminosos usados para classificar as ações
praticadas pelos Botocudos em relação ao colonizador. Acredita-se que
a linguagem e semântica desses relatos tenham contribuído para
influenciar a política colonial portuguesa na direção de uma construção
social do crime e subjetivação criminal dos Botocudos, culminando com
a permissão para seu extermínio.
O processo de sujeição criminal dos Botocudos caracterizou-se,
sobretudo, pela ressignificação dos lugares simbólicos de “invasores e
invadidos”. Assim, por meio das descrições e denúncias de práticas
culturais e ações protagonizadas pelos Botocudos, como atos violentos e
crimes cometidos contra a sociedade colonial, o nativo foi sendo
representado no campo simbólico como o “invasor”, ao passo que o
português, foi ocupando o lugar de “invadido”.
Por outro lado, os
aspectos linguísticos e semânticos presentes nos relatos de viajantes, nas
correspondências e nos documentos régios, constituem-se em fontes de
pistas, indícios da construção da subjetividade e identidade dos
Botocudos de maneira fragmentada e deteriorada, servindo de
justificativas para o uso de “tecnologias disciplinares” pelo poder político
institucionalizado. Por meio de medidas autoritárias, as tecnologias
1
Mestre em História Social (USS), professor de Ciência Política na Faculdade de Direito e
Ciências Sociais do Leste de Minas, FADILESTE, pesquisador do Núcleo de Estudos e
Pesquisas Indiciárias da Universidade Federal do Espírito Santo, UFES. E-mail:
[email protected]
6
visaram ao extermínio, simbólico e real, dos Botocudos pela catequese,
aldeamento e escravização, e da guerra justa.
Nesse trabalho, pretende-se demonstrar como esse processo, de
certa forma, pode estar relacionado às faltas e desejos de conquista e
satisfação objetais - materiais e imateriais - inscritas no campo
psicossocial,
político
e
econômico
do
Estado
e
da
Sociedade
portuguesa, especialmente, nos contextos da crise aurífera do final do
séc. XVIII. Para tanto, utilizando-se de uma abordagem interdisciplinar,
tecida nas fronteiras das ciências sociais e da psicanálise, pretende-se
informar aspectos teóricos e metodológicos do indiciarismo como
metodologia de reconhecimento e interpretação das pistas, dos indícios
e elementos históricos, sociais, antropológicos e psíquicos nas narrativas
sobre o Outro. Nesse sentido, toma para ilustração algumas narrativas
que na colônia contribuíram para a representação simbólica dos
Botocudos como categoria social perigosa, metaforizada na figura do
selvagem, do invasor, do bárbaro e do criminoso.
Historiografia e política indigenista: os Botocudos em foco
A respeito do tema, MOREIRA (2001) informa-nos que a ausência
do indígena e/ou sua sub-representação, tanto na historiografia quanto
no ensino de história em todos os níveis, relacionam-se a quatro vícios
teóricos e metodológicos, vinculados às informações das fontes oficiais e
às análises dos pesquisadores. Os vícios apontados pela autora são: 1) o
vazio demográfico e seu poder imagético, 2) a imprecisão dos dados
demográficos sobre as populações nativas nos “sertões”, 3) os mitos
sobre o processo de colonização, no qual os portugueses “ensinaram”
muitas coisas aos indígenas, desconsiderando o fato de que à chegada
do colonizador seguiu-se um processo de invasão, doenças, guerras,
morticínios, dominação e sujeição criminal dos nativos, e 4) a diluição
das identidades indígenas originais, integrando-os ao tecido social, por
meio de uma ampla categorização - “índios” -. Às vezes, para distingui-
7
los, essa categoria é adjetivada de “manso”, “domesticado”, “civilizado”,
“selvagem” ou “bravo”.
Uma taxonomia dos Botocudos é apresentada por MATTOS
(2002). Segundo a autora, durante a expansão das “fronteiras coloniais e
econômicas” em direção ao vale do Rio Doce, e da Capitania do Espírito
Santo, os colonizadores se depararam com diferentes subgrupos
indígenas, ocupando os chamados “sertões”, habitando as selvas
impenetráveis, nos limites entre a “barbárie” e a “civilização”. Em comum,
esses grupos nativos portavam os mesmos adereços nas orelhas e
lábios
inferiores,
o
botoque,
sendo,
por
isso,
denominados
genericamente e pejorativamente, pelo colonizador, de Botocudos2.
Dessa maneira, sob essa denominação, ficaram registrados os Giporok;
Tapuias;
Aranã;
Pojichá;
Aimoré;
Coroados;
Naknenuk;
Bakuen,
Tamonhec, Crenaques, Minia-jirunas, Gutcraques, Nac-requés, Pancas,
Manhangiréns, Incutcrás entre outros.
Para alguns estudiosos da questão, a condição sociopolítica do
nativo brasileiro, deve ser abordada da perspectiva de uma política
indigenista que tendeu para sua inserção na “nação” brasileira pela “via
da pacificação”, embora, paradoxalmente, esta tenha tido a guerra
como recurso. De acordo com esses autores o indígena sempre
encarnou as metáforas da possibilidade e do obstáculo às realizações
dos projetos civilizacionais e colonizadores. Assim, para esses autores a
construção social e simbólica do nativo tornou possível a elaboração de
uma política indigenista orientada por uma ambiguidade que se
revelou no primeiro registro feito pelo colonizador português no seu
encontro
com
indígena
brasileiro.
Pero
Vaz
de
Caminha
na
correspondência que enviou ao rei de Portugal informou num trecho que
os nativos eram “gente de grande inocência” e em outro trecho que
eram “gente bestial e de pouco saber” (AZANHA e VALADÃO, 1991, p. 09
e 11).
2
De acordo com a autora, o uso do termo Botocudo surgiu a partir de 1760 como uma
maneira do colonizador luso-brasileiro identificar os grupos indígenas, que se
mostraram, excessivamente, hostis à presença do “branco”.
8
Essa ambiguidade, ora de fascínio, ora de ódio mortífero, que
marcou a as relações entre colonizadores e indígena, será mais bem
desembaraçada no estudo de MARINATO (2007), pois ele nos oferece
com maior clareza as correlações entre a construção narrativa das
imagens simbólicas, imaginárias e a legislação indigenista para os
nativos com a conjuntura histórica. Para a autora, no geral, apesar de
fragmentada, a política indigenista colonial procurou regulamentar a
conquista dos povos nativos, fosse por meio da catequese, do
aldeamento e da escravização ou da guerra justa.
No entanto, havia uma orientação política para os chamados
“índios amigos” e outra para os chamados “índios bravos” ou “gentios
bárbaros”, que eram os Botocudos. Tal fragmentação política ficou mais
evidente, a partir do final do século XVIII e início do XIX, no contexto da
crise aurífera, que demandou a necessidade de expansão das fronteiras
coloniais,
especialmente,
nas
regiões
próximas
às
minas.
Foi
especialmente para o trato com os Botocudos que povoavam essa
região que a política indigenista, por meio das Cartas Régias de 1808,
autorizou como tecnologia disciplinar, além das já conhecidas, a guerra
justa e, somente, a partir de 1845, quando foi adotado o Regulamento
das Missões, a política indigenista passou a ter um caráter mais
completo e extensivo, diluindo-se seu caráter fragmentado.
A abordagem, realizada por MARINATO (2007), sobre a expansão
colonial na região do vale do Rio Doce em sua porção espírito-santense,
no final do século XVIII, a partir da noção de fronteira colonial ou fronteira
em expansão, aproxima-se da perspectiva de MATTOS (2002) ao
demonstrar que o interesse pela região ocorreu num contexto de crise
social e econômica, especialmente, da crise aurífera.
A crise mineradora influenciou ao colonizador conduzindo-o à
ressignificação simbólica e metafórica da região e de seus habitantes
naturais. O vale do Rio Doce passou a ser representado como um
possível “novo eldorado”. Dessa forma, a região foi assumindo, apesar
da presença de uma população nativa hostil, resistente à colonização -
9
os Botocudos -, o locus ideal para a realização de novos e velhos
desejos, fantasias e faltas objetais.
Com isso, a região foi deixando de ser representada como uma
área pouco conhecida e controlada, porém, salutar para a proteção da
economia mineradora, e foi se tornando nos campos simbólico e
imaginário colonial numa área para colonização e exploração em
busca de novas possibilidades da conquista e realização de desejos,
fantasias e faltas objetais, como riquezas e posicionamento social
privilegiado, conforme demonstram os casos de colonos que receberam
privilégios e prebendas militares, destacando-se no cenário social
colonial.
Essa
ressignificação
correspondências
enviadas
traduzida
às
na
autoridades
linguagem
portuguesas
das
exerceu
influências na mudança de orientação da política colonial indigenista,
pois por meio das denúncias das ações cometidas pelos Botocudos
contra os colonizadores, pelas correspondências, relatos e narrativas,
esses habitantes, antes vistos como temerários passaram a ser
considerados obstáculos à expansão colonial, devendo, por isso, serem
destruídos.
Em 2008, durante as comemorações do bicentenário da
chegada da corte portuguesa ao Brasil, vários autores se debruçaram
sobre o tema do genocídio, autorizado por D. João VI, como uma forma
de trazer à memória histórica nacional os nativos que, a despeito de
todas as transformações introduzidas na colônia, permaneceram na
condição de sujeitos coadjuvantes de uma história lavrada a laço,
sangue e marginalização social. Assim, DUARTE e PENA (2008), ressaltam,
em relação à política joanina de 1808, que a guerra justa, declarada
contra os Botocudos, teve relações diretas com os domínios territoriais
que esses nativos ocupavam.
Com efeito, para esses autores, à crise da mineração, somada à
chegada da corte portuguesa, acentuou a demanda de produtos
alimentícios e riquezas, bem como exigiu a abertura de estradas para
transportá-los. Essa nova realidade atuou como impulso para o
10
movimento de interiorização em direção às fronteiras, ou “sertões”, das
capitanias de Minas Gerais e do Espírito Santo, pois no imaginário
colonial da época, de certo que essa região, coberta por densas
florestas, tinha muitas riquezas a oferecer.
Contudo, a região também abrigava os grupos indígenas mais
arredios à presença do colonizador, ou seja, os Botocudos. Segundo os
autores, para “limpar” a região da presença desse feroz inimigo, os
colonizadores usaram armas biológicas, como uma eficiente tecnologia
de extermínio, espalhando nas matas e nas proximidades dos
acampamentos indígenas roupas e cobertores contaminados por vírus
de varíola e outras doenças contra as quais os nativos não possuíam
nenhuma defesa natural.
Analisando as relações entre o poder público e os nativos, em
especial os Botocudos, no início do século XIX, ALVES e ALVES (2008),
registram que a política joanina foi de genocídio dos índios insurgentes
dos Sertões do Leste de Minas Gerais. Também para esses autores a
radicalização da política indigenista em 1808 associou-se à exaustão do
modelo econômico minerador, demandando o desenvolvimento de
outras atividades econômicas, como agricultura e pecuária. Essas
atividades, por sua vez, exigiram a abertura de novas fronteiras
econômicas que fornecessem, além de novas riquezas, os meios para
seu escoamento, como a navegação fluvial e a abertura de novas
estradas. É nesse contexto, que o vale do Rio Doce, se tornará o alvo dos
desejos portugueses de “civilizar e colonizar” o Brasil.
A guerra justa contra os “ferozes inimigos da colonização”, foi
também o tema de pesquisa de MARCIAL (2010) que analisou as
diretrizes políticas do Estado em relação aos índios Botocudos nas
primeiras décadas do século XIX, de 1808 a 1831, sob a perspectiva da
redefinição de propriedade e direito natural. Para o autor, enquanto o
interesse português na região suportava-se geopoliticamente pela
necessidade de proteção das áreas de mineração, os Botocudos e seu
comportamento, caracterizado como selvagem, incivilizado, violento e
11
antropófago, foram amplamente explorados pelo caráter de ameaça,
perigo e temor que representavam à população colonial.
Entretanto, com a crise mineradora o sertão e as margens do Rio
Doce apresentaram-se como alternativa para a relocação de uma
expressiva população econômica e socialmente deslocada, sendo
expulsa das áreas mineradoras. Assim, na representação do colonizador
os “sertões” e seus habitantes deixaram de ser vistos como uma barreira,
um empecilho, para tornarem-se uma área de expansão de fronteiras
econômicas e civilizacionais. No campo simbólico e imaginário colonial,
esses novos territórios passaram a ser representados como “áreas
ociosas”,
nas
econômicas
quais
e
poderiam
mercantis,
ser
desde
introduzidas
que
seus
novas
atividades
habitantes
fossem
exterminados.
A seguir, por meio da interdisciplinaridade e do indiciarismo
busca-se
demonstrar
como
nas
narrativas,
correspondências
e
documentos régios os indícios, pistas e vestígios semânticos e linguísticos
revelam motivações e pulsões de natureza social e psíquica que, além
de contribuírem para construír os sujeitos e categorias sociais históricas,
influenciaram na política indigenista no período colonial de ocupação
espírito-santense, redimensionando as relações entre colonizadores e
nativos.
Gênese, Indiciarismo e Fontes: narrativas e sujeição criminal
FOUCAULT (2007) questionando-se sobre o lugar das ciências
humanas na modernidade, informou-nos a respeito da dupla dimensão
do homem, ou sua “paridade empírica-transcendental”. Dessa maneira,
por exemplo, o homem é simultaneamente investigado empiricamente
pela biologia e transcendentalmente, pela filosofia. Assim, ele é tanto
sujeito quanto objeto do seu desejo de conhecer.
Segundo YAZBEK (2012), a paridade do homem está relacionada
ao que na arqueologia foucaultiana foi denominado de episteme. Na
modernidade, a episteme que tornou possível a formação de novos
12
saberes científicos foi a vida, o trabalho e a linguagem. Assim, o próprio
homem, como ser que vive, produz e fala, foi requerido como objeto da
investigação científica. A investigação historiográfica requer uma escolha
fática, seus registros e uma perspectiva analítico-interpretativa com vistas
a produzir uma narrativa sobre os eventos humanos. Nesse sentido, a
paridade empírica-transcendental auxilia-nos a entender que o a
produção da narrativa histórica se dá, por um homem que investiga o
próprio homem e suas ações numa espacialidade, temporalidade e
conjuntura específicas.
Entretanto, a condução de uma investigação histórica pelo
referencial
foucaultiano
deve
empenhar-se
em
duas
frentes
correlacionadas. Primeira, pela arqueologia, o pesquisador deverá
identificar as condições históricas da produção dos discursos, bem como
suas diferentes formas de ser. Deverá, principalmente, reconhecer a
construção que ele faz de seu objeto, por meio da evocação que lhe faz
para ocupar um lugar, uma posição no discurso.
Segunda, pela
genealogia, deverá identificar nas formações discursivas os elementos indícios, pistas, vestígios - de dispositivos ideológicos, fundamentalmente
políticos, que poderão contribuir para acionar práticas políticas diversas
ou tecnologias do poder disciplinador, aplicadas aos objetos discursivos.
Dessa maneira, arqueologicamente, no final do século XVIII e
inícios dos XIX, os discursos que contribuíram para enredar a construção
social dos Botocudos como sujeitos da criminalidade colonial emergiram
da episteme regida pelas ideias de ordenamento, classificação,
distinção de diferenças, identificação de gêneros, espécies, classes,
subclasses, hierarquias e subordinações. Nesse sentido, identifica-se nos
relatos sobre o indígena brasileiro, produzidos nesse período, o uso
recorrente de uma linguagem e semântica que acentua as diferenças
entre os grupos nativos, classificando-os e hierarquizando-os em relação
a outros povos. Por exemplo, na descrição do viajante francês, LIAS apud
MATTOS (2002 p. 52) sobre os Botocudos, aparecem termos como coisas
nojentas,
(gênero/espécie),
aparência
mais
hedionda
que
pode
apresentar a humanidade (diferença), estarem no nível mais baixo da
13
escala de povos existentes (classes, hierarquias); serem inferiores a quase
todas as tribos africanas e do Pacífico (subclasses e subordinações).
Associadas aos relatos dos viajantes, as ações praticadas pelos
Botocudos e descritas nas correspondências dos colonos às autoridades
políticas, contribuíram para a gênese de tecnologias de poder voltadas
para seu controle, conquista e extermínio, simbólico e real.
formas
discursivas,
em
cujas
ações
e
práticas
culturais
Nessas
foram
protagonizadas pelos Botocudos, eles foram chamados a ocupar o lugar
de sujeitos violentos, criminosos, invasores, selvagens, ferozes e perigosos.
Nos discursos coloniais sobre esse Outro, segundo TODOROV
(2010), a identidade dos Botocudos foi sendo construída de forma
fragmentada. Neles, o nativo é um ser destituído de filiação cultural e
sistemas que lhes suportem simbolização e imaginação que tornam
possível a interpretação e compreensão da realidade. Ele foi chamado
a ocupar o lugar do estrangeiro, do não proprietário do “solo”, no
sentido definido por SIMMEL (1908), sendo representados no simbólico
colonial como inimigos a serem controlados e obstáculos a serem
vencidos para tornar possível a satisfação dos desejos, fantasias e faltas
objetais dos colonizadores.
O processo de construção narrativa e de representação
simbólica poderá ser compreendido se considerarmos, conforme KOLTAI
(2000) que, do ponto de vista do colonizador, se o nativo era o portador
de ausências de signos ou de sinais do estranhamento era, também,
detentor
de
um
“gozo”
diferente.
Dessa
forma,
ele
pode
ser
simultaneamente objeto da raiva e do fascínio, alvo de desejos e
pulsões de vida e sujeito escolhido para ser disciplinado, conquistado,
eliminado.
Nesse sentido, podemos, além de identificar, entender a
ambiguidade dos discursos sobre o indígena brasileiro. Discursos nos
quais indícios, gramaticais e semânticos, poderão ser investigados sob a
suspeita de expressarem, também, o conflito psíquico do colonizador
entre a admiração e ódio mortífero ao indígena. Por sua condição de
nativo (natural) de um “novo mundo” cheio de riquezas, o indígena
14
deveria ser odiado, por outro lado sua inocência deveria ser depositária
de uma admiração, pois lembrava ao colonizador, um passado idílico,
há muito perdido, recalcado, mas latente dos desejos que insistem em
se
realizar.
Nessa
perspectiva,
podemos
considerar
que,
na
criminalização dos botocudos, o conflito social se manifestou como
sintoma dos conflitos psíquicos.
GIMENEZ (2001), ao analisar a presença dos elementos do
imaginário medieval presentes nas descrições dos viajantes ao Brasil,
oferece-nos provas de que muito antes de conhecer empiricamente o
“novo mundo”, o homem medieval preencheu os lugares por eles
desconhecidos com elementos de imaginação, fantasia, delírio e desejo,
fornecidos pelos dispositivos ideológicos da época especialmente os
religiosos que faziam referências aos seus perigos, mas também à
possibilidade de ser a localização do paraíso terrestre, com todas as
suas riquezas.
Sobretudo essa última ideia foi reiterada por BAUMAN
(1992) que nos informou sobre a ambivalência na fantasia europeia do
séc. XV. Nela, o “novo mundo” como paraíso terrestre encarnou no
simbólico e no imaginário medieval simultaneamente o desejo da
remissão humana do pecado original e a possibilidade da conquista e
satisfação de desejos, fantasias e faltas objetais de riquezas materiais.
Porém, como esse locus já era habitado por um Outro - o nativo , este passou a encarnar os elementos das fantasias e imaginário
medieval das figuras inumanas, demônios e outras formas monstruosas,
como expressão dos perigos e ameaças do “novo mundo”, que
poderiam impedir a realização da fantasia do colonizador. Assim, o
choque civilizacional entre europeus e nativos pôs em movimento outros
dispositivos ideológicos – as narrativas dos viajantes do século XVIII, as
correspondências oficiais e os documentos régios - que forneceram os
elementos para suportar concomitantemente o desejo de admiração e
a necessidade de destruição, metafórica e real, daquele Outro.
Para melhor entendimento da interface entre a investigação
histórica e o método psicanalítico, segue-se a reflexão empreendida por
RODRIGUES (2008). Segundo a autora, a psicanálise pode ser vista como
15
uma teoria sobre o comportamento humano, a partir da descoberta
freudiana do inconsciente e seu impacto na noção de “sujeito histórico”.
Assim, a descoberta de que as pulsões, sentimentos, pensamentos,
desejos, fantasias são também inconscientes tornou possível aos
historiadores compreender que o papel histórico desempenhado pelo
homem é, ao mesmo tempo, individual-coletivo, subjetivo-social.
Dessa perspectiva, o historiador pode se propor a também
investigar pistas e indícios do suceder histórico passado para revelar as
correlações
entre
as
estruturas
sociais
(coletivas),
os
dispositivos
ideológicos de uma época e as estruturas psíquicas (individuais) dos
agentes históricos. Ele poderá iluminar nos acontecimentos que estuda
os vestígios dos dispositivos ideológicos ou contra-ideológicos, dos signos
e das práticas sociais, que forneceram aos indivíduos os elementos
significantes que lhes serviram como suporte necessário para a
simbolização,
representação
imaginária
e
práticas,
consciente
e
inconsciente, nas suas espacialidades, temporalidades e conjunturas.
Por outro lado, na pesquisa o historiador poderá apontar as
permanências, rupturas e transformações nos dispositivos ideológicos
colocados em perspectiva histórica. Dessa maneira, tal qual o analista, o
historiador
torna-se
um
“decifrador”
arquitetura
individual-coletiva,
dos
realizado
processos
pelos
históricos
diversos
de
dispositivos
ideológicos nos quais os indivíduos estão imersos.
A pesquisa histórica indiciária, centrada nas pistas, vestígios e
sinais de dispositivos ideológicos comporta, conforme COELHO (2006),
uma diversidade de procedimentos técnicos da investigação científica e
de teorias. Seu caráter interdisciplinar e a busca nos registros dos fatos
pelos indícios certos exigem do pesquisador uma capacidade de amplo
domínio racional de diferentes teorias e técnicas investigativas, mas
também
habilidade
criativa-imaginativa,
combinando
razão
e
sensibilidade, objetividade e subjetividade, realidade e imaginário, sem
comprometer o caráter científico do trabalho.
Atualmente no meio historiográfico os estudos indiciários de Carlo
Ginzburg têm ganhado destaque e, de acordo com RODRIGUES (2008), a
16
metáfora do tapete é bastante adequada para ilustrar o oficio indiciário
do historiador.
Como o tecelão, ele vai recolhendo “fios” - pistas,
vestígios, indícios - nas fontes e recorrendo tanto a critérios objetivos
quanto à intuição para analisa-los e descartar os falsos, realizando a
tessitura de uma narrativa histórica que poderá vir a se constituir no
suporte interpretativo para a compreensão de uma conjuntura histórica.
Analisar os relatos de viajantes, as correspondências e os
documentos régios sobre os Botocudos à luz da arqueologia-genealogia
foucaultiana e da pesquisa indiciária significa encontrar entre as tramas
dos fios desses discursos os indícios dos dispositivos ideológicos que
contribuíram para acionar as tecnologias do biopoder. Tecnologias que
permitiram a realização da fantasia europeia medieval de conquista de
um
Outro,
por
meio
do
extermínio
simbólico,
pela
catequese,
aldeamentos e escravização dos nativos, e do extermínio real, pela
guerra justa.
Nesse entrecruzamento do princípio da realidade com o
imaginário a própria conquista se constituiu num dispositivo ideológico,
numa tecnologia de poder, cuja finalidade também estruturar “novo
mundo” uma sociedade europeia. Por meio dos registros simbólicos
coloniais permaneceu no campo simbólico dos indivíduos da sociedade
colonial o significado do nativo como selvagem e inumano, devendo,
por isso ser sempre hostilizado.
A despeito das mudanças da política indigenista no Império, que
buscou substituir a prática do extermínio pela da pacificação e
integração, conforme previa o Regulamento das Missões, de 1845,
(MARINATO,
2007),
permaneceu,
nas
relações
cotidianas
entre
colonizadores e nativos, vestígios de uma construção simbólica dos
indígenas como um inimigo a ser vencido, um obstáculo a ser transposto
para a realização dos desejos, das fantasias e das faltas objetais de
riquezas. Mesmo no Brasil Império, notamos o emprego das engenharias
coloniais que serviram para a sujeição do nativo à condição de
estrangeiridade e marginalização social.
17
Na verdade, os efeitos das práticas sociais e das tecnologias do
poder do passado colonial usadas para classificar, disciplinar e
exterminar os nativos estão presentes no psiquismo contemporâneo e
guiando as ações de muitos indivíduos. Como exemplo, menciona-se o
caso dos cinco rapazes que atearam fogo em Galdino Jesus dos Santos,
índio da tribo Pataxó, no dia 20 de abril de 1997 (Folha Online,
21/04/1997) e o assassinato de muitos descendentes indígenas para
tomar suas terras e riquezas.
REFERÊNCIAS
ALVES, Márcio Resende Ferrari e ALVES, José Eustáquio Diniz. D. João VI e
o genocídio dos índios botocudos. Anais do XVI Encontro Nacional de
Estudos Populacionais. Caxambu. 2008.
AGÊNCIA FOLHA. Morre índio atacado por adolescente. Disponível em
http://www1.folha.uol.com.br/fol/geral/ge21041.htm. Acessado em 20 de
março de 2013.
AZANHA, Gilberto e VALADÃO, Virgínia Marcos. Senhores destas terras: os
povos indígenas no Brasil: da colônia aos nossos dias. São Paulo: Atual,
1991.
BAUMANN, Thereza B. Imagens do “outro mundo”: o problema da
alteridade na iconografia cristã ocidental. In: VAINFAS, Ronaldo (org.).
América em tempo de conquista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.
COELHO, Claudio Marcio. Raízes do paradigma indiciário. In: RODRIGUES,
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19
LA CARMAGNOLE:
UMA NARRATIVA POLÍTICA DO PEUPLE
Allysson Fillipe Oliveira Lima1
Uma primeira definição para a palavra Carmagnole pode
apontar para um tipo de casaco curto. Entretanto, em 1792, durante a
Revolução Francesa, a Carmagnole se torna uma canção, uma forma
de expressão dos revolucionários, ela passa a conter uma ideia, torna-se
um símbolo revolucionário. A partir disso, a canção surge em partituras
para diferentes instrumentos, ou ainda, com versos diferentes.
Nesta pesquisa, que ainda dá os seus primeiros passos, o foco
recai sobre o que a permite circular entre o “peuple”, que tipo de
questionamento ela pode propor e quais práticas ela pode engendrar.
O estudo da Carmagnole passa pela intenção de compreendê-la
enquanto canção, portanto com traços específicos capazes de
potencializar a sua capacidade de circular informações e propor
questionamentos em uma sociedade parcialmente alfabetizada como
a francesa do final do século XVIII. Para tanto, também se torna
pertinente fazer alguns apontamentos sobre a utilização de músicas
como fontes históricas.
Marcos Napolitano, em seu livro “História e Música”, nos adverti
que uma canção, além de ser boa para ouvir, também pode servir para
pensar as ideias que carrega, bem como o seu espaço e tempo de
produção (NAPOLITANO, 2002, p.8).
Sendo assim, como historiadores, devemos tratá-la com o rigor do
fazer histórico, compreendendo-a como uma manifestação humana,
dada em um determinado tempo e lugar. E, se possível, colocá-la num
conceito, para que seja possível trabalhá-la em um espectro amplo de
ideias, em diálogo ou embate com as demais canções de sua
conjuntura.
Além disso, é importante que a canção seja trabalhada levando1
Graduado e Mestrando em História pela Universidade Federal de Minas Gerais. Email: [email protected]
20
se em conta as suas especificidades: timbres, ritmos, melodias,
harmonias, letras, as diversas execuções, etc. O respeito às suas
especificidades é fundamental para se preservar a riqueza da análise.
(NAPOLITANO, 2002, p.6)
Por exemplo, em uma canção, pode-se ao tocar uma tecla de um
piano deixá-la soar ou encurtá-la, acelerar o seu ritmo ou torná-lo mais
lento, incluir notas com sétima para aumentar o “suspense”, notas
menores para levar à “tristeza”, enfim, uma infinidade de possibilidades
que brincam com os nossos sentimentos e que não devem ser
consideradas irrelevantes em nosso ofício.
Portanto, seria totalmente insatisfatório e insuficiente trabalhar uma
canção como muitos historiadores têm feito, levando-se em conta
somente um de seus aspectos, como a sua letra. Dessa forma, o trabalho
ficaria comprometido, empobrecido, pois se tomaria uma canção por
aquilo que ela não é, como uma poesia, por exemplo.
E, já que passamos a falar sobre a utilização de canções como
fonte histórica, qual a sua possível relevância em se tratando da
Revolução
Francesa?
Roberto Darnton, em seu livro “Poesia e Polícia”, diz que por sempre
tratarmos a nossa sociedade atual, principalmente pela grande
relevância que damos à internet, como a “sociedade de informação”,
menosprezamos a capacidade das demais conjunturas de, sem ela,
circular informações. (DARNTON, 2014, p.7)
Em se tratando de uma sociedade francesa semialfabetizada do
final do século XVIII cujas informações circulam, sobretudo, através da
oralidade, como nós podemos persegui-las?
Em seu trato com os documentos do período, Darnton faz a
seguinte afirmação:
A comunicação oral quase sempre escapou da
análise histórica, mas nesse caso a documentação é rica
o bastante para que se possa colher seus ecos. No século
XVIII, os parisienses às vezes guardavam os pedaços de
papel em que as canções eram escritas, enquanto eram
ditadas ou cantadas. Tais pedaços de papel eram então
transcritos, ao lado de outros textos de caráter efêmero –
21
epigramas, enigmes (charadas), pièces de circonstance -,
em duparios ou cadernos de anotações. Diários formados
sobretudo de canções eram conhecidos pelo nome de
chansonniers, embora os colecionadores às vezes lhes
dessem títulos mais exóticos, como “Obras diabólicas para
à história deste tempo (DARNTON, 2014, p.81).
E vai ainda mais longe ao identificar algumas práticas dos
parisienses:
Os chansonniers deixam claro que os parisienses
improvisavam palavras novas em melodias antigas todos
os dias e com todos os assuntos possíveis – a vida
amorosa das atrizes, a execução de criminosos, o
nascimento ou a morte de membros da família real,
batalhas em tempos de guerra, impostos em tempos de
paz, processos judiciais, falências, acidentes, peças, óperas
cômicas, festivais e toda sorte de ocorrências que se
encaixam na vasta categoria francesa dos faits divers
(fatos variados). Um poema espirituoso com uma melodia
contagiante se espalhava pelas ruas com força irresistível
e, frequentemente, poemas novos se seguiam a ele,
levados de um bairro para outro como rajadas de vento.
Numa sociedade semianalfabeta, canções funcionavam,
até certo ponto, como jornais. Forneciam uma crônica
sobre os fatos do momento.” (DARNTON, 2014, p.84).
Além disso, à essa altura, embora a política se faça entre as
camadas mais altas da sociedade, sobretudo em ambientes da Corte,
há o conhecimento, por parte delas, do poder da “voz popular”. Intrigas
podem ser veiculadas através de poesias e canções, que saem dos
palácios e caminham pelas ruas da Paris setecentista, chegando aos
ouvidos do povo. Durante o seu trajeto, elas sofrem modificações de
populares e, enfim, podem retornar ao lugar de onde vieram. Entretanto,
nesse momento, já podem causar o estrago suficiente para denegrir a
imagem pública de qualquer pessoa (DARNTON, 2014, p.49).
Pelo seu alto grau de circulação, tanto em diferentes camadas
sociais, quanto em alcançar grandes distâncias, e ainda, pela sua
maleabilidade – sua possibilidade de ser facilmente apropriada -, talvez
seja prudente que o processo de análise de uma canção revolucionária
francesa leve em conta três etapas.
A primeira trata a canção em si, através de suas especificidades
musicais, possíveis ideias propostas, quem a produz e para quem se
22
produz, quem se apropria dela, sua conjuntura, o circuito que ela
percorre, etc.
Já a segunda etapa se refere ao conjunto de canções daquela
conjuntura. Como essa canção se relaciona ou se diferencia das
demais?
E, por fim, uma terceira etapa que implica tanto nas modificações
que essa canção pode receber ao longo do avanço do tempo, bem
como, se possível, o rastreamento anterior à canção.
Sobre este rastreamento, refiro-me à pesquisa sobre a melodia ser
uma novidade ou o reaproveitamento de uma melodia anterior.
Novamente utilizando o livro “Poesia e polícia” de Darnton, ele nos diz
que “quando uma letra nova é cantada numa melodia familiar, as
palavras transmitem associações que foram agregadas a versões
anteriores da canção. Portanto, canções podem, por assim dizer,
funcionar como um palimpsesto auditivo” (DARNTON, 2014, p.85). Nesse
caso, diferentes canções podem estabelecer relações entre si através do
uso de uma mesma melodia.
Finalmente, dito tudo isso, o que pode dizer a Carmagnole? Quais
fatos do momento ela fornece?
Em se tratando de uma Carmagnole de 1792, intitulada La
Carmagnole des Royalistes, e encontrada na Bibliothèque nationale de
France, a análise ainda é breve, mas possível se ter a seguinte
compreensão:
[...]chegados à cidade vindos de Carmagnola a
tempo de participar do assalto às Tulherias e da
condução do rei à prisão na Tour du Temple, a nova
canção receberia o nome de “La Carmagnole”. E o
motivo do imediato agrado dessa carmagnole estaria
em que, se o ritmo permitia por seu balanço o cantar
coletivo, com os bailantes a executar uma espécie de
farândula, a letra focalizava o tema político de maior
interesse do momento: os vetos de Luís XVI, em novembro
de 1791, aos decretos da Assembleia contra os privilégios
dos nobres – exatamente o que levaria à realização dos
movimentos de rua, à prisão do rei em agosto e aos
massacres de setembro de 1792. Era esse clima que se
refletia nos versos debochativos da carmagnole, em que
Luís XVI e a rainha Maria Antonieta eram chamados
ironicamente de Sr. E Sra. Veto (TINHORÃO, 2009, p.23-4).
23
A canção também denomina os seus cantantes como sansculottes, enaltece as suas origens suburbanas e diz beber pelas suas
saúdes. Além de colocar em extremos opostos a aristocracia – que seria
como os covardes realistas parisienses - e os patriotas – a “boa” gente
do país-, esta que estaria pronta para lutar com os seus canhões:
“[...]
8
Le patriote a pour amis. (bis
Tout les bonnes jens du pays. (bis
Mais il se soutiendrons
Tous au son des canon. Dansson &.c.
9
Laristocrate á pour amis. (bis
Tout les royalistes à paris. (bis
Il vous les soutiendrons
Tous comme des vrais poltrons. Dansson &.c.
[...]
[...]
12
Oui, je suis sans-culote, moi. (bis
En depit des amis du roi; (bis
Vivent les Marseillois.
Les bretons, et nos lois. Dansson &,c.
13
Oui nous nous souviendrons toujours . (bis
Des sans culotes des fauxbourgs (bis
A leur santé buvons,
Vivent ces bons lurons. Dansson &,c.”2
O número de estrofes se expande conforme os interesses do povo,
e sempre contam com o refrão rítmico e contagiante que completa
cada uma delas.
A partitura em questão não determina o instrumento a ser utilizado
para a sua execução, embora seja possível encontrar partituras de
Carmagnoles para instrumentos de fácil manuseio nas ruas, como
flautas e harpas.3
2
“La Carmagnole des royalistes [à 1 v.] n° 47”, discriminada nas referências
bibliográficas.
3
“La Carmagnole variée pour la harpe...” e “Marche des Marseillois et la Carmagnole
variée pour la flûte par J. M. Cambini”, ambas estão discriminadas nas referências
bibliográficas.
24
É importante ressaltar também a relação dessa canção com os
sans-culottes e com os eventos dos quais eles participam, como as
Jornadas Revolucionárias. Além de, como já foi dito, determinar os seus
cantantes como tal, o próprio nome da música remete a um tipo de
casaco curto utilizado pelos sans-culottes.
Segundo o historiador Patrice Higonnet, os sans-culottes se situam
num duplo campo, social e político, parisiense e revolucionário. O
primeiro se relaciona à “condição social e cultural da população pobre
dos bairros parisienses”, já o segundo é uma radicalização do
jacobinismo, principalmente através das Jornadas Revolucionárias
(HIGONNET, 1989, p.411).
Essas jornadas desempenham um papel importantíssimo pois são
uma inovação da Revolução Francesa. Ao contrário das barricadas, elas
não são táticas de defesa, mas sim uma forma de fazer o povo tomar e
avançar pelas ruas de Paris. (RICHET, 1989, p.102) As Jornadas
Revolucionárias são uma demonstração da soberania do povo durante
a Revolução. O canto da Carmagnole nelas é uma forma de representar
a autoridade popular, “manifestando-a e simbolizando-a”. (BOURDIEU,
1998, p.87)
Por fim, se a Revolução Francesa pode ser compreendida através
do cruzamento de vários processos, dos quais podemos identificar
quatro, sendo eles, a rebelião aristocrática, a aspiração burguesa da
igualdade, o movimento popular urbano e o movimento popular rural,
nós podemos dizer que quem dita o ritmo dos seus passos, justamente
através das Jornadas Revolucionárias, é, sobretudo, o povo. Pois, mesmo
quando há o interesse da burguesia em manipulá-lo, é-lhe impossível
frear os seus movimentos, o que ocasiona em uma situação delicada:
““O povo” identificado com “a nação” era um conceito revolucionário;
mais revolucionário do que o programa liberal-burguês que pretendia
expressá-lo. Mas era também uma faca de dois gumes” (HOBSBAWM,
1977, p.78).
Para melhor compreender essa ascensão do povo à soberania,
também é fundamental aquilo que Roger Chartier vai chamar de
25
processo de dessacralização e desencantamento para com o mundo.
Esse processo que mistura práticas cotidianas, com influências ilustradas,
e revolucionárias, que, de pouco em pouco, são frutos e, ao mesmo
tempo, contribuem para solapar as bases do Antigo Regime. (CHARTIER,
2009, p.283)
Talvez, um importante evento para compreender o movimento de
transição da soberania do monarca para o povo, seja o retorno da
família real após a tentativa frustrada de fuga em 20 de junho de 1791.
Segundo Denis Richet:
Sabe-se o que ocorreu em Varennes no dia 20 de junho.
O povo sucumbiu à cólera, destruindo os bustos do rei e
os emblemas com a flor de lírio. O que houve sobretudo
foi medo: medo de uma conspiração aristocrática dirigida
pelos emigrados e pelas potências estrangeiras, que só
teriam aguardado o sinal de alarme de Varennes para
melhor mostrar a face. Quando o rei regressou, no dia 25,
uma multidão imensa e silenciosa o aguardava. [...] Um rei
abandonara a soberania, fugindo. Um outro rei, o povo
assistia gravemente ao espetáculo (RICHET, 1989, p. 105-6).
Entretanto, ao passar às mãos do povo, o poder tem que se alojar
no único lugar que lhe é possível garanti-lo: na palavra.
Portanto, não mais encoberto pelos ambientes palacianos, em
forma de segredo, o poder agora está público nas palavras, submetido,
finalmente, ao povo.
Uma vez que tratamos da utilização do poder, mediante palavras,
em
um
espaço
público,
nada
mais
coerente
do
que
tentar
compreender como se dá a “opinião pública” na Revolução Francesa.
Entretanto, este é um trabalho árduo, pois “tão logo conseguimos uma
imagem mais definida, ela se embaça e se dissolve, como o Gato de
Cheshire” (DARNTON, 2014, p.18-9):
Mesmo hoje em dia, quando falamos em “opinião
pública” como um fato trivial da vida, uma força ativa em
funcionamento em toda parte, na política e na sociedade,
só a conhecemos indiretamente, por meio de pesquisas
de opinião e declarações jornalísticas; e muitas vezes elas
erram – ou pelo menos se contradizem e são contestadas
por outros indicadores, como as eleições e o
comportamento dos consumidores (DARNTON, 2014,
p.133).
26
Talvez o mais próximo que possamos chegar da, ainda em
construção, “opinião pública” francesa revolucionária, seja mesmo
através da compreensão das ruas parisienses, de onde se emana a
soberania popular e de onde ergue os seus aparentes “tribunais de
opinião”.
Como já foi dito anteriormente, no final do século XVIII, o rei e as
altas camadas da sociedade já notam o crescente poder das massas
de julgar eventos e pessoas públicas. Tendo a sua opinião cada vez
mais levada em conta, o povo parece se informar de tudo através de
boatos, que circulam através de canções, poesias, libelos, etc.
À essa altura, o boato mais temido pelo povo é o de uma possível
conspiração, pois os inimigos da “liberdade” estão, sobretudo, nela. A
ideia de uma conspiração – que vem desde 1789, com a conspiração
aristocrática – é o único adversário à medida da Revolução, “visto que é
talhado sobre ela.
Abstrato, onipresente, matricial, com ela, mas
escondida, sendo pública, perversa, sendo boa, nefasta, embora traga o
bem estar social.
O seu negativo, o seu inverso, o seu anti-princípio”
(FURET, 1988, p.82). A conspiração parte da mesma essência da
consciência revolucionária: “um discurso imaginário de poder” (FURET,
1988, p.82). De um lado, o poder do povo que ascende à soberania,
enquanto que, do outro, o fantasma de um poder absoluto que busca
se restituir.
Os boatos de conspirações estão para a Revolução Francesa,
assim como o demônio está para o Deus cristão. São duas faces de
uma mesma moeda.
Portanto, para além de uma “abstração imaginada pelos filósofos”,
o público que se forma durante a revolução e impõe as suas opiniões
dos fatos tem o seu poder oriundo das ruas de Paris (DARNTON, 2014,
p.143). Compreendê-las, assim, é essencial para se aproximar da
“opinião pública” construída durante a Revolução Francesa.
A partir disso, a questão agora é “saber quem representa o povo,
ou a igualdade, ou a nação: é a capacidade para ocupar esta posição
simbólica, e para a conservar, que define a vitória. ” (FURET, 1988, p.82).
27
Robespierre, ao levar adiante a construção da questão social no
espaço público, é o personagem da Revolução que por mais tempo
desempenha o papel de ”porta-voz autorizado” das ruas:
O porta-voz autorizado consegue agir com
palavras em relação a outros agentes e, por meio de seu
trabalho, agir sobre as próprias coisas, na medida em
que sua fala concentra o capital simbólico acumulado
pelo grupo que lhe conferiu o mandato e do qual ele é,
por assim dizer, o procurador (BOURDIEU, 1998, p.88).
Entretanto, tal projeto fracassa graças à radicalização levada pelo
seu governo e a sua perda de apoio das massas:
Por volta de abril de 1794, tanto a direita quanto a
esquerda tinham ido para a guilhotina, e os seguidores
de Robespierre estavam portanto politicamente isolados.
Somente a crise da guerra os mantinha no poder.
Quando, no final de junho de 1794, os novos exércitos da
República demonstraram sua firmeza derrotando
decididamente os austríacos em Fleurus e ocupando a
Bélgica, o fim estava perto. No Nono Temidor pelo
calendário revolucionário (27 de julho de 1794), a
Convenção derrubou Robespierre. No dia seguinte, ele,
Saint-Just e Couthon foram executados, e o mesmo
ocorreu alguns dias depois com 87 membros da
revolucionária Comuna de Paris (HOBSBAWM, 1977, p.90).
Contudo, embora se trate de um projeto fracassado, a discussão
da questão social é um elemento peculiar da Revolução Francesa, mais
ainda, de seu peuple. A força dele agora é revolucionária, impossível de
se opor:
Quando o rei foi avisado da Queda da Bastilha,
dizem que o rei exclamou “C’est une revolte!”, e Liancourt
corrigiu: “Non, sire, c’est une révolution”. [...] O rei, ao
declarar que o assalto à Bastilha era uma revolta,
afirmava seu poder e os vários meios de que dispunha
para enfrentar conspirações e desafios à autoridade;
Liancourt respondeu que o que havia acontecido era
irreversível e ultrapassava os poderes de um rei (ARENDT,
2011, p.79).
A revolução, tal qual os astros, possui um poder irresistível, que
independe das ações humanas. Sendo assim,
é imprescindível
compreender o que, entre 1789 e 1794, é proposto por ela.
Segundo Hannah Arendt, trata-se da questão social: “foram os
homens
da
Revolução
Francesa
que,
assombrados
perante
o
28
espetáculo da multidão, exclamaram com Robespierre: “La république?
La monarchie? Je ne connais que la question sociale” (ARENDT, 2011, p.89).
A questão social desenvolve um caráter revolucionário quando, na
Idade Moderna, ocupa o espaço público através de homens que não
mais acreditam na miséria como um caráter inerente à humanidade. É
esta questão que, segundo a autora, é capaz de tornar a Revolução
Francesa universal, justamente porque se trata de algo que é universal: a
miséria (ARENDT, 2011, p.49).
A “chave da compreensão da Revolução Francesa”, portanto,
passa pela compreensão da concepção do “peuple” francês que, tal
qual “um monstro de diversas cabeças” (ARENDT, 2011, p.74) - indo “muito
além dos cidadãos, ou dos sans-culottes”, mas “englobando todas as
classes inferiores da população” - é movida por um sentimento de luta,
em prol da questão social ARENDT, 2011, p.60).
Assim, cantar a Carmagnole durante a Revolução Francesa é se
aproximar dessa concepção de “peuple”, construir uma opinião pública,
e engendrar práticas políticas. Trata-se de uma manifestação da
soberania popular, um símbolo. Essa canção traz à tona a miséria do
povo, duvida de seu caráter inerente ao homem, e explode em seu
desejo de lutar. Ela conquista aliados pela sua melodia, pelo seu ritmo,
pelo seu cantar coletivo, e aumenta o seu coro. Seduz através do desejo
irresistível de lutar por uma questão social, pelo miserável, pelo irmão,
pela necessidade da pátria.
A Carmagnole é mais do que uma canção revolucionária, ela
permanece junto à questão social mal resolvida. Portanto, é dessa forma
que ela se permite circular e ser apropriada em tempos e espaços
distintos durante a Revolução.
REFERÊNCIAS:
Fontes:
29
Bibliothèque nationale de France, département Musique, VM7-16374 (“La
Carmagnole des royalistes [à 1 v.] n° 47”).
Bibliothèque nationale de France, département Musique, VM7-7108 (“La
Carmagnole variée pour la harpe...”).
Bibliothèque nationale de France, département Musique, VM9-1726
(“Marche des Marseillois et la Carmagnole variée pour la flûte par J. M.
Cambini”).
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- Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.
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1977.
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Henrique Mesquita. - Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.
TINHORÃO, José Ramos. A música popular que surge na Era da
Revolução. São Paulo, Ed. 34, 2009.
30
HISTÓRIA E NARRATIVA EM PAUL RICOEUR
Breno Mendes1
Introdução
Neste texto2, nos propomos a um mergulho em um tema que tem
recebido
destaque
no
debate
historiográfico
contemporâneo:
a
narrativa na escrita da história. No contexto francês, a partir da década
de 1970, a narração passou a estar na ordem do dia das discussões
historiográficas. A pergunta que guiará nossa empreitada é singela e
essencial: o que é uma narrativa na visão de Paul Ricoeur? A busca de
respostas nos conduz a uma análise do primeiro tomo de Tempo e
narrativa, obra em que o autor tematizou esse problema de maneira
pormenorizada.
A questão sobre os vínculos existentes entre história e narrativa
serviu de mote para a escrita do primeiro volume de Tempo e narrativa3,
publicado originalmente em 1983. Vejamos as palavras do próprio autor
em uma entrevista:
No tocante à história, tenho de precisar que só me
interessei em Tempo e Narrativa por um único problema:
até que ponto a história é narrativa? Esta tinha para mim,
na altura, uma grande urgência, estávamos ainda na era
marcada por Fernand Braudel e pela escola dos Annales,
época essa que assistira ao recuo do acontecimento e
do narrativo, da história política, da história diplomática,
da história das batalhas etc., em benefício de uma história
que se poderia dizer mais estrutural, que dá conta das
forças de evolução lenta e, por isso de longa duração
(RICOEUR, 1997: 119).
O primeiro aspecto que precisamos observar é a tese central da
trilogia, enunciada por Ricoeur do seguinte modo: “o tempo torna-se
1
Mestre em História pela Universidade Federal de Minas Gerais. Email:
[email protected]
2
As ideias aqui discutidas foram apresentadas, primeiramente, em um dos capítulos de
nossa dissertação de mestrado intitulada: “A representância do passado histórico em
Paul Ricoeur: linguagem, narrativa e verdade”, realizada sob a orientação de José
Carlos Reis.
3
Doravante, citaremos a trilogia com a abreviatura: T&N, acrescida do número do tomo
correspondente.
31
tempo humano na medida em que está articulado de maneira
narrativa; em contrapartida, a narrativa é significativa na medida em
que desenha os traços da experiência temporal” (T&N 1: 17). O
desenvolvimento dessa tese que constitui o círculo hermenêutico
ricoeuriano, apresenta duas entradas independentes, uma pelos
paradoxos do tempo, a outra pela organização da narrativa. No
primeiro portal, estão as Confissões de Santo Agostinho, que se indaga
sobre a natureza do tempo sem levar em conta a estrutura narrativa. No
outro, está a Poética de Aristóteles, que constrói uma teoria da intriga
dramática sem se ocupar com a análise do tempo. Em que pese terem
sido produzidas em contextos culturais díspares e parecerem, à primeira
vista, incomunicáveis, Ricoeur dirá que “cada uma engendra a imagem
invertida da outra” (T&N 1: 18).
Na filosofia de Santo Agostinho, o tempo é interior, se passa na
alma. O bispo de Hipona recusa a tese grega que quer definir o tempo
a partir do movimento dos corpos celestes. Na sequência de sua
argumentação, Agostinho sustenta que o tempo não é a medida do
movimento dos astros, mas uma distensão da alma humana. Um dos
exemplos dados é a ação de recitar um hino que se sabe de cor. “Antes
de começar, minha expectativa se estende (tenditur) para o conjunto
desse canto; mas, assim que começo, à medida que os elementos
retirados da minha expectativa tornam-se passado, minha memória se
estende para eles por sua vez” (AGOSTINHO apud T&N 1: 46). Quanto
mais essa ação avança, mais a expectativa é abreviada e a memória,
alongada. A distentio animi (distensão da alma) é a falha, a não
coincidência das três modalidades de ação que ocorrem na alma:
memória, atenção e espera.
A leitura ricoeuriana
evidencia
que,
na
teoria
do tempo
agostiniana, sobretudo com o conceito de distentio animi, a discordância
prevalece sobre a concordância. Na retomada que o filósofo francês
realiza da Poética, ele buscará responder a essa prevalência da
discordância por meio do ato de composição da intriga. Todavia, a
proposta não é resolver o enigma, mas fazê-lo trabalhar de forma
32
poética,
gerando
uma
réplica
invertida
da
dialética
discordância/concordância.
O que é narrar uma história? Paul Ricoeur leitor de Aristóteles
Atravessaremos agora o segundo portal, que dá acesso ao círculo
hermenêutico de Ricoeur em Tempo e narrativa: a Poética de Aristóteles.
Se a distentio animi de Agostinho geme em virtude da pressão
existencial da discordância, Ricoeur encontrará na composição da
intriga (muthos) de Aristóteles uma réplica invertida em que a
concordância triunfa sobre a discordância. Com efeito, a Poética não se
propõe a discutir a experiência temporal. A releitura do filósofo francês
sobre o tratado aristotélico não se confina em uma discussão estrita
sobre o fenômeno do trágico. Antes de examiná-la, cabe, porém, uma
observação a respeito da particularidade de sua leitura.
Ao longo da história da historiografia, tem sido frequente analisar a
relação entre Aristóteles e o conhecimento histórico a partir de seus
apontamentos no livro IX da Poética. Nesse trecho do tratado, está a
famosa distinção e hierarquização entre poesia e história, com posição
de destaque para a primeira, por se ocupar daquilo que poderia ter
acontecido, e não do que já ocorreu. Por isso, a arte poética seria mais
universal que a história e, portanto, mais próxima à filosofia. A produção
de Filosofias da História na modernidade contribuiu para um malentendido recíproco entre historiadores e filósofos. Sem querer buscar um
“mito de origem” para essa questão na Antiguidade Clássica, podemos
dizer que, no contexto grego – ainda que por razões distintas dos
tempos modernos –, a filosofia e a história estavam em tensão. Nas
palavras de Finley, Aristóteles não escarneceu da história, ele a rejeitou
(FINLEY,
1989).
Talvez
em
virtude
da
tendência
anti-histórica
do
pensamento dos gregos,4 que “estavam completamente convencidos
4
“Pode-se ir muito mais longe. Todos os filósofos gregos, até o último dos neoplatônicos,
estavam evidentemente de acordo quanto a sua indiferença para com a história
(como disciplina). Pelo menos é o que o silêncio deles sugere, um silêncio rompido
apenas por murmúrios fugazes” (FINLEY, 1989, p. 4).
33
de
que
qualquer
coisa
que
podia
ser
objeto
de
verdadeiro
conhecimento tinha de ser permanente” (COLLINGWOOD, 1981, p. 38),
Aristóteles veja na história uma fraqueza epistêmica que se limita a
narrar
o
acontecido,
sem
a
capacidade
de
universalizar
suas
proposições, ou, como faz o poeta, dizer o que poderia ter havido,
segundo o verossímil e o necessário.
Ricoeur trilha um caminho alternativo e não chega a se
aprofundar nessa questão, que já motivou várias controvérsias entre
historiadores e filósofos.5 O passo decisivo, nesse sentido, é a opção do
filósofo em considerar, nesse momento de Tempo e narrativa, uma
identidade do ato de narrar, em que pese à heterogeneidade das
obras colocadas sob a égide da narrativa. O efeito obtido é uma
extensão das reflexões aristotélicas para além da poesia trágica,
compreendendo, assim, o campo narrativo de modo geral. Nessa
perspectiva, não há espaço para uma hierarquização entre poesia e
história.
No alicerce da leitura ricoeuriana da Poética está o ternário
mímesis, muthos e katharsis, e não uma análise formal dos elementos da
tragédia.
Esses
conceitos
são
fundamentais
para uma
resposta
satisfatória a nossa questão norteadora (o que é narrar na visão do
filósofo francês?). O conceito de mímesis será desdobrado por Ricoeur
em três momentos, constituindo, assim, seu círculo hermenêutico.
Iniciemos nossa caminhada destrinçando o conceito de mímesis.
Na visão de Ricoeur, este é o conceito diretor da Poética. Mais do que
isso, essa é uma noção deveras controversa na história do pensamento
ocidental, sobretudo quando passou a ser identificada – a partir das
5
Dentre as interpretações contemporâneas destacamos a de Ginzburg e a de Costa
Lima. O historiador italiano convida a uma nova aproximação entre a história e o
pensamento de Aristóteles, sem passar pela Poética, mas com base no tratado sobre a
Retórica (GINZBURG, 2002). Por outro lado, o teórico brasileiro propõe um reexame das
relações entre tragédia e história na Poética. Segundo ele, a epistemologia aristotélica
não trabalha apenas com dois termos (geral e particular); entre ambos existe o ‘usual’.
Costa Lima sustenta, ainda, que na obra de Tucídides o geral se insinua no particular.
Isso ficaria patente na passagem em que o historiador grego diz que “o estudo do
passado permite inferir como é provável que, ante situação semelhante, os homens
virão a se comportar. (...) apesar da formulação esquemática da Poética, o filósofo
levava em conta os seus três critérios epistêmicos [geral, particular e usual]: tanto na
poesia como na história o ‘geral’ se insinua no particular” (COSTA LIMA, 2006, p. 183-184).
34
traduções renascentistas do tratado aristotélico – com imitação (imitatio),
ou duplicação da realidade. Desde logo, enfatizamos que a mímesis
ricoeuriana, que, por sua vez, assenta-se sobre a aristotélica, não deve
ser confundida como uma réplica, cópia ou sombra do real.
De acordo com Luiz Costa Lima, importante teórico brasileiro,
existem duas principais vertentes de interpretação do conceito de
mímesis. A primeira – iniciada por Platão – associa a mímesis à ideia de
cópia. Na leitura de Costa Lima, em Platão, as coisas que estão no plano
visível imitam as ideias, (as formas, as essências), e a as obras de arte
imitam essas coisas. Logo, a mímesis, a representação produzida pelo
poeta, é apenas uma cópia da cópia.
6
Ela cria apenas sombras e
enganos do mundo das essências (COSTA LIMA, 2003).
Entretanto, a concepção de mímesis ricoeuriana está próxima de
uma outra vertente – inaugurada por Aristóteles – e que se afasta da
ideia de mímesis-cópia. A mímesis aristotélica deve ser compreendida
como uma operação produtora de sentido7 (COSTA LIMA, 2000). “A
imitação ou a representação é uma atividade mimética enquanto ela
produz alguma coisa, a saber, precisamente o agenciamento dos fatos
pela composição da intriga (mise en intrigue)” (T&N 1: 73, grifo nosso).
A citação anterior mostra como, na teoria da narratividade de
Ricoeur, há uma correlação forte entre mímesis e muthos, isto é, entre a
representação da ação e o agenciamento dos fatos. Em Aristóteles, a
intriga é uma mímesis da ação (mímesis praxeos) (ARISTÓTELES, 1979). O
filósofo francês opta por traduzir o termo grego muthos por intriga
(intrigue), em vez de utilizar fábula, enredo, mito ou história. Para deixar
claro que sua ênfase é maior sobre a operação do que sobre o produto,
6
“O imitador não tem sem senão um conhecimento insignificante das coisas que imita
e que a imitação não passa de uma brincadeira indigna de pessoas sérias” (PLATÃO
apud COSTA LIMA, 2003, p. 61).
7
“Se continuarmos a traduzir mímesis por imitação, é preciso entender o contrário do
decalque de um real pré-existente e falar de imitação criativa. Se traduzirmos mímesis
por representação, não deveremos entender por essa palavra alguma duplicação da
presença, como poderia se esperar da mímesis platônica” (T&N 1: 93).
35
ele utiliza, amiúde, a expressão mise en intrigue, que pode ser vertida
como pôr em intriga ou tecer da intriga (T&N 1; GENTIL, 2004).
O muthos aristotélico é tomado por Ricoeur como a réplica inversa
da distentio animi de Agostinho. Agora, porém, a concordância
prevalece sobre a discordância. A operação de composição da intriga
coloca juntos, numa mesma intriga, os fatos que antes estavam
dispersos. Assim, ela produz um sentido que esses acontecimentos
díspares não tinham. Quando inserida em enredo, a ação dos homens
torna-se mais inteligível. A intriga não se limita a encadear os
acontecimentos em uma sucessão temporal (um após o outro), mas
também estabelece nexos causais entre eles, dizendo que um
aconteceu por causa do outro, e não meramente por acaso.
Portanto, a operação de síntese, a concordância do discordante, é
o elemento central do tecer da intriga em Ricoeur. O agenciamento dos
fatos sublinha a concordância e é caracterizado por três aspectos: a
completude, a totalidade e a extensão. A noção de todo é central e não
deve ser entendida em sentido cronológico, mas como o caráter lógico
da disposição dos fatos. Na intriga, a sucessão dos acontecimentos está
subordinada à sua conexão lógica. No muthos, não há acaso, mas sim
encadeamento
necessário
–
segundo
a
probabilidade
ou
verossimilhança – entre os eventos. Um todo é o que tem começo, meio
e fim (T&N 1; GENTIL, 2004).
Nesse momento da leitura ricoeuriana sobre a Poética de
Aristóteles, reencontramos a questão do universal e do particular, que já
foi objeto de tantas disputas interpretativas. Segundo o filósofo francês, a
estrutura do muthos constitui uma investigação sobre as causas e
padrões da ação humana. O tecer da intriga (mise en intrigue) produz
universais poéticos, que são distintos dos universais filosóficos. Os
primeiros estão mais próximos da sabedoria prática que das ideias
platônicas, ou seja, são universais concretos (T&N 1; GENTIL, 2004).
Como dissemos anteriormente, a análise que Ricoeur faz da
Poética não se pauta na oposição ou hierarquização entre poesia e
história. Para ele, mais importante do que isso é o contraste entre o um
36
depois do outro e o um pelo outro. Dessa forma, vislumbra-se uma nova
forma de acesso ao universal, que não mais se restringe somente a dizer
aquilo que poderia ter acontecido. Logo, “o possível, o geral não devem
ser buscados em outro lugar que não o agenciamento dos fatos, porque
é este encadeamento que deve ser necessário ou verossímil. Em suma,
é a intriga que deve ser típica” (T&N 1: 84).
Nesse sentido, uma boa intriga – seja historiográfica ou ficcional –
é aquela que não se limita a tomar os fatos de forma aleatória, numa
sequência meramente episódica, incoerente e inverossímil, mas aquela
que produz um agenciamento dos eventos no qual prevalece um
encadeamento lógico entre eles, fazendo, assim, surgir o verossímil e o
necessário. Para Ricoeur, “pensar uma relação de causalidade, mesmo
entre acontecimentos singulares, já é universalizar” (T&N 1: 85). Compor
uma intriga é uma operação que faz surgir o inteligível do acidental, o
universal do singular, o necessário ou o verossímil do episódico. Afinal,
pergunta-se nosso autor, “os historiadores não buscam também colocar
lucidez onde há perplexidade?” (T&N 1: 89-90).
Embora a intriga aristotélica seja um modelo em que prevalecem
a concordância e a ordem, a discordância não deixa de ser incluída.
Quanto a isso, sobressaem as inversões, as mudanças de sorte. Na
tragédia, a passagem clássica é aquela que vai da fortuna ao infortúnio.
A tessitura da trama deve fazer parecer concordante essa discordância.
Esse efeito é obtido quando o um por causa do outro predomina sobre
o um após o outro (T&N 1). Na concepção de Ricoeur, a inversão leva
toda narrativa a referir-se à felicidade ou à infelicidade, criando uma
ligação com o campo ético.8 Entretanto: Entretanto:
O muthos trágico, ao girar em torno das reviravoltas da
fortuna e exclusivamente da felicidade para a infelicidade,
é uma exploração das vias pelas quais a ação lança,
contra toda expectativa, os homens de valor na
infelicidade. Ele serve de contraponto à ética que ensina
8
“Enquanto a ética predica virtudes orientadoras de ações, as narrativas elucidam
como as ações podem levar à infelicidade ou à felicidade, independente das virtudes”
(GENTIL, 2004, p. 98).
37
como a ação conduz à felicidade pelo exercício das
virtudes (T&N 1: 94).
O vínculo entre narrativa e ética pode ser apontado como um dos
pilares da teoria ricoeuriana. Para Ricoeur, quando Aristóteles definiu a
intriga como mímesis da ação (mímesis praxeôs), ele garantiu uma
continuidade entre os campos ético e poético-narrativo, através da
referência que ambos fazem à práxis, à ação humana, que já é dotada
de valores.
O tema da catarse não é explorado com profundidade por
Ricoeur nesse momento. Ao tratar da mímesis III, ele irá se estender, com
mais detalhes, sobre a recepção da obra. Isso foi feito, sobretudo, por
meio do conceito de refiguração.
A construção da mediação entre as Confissões e a Poética é
atribuída por seu autor a uma centelha criativa, uma inspiração que lhe
ocorreu quase por acaso: “Tive – não saberia dizer quando – uma
espécie de lampejo, a saber, a intuição de uma relação de paralelismo
invertido entre a teoria agostiniana do tempo e a noção de muthos em
Aristóteles” (CC: 114). Certo é que, na teoria da narrativa ricoeuriana, o
tecer da intriga implica uma pré-compreensão da ação humana que é
configurada em um enredo e refigura o vivido do leitor, que dele se
apropria. “Sem a referência a essa anterioridade e a uma posteridade
uma narrativa não é inteligível – eis uma ideia central em Ricoeur”
(GENTIL, 2004, p. 101).
A tripla mímesis ou o círculo hermenêutico
A hipótese básica de Tempo e narrativa consiste em dizer que,
entre a atividade de narrar uma história e a experiência temporal, existe
uma correlação necessária e transcultural. O desenvolvimento da tese
central da obra foi feito através de um desdobramento do conceito de
mímesis em três momentos. O exame da chamada tripla mímesis
encerra a primeira parte do tomo I da trilogia e tem como título “O
círculo entre narrativa e temporalidade”. Segundo o autor, esse capítulo
38
contém um modelo, em escala reduzida, da tese que é testada ao
longo de toda a pesquisa. Sua hermenêutica propõe a tarefa de
“reconstruir o conjunto de operações pelas quais uma obra emerge do
fundo opaco do viver, do agir e do sofrer para ser dada por um autor a
um leitor que a recebe e assim muda seu agir” (T&N 1: 106).
Os três estágios da mímesis são assim definidos por Ricoeur: Em
mímesis I, está a referência ao que precede a configuração textual; aqui,
estão incluídas as mediações simbólicas que conferem legibilidade à
ação. Mímesis II é o momento da composição textual, da mímesis
criativa, que funciona como um pivô mediador entre os outros dois
estágios. Por sua vez, mímesis III aponta para o ato de leitura da narrativa
que refigura e transforma o agir do leitor.
Ricoeur inicia sua caracterização de mímesis I sustentando que a
composição da intriga, ou seja, a construção da narrativa está enraizada
em uma pré-compreensão do mundo da ação. Em sua concepção, a
ação possui estruturas inteligíveis, recursos simbólicos e um caráter
temporal que demandam narração. Na esteira de Aristóteles, para o
filósofo francês, a intriga é uma imitação produtiva da ação. A mímesis
engendra uma significação articulada da ação (T&N 1).
Um dos principais argumentos ricoeurianos consiste em dizer que
“a ação já possui em sua própria vivência uma estrutura narrativa
implícita (...) Ninguém se perde no vivido, o que supõe que haja uma
tácita pré-compreensão da experiência” (REIS, 2011, p. 292). Em virtude
disso, o narrador precisa ter a capacidade de identificar na ação as
bases estruturais de sua narração. A ação se distingue do movimento
físico, pois é mediada por linguagem e produzida por sujeitos que
possuem motivos – eles explicam por que alguém fez alguma coisa –,
projetos, objetivos, circunstâncias que, por sua vez, levam à interação e à
cooperação, ou à competição e à luta. Segundo a Poética, a intriga
imita – de maneira criativa e não reprodutiva – essa estrutura do agir e
sofrer humanos. A mesma inteligência que utilizamos para compreender
a ação é empregada para seguir uma história (T&N 1; RICOEUR, 2010).
39
A
compreensão
narrativa
pressupõe
e
transforma
a
pré-
compreensão prática na qual esses elementos existem em uma ordem
paradigmática, ou seja, de forma sincrônica e simultânea – e não um
após o outro. Na passagem da compreensão prática à compreensão
narrativa,
transpõe-se
a
ordem
paradigmática
em
direção
à
sintagmática, em que os elementos são narrados de forma sucessiva.
Nessa
travessia,
os
termos
da
pré-compreensão
ganham
uma
significação efetiva graças ao encadeamento sequencial oferecido pela
intriga aos agentes, ao seu agir e sofrer. Além disso, a narrativa integra e
põe
juntos
termos
heterogêneos,
como
agentes,
motivos
e
circunstâncias, que se tornam compatíveis e operam conjuntamente em
totalidades temporais efetivas (T&N 1).
Em
mímesis
I,
existe
uma
segunda
ancoragem
que
a
compreensão narrativa encontra na compreensão prática: os recursos
simbólicos imanentes à ação. As mediações simbólicas constituem outro
fator que possibilita que a ação seja narrada. As ações podem ser
inseridas em uma intriga porque já estão articuladas em signos, regras e
normas. Esse sistema simbólico fornece o contexto de descrição para as
ações
particulares.
Em
virtude
de
uma
convenção
simbólica,
interpretamos um gesto de tal ou qual maneira. O exemplo clássico é o
ato de levantar o braço, que pode ser interpretado – de acordo com as
convenções e contexto simbólico – como uma saudação, uma maneira
de chamar a condução, de expressar o voto ou um pedido para tomar
a palavra (T&N 1).
O sistema de símbolos imanentes à ação fornece as regras de
significação em função das quais as condutas serão interpretadas. Nesse
sentido, as ações se apresentam como um quase-texto. As normas
imanentes a uma cultura proporcionam o julgamento moral das ações
humanas, elas permitem dizer que determinado ato vale mais do que
outro. Com efeito, em uma narrativa, não apenas as ações são
avaliadas, mas também os agentes que são tomados como bons ou
maus, melhores ou piores. Podemos destacar aqui as pressuposições
éticas da narrativa que, na leitura de Ricoeur, já estão presentes na
40
Poética. Segundo Aristóteles, a comédia procura representar os agentes
piores do que os homens atuais, ao passo que a tragédia os representa
melhores. Tal avaliação é possível por causa da compreensão prática
que os autores partilham com seu auditório, por isso, a ação jamais é
eticamente neutra: “Não existe ação que não suscite, por menor que
seja, aprovação ou reprovação, em função de uma hierarquia de
valores dos quais a bondade e a maldade são os polos” (T&N 1: 116).
As respostas à questão que formulamos no início – o que é uma
narrativa para Ricoeur? – parecem ganhar corpo à medida que nossa
leitura de Tempo e narrativa avança. A concepção ricoeuriana de
narrativa é tributária da Poética aristotélica, ou seja, ela é compreendida
como mímesis praxeos – mímesis da ação. Nesse sentido, a operação
de narrar uma história não está radicalmente separada da vida prática.
Se não há ação eticamente neutra, isto é, não existe algum ato que não
seja estimado como bom ou mal em relação a uma configuração
cultural, logo, não há representação da ação que não seja eticamente
comprometida com uma orientação para a vida prática (GENTIL, 2011).
O entrelaçamento entre narrativa e ética mostra que o realismo crítico
de Ricoeur não se restringe a aspectos epistemológicos.
Após
explicitar
quais
seriam
as
características
da
pré-
compreensão do campo prático que, simultaneamente, propiciam e
demandam narração, o filósofo francês passa a caracterizar o segundo
momento da mímesis. Em mímesis II, abre-se o reino do como se. Esse
estágio da mímesis tem uma função de mediação entre a précompreensão e a refiguração da vida do leitor. Ademais, a intriga
constrói mediações em outros níveis. A mise en intrigue (tessitura da
intriga) opera uma intermediação entre os acontecimentos individuais e
a história tomada como um todo. Em outras palavras, ao narrar, o autor
extrai uma história sensata (sensée) – significativa – de uma miríade de
eventos. Nesse processo de construção de sentido, os incidentes são
transformados em história. A composição da intriga converte uma
simples sucessão de eventos em uma configuração inteligível que
permita a identificação do “tema” da história. Por outro lado, a tessitura
41
da intriga “compõe juntos fatores tão heterogêneos como agentes,
objetivos, meios, interações, circunstâncias, resultados inesperados” (T&N
1: 127). Enfim, a intriga é uma síntese do heterogêneo, uma configuração
temporal em que a concordância prevalece sobre a discordância.
A noção de “seguir uma história” também é importante para a
teoria ricoeuriana da narrativa. O conceito de followability foi pinçado por
Ricoeur
da
obra
do
filósofo
W.B.
Gallie.
Em
poucas
palavras,
“acompanhar uma história” é avançar, guiado por uma expectativa, em
meio a suas contingências e peripécias até a conclusão. Entretanto, o
fechamento da intriga não deve ser previsível a partir das premissas que
a antecedem. “Compreender a história é compreender como e por que
os episódios sucessivos conduziram a essa conclusão, que, longe de ser
previsível, deve ser, finalmente, aceitável, congruente com os episódios
reunidos” (T&N 1: 130). A conclusão dá um “ponto final” à história, a partir
do qual ela pode ser considerada como uma totalidade de sentido.
A capacidade de a história ser seguida constitui, para Ricoeur, a
solução poética ao paradoxo do tempo em Agostinho. Como na
composição da intriga, a dimensão configurante sobressai sobre a
episódica, a representação do tempo engendrada não se limita à
linearidade. No ato de releitura de uma história já conhecida, não se
buscam
surpresas
ou
descobertas.
Quando
relemos
uma
obra
procuramos, de alguma forma, encontrar pistas do fim logo no início da
narrativa e indícios do começo na conclusão. Ao fazer isso, escapamos à
chamada
“flecha
do
tempo”
e
aprendemos
a
ler
o
tempo
retrospectivamente, e não apenas na direção que aponta do passado
ao futuro: “Noto en passant que renarrar uma história é um melhor
revelador dessa atividade sintética à obra na composição, na medida
em que somos menos cativados pelos aspectos inesperados da história
e permanecemos mais atentos à maneira pela qual ela se encaminha
para sua conclusão” (RICOEUR, 2010, p. 199).
Estamos chegando ao último momento do círculo hermenêutico.
Antes de completar nossa transição pelas três fases da mímesis, é
importante explicitar que o filósofo francês indica haver continuidade na
42
passagem de mímesis II à mímesis III. Destacamos aqui a ideia de
tradicionalidade. Na perspectiva ricoeuriana, a tradição não é entendida
como um depósito morto cuja transmissão de sentido se deu de forma
inerte. Pelo contrário, a constituição de uma tradição acontece em um
jogo entre inovação e sedimentação. Ricoeur faz esses apontamentos
pensando, principalmente, na questão dos gêneros literários e dos
paradigmas ou modelos de narrativa. Tais padrões de narração não
são construídos apenas com adequações a moldes pré-estabelecidos,
mas também são formados por obras singulares. Porém, mesmo uma
narrativa inovadora está submetida a regras. Ela está ligada a uma
tradição, ainda que seja para transformá-la numa espécie de
“deformação regrada” (T&N 1).
Até agora, elencamos elementos relevantes para a elaboração
da resposta à questão norteadora deste capítulo: o que é uma narrativa
na visão de Ricoeur? Vimos, através de uma síntese sobre dois
momentos da mímesis, que as considerações de Aristóteles sobre a
intriga têm um papel essencial na teoria ricoeuriana da narrativa.
Entretanto, para o filósofo francês, a narrativa só atinge seu sentido pleno
quando é restituída ao tempo do agir e sofrer humanos, e isso acontece
em mímesis III. O principal interesse da exposição sobre o círculo
mimético é a sustentação da tese central da obra: “nosso interesse pelo
desdobramento da mímesis não é um fim em si mesmo. A explicação
da mímesis continua subordinada até o fim à investigação da
mediação entre tempo e narrativa” (T&N 1: 136).
Mais
uma
vez,
os
argumentos
do
estagirita
se
mostram
fundamentais. Na Poética, Aristóteles já teria dado indicações de que o
percurso da mímesis conclui-se no ouvinte ou leitor. A intriga gera um
efeito em seu receptor. Na teoria aristotélica, a tragédia, ao representar
mudanças de sorte inesperadas (do infortúnio à fortuna e desta ao
infortúnio), é capaz de realizar uma depuração de emoções no ouvinte,
a célebre catharsis. Em Ricoeur, a mímesis III marca a interseção entre o
mundo do texto – mímesis II – e o mundo do leitor.
43
As críticas de David Carr à Paul Ricoeur
Com efeito, antes de caminharmos rumo à conclusão de nossa
análise sobre a tripla mímesis, eis que um obstáculo importante surge
em nosso caminho. Temos ressaltado a importância dessa análise para
o intuito de sublinharmos o alcance de regiões ontológicas da
experiência pelo realismo crítico de Ricoeur. Todavia, existem outros
autores no contexto contemporâneo, como David Carr, que também
postulam haver uma continuidade entre a narrativa e o mundo real. A
dificuldade começa a se constituir quando Carr expõe uma leitura da
teoria ricoeuriana que vai em sentido oposto a nossa tese, afirmando
que o filósofo francês constrói uma cisão entre a narrativa e a práxis.
Carr inicia seu artigo “Narrativa e mundo real: um argumento a
favor da continuidade” expondo a posição de autores que questionam
a capacidade de a narrativa representar a realidade. Para nomes
importantes como Louis Mink, Hayden White e Roland Barthes, há um
corte descontínuo entre a narrativa e a experiência. Para eles, a vida não
tem princípios ou finais; a experiência não possui sentido intrínseco.
Assim, quando os acontecimentos são apresentados em uma estrutura
narrativa,
há
uma
projeção
de
qualidades
narrativas
sobre
a
experiência para que sua carência de significado seja suprida (CARR,
1986; PELLAUER, 1989).
Em contrapartida, Carr sustenta uma tese que aponta para o
sentido inverso. Para ele, a estrutura narrativa permeia nossa experiência
temporal de tal forma que existe uma continuidade entre a narrativa e a
vida cotidiana. Em sua perspectiva, “a narrativa não apenas é uma
forma bem-sucedida de descrever os fatos, sua estrutura está inserida
nos próprios fatos. Uma explicação narrativa, longe de ser uma distorção
formal dos fatos que relata, é um prolongamento de seus traços
fundamentais (...) uma comunidade formal” (CARR, 1986, p. 15).
O embaraço é criado no momento em que Carr assegura que,
para Ricoeur, a estrutura narrativa está tão separada do mundo real
como para os outros autores anteriormente citados, apesar de, à
44
primeira vista, ele parecer indicar o oposto quando cita os elementos
pré-narrativos da experiência em mímesis I. O problema, segundo Carr, é
que essa prefiguração não é uma estrutura narrativa em si mesma, já
que existe uma brecha ou um rasgo entre a prefiguração e a
configuração da trama. O autor acrescenta ainda que, por meio de uma
leitura de Agostinho, o filósofo francês caracteriza a experiência temporal
como essencialmente discordante. Sua conclusão é que “se o papel da
narração consiste em introduzir algo novo no mundo, e o que introduz é
a síntese do heterogêneo, então ela acrescenta aos fatos do mundo
uma forma que de outra maneira eles não tem” (CARR, 1986, p. 17).
Nosso exame desse embate procurará fugir do caminho mais fácil
– embora não completamente incorreto –, que consiste em afirmar que
Carr interpretou de modo equivocado9 a teoria ricoeuriana. Para tanto,
bastaria remeter aos argumentos arrolados por Ricoeur para indicar a
continuidade entre a experiência e a narrativa ao tratar de mímesis I. Em
vez disso, vamos fazer referência, ainda que de modo esquemático, a
algumas das razões para a discordância entre os autores, ressalvando
que tais motivos não devem colocá-los em estrita oposição. Iniciemos
apontando as semelhanças entre os autores. Ambos estabelecem um
estreito vínculo entre a narração e a ação humana.10 O que parece
incomodar Carr é a existência de mediações e desvios que tornam essa
relação indireta na teoria ricoeuriana. Ao tratar do primeiro momento da
mímesis, Ricoeur diz construir uma espécie de semântica da ação – e
não uma descrição direta da ação em si –, já que para ele, na esteira
de algumas discussões do giro linguístico, não é possível descrever a
ação senão por intermédio da linguagem e das mediações simbólicas.
Segundo Pellauer, Carr, influenciado pela fenomenologia eidética de
Husserl, considera a possibilidade de chegar às coisas em si, julgando
9
Um elemento que pode atenuar essa interpretação é o fato de Carr se referir apenas
ao primeiro tomo de Tempo e narrativa ao escrever seu artigo.
10
Houve uma mesa redonda em Otawa no Canadá que discutiu o primeiro tomo de
Tempo e narrativa. Esse evento contou com a presença dos dois autores. Infelizmente,
não conseguimos ter acesso a esse texto, senão através de alguns comentários feitos
por David Pellauer. Sua referência é “Table Ronde/Roud table: Temps et récit, volume I”
Revue de L’université d’Otawa, 55 (Octobre-Decembre, 1985).
45
que “é possível aceder à ação diretamente, sem necessidade da
semântica ou da mímesis da ação na narrativa” (PELLAUER, 1989, p. 292).
Outro ponto importante diz respeito à própria ideia de mímesis.
Como temos salientado, em Ricoeur, esse conceito não tem o sentido de
cópia ou imitação. Disso decorre uma conclusão relevante: se a
narrativa é uma mímesis da ação prefigurada, e esta mímesis é
produtora – e não reprodutora –, o efeito obtido não é um mero reflexo
de uma cena primeira. Em suma, a narração não apenas configura a
ação, mas também a modifica e refigura no momento da leitura. Esse
argumento possui duas implicações: 1) mostra que, em Ricoeur, embora
haja certa continuidade entre a narração e a experiência, essa relação
é indireta e possui interstícios que abrem espaço para descontinuidades
– se não fosse assim, o círculo hermenêutico seria vicioso e, em mímesis
III, teríamos um mero espelho de mímesis I; 2) é justamente essa fenda –
lamentada por Carr – que assume o caráter de uma descontinuidade
produtiva e possibilita que a narrativa produza uma inovação semântica
que pode trazer, inclusive, um enriquecimento de sentido à ação,
tornando-a mais inteligível. “Há maior inteligibilidade e potencialmente
maior significado no círculo da tripla mímesis do que na ação isolada de
sua configuração em um relato e em sua reconfiguração na leitura”
(PELLAUER, 1989, p. 293).
Considerações finais
O obstáculo lançado por Carr em nosso caminho foi importante,
pois nos permitiu abordar um aspecto fundamental de mímesis III: o
efeito produzido no leitor pela obra. O ato de ler, segundo o filósofo, é
uma obra conjunta do texto e de seu leitor. Seguindo alguns raciocínios
apontados por autores da chamada estética da recepção11 – com
destaque para R. Ingarden, W. Iser e H.R. Jauss –, Ricoeur sustenta que a
11
O próprio Ricoeur analisa, no terceiro tomo de Tempo e narrativa, algumas das
diferenças entre os autores dessa corrente. Iser, por exemplo, acentua a recepção em
um leitor individual, ao passo que Jauss privilegia os horizontes da recepção coletiva
da obra. Cf. “Mundo do texto e mundo do leitor”, em : Tempo e narrativa, v. 3.
46
obra é um esboço para a leitura, que o texto possui lacunas, zonas de
indeterminação que são preenchidas criativamente pelo leitor.
Em mímesis III, o mundo projetado pela obra se entrecruza com o
mundo do leitor, atando-se à experiência cotidiana e ao mundo efetivo.
O mundo do texto possui uma função mediadora ausente em A
metáfora viva, ele introduz um momento de transição entre a
configuração e a refiguração “A refiguração procede de um mundo a
outro, de um mundo fictício a um mundo real através de um mundo
potencialmente real” (RICOEUR, 1990, p. 35). Podemos perceber também
que, em Tempo e narrativa, há um destaque significativo para o papel
da leitura. A refiguração indica que o texto tem um efeito sobre o leitor
contribuindo para que ele compreenda melhor a si mesmo. Isso implica
que a mímesis seja um processo que revela e também transforma a
práxis cotidiana alargando nosso horizonte de existência.
REFERÊNCIAS
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RICOEUR, Paul. A crítica e a convicção. Trad. António Hall. Lisboa: Edições
70, 1997
______. A vida: uma narrativa em busca de narrador. In: ______. Escritos e
conferências 1: em torno da psicanálise. Trad. Edson Bini. São Paulo:
Edições Loyola, 2010.
______. Temps et récit. 3 tomes. Paris: Éditions du Seuil, 1991b. (Collection
Points Essais).
Bibliografia geral
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de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Coleção Os Pensadores)
COLLINGWOOD, Robin George. A ideia de História. 5. Ed. Trad. Alberto
Freire. Lisboa: Editorial Presença, 1981.
CARR, David. La narrativa y el mundo real, Historias, 14, p. 15-27, 1986.
47
COSTA LIMA, Luiz. Mímesis: desafio ao pensamento. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2000.
______. Mímesis e modernidade: formas das sombras. 2. ed. Prefácio de
Benedito Nunes. São Paulo: Graal; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.
______. História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
FINLEY, Moses I. Uso e abuso da História. Trad. Marylene Pinto Michael.
São Paulo: Martins Fontes, 1989.
GENTIL, Hélio Salles. Ética e ficção: uma relação a partir da hermenêutica
de Paul Ricoeur. In: PAULA, Adna Candido; SPERBER, Suzi Frankl (Org.). Teoria
literária e hermenêutica ricoeuriana: um diálogo possível. Dourados:
Editora da UFGD, 2011.
______. Para uma poética da modernidade. Uma aproximação à arte do
romance em Temps et Récit de Paul Ricoeur. São Paulo: Edições Loyola,
2004.
GINZBURG, Carlo. Relações de força: história, retórica, prova. Trad. Jônatas
Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
PELLAUER, David. Delimitando lo liminal: Tiempo y relato en Carr e Ricoeur,
Semiosis, n. 22-23, p. 279-298, ene./dec. 1989.
48
ASPECTOS DA HISTÓRIA DA GUERRA DE LA TRIPLE
ALIANZA EM TEMPOS DE STROESSNER
Bruna Reis Afonso1
Introdução
As interpretações historiográficas sobre a Guerra do Paraguai, em
muitos aspectos, não são consensuais, nem mesmo na forma de
denominá-la. Guerra do Paraguai, Guerra de la Triple Alianza, Guerra
contra la Triple Alianza, Guerra del 70, Guerra Grande são nomes
atribuídos ao maior conflito ocorrido na América do Sul durante o século
XIX. Rosendo Fraga (2004) chama atenção para a multiplicidade de
versões presentes nos livros didáticos dos quatro países envolvidos e que
é ensinada aos estudantes sobre o conflito, mesmo depois dos “espíritos”
estarem mais “desarmados” e a historiografia ter avançado na busca
por uma interpretação mais “isenta” e também mais crítica.
Este trabalho procura analisar como foi construída a narrativa
sobre a guerra durante o regime Stroessner, figura entre as mais longas
e autoritárias ditaduras da América Latina. Alfredo Stroessner Matiauda
(1912- 2006) governou o Paraguai de 1954 a 1989, 35 anos, dentre as
estratégias para legitimar-se e permanecer no poder fez uso de um
discurso fortemente anticomunista e nacionalista, mobilizando a história
através do resgate da memória dos grandes heróis nacionais,
principalmente a de Solano López, procurando associar sua imagem a
daquele que era considerado o grande herói da Guerra. Durante seu
governo ocorreram duas importantes reformas educacionais com o
apoio da Unesco e da AID - Agência Norte Americana para o
Desenvolvimento Internacional - que visavam a modificar a estrutura do
sistema educacional desde as construções escolares até o currículo.
Tendo em vista a mobilização da história de maneira a justificar o
regime e os aportes feitos no sistema educacional, os manuais escolares
11
Graduanda em História
[email protected]
– Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail:
49
tornam-se fontes privilegiadas para compreender a história da guerra
ensinada aos jovens no período, bem como, as projeções sobre
passado, presente e futuro que permeiam a narrativa oficial sobre esse
evento traumático.
O pós-guerra e as representações dos López
Após
1870 a
história
paraguaia
é marcada
por grande
instabilidade, lutas internas e graves problemas econômicos.
Morto
Solano López, um triunvirato passa a governar o país e o declara traidor
da Pátria. López passou a figurar na história oficial como “um ditador que
lançou seu país em guerra imprudente contra vizinhos mais poderosos”
(DORATIOTO: 2002, 79). Thomas Whigham ressalta que
los detractores paraguayos del mariscal, quienes
mayormente se afiliaron al Partido Liberal desde fines del
siglo diecinueve, lo consideraban un monstruo sin igual
cuya vanidad exigió la extinción de su pueblo. En su
mundo en blanco y negro, lo pintaron más oscuro que la
oscuridad, y a sus seguidores como simples estúpidos o
bárbaros. (2012, 502)
Os seguidores a quem Whigham se refere eram estudantes
secundaristas e universitários – “que desejosos de construir uma
sociedade melhor (...), necessitavam de heróis que encarnassem os
valores,
supostos
(DORATIOTO:
2002,
ou
80)
verdadeiros,
–
e
da
nacionalidade
camponeses
que
paraguaia.”
falavam
guarani,
espalhados em diversos pontos do país e seguiram cultuando a
imagem de López.
Sob a influência dos aliados convocou-se uma Convenção
Nacional Constituinte. Afim de expurgar o autoritarismo do passado
próximo a Constituição deveria adotar princípios liberais, democráticos e
anti-personalistas que salvaguardassem a República.
Em 25 de
setembro de 1870 a nova Constituição foi aprovada pela Convenção
que elegeu Presidente da República a Cirilo Antonio Rivarola, “antiguo
50
soldado de López, al cual había repudiado por sus actos tiránicos”
(CARDOZO: 2011,113).
Na década de 1880 fundaram-se os dois partidos tradicionais, o
Centro Democrático (1887) que mais tarde transformou-se em Partido
Liberal e a Associação Nacional Republicana (1887), conhecido
popularmente como Partido Colorado. O primeiro agrupou jovens
intelectuais e camponeses expropriados descontentes com os caudillos
que controlavam o governo. O segundo agrupou os terratenentes e
militares conservadores sob a liderança de Bernardino Caballero “um
dos oficiais mais aguerridos de López”. (ARCE: 1988, 225).
As disputas políticas entre os dois partidos culminaram em um
movimento armado que ficou conhecido como Revolução de 1904 ou
Revolução Liberal, que contou com o apoio dos argentinos, camponeses
e operários. Vale ressaltar, novamente, que os liberais também eram
profundamente anti-lopistas.
Em junho de 1932 iniciou-se a Guerra do Chaco, de acordo com
Ceres, Moraes “a Guerra do Chaco e seu desenlace criaram, no
Paraguai, uma situação revolucionária, que serviu para unir, num mesmo
movimento todas as correntes antiliberais” (2000, 27). Assim, na década
de 1930 surgiu um movimento encabeçado por militares nacionalistas,
que propôs a reforma agrária e a promoção do desenvolvimento
industrial do país.
Lorena Soler argumenta que a Guerra do Chaco fomentou um
nacionalismo na sociedade paraguaia com diversas correntes, desde as
fascistas, representada por Natalício Gonzáles, até aquelas que
reivindicavam direitos sociais e políticos.
Neste momento os militares,
desta vez, vitoriosos tornam-se os atores políticos que poderiam melhor
representar a nação. Assim, a Guerra do Chaco abriu caminho para
olhares heroicos sob o passado militar e os manuais de história voltam a
ser reescritos para contar que foram declarados próceres beneméritos
José Gaspar de Francia2 , Carlos López e Francisco Solano López.
2
Proclamada a independência paraguaia, em 1811, constituiu-se uma junta
governativa presidida por Fulgencio Yegros e integrada pelo Dr. Francia (José Gaspar
Rodriguez de Francia), Pedro Juan Caballero, Francisco Xavier Bogarín e Fernando de La
51
Soler ressalta que na década de 1920 eclodiram movimentos de
caráter nacionalista e anti-liberal em diversos países da América Latina e
da Europa, este período é marcado pela busca, das raízes culturais e
sociais da nação, do originário, tendo em vista a construção da
identidade nacional. É em busca das origens da nação paraguaia que
Rafael Franco cria uma expedição que vai a Cerro Corá na tentativa de
resgatar os restos mortais de Solano López, segundo os relatos dos
expedicionários o caminho foi facilitado pelas sinalizações que os
soldados paraguaios inscreveram em guarani nas cascas das árvores.
Tal relato permitiu fundir a língua guarani, com o herói da pátria e
ressaltar a importância da língua como elemento originário do país. É
neste contexto que o Panteón de los Heroes surgiu, no mesmo local
destinado ao culto a Virgem de Assunção, que havia sido construído em
1863, durante o governo Solano López3 .
Mora. Em 1813 o Paraguai efetiva seu rompimento com Espanha e Buenos Aires ao
proclamar a República, estabelecendo uma nova forma de governo denominada
consulado. Fulgêncio Yegros e Dr. Francia foram designados cônsules, este pôs em
marcha uma campanha política com a qual se difundiu a crença de que só um
homem com seu caráter e talento seria capaz de enfrentar a grave situação
ocasionada pela ruptura com Buenos Aires (CARDOSO: 2011, 59). As manobras políticas
de Francia alcançaram seu objetivo no congresso de 3 de outubro de 1814, no qual foi
designado ditador por um período de 5 anos. Em 1816 Francia reuniu um novo
congresso para fazer-se nomear Ditador perpétuo e ser sem exemplar. Francia
governou o Paraguai até sua morte, em 1840, sua sucessão foi decidida pelos
comandantes dos quartéis (Cardozo, 2011) que nomearam Carlos Antonio López e
Mariano Alonso como cônsules. Em 1844 López foi nomeado presidente por um
período de dez anos. Seu governo é caracterizado, em comparação ao de Francia,
por uma maior abertura ao exterior, Carlos López enviou jovens para estudar em
Londres e Paris, além de ter trazido ao país técnicos da Europa, principalmente da
Inglaterra. López também foi responsável por mandar fazer a bandeira e o hino
nacional. Carlos Antonio López também governou até sua morte, em 10 de setembro
de 1862, mas diferentemente de Francia havia deixado um sucessor, seu filho, Francisco
Solano López., também conhecido como Mariscal López. Ainda no governo de seu pai,
Solano López foi nomeado general do exército paraguaio aos 18 anos, tendo também
um papel importante no que diz respeito as relações públicas no período, ao liderar a
missão a Europa que articulou a vinda de técnicos e educadores bem como a compra
de maquinarias. Seu governo também dura até sua morte, no dia 1º de março de
1870, em Cerro Corá.
3
O Panteón de los Héroes localiza-se no centro de Assunção, é o local onde
encontram-se os restos mortais dos heróis da Pátria. Além de Francisco Solano López
compõem o mausoléu os restos de seu pai, Carlos Antonio López, Bernardino Caballero,
52
Ascensão de Stroessner
Em 1937, o Partido Liberal, retornou ao poder através de um golpe.
Em 1939 o Marechal Estigarríbia assumiu a presidência e aboliu “todas
as medidas de caráter social adotadas pelo governo anterior” (Moraes:
2000, 29), além de ter forçado a dissolução do congresso e revogado a
Constituição de 1870.
Estigarríbia morreu em setembro de 1940, sendo substituído por
Higino
Morínigo
operárias
e
que
dissolveu
reprimiu
o
veementemente
partido
Liberal.
as
organizações
Morínigo
foi
eleito
constitucionalmente em 1943, em uma eleição de candidato único, as
péssimas condições de vida da população se agravaram, o que
culminou numa greve geral dos trabalhadores ocorrida em abril de
1944, as pressões dos grevistas e dos partidos Frebrerista e Colorado
resultaram na formação de um governo de Coalizão que teve
participação do partido Colorado, partido Frebrerista e representantes
das forças armadas. Contudo, as medidas de caráter democrático como
a legalização do partido Comunista, a reorganização dos sindicatos e a
libertação de presos políticos não agradaram a todos os setores da
sociedade, por exemplo, aqueles que integravam o Guión Rojo, havia
também
o
descontentamento
dos
católicos
conservadores
que
demandavam a ilegalidade do Partido Comunista. Neste contexto, em
janeiro de 1947, Morínigo dissolveu o governo, decretou o estado de
sítio, nomeou um novo gabinete formado apenas por colorados e
desencadeou um novo período de repressão aos frebreristas, liberais e
comunistas.
Em resposta a essas medidas jovens Frebreristas atacam a
Delegacia Central de Polícia e o Colégio Militar, ocorrem levantes na
região chaquenha que recebem apoio de liberais, frebreristas e setores
das forças aramadas. Instala-se o terror, o Guión Rojo, sai às ruas em
busca de opositores, de acordo com Ceres Moraes cerca de 4000
Crianças que lutaram na Batalha de Acosta Ñu, José Félix Estigarribia, herói da Guerra
do Chaco, dentre outros.
53
pessoas foram presas e várias assassinadas. Os Colorados ascendem e
passam a dominar a máquina burocrática. O domínio colorado não
significou estabilidade política, já que num período de seis anos, entre
1948 e agosto de 1954, cinco presidentes estiveram no poder.
No dia 04 de maio de 1954, um movimento militar comandado
pelo General Stroessner, depôs o então presidente Frederico Chávez.
Stroessner não assumiu imediatamente o poder, o partido Colorado
indicou como presidente provisório Tomás Romero Pereira, que marcou
eleições para o dia 12 de julho. Stroessner tornar-se presidente do
Paraguai pelas vias legais, apesar de a eleição ter apenas ele como
candidato
Stroessner manteve-se no poder por 35 anos, seu governo durou
mais que ditadura de Francia (26 anos) e que o governo dos López (28
anos). A longevidade do regime Stroessner deve-se a uma conjuntura
externa e interna favorável. Basta lembrar que sua ascensão ocorreu no
período de guerra fria e de suas estreitas relações com os militares
brasileiros.
De acordo com Myrian Gonzáles Vera (2002) é provável que a
longevidade do regime deva-se ao uso constante da repressão e do
terror, que conseguia desmobilizar e paralisar as forças opositoras. O
partido Colorado também foi uma ferramenta importante para a
consolidação do regime, o partido tinha uma base nacional ampla e
através de suas seccionais ou subseccionais criou-se uma estrutura de
clientelismo, espionagem e delação. Para ser funcionário público era
necessário afiliar-se ao partido, assim a estrutura partidária incorpora
milhares de cidadãos que recorriam as seccionais em busca de favores.
Stroessner também fomentou o culto a sua imagem, ruas, praças,
bairros, o Aeroporto Nacional de Assunção e a segunda maior cidade
do país se denominavam Presidente Stroessner (VERA: 2002).
Stroessner também procurou colocar-se como sucessor dos heróis
da nação difundindo a ideia de que viera para trazer a paz e o
progresso, assim como o fizeram os grandes heróis do passado.
54
Stroessner resgatou a memória dos heróis nacionais, principalmente a
de Solano López.
A educação durante o regime Stroessner
Durante o regime Stroessner ocorreram importantes reformas no
sistema educacional. A primeira iniciou-se em 1956 com a mediação da
Unesco e foi denominada “Reforma de 1957”. Esta reforma aspirava
“elevar el nível cultural del pueblo paraguayo”(HORAK: s/d, 111) e a “una
educación moderna, democrática y activa” (BENÍTEZ: s/d, 148), dentro
dessa proposta foram criados os Centro de Alfabetização com a
finalidade de promover um “programa intensivo de educación de
jovenes e adultos” (Idem, 152). Outra mudança importante é trazida pela
Constituição de 1967 que torna a educação primária obrigatória, pública
e gratuita. Em 1968, o Ministerio de Educación y Culto promoveu um
diagnóstico do sistema educativo e em 1970 realizou-se o Primer
Seminario Nacional sobre Desarrollo Educativo, esses são os dois eventos
que culminaram na formulação de uma comissão encarregada de
“preparar un Proyecto para el desarrollo de la educación primaria, de las
construucciones escolares, de la formación docente y del curriculum”
(Idem, 155) este projeto efetivou-se através de empréstimos concedidos
pela
AID
(Agência
Norte
Americana
para
o
Desenvolvimento
Internacional) e pelo Banco Mundial para implementação
das
“Innovaciones educaionales” em 1973.
Para a educação primária, especificamente, a reforma estabelecia
que um de seus objetivos era que a criança “conozca los hechos
relevantes de la historia nacional, honre y respete las grandes figuras de
la patria, desarrollando un patriotismo inspirado en el pasado, afincado
en el presente y proyectado al futuro (...).” (Ministerio de educación y culto:
1973, 22). Já
o jovem estudante de nível médio deve afirmar “una
actitud positiva hacia el sentimiento de paraguayidad, que lo lleve a
conocer, a respetar y amar su historia, sus riquezas naturales y artísticas,
su cultura y tradiciones y se convierta él mismo en un promotor del
55
incremento del patrimonio nacional” (Idem, 54). Nessa perspectiva, as
Innovaciones
Educacionales
entendem que a
História, enquanto
disciplina que integra os Estudos Sociais, “trata de los éxitos y fracasos del
hombre a través del tiempo” (Ídem, 103).
Chama atenção também o texto do Programas de Estúdio
Professorado de Educación Primária publica do em 1983, quando as
Innovaciones Educacionales já estavam consolidadas. Ao serem
estabelecidas as bases para educação nacional o Ministério de
Educación y Culto levou em conta a natureza do homem paraguaio, a
cultura paraguaia e “A la realidad nacional en su triple dimensión
histórica: la de su pasado enaltecido por el ejemplo de sus héroes y
prohombres, la de su presente comprometido con el proceso de su
desarrollo y la de su futuro optimista y promisor (...)” (Ministério de
educación y culto: 1983,13).
O Guia didático dos manuais de Estudos Sociais da Serie Ñanduti,
produzida pelo Ministerio de Educación y Culto, oferece sugestões
metodológicas para que o professor estimule o patriotismo através de
atividades propostas aos alunos que devem “(...) Leer biografías de
patriotas, héroes, gobernantes, científicos y escritores nacionales. Destacar
su contribución en la formación de la conciencia nacional”. (Ministerio de
educación
y
culto:
1989,
57).
Além
de
“participar
en
actos
conmemorativos sobre los Símbolos Nacionales. Además pueden escribir
poesías dedicadas a la bandera, el escudo, a fin de exaltar el
nacionalismo paraguayo.” (idem). Assim o Ministerio de Educación y
Culto, sob o domínio colorado, promoveu uma reforma calcada em
valores nacionalistas e patrióticos e que atribui a história o papel mestra
da vida.
O manual escolar como fonte histórica e objeto de pesquisa
Os manuais escolares apesar de serem facilmente identificáveis
devido a sua, aparente, familiaridade são “objetos culturais de difícil
56
definição” (2011, 299). O texto de Itamar Freitas propõe uma imagem
bastante objetiva do que é um livro didático.
(....) um artefato impresso em papel, que veicula imagens e
textos em formato linear e sequencial, planejado,
organizado e produzido especificamente para uso em
situações didáticas, envolvendo predominantemente
alunos e professores, e que tem a função de transmitir
saberes circunscritos a uma disciplina escolar. (FREITAS,
Itamar. In: OLIVEIRA; OLIVEIRA, 2009: 14)
André Mendes Salles entende livro didático “como um produto
produzido por grupos sociais que, intencionalmente ou não, perpassam
sua forma de pensar e agir, portanto, suas identidades culturais e
tradições.” (2011, 42). Existe uma multiplicidade de definições que ratifica
a ideia de que o livro didático é de fato um objeto complexo, aliás,
como bem assinala Choppin “como todo objeto de pesquisa o livro
escolar não é um dado, mas o resultado de uma construção intelectual”
(2009, 74).
Miriam Hermeto e Mateus Henrique de Faria Pereira chamam a
atenção para a função social desse artefato histórico: “os livros, ao
criarem interpretações que serão muito veiculadas na sociedade,
tornam-se também atores históricos que interpretaram e representaram
o passado, contribuindo para a construção de uma “memória do fato”
(HERMETO; PEREIRA, 2009: 77).
Em síntese, a noção adotada de manual didático/escolar neste
artigo entende que ele é um recurso pedagógico, produzido com esta
finalidade, no qual se dispõe de um discurso composto por textos e
imagens que leva em consideração a faixa etária do leitor, a estrutura e
a organização do sistema educacional no qual se insere, tendo o
objetivo de informar sobre determinada área do conhecimento, de
modo a atender a proposta curricular estabelecida pelas autoridades
educacionais, que, por sua vez, regulamentam a produção e utilização
dos mesmos.
57
A história da guerra e o resgate dos heróis nacionais
Neste artigo procuro analisar manuais utilizados no sistema
educacional paraguaio destinados ao ensino primário e a etapa básica
do nível médio. De acordo com o guia didático da Série Ñanduti “el libro
de texto es uno de los recursos didácticos que contribuyen al desarrollo
del currículum y, específicamente en el área de Estudios Sociales, a la
formación del hombre en su dimensión individual y social, con miras a
convertirlo en un miembro útil y efectivo de la sociedad en que actúa(...)”
(Ministerio de Educación y Culto: 1989,15). Assim, o manual escolar é um
recurso pedagógico que não tem apenas uma função didática, mas
também a de formar o ser humano, neste sentido, os discursos por ele
veiculados extrapolam o âmbito escolar.
No Manual Paraguayo de Sexto Grado - editado em 1960 pelas
Ediciones Nizza na Argentina, organizado por Hugo Ferreira Gubetich,
destina-se ao último ano do ensino primário - a guerra aparece como
um conflito que ocorreu, não obstante, os esforços empreendidos por
Carlos Antonio López ao tentar resolver as questões internacionais com
seus “dois poderosos vizinhos: o Brasil e a Argentina”. Ressalta-se que as
causas da guerra não tiveram relação com o Paraguai, a origem do
conflito é atribuída a “Banda Oriental”, isto é, ao Uruguai.
O manual inicia a história da guerra mencionando a revolução
empreendida por Venancio Flores, que levou o governo de Montevidéu
a solicitar apoio paraguaio. A situação se complica ainda mais quando
o Brasil intervém no Uruguai pedindo reparação dos danos sofridos por
seus súditos. Solano López interpreta essa atitude como indícios de que o
Brasil pretendia anexar o Uruguai ao seu território e que isto violaria o
equilíbrio do Plata, ameaçando também a soberania paraguaia.
Mesmo com o protesto paraguaio, o Brasil atravessou as fronteiras
uruguaias e em 12 de novembro de 1864 o Paraguai declarou guerra
ao Brasil, em seguida o barco Marques de Olinda é detido e iniciou-se a
Guerra al Brasil. Já a Guerra con la Argentina foi motivada pela recusa
ao pedido de trânsito por Misiones, território litigioso, que foi negado pelo
58
chanceler
argentino,
Rufino
de
Elizalde,
com
a
justificativa
de
neutralidade por parte da Argentina, “pero al mismo tiempo su gobierno
auxiliaba a la escuadra imperial que avanzaba por el rio Paraná rumbo
al Paraguay.” Dessa forma, em 1865, declarou-se guerra à Argentina.
O manual em questão destina cerca de 10 páginas ao conflito,
descrevendo as batalhas e eventos considerados mais importantes. As
consequências do conflito são tratadas no tópico Resultado de la Guerra.
Ao fim da guerra o Paraguai estava destruído: havia perdido metade de
sua população, dos 20% da população masculina restante a maioria
eram crianças ou anciões, ademais com a efetivação do Tratado da
Tríplice Aliança o Paraguai perdeu 150.000 Km² de seu território.
A
narrativa termina com a seguinte frase: “Sobre un montón de ruinas se
inició la reconstrucción nacional. Alma de esta tarea fue la mujer
paraguaya.”
Dentre as atividades pedidas neste manual, duas chamam
atenção, a primeira que prevê uma visita ao Panteón de los Héroes ,
Palacio de Gobierno e Museo Godoi e a última na qual pede-se que os
alunos escrevam cartas a estudantes argentinos e brasileiros contando
sobre
as
boas
relações
com
seu
país.
Ficam
patentes
duas
características sintomáticas do governo Stroessner: o patriotismo e a
busca por desenvolver uma política internacional de integração com a
Argentina e, principalmente, com o Brasil. Vale lembrar que é durante o
regime Stroessner que são firmados convênios para construção de
usinas hidrelétricas binacionais no rio Paraná, Itaipu e Yacyretá, a
primeira com o Brasil, e a segunda com a Argentina.
Como fechamento do capítulo há um pequeno texto para leitura,
nele apresenta-se uma imagem de López que se assemelha a de Cristo,
“El 14 de febrero de 1870 la caravana alcanzó su Gólgota Cerro Corá”, e
continua “ El Mariscal López, al llegar hasta allí, había alcanzado, por fin,
la cumbre de su calvário4 ” (GUBETICH: 1960, 115). López é ao mesmo
tempo mártir e herói da pátria.
4
Grifo meu
59
fue alcanzado por el propio jefe de las fuerzas aliadas
general Correa da Camara que le intimó personalmente
la rendición:
-Rindase Mariscal. Su vida está garantida. Soy el general
que manda a estas tropas.
-¡Muero por mi patria con la espada en la mano!
Al contestar tiró un golpe hacia el jefe brasileño. Cámara
ordenó a un soldado que le quitase la espada; éste lo
agarró por el puño y ambos lucharon. López cayó dos
veces al agua. Otro soldado se aproximó y aprovechando
un instante en que el Mariscal se desprendió de su
contrincante le disparó un tiro al corazón. Así murió
poniendo una nota de gloria como epílogo de su vida y
de la guerra. (GUBETICH: 1960, 117)
Nessa perspectiva López morreu pela glória da pátria. O objetivo
da narrativa sobre a guerra neste manual é construir a imagem do
Mcal. López como o maior prócer paraguaio.
O Mi Manual de 4º grado, de autoria de autoria de Florinda
Epínola e outros, editado pela
F.V.D, em Assunção no ano de 1961,
apresenta uma estrutura bastante diferente. Utilizando recursos editorias
de cor e imagem, como também uma linguagem mais simples.
É
interessante salientar que nas páginas introdutórias do manual, seus
autores deixam claro que reconhecem a autonomia do professor diante
dos conteúdos ali expostos, o manual apresenta-se apenas como um
recurso para tornar as aulas mais dinâmicas.
Outro aspecto relevante é que o capítulo analisado é antecedido
por uma fotografia de Itaipu, seguida do convite “conozcamos nuestra
historia pátria”. O tema é introduzido, com o marco temporal de 1º de
março, data em que se comemora o dia dos heróis da pátria, que é
também o dia da morte de Solano López. Em seguida são propostas
uma série de questões relacionadas à biografia de Solano López. Em um
dos exercícios pede-se ao aluno que comente a frase de López: “muero
con mi patria” e de seu filho o coronel Francisco López (Panchito) de
quinze anos “un coronel Paraguayo no se rinde”. Ressalta-se também a
participação das “residentas5 ” na medida em que leva os estudantes a
5
As residentas eram mulheres que acompanhavam as tropas paraguaias, parentas
de soldados ou moradoras de locais por onde as tropas passaram. De acordo com
Fernando Lóris Ortolan, após o término da guerra atribuiu-se a essas mulheres à
imagem de heroínas que foram responsáveis pela reconstrução do Paraguai.
60
questionarem seus avós e pais a respeito dessas pessoas. Em seguida,
há um pequeno texto sobre Solano López, porém a guerra é citada
apenas como marco de sua morte.
A estratégia do manual não é a de fornecer todos os dados
factuais ao estudante, ao contrário é o próprio aluno que deve buscar as
informações, norteado pelas questões propostas. Os poucos textos que
constituem o capítulo ressaltam, além da figura de López, a do general
Bernardino Caballero que lutou em Acosta Ñu “con 4000 niños frente a
20.000 soldados enemigos aproximadamente”. No texto, que finaliza
essa temática, a história da guerra serve como pano de fundo da
história de Solano López, sendo que diante de todos os seus feitos a
guerra foi apenas mais um episódio. Esse manual trabalha com todos os
conteúdos que devem ser estudados no 4º grado em um único volume.
A história é abordada no capítulo referente aos Estudos Sociais, que não
se organiza de modo sequencial, as informações históricas aparecem
através das datas comemorativas, como o dia 1º de março que é
feriado nacional naquele país. Tal recurso revela uma concepção
positivista da história, focada nos grandes feitos e heróis, como também
patriótica e de acordo com a política das ditaduras militares.
Passemos agora aos manuais dedicados ao nível médio. O
manual da Estudios Sociales – primer curso da Série Ñanduti - publicado
em 1989 pelo Ministerio de Educación y Culto - no capitulo intitulado
“Gobierno de Don Carlos Antonio López” apresenta o governo de Carlos
López como responsável pelo progresso do país, assim o Paraguai
figurava entre os melhores da América do Sul. Em seu governo houve
desenvolvimento econômico e intelectual do Paraguai através da vinda
de técnicos europeus. Nesta época, a história
prometia ter “porvenir
brillante para el Paraguay. Desgraciadamente la guerra del 64-70 truncó
casi todas las ilusiones, sueños y realidades del Paraguay y sus hijos
tuvieron que empezar de nuevo la reconstrucción de la Patria. (ALDERETE;
TESSADA: 1989: 167).
Após abordar os costumes na época de Carlos López as autoras
elaboraram algumas atividades de síntese e pesquisa acerca do
61
conteúdo, chama atenção uma questão na qual pede-se que o aluno
leia e comente alguns textos pequenos, sendo que o primeiro deles,
atribuído a Luis Echeverría, descreve Carlos López como uma crianças
cujas
“diversiones
permaneciendo
eran
años
los
enteros
libros,
en
su
sus
juegos
vida
era
estudiosa,
los
libros,
retirada
y
contemplativa. Su conducta como joven a los viejos asombraba.” (idem,
169). A narrativa mitifica desde a infância figura de Carlos López
destacando sua maturidade e dedicação aos estudos, daí sua
preocupação com o desenvolvimento intelectual do país quando
presidente, bem como sua habilidade no campo diplomático.
O capítulo sobre o governo de Francisco Solano López inicia com
uma breve explicação sobre processo de sucessão do governo, devido
à morte de Calos Lopez. Em diversos manuais escolares e livros de
historiadores paraguaios aparece o relato de que antes de morrer
Carlos Antonio López teria dito ao seu filho mais velho, Francisco Solano,
“Hay muchas cuestiones pendientes a ventilarse, pero no trate Ud. De
resolverlos con la espada sino con la pluma, principalmente con el Brasil”
(idem, 170), o manual, entretanto, não esclarece que questões eram
essas e em seguida questiona sobre o significado deste ultimo conselho
de Carlos López, assim, o estudante deve buscar a informação e justificar
sua resposta.
Outra demanda interessante é que o estudante pesquise sobre a
biografia de Solano López e mencione três aspectos que mais lhe
causaram admiração. Este questionamento é seguido por um pequeno
texto de caráter biográfico sobre López, no qual destaca-se que ele foi o
maior colaborador de seu pai, era “Dinámico y estudioso, adquirió
formación intelectual mediante preceptores particulares y una rica
biblioteca; hablaba y escribía correctamente el francés y el inglés, y con
fluidez y elocuencia el guaraní” (idem, 171). Solano López é apresentado
como alguém que conhecia outras culturas, um homem de letras, mas
que não se apartava das origens da cultura paraguaia, isto é, a língua
guaraní.
62
Em relação a narrativa sobre a guerra, ressalta-se que foi o
congresso que declarou guerra a Argentina e que as questões ocorridas
na região platina
López.
coincidiram com a época do governo de Solano
Durante a guerra López “encarnó la suprema decisión
paraguaya de no dejarse humillar.” (idem, 172).
Ao tratar das questões de limites com os países vizinhos, o manual
ressalta que em 1862 venceram os tratados de limites firmados com o
Brasil e Argentina. Antes que os problemas em relação as fronteiras
fossem resolvidos brasileiros ocuparam a área neutralizada pelo tratado
Berges-Paranhos (1856), construindo as cidades de Dourado e Miranda.
Em relação a argentina a situação era ainda mais grave porque
paraguaios exilados alentaram velhas pretensões porteñas de se
apoderar do governo paraguaio. Assim ao citar as causas da guerra a
primeira delas foi a ambição territorial do Brasil, seguida pela revolução
de Venâncio Flores, e a questão do equilíbrio dos estados do Plata. Vale
ressaltar que as causas são apenas citadas, não se explica o processo
que levou a guerra.
Tem grande relevância na narrativa o Tratado Secreto da Tríplice
Aliança, já que no documento dizia-se que “se debía respetar la
'independencia, soberanía e integridad territorial de la República del
Paraguay', pero se disponía, al mismo tiempo, 'la desmembración
territorial, el pago de los gastos de guerra y la indemnización
correspondiente'” (idem. 176). A contradição apontada ratifica a ideia de
que Brasil e Argentina ao entrarem na guerra tinham ambições
territoriais em relação ao Paraguai. A partir dessa apresentação inicial da
guerra, pergunta-se ao jovem sobre sua impressão em relação ao
conteúdo do Tratado Secreto da Tríplice Aliança.
Ao tratar das principais batalhas da guerra, o manual ressalta que
o “el armamento disponible era de modelo anticuado y muchos jefes no
tenían preparación, pero palpitaban en el ambiente una gran fe, una
fuerza moral y una disciplina férrea” (ídem, 178). Dentre as batalhas mais
memoráveis estão a de Humaitá, onde a luta se prolongou por três anos
e a de Acosta Ñu na qual “ Para proteger la retirada, el General
63
Bernardino Caballero organizó la defensa, con niños que prefirieron morir
antes que rendirse” (ídem, 182). Durante a guerra destaca-se o altruísmo
não só de López, mas também dos combatentes, entre eles crianças,
que lutaram pela honra da pátria.
Em 1º de março de 1870, Solano López é morto em Cerro Corá,
nesta narrativa suas últimas palavras foram “morro com minha pátria”.
Essa expressão é recorrente não só em manuais escolares, mas em
textos de historiadores paraguaios. Thomas Whigham ajuda a entender
esta expressão:
As últimas palavras do Marechal foram relatadas com
variações. Alguns escritores agregam ' e com a espada
na mão!' ao familiar 'Morro com minha pátria'. Outros
(incluindo a Centurión, por exemplo) registram as palavras
como “Morro por minha pátria”. A diferença entre as duas
expressões é vista como essencial para
muitos
paraguaios para compreender o papel de López na
história nacional (…). os idólatras do Marechal no século XX
converteram suas palavras em algo canônico, indicado,
quase como uma última comunicação com Deus. (2012,
473).6
Como consequência da guerra a população foi dizimada, de
acordo com o manual morreram 1.000.000 de pessoas, sendo que as
300.000 restantes eram, em sua maioria, crianças, mulheres e anciãos e
alguns estrangeiros. Assim ficou a cargo das residentas a reconstrução
do país e destaca-se seu estoicismo e grande valor. O capítulo termina
citando alguns heróis da guerra dentre eles o General Bernardino
Caballero descrito como El “Centauro de Ybycuí”, héroe de cien batallas,
lugarteniente del Mcal. López y reconstructor de la nacionalidad
aniquilada” (idem, 184). Vale lembrar, que Bernardino Caballero não foi
apenas um dos principais aliados de Solano López, como também
fundou o Partido Colorado.
O manual do mesmo editorial destinado ao Segundo Curso da
Etapa básica do Nivel Médio, tem a mesma estrutura e explica o
governo dos López a partir dos mesmos pressupostos, sua diferença está
6
Tradução minha.
64
na riqueza de adjetivos com que descreve os heróis da Pátria e na
ampliação da lista de “obras de progresso” feitas naquela época.
Carlos López foi responsável pela lei que decreta o ventre livre, que
deu início a liberdade dos escravos no Paraguai, mandou cunhar as
primeiras moedas do país e “Continuó la misma política económica del
Dr. Francia, el Estado paraguayo era el principal productor y exportador
controlaba la economía nacional. Era un Estado mercantilista .” (
ALDERETE; TESSADA: 1989, 248).
Percebe-se uma clara influência do
revisionismo historiográfico produzido na década de 70-80, apesar de a
ação da Inglaterra não figurar entre as causas da guerra. Assim, “Se
reconoce la época patriarcal de don Carlos como una de las más
progresista y fecundas de nuestra historia.” (idem, 251). Já seu filho “El
Mcal. Francisco Solano López es considerado como el Primer Soldado,
valiente y celoso defensor de la soberanía de nuestra patria y verdadero
creador de la carrera de las armas. ” (idem, 251).
Após
descrever
as
batalhas
nas
quais
os
paraguaios
demonstraram “ousadia em suas ações”, “valor e heroísmo”. Um dos
questionamentos feitos ao estudante é “¿De qué manera hoy, como
miembro de tu familia, tu colegio y tu comunidad puedes servir a la
patria?” (idem, 265). Essa questão está de acordo com a concepção de
educação dos autores desses de manuais, e que representa também a
perspectiva do Ministério de Educación y Culto que, como citado
anteriormente, entendia que os Estudos Sociais deveriam formar o jovem
para que ele se tornasse um membro útil e efetivo na sociedade.
Nos manuais destinados ao nível médio a narrativa histórica tem
um caráter mais moralizador, exalta-se não apenas os grandes feitos
dos próceres da história paraguaia, mas também seus atributos
pessoais. Enfatiza-se também como a guerra interrompeu um período
de progresso e que foram
os aliados, e não Solano López, os
responsáveis pela guerra. Outro fator importante é a valorização da
coragem tanto dos soldados, quanto das mulheres e crianças na luta
pela defesa da pátria contra o ataque dos inimigos estrangeiros que,
através do tratado secreto, pretendiam submeter a nação. Ambos
65
manuais procuram estabelecer um diálogo direto com seu público a
partir de perguntas que questionam sobre sua opinião pessoal sobre os
fatos apresentados ou que demandam uma atitude patriótica no seu
cotidiano.
Considerações finais
Tanto os manuais destinados ao ensino primário editados antes
da reforma de 1973, quanto aqueles direcionados ao nível médio e
posteriores a reforma apesar das diferenças no que concerne à
diagramação, à estrutura narrativa e aos modos de abordagem do
conteúdo apresentam os López como próceres da nação paraguaia e
seu governo como tempo de progresso. Vale lembrar que que uma
das estratégias de Stroessner para consolidar-se no poder era convencer
o povo de que viera para trazer a paz, além de prometer o progresso
da nação,
pondo fim as constantes lutas internas. Doratioto também
salienta a importância da figura de López durante o regime Stroessner,
“sob as três décadas de ditadura de Alfredo Stroessner o lopizmo tornouse onipresente apoiado pelo Estado, e intelectuais
que ousaram
questionar a glorificação de Solano López foram perseguidos e, mesmo
exilados” (DORATIOTO: 2002, 86). Ademais, Stroessner disseminava junto
ao povo a ideia que iria reconduzir a pátria a um lugar de destaque no
concerto das nações, de modo a continuar as obras dos López e
também de Francia. Assim a narrativa histórica é utilizada de modo a
justificar o regime, tornando o lopizmo um dos elementos fundamentais
da propaganda strosnista.
Desse modo, a história da guerra apresentada nesses manuais
adquire
um caráter ideológico e
uma perspectiva eminentemente
política, pois não está relacionada apenas com a formação de uma
identidade nacional, mas com um plano de governo conservador,
autoritário e nacionalista, que promove um culto aos heróis da pátria e
também a pessoa de Stroessner que “siempre se consideró el auténtico
heredero de los 'grandes del pasado'”(VERA: 2002, 164).
66
REFERÊNCIAS
Fontes documentais
ALDERETE, Elisa R. Dominguez; TESSADA, Mirtia Caballero de. Estudios
Sociales Primer curso – etapa básica del nivel medio. Ministerio de
Educación y Culto – división editorial educativa, Ano:1989
ALDERETE, Elisa R. Dominguez; TESSADA, Mirtia Caballero de. Estudios
Sociales Segundo curso – etapa básica del nivel medio. Ministerio de
Educación y Culto – división editorial educativa, Ano:1989
ALDERETE, Elisa R. Dominguez; TESSADA, Mirtia Caballero de. Estudios
Sociales Guia didáctica – etapa básica del nivel medio. Ministerio de
Educación y Culto – división editorial educativa, Ano:1989
GUBETICH, Hugo Ferreira. Manual Paraguayo de sexto grado. Argentina:
Ediciones Nizza, 1960.
MINISTERIO DE EDUCACIÓN Y CULTO. Programa de Estudio – professorado
de educación primaria. Asunción – Paraguay – 1983.
MINISTERIO DE EDUCACIÓN Y CULTO. Programa de desarrollo educacional.
Innovaciones educacionales. Paraguay, 1973
BIBLIOGRÁFICAS
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CASANOVA, Pablo Gonzáles. América Latina: Históira de meio século.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1988.
CARDOZO, Efraím. Breve Historia del Paraguay. Asunción: Servilibro, 2011.
DORATIOTO, Francisco. 2004. América do Sul em Armas – Nova luz sobre
a Guerra do Paraguai. Revista Nossa História, São Paulo, 13 : 18-23.
___________. Maldita Guerra: nova história da Guerra do Paraguai. São
Paulo: Companhia das Letras, 2002.
FRAGA, Rosendo. 2004. América do Sul em Armas – Uma guerra e muitas
visões. Revista Nossa História, São Paulo, 13: 42-44.
67
HORAK, Carmen Quintana de. La educación escolar en el Paraguay:
apuntes para una Historia. Asunción: Centro de Estudios Paraguayos
Antonio Guasch. s/d.
MORAES, Ceres. Paraguai: a consolidação da ditadura Stroessner (19541963). Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000.
SOLER, Lorena. Claves Históricas Del Régimen Político En Paraguay. López
Stroessner. Dialogos - Revista do Departamento de Historia e do
Programa de Pós-Graduação em História, vol. 11, núm. 1-2, 2007, pp. 1954. Universidade Estadual de Maringá.asil
VERA, Myrian Gonzélez. Fechal Feliz en Paraguay. Los festejos del 3 de
noviembre, cumpleaños de Alfredo Stroessner. IN: JELIN, Elizabetj. Las
conmemoraciones: las disputas en las fechas “in-felices”. Espanha: Siglo
veinteuno, 2002.
WHIGHAM, Thomas. La guerra de la Triple Alianza – Danza de muerte y
destrucción. Paraguay: Taurus, 2012.
68
ENTRE ORIENTAÇÕES TÉCNICAS E DISCURSOS IMPLÍCITOS:
CONHECIMENTO PRÁTICO EXPLÍCITO E ORIENTAÇÕES ANTI-LIBERTINAS
IMPLÍCITAS NO TRATADO DAS ABELHAS
Bruno Vinícius de Morais1
O texto que aqui se inicia parte de uma pesquisa não finalizada,
fruto de uma inquietação surgida durante o aprendizado de uma
iniciação científica.2
pretensão
Portanto, em vez de trazer uma conclusão de
irrefutável,
a
intenção
é
ressaltar
uma
hipótese
de
interpretação; exprimir problematizações e instigar reflexões, mais que
evidenciar assertivas.
No final do século XVIII tornava-se perceptível que a região das
minas de ouro no sudeste da América portuguesa, a capitania das
Minas Gerais, não era mais tão farta para extração dos metais quanto
havia sido nas décadas anteriores. A queda na produção aurífera
motivou
a
coroa
portuguesa
a
buscar
novas
perspectivas
de
desenvolvimento e de produção na região. Nesse contexto, ocorre o
incentivo à cultura de novos gêneros comerciais, a fim de reanimar uma
economia supostamente decadente, o que ocorre também como
política para outras Capitanias. Fontes interessantes para a compreensão
dessa política comercial são os manuais para instruções técnicas
direcionados à colônia por ordem do Ministro dos Negócios Ultramarinos
da Coroa, D. Martinho de Mello e Castro e por seu sucessor, D. Rodrigo
de Souza Coutinho.
Manuais técnicos foram remetidos à colônia na segunda metade
do século XVIII, principalmente a partir de 17953 , constituindo parte de
1
Mestrando da linha História e Culturas Políticas pelo PPGH da Universidade Federal de
Minas Gerais. Bolsista CAPES. Contato: [email protected]
2
A referida iniciação científica se deu no âmbito do projeto do Prof. José Newton
Coelho Meneses, Manuais técnicos para o mundo rural, com financiamento da
FAPEMIG, no decorrer do ano de 2011. As questões levantadas no presente texto, no
entanto, embora surgidas de inquietações de três anos atrás, permanecem
potencialmente relevantes para a historiografía em 2014.
3
Ano da nomeação ministro D. Rodrigo de Sousa Coutinho, chamado para subdividir
a pasta dada por D.Maria I a Luiz Pinto de Souza Coutinho, devido ao falecimento de
69
projetos oficiais que tiveram na informação técnica ao produtor rural o
fundamento de sua estruturação. Nesse contexto de queda na produção
aurífera, o objetivo desses projetos era o incentivo à produção de
matérias primas agrárias exportáveis no espaço colonial, inclusive o das
Minas Gerais. Tal produção visava suprir um mercado crescente na
Europa em industrialização e estimular a economia industrial do Reino.
Portanto, não era uma preocupação imediata com a subsistência
alimentar dos moradores da Colônia, embora pudesse também
abrangê-la. Vale lembrar, a produção agropecuária diversificada para
abastecimento interno já representava parte importante da economia
das Minas desde o início da atividade aurífera, como demonstra uma
historiografia mais recente.4
A proposta de D. Martinho de Melo e Castro, prosseguida por D.
Rodrigo de Sousa Coutinho era de subsidiar as colônias, principalmente
o Brasil, de informação técnica enquanto o reino seria incentivado à
manufatura. A intenção era, conforme mensagem de D. Rodrigo ao
Governador da capitania de Minas Gerais em 1800, Bernardo José de
Lorena:
animar muito os Povos [da capitania] à Agricultura e ao
Trabalho das Minas e desviá-los das Manufacturas, que
nada lhes convem, em quanto as primeiras fontes já
citadas da riqueza nacional se não acharem levadas por
huma proporcional População ao limitte, em que seja
necessário havêr recurso às Manufacturas para o
emprego dos Braços. (MENESES, 2000, p. 137)
A proposta de fomento às atividades agrícolas e à mineração
como fontes da riqueza nacional nos permite ver uma influência das
orientações do pensamento fisiocrata, de bastante repercussão na
época. Segundo essa corrente de pensamento, a agricultura seria uma
seu predecessor, D. Martinho de Mello e Castro. Mello e Castro que, por sua vez,
sucedeu o Marquês de Pombal.
4
Sobre a diversidade da economia “mineira” ver, fundamentalmente, ALMEIDA, Carla
M. Carvalho. Alterações nas unidades produtivas mineiras: Mariana – 1750-1850. Niterói:
ICHF/UFF, 1994 (Dissertação de Mestrado); ANDRADE, Francisco E. de. A Enxada
Complexa: roceiros e fazendeiros em Minas Gerais na primeira metade do Século XIX.
Belo Horizonte: FAFICH/UFMG, 1994. (Dissertação de Mestrado); MENESES, José Newton C.
O Continente Rústico. Abastecimento alimentar nas Minas Gerais setecentistas.
Diamantina: Maria Fumaça Editora. 2000.
70
atividade primordial para a riqueza das nações. Conforme José Newton
Coelho Meneses:
A Fisiocracia tem sua concepção essencial na
'ordem natural' que, para os fisiocratas, é uma ordenação
estabelecida por Deus para o bem-estar dos homens.
Uma ordem, portanto, providencial que não é
demonstrada, mas conhecida pelas evidências e se
compõe de duplo caráter: universalidade e imutabilidade.
(…) Para Quesnay, Dupont de Nemours, Turgot, Mercier de
la Riviére e outros pensadores franceses, o comércio, o
transporte e a manufatura não criam riquezas. Somente a
classe que emprega suas energias na agricultura é
produtiva. Mas abrem exceção para a mineração que,
segundo eles, pode, eventualmente, produzi-las. (MENESES,
2000, p. 137)
Os manuais a que se refere o presente texto, enviados para as
Minas em 1800, exemplificam, portanto, essa política de valorização da
atividade agrícola. Foram produzidos pela Casa Literária do Arco do
Cego que, apesar de seu breve período de existência, merece uma
atenção especial na história do Império Português. A Arco do Cego foi
criada por ordem de D. Rodrigo de Sousa Coutinho e patrocinada pelo
mesmo para que difundisse obras que fomentassem o progresso do
Império Português com a agricultura ocupando uma atenção especial,
de acordo com a influência fisiocrata. O frei José Mariano da Conceição
Velloso, um naturalista nascido na comarca do Rio das Mortes, bispado
de Mariana, na capitania de Minas Gerais foi incumbido de sua direção.
Frei Velloso vinha trabalhando com D. Rodrigo em Lisboa desde 1797
quando lhe foi ordenado “ajuntar e trasladar em Portuguez todas as
memórias estrangeiras que fossem convenientes ao Brasil, para o
melhoramento da sua economia rural (...)” (PAES LEME, 1999, p.79) a fim de
retirar a região do atraso e colocar ao nível das demais nações
concorrentes.
A Casa Literária do Arco do Cego funcionou por apenas vinte e
oito meses, entre agosto de 1799 até sua extinção formal por decreto,
em
dezembro
bibliográficos,
de
1801,
mas
apresentando,
publicou
assim,
“uma
mais
de
oitenta
abundante
e
títulos
fecunda
71
produção bibliográfica, directamente orientada para o Brasil e para o
leitor dessa que era então uma colônia (…)” (CAMPOS, 1999, p.07). Seu
programa editorial contava com destacada participação de uma certa
“intelectualidade brasileira” que se achava em Lisboa, inclusive oriundos
das Minas Gerais, a começar pelo seu diretor, como já ressaltado. Entre
seus componentes naturais do reino, destaca-se o poeta Bocage que
passa a integrar a Arco do Cego em 1801. Após ter sido internado no
Limoeiro em agosto de 1797, acusado pela polícia de ser autor de
“papéis ímpios, sediciosos e críticos”, Bocage é libertado e encarregado
da tradução de poemas didáticos franceses.5 O rápido encerramento
das atividades da Arco do Cego teria sido resultado do estabelecimento
de uma devassa motivada por furtos e extravios feitos pelo frei Velloso,
segundo informativo de Joaquim Antônio Xavier Annes da Costa, datado
de 10/03/1813 (PAES LEME, 1999).
Os manuais técnicos que interessam a esta pesquisa foram
remetidos ao governador das Minas, Bernardo José de Lorena, para que
seus Ouvidores nas diversas comarcas vendessem os volumes aos
interessados, a fim de incentivar produções agrícolas comerciais.
Importante destacar que, junto às obras, foi enviada uma lista dos locais
onde as mesmas deveriam ser vendidas e os valores que deveriam ser
cobrados, de acordo, portanto, com o pragmatismo ordenador e
regulador visto na administração portuguesa. Os valores arrecadados
pela venda, aliás, deveriam ser remetidos em sua totalidade ao “Official
Mayor desta secretaria d'Estado, a fim de que a Real Fazenda se
indenize das despezas, que tem feito com a publicação das refferidas
obras” (MENESES, 2000, p.138), conforme orientações do próprio D.
Rodrigo na correspondência enviada junto aos livros, em 19 de agosto
de 1800, contendo os volumes, títulos, valores e os locais com permissão
5
Em dezembro de 1804 Bocage foi denunciado à Inquisição como pedreiro-livre.
Maiores informações a respeito em CURTO, Diogo. R. Dom Rodrigo de Sousa Coutinho e
a Casa Literária do Arco do Cego. In: CAMPOS, Fernanda Maria de et al (Org.). A Casa
Literária do Arco do Cego (1799-1801): Bicentenário. Lisboa: Biblioteca Nacional;
Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1999.
72
para venda. Em 22 de outubro de 1800 é enviada uma nova série de
obras, totalizando 180 livros entre 15 títulos.6
Conforme os estudos de José Newton Coelho Meneses e de Maria
Odila da Silva Dias, parece que esse esforço da Coroa portuguesa não
proporcionou resultados práticos nas Minas Gerais setecentistas e
oitocentistas.7 A racionalidade iluminada dos técnicos e administradores
do reino se mostrou bastante distinta da razão instrumental e do
cotidiano da produção de víveres dos colonos. A pesquisa sobre os
manuais, no entanto, permite importantes descobertas sobre as políticas
de desenvolvimento, as preconizações da Coroa e as teorias científicas
do período.
Os manuais enviados, assim como edições das obras intituladas
“História da América” e “Caligrafia”, tinham base em inovadores
conhecimentos científicos adquiridos por seus autores em diversas
regiões do mundo, através de viagens. Aqui vale lembrar que a
ampliação do conhecimento através de viagens pelo mundo não é
uma novidade desse período para a intelectualidade portuguesa. A
busca por um conhecimento útil através de viagens para territórios
estrangeiros e para o além-mar já se apresentava em contextos
anteriores. Inclusive em personagens que aprimoravam sua formação
em viagens pela Europa com o intuito de promover o desenvolvimento
político,
econômico,
e
intelectual
de
Portugal,
os
chamados
“estrangeirados”, ou, conforme Júnia Furtado, “emboabas ilustrados”.8
Os manuais técnicos seguiam essa intenção de promoção do
desenvolvimento, finalidade explicitada por D.
Rodrigo na carta
anteriormente citada, datada de 19 de agosto de 1800. Nela é dito que
estes “se destinam a instruir os Povos não só em objetos de Agricultura,
mas também em outros importantes assuntos” (MENESES, 2000, p. 138). E
é justamente sobre essa “instrução” que desejo problematizar.
6
A relação dos títulos, assim como a dos enviados em 19/08/1800, incluindo valores e
os postos para venda, pode ser vista em MENESES, J.N.C (2000). p. 138 e139.
7
Mais informações nas obras de Meneses incluídas na bibliografia deste texto e
também em DIAS, M. Odila da Silva. Aspectos da Ilustração no Brasil. In: Revista do IHGB,
vol. 278. Rio de Janeiro: UHGB, 1968, p. 121.
8
Ver FURTADO, Junia. Dom Luis da Cunha e a centralidade das Minas auríferas
brasileiras. In: Anais de História de Além-Mar, Vol. VIII, 2007, p. 69-87.
73
Embora a intenção dos manuais seja o repasse de inovadoras
instruções técnicas, no geral agrícolas, a leitura de uma das obras desta
segunda remessa, o “Tratado Histórico e Físico das Abelhas” intriga
diante do que pode ser visto como nuances de uma política
moralizadora presente na obra. Adianto que não é a pretensão deste
texto apresentar tal obra como um manual de doutrinamento da teoria
política vigente. O próprio responsável pela impressão da obra, frei José
Mariano da Conceição Velloso, na justificativa da obra, a apresenta
como um estudo de um “grande objecto da economia rural” finalmente
realizado por uma “hábil penna portugueza”. Demonstra na mesma
introdução, aliás, preocupação com uma ampla divulgação dessa
instrução em língua vernacular “para o conhecimento dos camponezes,
como desconhecedores da linguagem, em que são escriptas e apenas
para algum rico proprietário.” Os escritos e traduções da Arco do Cego,
assim, serviriam “para que nada falte à estes homens uteis, que habitaõ
os campos, e sustentam as Cidades”.
Naturalmente, como vemos, há uma proposta política com o
intuito de promover o desenvolvimento econômico agrário, através da
divulgação de conhecimentos adquiridos por um maior estudo das
ciências naturais. Estudo esse que foi fomentado pela Coroa com a
reforma universitária feita no período pombalino, que resultou, em 1772,
na criação de um curso de filosofia que compreendia as ciências
naturais. A referência aqui proposta, porém, é a presença de nuances de
uma política pela conservação moral e dos costumes, para além da
instrução técnica agrícola, sua pretensão maior e imediata. É evidente o
caráter de instrução apicultora presente nas suas mais de 250 páginas,
no
entanto,
conforme
Peter
Burke,
penso
que
“as
formas
de
comunicação não são portadoras neutras de informação, mas trazem
suas próprias mensagens” (BURKE, 1995, p.17). Foram raros, mas
marcantes (para o autor do presente texto), esses nuances, sendo que,
logo ao princípio da obra, ao enfatizar um gosto pelo trabalho presente
nas abelhas e determinado pelo clima, o autor cita que tal argumento
“valerá em toda casta de animaes e homens, contra a louca pretensão
74
dos nossos Iluminados Filósofos.” (p.20. Grifo meu). Noutro momento,
afirma:
que as abelhas todas são fêmeas, mas destinadas pela
natureza a ficarem todas virgens, sendo assim mais aptas
ao trabalho, e à subsistência da republica. Esta
consequência é bem oposta aos nossos Filósofos
Libertinos, tão contrários à virgindade, e ao celibato; e que
buscam nos animais a prova da sua inclinação
verdadeiramente brutal. (p.39-40. Grifo meu)
O autor do tratado citado, Francisco de Faria e Aragão, um
presbítero secular, era natural do reino, nascido na vila de Castelo,
próxima de Ferreira de Aves, em 25/10/1726. Foi professor na
Companhia de Jesus e mestre de Teologia no Colégio da Lapa, em
Lamego. Partiu para a Alemanha, onde foi mestre de príncipes de uma
casa reinante e, ao que parece, viajou pela Europa antes de regressar à
Portugal, em 1783.9
No Tratado das Abelhas é notável o uso feito pelo autor de
conhecimentos de apicultura adquiridos em diversas regiões do mundo
nos remetendo aos emboabas ilustrados e aos demais viajantes
ilustrados que podem ser chamados de Peregrinos instruídos, aqueles
que desejam conhecer utilmente o mundo através de viagens.10 No que
se refere aos trechos acima destacados, as viagens do autor tornam
compreensíveis as suas referências a ideias difundidas por pensadores
que não circulavam oficialmente em Portugal. No entanto, é no mínimo
interessante que a crítica a essas ideias apareça em seu texto de
maneira que parece subentender que seu leitor saberá o que ele
compreende como “pretensão [louca] dos nossos Iluminados Filósofos”
ou quanto às ideias de “nossos Filósofos Libertinos, tão contrários à
virgindade, e ao celibato”, posto que não segue qualquer informação
sobre as teses criticadas.
9
Uma breve biografia dos principais componentes da Casa Literária do Arco do Cego
é encontrado em Campos, Fernanda Maria de et al (Org.). A Casa Literária do Arco do
Cego (1799-1801): Bicentenário. Lisboa: Biblioteca Nacional; Imprensa Nacional; Casa da
Moeda, 1999.
10
MOTT, Luís. O peregrino instruído: a propósito de um formulário etnográfico do século
XVIII. Separata do Boletim Cultural da Junta Distrital de Lisboa (Lisboa) 75-78/ III: 4-6,
1971/1973.
75
Neste ponto, torna-se importante ressaltar que muitos escritos
filosóficos considerados nocivos à ordem do reino, como alguns de
origem francesa e inglesa (de Voltaire, Rosseau e Hume, por exemplo),
tinham circulação proibida em Portugal. Tais obras, no entanto,
apareciam no reino e nas colônias por meios alternativos, na forma de
contrabando, muitas vezes em traduções grosseiras, descuidadas e com
muitos cortes em relação à obra original. Livros de autores portugueses
também necessitavam da aprovação dos órgãos censores para serem
publicados, embora houvessem impressões clandestinas, possibilitando
que as ideias ainda transitassem para além do controle régio. Assim,
teorias proibidas circulavam e eram de certo modo difundidas pela
sociedade através da oralidade.11 Portanto, podemos concluir que as
ideias criticadas por Aragão não eram desconhecidas por completo
pelos portugueses no reino e no além-mar, mas sua difusão era
severamente combatida pela política oficial.
Outro ponto do trecho destacado que merece ser mencionado,
ainda que rapidamente, é a citação sobre os filósofos “libertinos”. O
período estudado é um momento de mudança no significado do
conceito e o uso feito por Aragão é representativo dessa mudança.
Conforme Rouanet:
No século XVII, o termo libertino designava, simplesmente,
o livre pensador. Era o homem emancipado dos
preconceitos religiosos, (…) No final do século, o termo
começou a deslocar-se para o seu sentido moderno. (…)
Era um homem fino e culto, mas também um apreciador
do bom vinho e das mulheres amáveis. (…) A síntese se
rompeu no século XVIII (…) De um lado, a busca da
verdade, que competia aos filósofos; do outro, a busca do
prazer, reservada aos libertinos. (ROUANET, 1990, p.167)
Como vemos, o uso de filósofo “libertino” feito por Aragão denota
um entendimento anterior à dissociação dos sentidos do termo, o que é
11
Informações obtidas nas palestras “Ilustração luso-brasileira” e “Cultura oral e escrita
no Rio de Janeiro no tempo dos vice-reis” ministradas por Maria Beatriz Mizza da Silva
em 03/03/10 e 04/03/10, respectivamente, na Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, UFMG. Conclusões similares podem ser lidas nos artigos “As origens
intelectuais e políticas da Inconfidência Mineira” e “Impressão em Portugal: da política
régia às publicações ilegais (c.1750-1806)” ambos de Luiz Carlos Villalta.
76
importante destacar sobretudo para o leitor não acostumado com a
história
deste
conceito.
É
bom
destacar
também
que
haviam
pensadores de caráter libertino, no significado de transição apresentado
acima, em Portugal. Um caso exemplar é o famoso poeta Bocage,
citado anteriormente e que chegou a pertencer à Casa Literária do Arco
do Cego. Bocage foi autor de diversos escritos eróticos e também outros
que, conforme já mencionado outrora, apresentavam um caráter
“sedicioso e crítico”, marcados pelo anticlericalismo e adesão ao
republicanismo revolucionário francês. A postura transgressora de
Bocage, portanto, é a de um escritor libertino, o que lhe causou uma
série de atritos com as autoridades, em especial com o intendente de
polícia Inácio de Pina Manique, titular de ofício12 de enorme importância
no período. Pina Manique, aliás, foi uma figura central no combate à
circulação de textos e imagens consideradas ameaçadoras à ordem
vigente, ou seja, o Antigo Regime.
Voltando à leitura do Tratado, apesar de enfatizar que a
organização das abelhas seria fruto de um instinto e não da sabedoria e
amor presentes em sua república (modo como por vezes se refere às
colmeias, noutras diz “cortiços”), inclusive criticando autores que dão um
“grau heróico” às abelhas e enxergam “conselheiros, magistrados,
trombetas, soldados, músicos, arquitetos e pedreiros” entre elas, Aragão
ressalta em diversos momentos a necessidade da ordem e o grau de
fidelidade à rainha como algo que Deus colocou na natureza. Em todos
os
animais.
Esse
posicionamento
parece
concordar
com
uma
característica identificada por Hespanha ao refletir sobre o Absolutismo
de raiz contratualista em Portugal. Segundo o autor, há no imaginário
presente na teoria política pombalina e pós-pombalina: “o modo novo
12
Segundo Luiz Villalta, “é anacrônico o uso de expressões como 'funcionário público' e
'burocracia' para designar os que trabalhavam na administração real no Antigo
Regime. Tais categorias foram criadas no final do século XVIII, quando se estabeleceu a
distinção de poderes de Estado e se constituiu uma estrutura administrativa em que se
viam esferas distintas e articuladas de competência, bem como regras impessoais de
funcionamento. Trata-se, ainda, de um momento em que as esferas pública e privada
tornaram-se distintas. Por isso, é preferível usar oficial, titular de ofício.” VILLALTA, L. C.
Impressão em Portugal: da política régia às publicações ilegais (c. 1750-1806) In: VERRI,
Gilda (org.). Memorat: Memória e cultura escrita na formação brasileira. Ed. Recife:
Universidade Federal de Pernambuco, 2011. p. 140.
77
como ela entende a sociedade e o Poder, ambos concebidos como
produtos menores de uma ordem objectiva posta directamente por
Deus do que do jogo, pactício ou não, dos ímpetos individuais” (XAVIER &
HESPANHA, 1997, p.138).
Um exemplo interessante e cômico do posicionamento de Aragão
é quando se refere às abelhas “ladras”, que, além de roubar o mel,
tentam matar a rainha da colmeia invadida, o que provocaria a
desordem da republica. Estas “ladras de profissão” (nos termos do autor)
são, como sucede aos homens, más por inclinação. E, no caso de um
cortiço de ladras, as abelhas nascidas tenderão a serem ladras
também, pois “os filhos fazem o que vem fazer a seus pais” (p. 191).
A presença desses “nuances” nessa obra provoca maiores
possibilidades de reflexão quando pensamos que o público-alvo destes
manuais era uma elite econômica das Minas Gerais. Principalmente por
ser na virada do século XVIII para o XIX, contexto no qual havia em
Portugal, nas palavras de Diogo R. Curto, uma “Cultura política onde
constantemente se detectam receios de uma conspiração e de um
contágio de idéias” (CURTO, 1999, p.43). Segundo este mesmo autor,
desde o final da década de 1780, havia informações no reino sobre o
“aumento da circulação de livros libertinos e sediciosos que ‘confundiam
a liberdade e a felicidade das nações com a licença e ímpetos
grosseiros dos ignorantes, desassossegavam o povo rude, perturbavam
a paz pública e procuravam a ruína dos governos’” (CURTO, 1999, p.34).
Conforme falado anteriormente, a circulação clandestina desses livros e
sua repercussão pela cultura oral, ocorriam no reino e nas colônias, algo
que muito preocupava a Coroa. Basta recordar que em 1800 a França
republicana tinha enorme repercussão, assunto discutido em cafés e
botequins, tendo rompido bruscamente com a sociedade estamental e
monárquica, decapitando o rei e a rainha. Anos antes, as mesmas Minas
Gerais que em 1800 recebiam os manuais, tinham passado por um
grave momento de contestação, também influenciado por ideias
iluministas presentes em livros proibidos no Império Português. A
78
chamada Inconfidência (ou “Conjuração”) Mineira envolveu parte
importante da elite econômica e mesmo administrativa das Minas.
Dentre as pesquisas sobre as políticas de D. Rodrigo feitas por José
Newton Coelho Meneses, com principal atenção para as medidas de
abastecimento nas Minas, é dito que “abriu-se espaço para uma política
que visava sanar a crise econômica metropolitana e colonial, bem
como serenar os ânimos no lado de cá do Atlântico, que vivia no
rescaldo das Inconfidências Mineira e Baiana, da Revolução Francesa e
da revolta dos escravos no Haiti” (MENESES, 2000, p.47-48).
O prosseguimento por essa leitura das medidas da Coroa neste
período conturbado nos leva a um artigo escrito por Luís Carlos Villalta.
Segundo ele:
desde os fins da primeira metade do século XVIII, reformas
de cunho ilustrado pela Coroa almejavam a
modernização
econômica
e
científico
cultural
conservando os pilares do Antigo Regime português
(absolutismo, religião católica, colonialismo e sociedade
estamental) (VILLALTA, 2011)
e
Dentro da política reformista da Coroa portuguesa,
desenvolveu-se uma espécie de política para o livro e
para a leitura, dentro da qual se inseriam, de um lado,
uma política de censura e, de outro, o envolvimento em
publicações de determinadas obras, cujos conteúdos
estivessem em sintonia com as diretrizes mais gerais do
governo (VILLALTA, 2011).
Assim, Villalta, ao refletir sobre a Casa Literária do Arco do Cego,
enxerga as suas iniciativas como parte
de um esforço da monarquia no sentido de dirigir um
‘público’ (...) [encarando-as] como expressão de uma nova
compreensão do mundo e de uma prática política, que,
em última instância, dessacralizavam as autoridades
políticas e religiosas, embora se movessem conforme fins
que tinham sentido oposto, isto é, a defesa do Antigo
Regime (VILLALTA, 2011).
Ainda é necessária a leitura dos demais manuais técnicos
enviados para averiguar se esses “nuances” encontrados no Tratado das
79
Abelhas estão presentes nas demais obras e em qual proporção.
Também é preciso um estudo mais sistemático para descobrir se estes
manuais (e quais entre eles) foram encomendados por representantes
do Estado. O Tratado das Abelhas apresenta em sua capa a informação
de ter sido publicado “Debaixo dos auspícios e Ordem de Sua Alteza
Real”, informação essa que, segundo o mesmo artigo de Villalta, informa
que uma obra não passou por nenhum dos três órgãos censórios do
período (Desembargo do Paço, Inquisição e Tribunais eclesiásticos).
Vemos no citado artigo que a Arco do Cego tinha licença para
publicação de obras sem necessitar da permissão dos órgãos censórios.
Pois “(...) sendo a Casa do Arco do Cego um órgão da Coroa, constituído
no interior de uma política mais ampla executada por esta e dirigido por
alguém por ela nomeado, seria natural que estivesse isento de censura.”
(VILLALTA, 2011). Resta descobrir se foram obras bem aceitas por D.
Rodrigo após serem publicadas e por isso remetidas à colônia ou se
interesses da Coroa (como o da instrução de técnicas agrícolas para
fomentar o comércio com o mercado europeu) levaram à encomenda
de escrita destes tratados.
Não entrarei aqui no interessante debate sugerido por Villalta
sobre o processo de dessacralização em Portugal e na Colônia e
tampouco foi o objetivo do presente texto visualizar o Tratado das
Abelhas nesta chave interpretativa. O proposto, contudo, é a utilização
das medidas tomadas neste turbulento contexto e dessa “política para o
livro e para a leitura” realizada por D. Rodrigo como mais uma
possibilidade de enxergar as obras enviadas para as Minas Gerais. A
possibilidade de breves e discretas proposições moralizadoras estarem
presentes em obras agrícolas o que poderia combater a difusão de
ideias sediciosas entre a elite econômica da região das Minas Gerais
em um contexto marcado por diversas contestações da ordem vigente.
Como já ressaltado, não estou defendendo que essa posição
moralizadora seja uma preocupação principal da obra, até porque ela
aparece em raros momentos. No entanto, mesmo que seja fruto de um
posicionamento pessoal do autor, o interessante para o presente artigo
80
é que ela esteja de acordo com a política oficial, podendo ser mais uma
razão para a sua difusão protagonizada pela Coroa em um contexto e
território tão conturbado.
Os manuais técnicos enviados ainda carecem de um estudo
sistemático, cabendo no que Junia Furtado chamou de um “vazio
historiográfico” ao se referir ao estudo da economia produtiva agrária
das Minas no oitocentos (FURTADO, 1999, p.45-49). Se o preenchimento
desse “vazio” é uma contribuição necessária a ser feita pelos
historiadores, a hipótese aqui levantada é a possibilidade de um veículo
para um discurso técnico não ser um “portador neutro da informação”,
mas sim um provável portador de discursos múltiplos, ainda que
veiculados de maneira implícita.
REFERÊNCIAS
ARAGÃO, Francisco de Faria. Tratado Histórico e Fysico das Abelhas. 1800.
Publicado [...] Por Fr. José Mariano Velloso. - Lisboa : Offic. da Casa Litteraria
do Arco do Cego, 1800. - VIII, 238. Disponível pelo site da Biblioteca
Nacional de Lisboa: http://purl.pt/11996/3/
BURKE, Peter. A História Social da Linguagem. In: A Arte da conversação.
Editora UNESP, SP, 1995.
CAMPOS, Fernanda Maria de et al (Org.). A Casa Literária do Arco do
Cego (1799-1801): Bicentenário. Lisboa: Biblioteca Nacional; Imprensa
Nacional; Casa da Moeda, 1999.
CURTO, Diogo. R. Dom Rodrigo de Sousa Coutinho e a Casa Literária do
Arco do Cego. In: Campos, Fernanda Maria de et al (Org.). A Casa
Literária do Arco do Cego (1799-1801): Bicentenário. Lisboa: Biblioteca
Nacional; Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1999.
FURTADO, Junia. Dom Luis da Cunha e a centralidade das Minas auríferas
brasileiras. In: ANAIS DE HISTÓRIA DE ALÉM-MAR, Vol. VIII, 2007.
MENESES, J.N.C. O Continente Rústico: abastecimento alimentar nas Minas
Gerais Setecentistas. Ed. Maria Fumaça. Diamantina. MG, 2000.
PAES LEME, Margarida O.R. “Um breve itinerário editorial: do Arco do Cego
à impressão régia. In: Campos, Fernanda Maria de et al (Org.). A Casa
Literária do Arco do Cego (1799-1801): Bicentenário. Lisboa: Biblioteca
Nacional; Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1999.
81
VILLALTA, Luiz Carlos. As imagens e o controle da difusão de idéias em
Portugal no ocaso do Antigo Regime. Ensaio publicado em página da
web. Lisboa: Blogue História Lusófona do Instituto de Investigação
Científica e Tropical, 2011. Disponível em:
http://www2.iict.pt/archive/doc/bHL_Ano_VI_04__Luiz_Carlos_Villalta__As_imagens_e_o_controle_da_difusao_de_ideias_e
m_Portugal_no_ocaso_do_Antigo_Regime.pdf . Último acesso em
24/05/2014.
______. Impressão em Portugal: da política régia às publicações ilegais (c.
1750-1806) In: VERRI, Gilda (org.). Memorat: Memória e cultura escrita na
formação brasileira. Ed. Recife: Universidade Federal de Pernambuco,
2011, p. 135-204.
ROUANET, Sérgio Paulo. O desejo libertino entre o Iluminismo e o ContraIluminismo. In: NOVAES, Adauto. Desejo. São Paulo: Companhia das Letras,
1990.
XAVIER & HESPANHA. A representação da sociedade e do poder. In:
MATTOSO, José (coord). História de Portugal (O Antigo Regime). Lisboa:
Editorial Estampa, 1997.
82
A ARQUITETURA DA REPRESSÃO:
AS NARRATIVAS NOS INQUÉRITOS POLICIAIS/MILITARES
César Nardelli Cambraia1
Francielle Alves Vargas2
Paula Carvalho Tavares3
Thaynara Nascimento Santos4
Introdução
Segundo Bandeira (2010), o golpe de Estado que deu origem à
ditadura que perdurou de 1964 a 1985 no Brasil foi um episódio de luta
de classes:
O golpe de Estado em 1964 constituiu um episódio da luta
de classes, com o qual o empresariado, sobretudo seu
setor estrangeiro, tratou de conter e reprimir a ascensão
dos trabalhadores, cujos interesses, pela primeira vez na
história do Brasil, condicionavam diretamente as decisões
da presidência da República, devido às vinculações de
João Goulart com os sindicatos. (BANDEIRA, 2010, P. 415)
Dentre os instrumentos utilizados pela ditadura para reprimir
qualquer manifestação de dissidência ideológica havia os inquéritos
policiais/militares (IP/Ms). Esses procedimentos geravam processos com
documentação
para
apresentar
acusação
àqueles
que
não
sucumbissem ao estado totalitário e à sua ideologia.
Uma questão interessante de se discutir é de que forma os IP/Ms
deixavam transparecer as contradições entre o discurso anticomunista
que havia sido utilizado como justificativa para o golpe e os objetivos
subjacentes, segundo a interpretação da luta de classes, de frear o
processo de ascensão dos trabalhadores.
No presente trabalho, pretende-se investigar essa questão com
base na documentação do Departamento de Ordem Política e Social
1
2
3
4
UFMG/CNPq.
UFMG/CNPq.
UFMG.
UFMG/PROGRAD.
83
de Minas Gerais (DOPS-MG) atualmente disponível no Arquivo Público
Mineiro (APM).
Inquéritos policiais/militares
Segundo estabelece o Código de Processo Penal (Decreto-lei nº
3.689, de 3 de outubro de 1941), vigente no período da ditadura, e ainda
hoje, o inquérito policial (IP) tem por finalidade “a apuração das infrações
penais e da sua autoria” (Liv. I, Tít. I, Art. 4º).
Sua realização deve incluir as seguintes tarefas:
I - dirigir-se ao local, providenciando para que não se
alterem o estado e conservação das coisas, até a
chegada dos peritos criminais;
II - apreender os objetos que tiverem relação com o fato,
após liberados pelos peritos criminais;
III - colher todas as provas que servirem para o
esclarecimento do fato e suas circunstâncias;
IV - ouvir o ofendido;
V - ouvir o indiciado, (...) devendo o respectivo termo ser
assinado por duas testemunhas que lhe tenham ouvido a
leitura;
VI - proceder a reconhecimento de pessoas e coisas e a
acareações;
VII – determinar, se for caso, que se proceda a exame de
corpo de delito e a quaisquer outras perícias;
VIII - ordenar a identificação do indiciado pelo processo
datiloscópico, se possível, e fazer juntar aos autos sua folha
de antecedentes;
IX - averiguar a vida pregressa do indiciado, sob o ponto
de vista individual, familiar e social, sua condição
econômica, sua atitude e estado de ânimo antes e
depois do crime e durante ele, e quaisquer outros
elementos que contribuírem para a apreciação do seu
temperamento e caráter. (Liv. I, Tít. II, Art. 6º)
Essas tarefas darão origem a um conjunto de peças de
informação: “Todas as peças do inquérito policial serão, num só
processado, reduzidas a escrito ou datilografadas e, neste caso,
rubricadas pela autoridade” (Liv. I, Tít. II, Art. 9º). Acompanhará esse
conjunto um relatório: “A autoridade fará minucioso relatório do que tiver
sido apurado e enviará autos ao juiz competente” (Liv. I, Tít. II, Art. 10, §1º).
84
O inquérito policial militar, segundo estabelece Código de Processo
Penal Militar (Decreto-lei nº 1.002, de 21 de outubro de 1969), diferenciase do anterior basicamente em função da natureza do crime, no caso,
militar: sua finalidade é “a apuração sumária de fato, que, nos termos
legais, configure crime militar, e de sua autoria” (Liv. I, Tít. III, Cap. Único, art.
9º).
As tarefas de realização do IPM são, na sua essência, quase iguais
às do IP:
Art. 12 (...) a autoridade (...) deverá, se possível:
a) dirigir-se ao local, providenciando para que se não
alterem o estado e a situação das coisas, enquanto
necessário;
b) apreender os instrumentos e todos os objetos que
tenham relação com o fato;
c) efetuar a prisão do infrator, observado o disposto no
art. 244;
d) colher todas as provas que sirvam para o
esclarecimento do fato e suas circunstâncias.
Art. 13. O encarregado do inquérito deverá, para a
formação deste: (...)
a) tomar as medidas previstas no art. 12, se ainda não
o tiverem sido;
b) ouvir o ofendido;
c) ouvir o indiciado;
d) ouvir testemunhas;
e) proceder a reconhecimento de pessoas e coisas, e
acareações;
f) determinar, se for o caso, que se proceda a exame
de corpo de delito e a quaisquer outros exames e
perícias;
g) determinar a avaliação e identificação da coisa
subtraída, desviada, destruída ou danificada, ou da qual
houve indébita apropriação;
h) proceder a buscas e apreensões (...);
i) tomar as medidas necessárias destinadas à proteção
de testemunhas, peritos ou do ofendido, quando coactos
ou ameaçados de coação que lhes tolha a liberdade de
depor, ou a independência para a realização de perícias
ou exames. (Liv. I, Tit. III, Cap. único, Arts. 12 e 13)
Como se vê, esses ritos jurídicos constituem-se de uma sucessão
de eventos para apurar uma infração penal, sendo cada passo
registrado textualmente, dando origem a uma macronarrativa (resumida
pelo relatório final), composta de micronarrativas (representadas por
85
cada peça de informação, como os termos de declaração das
testemunhas e dos indiciados).
Vejamos
a
seguir
como,
na
prática,
essas
narrativas
se
manifestaram na documentação do DOPS-MG durante a ditadura de
1964-1985.
O CORPUS
Como assinala Silva (2007, p. 104), o primeiro órgão de polícia
política de Minas Gerais foi criado em 1922 (com o nome de Gabinete
de Investigações e Capturas), passando por diversas transformações até
fixar a designação de Departamento de Ordem Política e Social (DOPS)
em 1969 (Lei n. 5.406 de 16 de dezembro de 1969, art. 51). As
modificações refletiam as conjunturas sociais de cada época, como foi o
caso na década de 50:
na visão dos integrantes da polícia, o avanço dos
movimentos sociais era um indicador da necessidade de
reforçar e ampliar a estrutura repressiva. Provavelmente o
argumento era utilizado inclusive para ganhar espaço no
próprio campo político ao propugnar o perigo de um
iminente colapso social que só poderia ser contido com o
fortalecimento do aparato policial. (SILVA, 2007, p. 107)
A documentação do DOPS foi recolhida ao APM em 1998 através
de 98 rolos de microfilmes, contendo 5.489 pastas (60 delas em branco)
numeradas provavelmente na microfilmagem. O APM recebeu uma
listagem com o número da pasta e seu título, abarcando apenas 2.120
delas.
Segundo apurou Silva (2007, p. 134-136), 1.748 pastas (31,12%)
foram abertas e encerradas entre 1964 e 1979, havendo pico de
abertura entre 1964 (258 pastas) e 1968 (315 pastas):
É sintomático, pois, em 1964, logo após o golpe, houve um
movimento de perseguição àqueles que se mostravam
contrários ao governo que se impunha e 1968 também é
um ano importante, pois, nesse período, os militares, sob a
justificativa de combater a luta armada, reforçaram o
aparato repressivo, inclusive do ponto de vista legal cujo
86
ponto nevrálgico foi a promulgação do Ato Institucional n.
5 de 13 de dezembro de 1968. Silva (2007, p. 136)
Apesar da quantidade de documento disponível para o período
de 1964 a 1985 (1.748 pastas), a presente análise será feita de forma
prioritariamente qualitativa, dada a grande dificuldade de localizar de
forma sistemática dados relevantes para viabilizar uma investigação de
base quantitativa. Uma futura melhoria da indexação do acervo do
DOPS permitirá confrontar os resultados aqui encontrados com uma
base documental mais robusta.
Fizemos uma busca na base do APM com a expressão “inquérito”
na faixa de tempo de 1964 a 1985, obtivemos o retorno de 71 pastas,
distribuídas em 102 arquivos pdf, totalizando um conjunto de 1.796
páginas: para 29 pastas, o título era Inquérito Policial; para 12, era
Inquérito Policial Militar; e, para as demais, o título era diversificado
(identificando nome de pessoa, de organização, do tema, etc.).
A macronarrativa: tipologia das peças de informação
Como já assinalado acima na apresentação das tarefas dos IP/Ms,
esses ritos jurídicos dão origem a um conjunto de unidades documentais
(“peças de informação”). As informações disponíveis na base do APM
sobre a tipologia da documentação do acervo do DOPS-MG são muito
vagas e atomísticas. Consta apenas uma longa lista de 38 tipos
genéricos sem indicação de sua interrelação:
Correspondências expedidas e recebidas pela polícia,
mandados de prisão, prontuários de presos políticos,
fichas policiais, atestados de antecedentes político-sociais,
depoimentos, ordens de serviço, pedidos de busca, autos
de apreensão, materiais apreendidos, documentação de
organizações (partidos políticos, organizações políticomilitares, sindicatos, associações comunitárias, entidades
estudantis, organizações religiosas), documentação de
empresas
e
instituições
públicas,
relatórios
de
investigação, relatórios de manifestações públicas (greves,
eleições, eventos culturais, festas, visitas de autoridades
políticas), documentação relativa ao controle da
comercialização de armas e munições, documentos
sobre movimentos na zona rural, inquéritos policiaismilitares, laudos técnicos periciais, leis, decretos, portarias,
panfletos, folhetos, livros, textos de análises teóricas,
87
periódicos nacionais e estrangeiros, recortes de
periódicos, caricaturas, charges, documentos pessoais,
cartas anônimas, bilhetes, cartões-postais, telegramas,
fotografias, materiais cartográficos e documentos sobre
censura. (APM, 2014)39
No conjunto das 71 pastas (1.796 páginas) analisadas de
inquéritos, foi possível identificar em 35 tipos diferentes de documentos:
Anexo No 4
Antecedentes
Assentada
Autuação
Boletim Individual
Certidão
Coleta de dados informativos
Conclusão
Declaração
Declaração de poderes
Edital de citação
Exposição
Ficha de IPM
Guia de recolhimento
Índice dos indiciados e dos
envolvidos
16. Informação
17. Informação confidencial
18. Informativo
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
9.
10.
11.
12.
13.
14.
15.
19.
20.
21.
22.
23.
24.
25.
26.
27.
28.
Memorando
Ofício confidencial
Ofício secreto
Ofício-circular secreto
Pedido de busca
Pedido de busca de Informações
Portaria
Recibo
Relatório
Requerimento para atestado de
antecedentes políticos e sociais
29. Solicitação de antecedentes
30. Termo de acareação
31. Termo de declarações
32. Termo de inquirição de
testemunha
33. Termo de perguntas ao indiciado
34. Termo de reinquirição ao
indiciado
35. Verificação de jornais
Mas que interrelação existe entre essa documentação?
Uma parte da resposta a esta pergunta consta de uma pasta que
não foi listada na referida busca: trata-se da pasta sob a cota BR
MGAPM,XX DMG.0.0.646, intitulada na base como Eleições.
Embora haja de fato nessa pasta, composta de 6 arquivos e um
total de 197 páginas, vários telegramas sobre as eleições de 30 de junho
de 1963, a parte relevante para a presente discussão está logo no
primeiro arquivo entre as páginas 12 a 15. Trata-se de um conjunto de
documentos assim intitulados:
Decreto No 53.897, de 27 de abr de 964 [p. 2-4];
Instruções para os inquéritos policiais e IPM (aditamento) [p. 5-11];
5
http://www.an.gov.br/mr/Multinivel/Exibe_Pesquisa_Reduzida.asp?v_CodReferencia_ID=221
88
Instruções para os inquéritos policiais e IPM [p. 12-13];
Portaria No 1 [p. 14] e
Ato No 9 [p. 15].
Trata-se de um conjunto de documentos que orientam sobre a
realização dos IP/Ms. O mais interessante é o segundo deles, pois
oferece informações relevantes do ponto de vista técnico e ideológico
(cf. reprodução no anexo deste texto).
Primeiramente, consta nessas Instruções, de autoria do Major
Estevão Taurino de Rezende Neto, um roteiro para constituição de IP/M,
evidenciando assim o que se pode chamar de sua estrutura prototípica.
Segundo se apreende do Anexo No 1 dessas Instruções, essa estrutura
seria:
Figura 1 – Estrutura prototípica do IP/M
[BR MGAPM,XX DMG.0.0.941/APM6 ]
Autuação (registro da portaria)
↓
Portaria de designação (instauração do inquérito)
↓
Termo de inquirição de testemunhas
↓
Juntada de provas documentárias
↓
Libelo (relato das acusações ao indiciado)
↓
Termo de perguntas ao indiciado
↓
Relatório
↓
Remessa (ofício do encarregado ao Presidente da Comissão Geral de
Investigação)
É interessante salientar que nas pastas examinadas não há
sempre a obediência a essa estrutura, faltando em muitos casos diversas
partes do IP/M. Em 35 das 45 pastas examinadas, há apenas um
relatório relativo a alguma cidade do interior de Minas Gerais, com
descrição de perfil de pessoas e organizações. Em alguns poucos, como
6
http://imagem.arquivonacional.gov.br/mr/arquivos/naorestrito/61565_4284.pdf.
89
no relativo a ações para criação de um sindicato rural na cidade de
Novo Cruzeiro (BR MGAPM,XX DMG.0.0.941), consta um conjunto mais
completo e, portanto, mais próximo da estrutura prototípica. Sua
constituição é a seguinte:
Figura 2 – Estrutura do Inquérito Policial de Novo Cruzeiro
[BR MGAPM,XX DMG.0.0.941/APM]
Neste organograma, a ordem os documentos na pasta segue da
esquerda para a direita e, quanto há documentos do mesmo tipo, de
cima para baixo; as setas indicam a ordem cronológica dos
documentos, que começa com a autuação (24.04.64), em amarelo, e
termina com a correspondência no início da pasta (17.07.64), em verde.
Os investigados estão em vermelho e as testemunhas em roxo.
Neste IP constam a autuação, a portaria, os termos de inquirição
de testemunhas (sob a designação assentada), os termos de perguntas
ao indiciado (sob a designação de termo de declarações [=TD]) e o
relatório. Constam como documentos não previstos na estrutura
prototípica (cf. FIG 1) a solicitação de antecedentes [=AS] e os boletins
individuais [=BI].
O inquérito, no entanto, na sua forma preservada, não parece
totalmente coerente, já que no relatório se trata de apenas um dos
investigados (A.P.S.), mas, em seu começo, consta o boletim individual de
cinco outros (A.B., A.R., J.R.B., W.R.A. e E.A.C.) com a acusação de “crime
contra a Lei de Segurança Nacional”, tendo como “meio empregado" a
90
“subversão” e como “motivos presumíveis” a “tomada de poder”. Essas
acusações contrastam fortemente com o teor do relatório, cujo parecer
“altamente” técnico descreveu um dos acusados, A.P.S., da seguinte
maneira:
Trata-se de um desocupado, que antes exercia a
profissão de alfaiate, mas que ultimamente é dado ao
jogo, vivendo divorciado de bons ambientes, tendo, por
isto, facilidade de manifestar sua maluquice. (BR
MGAPM,XX DMG.0.0.941/APM, arquivo 62136_4946, p. 21)
De toda forma, a verificação da complexidade da tipologia da
documentação com base na presente análise preliminar sugere que
esse tema deva ser futuramente aprofundado para: (a) permitir uma
melhor intelegibilidade dos processos através da demonstração da
organicidade das peças no conjunto e (b) para servir de fundamento
para
a
detecção
do
grau
de
mutilação7
da
documentação
remanescente do DOPS-MG, pois, como já se mencionou, raras são as
pastas de IP/Ms com todos os elementos da estrutura prototípica prevista.
As micronarrativas: termos de declaração e relatórios
O já referido conjunto de documento da pasta sob a cota BR
MGAPM,XX
DMG.0.0.646
é
também
revelador
em
relação
as
micronarrativas, pois os roteiros propostos deixam transparecer a forma
difusa de condução dos inquéritos.
No Anexo No 3 das referidas Instruções, aparece uma proposta de
12 temas para serem abordados durante os IP/Ms:
1. - Opinião sobre a ordem econômica, política e
social, Constituição e Governo vigentes até a Revolução.
2. - Em caso de julgamento (do depoente) de ser um
ou todos aqueles elementos inadequados, como via sua
alteração: Ação pacifica e democrática ou meios
violentos?
3. - Atitudes e ações tomadas em favor da idéia.
7
Há notícia de que a documentação do DOPS não terá passado por triagem (Scofield,
2012).
91
4. - Opinião sobre outros elementos que participam da
mesma idéia no caso de ser ela em favor de alterações.
5. - Opinião sobre o levante de Brasília, motim dos
marinheiros e fuzileiros reunidos no Sindicato dos
Metalúrgicos (GB), reunião dos Sargentos no Automóvel
Clube (GB) e comício de 13 de março frente à Central do
Brasil (GB).
6. - Opinião sobre o comunismo no Brasil. Legalização
do P.C. Contribuição do depoente para ações do
comunismo.
7. - Conduta em caso de tomada do poder pelos
comunistas.
8.- Como encarava as denúncias de que os comunistas
já estavam no Governo do Sr. JOÃO GOULART.
9. - No caso de reconhecer a existência no País, antes
da Revolução, de clima subversivo de fundo comunista,
quais os esclarecimentos que pode prestar.
10.
- A solução econômica, política e social para
ser efetivada deverá se processar através de agitações,
greves, lutas de classes, desmoralização das Forças
Armadas, etc, como vinha acontecendo, ou poderá ser
conseguida por meios normais, pacíficos e democráticos?
11.
- Opinião sobre a tentativa do Governo
passado para obter, através do plebiscito a reforma da
Constituição.
12.
- Opinião sobre o voto do analfabeto. (BR
MGAPM,XX DMG.0.0.646/APM, arquivo 61565_4284, p. 10)
O documento com o temário não apresenta data explícita, mas
deve datar de logo depois do decreto 53. 897, de 27 de abril de 1964,
pois é-lhe um aditamento. Dentro da lógica do anticomunismo da
época, entende-se a pertinência de questões como a segunda
(alteração da ordem “por meios violentos”) ou a décima (“solução
econômica, política
e
social (...) através de agitações, greves, lutas de
classes, desmoralização das Forças Armadas”), mas certamente não são
devidamente objetivas questões como a primeira (“Opinião sobre a
ordem econômica, política e social, Constituição e Governo vigentes até
a Revolução”).
De todas as questões do roteiro, no entanto, a que mais chama a
atenção é justamente a última, pois revela preocupação menos com a
segurança do País e mais com a perspectiva de participação popular
na política do País.
Essa contradição fica ainda mais evidente considerando o teor do
decreto ao qual acompanha o aditamento: o decreto no 53.897
92
regulamenta os artigos sétimo e décimo do Ato Institucional de 9 de Abril
[o AI-1]. Esses artigos, que legislam sobre a suspensão de “as garantias
constitucionais ou legais de vitaliciedade e estabilidade” (art. 7º), previam
como motivação para a suspensão casos em que os titulares das
garantias “tenham tentado contra a segurança do País, o regime
democrático e a probidade da administração pública” (art. 7º, § 1º).
É claro que a questão do voto do analfabeto passa longe de
qualquer ameaça contra “a segurança do País, o regime democrático e
a probidade da administração pública”, sendo ele justamente o que
tornaria um regime efetivamente democrático, pois só com o voto do
analfabeto, legitimado com a Constituição Federal de 1988, houve uma
efetiva participação popular nas eleições.
O roteiro de temas sugerido pelas Instruções foi de fato adotado,
como se constata pelo trecho abaixo extraído de um termo de
perguntas ao indiciado (indicamos o número do tema das instruções
entre colchetes):
(...) [1a] perguntado que acha da situação econômica do
país no tempo do governo anterior à Revolução,
respondeu que nada pode dizer; [1b] perguntado que
acha da situação política do País anterior da Revolução,
respondeu que não entende de política; [1e?] perguntado
que acha da farsa do Governo ao tempo de Presidente
deposto, respondeu que não sabe explicar; [5a]
perguntado qual a opinião sobre o levante de Brasília,
respondeu que leu somente por alto nos jornais, mas que
não sabe explicar pormenores; [5b] perguntado se soube
do motim dos marinheiros, respondeu que não,
desconhece o assunto; [5d] perguntado se teve
conhecimento do comício de treze de março (comício da
reforma), respondeu que sim, que ouviu pela televisão
rapidamente quando passava por um bar; [5d?]
perguntado se conhece algo das reformas, respondeu
que muito pouco, e que só tem ouvido falar por alto; [5c]
perguntado se teve conhecimento da reunião no
Automóvel Club do Brasil, respondeu que sim; [5c]
perguntado qual sua opinião sobre esta reunião,
respondeu que achou que a disciplina militar fora (...) ferida
e que seria difícil fazer daquela maneira as reformas
pregadas pelo Presidente; [12] perguntado que acha do
voto de analfabeto, respondeu que é a favor do voto de
93
analfabeto (...) (BR MGAPM,XX DMG.0.0.411/APM8 , arquivo
60939_3783, p. 7 [documento datado de 12.06.64])
O aspecto formulaico dos IP/Ms revela-se não apenas na
padronização de perguntas a testemunhas e indiciados, mas também
na própria redação dos relatórios, para os quais as ditas Instruções
também forneciam modelo com acusações pré-formuladas.
No Anexo No 4 das Instruções, consta uma ficha modelo com uma
breve narrativa acusatória seguida mais adiante do enquadramento:
1. - TENDÊNCIAS:
Conhecido por suas tendên cias co munistas.
Esquivou-se
de
dirigir
a
palavr a
a
seus
subordinados por ocasião das co memorações
da intentona comunista do ano de 1962.
Durante
a
instrução
de
Guerra
Revolucionária
eviden ciou -se
ser:
ateu,
9
mater ialista, adepto da estatização em todos os
setores econômico s.
Constantemen te def ende a política de
autodeterminação e não intervenção; é um
entusiasta da revolução cubana.
(...)
4. - ENQUADRAMENTO :
Incurso nos Art. 130 e 133 do CPM, Art. 2º § III,
e Art 9 o , da Lei 1802/53.
- Proposto para ser transferido para a
reserva remunera da de acordo com o art. 7 o , §
1º, do ATO INSTITUCIONAL, do Comando Supremo
Revolucionário.
(BR MGAPM,XX DMG.0.0.646/APM,
arquivo 61565_4284, p. 11)
Nova busca na documentação do DOPS revelou que esse roteiro
também foi posto em prática:
1.TENDÊNCIAS:
Conhecido por suas tendências comunistas, confessou ser
socialista moderado. - Doutrinador, calmo, fala pouco e
foge à discussão que contraria seu ponto de vista.
Elemento perigoso por ter facilidade de estabelecer uma
conversa
sobre
assuntos
variados,
onde
tem
oportunidade de doutrinar seus colegas. Favorável às
reformas e defende a estatização, voto dos cabos e
soldados e elegibilidade dos sargentos.
(...)
4.ENQUADRAMENTO:
Incurso nos artigo 11 letra a e 3º da lei 1802, de 5 Jan 953.
8
9
http://imagem.arquivonacional.gov.br/mr/arquivos/naorestrito/60939_3783.pdf.
No original: “estalização”.
94
- Proposto10 para ser demitido do Serviço público, de
acordo com o artigo 7º 1º do Ato Institucional, do
Comando Supremo Revolucionário, e cassado os seus
direitos políticos. (BR MGAPM,XX DMG.0.0.591/APM11,
arquivo 62046_4908, p. 7 [documento datado de 14.09.64])
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente análise, de natureza exploratória, buscou investigar
como se organizavam as narrativas que constituíam os inquéritos
policiais/militares.
Apurou-se que essas narrativas se distribuíam em dois níveis: nas
macronarrativas, constituídas pelo registro da sucessão de eventos
responsáveis pela produção das peças de informação dos inquéritos; e
nas micronarrativas, constituídas pelo registro da sucessão de perguntas
pelos encarregados dos inquéritos e de respostas pelas testemunhas e
pelos indiciados.
No que se refere às macronarrativas, foi possível verificar a
proposição de uma estrutura prototípica por parte de membros do
Estado, com vistas a uniformizar o processo em todo o território nacional.
Analisando os IP/Ms do acervo do DOPS-MG, verificou-se que, na prática,
os processos apresentam muito mais peças do que as previstas na
referido estrutura prototípica, exigindo, assim, uma análise futura mais
detalhada para descrever as suas interrelações, permitindo, como
consequência, detectar com mais clareza as mutilações do acervo
remanescente.
No que tange às micronarrativas, verificou-se que havia orientação
para que os inquéritos fossem conduzidos segundo um modelo
específico de questionamentos, cujos temas apresentavam certa
vaguidão em relação os objetivos propugnados pelo AI-1. Saltam aos
olhos temas como a questão do voto do analfabeto (que revelariam
estar por trás dos inquéritos a preocupação com o avanço da
participação
10
11
da
população
na
vida
política
do
País),
questão
No original: “Preposto”.
http://imagem.arquivonacional.gov.br/mr/arquivos/naorestrito/62046_4908.pdf.
95
nitidamente incompatível com os objetivos oficiais dos inquéritos e do
previsto no AI-1. Modelos também foram adotados para os relatórios,
com texto pré-estabelecido para o enquadramento, mas não para o
não-enquadramento, o que sugere que havia uma preocupação maior
em acusar do que propriamente em apurar a verdade dos fatos.
REFERÊNCIAS
ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Departamento de Ordem Política e Social de
Minas
Gerais.
Disponível
em
http://www.an.gov.br/mr/Multinivel/Exibe_Pesquisa_Reduzida.asp?v_CodRe
ferencia_ID=221; acesso em 06.04.2014
BANDEIRA, M. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil (19611964). 8. ed. São Paulo: UNESP, 2010 [1. ed., 1978].
BRASIL. Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo
Penal).
Disponível
em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decretolei/del3689.htm; acesso em 06.04.2014.
BRASIL. Decreto-lei nº 1.002, de 21 de outubro de 1969 (Código de
Processo
Penal
Militar).
Disponível
em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del1002.htm; acesso em
06.04.2014.
MINAS GERAIS. Lei n. 5.406 de 16 de dezembro de 1969. Disponível em
http://www.almg.gov.br/consulte/legislacao/completa/completa-novamin.html?tipo=LEI&num=5406&comp=&ano=1969&texto=original;
acesso
em 06.04.2014.
SCOFIELD, P. Documentos da ditadura militar foram triados por torturador.
Hoje em Dia, Belo Horizonte, 04 nov. 2012. Disponível em:
http://www.hojeemdia.com.br/noticias/politica/documentos-da-ditaduramilitar-foram-triados-por-torturador-1.52789; acesso em 17.04.2014.
SILVA, S. L. da. Construindo o direito de acesso aos arquivos da repressão:
o caso do Departamento de Ordem Política e Social de Minas Gerais.
253 f. Belo Horizonte, 2007. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal
de Minas Gerais, Escola de Ciência da Informação.
96
ANEXO
Fac-símile do documento BR MGAPM,XX DMG.0.0.646/APM
97
98
99
100
101
102
103
ECO NO CAMPO:
O MITO DO HERÓI DE JOSEPH CAMPBELL E A MITIFICAÇÃO DE
UMBERTO ECO NOS SUPER-HERÓIS
Edson Wilson Mendes de Almeida1
It’s a Bird... It’s a plane... It’s Superman!2
Toda sociedade ou comunidade tem seus heróis, sejam reais ou
ficcionais. Vindos pela boca de um xamã em transe ou de literato
debruçado sobre seus alfarrábios que narram à existência de um ser
que lutou contra forças negras e devastadoras. Um ser que, se real, lutou
até os fins de sua vida pelo bem de uma sociedade. Esta existência é
colocada por Joseph Campbell “Em todo o mundo habitado, em todas
as épocas e sob todas as circunstâncias, o mito humano tem florescido”
(CAMPBELL, 1995, p.15).
O nascimento do herói é baseado na necessidade de se existir,
entre humanos comuns, alguém que os defenda, que enfrente o grande
inimigo que deseja eliminar ou dominar sua comunidade. Esta
necessidade envolve contos e lendas, alastrando-se da religião à cultura
de massa, passando pelos poemas, novelas, romances, operas, peças
teatrais, cinema e histórias em quadrinhos. Sua função, se assim
podemos colocar, não é servir apenas de contos de ninar para os
pequenos, ou para os religiosos obrigar os fieis a ouvir suas profecias, ou
ainda para se vender livros e outros produtos. “O prodígio reside no fato
de a eficácia característica, no sentido de tocar e inspirar centros
criativos.” (CAMPBELL, 1995, p.15).
Ao vencer o inimigo de forma magistral e definitiva, o herói inspira
uma pessoa a tomar uma atitude, a lutar por seus direitos, ou a narrativa
pode apenas servir de acalento para alguém suportar melhor uma
condição, onde o ser a ouvir ou ler a narrativa se transporta um
momento para fugir da sua condição.
1
Graduado em História pela UEG – Unidade Formosa em 2005; Pós-Graduado em
História Cultural pela UEG – Unidade Formosa em 2006.
2
Traduzindo: É um pássaro? É um avião? Não. É o super-homem!
104
Estes heróis estão presos ao seu tempo, mas não necessária
mente ao seu local. Sua luta é contra algo que preocupe sua
comunidade, ficando localizado ao seu ponto de existência. Por mais
que a cultura romana tenha absorvida a cultura grega, no caso dos
deuses, mas os heróis não foram absorvidos, não receberam outros
nomes ou algo similar. Roma gerou outros heróis, ligados a sua
existência, as suas necessidades. Esta ligação com seu tempo e
localidade é necessária para fazer o herói atingir seu “público”.
Joseph Campbell nos leva então a jornada do herói. Uma jornada
que vai tirar o herói da sua condição padrão e leva-lo até os caminhos
da aventura e por fim da vitória sobre o grande inimigo. Esta jornada,
muitas vezes, é de encontro para o herói, onde ele tem de descobrir
seus defeitos, suas virtudes. A jornada nunca é igual, podendo ter pontos
semelhantes, mas não os mesmos desafios ou questionamentos que o
herói tem de fazer para alcançar o objetivo e se tornar o campeão da
sua comunidade.
Figura 1- Joseph Campbell
105
Os super-heróis das histórias em quadrinhos são seres ficcionais,
criados para grandes empresas com o objetivo de entreter e fazer com
que estas empresas ganhem dinheiro, tanto que os personagens das
duas grandes empresas, DC Comics e Mavel Comics, não pertencem
aos seus criadores, mas sim as empresas, já que estas pagaram pela
criação.
Estes seres são muitas vezes gerados em pleno ato de dor e
sofrimento, algo próximo as tragédias das peças teatrais gregas ou
dignas de um momento final de Shakespeare, mas devemos nos ater
que não estamos nos relacionando com um momento final, mas sim o
inicio da jornada deste heróis que deve começar sua jornada, da forma
como Campbell nos informa que toda jornada deve começar:
“A primeira tarefa do herói consiste em retirar-se da cena
mundana dos efeitos secundários e iniciar uma jornada
pelas regiões causais da psique, onde residem efetivamente
as dificuldades, para torna-las claras, erradica-las em favor
de si mesmos (isto é, combater os demônios infantis de sua
cultura local) e penetrar no domínio da experiência e da
assimilação” (CAMPBELL, 1995, p.27).
Ao olharmos para a origem de alguns super-heróis, o inicio da
jornada começa na verdade com a perda de um ente querido, ou com
um momento de fraqueza, “Conhecemos bem demais o amargor do
fracasso, da perda, da desilusão e da não-realização irônica que corre
106
até mesmo nas veias daqueles que o mundo inveja”3 ao olharmos
para os personagens Super-homem (Superman, no original) criado pelos
jovens Jerry Siegel e Joe Shuster, Batman criado por Bob Kane e cocriado por Bill Finger, Homem-Aranha (Spiderman, no original) Stan Lee e
Steve Ditko, ou Homem de Ferro (Ironman) criado por Stan Lee e
desenvolvido por Larry Lieber sendo desenhado por Don Heck e Jack
Kirby, suas origens envolvem dor e sofrimento e sua jornada inicial
envolve uma jornada pelo eu interior.
Começamos
pelo
primeiro
de
todos,
Super-Homem.
Seu
nascimento é em um planeta distante que estava condenado a
destruição, os pais decidem enviar o único filho para um planeta
distante, mas esta não é a jornada do herói. Quando a nave do
pequeno é encontrada por um casal, Jonathan e Martha Kent, do
interior do Kansas, que o adota como seu filho, Clark Kant, que tem uma
criação típica do interior dos Estados Unidos, sendo um fator importante
para a as aventuras do super-herói. A jornada do herói começa quando
este nota que não é como as outras crianças, tendo habilidades que os
“humanos” não possuem. Por qual motivo o extraterrestre não toma o
controle da nação e lidera com mãos de ferro ditatorial, visto que é mais
forte e invulnerável? A resposta esta na criação que teve de seus pais
terrenos, que busca pregar o ensinamento de ajudar o próximo, sempre
que possível.
3
Campbell, Joseph. O herói de Mil faces. Pagina 34.
107
Figura 2 - Capas das revistas Action Comics e Superman
Mas diferente do extraterrestre poderoso e invencível, Batman
nasceu no ano seguinte é completamente diferente, seria algo mais
próximo do herói grego Odisseu. O jovem Bruce Wayne assiste seus pais
serem mortos por um bandido num beco escuro. Pouco tempo depois o
jovem jura no túmulo de seus pais que lutara para livrar sua cidade da
criminalidade, eliminando os bandidos. Para conseguir manter seu
juramento Bruce Wayne, saí pelo mundo aprendendo artes marciais,
técnicas de fuga, investigação entre outras artes e técnicas com o
objetivo de ser o melhor homem. A jornada para o personagem Batman
envolve tanto a dor quando o conhecimento de si mesmo, onde sua
jornada por aprender técnicas e artes para melhorar mente e corpo o
levando para uma jornada interna e profunda.
108
Figura 3 - Detective Comics nº 27, 1939
A grande semelhança entre Clark Kent e Bruce Wayne é o
momento histórico dos personagens. Os Estados Unidos, sob o comando
do presidente Franklin Delano Roosevelt havia vendido a grande
depressão, o trabalho e a economia voltavam a reinar na vida das
pessoas. Os heróis são pessoas de trinta e poucos anos, bem sucedidos,
já que Wayne apesar de ser um playboy, também é dono das Indústrias
Wayne. Clark Kant é um jornalista que procura estar onde a notícia
acontece,
sendo
ganhar
de
prêmios
e
notoriedade
em
sua
comunidade.
Os personagens da editora Marvel foram criados nos anos de
1960, durante o período de ebulição cultural, onde podemos encontrar a
guerra fria, a revolução cultural, política e sexual, além do crescimento
da participação do jovem na sociedade, tanto nos Estados Unidos como
na Europa, sendo que neste mesmo momento os países da América
Latina conheciam a ditadura e as perseguições políticas.
109
Poucos super-heróis são tão próximos a jornada do herói como
Peter Parker, também conhecido como Homem-Aranha. Um jovem CDF
sem nada em comum que ganha poderes, muito por acaso, ao ser
“picado” por uma aranha radioativa. Suas habilidades são um misto de
“delírio” de seus criadores com algumas habilidades de uma aranha.
Para ter uma teia, o jovem Peter teve de criar em laboratório um
composto químico que simula, lembrando que nem toda aranha “gera”
teia, sendo neste caso, não havendo um distanciamento da realidade.
Agilidade, equilíbrio, poder escalar superfícies e um sentido que o alerte
dos perigos também são próximos a muitas espécies de aranhas,
porém a força sobre humana não vem das aranhas, pois nenhuma tem
tal habilidade. As habilidades não fizeram de Peter um super-herói, pois
o que realmente desejava era ficar rico e assim deixar a vida sofrida que
levava, e dar uma condição melhor aos seus tios Ben e May. A jornada
do herói só começa quando Peter descobre que o bandido que havia
assassinado seu tio, era o mesmo que ele havia deixado escapar de um
segurança, após um assalto a emissora de TV. “Com grandes poderes
vem grandes responsabilidades”, frase dita pelo tio Ben tempos antes se
tornou à máximo do personagem. A jornada interior de um adolescente
começa quando ele passa assumir responsabilidades que antes não
tinha, assim aprende Peter Parker e passa seus leitores esta condição.
110
Figura 4 – Estreia do Homem-Aranha na edição 25 da revista
Amazing Fantasy
Diferente de Peter Parker, o magnata Anthony “Tony” Stark, não tem
problemas financeiros, pois seu pai construiu um império baseado no
avanço tecnológico de um mundo em expansão. Tony Stark, como
prefere ser chamado, foi criado para ser o sucessor de seu pai nas
empresas, tanto na parte administrativa, quanto na parte criativa,
abastecendo a indústria bélica com sua genialidade, criando assim
uma forte ligação com o governo dos Estados Unidos. A jornada do
herói deste personagem vem da busca pela sobrevivência, pois quando
estava em viagem pelo Vietnã em guerra, o empresário acionou uma
mina terrestre que disparou, alojando estilhaços em seu coração, sendo
logo depois pego como refém de um grupo guerrilheiro que deseja que
ele desenvolve-se armas para seu uso no conflito. O trabalho realizado
não foi o esperando pelos sequestradores, mas sim uma armadura que
111
manteria vivo o empresário e inventor, nascia assim o super-herói
Homem de Ferro. Sua jornada do herói envolve sua captura pela
guerrilha inimiga e sua necessidade de sobreviver ao terror que estava
passando.
Figura 5 - Estreia do Homem de Ferro nas páginas da revista Tales
of Suspense
A grande diferença entre os personagens da DC e da Marvel esta
na condição dos primeiros não terem falhas humanas, diferentes dos
personagens da segunda editora, que são falhos e procuram melhorar,
se superar como pessoas. Entretanto quando um leitor adquiriu uma
revista destes personagens ele esta esperando uma série de regras já
predeterminadas, o que Umberto Eco vai chamar de mitificação.
112
Figura 6 - Umberto Eco
Umberto Eco escreve sobre vários assuntos e um dos quais já se
debruçou foi sobre os personagens das histórias em quadrinhos, não
apenas sobre suas origens, mas principalmente sobre sua condição de
não mutação. Ao ler uma aventura do Batman, um ponto que um leitor
não deseja ver é o mascarado fazendo uso de uma arma de fogo e
assassinando um criminoso, mesmo que ele seja um homicida
psicopata como o Coringa (Joker, no original). O que se espera é o
Batman derrotando o vilão e o conduzindo ao Asilo Arkhan para ser
tratado.
Para Umberto Eco a diferença se encontra na estrutura das
mitologias. Ao olhar para uma imagem de um herói grego, sabemos
das suas aventuras e conquistas, pois já se encontram formadas e
colocadas para todos, não se espera por algo novo ou surpreendente.
Mas não é apenas para os heróis gregos, mas sim para todos os
personagens
de
um
passado
mítico
e
já
estabelecido.
Algo
completamente diferente dos personagens criados para esta cultura do
consumo de massa, pois sua mitologia esta sendo desenvolvida aos
“nossos olhos”. As referencias não podem ser mudadas ou alteradas de
forma significativa, pois assim os “seguidores” do personagem podem
não o reconhecer e assim se afastarem, fazendo criticas destrutivas. Para
reforçar esta visão de Umberto Eco, vamos estudar de forma breve
alguns personagens, tendo a mitificação posta por Umberto Eco
comprovada de que mesmo quando se altera.
Super-homem foi o primeiro super-herói criado, sendo assim,
pode-se afirmar que sua mitificação é uma das mais notórias já vista,
113
pois ao se ler uma história do personagem, alguns pontos são, quase,
imutáveis, como:
 Aceitação dos conceitos estadunidenses de democracia,
liberdade e do capitalismo;
 Poucas vezes questiona as leis, normas ou regras do país;
 Seu uniforme são as cores da bandeira dos Estados Unidos;
 Não empunha nenhum tipo de arma.
Tais colocações são mitificações, para que se possa reconhecer o
personagem, além é claro da condição de ser extraterrestre e possuir
poderes além da condição humana. Uma das aventuras ao qual se
procurou mudar alguns conceitos do Super-Homem foi a histórias em
três edições da linha Elseworld, que procura colocar os super-heróis da
DC em mudanças sociais, locais ou de tempo. Super-Homem – Entre a
foice e o martelo, lançada no Brasil em 2004 pela editora Panini
(Superman: Red Son, no original, lançada em 2003 pela DC), escrita por
Mark Millar e desenhada pelos artistas Dave Johnson e Killian Plunkett.
Figura 7 – Capas das edições de Superman - Red Son
Nesta aventura, a nave de Kal-El cai no interior da Ucrânia, sendo
encontrado por um casal que o cria segundo os ensinamentos do
governo socialista da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Com as
mudanças ocorridas na estrutura central do personagem, o que temos
ao fim são os confrontos ideológicos entre o socialista contra o vilão Lex
114
Luthor, um empresário estadunidense que busca acabar, não apenas
com o extraterrestre, mas com o sistema político. A aventura demostra a
força da mitificação do personagem e ao final, o que temos é o
personagem se rendendo ao sistema estadunidense.
Tirando o manto de morcego é que temos é o milionário e
playboy Bruce Wayne da cidade ficcional de Gothan City. O Morcego,
um dos apelidos do personagem, possui entre suas mitificações:
 Equipamentos de alta tecnologia produzidos pala indústria Wayne;
 Não usar armas de fogo;
 Contar com a parceria ou apoio de ajudante ou colaboradores
para resolver suas aventuras;
 Não possuir poderes e depender apenas das suas capacidades,
físicas, mentais ou tecnológicas, para solucionar um caso;
 Não matar e sempre procura salvar uma vida, mesmo que seja
um vilão.
Esta última condição foi posta com o passar dos anos, visto que
nas primeiras aventuras o mascarado chegava a empunhar uma arma
e deixou um vilão, cair num tonel de ácido. Uma das provas desta
mitificação é o fim da aventura do escritor Kevin Smith, ao qual um vilão
novo, conhecido apenas como onomatopeia, alveja o vilão Coringa. A
preocupação do Batman é em salvar a vida do psicopata palhaço do
crime, mesmo contra tentativa do comissário de polícia Gordon para
deixar o vilão morrer. Seria o Batman capaz de deixar uma pessoa
morrer na sua frente e nada fazer para salva-la? Pela estrutura das
narrativas usadas para o personagem, podemos afirmar que não, pois
já faz parte da sua mitificação salvar vidas, caso algo assim ocorra, o
personagem será dragado por uma luta interior, pois seriam os leitores
que pressionariam a editora contra tal atitude.
115
Figura 8 - Batman salva o Coringa
Poucos super-heróis são tão atormentados com o drama como o
jovem Peter Parker. A morte do tio Ben e a fragilidade da saúde de sua
idosa tia May são pontos que sempre são lembrados, na mitificação do
amigão da vizinhança, uma das formas que o Homem-Aranha fala para
as pessoas, pois sempre podem contar com a sua ajuda, mesmo sendo
mal visto pela sociedade da cidade real de New York:
 Ser perseguido pelo jornalista J. J. Jemerson em suas colunas
jornalísticas;
 Estar sempre em busca de resolver problemas financeiros;
 A tragédia sempre esta presente nas aventuras do personagem.
A morte se faz presente nas histórias do Aranha, sempre com o
intuito de lembrar ao super-herói que ele não pode salvar a todos. As
duas mortes do Capitão Stacy e da namorada Gwen Stacy, pelos vilões
Dr. Octopus e pelo Duende Verde, respectivamente, são provas desta
ligação com o trágico. Uma das mudanças mais recentes foi quando o
Homem-Aranha revelou a toda a sociedade ser o jovem Peter Parker,
durante o conflito entre super-heróis, Guerra Civil. Para contornar esta
revelação, algum tempo depois a editora lançou a revista “Mais um dia”
(One more day, no original), com o intuito de apagar, além desta
revelação, o casamento com Mary Jane Watson, um casamento que
nos quadrinhos já tinha mais de vinte anos. Criticada por leitores e
116
críticos, pelo o modo posto, a aventura foi levada adiante pela editora.
Independente das críticas, a mitificação da tragédia retorna nas
aventuras do personagem.
Figura 9 - Morte do Capitão Stacy
Diferente do jovem Peter Parker, o industrial Tony Stark não esta
ponteado na tragédia, apesar desta aparecer em suas aventuras. Os
momentos trágicos servem muitas vezes para colocar “tirar” o
empresário de seu “mundo” de invenções e disputas corporativas e
coloca-lo em uma realidade mais próxima dos seus leitores. As
mitificações do personagem são:
117
 Playboy, dependente de álcool, galanteador;
 Gênio industrial;
 Saúde debilidade.
A grande mudança na estrutura do personagem é o fator da sua
saúde fraca, pois apesar da condição financeira, quando consegue
retirar os artefatos de seu coração, vem um tumor cerebral que o pode
levar a óbito devido a diversos fatores. A dependência do álcool tornouse um motivo de história para o Homem de Ferro, ao qual um superherói, gênio e empresário tinha que admitir que a única forma de lidar
com as pressões seria procurar refugio nas garrafas etílica. Esta
aproximação do mundo real deu a Anthony Stark uma condição
diferenciada, pois o coloca próximo a profissionais que por pressão
profissional e social, acabam por se entregar a dependência do álcool.
Figura 10 - Capa de Diabo na garrafa
118
Como visto acima, as épocas em que os super-heróis foram
criados estão ligados as condições da sociedade em questão, assim
como as suas mitificações. Os vilões de Super-Homem e Batman no
inicio eram criminosos comuns, nada de mentes criminosas psicopatas
ou relações de violência extrema, podendo até afirmar que havia uma
certa “pureza” ou mesmo “inocência” de ideias nos quadrinhos.
As mitificações de Super-Homem e Batman que mudaram, foi
mais por conta da colocação dos personagens de acordo com o
tempo deles, mas não demos nos enganar que as modificações foram
tão fortes ao ponto de mudar a estrutura central dos personagens. Clark
Kent continua sendo o estrangeiro que foi aceito e procura manter o
status quo vigente da política estadunidense, não criticando ou
questionando os governos ao ponto de tomar o poder para si, pode no
máximo se afastar e procurar conhecer outras culturas, mas sempre
levando consigo as cores e a ideologia do seu país adotado. Bruce
Wayne não deixou de ser o Batman e cuidar de sua Gothan City, mas
procura colocar suas ideias e planos de em várias cidades do mundo
ao
criar
a
Corporação
Batman,
do
escritor
Grant
Morrison.
A
preocupação não é levar a estrutura estadunidense para outros países,
mas sim capacitar heróis que possam fazer uso dos equipamentos da
Industria Wayne para lutar contra o crime. Estamos em uma época de
globalização da informação, e as editoras não querem perder este
momento, levando seus personagens a todos os lugares, mas não
mudando suas mitificações, apenas adaptando as várias realidades.
Diferente da DC Comics que faz reboot, ou seja, reinicia sua
cronologia, algumas para resolver complicações que vários autores
foram colocados com o passar dos anos, a Marvel Comics não faz
reboots, mas sua cronologia é muito complexa e em alguns pontos
controversa, causada também por autores que colocam fatos e
informações muitas vezes conflitantes. Porém não ocorrem mudanças na
estrutura base dos personagens, ou seja, em como conseguiram seus
poderes ou a motivações deles de lutarem contra o crime. Peter Parker
combate o mal como Homem-Aranha, ao mesmo tempo precisa se
119
preocupar em pagar as contas no fim do mês. Anthony Stark negocia
bilhões de dólares com o governo dos Estados Unidos, ao mesmo
tempo em que luta contra gananciosos gênios usando suas armaduras
feitas por ele nas horas vagas e ainda encontra tempo para suas
conquistas amorosas. A origem dos dois personagens encontra-se nas
conquistas sociais e nos conflitos sociais da década de1960, porém as
mudanças feitas também estão pressas ás mobilidades sociais das
décadas seguintes.
Os personagens podem não ter mudado muito nestes anos todos
de publicação, todavia seus leitores mudaram. O garoto que tinha dez
anos quando a revista do Superman foi lançada em 1938, se encontra
em 2013 com 85 anos de vida, possivelmente não acompanhou as
aventuras de seu super-herói que usava a cueca vermelha sob a calça
azul, assim como o Batman, mas uma nova “legião” de leitores ocupou
o lugar daqueles meninos. O mesmo podemos falar de Peter Parker e
Anthony Stark, nascidos durante os anos quentes da revolução sexual e
social e Guerra Fria, hoje com 50 anos de publicação ainda ganham
novos leitores graças a habilidade de escritores e desenhistas que
escrevem para as mentes de seu tempo.
Ao unir as ideias de Joseph Campbell e Umberto Eco, o objetivo
central é de mostrar que, diferente dos heróis da antiguidade, que já
trazem suas lendas e contos ao regatarmos suas imagens, estes superheróis da atualidade ainda estão em construção, mas pouco podemos
mudar de suas características centrais.
REFERÊNCIAS
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São Paulo Panini Livros, 2007.
120
LEE, Stan; LIEBER, Larry; KIRBY, Jack. Biblioteca histórica Marvel - Homem De
Ferro, V.1: São Paulo Panini Livros, 2008.
MICHELINIE, DAVID. ROMITA JR. JOHN. Os maiores clássicos do Homem de
ferro nº 1: São Paulo, Editora Panini, 2008.
MILLAR, Mark. JOHNSON, Dave; PLUNKETT, Killan. Entre a Foice e o Martelo.
São Paulo: Panini, 2004.
MORRISSON, Grant; BURNHAM, Chris. Corporação Batman vol. 1. São Paulo:
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SMITH, Kevin; FLANAGAN, Walter. Batman – Cacofonia. São Paulo: Editora
Panini, 2009.
STRACZYNKI, J. M. QUESADA, J. Amazing Spider-man Vol. 1 # 545: New
York, EUA, Marvel Comics,2007.
121
A COPA DE 1950 E OS MITOS DA DERROTA
Elcio Loureiro Cornelsen1
Cada povo tem a sua
irremediável catástrofe
nacional, algo assim
como uma Hiroshima. A
nossa catástrofe, a nossa
Hiroshima, foi a derrota
frente ao Uruguai em
1950.
(Nelson Rodrigues)
Mais que um simples jogo
16 de julho de 1950 – essa data estabelece um marco na história
do futebol brasileiro; um marco, por assim dizer, traumático, difundido ao
longo de décadas por um discurso disfórico, seja em relatos ou imagens.
Em seu estilo hiperbólico, Nelson Rodrigues chegou a atribuir-lhe um
sentido de verdadeira catástrofe (RODRIGUES, 1994, p. 116). Mas o “anjo
pornográfico” não estava sozinho em tal exagero. Ao longo de décadas,
um verdadeiro coro se formou e alimentou o mito da derrota de 1950
como a “maior tragédia” (MORAES NETO, 2000, p. 19), marcando “o
sepultamento dos sonhos esportivos do Brasil” (HEIZER, 2001, p. 62), que
transformou o Maracanã no “maior velório da face da Terra” (MILAN,
1998, p. 34) frente ao “silêncio mortal de duzentos e vinte mil brasileiros”
(RODRIGUES FILHO, 2003, p. 288), um “silêncio ensurdecedor” (WISNIK,
2008a, p. 261), “el más estrepitoso silencio de la historia del fútbol”
(GALEANO, 2010, p. 98). Sem dúvida, a memória discursiva que se constrói
sobre a derrota da Seleção Brasileira em 1950 é perpassada pelo
trauma.
1
Professor Associado da Faculdade de Letras da UFMG, bolsista de Produtividade em
Pesquisa do CNPq e bolsista do Programa Pesquisador Mineiro da FAPEMIG, além de
líder do FULIA – Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes e coordenador do
projeto “A memória do trauma de 1950 – relatos, ficções, imagens”. E-mail:
[email protected]
122
Os protagonistas brasileiros daquela fatídica tarde, sobretudo, os
jogadores, posteriormente, relataram sobre os desdobramentos que a
perda da Copa de 1950 representou para suas vidas. Alguns deles,
tomados como bodes expiatórios pela imprensa e por parte da torcida
brasileira – pensamos no goleiro Barbosa e nos jogadores Juvenal e
Bigode – sofreram na pele todo o tipo de crítica e discriminação. Seus
relatos memorialistas não só contribuem para edificar o sentido da
derrota, como também trazem as marcas desse momento traumático
para o esporte brasileiro.
Como bem apontam Arthur Nestrovski e Márcio Seligmann-Silva,
“a catástrofe dificulta, ou impede a representação”, pois “a catástrofe é,
por definição, um evento que provoca um ‘trauma’, outra palavra grega,
que quer dizer ‘ferimento’” (NESTRÓVSKI; SELIGMANN-SILVA, 2000, p. 8). Por
assim dizer, alguns dos protagonistas daquela partida assumem o papel
de autêntico testemunho do evento traumático, um superstes (AGAMBEN,
2008, p. 27) nas categorias propostas por Giorgio Agamben, ou seja,
aquele que não é mera testemunha ocular do ocorrido – o testis –, mas
aquele que atravessou uma verdadeira provação (SELIGMANN-SILVA,
2005, p. 84). Nesse sentido, baseados na teoria do testemunho e em
conceitos e métodos da teoria da memória, nossa intenção é avaliar em
termos discursivos não só o quê, mas, sobretudo, como, décadas mais
tarde, os jogadores e espectadores ou cronistas esportivos enunciavam,
através da memória, suas versões sobre aquele fatídico 16 de julho de
1950 e seus desdobramentos.
Se, por um lado, de acordo com Michael Pollak, a memória surge
como “um fenômeno individual, algo relativamente íntimo, próprio da
pessoa” (POLLAK, 1992, p. 201) e, portanto, está sujeita a flutuações,
lacunas, supressões e silenciamentos, ela também é coletiva, como já
apontava Maurice Halbwachs nos anos 1930 (HALBWACHS, 2004, p. 77),
ou mesmo como Pollak afirma: “uma memória também que, ao definir
o que é comum a um grupo e o que é diferente dos outros, fundamenta
e reforça os sentimentos de pertencimento e as fronteiras sócio-culturais”
(POLLAK, 1989, p. 3). Segundo o historiador Jacques Le Goff, “[a] memória,
123
como propriedade de preservar certas informações, remete-nos em
primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o
homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele
representa como passadas” (LE GOFF, 2003, p. 419). Ao pensarmos nos
depoimentos dos jogadores brasileiros e dos espectadores que
assistiram à partida Brasil x Uruguai no Estádio do Maracanã, não
podemos perder de vista o fato de que, para uma pessoa que relata
sobre o passado, “contar a própria vida nada tem de natural”, “já é difícil
fazê-la falar, quanto mais falar de si” (POLLAK, 1992, p. 210).
O foco de interesse deste breve estudo é, portanto, a construção
memorialista da derrota de 1950 em suas diversas facetas. Isto tem
implicações para a delimitação dos corpora de análise. O primeiro
corpus será composto por relatos de ex-jogadores da Seleção Brasileira
de 1950, publicados no Dossiê 50: os onze jogadores revelam os
segredos da maior tragédia do futebol brasileiro (2000), organizado por
Geneton
Moraes
Neto.
Ao
elegermos
essa
obra,
tencionamos
contemplar o olhar dos protagonistas brasileiros dentro das quatro linhas.
Por sua vez, as vozes das tribunas de imprensa e das
arquibancadas também serão contempladas no presente estudo e,
para isso, elegemos a seguinte obra para formar o segundo corpus de
análise: Maracanazo – 16 de julho de 1950: tragédias e epopeias de um
estádio com alma (2013), de Teixeira Heizer. Com isso, intentamos
ampliar o enfoque na construção discursiva do mito em torno da derrota
de
1950,
numa
junção
entre
campo,
tribuna
de
imprensa
e
arquibancada.
Do êxtase à queda: hegemonia de um discurso disfórico
De acordo com António da Silva Costa, “o futebol é uma das
principais chaves de leitura de nossa sociedade” (COSTA, 2005a, p. 9). No
mesmo sentido, a pedagoga Elma Corrêa de Lima, por exemplo,
considera o futebol um “tema transversal”:
124
Pode-se afirmar que o futebol, como força simbólica, tem
o poder de atravessar as mais diversas redes de relações
sociais, uma vez que a sociedade brasileira encontrou
nesse esporte uma forma de se expressar, um modo de
cidadania. A partir desse ponto de vista, concluímos que o
futebol é dinâmico, pois reflete a própria sociedade
brasileira (LIMA, 2005, p. 52).
Assim, o futebol – “o filho terrível do século XX” (COSTA, 2005b, p. 13),
de acordo com António da Silva Costa –, se torna um fenômeno singular
para estudos
transdisciplinares,
dentro
dos
quais
o
campo da
linguagem, sem dúvida, tem o seu quinhão de colaboração.
Posto isso, passemos, então, à reflexão sobre o evento esportivo
aqui enfocado. A derrota da Seleção Canarinho para a Celeste Olímpica
em 16 de julho de 1950 já é passado, mas um “passado que não quer
passar”, perpetuado por verdadeiros mitos de vitória heroica, no olhar
dos uruguaios, e, respectivamente, de profunda derrota no olhar dos
brasileiros. O evento, em sentido ontológico, se realizou efetivamente. O
que nos resta dele são umas poucas imagens cinematográficas e
fotográficas que retratam aquela fatídica partida, bem como gravações
de locuções de rádio, além de entrevistas com jogadores e membros
da comissão técnica das duas equipes concedidas ao longo de
décadas, ou mesmo relatos de jornalistas e de torcedores que
presenciaram o
Maracanazo.
Aliás, Alcides
Ghiggia
é o
único
protagonista vivo daquela partida, está com 85 anos de idade e sofreu
um grave acidente de automóvel, no ano passado, nas imediações de
Montevidéu.
Um aspecto relevante para o nosso estudo é o fato de que todos
aqueles que se dedicam ao estudo histórico ou jornalístico daquela
partida são unânimes em afirmar que há, pelo menos, mais de uma
versão para os eventos ocorridos no dia 16 de julho de 1950, antes,
durante e depois da partida. Portanto, as narrativas em torno do jogo
Brasil x Uruguai sofreram variações ao longo de décadas. Como bem
aponta o escritor alemão Thomas Brussig, “lembranças não se
interessam pelo que ‘realmente’ foi. Elas iludem, enganam, adulam,
ocultam”; “Recordar é sempre transfigurar, que caminha lado a lado
125
com o ato de esquecer” (BRUSSIG apud LAMBECK, 1999, s/p.). Portanto, a
memória é lacunar, instável, sujeita a alterações e distorções tanto pela
ação do tempo quanto pela ação traumática.
Sem dúvida alguma, essa narrativa recorrente e sujeita a
flutuações se deve ao próprio caráter trágico que aquela partida
assumiu. Numa reportagem recente sobre a Copa de 1950, Luiz Carlos
Barreto, ele próprio testemunha ocular da tragédia do Maracanã como
jovem fotógrafo, afirmou que “essa tragédia não vai se apagar nunca
da minha memória e da memória do coletivo brasileiro, vai se transmitir
oralmente” (BARRETO apud CAPOVILLA, 2010). Argumentando na mesma
direção, o jornalista Helvídio Mattos afirma essa permanência do trauma
de 1950: “[a]té hoje, aquela derrota continua doendo na alma brasileira.
É uma ferida do tamanho do Maracanã, e talvez nunca cicatrize”
(MATTOS apud CARVALHO, 2010b). A impressão que se tem ao ler tais
frases é de que certo exagero, que nos faz lembrar o estilo hiperbólico
de Nelson Rodrigues em suas crônicas esportivas – com celebres
expressões para definir em 1966 o Maracanazo como “a nossa
Hiroshima” (RODRIGUES, 1994, p. 116), ou ainda ao afirmar em 1969 que
“[a] humilhação de 50, jamais cicatrizada, ainda pinga sangue” –
(RODRIGUES, 1993, p. 144), marca o discurso da derrota, sempre
renovado.
Sendo assim, justifica-se um estudo fundamentado por teorias e
conceitos caros aos Estudos da Linguagem, que nos possibilitem refletir
sobre narrativa, testemunho, memória, imagem, no intuito de delimitar os
elementos estruturantes da construção discursiva dos relatos sobre
aquela partida, que colaboram para sua cristalização enquanto maior
“tragédia” do esporte nacional.
Cabe lembrar que, após vitórias avassaladoras contra a Espanha
por 6 x 1 e, respectivamente, contra a Suécia por 7 x 1, criaram-se os
pressupostos eufóricos para que a derrota em 16 de julho de 1950
ganhasse traços de vivência traumática. Se, por um lado, como nos
lembra José Miguel Wisnik, “o trauma brasileiro, na Copa de 1950, foi e é
continuamente lembrado e repetido em prosa, em verso, em ensaio, em
126
foto, em filme” (WISNIK, 2008a, p. 246), por outro, a escassez de imagens
influiu decisivamente para que se criasse o mito da derrota de 1950 em
suas mais variadas versões. De acordo com Wisnik, a partir da repetição
de relatos e imagens, “essa recorrência insistente cumpre aí a função
freudiana de rasurar o trauma através de sua infinita repetição
fantasmática, diante de um conteúdo insuportável que se deu a ver”
(WISNIK, 2008a, p. 246; grifo no original).
Nesse mesmo sentido, no “Prefácio” do livro Barbosa, Juca Kfouri
ressalta que “[o] que houve, ali, no Maracanã, não foi um jogo de futebol.
Foi muito mais, foi uma catástrofe, um drama coletivo, uma catarse
nacional, o maior divã que um complexo de inferioridade jamais viu.
Uma tragédia!” (KFOURI, 2000, p. 13). Pois, como nos lembra o sociólogo
Roberto DaMatta, a intensidade e relevância atribuídas ao fracasso de
1950 se deveu sobretudo à imagem que a sociedade brasileira fazia de
si: “A derrota para o Uruguai foi tomada como uma metáfora para as
‘derrotas’ da própria sociedade brasileira” (DAMATTA apud PERDIGÃO,
2000a, p. 249).
A construção discursiva do mito da derrota: os jogadores brasileiros e o
discurso da “catástrofe”
Primeiramente, devemos destacar um último referencial teórico,
fundamental para o presente estudo: a obra Mitologias (2003), de Roland
Barthes. Dentre outras, noções como a de que “o mito é uma fala”, “um
sistema de comunicação, uma mensagem”, ou ainda de que “[o] mito
não se define pelo objeto de sua mensagem, mas pela maneira como
a profere” (BARTHES, 2003, p. 199), certamente, possibilitar-nos-ão uma
reflexão sobre o mito da derrota enquanto um construto discursivo. E isso
vale tanto para os relatos e depoimentos, quanto para as imagens
fotográficas e audiovisuais, pois, como bem aponta Barthes, “o discurso
escrito, assim como a fotografia, o cinema, a reportagem, o esporte, os
espetáculos, a publicidade, tudo isso pode servir de apoio à fala mítica”
(BARTHES, 2003, p. 200).
127
Sem dúvida, um dos maiores protagonistas daquela derrota é o
goleiro Moacyr Barbosa, acusado de ter falhado nos dois tentos
marcados pela equipe uruguaia. O grande goleiro do Vasco da Gama
e da Seleção Brasileira não só foi, injustamente, culpado pela derrota,
como viveu pelo resto de sua vida sob o estigma do vilão da história,
juntamente com Bigode e Juvenal. Aliás, o texto de transcrição do áudio
da partida na narração de Antonio Cordeiro pela Radio Nacional,
publicado por Paulo Perdigão no livro Anatomia de uma derrota,
documenta com propriedade detalhes daquela partida. Bigode (João
Ferreira), por exemplo, foi um dos jogadores do escrete brasileiro mais
exigidos durante os noventa minutos; o Uruguai centrou suas forças em
repetidas jogadas pelo mesmo setor, ou seja, com o ponta direita
Ghiggia, marcado por Bigode. Ao longo da partida, foram 21 confrontos
entre os dois, sendo que o lateral esquerdo brasileiro se saiu bem em 11
situações (PERDIGÃO, 2000a, p. 130-207). Todavia, o que passou para a
história foram apenas suas eventuais falhas em dois lances capitais, o
mesmo ocorrendo com o goleiro Barbosa, sempre lembrado como a
trágica figura que sucumbira aos gols de Schiaffino e, sobretudo, de
Ghiggia, “uma desgraça”, nas palavras de Armando Nogueira, “uma
maldição”, “a pá de cal na chamada soberba nacional” (NOGUEIRA,
1994, p. 25), que, segundo Paulo Perdigão, “desencadeou um dos mais
pesados traumas coletivos de nossa História contemporânea” (PERDIGÃO,
2000b, p. 11).
Um aspecto relevante para nossa abordagem é o fato de que
todos aqueles que se dedicam ao estudo histórico ou jornalístico
daquela partida são unânimes em afirmar que há, pelo menos, mais de
uma versão para os eventos ocorridos no dia 16 de julho de 1950, antes,
durante e depois da partida: o ônibus da delegação brasileira teria
sofrido uma pane mecânica (MORAES NETO, 2000, p. 48) ou mesmo um
pequeno acidente a caminho do Maracanã (PERDIGÃO, 2000a, p. 109110); o capitão uruguaio Obdúlio Varela, aos 27 min. do primeiro tempo,
teria dado um tapa no rosto de Bigode (PERDIGÃO, 2000a, p. 145), ou
apenas pedido calma ao jogador brasileiro após uma entrada mais
128
forte em Julio Perez (MORAES NETO, 2000, p. 49; cf. MUYLAERT, 2000, p. 81);
o mesmo Obdúlio teria comprado exemplares do jornal O mundo, que
exibia na véspera a manchete “Estes são os campeões do mundo”, a
fim de motivar os companheiros a jogarem com garra para mudarem
aquele destino previamente traçado (PERDIGÃO, 2000a, p. 98), e noutra
versão, em que o protagonismo de Obdúlio não é explorado, diz-se que
foi o cônsul honorário do Uruguai, Manuel Caballero, que teria mostrado
a referida manchete aos jogadores, com a seguinte observação: “Meus
pêsames. Os senhores já estão vencidos!” (PERDIGÃO, 2000a, p. 98).
Portanto, as narrativas em torno do jogo Brasil x Uruguai sofreram
variações ao longo de décadas. O que nos parece óbvio, mas que é
bem ilustrado nesses exemplos, é que o passado não é recuperado
pela memória para o presente, mas sim é no presente que se tem a
chave para se rememorar o passado. No caso específico dos relatos e
depoimentos do goleiro Barbosa, assevera Roberto Muylaert que “a
versão dos fatos que ele apresenta hoje [isto é, 2000] já não se sabe até
que ponto é real ou imaginária” (MUYLAERT, 2000, p. 113). Transcorridas
décadas, “os acontecimentos se transformaram num novelo de idéias
um tanto embaraçadas, contraditórias, embaçadas, que há muito ele
desistiu de deslindar” (MUYLAERT, 2000, p. 113).
Outro aspecto de destaque nos relatos do goleiro Barbosa diz
respeito à incorporação do discurso do outro, à medida que o goleiro,
em depoimento concedido a Geneton Moraes Neto em 2000, fez a
seguinte afirmação: “Ghiggia diz que só ele, o Papa e Frank Sinatra
calaram o Maracanã. Eu também fiz o Brasil calar, fiz o Brasil chorar: não
é só ele que tem esse privilégio não” (BARBOSA apud MORAES NETO,
2000, p. 53). Desse modo, Barbosa incorporou em seu discurso o
argumento de Ghiggia, publicado no jornal O Globo em 10 de janeiro
de 1981: “Apenas três pessoas, com um único gesto, calaram o
Maracanã com 200 mil pessoas: Frank Sinatra, o Papa João Paulo II e eu.
E acredito que poucas outras o farão neste século” (GHIGGIA apud
PERDIGÃO, 2000a, p. 182). Embora sempre tenha rejeitado a crítica de
que teria sido um dos culpados pela derrota da seleção naquela
129
partida, ao argumentar desse modo, até mesmo contraditório, é como
se Barbosa reconhecesse a culpa. Em um trecho de entrevista datado
de 1988, integrada ao curta-metragem Barbosa, o goleiro foi categórico
ao afirmar: “Fui, fui, fui acusado, fui acusado de culpado” (FURTADO;
AZEVEDO, 1988). E talvez o maior índice traumático em seus depoimentos
seja a frase na qual o goleiro estabelece, por analogia, uma relação
entre a sua condição de “condenado” com o limite de pena máxima no
Brasil, conforme relatado ao repórter Helvídio Mattos em 1994:
Ainda há pouco tempo, nós estávamos lá num bar aonde
eu frequento, e um cara veio falando: porque em 1950...
Acabou a conversa aí. Porque eu falei para ele... eu me
reportei a ele o seguinte: olha, as leis de condenação
aqui no país quanto é? Quanto é? A maior condenação
quanto é? É trinta anos, né? É trinta anos que o sujeito tem
que cumprir. Então eu disse, nós estamos com quarenta e
três anos, e eu acho que paguei dez anos ou quatorze
anos a mais. Então eu não tenho razão para discutir
consigo e nem para dar uma explicação. Porque eu
acho... Por que eu vou dar uma explicação para ele? Eu
não sou um criminoso vulgar, não é? Então eu não vou
dar explicação a ele. Eu acho que ele não merece
explicação, por querer me cobrar de uma coisa após
quarenta e quatro anos, eu acho que ele não tem direito
a isso. Então eu não dou explicações. Então eu prefiro me
calar do que discutir, porque eu não vou explicar nada a
ele, eu não vou retornar aquilo que já se passou. Então
não tem problema nenhum. Então eu prefiro, para não
ser deselegante, eu prefiro não comentar. (MATTOS, 1994;
cf. CARVALHO, 2010b)
Sem dúvida, o modo como se costuma reiterar, na imprensa e em
publicações sobre futebol, a suposta “culpa” de Barbosa passa pela
elaboração discursiva de um verdadeiro drama. Este é o caso, por
exemplo, do jornalista Paulo Guilherme, que assim se referiu ao goleiro e
ao fatídico gol de Ghiggia:
Foi no dia 21 de julho (sic) daquele ano que a história dos
goleiros encontrou seu divisor de águas, quando, como
um mártir agonizando na cruz, o goleiro Moacyr Barbosa,
ingressou no seu calvário, do qual nunca mais conseguiria
sair. O Brasil perdeu a Copa do Mundo em pleno estádio
130
do Maracanã em uma inesperada derrota para o
Uruguai por 2 a 1. O segundo gol dos uruguaios, marcado
pelo atacante Alcides Ghiggia, carimbou o passaporte de
Barbosa para o inferno. (GUILHERME, 2006, p. 101)
Devemos lembrar que a própria função do goleiro abre margem
para esse tipo de interpretação. Pois o goleiro, segundo José Miguel
Wisnik, “é um ser de exceção e, nos momentos cruciais, um solitário”
(WISNIK, 2008b, p. 137), que, “[s]e for feliz, o goleiro transforma-se de tabu
em totem”; “Se não for, é o favorito natural para o bode expiatório”
(WISNIK, 2008b, p. 138). É justamente o que ocorreu com Barbosa após o
“gol fatal”.
Além
desse
sentido
de
“culpabilidade”,
entre
os
próprios
jogadores daquela partida gerou-se um silêncio em torno dos lances
capitais. Um desses silenciamentos, em meio ao trauma e ao tabu, foi
gerado entre Ghiggia e Barbosa quanto ao gol fatal, conforme
depoimento concedido a Geneton Moraes Neto em 2000: “Depois da
Copa, cheguei a me encontrar com Ghiggia, mas nunca tocamos no
assunto: nem ele me perguntou nem eu perguntei a ele. Nunca. Jamais
tocamos nesse assunto. Nunca tive curiosidade de perguntar a ele”
(MORAES NETO, 2000, p. 49).
Outro aspecto relevante detectado nos depoimentos de Barbosa é
a noção metafórica de catástrofe que, de modo recorrente, perpassa
seu discurso. Podemos constatar isso nos breves trechos de entrevista
que compõem o curta-metragem de ficção Barbosa, de 1988: “Agora se
tivesse uma cratera ali e eu pudesse desaparecer, eu desapareceria”
(FURTADO; AZEVEDO, 1988); “Aí o estádio veio abaixo, o estádio
desmoronou em cima de mim, e o público silenciou” (FURTADO;
AZEVEDO, 1988).
Acresce, ainda, que a presentificação do momento trágico, no
caso de Barbosa, não se fez apenas na ordem das reminiscências,
como também no próprio estádio do Maracanã, materializando, assim,
aquilo o que o historiador Pierre Nora conceituou de “lugar de memória”,
ou seja, “onde a memória se refugia e se cristaliza” (NORA, 1993, p. 7). Nas
palavras do goleiro, que se tornou funcionário do Maracanã por quase
131
três décadas, a recordação daquela partida era inevitável, feito uma
penitência: “[...] foi Deus quem quis que eu ficasse ali, purgando meus
pecados, [...] por 29 anos, boa parte de minha vida útil, podendo olhar
todo santo dia para o chamado ‘gol do Ghiggia’, o gol da tragédia”
(MUYLAERT, 2000, p. 74). Mais tarde, Luiz Carlos Barreto também atentou
para esse fato:
O Barbosa depois, anos depois, ele virou funcionário aqui
no Maracanã. Ele era o recepcionista de personalidades
ali na tribuna oficial do Maracanã. Um homem triste, um
homem marcado por aquele episódio, uma coisa... quer
dizer, ninguém pensou nisso, como ficou a vida dessas
pessoas. (CAPOVILLA, 2010)
Por fim, nos relatos de Barbosa, o que é natural em depoimentos
sobre a vivência de eventos traumáticos, há a menção à presença ou
ausência de tal evento em pensamentos e sonhos. Ele surge, por
exemplo, em forma do gol fatal: “Eu já pensei naquela bola um milhão
de vezes” (FURTADO; AZEVEDO, 1988). E a derrota, como não podia deixar
de ser, tirou-lhe o sono: “Não consegui dormir, fiquei a noite toda com
aquilo rodando na minha cabeça” (FURTADO; AZEVEDO, 1988). E isso
culmina com a tentativa – fadada ao fracasso – de não pensar mais no
ocorrido:
Não, não. Antes, talvez até uns trinta anos atrás eu ainda,
quando o cara vinha conversar comigo e começar a
querer puxar esse assunto, eu eliminava, eliminava
mesmo porque parecia que aquilo me feria, que aquilo
me feria mesmo. Mas depois de um tempo eu comecei a
pensar bem e disse: escuta, por que, por que eu? Eu to
pensando nisso, às vezes eu boto a cabeça no
travesseiro, to pensando nisso. Será que os outros também
estão pensando como eu? Então, estão malucos. Tão
malucos. Então, por isso eu não penso mais. (CARVALHO,
2010a)
Outro jogador apontado juntamente com Barbosa como “vilão”
da partida, décadas mais tarde, o ex-zagueiro Juvenal se recordaria do
silêncio como algo que minou as forças dele próprio e da equipe como
132
um todo: “Eu senti uma influência negativa do silêncio que se fez no
Maracanã. Quando veio aquele silêncio, me senti derrotado” (MORAES
NETO, 2000, p. 67). O mesmo se repete no relato do lateral esquerdo
Bigode, ao afirmar a permanência traumática da derrota: “O trauma de
1950, pelo menos para mim, não foi totalmente superado. Ainda escuto
na rua sobre o que aconteceu. Quando sou apresentado a alguém na
rua, dizem: ‘É Bigode, um dos que perderam a Copa do Mundo de
1950...’.” (MORAES NETO, 2000, p. 99).
Além do silêncio, o esquecimento é outra marca traumática nos
relatos dos jogadores brasileiros. O capitão da seleção, Augusto, assim
relata os momentos após a derrota: “eu me lembro que fui do
Maracanã para casa, na Ilha do Governador. Já nem sabia o que
falava, não me lembro o que se conversou. Nessa hora, não existe
palavra capaz de evitar aquela coisa que nos esmaga por dentro”
(MORAES NETTO, 2000, p. 59). Além do esquecimento, o sonho recorrente
com o ocorrido também se fez presente: “Várias vezes sonhei com a
aquele jogo com o Uruguai. O placar era sempre diferente, no sonho. A
gente ganhava, eu levantava a taça. Quantas vezes eu sonhei...”
(MORAES NETO, 2000, p. 59). Ao final de seu relato, décadas após a
partida contra o Uruguai, a derrota surge como algo indelével: “Se fosse
possível esquecer o que aconteceu naquele dia, seria bom. Mas não se
esquece. Não pude esquecer” (MORAES NETO, 2000, p. 63).
De modo bem semelhante, o jogador Danilo, o “Príncipe”, um dos
craques do escrete brasileiro, também ressalta esse caráter permanente
do trauma, evidenciado pelos sonhos recorrentes: “Eu estou sonhando
até hoje com aquele jogo. Há milhões de anos tento esquecer. Eu não
precisava dormir para sonhar com Brasil x Uruguai. Acordado, eu já
estava sonhando” (MORAES NETO, 2000, p. 89). E nessa mesma direção,
Zizinho, o cérebro da equipe, também se recordava dos incontáveis
sonhos: “Passei quase uma semana sem dormir direito. Tinha pesadelo
pensando que o jogo não tinha começado. O sonho era assim: a gente
ainda ia jogar contra o Uruguai, aquilo tudo que aconteceu era mentira,
133
um pesadelo que tinha passado, o jogo ainda iria começar” (MORAES
NETO, 2000, p. 116).
Cabe lembrar que, segundo Susan Rubin Suleiman, no ensaio
“Além do princípio de prazer”, Freud fala de uma compulsão à
repetição, que manifesta um desejo de dominação; ao repetir o trauma
original em seus pensamentos ou sonhos, o sujeito procura superá-lo,
afirmar ativamente seu controle sobre ele (SULEIMAN, 2006, p. 139). De
certo modo, todos esses depoimentos memorialistas dos jogadores
brasileiros, brevemente apresentados no âmbito deste estudo, eram
formas de se confrontar com o trauma no sentido de superá-lo. Pois a
memória pode auxiliar na superação dos conflitos, das feridas e das
dores causadas por dado evento traumático.
A construção discursiva do mito da derrota no olhar da imprensa e das
arquibancadas
O livro Maracanazo: tragédias e epopeias de um estádio com
alma, uma coletânea de ensaios sobre a derrota de 1950, organizada
por Teixeira Heizer e publicada em 2013, está repleto de relatos que
renovam o sentido disfórico da eterna derrota. Logo no texto de
“Apresentação”, o jornalista Villas-Boas Corrêa se vale da autoridade
daquele que foi testemunha ocular da fatídica partida: “Ninguém me
contou: eu vi e posso contar no resumo que a memória conserva do
essencial, deixando os detalhes pelo caminho do tempo” (CORRÊA, 2013,
p. 17). Para o então jornalista em início de carreira, o que restou foi a
imagem da massa de torcedores deixando desolada o palco da
derrota: “Forço a memória cansada para despertar as lembranças da
Copa em que assisti a todas as partidas jogadas no Maracanã. E o que
ficou gravado para sempre foi a saída da multidão, em silêncio, como
quem deixa o cemitério depois do enterro de parente próximo” (CORRÊA,
2013, p. 22).
Outro relato que reitera a trágica derrota é o do jornalista Maurício
Azêdo, então adolescente que iria assistir à partida Brasil x Uruguai nas
gerais do Maracanã, em companhia de um vizinho da mesma idade,
134
Luiz
Caminha
Filho:
“Eu
e
Luiz
Caminha
choramos
abraçados,
convulsivamente. Nem imaginávamos que o Maracanã, aquele túmulo
regado por nossas lágrimas, que sepultava momentaneamente nossas
ilusões, fosse o marco para arrancadas futuras que nos levariam à
absoluta liderança do futebol mundial como ocorre nos dias atuais”
(AZÊDO, 2013, p. 127).
Nos relatos de Villas-Boas Corrêa e, respectivamente, Maurício
Azêdo, podemos notar metáforas idênticas: a derrota é associada à
morte, ao sepultamento, e ao silêncio do enlutado. A morte simbólica de
um projeto de nação no pós-guerra foi decretada naquela tarde de 16
de julho de 1950.
Podemos afirmar que, enquanto “lugar de memória” (NORA, 1993,
p. 7), conforme postula Pierre Nora, o Maracanã, para muitos, levaria
anos para se livrar desse sentido “tumular” que adquirira com aquela
derrota. No ensaio “O filho do silêncio”, também publicado na coletânea
Maracanazo, o publicitário Washington Olivetto se recorda de sua
infância, em que o pai, uma testemunha ocular daquela partida, o único
jogo que teria assistido in loco em toda a sua vida, não se cansava em
dizer ao filho que o futebol só lhe traria tristezas: “traumatizado, passou
boa parte da minha infância me convencendo a não gostar de futebol,
esporte que, para ele, não era uma caixinha de surpresas: era um baú
de tristezas” (OLIVETTO, 2013, p. 131).
A perpétua derrota
Os aspectos aqui avaliados – as flutuações, os silenciamentos, a
incorporação do discurso do outro, as noções de catástrofe, de trauma,
detectados nos depoimentos e relatos dos jogadores brasileiros,
sobretudo do goleiro Barbosa, e de outras testemunhas oculares do jogo
Brasil x Uruguai em 1950, são elementos estruturantes da construção
discursiva dos relatos sobre aquela partida e, portanto, colaboram para
sua cristalização enquanto maior “tragédia” do esporte nacional.
135
Não obstante esse caráter trágico que a Copa de 1950 assumiu
para os brasileiros ao longo de décadas, pensá-la à luz de discursos
memorialistas possibilita-nos vislumbrá-la de um modo diferenciado,
talvez até no sentido desejado pelo próprio Barbosa em depoimento a
Geneton Moraes Neto: “1950 foi o marco inicial de outras conquistas”
(MORAES NETO, 2000, p. 46).
Prestes a sediar novamente uma Copa, o Brasil se vê confrontado,
mais uma vez, com os mitos da derrota de 1950. Basta recorrermos à
cobertura de imprensa que antecedeu à partida Brasil x Uruguai,
realizada em 26 de junho de 2013, pelas semifinais da Copa das
Confederações, em que a sombra de 1950 se fazia presente nos relatos
dos jornalistas, comentaristas e cronistas esportivos. Independente do
desempenho de sua seleção em 2014, como já apontava Paulo
Perdigão em 1986, uma coisa é certa: “naquela tarde, aqueles
jogadores brasileiros, diante daquela multidão, perderam a Copa do
Mundo para sempre. Nunca mais o Brasil ganhará a Copa de 50”
(PERDIGÃO, 2000a, p. 19).
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CARVALHO, Marcos. Copa de 1950 – da euforia ao silêncio. por Helvídio
Mattos, Brasil, colorido; preto e branco, 2010b, 93 min. (documentário
para o canal ESPN Brasil)
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colorido; preto e branco, 1988, 13 min.
MATTOS, Helvídio. A Copa de 1950, Brasil, colorido; preto e branco, 1994,
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139
UMA ABORDAGEM SÓCIO-HISTÓRICA DA RELAÇÃO ENTRE AS
NOÇÕES DE GÊNEROS E TIPOS DO DISCURSO
Gustavo Ximenes Cunha1
Introdução
Nos estudos da linguagem, é relativamente consensual a hipótese
de que os gêneros (textuais/discursivos) dizem respeito a formas
relativamente estáveis de enunciados sócio-historicamente constituídos,
ao passo que os tipos (textuais/discursivos) são sequências textuais com
características
bem
definidas,
que
entram
na
composição
de
exemplares de todos os gêneros. Como decorrência dessa hipótese
geral, defende-se que os gêneros são variados e quase infinitos (notícia,
poema, romance, canção, bula de remédio, ata de condomínio,
entrevista, reportagem, debate, etc), enquanto os tipos se limitam a meia
dúzia de categorias (narração, descrição, argumentação, explicação,
diálogo, injunção).
A
hipótese
da
dicotomia
entre
gênero
e
tipo
ou
da
transversalidade dos tipos em relação aos gêneros (SCHNEUWLY, 2004) é
problemática para os estudos da linguagem, porque deixa sem
respostas satisfatórias pelo menos duas questões importantes para a
compreensão do modo como elaboramos e interpretamos produções
discursivas:
 qual é o modo típico de narrar, descrever, argumentar em dado
gênero?
 como um dado gênero contribui para a constituição do modo
típico de narrar, descrever, argumentar nesse gênero?
De modo geral, essas questões não fazem parte do rol de
questões a serem respondidas pela maior parte das abordagens atuais
1
Doutor em Linguística pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor
Adjunto do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA) e do Programa de PósGraduação em Gestão Pública e Sociedade (PPGPS) da Universidade Federal de
Alfenas (UNIFAL-MG). E-mail: [email protected].
140
do
texto
e
do
discurso.
Afinal,
se
o
tipo
é
uma
entidade
descontextualizada e transversal em relação a todos os gêneros, não
haveria um modo de narrar, descrever, argumentar característico ou
típico de um dado gênero, mas apenas um modo geral e universal de
narrar, descrever, argumentar, o qual seria comum a todos os gêneros,
exatamente por ser independente de determinações genéricas (sociais,
históricas, culturais).
Posicionando-se
contra
a
hipótese
da
universalidade
e
atemporalidade dos tipos ou da transversalidade dos tipos em relação
aos gêneros, este trabalho levanta outra hipótese, segundo a qual as
noções de gênero e de tipo são de tal forma imbricadas que cada
gênero possui tipos específicos. Em outros termos, cada gênero se
caracteriza por um modo típico de narrar, descrever, argumentar, etc, o
que leva a compreender a noção de tipo como subordinada à de
gênero. Nessa perspectiva, o modo típico de narrar do gênero
reportagem seria diferente do modo típico de narrar do gênero conto.
Da mesma forma, o modo típico de argumentar do gênero artigo
científico seria diferente do modo típico de argumentar do gênero batepapo.
Neste trabalho, propomos uma abordagem que se guie pela
hipótese aqui defendida de que as noções de gênero e de tipo são de
tal forma imbricadas que cada gênero possui tipos particulares. A
exposição dessa abordagem recupera parte da pesquisa desenvolvida
em Cunha (2013).
Uma proposta para o estudo da imbricação das noções de gêneros e
tipos
Neste item, apresentamos uma caracterização dos instrumentos
de análise desta abordagem e de como eles podem ser empregados
no estudo de um tipo de discurso de um gênero específico: o tipo
narrativo
da
reportagem.
Do
ponto
de
vista
metodológico,
a
abordagem propõe que a análise se faça em três etapas. Na primeira,
estuda-se o gênero do discurso cujos tipos de discurso serão
141
caracterizados. Na etapa seguinte, investiga-se o impacto desse gênero
sobre a constituição dos tipos, a fim de descobrir a maneira como nesse
gênero tipicamente se narra, descreve ou argumenta. Na terceira etapa,
os tipos elaborados na etapa anterior são empregados na identificação
de sequências discursivas extraídas de exemplares do mesmo gênero.
Os gêneros do discurso
Os gêneros podem ser definidos como o componente sóciohistórico das produções discursivas. Reportando-se a Bakhtin, observa
Filliettaz (2006, p. 75): “os discursos não emergem do nada e não fazem o
objeto de uma (re)invenção perpétua, mas repousam sobre gêneros e
modelos intertextuais sócio-historicamente constituídos”. Nesse sentido, os
gêneros
dizem
respeito
a
conhecimentos
compartilhados
pelos
membros de uma coletividade, conhecimentos que atuam como os
princípios organizacionais que regem uma atividade social intersubjetiva
reconhecida (FILLIETTAZ, 2000).
No
que
se
refere
ao
gênero
reportagem
impressa,
a
representação que o define deve se compor de propriedades típicas do
mundo em que as reportagens se inserem. Dessa forma, toda
reportagem impressa tem um autor e um leitor. Essas instâncias
agentivas assumem, respectivamente, os status sociais institucionalmente
definidos de jornalista e de cidadão2 .
A
participação
desses
agentes
em
uma
dada
atividade
(produzir/ler uma reportagem) se justifica por meio de finalidades ou
visadas específicas (CHARAUDEAU, 2004). Enquanto o jornalista busca
informar e captar o leitor, bem como satisfazer suas exigências de
credibilidade e de atualidade, o leitor busca informar-se, consumir um
produto comercial e validar suas exigências de credibilidade e de
atualidade (CHARAUDEAU, 2006; CUNHA, 2009).
2
O status social do autor é o de jornalista, porque, segundo Charaudeau (2006, p. 73),
no discurso midiático o jornalista “não é o único ator, mas constitui a figura mais
importante”. Quanto ao leitor, o seu status é o de cidadão, porque, como as questões e
os acontecimentos abordados nas reportagens interessam à coletividade, é a uma
instância cidadã que o jornalista se dirige (HERNANDEZ, 2006).
142
Na atividade que define a reportagem, opera-se ainda uma
seleção dos conteúdos comumente mobilizados pelos agentes. Esses
conteúdos são mais ou menos estáveis e costumam ser indicados pelas
diferentes rubricas ou cadernos de um jornal ou revista: política,
cotidiano, esporte, cultura, etc (CHARAUDEAU, 2006). Além disso, a
veiculação de qualquer reportagem impressa está associada a um
suporte, ou seja, a um local físico de fixação e circulação da produção
discursiva (jornal, revista) (MARCUSCHI, 2003), que tem uma materialidade
interacional característica e uma data de publicação.
Tal como definida, essa representação genérica da reportagem
deve ser entendida como o produto sócio-histórico de condutas sociais
efetivas e, por isso, forma um feixe de conhecimentos com o qual é
possível definir o gênero reportagem. Como veremos a seguir, a
representação genérica tem impacto sobre a constituição do mundo
representado nos tipos de discurso. Especificamente, a representação de
um gênero influencia a constituição dos tipos, porque cria expectativas
quanto às propriedades referenciais que esperamos encontrar nas
sequências em que os tipos se atualizam.
O impacto do gênero do discurso sobre os tipos de discurso
Como vimos, o gênero se refere a uma representação referencial
ou a um conjunto de conhecimentos esquemáticos relativos ao mundo
em que o discurso se insere. Diferentes estudos apontam para o impacto
do gênero sobre o mundo representado no discurso e sobre os recursos
textual-discursivos empregados em sua representação.
Sendo assim, é necessário investigar o impacto da representação
genérica sobre as representações referenciais que definem os tipos de
discurso. Em outros termos, a definição de um tipo de discurso deve
resultar da percepção do impacto do mundo em que o discurso se
insere (gênero do discurso) sobre o mundo que o discurso representa
(tipo de discurso).
A seguir, apresentamos o tipo narrativo da reportagem, expondo a
definição de cada um dos episódios que o constituem. A caracterização
143
de cada episódio, detalhadamente exposta em Cunha (2013, cap. 5), se
pautou na percepção de elementos recorrentes em um corpus de
sequências narrativas. Esse corpus se constitui de 129 sequências
narrativas extraídas de dezesseis reportagens publicadas em janeiro de
2010 nas revistas Carta Capital, Época, IstoÉ e Veja. Essa análise revelou
que o tipo narrativo da reportagem diz respeito a uma representação
referencial composta por seis episódios:
sumário, estágio inicial,
complicação, avaliação, resolução e estágio final.
Na parte inicial de 64 sequências narrativas do corpus, foi
constatada a presença de um segmento discursivo em que o jornalista
oferece indicações sobre o conteúdo de que trata a sequência narrativa.
A recorrência de segmentos com essa característica levou à proposição
do episódio sumário. A leitura desse episódio motiva perguntas como
estas: Como?, Por quê?, Como assim?, perguntas que são respondidas no
restante da narrativa.
Em 98 sequências narrativas, há um segmento em que o jornalista
oferece as coordenadas temporais e/ou espaciais dos acontecimentos
tratados na sequência ou fornece informações que contextualizam esses
acontecimentos.
A
presença
desses
segmentos
em
sequências
narrativas de reportagens impressas parece se dever à busca do
jornalista por atender à exigência de credibilidade do leitor, que, para
crer na veracidade do que lhe é informado, precisa de informações
acerca do momento e do local dos acontecimentos, bem como das
circunstâncias que motivaram sua emergência (CHARAUDEAU, 2006).
Esses segmentos foram reunidos sob o episódio estágio inicial.
Em todas as sequências narrativas, há um segmento cuja temática
desenvolve as informações expressas no subtítulo da reportagem e/ou
no sumário da sequência narrativa, quando esta apresenta esse
episódio. Nesse segmento, o jornalista tematiza acontecimentos centrais
que motivaram a própria escrita da reportagem e em relação aos quais
os demais episódios indicam um antes e um depois, apresentam
esclarecimentos e justificativas ou expressam uma postura avaliativa por
parte de alguma instância enunciativa. A recorrência de segmentos com
144
essas características me levou a propor um episódio, que denomino
complicação.
Vale esclarecer que a complicação do tipo narrativo da
reportagem se difere da do tipo narrativo do relato de experiência
pessoal estudado por Labov (1972), já que, como nesses relatos o locutor
narrava uma situação em que correu risco de vida, era indispensável
que a complicação expressasse acontecimento singular e inédito, digno
de ser narrado. Portanto, ao contrário do que ocorre na complicação do
gênero reportagem, a complicação do gênero relato de experiência
pessoal não precisa ser recente e afetar a coletividade, bastando ser
imprevisível.
Em 85 sequências narrativas, foram identificados segmentos em
que o jornalista ou um personagem do mundo representado avalia
acontecimentos expressos em outros episódios. Nesses segmentos,
reunidos sob o episódio avaliação, é possível responsabilizar uma
instância enunciativa por um ponto de vista acerca da informação
expressa em quaisquer outros episódios do tipo narrativo, com exceção
do sumário, que, talvez por apresentar uma natureza avaliativa, não foi
objeto de avaliação em nenhuma sequência do corpus.
Na análise, foi possível separar em dois tipos maiores as
avaliações
identificadas.
De
um
lado,
estão
aquelas
cuja
responsabilidade enunciativa recai sobre o jornalista. Ou seja, nesse
caso, é o próprio jornalista quem faz a avaliação. De outro lado,
agrupam-se as avaliações cujos responsáveis são personagens do
mundo
representado.
Nessas,
o
jornalista
encena
personagens
realizando avaliações.
Em 91 sequências do corpus, o jornalista trata do resultado do
acontecimento
expresso
na
complicação,
indicando
que
esse
acontecimento deu origem a outros e satisfazendo a necessidade do
leitor/cidadão de ser informado de toda a cadeia de acontecimentos,
cujo cerne é a complicação. A recorrência dos segmentos que
expressam esses outros acontecimentos levou à proposição do episódio
resolução.
145
Em 38 sequências narrativas do corpus, o jornalista traz um
segmento que apresenta o momento final dos acontecimentos
expressos
na
sequência.
Diferentemente
da
situação
final
de
narratólogos que estudaram gêneros literários, nas sequências narrativas
de reportagens, os segmentos que apresentam o momento final não
têm como finalidade expressar uma nova situação de equilíbrio, em que
os personagens, após as peripécias do enlace e do desenlace, se
encontram em um estado diferente daquele em que estavam na
situação inicial.
Na reportagem, esses segmentos indicam as ações ou as
situações que estão mais próximas do momento da enunciação (a
publicação da reportagem). Nesse sentido, eles têm como função
indicar que os acontecimentos expressos ao longo da sequência
narrativa resultaram em um estado ou em uma ação final que, ainda
agora, no momento em que a reportagem é publicada, tem relevância
para o leitor/cidadão e pode, de alguma forma, interferir em suas
atitudes. Com base nesses segmentos, propomos a incorporação ao tipo
narrativo da reportagem do episódio estágio final.
Esses episódios podem ser agrupados na seguinte representação
referencial do tipo narrativo da reportagem.
SUMÁRIO
ESTÁGIO INICIAL
COMPLICAÇÃO
RESOLUÇÃO
AVALIAÇÃO
AVALIAÇÃO
ESTÁGIO FINAL
FIGURA 1 - O tipo narrativo da reportagem
146
Diferentemente dos protótipos sequenciais de Adam (1992, 1999),
essa representação não tem um caráter prototípico universal, uma vez
que não subjaz às sequências narrativas produzidas no quadro de
quaisquer gêneros do discurso. Dito de outra forma, essa representação
não é transversal em relação aos gêneros, pois busca dar conta da
produção e da interpretação das sequências narrativas pertencentes
apenas a reportagens e, portanto, está profundamente atrelada às
visadas e às instâncias enunciativas desse gênero. Além disso, como ela
é elaborada a partir de um corpus de sequências narrativas extraídas
de reportagens publicadas em janeiro de 2010, essa representação,
assim
como
o
gênero
a
que
se
subordina,
é
um
construto
profundamente sócio-histórico, não sendo válida para estudar, por
exemplo, as sequências narrativas de reportagens publicadas há um
século.
Nesse sentido, ela deve ser compreendida como um recurso
referencial de que lançamos mão sempre que precisamos produzir ou
interpretar os segmentos narrativos de uma reportagem e não se aplica,
portanto,
à
análise
de
sequências
narrativas
encontradas
em
exemplares de outros gêneros ou em reportagens produzidas em outros
momentos históricos.
No próximo item, expomos a terceira etapa da abordagem
proposta neste trabalho. Definidos os tipos de um gênero com base na
recorrência de elementos encontrados em um corpus de sequências
discursivas, é possível, na terceira e última etapa, utilizar os tipos assim
elaborados para identificar novas sequências discursivas, presentes em
outras produções discursivas pertencentes ao mesmo gênero. No item a
seguir, veremos como o tipo narrativo da reportagem, elaborado neste
item, pode ser empregado na percepção de que um segmento de
uma reportagem pertence a esse tipo.
A identificação das sequências discursivas
Assim como propõem Roulet, Filliettaz e Grobet (2001), esta
abordagem considera que os tipos de discurso devem funcionar como
147
instrumentos de análise que permitem extrair as sequências discursivas.
Dessa
forma,
estabelecemos,
aproximando-nos
dos
autores
mencionados, uma distinção entre tipo de discurso e sequência
discursiva. Enquanto o primeiro termo diz respeito a uma representação
referencial típica que define como se narra, argumenta ou descreve em
dado gênero, as sequências constituem segmentos discursivos empíricos
em que os tipos se realizam ou se manifestam.
Neste
trabalho,
vimos
defendendo
que
os
tipos
são
profundamente atrelados aos gêneros. Como consequência dessa
imbricação das noções de gênero e tipo, é possível levar em
consideração, no estudo das sequências de uma produção discursiva,
elementos extralinguísticos ligados aos gêneros que, de modo geral,
costumam ser negligenciados ou subestimados pelas abordagens que
se guiam pela hipótese da universalidade e atemporalidade dos tipos.
Para
mostrar
o
alcance
desta
proposta,
que
retira
sua
singularidade da profunda integração entre os gêneros e os tipos,
propomos uma análise deste segmento extraído de uma reportagem3 .
(01)
Mar de lama
Em 1998, mineiros e capixabas se animaram com o início
da construção da BR-342, que ligaria o norte do Espírito Santo a
Minas Gerais. Para pavimentar os 106 quilômetros da rodovia,
foram celebrados três contratos com duas empreiteiras. Nos três o
TCU encontrou sobrepreço – sempre na casa de 50% do valor
global. Além disso, parte dos serviços que as empreiteiras alegam
ter executado não foi fiscalizada pelo governo. Por fim, o valor dos
contratos aumentou sem nenhuma justificativa técnica. Uma
estranheza atrás da outra. Como a obra se tornou um sorvedouro
de dinheiro público, o TCU pediu sua paralisação. Hoje, há apenas
33 quilômetros asfaltados. Outros 27 quilômetros são transitáveis,
mas ainda não receberam uma gota de asfalto. Nos 46
quilômetros restantes, a obra nem sequer foi iniciada.
No plano referencial, o jornalista representa um mundo discursivo
que é disjunto daquele em que ele e o leitor interagem4 .
3
Esse segmento faz parte da reportagem “Desvios subterrâneos”, a qual foi publicada
na revista Veja de 06/01/2010 e integra o corpus da pesquisa apresentada em Cunha
(2013).
4
Segundo Bronckart (2007) e Filliettaz (1999), a disjunção entre o mundo que o discurso
representa e o mundo em que o discurso se insere é própria da narratividade.
148
Inicialmente, o jornalista traz o sumário da sequência (“Mar de
lama”), com o qual busca antecipar um aspecto do fato que será
abordado. Como esse sumário traz poucas informações e remete tanto
à lama das obras públicas quanto à “lama” da corrupção ligada a
desvios de dinheiro público, ele parece ter como fim mais despertar a
curiosidade do leitor do que facilitar a compreensão da sequência.
Depois, o jornalista informa, no estágio inicial, o local (BR-342,
Espírito Santo, Minas Gerais) e o momento (1998) em que se produziram
os acontecimentos, bem como parte das figuras reais do espaço público
neles envolvidos (mineiros, capixabas, empreiteiras). Esses elementos
temporais, espaciais e actoriais sinalizam, de modo explícito, que o
jornalista trata de um mundo outro ou disjunto em relação ao mundo
em que ele e o leitor interagem por meio da reportagem.
Após o estágio inicial, o jornalista informa, na complicação, os fatos
que motivaram a escrita da sequência narrativa e que foram
sumarizados no título (irregularidades na pavimentação da rodovia).
Esses fatos têm o potencial de chamar a atenção do leitor/cidadão,
porque dizem respeito ao uso irregular do dinheiro público e, por isso,
afetam uma grande parcela da população, os contribuintes.
Apresentados os acontecimentos, o jornalista, na avaliação,
comenta a complicação, evidenciando que para ele as irregularidades
encontradas no TCU são “uma estranheza atrás da outra”. O jornalista
emite uma avaliação negativa sobre as irregularidades, avaliação que
pode ser compartilhada pelo leitor, já que este, ao interagir com o
jornalista, assume o status social de cidadão.
Feita a avaliação, o jornalista informa ao leitor, na resolução, o
resultado da complicação. Uma vez descobertas as irregularidades, a
paralisação das obras foi um resultado previsto. Ao informar esse
resultado, o jornalista atende à expectativa do leitor de que este, por
assumir o status de cidadão, será informado da consequência da
descoberta de irregularidades em obras públicas.
149
Por fim, o jornalista apresenta, no estágio final, o estado resultante
da resolução, informando ao cidadão como a rodovia está hoje (data
da publicação da reportagem), depois da paralisação das obras.
Como evidencia a análise, o mundo representado no segmento
constitui uma atualização do tipo narrativo da reportagem, o que revela
que
esse
segmento
é
uma
sequência
narrativa.
Esse
mundo
representado pode ser esquematizado por meio da seguinte estrutura
referencial.
SUMÁRIO
Mar de lama
ESTÁGIO INICIAL
Em 1998...
COMPLICAÇÃO
Nos três...
RESOLUÇÃO
Como a obra...
AVALIAÇÃO
Uma estranheza...
ESTÁGIO FINAL
Hoje...
FIGURA 2 – Estrutura referencial
Ao contrário de uma análise estritamente sequencial, a análise
empreendida considera os interactantes (autor e leitor), as ações que
realizam, os status sociais que assumem na interação (jornalista e
cidadão), bem como as visadas típicas do gênero reportagem. A
consideração
desses
elementos
só
é
possível
porque,
para
a
abordagem proposta, os gêneros têm impacto sobre a constituição de
seus tipos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho propôs uma abordagem para o estudo da relação
entre gêneros do discurso e tipos do discurso. Contrapondo-se à hipótese
de que os tipos seriam universais, atemporais e transversais em relação
150
aos gêneros, a abordagem parte da hipótese de que essas noções são
de tal modo imbricadas que cada gênero possui tipos específicos.
Na abordagem apresentada, o tipo de discurso é concebido
como uma representação referencial típica sobre o mundo do discurso,
a qual é fortemente impactada pelo gênero do discurso ou pela
representação referencial sobre o mundo em que o discurso se insere.
Esse modo de conceber os tipos busca dar conta do fato de que eles
são tão sócio-historicamente constituídos quanto os gêneros, cuja
estrutura composicional integram.
Assim, o tipo narrativo da reportagem é diferente do tipo narrativo
da fábula, por exemplo, já que jornalista e fabulista não mobilizam os
mesmos recursos referenciais. Em outros termos, cada gênero define os
episódios característicos do seu tipo narrativo, uma vez que em cada
gênero há uma maneira característica de narrar. Dessa forma, ao longo
do processo de constituição histórica do gênero fábula, a moral foi
selecionada como um episódio do seu tipo narrativo. O mesmo não
ocorreu com o gênero reportagem, cujas propriedades definidoras não
selecionaram a moral, mas selecionaram, como vimos, o sumário como
categoria típica de sua narrativa.
Com a abordagem delineada, a finalidade é, então, contribuir
para uma melhor compreensão da relação entre os gêneros e os tipos,
chamando a atenção para a inadequação de hipóteses teóricas, como
a da universalidade dos tipos de discurso, que tem como consequência
a desconsideração do papel dos gêneros sobre a constituição dos tipos.
Ao desconsiderarem o papel dos gêneros sobre o modo como
tipicamente narramos, descrevemos ou argumentamos, as abordagens
que se guiam pela hipótese dessa universalidade estão impossibilitadas
de oferecer uma
compreensão
mais
adequada do
fenômeno
complexo que constitui a construção da estrutura composicional de um
gênero.
Porque parte da hipótese de que cada gênero possui tipos
específicos e, consequentemente, de que os tipos não são um conjunto
limitado de entidades universais e transversais em relação a todos os
151
gêneros, a abordagem apresentada constitui um ponto de partida
interessante para se pensar em respostas para algumas questões:
 qual é o modo típico de descrever e argumentar no gênero
reportagem?
 qual é o modo típico de narrar, descrever e argumentar em outros
gêneros?
 como o modo típico de narrar, descrever e argumentar de um
dado gênero se constituiu ao longo da história da formação desse
gênero?
 quais as semelhanças e as diferenças entre os modos típicos de
narrar, descrever e argumentar em diferentes gêneros?
 é possível utilizar o modo típico de narrar, descrever e argumentar
de um gênero para narrar, descrever e argumentar em outro?
Que efeitos de sentido esse tipo de empréstimo pode causar?
 quais implicações a hipótese de que cada gênero possui tipos
específicos pode trazer para o processo de ensino e de
aprendizagem dos gêneros e dos tipos?
 a hipótese de que cada gênero possui tipos específicos rejeita a
ideia de que o aluno capaz de narrar segundo os moldes das
narrativas literárias é capaz de narrar em qualquer gênero. Desse
modo, como essa hipótese pode afetar as aulas e os materiais
didáticos sobre os tipos de discurso?
Essas questões são relevantes porque, ao serem respondidas,
permitem elucidar aspectos ainda desconhecidos do funcionamento
dos gêneros e dos tipos, bem como do modo como deles nos valemos
para alcançar determinados fins em interações específicas. Além disso,
permitem repensar, em novas bases, práticas pedagógicas cristalizadas
e talvez ineficazes para a aprendizagem dos gêneros e do modo como
neles se narra ou se argumenta.
152
Por permitirem a colocação dessa série de questões para os
estudos do texto e do discurso, consideramos que a presente
abordagem e a hipótese subjacente a todas as etapas de seu
desenvolvimento abrem uma perspectiva bastante promissora para
investigações futuras.
REFERÊNCIAS
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154
OS DISCURSOS E AS PRÁTICAS DA INCLUSÃO DIGITAL
João Augusto Neves Pires1
O governo petista do presidente Luís Inácio Lula da Silva (2003 – 2010)
protagonizou uma série de ações que, segundo a fala oficial, pretenderam a
redistribuição dos espaços de acesso e uso da internet no país. Durante seu
governo diferentes programas e projetos foram desenvolvidos, em parceria
com instituições públicas e privadas, no sentido de amenizar a situação da
exclusão digital que afligia o Brasil. No entanto, as posturas assumidas pelo
governo do PT (Partido dos trabalhadores), no que concerne à inclusão digital,
estavam alicerçadas nas propostas que identificam suas políticas, as quais têm
como principal característica a negociação com setores hegemônicos da
sociedade de maneira que se articule ações que não manifeste prejuízos aos
grupos historicamente dominantes – neste caso as
empresas ligadas aos
ramos da comunicação e informação. Venício A. de Lima, em artigo publicado
no Observatório da Imprensa, destaca que “a maioria das propostas de
políticas públicas que a sociedade civil organizada considera avanços no
processo de democratização das comunicações não foi implementada no
período 2003-2010” (LIMA, 2010, p. 13), pois segundo análise do autor “em
diferentes ocasiões, ficaram evidentes as contradições e conflitos de orientação
política entre setores internos ao próprio governo, em especial o Ministério das
Comunicações, o Ministério da Cultura” (LIMA, 2010, p.13). O autor pondera, no
entanto, que houve avanço no acesso à internet no país, mas que as ações do
Estado foram muito tímidas para romper com as hegemonias historicamente
consolidadas no país, de modo que possibilitasse um uso democrático e
emancipador dos veículos de comunicação e informação,em suas palavras:
Da mesma forma, ficou mais de uma vez evidente a
impotência do Estado diante dos grandes grupos de mídia,
assim como ficou claro o enorme poder histórico desses grupos,
ainda
capazes
de
interferência
direta
na
própria
governabilidade do país. [...] O período 2003-2010 foi também
marcado (1) pelo formidável avanço da internet e (2) pelo
1
Mestrando em História pela Universidade Federal de Uberlândia, onde também
desenvolve projetos de pesquisa, ensino e extensão ligados à temática: Artes,
Tecnologias digitais, Educação e Culturas Populares. Possui bolsa CNPq e, por meio dela,
desenvolve pesquisa na área de Cultura Digital e Contemporaneidade, onde analisa
as políticas de inclusão digital e suas imbricações nas comunidades que recebem tais
programas ou projetos de Estado. Contato: [email protected]
155
recrudescimento da posição radical dos grupos privados de
mídia em relação a qualquer proposta de regulação das
comunicações, oriunda ou não do governo. (LIMA, 2010, p.13)
Claro que as ações e projetos políticos assumidos pelo governo Lula não
foram privilégios unicamente de sua gestão, estavam, na maioria das vezes,
em consonância com projetos internacionais de maior envergadura.
Basta
analisar os documentos firmados na Cúpula Mundial das Nações Unidas sobre
a Sociedade da Informação (CMSI) que ocorreu nos anos de 2003 e 2005, e da
Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL). Cruzando as
informações ali contidas com as propostas de inclusão digital implementadas
durante governo Lula, é possível notar como o governo do PT assimilou e
contribuiu para que as propostas de ambas as instituições internacionais
fossem consolidadas no país.
Uma questão que se destacou nas discussões da primeira CMSI no ano
de 2003 (Genebra) diz respeito às medidas tributárias que impediam ou
dificultavam a venda e compra das tecnologias digitais, como também a falta
de informação sobre as “brechas digitais” (exclusão digital), ou seja, problemas
fundamentais que precisavam ser rapidamente solucionados para dar início a
uma política de inclusão digital. Ambos os pontos foram se resolvendo por
ações do Programa Brasileiro de Inclusão Digital criado um ano após a referida
Cúpula.
Dentre as primeiras atitudes assumidas pelo governo brasileiro para os
programas de inclusão digital, podemos destacar: 1°) O estabelecimento de
parceria entre os diferentes órgãos do Governo Federal no início 2003 que deu
início ao Governo Eletrônico-Serviço de Atendimento ao Cidadão (GESAC), o
qual criava pontos de acessos a internet em diferentes municípios e
comunidades de baixa renda; 2°) a criação do Observatório Nacional de
Inclusão Digital (ONID)55 em 2005; 3°) o envio para congresso federal e sua
aprovação, conforme projeto de lei n° 11.196, de novembro de 2005, que além
de criar um regime especial de tributação para os programas de inclusão
digital, protagonizou um dos principais programas do governo Lula em sua
primeira gestão – o “Computador para todos” - que oferece computadores,
com
configuração
estipulada
pelo
governo,
com
baixo
custo.
Esta
reorganização e estruturação do Estado brasileiro permitiu que nos anos
2
É uma iniciativa do Governo Federal em conjunto com a sociedade civil organizada
que atua na coleta, sistematização e disponibilização de informações para o
acompanhamento e avaliação das ações de inclusão digital no Brasil.
156
seguintes e no segundo mandato de Lula o governo estivesse em melhores
condições para implementar projetos mais promissores, como é o caso do
Casa Brasil. Contundo, as estratégias assumidas pelo governo estavam distante
de objetivos educacionais e culturais, sociais e políticos, acompanhando, na
maioria das vezes, os interesses apregoados pelas organismos multilaterais e
supranacionais, que primam, antes de tudo, pelo aumento da capacidade
produtiva e de consumo. Diante desta situação Lacerda (2009) analisa que:
O papel mais ou menos ativo dos governos pode se converter
em promessas ou posturas demagógicas. E o entusiasmo em
torno das virtudes promissoras da tecnologia pode se traduzir
como resolução – mas, somente no nível do discurso – das
carências em termos de educação, saúde e informação como
possibilidades mínimas de exercício de governo. Esse
entusiasmo com a tecnologia que não traz resoluções
concretas ou mascara os demais tipos de carência é definido
por Scott Robinson como demagogia digital. (LACERDA, 2009,
p.172)
A partir dessas iniciativas o governo brasileiro torna-se destaque
internacional nas políticas de inclusão digital, pois ele conseguiu desenvolver
ações de maneira que elas fossem ramificadas nos diferentes ministérios que
compõe o governo e também formulou parcerias com instituições privadas
interessadas nas políticas de inclusão digital. Enquanto o Estado brasileiro
financiava os programas e criava leis anti-tributárias, as grandes, médias e
micro empresas lucravam com a prestação de serviço e a oferta de
infraestrutura necessária para a realização dos mesmos. Deste modo, o Brasil
consegue cumprir alguns – se não a maioria – dos requisitos para “construir a
sociedade
da
informação”,
pretendidos
na
declaração
de
princípios
formulados na Cúpula Mundial das Nações Unidas sobre a Sociedade da
Informação (CMSI), a qual prezava um Estado comprometido com a criação de
estratégias que fortaleçam as tecnologias digitais enquanto:
um instrumento e não como um fim em si mesmas.
[Pois]Em condições favoráveis, estas tecnologias podem
ser um instrumento muito eficaz para aumentar a
produtividade, gerar crescimento econômico, criar
empregos e possibilidades de contratação, assim como
para melhorar a qualidade de vida de todos. Além disso,
podem promover o diálogo entre as pessoas, as nações
e as civilizações. (CÚPULA MUNDIAL DAS NAÇÕES UNIDAS
SOBRE A SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO, 2011, p. 33, grifo
meu)
157
Apreende-se deste parágrafo a intenção principal das políticas
internacionais e seu rebatimento nos países em desenvolvimento, como é o
caso do Brasil. Mais do que a emancipação ou transformação social e das
condições de vida das pessoas socialmente excluídas, as propostas estão
voltadas para o fortalecimento do sistema capitalista, prezando, é claro, pelo
aumento da produtividade, consumo e lucratividade. As políticas externadas
pela declaração buscam além de tudo “(...) materializar uma visão comum da
sociedade da informação para nós mesmos e para as gerações futuras.”
(CÚPULA MUNDIAL DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE A SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO,
2011, p. 35) Visão pautada no mercado e na lógica do consumo que quando
transpostas para a realidade latino-americana elas contribuem para o
aumento da miserabilidade e, por fim, das desigualdades sociais.
Na tabela 1, apresentada abaixo, verificamos os projetos e programas
instituídos durante os anos de 2003 e 2010 pelo governo petista e de que
maneira tais projetos se articulavam entre a Casa civil, Presidência da
República, ministérios e secretárias de governo capitaneando recursos e poder
simbólico56 para suas agendas políticas.
Tabela 1
Projetos e Programas que compõem as políticas de inclusão digital durante o
governo Lula de (2003 – 2010).
Projeto
Órgão responsável
Centro de Inclusão digital
Ministério da Ciência e Tecnologia
(MCT)
Computador para todos
Presidência da República, Ministério
do Desenvolvimento, Ministério de
Ciência e Tecnologia e Serpro
Centros Vocacionais Tecnológicos
Ministério da Ciência e Tecnologia
(CVT)
Governo Eletrônico Serviço de
Ministério das Comunicações
Atendimento ao Cidadão (GESAC)
Kits Telecentros
Ministério das Comunicações
Maré – Telecentros de Pesca
Secretária Especial de Aquicultura e
3
Conceito desenvolvido pelo autor no livro: BOURDIEU, P. O Poder Simbólico. 15° Ed. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011, p. 187-188.
158
Pesca/ Presidência da República
Observatório Nacional de Inclusão
Ministério do Planejamento,
Digital
Orçamento e Gestão e parceiros
Pontos de Cultura – Cultura digital
Ministério da Cultura
Programa Banda Larga nas Escolas
Presidência da república, Casa Civil,
Secretária de Comunicação, Agência
nacional de telecomunicações,
Ministérios da Educação,
Comunicação, Planejamento e
Ciências e Tecnologias
Programa computador portátil para
Presidência da república, Ministérios
professores
da Educaçãoe Ciências e
Tecnologias, Empresa Brasileira de
Correios e Telégrafos.
Programa estação digital
Fundação Banco do Brasil
Programa SERPRO de Inclusão Digital
Serviço Federal de Processamento de
Dados (SERPRO)
Programa nacional de informática na
Ministério da Educação
educação – ProInfo
Projeto computadores para inclusão
Ministérios do Planejamento,
Educação e Trabalho e Emprego
Quiosque do Cidadão
Ministério da Integração Nacional
Telecentros Banco do Brasil
Banco do Brasil
Território digitais
Ministério do Desenvolvimento Agrário
Telecentros de informação e negócios
Ministérios do Desenvolvimento,
– TIN
Industria e Comércio Exterior
Projeto um computador por aluno –
Ministério da Educação e Casa Civil
UCA
Casa Brasil
Ministérios da Ciência e Tecnologia,
Planejamento, Comunicações, Cultura,
Educação, Instituto nacional de
Tecnologia e Informação, Secretária
de comunicação, Petrobras,
Eletrobrás/Eletronorte, Banco do Brasil
e Caixa Econômica Federal.
159
TOTAL: 20 Projetos e Programas
FONTE: Elaborada pelo autor4
O debate sobre capital simbólico discutido por Bordieu (2011),
contribuiu para as análises propostas neste texto, contudo não é
intenção deste trabalho aprofundar nestas questões. Vale ressaltar, no
entanto, que
o capital político é uma forma de capital simbólico, crédito
firmado na crença e no reconhecimento ou, mais
precisamente, nas inúmeras operações de crédito pelas
quais os agentes conferem a uma pessoa – ou a um
objeto – os propósitos poderes que eles lhe reconhecem.
(BOURDIEU, 2011, p. 187)
Entendo, desta forma, que as investidas feitas pelo governo petistas
sobre as políticas de inclusão digital permitiram que o partido ganhasse
forças políticas que lhe possibilitasse sustentar a hegemonia do PT e do
governo. Foram estes os primeiros passos dados para concretização de
políticas públicas, voltadas para inclusão digital, sólidas em todas as
esferas do governo. Veremos que esta ação contribuiu em um primeiro
momento para investidas mais ousadas, como por exemplo, a criação
do Projeto Casa Brasil e em um segundo plano fez sentir, de algum
modo, o impacto das tecnologias digitais na vida das pessoas excluídas
digitalmente.
4
A construção da tabela se deu conforme as informações encontradas no site do
governo federal www.inclusaodigital.gov.br e nas discussões enfrentadas pelas
dissertações e teses pesquisadas durante a escrita deste texto. Ver : SARTÓRIO, Kelly
Cristiane. Exclusão social e tecnologia: Os desafios da política de inclusão digital no
Brasil. 2008. 127 f. Dissertação (Mestrado em Política Social) – Instituto de Ciências
Humanas, Universidade de Brasília, Brasília, 2008; CARVALHO, Ângela Maria Grossi de.
Apropriação da informação: Um olhar sobre as políticas públicas sociais de inclusão
digital. 2010. 169 f. Tese (Doutorado em Ciências da Informação) – Faculdade de
Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília, 2010; MEDEIROS, Marcelo. As
políticas de inclusão digital no governo Lula (2003 – 2009): Uma análise de programas e
leis. 2010. 176 f. Dissertação (Mestrado Políticas públicas, estratégias e desenvolvimento)
– Programa de Pós-graduação em Políticas públicas, estratégias e desenvolvimento,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.
160
Inclusão Digital: “A palavra mais sexy do governo”.
Durante o ano de 2009, Lula, juntamente com a cúpula do PT, se
preparava para o ano seguinte, onde impossibilitado de disputar a
reeleição o partido precisaria se reorganizar em torno de uma
candidatura e de um discurso que pudesse convencer a população
brasileira que compensaria a continuidade do governo petista. O
presidente durante suas falas em aparições públicas reforçava, utilizando
das oportunidades do contexto, as contribuições de seu governo para
determinada área – que normalmente era referente ao público ouvinte.
Assim, Lula esclarecia as propostas políticas que sustentaram seu
governo e apontava para o plano de continuidade caso seu sucessor
pertencesse ao mesmo partido.
Nós tivemos o primeiro desafio: fazer com que o
computador chegasse às mãos das pessoas mais pobres.
Quem é do governo sabe quanto tempo nós passamos
discutindo o Computador para Todos. [...]
Então, o software livre é uma possibilidade de essa
meninada
reinventar
coisas
que
precisam
ser
reinventadas.
Para mim, hoje foi um dia glorioso, glorioso, porque eu
tenho uma assessoria especial, que cuida da questão
digital, amigo do Marcelo, tenho [...]. O governo tem dez
ministros que falam em inclusão digital. Inclusão digital é a
palavra mais “sexy” do governo, sabe? É a palavra mais
“sexy” – todo mundo fala. (SILVA, 2009)
O presidente pretende demonstrar como ele e sua equipe
estavam bem assessorados para enfrentar a discussão da cultura digital
e das políticas de inclusão digital que foram implementadas durante seu
governo. E de que modo o pensamento destes assessores ressoava
entre seus ministérios, já que inclusão digital (ou será digitalismo?) tornouse a palavra mais “sexy” de sua gestão.
Para Bourdieu (2011) na política, “dizer é fazer, quer dizer, fazer crer
que se pode fazer o que se diz e, em particular, dar a conhecer e fazer
reconhecer os princípios da di-visão do mundo social” (BOURDIEU, 2011,
p. 185). Além da reformulação dos aspectos legais que permitisse a
conformação no campo jurídico de um aparato legal que possibilitasse
a consolidação e continuidade dos programas e projetos de inclusão
161
digital, era (é) necessário um discurso que desse credibilidade tanto para
a sociedade civil quanto para os poderes públicos e iniciativas privadas
sobre as possibilidades de tais ações. Desta forma deveria entrar na
pauta principal do governo a Inclusão Digital.
Ao analisar as falas dos agentes políticos do período aqui
estudado, é possível verificar diferentes propostas e trajetos políticos,
assumidos
durante
o
governo
Lula,
que
ganharam
sentido
e
significância na ordem social. Vários intelectuais, empresários, professores
universitários, produtores culturais, agentes de ONG’s e outros, que
participam direta ou indiretamente do debate sobre a cultura digital
foram incorporados em ministérios, secretárias e diretorias do governo,
criando, desta forma, uma “identidade” para as propostas ligadas as
tecnologias digitais. No acalorado debate sobre as propostas para esse
campo de ação, houve certa organicidade de pensamento nos e entre
os ministérios e os demais sujeitos envolvidos na formulação e execução
dos projetos e programas de inclusão digital. José Murilo de Carvalho
Junior, por exemplo, gerente de cultura digital da Secretária de Políticas
Culturais do Ministério da Cultura (MInC), em texto publicado no livro
Cultura Digital.br, destaca a ideia central que baliza algumas ações
conjuntas nas políticas de cultura digital e pontua as articulações
necessárias para a realização das políticas pretendidas:
Interessa ao Ministério da Cultura convocar uma reflexão
coletiva ampla sobre estas perspectivas, fomentando a
participação de todos os interessados em um processo
inovador de construção colaborativa das políticas
públicas para o digital.
O barateamento do computador pessoal e do telefone
celular, aliado à rápida evolução das aplicações em
software livre e dos serviços gratuitos na rede, promoveu
uma radical democratização no acesso a novos meios
de produção e de acesso ao conhecimento. (CARVALHO
JUNIOR, 2009, p. 9, grifo meu)
Parte das ações ilustradas pelo autor foram executadas pelo
governo federal, como também foram formuladas propostas conjuntas
com as demais esferas do poder público (Estados e municípios),
sociedade civil e iniciativas privadas para que pudesse chegar ao
162
resultado pretendido. Algumas destas iniciativas estão registradas nas
portarias interministeriais, decretos e leis que foram (re)formulados e
serviram como instrumentos legais de encaminhamento de projetos e
programas de inclusão digital. O projeto de lei n° 11.196, discutido no
capítulo anterior, que pretendia organizar e regulamentar a compra e
venda de produtos tecnológicos para projetos de inclusão digital e o
decreto n° 6.991, de 27 de outubro de 2009, que instituiu o Programa
Nacional de Apoio à Inclusão Digital nas Comunidades (Telecentros.BR),
são
exemplos
das
articulações
políticas
e
jurídicas
que
foram
enfrentadas pelo governo federal.
A construção de propostas e ações conjuntas para as políticas
públicas de inclusão digital se fizeram presentes nos discursos dos
agentes governamentais, destacando diferentes aspectos que envolvem
a questão. Como assinalou o Ex-Ministro Fernando Haddad “com a
internet o parafuso deu uma volta a mais. Não só se tem um caminho
de ida que não é tão retilíneo como se imaginava, mas agora se tem
também o caminho de volta por meio da interação digital, e isso
evidentemente muda o conceito de esfera pública” (HADDAD, 2009, p.
56). Seguindo essas mesma linha de destacar a complexidade da
temática, Cláudio Prado, na época Coordenador do Laboratório
Brasileiro de Cultura Digital, argumenta:
Eu diria a você que existem duas vertentes da cultura
digital: uma prática real, do software livre, de novas
percepções de como fazer as coisas, novas possibilidades
de acesso, de troca, de viabilização da diversidade, que
era impedida porque não podia ser distribuída no século
XX, todas essas novas possibilidades extraordinárias. Por
outro lado, há uma coisa conceitual muito profunda, do
papel do ser humano sobre a terra, que se desencadeia
numa compreensão mais séria de inúmeras questões,
entre elas a questão ecológica. (PRADO, 2009, p. 35)
Quer dizer, os agentes políticos compreendem que havia (há) uma
nova configuração social e cultural que afeta todas as esferas da
sociedade, as quais devem ser compreendias pelo Estado e devem
estar em consonância com as políticas de governo. Já que, como
163
destacou Lula em sua fala no FISL (Fórum Internacional de Software
Livre)5 as intenções eram “colocar este país dentro da inclusão digital, de
fazer com que as crianças da periferia tenham os mesmos direitos que
as crianças do rico, de ter acesso à internet, de poder se formar, de
poder transitar livremente por esse mundo, que é a internet”.
Deste modo, o balanço de governo6 (2003 – 2010) publicado na
internet pelo Ministério do Planejamento, ao destacar o que foi feito
durante este período em termos de inclusão digital, além de fornecer
pistas sobre o discurso balizador das políticas implementadas nestes
anos, possibilita, também, estabelecer uma comparação entre as
propostas oficiais e o contexto mais amplo que cerca essa questão.
Segundo o relatório:
por meio de diversos ministérios e entidades vinculadas
tem desenvolvido várias ações para criar oportunidades,
acelerar o desenvolvimento econômico e social,
promover a inclusão digital, reduzir desigualdades sociais
e regionais, promover a geração de emprego e renda,
ampliar os serviços de governo eletrônico e facilitar aos
cidadãos o uso dos serviços do Estado, promovendo a
capacitação da população para o uso das tecnologias
de informação e de comunicação e para aumentar a
autonomia tecnológica e a competitividade brasileira e
do bloco Mercosul (BRASIL, 2010, p.428).
A partir deste texto depreende-se que a tônica que prevalecia nos
discursos e nas ações das políticas petistas estavam em consonância
com as propostas e diretrizes firmadas nos encontros realizados por
órgãos supranacionais, onde se configurava os novos interesses do
capitalismo. Apesar de não haver citações nos documentos oficiais ou
nas falas dos representantes do governo que se refiram as formulações
e debates feitos por organismos supranacionais como CEPAL ou UNESCO,
é possível identificar pontos de convergência que caracterizam um
entendimento comum sobre a sociedade atual e as dificuldades a
serem enfrentadas pelos países subdesenvolvidos para participarem
5
O Fórum Internacional de Software Livre (FISL) foi realizado em Porto Alegre/RS no dia
26 de Junho de 2009,tinha como intuito problematizar o uso de Software Livre como
ferramenta digital para o governo brasileiro.
6
O balanço do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003 – 2009) se encontra no site:
https://i3gov.planejamento.gov.br/?p=balanco, e sobre o tema de inclusão digital
consultei o livro 4 (quatro) parte 2 (dois) item 9 (nove).
164
e/ou se incluírem no mundo das tecnologias digitais. Lula, ao dizer que
se esforça para “colocar este país dentro da inclusão digital”, refere-se às
constatações feitas pelos pesquisadores da CEPAL de que a parcela
mais rica da população (12,3 %) que possui acesso a rede de
computadores representa os 82% da taxa de conectividade do ano de
2004 no Brasil, enquanto o restante da população seria responsável pelo
outros 18%. Em outras palavras, aqueles que se já possuem conexão à
internet conseguiriam acompanhar a evolução tecnológica e nos anos
seguintes estariam usufruindo deste desenvolvimento, enquanto parte
considerável da população sequer conhecia um computador. Vê-se
esta discussão melhor fundamentada na tabela abaixo encontrada na
documentação fornecida pela CEPAL.
FONTE: CEPAL, 2003
Para reverter esta situação busca-se um referencial teórico e prático que
coloque o Brasil em um patamar favorável de acesso e competitividade
na sociedade em rede. Tendo em vista, que se entendia a necessidade
de “reduzir desigualdades sociais e acelerar o desenvolvimento e a
165
difusão das TIC como elemento central para o progresso econômico e
social brasileiro” (BRASIL, 2010, p.426), será:
El desarrollo económico (…) uno de los principios
rectores de la sociedad de la información. Por una
parte, los estratos de infraestructura y servicios
genéricos están compuestos por industrias dinámicas
y de crecimiento rápido. (…) Por lo tanto, el principal
centro de interés no es tanto la producción de estos
equipos sino su uso. Numerosos estudios provenientes
de Norte-América, Europa y Japón indican que, al
combinarse una serie de factores (tales como los
bajos costos de transacción de las asimetrías de la
información, el acceso a mercados nuevos y a
cadenas de suministros, entre otros), la digitalización
de los flujos de información y los mecanismos de
comunicación en la economía pueden tener un
fuerte impacto positivo en la productividad. (CEPAL,
203, p. 17-18, grifo meu)
O documento acima citado foi produzido durante a Conferência
Ministerial Regional Preparatória da America Latina e Caribe para a
Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação. As afirmações ali
contidas revelam o reconhecimento dos países da referida região sobre
a sociedade da informação, como também suas implicações sociais,
culturais, políticas e econômicas a partir do ponto de vista da Comissão
Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL). A primeira observação
a ser feita sobre o documento diz respeito à referência feita aos países
dominantes, com realidades completamente diferentes, mas que
primam pela adoção de suas políticas em países da America Latina de
modo que estes possam manter sua hegemonia política e econômica
na região. Mesmo que a CEPAL problematize tal questão no decorrer do
texto, descortinando a especificidade de cada país ou região, suas
propostas estão voltadas para o desenvolvimento das estruturas
econômicas dos países Latinos Americanos de modo que estes possam
participar e contribuir de forma competitiva no novo cenário políticoeconômico
da
sociedade
da
informação.
Muitas
das
medidas
pontuadas/sugeridas no texto redigido pela Comissão foram tomadas
166
como referência a situação da “brecha digital” existente nos países da
América Latina e Caribe. É marcante nas proposições a primazia à
lógica do mercado global, de maneira que o desenvolvimento técnico –
cientifico e da informação são os elementos chave a serem superados
para o “progresso”. Como afirma Lacerda (2009), na maioria das vezes
observa-se “um contínuo aumento da participação privada em
iniciativas públicas e o aumento da capacidade produtiva e de
consumo, o barateamento de custos de produção aparecem antes
mesmo de objetivos educacionais e culturais, sociais e políticos”
(LACERDA, 2009, p. 180). As medidas para a elevação do nível de
produção e consumo são, na maioria das vezes, prioritários nas políticas
de Estado. Sérgio Machado Resende, ministro de Ciências e Tecnologia
do segundo mandato de Lula, sintetiza em sua fala de que maneira
estes aspectos foram privilegiados nas ações implementadas em seu
ministério:
o Brasil conseguiria reverter os índices de
analfabetismo
e
de
mortalidade
infantil,
possibilitando redefinir a inserção do povo brasileiro
na divisão internacional do trabalho e priorizar a
substituição de tecnologia importada e a realização,
no maior grau possível, do esforço de pesquisa e
desenvolvimento no interior da nossa sociedade.
(REZENDE, 2013, p. 226. Grifo meu)
Quer dizer, os problemas historicamente enfrentados em nosso
país poderiam ser resolvidos na medida em que o Brasil começasse a
assumir e renovar as forçar produtivas que se instauraram na
contemporaneidade. Retomando tais discursos percebemos que a fala
do presidente Lula sobre as políticas de inclusão digital estava
respaldada em formulações que ressoavam nas demais áreas de seu
governo e, como vimos em alguns trechos dos documentos da CEPAL e
CMSI,
também
em
encontros
de
órgãos
supranacionais.
Estas
concepções são parte das apropriações e usos feitos pelos agentes
políticos que compuseram aquele governo petista.
167
A partir do momento em que as tecnologias digitais começaram
a
participar
de
forma
ativa
no
cotidiano
das
sociedades
contemporâneas, cada sujeito apropria-se da mesma conforme seus
valores, experiências, sentimentos, necessidades e expectativas e,
sobretudo, condições, conferindo-lhe um sentido próprio. Entretanto,
como afirmou Bourdieu (2011), é no campo da política e “na
concorrência entre os agentes que nele se acham envolvidos”, que são
gerados
“produtos
políticos,
problemas,
programas,
análises,
comentários, conceitos, acontecimentos” (BOURDIEU, 2011, p. 164).
Analisando as falas destes agentes políticos conseguimos identificar uma
estrutura de pensamento, no que concerne à cultura digital, que é, ou se
faz, hegemônica em nossa sociedade. A Cúpula Mundial sobre a
Sociedade da Informação (CMSI), por exemplo, foi uma das primeiras
manifestações dos órgãos supranacionais que pretendia pensar os
novos desafios da sociedade em rede, para a partir deste encontro,
“forjar um entendimento comum, assumir compromissos políticos e
definir ações e mecanismos concretos sobre o tema” (LIMA, 2004, p. 29).
Nos dois encontros que ocorreram em Genebra (2003) e Túnis (2005) se
fizeram presentes os governos, o setor privado, a sociedade civil,
membros das Nações Unidas (ONU), dos organismos internacionais e
dos meios de comunicação, os quais pensaram políticas para a
sociedade atual. Apesar de não conseguirem concretizar todas as
propostas levantadas durante a cúpula, os participantes conseguiram
pautar indicativos e medidas para a sociedade da informação, como
também conceituar, dentro dos moldes capitalistas, as mudanças
sofridas na contemporaneidade. A CMSI fez ressoar, entre as esferas de
influência dos participantes da cúpula, perspectivas ligadas aos temas
centrais debatidos e defendidos durante o encontro. Subentende-se com
os documentos produzidos durante o encontro – como, por exemplo, a
Declaração de princípios – que as tecnologias digitais são artefatos
capazes de solucionar os problemas históricos do sistema capitalista. A
adoção de tais aparatos em todas as esferas da sociedade – social,
cultural, político e econômico – viabilizariam, deste ponto de vista, a
168
ordenação de ideias e políticas comuns para a superação das mazelas
sociais. Nesse sentido ,compreendem que
o
rápido
progresso
destas
tecnologias
oferece
oportunidades sem precedentes para se alcançar
níveis mais elevados de desenvolvimento. Graças à
capacidade das TIC’s de reduzir as consequências
de muitos obstáculos tradicionais, especialmente o
tempo e a distância, pela primeira vez na história se
pode utilizar o vasto potencial destas tecnologias em
benefício de milhões de pessoas em todo mundo.
(CÚPULA MUNDIAL DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE A
SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO, 2003, p. 44).
Em diferentes passagens da Declaração reafirma-se a intenção de
criar uma visão comum a fim de consolidar políticas comuns para a
sociedade. Dá ênfase ao sentido revolucionário das TIC’s e da
necessidade que esta revolução atinja todos os rincões da sociedade
fazendo
com
que
todos
consigam
usufruir
das
benesses
do
desenvolvimento capitalista, pois há a “convicção de que estamos
entrando coletivamente em uma nova era, que oferece imensas
possibilidades”(CÚPULA
MUNDIAL
DAS
NAÇÕES
UNIDAS
SOBRE
A
SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO, 2003, p. 44). Assim, por um lado a
Declaração reafirma pontos preponderantes para um uso quantitativo e
qualitativo das tecnologias digitais nos marcos do atual contexto, como
infraestrutura,
políticas
de
inclusão
digital,
indissociabilidade
de
conhecimento e informação, e por fim, segurança e confiança no uso
das TIC’s. Por outro lado, apresentam-se várias questões antes deixadas
de lado na discussão da cultura digital como, por exemplo, debates
vinculados
a
gênero,
raça,
etnias,
meio
ambiente,
juventudes,
diversidade e identidade cultural, diversidade lingüística e conteúdo
local. Contudo, suas proposições, como já foi dito, estão voltadas para a
reafirmação do sistema capitalista globalizado, delineando as diferentes
169
maneiras – que ao final deverão atingir o mesmo objetivo –, para os
países não desenvolvidos superarem problemas estruturais, sociais e
culturais na “sociedade da informação”. O documento da CMIS afirma,
ainda, que
o alcance de nossas aspirações compartilhadas, em
particular para que os países em desenvolvimento e
países com economias em transição se convertam em
membros efetivos da sociedade da informação e possam
se integrar positivamente na economia do conhecimento
depende em grande parte do aumento do
desenvolvimento de capacidades nas esferas da
educação, know-how tecnológico e acesso à informação,
que são fatores indispensáveis no estabelecimento de
condições de desenvolvimento e competitividade
(CÚPULA MUNDIAL DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE A
SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO, 2003, p. 44).
Para melhor compreender os objetivos comuns, as vontades
coletivas e as aspirações compartilhadas, enfim, todas essas intenções
ditas e não ditas sobre o sistema político presente na “era do
globalismo”, torna-se necessária uma análise que reflita sobre o contexto
mais amplo que envolve a questão. Nesse sentido, Manuel Castells
(1999), afirma que a capacidade instrumental do Estado-Nação,
enquanto instituição forjada na modernidade, está comprometida
devido as transformações sofridas com o processo de globalização das
atividades econômicas, midiáticas, de comunicação e também da rede
de criminalidade. Isso quer dizer, por um lado, que o Estado vem
perdendo seu campo de influência na vida de seus cidadãos, mas, por
outro lado, não podemos afirmar, segundo o autor, que o Estado tenha
perdido seu poder, enquanto instituição reguladora, podendo usar da
violência, para manter a ordem e a difusão de ideologias. Da mesma
forma, Ocatavio Ianni (2011), identifica uma reconfiguração da política
internacional onde, segundo suas investigações, há três esferas de poder
político que se interligam e que são interdependentes: o globalismo, o
regionalismo e o nacionalismo. Todas representam totalidades que,
reciprocamente submissas, agem de forma que estas novas realidades
permitam a “reestruturação dos subsistemas econômicos nacionais, em
170
conformidade com as capacidades destes, com as possibilidades da
regionalização e com a potencialidade da globalização”(IANNI, 2011, p.
102). Há um entendimento comum, entre esses autores, de que a
globalização – ou globalismo– abala a economia e a sociedade, assim
como a política e a cultura na contemporaneidade, “tanto provocando
distorções como abrindo horizontes” (IANNI, 2011, p.150).
A partir dessas análises e das leituras feitas nos documentos consultados
durante a pesquisa entendo que as políticas nacionais e internacionais
atualmente
estão
entrelaçadas
desenvolvimento/aperfeiçoamento
a
do
fim
de
sistema
contribuir
para
capitalista,
o
agora
globalizado. No entanto, as políticas locais e globais para terem
significância social e seja aceita pelas pessoas precisam estar
conectadas com suas experiências, as necessidades e expectativas do
cotidiano.
Durantes outras pesquisas realizadas debatemos aspectos do cotidiano
dos moradores da Zona Leste da cidade de Uberlândia/MG, e
percebemos de que maneira as tecnologias digitais estão inseridas no
dia a dia daquelas pessoas, bem como o sentido que é dado a estes
artefatos. Além de serem produtos de consumo e lazer, as tecnologias,
na maioria das vezes, como vimos em diversas falas, são usadas pela
primeira vez e apropriadas em suas rotinas devido as necessidades do
mercado de trabalho. Por isso, a preocupação neste texto em verificar as
intenções e os discursos assumidos pelas políticas de inclusão digital,
para, mais adiante, buscarmos compreender as práticas e os impactos
destas políticas nas periferias do município de Uberlândia.
Segundo Bourdieu (2011), “O poder simbólico é um poder que
aquele que lhe está sujeito dá àquele que o exerce, um crédito com
que ele o credita, uma fides, uma auctoritas, que ele lhe confia pondo
nele confiança. É um poder que existe porque aquele que lhe está
sujeito crê que ele existe.” (BOURDIEU, 2011, p. 187-188) Neste sentido,
compreendo que ao fazer ressoar, pelos diferentes estratos de seu
governo
e
da
sociedade,
o
discurso
da
inclusão
social
e
desenvolvimento econômico via políticas de inclusão digital, o PT
171
adquire poder simbólico de atuação.
Os programas e projetos de
inclusão digital, conforme as análises feitas, estavam articulados com as
formulações teóricas e práticas de órgãos supranacionais, empresas
multi e transnacionais e, finalmente, com as expectativas e necessidades
da população brasileira. Tais ações, de alguma forma acabaram sendo
instrumentos de ação no campo simbólico pelo governo petista. Em
outras palavras, as investidas no campo das tecnologias digitais feitas na
“era Lula” deu a ele e seu governo credibilidade e valor de
reconhecimento no campo político, facilitando o terreno para investidas
mais ousadas.
REFERÊNCIAS
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2011.
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173
NARRAÇÃO E ETHOS:
AS MULHERES MODERNAS EM PANELINHA: RECEITAS QUE FUNCIONAM
(2012)
Julia Ferreira Veado1
Ao considerar, como coloca Machado (2007), que o discurso
corresponde “aos atos de linguagem que circulam no mundo social e
que são testemunhas dos universos de pensamento e dos valores que
se impõem em um dado tempo histórico”, pretendo observar como os
textos presentes no manual culinário Panelinha – Receitas que
funcionam (2012), de Rita Lobo, confirmam a tal proposta.
Para realização deste trabalho, traçarei um recorte a partir dos
textos presentes no livro de receitas, dando destaque para os que são
mais narrativos e/ ou com um tom mais confessional, abordando
experiências e conselhos de Lobo a seu público. Tal escolha se justifica,
pois esses parecem ser imbuídos de maneira mais notória de uma
“dimensão argumentativa”, expressão usada por Amossy (2005) para
qualificar a intenção de tentar agir sobre o outro, presente em todo texto.
Segundo
a
linguista,
o
locutor,
ao
tomar
a
palavra,
invariavelmente, começa a criar uma imagem de si, seu ethos, atrelada
à sua fala (aqui tomada como sinônimo de discurso). No entanto, o
sujeito se reserva a tomar certos cuidados ao compor essa imagem,
visto que uma das intenções primeiras de uma argumentação é a
adesão do auditório, acontecimento que se torna mais palpável a partir
do momento em que o público estabelece uma empatia com o locutor.
Assim, o locutor constrói seu discurso levando em consideração
elementos como doxa (memórias e valores coletivos), auditório e
contrato de comunicação.
Tais elementos podem ser levantados a partir das diversas marcas
que se encontram presentes nos textos de Lobo, as quais apontam para
imagem de si que a autora pretende revelar a seu público e que
parece exercer influência direta para o alcance da obra. Através desse
1
Graduada em Letras – Fale/ UFMG. E-mail: [email protected].
174
estudo, procurarei realizar um resgate dessas pistas a fim de trazer à
tona o perfil da autora que ela (mesma) tentou permear, assim como
quais as estratégias argumentativas ela se valeu ao longo de sua(s)
fala(s).
Para este artigo, portanto, delimitarei meu recorte aos textos que
fazem parte da introdução do Panelinha: “Receitas que funcionam” e “A
vida na cozinha”; assim como a primeira lista presentes na seção “Vou
contar até 10. Listinha úteis para a cozinha – e alguns conselhos práticos
para os cozinheiros”. A partir dele, tentarei delinear melhor certos
aspectos
que
envolvem
essa
pesquisa.
Conforme
apresentado
brevemente, esses textos guardam uma relação de interdependência
com o público-alvo, o contrato de comunicação e a , ou seja, a
elaboração de um discurso leva em consideração tais elementos, sendo
eles determinantes e determinados por esse processo. É um jogo em
que os elementos participam de duas formas: ativa e passivamente.
Assim, em relação ao Panelinha (2012), podemos pensar em um
público-alvo ideal composto predominantemente por indivíduos do
gênero feminino, visto que em geral, são “elas” que “pilotam o fogão” e
que consomem esse tipo de publicação. Já em relação à doxa, a
expressão citada acima ajuda a compreender esse conceito. A ideia
presente nela só é entendida pois essa aciona a doxa, isso é, a memória
coletiva e o imaginário que circundam nossa sociedade, o que inclui as
relações de gênero instituídas.
Junto a ambos, aparece a ideia de contrato comunicacional.
Como propôs Charaudeau (2006, 2011), para que um discurso seja
eficaz, ou seja, alcance seu auditório e promova sua adesão, ele
necessita preencher certos requisitos, seguir certas normas – as quais
estão previstas no contrato. Nesse sentido, além de um uso adequado
da gramática, que permite a elaboração de sentenças em acordo com
a nossa língua, as regras previstas para elaboração de livro guardam
uma relação direta com o momento histórico em que ele é produzido;
com o auditório ideal a que ele se dirige; e, por fim, com os valores
175
defendidos por esse grupo. Ao atender as expectativas do contrato, a
garantia de que a comunicação se dê de forma mais plena é maior.
Tendo em vista que o Panelinha (2012) parece ser voltado a um
público feminino moderno, certos valores e crenças se fazem presentes
(de maneira quase que obrigatória) a fim de que o diálogo entre as
partes seja travado. Isso é, Rita Lobo recorre a procedimentos e ideias
que dão a ela a autorização para tomar a palavra e também a
possibilidade de cativar seu público-alvo, criando as bases para uma
adesão. Ao priorizar tais procedimentos, Lobo está atuando de maneira
estratégica para compor um ethos favorável e, através de uma
recepção positiva por parte de seu público, estabelecer uma empatia
com ele.
Um elemento, portanto, que compõe o livro e que pode ser
tomado como uma abertura dessa fala de Lobo é a capa do manual.
Tanto o título Panelinha – receitas que funcionam, como a seleção das
cores da capa influenciam na demarcação da imagem de si da chef,
como a de seu público-alvo. O termo “Panelinha” carrega em si uma
marca de feminino, graças à presença do sufixo de diminutivo [-inha], o
que é reforçado pela escolha da cor da fonte, o rosa, outro traço
fortemente associado ao universo feminino, em nossa sociedade.
Através dessas escolhas, fica claro que existe um imaginário e
uma memória que remontam o gênero feminino. Esses elementos,
inseridos na doxa, corroboram com a ideia de que as mulheres são
associadas a valores como feminilidade, delicadeza, aconchego, e,
como não poderia deixar de ser, culinária. Ao apresentar seu manual de
receitas com esse título e essa capa, Lobo parece construir uma imagem
de
si
adequada
aos
ideais
vigentes
em
nossa
sociedade,
predominantemente patriarcal.
A história das mulheres, seja no Brasil, seja no ocidente, passa por
um caminho pouco conhecido, uma vez que elas demoraram a ter voz
e serem ouvidas, como pontuam Perrot (2007) e Mott; Maluf (2004). No
entanto, esse mesmo silêncio indica um pouco de sua história: as
mulheres por muito tempo foram oprimidas. Diferentes fatores como
176
filosofia,
ciência
consideradas
e
seres
religião
sem
interferiram
razão,
sendo
para
que
tomadas
elas
como
fossem
criaturas
passionais, e por esse motivo, retiradas do espaço público – ambiente
autorizado apenas aos homens. O filósofo René Descartes (século XVII) e
o médico italiano Cesare Lombroso (século XIX) se destacam entre os
nomes ilustres que ajudaram a fundamentar certas noções a respeito do
gênero feminino como características naturais a ele. Dessa forma,
acreditou-se por muito tempo que a capacidade biológica de gerir das
fêmeas, era, na verdade, uma propriedade natural desse gênero e
assim passou a ser estipulado para as mulheres certos padrões os quais
envolviam a maternidade, a família, o lar e o zelo para com eles.
Rocha-Coutinho, em seu livro Tecendo por trás dos panos: a
mulher brasileira nas relações familiares (1994), comenta como o
ambiente urbano e as classes econômicas mais “abastadas”, no caso, a
média e alta, são o palco mais provável para o “desabrochar” das
mudanças sociais. A psicóloga realiza uma pesquisa sobre a influência
das ideias feministas em mulheres da classe média e alta carioca de
duas gerações diferentes, sendo mães e filhas. Essa escolha se deu pelo
fato
de
ambas
pertencerem
ao
segmento
mais
suscetível
a
transformações.
Inserida em uma camada semelhante está a autora do Panelinha
(2012). Hoje aos 39 anos, Rita Lobo iniciou sua carreira profissional como
modelo, desfilando para diversas marcas e em diferentes países.
Deixando a moda um pouco de lado, ela passou a dedicar-se à
culinária e cursou gastronomia nos Estados Unidos. De volta ao Brasil,
comandou um restaurante entre 1997 e 2000, em São Paulo, e hoje, já
reconhecida como chef de cozinha, Lobo mantém o amplo projeto
Panelinha, concentrando o site, o livro, programas de rádio e TV, e o selo
editorial, pertencente à editora Companhia das Letras.
Por essa breve bibliografia, é possível notar que Lobo, além fazer
parte de um ambiente (hiper) urbano/ cosmopolita, como é São Paulo,
pertence a uma classe social economicamente elevada. Esses fatores
permitem concluir que a chef está ligada a um perfil de mulher
177
dinâmica, independente e autônoma, no sentido de não abdicar de
uma vida profissional nem de depender financeiramente de um marido
(ou de um pai).
Ao se posicionar em uma esfera pública e alcançar prestígio pela
atividade que realiza, Lobo se afasta do modelo patriarcal idealizado de
mulher, a “Amélia”2 . No entanto, ainda que tais alcances sejam possíveis
graças às reivindicações e demandas que o movimento feminista lutou
para atingir, a chef não se afirma como feminista em momento algum.
Como coloca Perrot (2007), o feminismo é visto como uma verruga no
rosto por muitas pessoas, inclusive mulheres. Existe muito preconceito em
torno do movimento, o que pode ser comprovado através da pesquisa
realizada por Soihet (2004) que mostra as charges feitas por cartunistas
(homens) retratando as feministas. Pelo desenho de Raul Pederneiras, por
exemplo, elas são, em geral, retratadas como feias e masculinizadas.
Dessa forma, cria-se e perpetua-se um estereótipo negativo em torno
dessas mulheres.
Ao passo que em nosso imaginário a mulher feminista é
delegada a uma representação depreciativa, a mulher “Amélia” é
valorizada. O ideal patriarcal de mulher, portanto, estabelece um padrão
basilar composto pela tríade “esposa-mãe-dona-de-casa”. Já em Lobo,
o que se nota é um perfil em ampliação, que vive o dilema mostrado
por Rocha-Coutinho (1994). A autora do Panelinha (2012) nem se restringe
ao ambiente privado do lar, assumindo exclusivamente uma posição de
dona de casa, nem rompe com esse papel. Ela tem uma vida
profissional reconhecida e, ao mesmo tempo, dedica-se aos filhos, ao
marido e aos cuidados com o lar.
Diante disso, o conflito de modelos e representações da figura
feminina aparece diversas vezes no discurso de Lobo. Logo na
introdução de seu manual, ela pontua “Nunca consegui explicar para
minha avó o que é o Panelinha. (...) Minha avó é do tempo em que as
mulheres sabiam cozinhar e ponto” (LOBO, 2012, p.10). Ao demarcar dois
tempos distintos, o da avó e o seu, Lobo indica que seu tempo é outro e
2
Em referência à canção “Ai que saudades da Amélia”, composta por Ataulfo Alves e
Mário Lago (1942).
178
seus valores também. Aparentemente, ao fazê-lo, a autora coloca-se
como uma mulher “moderna”, tomando esse adjetivo como sinônimo
de ruptura com o passado, o antigo e a tradição. No entanto, tal postura
parece não se sustentar, pois em outras passagens a autora se mostra
afetada por determinados valores tradicionais.
Dentre esses valores, destaco três, colocando-os como “valoreschave”, ou seja, preocupações que prevalecem no discurso de Lobo.
São eles: maternidade, saúde e vaidade. Ao priorizá-los, Lobo atende às
demandas relacionadas ao imaginário vigente em nossa sociedade
patriarcal e consegue criar uma maior empatia com seu público-alvo.
Em relação à maternidade, essa continua sendo vista como uma
propriedade natural da mulher, graças às “contribuições” de Descartes e
Lombroso. Apesar de Simone de Beauvoir ter tentado denunciar a
falsidade por trás dessa associação, em meados no século XX, ser
mulher ainda hoje representa, em grande escala, ser mãe. Como coloca
Perrot (2007), a maternidade representa a “fonte da identidade [para a
mulher], o fundamento da diferença reconhecida, mesmo quando não é
vivida”. Vista como uma questão de saúde – física e psíquica – da
mulher, somente ao experienciá-la, ela irá se sentir completa e realizada.
Por ser embasada em um suposto discurso científico, essa proposta
adquire uma credibilidade quase intocável. Em consequência, a
proposta de a tríade “esposa-mãe-dona-de-casa” ser a síntese do perfil
ideal de mulher prevalece até os dias de hoje e Rita Lobo não escapa
disso.
A chef, enquanto ser de mundo e sujeito, está inserida em um
tempo
histórico
e
em
uma
situação
de
comunicação
o
que
inevitavelmente afeta sua produção. Essa influência pode ser vista
através dos valores e crenças que permeiam seu texto, informações as
quais contribuem para que Lobo mostre aos outros uma imagem de si,
ou ethos, favorável.
E diante da noção de que a argumentação tem como pretensão
básica a adesão dos interlocutores a uma ideia (AMOSSY, 2005),
argumentar em consonância com o imaginário que prevalece, no caso,
179
o patriarcal, parece ser uma boa estratégia para aumentar a adesão a
um discurso. Nesse sentido, proponho comprovar como Lobo se vale de
valores e imaginários vigentes a fim de cativar melhor seu público alvo.
Ao comentar sobre “a vida na cozinha” em seu livro de receitas,
Lobo reconhece que “muita coisa aconteceu na cozinha [na última
década]. (...) Virou gourmet. Agora homens trocam receitas e mulheres
têm confrarias” (LOBO, 2012, p.13), e que todos, sem distinção de gênero,
podem cozinhar, uma vez que as receitas escolhidas para compor o
manual são destinadas a “facilitar a vida das pessoas que acreditam na
boa alimentação como a base da vida” (LOBO, 2012, p.13). No entanto,
apesar dessa apresentação exaltando uma mudança na cozinha e nas
relações que envolvem tal espaço, Lobo encerra esse mesmo texto em
favor de uma manutenção de costumes.
Outro ponto importante – talvez o mais importante – é que o
jantar em família, com todos em harmonia sentados à mesa,
está se tornando um hábito em extinção. É uma pena. Mas não
dá para voltar no tempo. As estruturas familiares não são mais
as mesmas. Os vínculos, porém, sempre precisam ser bem
alimentados. E cozinhar em família é o melhor alimento. Em vez
dos filhos ficarem na frente da televisão, podem ajudar no
preparo do jantar. Entre uma cebola e um tomate, fala-se sobre
o dia, sobre as dúvidas, sobre os planos; o humor melhora,
aparecem soluções ou simplesmente ficam todos quietos,
apenas fazendo parte e, de repente, o jantar está pronto:
corpos alimentados, elos fortalecidos. E disso as avós entendem
(LOBO, 2012, p.13).
Nota-se aqui a princípio, uma proposta convidativa e abrangente
por parte da autora, mas, em seguida, ela restringe seu foco à
valorização de uma tradição e passa a se dirigir diretamente às
representantes do gênero feminino. Tal manobra pode ser percebida
através das sugestões feitas, como a de incluir os filhos no preparo do
jantar e no estabelecimento (mais uma vez) das avós como parâmetro
de “sabedoria”.
Dessa forma, embora Lobo tente construir um livro condizente
com os “tempos modernos”, em diversos momentos ela contradiz essa
ideia de amplitude da cozinha e passa a falar diretamente para as
mulheres, reproduzindo e ressaltando situações e valores próprios de
nossa cultura machista. Ao resgatar certas visões e costumes tradicionais,
180
a chance de que seu público compactue com seu discurso parece
aumentar.
Nesse sentido, maternidade, saúde e vaidade surgem como os
“valores-chave” do discurso da chef. Tendo em vista que eles
corroboram com a tradição patriarcal vigente, tentarei mostrar como o
discurso da chef parece conseguir despertar mais a empatia do público,
além de mostrar uma Rita Lobo mais cativante, em função da presença
dessas ideias. Sendo assim, passo à exposição dos trechos e suas
análises. Na primeira lista, “10 tipos de alimentos para a lista de
compras” (LOBO, 2012, p.16), a chef sugere que
Cardápios e listas de supermercado são muito pessoais.
Depende do gosto, da quantidade de moradores, de onde a
pessoa mora, se o supermercado é perto, se as compras são
feitas pela internet – são muitas as variáveis. (...) Por isso, se puder,
faça suas compras pessoalmente. Melhor ainda se conseguir
envolver a família. Ir à feira pode fazer parte da agenda familiar.
As crianças são expostas a uma variedade maior de alimentos,
todos podem opinar na escolha do que vão comer, e maridos
mimados aprendem que o forno não é uma caixinha mágica.
Na minha experiência, fica mais fácil conquistar uma
alimentação saudável e saborosa com um pouco da
dedicação de todos. Das compras ao preparo dos alimentos
(LOBO, 2012, p. 16).
Nesse trecho, percebe-se uma voz feminina conversando com um
auditório também feminino. Certos elementos como o envolvimento da
família, incluindo as crianças e, principalmente, “os maridos mimados”
que aprenderão que o “forno não é uma caixinha mágica” indicam
quem fala e para quem fala, isso é, ambas as partes pertencem ao
gênero feminino. Além disso, eles demonstram claramente os valores
tradicionais de maternidade e família que Lobo ressalta.
Ainda nessa lista, no primeiro item, “frutas”, Lobo reforça a
importância desse tipo de alimento em nosso cotidiano e aconselha:
“para quem não tem muita experiência na hora de escolher [frutas], o
melhor truque, é, na feira, grudar numa senhorinha: pegue as frutas mais
parecidas com as que ela levou” (LOBO, 2012, p. 17). Através dessa
sugestão, ao colocar a “senhorinha” como parâmetro para se acertar na
escolha confirma a ideia de que a cozinha foi, e por que não continua
sendo, um ambiente predominantemente ocupado por mulheres. São
elas que “entendem do assunto”.
181
A saúde é outro valor que é fortemente defendido pela autora em
seu manual, aparecendo em diversos momentos, e em boa parte deles,
aglutinado à ideia de maternidade e cuidados com a família como um
todo – filhos e marido. Além da defesa das frutas como “essenciais na
alimentação” (LOBO, 2012, p. 17), pois “todo mundo precisa ter frutas tem
casa para conseguir uma alimentação minimamente saudável” (LOBO,
2012, p.16), Lobo lista os legumes como segundo item dentre os
alimentos imprescindíveis, “Procure variar ao máximo; quanto mais
colorida a compra, mais saudável a alimentação”, aconselha a chef.
Mais adiante na lista, Lobo recomenda os alimentos “secos”,
Café, açúcar, (...), chás, açúcar mascavo, farinha de trigo
integral, linhaça, gérmen de trigo, aveia. Mas não compre
tudo de uma vez. Vá experimentando, substituindo. E
risque da sua lista os achocolatados. Você conseguir!
Coloque chocolate em pó no leite das crianças. Comece
adoçando bem e vá diminuindo aos poucos (LOBO, 2012,
p. 17).
Tal recorte explicita a relação entre a boa alimentação e
responsabilidade da mãe nessa tarefa, o que fica claro quando a autora
menciona as “crianças”, juntamente com a mudança de hábito e de
paladar delas em prol de uma dieta mais saudável.
Aliada
à ideia de uma nova dieta aparece o valor “vaidade”. Vale
lembrar que além de chef de cozinha, Lobo já foi modelo, o que leva a
crer que uma dieta balanceada e a preocupação com a boa forma
física sejam questões importantes para ela. No entanto, além de
envolver uma preocupação com o paladar e seu apuramento, tal
“valor-chave” envolve também uma boa apresentação dos pratos.
3
Tudo gira em torno de uma estética nesse caso.
Na continuação do trecho citado acima, a autora insiste na
recomendação de alimentos a evitar.
Biscoitos recheados, confeitos e tudo o que estiver escrito,
na caixa, “sabor” alguma coisa, corte. Simplesmente não
compre. No supermercado, nem passe na gôndola de
salgadinhos. Você não precisa de nada disso. Além de
não fazer bem, ainda estraga o paladar. Por outro lado,
3
Em relação à apresentação estrita do prato, isso é, à escolha e uso de utensílios,
panelas e louças de qualidade superior, além de mais elegantes, olhar a lista “10 itens
indispensáveis na cozinha” (LOBO, 2012, p. 19-20)
182
nozes e frutas secas são os melhores lanchinhos que
pode haver. Esses sim, compre aos montes. Leve para o
trabalho, tenha na bolsa, mande de lanche para as
crianças (LOBO, 2012, p. 17).
Nessa mesma lista, ao comentar sobre o item “galheteiro”, a chef
pondera
Foi-se o tempo que um óleo e um vinagre bastavam.
Nossos paladares amadureceram, o mercado também, e
agora usamos um tipo para cada preparação. Salada vai
com azeite extravirgem, vinagre balsâmico, se a receita
está mais para italiana; de jerez, se é espanhola; de vinho
branco, se é francesa. Para cozinhar, pode ser óleo de
canola, e assim vai. [...] Aqui, quero destacar apenas dois
temperos: sal e pimenta. Se possível, use somente sal
marinho. Já a pimenta-do-reino tem que ser moída na
hora. Invista em um bom moedor. A comida agradece
(LOBO, 2012, p. 17).
Ainda na defesa dos paladares aguçados, a chef recomenda o
uso de alimentos orgânicos, tanto verduras e legumes, como para
carnes e aves. Lobo sugere dar “(...) preferência ao frango orgânico e ao
boi verde. E não só pelas questões de sustentabilidade: o sabor é outro.
O mesmo vale para os ovos” (LOBO, 2012, p. 18).
Nesse mesmo sentido, ela insiste na ideia de alimentos de origem
(mais) orgânica ao propor que “pode parecer frescura, mas ervas frescas
fazem a maior diferença. Se possível, faça uma hortinha em casa. Em
uma jardineira, você consegue plantar um pouco de manjericão,
tomilho, alecrim” (LOBO, 2012, p. 18).
Pode-se perceber assim como a autora, nesse quesito, pesa a
atenção em torno do paladar e da escolha de alimentos com
procedência mais confiável e saudável. É possível notar também como
esse aconselhamento esbarra frequentemente no cuidado com a
alimentação de toda a família, especialmente a das crianças.
Algumas considerações
Diante do recorte de textos retirado do manual de culinária
Panelinha – receitas que funcionam (2012), pretendi comprovar como o
discurso se revela influenciado pelo meio em que está inserido, traçando
183
uma relação entre linguagem e sociedade. Assim, fatores como doxa,
público-alvo e contrato de comunicação foram cuidadosamente
articulados na elaboração dos textos analisados a fim de garantir a
adesão do auditório.
No caso
de Rita
Lobo, ela, uma mulher jovem, branca,
emancipada e profissional reconhecida, parece ser, de certa forma,
herdeira do movimento feminista. Com a liberdade para trabalhar fora
de casa desde cedo e tendo se tornado uma renomada chef de
cozinha e empresária, Lobo apenas pôde concretizar tais feitos em
função
das
conquistas
batalhadas
pelo
Feminismo.
Sem
elas,
provavelmente, ela seria parte de um grupo de mulheres que “[sabem]
cozinhar e ponto”, como a autora pondera a respeito da geração de
sua avó.
Entretanto,
nossa
sociedade
continua
predominantemente
patriarcal e Lobo não escapa disso. Por um lado, a autora se mostra
liberta de certas “doutrinas” que cerceavam o gênero feminino, mas, por
outro, ela insiste em defender certos valores e posturas próprios de uma
cultura machista. Assim, vivenciando o conflito em torno da identidade
feminina colocado por Rocha-Coutinho (1994), a chef congrega em si
valores como maternidade, família, casa, cozinha e profissão, tentando
não abrir mão de seu papel de mãe e esposa, mas também sem
abdicar de sua carreira e de sua realização pessoal. Essa tentativa de
ser multifacetada e polivalente parece ser o que constitui uma mulher
“moderna”.
O trabalho em torno da construção do ethos e do discurso,
portanto, esbarra em elementos como imaginário social e cativação,
uma vez que entra na esfera das emoções provocadas. Lobo, mesmo se
desconhecer tais propostas teóricas, parece ter consciência dos
cuidados a seguir ao tomar a palavra e provou fazer isso muito bem, o
que pode ser comprovado através do sucesso de vendas do Panelinha,
já na 5ª edição.
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14-20.
185
O “SER-TÃO” DE GUIMARÃES ROSA
E DE MARILY DA CUNHA BEZERRA:
DIÁLOGO INTERARTÍSTICO
Karla Alessandra Nobre Lucas1
A
literatura
comparada,
no
âmbito
das
tendências
contemporâneas, supera os paradigmas da análise literária comparada
tradicional e, assim, redefine seus caminhos metodológicos. Em suas
origens,
os
estudos
comparatistas
assumem
uma
postura
eminentemente histórica, expressa na linha francesa e na Escola
Americana,
cujos
desdobramentos
privilegiam
a
verificação
das
influências, da tematização e, ainda, a busca por uma poética universal
erigida a partir do modelo eurocêntrico.
Os estudos comparatistas adotam atualmente como expoente de
seu método, elementos que vão além da mera abordagem dos
temas/motivos e das fontes/influências; antes, discorrem acerca de
predisposições estéticas que ultrapassam a literatura e se inserem na
proposição de um diálogo entre autores e obras, pautado na noção da
diferença, na representação da alteridade e nos desdobramentos da
cultura e da história nos estudos literários, implicando a necessidade de
definir objetos de comparação para desconstruir e resignificar o
horizonte, ou limite de possibilidades da experiência estética.
Um grande sertão...
O romance Grande sertão: veredas (1956), de João Guimarães
Rosa,
notabiliza-se
pela
tematização
do
tempo
em
seus
desdobramentos no caráter memorialístico/reflexivo de Riobaldo, numa
simbólica travessia pelas veredas existenciais de um “ser-tão” que
supera os limites de tempo e de espaço e se confunde com a essência
humana: “O sertão está em toda a parte.” (Rosa, 1956, p. 10); “Sertão é o
sozinho. Compadre meu Quelemém diz: que eu sou muito do sertão?
1
Mestranda em Estudos Literários pela Universidade Federal do Pará. E-mail:
[email protected]
186
Sertão: é dentro da gente.” (Idem, op. cit., p. 305).
A narração da experiência do tempo vivido decorre no presente,
ao passo que a narrativa, organizada in medias res, rompe com o
princípio da ordenação sucessiva da ação representada. Forma e
conteúdo se articulam no momento em que o veio reflexivo do romance
se distende no que (Nunes 1985, p. 402) concebe como “movimento
extático”, que no eixo da durée bergsoniana, gera a interpenetração do
passado em um presente que, paradoxalmente, avança na medida em
que
o
sujeito
que
narra
se
detém
na
recordação
do
que,
qualitativamente, se constitui como indivisível e substancial.
O episódio ao qual nos deteremos no presente estudo corresponde
ao encontro de Riobaldo com o Menino (Reinaldo/Diadorim). Para além
da lembrança do tempo vivido, a experiência de Riobaldo como
narrador não se mostra estanque. Tempo e memória são moventes e o
conduzem, por intermédio da reflexividade da narrativa, a um devir, que
dialeticamente preserva sua iniciação nos grandes temas existenciais
projetados nos conflitos do homem do presente — o tempo, a memória,
o amor, o fado, a travessia — no nada que é tudo; incitando-o a
rememorar
e
lançar
ante
seu
interlocutor
não-nomeado
uma
problematização acerca do passado que ele necessita compreender.
Conferir sentido à própria existência implica reviver o passado,
acentuando suas mais caras reminiscências e admitindo que a
reconstrução do “real” não está nos extremos, nas bordas do sentido
antitético que orienta a condição humana, a saída ou a chegada, mas
se dispõe no meio dessa labiríntica travessia.
Do literário ao fílmico
Os princípios que regem a composição das diferentes formas de
expressão artística, aqui consideradas, — literatura e cinema — apontam
para
um
complexo
de
características
que
dizem
respeito
às
especificidades de cada arte. A análise da cadeia dialógica que
permeia os textos aproximados à luz do método comparativo — o
romance Grande sertão: veredas (1956), de Guimarães Rosa e o curta187
metragem: Rio de-Janeiro, Minas (1991), de Marily da Cunha Bezerra —,
parte da compreensão de que a teoria narrativa fílmica desenvolveu
uma terminologia muito particular seguida de métodos próprios de
investigação e, nesse respeito, deve-se atentar para o que Robert Stam
pontua ao discorrer acerca da análise da poética do cinema:
[...] o texto fílmico, diversamente do literário, não é “citável” [...] Se
a literatura e a crítica literária compartilham o mesmo meio, as
palavras, isso não é válido para os filmes e a análise fílmica. [...] A
linguagem crítica é, portanto, inadequada ao seu objeto; o filme
sempre escapa à linguagem que busca constituí-lo. [...] A
imagem, por fim, não pode de forma alguma ser transposta em
palavras. (STAM, 2006, p. 209-10).
Além das já mencionadas dificuldades para estender modelos
literários ao cinema, as dimensões do processo de transposição do texto
literário sofrem, como nos diz (Xavier 2003, p. 61), deslocamentos
inevitáveis dos extremos de um processo que privilegia a ideia de
diálogo e nos leva a perceber que, ao comportar alterações de sentido,
o processo de transposição promove a criação, uma composição
paralela, que se utiliza de mecanismos muito semelhantes aos aplicados
no trabalho de tradução.
A imagem da palavra é, na verdade, reflexo de um olhar que o
artista lança ante o objeto literário. Logo, não podemos desprezar o fato
de que o artista transpõe o texto literário para o fílmico, utilizando-se de
recursos imagéticos, sonoros e linguísticos, a fim de preencher as lacunas
deixadas pelo silêncio da leitura do livro.
Ao dar forma ao que no romance é apenas sugerido, o artista, que
é antes de tudo, leitor de um texto prévio, que estabelece diálogo direto
com o processo de composição de uma nova obra, favorece um olhar
que compreende ao limite ou “horizonte de leitura”, terminologia
aplicada por (Jauss 1982, p. 27), que implica a (im)possibilidade de se
atender as expectativas de outros leitores.
É possível apreender que a repercussão de um autor e de sua obra
em um dado período histórico e seu alcance a um leitor específico —
que se utiliza de um modo muito particular de leitura — é determinante
para que as interpretações sejam capazes de renovar o sentido do texto
e, assim permitir que um autor/obra possa exercer influência direta sobre
188
a criação artística de outros escritores (obra/leitor).
Então, a imagem do leão que é feito de “carneiro assimilado”,
reproduzida por (Valéry apud Nitrini 1997, p. 131), ganha força na
experiência da poiesis, que não pode ser concebida como um ato
solitário, mas como um processo dialético, um verdadeiro jogo de
perguntas e respostas que reflete uma sequência de experiências
estéticas prévias.
O diálogo entre leitor e obra se manifesta segundo a interpretação
jaussiana, influenciada pelo pensamento de Ingarden e Gadamer, no
encadeamento entre a compreensão interpretativa, ou reflexiva à
relação pergunta e resposta, como método que permite, a partir, não da
anulação do passado, mas de sua alteridade para com o presente — no
sentido de que o presente reinventa o passado e não simplesmente o
repete — o não esgotamento do texto em si mesmo, mas a reconstrução
do horizonte, ou o limite de possibilidades de experiência estética, das
perguntas e expectativas suscitadas pela obra no momento em que
dialoga com os sujeitos de sua época. De modo que, para além da
compreensão fruidora, que diz respeito à primeira leitura, à primeira
etapa
do
método
de
compreensão
estética,
a
perceptiva,
“compreender algo como resposta”, como afirma (Gadamer apud
Jauss 1982, p. 24), significa que a pergunta é o meio que permite ao
sujeito adentrar no horizonte de possibilidades da obra literária.
A subjetividade compete às interpretações imaginárias das cenas e
das personagens tais como: o tom de voz, o aspecto, a atuação e
mesmo, seu psicologismo, inerentes aos modelos literários. Dado o fato
de que a transposição passa a adquirir uma nova significação, cria-se
um novo texto que pode ou não corresponder aos horizontes da
experiência estética de cada leitor e ao alcançarem os princípios de
organização formal do cinema possibilitam a visualização, sobretudo, do
mundo exterior visível, já que para (Tavares 2011, p. 50), o cinema não
pode nomear emoções, e só com certa precaução pode mostrar a
visualização dos pensamentos das personagens justificando, assim, os
conflitos que permeiam a obra fílmica e sua recepção.
189
Encontro dos sertões
É verdade que, não obstante a singularidade que se interpõe na
poiesis de cada artista, há um significativo ponto de contato entre o
“valor universal” das obras, responsável pela “[...] síntese que governa os
jogos intertextuais produzidos na criação” (Santiago, 1989, p. 229).
Contudo, em seu curta-metragem Rio de-Janeiro, Minas a diretora e
roteirista Marily da Cunha Bezerra orienta a composição de seu texto
numa esfera “interartística”, cuja técnica narrativa excede os limites da
análise temática.
Gravado no ano de 1991, o curta-metragem de oito minutos —
premiado como: melhor roteiro pela Secretaria da Cultura (1991); melhor
fotografia pelo Cineclube Banco do Brasil (1994) e Tatu de Ouro na
Jornada de Cinema da Bahia (1994) — com trilha sonora assinada por
Badi Assad, conta com a participação especial de Manuelzão, amigo de
Guimarães Rosa e personagem de algumas das estórias do autor, e dos
jovens atores Evandro dos Passos Xavier e Cristina Ferrantini, que
interpretam, respectivamente, os papéis de Riobaldo e do menino
Diadorim, a partir do argumento principal da obra, o encontro: “Por que
foi que eu precisei de encontrar aquêle Menino?” (Rosa, 1656, p. 110).
A escolha de dois jovens atores para interpretar as personagens
centrais, antes de comprometer a densidade das cenas, confere
expressividade ao episódio representado. A narração em off feita por
José Meyer, um Riobaldo narrador que em seu “contar” não somente
interage com seu interlocutor, mas também dialoga consigo mesmo e
assiste, por assim dizer, a experiência narrada, renovando-a na medida
em que parece jogar com o tempo, leva-nos a inferir que em cada
imagem, em cada ação representada, em cada som, há sempre a
marca do homem experimentado e, ao mesmo tempo, cindido do
presente que problematiza e conduz as situações narradas.
O fluir das águas do de-Janeiro, a ser atravessado, como o curso
da travessia existencial do sujeito que narra, aparece como porta de
entrada para a narrativa fílmica que na cena inicial projeta tanto o rio
190
quanto o ser de maneira simbólica, inserindo-nos na atmosfera do
episódio que corresponde ao primeiro encontro de Riobaldo com
Diadorim.
Um
encontro
com
o
menino
que
não
poderia
ser
deslembrado pela profunda impressão que exercera naquele que com
frequência recorre às minúcias de uma lembrança guiada pela
necessidade e pela esperança de que a reflexão o conduzirá à
compreensão, à explicação lógica para cada etapa de sua travessia
existencial:
A este se devem as condições particulares do exercício da
Fortuna: o léu da sorte, a vereda do acaso, por onde se
complica, a despeito da vontade e contra ela, o tecido da
causalidade, da relação de causa e efeito. Assim é que desde
o momento em que encontra o Reinaldo, às margens do
Dejaneiro, está decidida a Fortuna andeja de Riobaldo. Sem
que ele o saiba, é pelo Menino a cuja secreta atração ficou
preso, que adere ao bando de Joca Ramiro, do qual assumirá
chefia em lugar de Zé Bebelo [...]. (NUNES 1985, p. 393).
Conforme citado, a busca de Riobaldo por respostas a uma das
grandes questões do romance concernetes ao caráter dual que
permeia a representação de Deus e do Diabo, norteia a incerteza
quanto a se o encontro com o menino teria sido um fato do acaso ou
obra do destino.
As palavras iniciais do curtametragem prefiguram a carga reflexiva
que perpassa o discurso de Riobaldo e aparecem no roteiro de Marily
da Cunha Bezerra como representação, quase fiel, do texto rosiano
como podemos observar: São memórias? Sonhos são? Assim é como
conto. Vou lhe falar do sertão. Do que não sei. Um grande sertão. Não
sei.2 O ser-tão de que se fala é o espaço para o encontro com o outro,
mas também para o encontro com o eu que constrói sua identidade na
medida em que não se desprende da noção de alteridade. O não
saber é o que impele Riobaldo a prosseguir em sua travessia pelas
veredas de um ser-tão de memórias e conflitos.
O sensível que inaugura o poético
2
“Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe.” (ROSA, 1956, p. 101).
191
O embaraço e o deslumbramento expressos na cena em que
Riobaldo se depara pela primeira vez com o menino, demarca uma
ruptura com o que antecede sua velada iniciação amorosa. O jovem
tímido e desajeitado, de aspecto doentio, se sente atraído pelo
desconhecido menino: a “novidade quieta” que tanto buscara.
O lugar do feminino e do masculino não se define na narrativa
segundo as expectativas em torno do homem e da mulher do ponto de
vista
do
conjunto
de
regras
sociais
que
impõe
aos
sujeitos
comportamentos ou papéis pré-definidos. Assim, na medida em que
Riobaldo, o masculino, passa a emitir um comportamento submisso
frente a influência do ambíguo Diadorim, a “mulher” de conduta
transgressora que rompe com os usuais modelos femininos, cujas
expectativas ajustadas às exigências do sistema giram em torno de um
ideal de recato e sujeição.
Redefinem-se os papéis e é a partir do jogo da reordenação dos
lugares de cada sujeito, bem marcada no momento em que se
intensifica a aproximação das personagens, que pode-se notar que
Diadorim, em sua dupla função e significação aparece como aquela
que subverte e simboliza o não atendimento das expectativas suscitadas
em relação à mulher. É o menino de visão atenta e de aguçada
sensibilidade que inaugura o mundo poético de Riobaldo, revelando o
oculto da dimensão feminina que ao confundir-se com o lugar do
masculino estimula uma nova percepção da existencia. Seguro de si,
inspira confiança e respeito e é admirado por seus modos delicados e
por sua beleza:
Mas eu olhava êsse menino, com um prazer de companhia,
como nunca por ninguém eu não tinha sentido. Achava que êle
era muito diferente, gostei daquelas finas feições, a voz mesma,
muito leve, muito aprazível. Porque êle falava sem mudança,
nem intenção, sem sobêjo de esfôrço, fazia de conversar uma
conversinha adulta e antiga. Fui recebendo em mim um desejo
de que êle não fôsse mais embora, mas ficasse, sôbre as horas,
e assim como estava sendo, sem parolagem miúda, sem
brincadeira — só meu companheiro amigo desconhecido.
Escondido enrolei minha sacola, aí tanto, mesmo em fé de
promessa, tive vergonha de estar esmolando. Mas êle
apreciava o trabalho dos homens, chamando para êles meu
olhar, com um jeito de siso. Senti, modo meu de menino, que
192
êle também se simpatizava a já comigo. (ROSA, 1956, p. 103).
A necessidade de aceitação de Riobaldo e sua sujeição ao menino
se evidencia pelo modo como o aquele se deixa conduzir pela iniciativa
e segurança desse. Ainda que no curta-metragem, como no tempo da
história narrada, Riobaldo não revele o nome do menino, pode-se
localizar no vídeo um rastro de sua identidade pela repetição do nome
Diadorim na musica executada no momento em que transcorre o
encontro.
É Diadorim quem conduz Riobaldo, como se espera que um
homem conduza a uma mulher, e lhe dá a mão descrita como “bonita,
macia e quente” a fim de ajudar o “vergonhoso e perturbado”
companheiro a entrar na canoa. Diadorim proporciona-lhe mais que
uma experiência, oferece-lhe também sua amizade.
Nesse ponto, a diretora e roteirista faz um recorte de outro episódio
do romance que aponta para o reencontro do já adulto Riobaldo com o
Reinaldo e com isso, une ao episódio do livro ao qual o vídeo se detém,
uma outra passagem que, no tempo da narrativa, se desdobrará no
futuro:
[...] Que é que é um nome? Nome não dá: nome recebe. Da
razão dêsse encoberto, nem resumi curiosidades. Caso de
algum crime arrependido, fôsse, fuga de alguma outra parte; ou
devoção a um santo-forte. Mas havendo o êle querer que só eu
soubesse, e que só eu êsse nome verdadeiro pronunciasse.
Entendi aquêle valor. Amizade nossa êle não queria acontecida
simples, no comum, sem encalço. A amizade dêle; êle me
dava. E amizade dada é amor. Eu vinha pensando, feito tôda
alegria em brados pede: pensando por prolongar. Como tôda
alegria, no mesmo do momento, abre saudade. Até aquela —
alegria sem licença, nascida esbarrada. Passarinho cai de voar,
mas bate suas asinhas no chão. (ROSA, 1956, p. 156-7).
Exprimir sentimentos como o medo e a emoção de se estar diante
da serena companhia do menino é, sem dúvida, uma desafiadora
tarefa para atores de tão pouca vivência. Nesse sentido podemos
destacar a cena em que os meninos são surpreendidos por um mulato:
Antôjo, então, por detrás de nós, sem avisos, apareceu a cara
de um homem! As duas mãos dêle afastavam os ramos do
mato, me deu um susto sòmente. Por certo algum trilho passava
perto por ali, o homem escutara nossa conversa. À fé, era um
rapaz, mulato, regular uns dezoito ou vinte anos; mas altado,
193
forte, com as feições muito brutas. Debochado, êle disse isto: —
“Vocês dois, uê, hem?! Que é que estão fazendo?...” Aduzido
fungou, e, mão no fechado da outra, bateu um figurado
indecente. Olhei para o menino. Êsse não semelhava ter
tomado nenhum espanto, surdo sentado ficou, social com seu
prático sorriso. — “Hem, hem? E eu? Também quero!” — o mulato
veio insistindo. E, por aí, eu consegui falar alto, contestando, que
não estávamos fazendo sujice nenhuma, estávamos era
espreitando as distâncias do rio e o parado das coisas. Mas, o
que eu menos esperava, ouvi a bonita voz do menino dizer: —
“Você, meu nêgo? Está certo, chega aqui...” A fala, o jeito dêle,
imitavam de mulher. Então, era aquilo? E o mulato, satisfeito,
caminhou para se sentar juntinho dêle. (ROSA, 1956, p. 108-9.)
O filme desenvolve a cena, de um modo muito particular.
Suprimem-se os diálogos e, momentaneamente, a voz do narrador
desaparece para dar lugar à ação, ao movimento. Une-se música à
atuação, na medida em que quase não há palavra, mas a imagem
dela. Um corte de cena acentua o tom de sugestão. Da aparição do
mulato à reação de Diadorim, a imitação da voz feminina — uma
“imitação da imitação”, já que ao se portar como mulher, travestida de
homem, a personagem não reproduz sua voz feminina, mas imita uma
que não a sua — para em seguida cravar a sua pequena faca na coxa
do mulato.
Mas, para que? por que?
A cena final do curta-metragem funciona como retorno à ordem
inicial do enredo, como se o episódio narrado cumprisse um ciclo.
Retomam-se elementos como a canoa e o rio, símbolos da travessia
existencial, e insere-se a lemniscata (∞), símbolo do infinito que aparece
logo abaixo do parágrafo final de Grande sertão: veredas, encerrando-o
de maneira análoga à proposta no curta-metragem.
Tal movimento circular evidente nas cenas inicial e final, parece
prefigurar a travessia de Riobaldo, que parte de um ponto em branco e
se projeta para um horizonte de questionamentos e de reflexões
metafísicas “atravessando” sem jamais poder se desprender do que o
converte no próprio “ser-tão”: o infinito de inquietações frente às
incertezas da vida: Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão!
194
Não sei. Sonhação? Sonhos são? Sonhos só não.65
Em se tratando do trabalho com linguagens de caráter tão distinto,
a literária e a fílmica, é imperativo que nos desprendamos de quaisquer
tendências a emitir juízos de valor, pois deste modo, restringiríamos nosso
campo de ação e seríamos incapazes de ir além da verificação do grau
de aproximação, ou “fidelidade”, de uma arte sobre a outra, o que em
geral, não apenas compromete o rigor científico de uma análise como
também desconsidera as especificidades da adaptação da obra
literária, que antes de pretender constituir-se como mera cópia do texto
base, configura-se como um novo olhar, uma nova criação, dotada
tanto de originalidade quanto de complexidade.
Como afirma (Xavier 2003, p. 61):
[...] há uma atenção especial voltada para os deslocamentos
inevitáveis que ocorrem na cultura, mesmo quando se quer
repetir, e passou-se a privilegiar a ideia do “diálogo” para
pensar a criação de obras, adaptações ou não. O livro e o filme
nele baseados são vistos como dois extremos de um processo
que comporta alterações de sentido em função do fator tempo,
a par de tudo o mais que, em princípio, distingue as imagens,
as trilhas sonoras e as encenações da palavra escrita e do
silêncio da leitura.
De posse das referidas informações que remetem à cadeia de
relações estabelecidas entre os textos e a busca por pontos de contato
entre eles, constatamos que — partindo das colocações de (JeanneMarie Clerc 1994, p. 236), que concebe a literatura comparada como a
arte de aproximar os textos literários de outras formas de expressão e do
conhecimento, a fim de que possam ser descritos, compreendidos e
melhor desfrutados — é possível propor um diálogo entre o romance
Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa e o curta-metragem: Rio deJaneiro, Minas, de Marily da Cunha Bezerra, pautado nas diferenças no
que compete ao aspecto estrutural, à técnica narrativa e, sobretudo, nas
especificidades que regem o processo de escrita e de composição do
texto literário, bem como a poética do cinema que nos possibilita
ultrapassar a busca pelo grau de “fidelidade” ou pelas “traições” de uma
3
Sonhação — acho que eu tinha de aprender a estar alegre e triste juntamente,
depois, nas vêzes em que no Menino pensava, eu acho que. Mas, para que? por que?
(ROSA, 1956, p. 110-1).
195
arte em detrimento de outra, para assim alcançar o sentido para a
comparação da literatura com outras esferas da expressão humana, ou
no “estudo de relações entre a literatura, e, por outro, diferentes áreas do
conhecimento e da crença”, como pontua (Remak 1994, p. 175).
Assim, não obstante as diferenças de tempo e espaço, bem como
as particularidades inerentes a cada artista, ou a relação que
estabelecem com o conceito de poiesis, o caráter universal das obras se
delineia em suas temáticas e se concentra na representação atemporal
e atópica da condição humana, nos conflitos do homem que atravessa
a dimensão do real e alcança o fantástico do plano onírico. E é no eixo
desse “valor universal” que podemos identificar o que (Santiago 1989, p.
229) chama de: “síntese que governa os jogos intertextuais produzidos
na criação”, o que nos permite ultrapassar a mera verificação do grau
de aproximação, ou “fidelidade”, ou a confrontação de semelhanças
e/ou
diferenças
de
uma
arte
sobre
a
outra,
e
alcançar
as
especificidades responsáveis pela originalidade que nos faz pensar a
“criação”, a partir da averiguação de técnicas e temáticas desenvolvidas
pelos autores.
REFERÊNCIAS
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modernas: cine, fotografia, televisión. In: Compendio de literatura
comparada. Pierre Brunel; Yves Chevrel (org.) México: Siglo XXI, 1994. p.
236-273.
JAUSS, Hans Robert. Por uma hermenêutica literária. Trad. Maurice Jacob.
Paris: Gallimard, 1982. p. 11-29.
NITRINI, Sandra. Literatura Comparada: história, teoria e crítica. São Paulo:
EDUSP, 1997, 300 p.
NUNES, Benedito. Grande sertão: veredas: uma abordagem filosófica. In:
Bulletin des études portugaises et brésiliennes. Paris, ADPF, n. 44-45, 1985.
p. 389-404
NUNES, Benedito. O dorso do tigre. São Paulo: Ed. 34, 2009. 284 p.
196
REMAK, Henry H. Literatura comparada: definição e função. In. Literatura
comparada: textos fundadores. Org. Tania Franco Carvalhal, Eduardo F.
Coutinho. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 175-190.
RIO DE JANEIRO, MINAS. Direção e roteiro de Marily da Cunha Bezerra.
Brasil, São Paulo: 1991. Vídeo (8 min.) color. Port.
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: J.
Olympio, 1956. 594 p.
SANTIAGO, Silviano. Nas malhas da letra. São Paulo: Companhia das
letras, 1989. 275 p.
STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Trad. Fernando Mascarello.
2ª ed. São Paulo: Papirus, 2003. 398 p.
TAVARES, Braulio. A “câmera-olho” da literatura. In: Revista Língua
Portuguesa – Especial: Cinema & Linguagem. São Paulo: Editora
Segmento, outubro de 2011. p. 48-53.
XAVIER, Ismail. Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar
no cinema. In: Literatura, cinema e televisão. Tânia Pellegrini [et. al.] São
Paulo: Editora SENAC São Paulo; Instituto Itaú Cultural, 2003. p. 61-89.
197
BERLIN ALEXANDERPLATZ E A NARRATIVA DAS UTOPIAS
Maria Edith Maroca de Avelar Rivelli de Oliveira1
“Política é dar vida a todos!”
(Hilda Hilst)
Introdução
Este trabalho se propõe a uma leitura do romance Berlin
Alexanderplatz (1929) de Alfred Döblin, como reflexão critica sobre a
realidade em que se insere, enfatizando-se sua análise sociopolítica da
trajetória do povo alemão no período compreendido entre as duas
guerras mundiais (1818-1839). Pretendemos aqui destacar a narrativa
döbliniana como um espaço privilegiado de representação do processo
de trânsito das camadas populares pelas ideologias de seu tempo,
apresentada de maneira “fabulosa” pelas desventuras do protagonista
Franz Biberkopf. Nossa análise busca desvelar certo caráter fabuloso em
Berlin Alexanderplatz cujo princípio pedagógico seria alertar para o
aspecto nocivo das ideologias, apresentadas como aliciadoras das
massas e falaciosas quanto a realizar efetivamente a felicidade humana
que propõem. Ao final destacar-se-á a relevância deste romance como
testemunho e reflexão sobre a trajetória ideológica do povo alemão do
período entre guerras.
De início há que desligar-se da ideia de ficção como obra
especular: o texto não será nunca “arquivo morto” da realidade sua
contemporânea. Será também descartada a possibilidade de uma
natureza autorreferencial do texto, concluindo-se pela permeabilidade
da literatura em relação a seu contexto. A partir daí passamos a analisar
a ficção como uma possibilidade de representação em que a política
(entre
outros)
pode
exercer
funções
de
pedagogia,
laboratório,
1
Mestre em história e história da literatura (UFOP). Doutoranda em história pelo PPGHIS
– UFOP. E-mail: [email protected].
198
publicidade, e desvelamento, graças à maleabilidade do material
ficcional. E, considerando-se além dessa plasticidade ficcional o seu
desejo de idealidade, parece plausível estender a caracterização de
utópica a toda literatura: afinal não há esforço literário que não produza
uma “realidade paralela” em que a lógica do nosso mundo se
reconstrua numa busca ideal.
Na reflexão que se segue buscaremos sublinhar os indícios de
uma nova utopia em Berlin Alexanderplatz (1995) de Alfred Döblin,
proposta alternativa à fragmentação das grandes utopias políticas,
cotidiana experiência alemã do período entre guerras (1819-38).
Queremos perceber na narrativa döbliniana a proposta de uma
pedagogia política que se formula à partir da fábula expressionista
sobre a Alemanha pós I Grande Guerra através da trajetória de
Biberkopf: a aventura tragicômica de um entre tantos soldados alemães
que, ao voltar do front em 1918, percebem não haver nada para o que
retornar.2
A
obra
fragmentação
constrói
do
um
cidadão
relato
da
alemão
do
cotidiana
experiência
período,
vivenciando
de
o
desmoronamento de tudo em volta, seja na política, no plano físico,
mental e moral; a imagem de ruína é o cenário em que a narrativa
döbliniana emula o laboratório das grandes utopias políticas do século
XX em que se tornara a Alemanha do entre guerras; e, nesse sentido, a
trajetória de Franz Biberkopf se demonstra icônica do caminho
percorrido pela sociedade alemã do período, oscilando entre a
perplexidade frente ao ineditismo e dimensões traumáticas do primeiro
conflito, e a inexorabilidade da Segunda Grande Guerra.
A tragicômica perambulação de Biberkopf pelo entorno da
Alexanderplatz (que se apresenta quase como um mundo à parte,
2
Nossa reflexão se ampara principalmente em autores como Irwing Howe, que em A
política e o romance (1998) no alerta para a importância da literatura como espaço de
representação das ideias políticas; Benedito Nunes que em “Narrativa histórica e
narrativa ficcional” (1998) destaca as proximidades destas duas narrativas e Walter
Benjamin, cujos Documentos de cultura, documentos de barbárie (1986) nos incentivam
a expandir a percepção sobre narrativa histórica. Já quanto ao contexto referido pela
obra, nos amparamos principalmente em Élcio Cornelsen (2001) Eric Hobsbawn (1995) e
Peter Gay (1978).
199
povoado
pelos
desclassificados
da
sociedade
alemã)
ilustra
e
argumenta sobre a desilusão da perda das esperanças políticas, que se
diluem em atitudes estéreis e/ou superficiais; salta as olhos o contraste
entre a aridez cotidiana da realidade do pós-guerra e o multicolorido
falacioso discurso das ideologias que se propõem salvacionistas
enquanto arrastam os personagens para abismos mais profundos: a
exemplo do que ocorre com Franz e seus amigos. Como pano de fundo
ainda se destaca a solidão da comunidade da Alexanderplatz, seu
abandono pelo “Mundo” onde estão as elites e os dirigentes.
E, após o “banquete de amargura” apresentado por este retrato
desesperançado disposto a desmascarar as falsas esperanças contidas
nas grandes utopias, inesperadamente a obra nos propõe uma nova:
enxuta, pragmática e absolutamente humanista. Assim, a ficção
döbliniana se apresenta como uma fábula de desconstrução das
grandes utopias, que se digladiam pelo controle das massas alemãs no
período, propondo a construção de um novo projeto a ser construído
sobre as ruínas da desilusão alemã pós I Guerra Mundial.
Ficção e política, ficção política
O que restou aos órfãos do marxismo foi o
humor. (Leandro konder)
Toda literatura pode ser vista como utópica, se consideramos que
sua elaboração está atrelada ao imperativo da pararealidade. Narrar é
reescrever a realidade, em busca do sublime – o lugar que não existe e
que o escritor “projeta”. E considerando-se que o escritor está sempre em
busca de um mundo melhor, talvez possamos afirmar que toda ficção é,
ou pode ser, política – onde política é a busca do bem comum. Ficção
política, portanto, será aquela que narra a busca deste bem: e Berlin
Alexanderplatz não tem outro desejo.
Nessa obra o protagonista Franz Biberkopf representa um
denominador comum da experiência do povo alemão no período entre
guerras: principalmente as camadas urbanas despossuídas, maiores
200
vítimas da I Grande guerra, aqui representados pelos frequentadores da
Alexanderplatz em Berlin. Figura icônica dessa comunidade, Franz
Biberkopf (cujo protagonismo só seria possível nessa “tragédia do
homem comum”) representa-se como um tipo ideal: minuciosamente
ordinário, vagando pela terra, sendo jogado de um lado a outro pelas
ideias
alheias:
ele
é
a
vítima
perfeitas
das
“ficções
políticas”,
representadas pelas grandes utopias.
O percurso de Franz servirá como ilustração da trajetória de boa
parte da população alemã de seu tempo: após a I Grande Guerra
essas camadas urbanas se encontram desterritorializadas em seu
espaço natal, e a falta de perspectivas amplia o apelo que tem para
elas o canto da sereia representado pelas utopias. Franz (e com ele o
povo alemão) circula por entre as ideologias que se lhe apresentam,
fracassando em cada tentativa de felicidade guiada por uma das
grandes teorias políticas, seja o marxismo, o nazismo, ou liberalismo; e
seus recorrentes insucessos apontam para a inutilidade, as falácias de
cada uma delas.
Todas as tentativas de Franz de salvar-se pela adesão a um grupo
ideológico resultam em acidentes ou fracassos. Ele transita por todas,
sempre em percurso descendente, até chegar ao fundo do poço, onde
consegue transformar sua desilusão numa nova e própria utopia. Um
novo Biberkopf emerge ao final da narrativa, portador de uma nova
ficção – própria, criada a partir de sua experiência de vida: uma utopia
metafísica
baseada
na
busca
da
solidariedade
humana,
no
pragmatismo e na descrença em qualquer ideologia.
Curiosamente esse movimento final está proposto desde o inicio
da narrativa, em uma cena onde ocorre um inusitado encontro entre
esse alemão comum e a comunidade judaica. A cena se inicia por
Biberkopf sendo vitima de violência de seus iguais, e socorrido por
humildes judeus (a ironia da situação dispensa comentários), momento
em que ele se surpreende pela solidariedade inesperada. Esse
momento de encontro reticente com a alteridade do povo “maldito”,
que se torna seu salvador, será lembrado por ele mais tarde, como uma
201
espécie de “zona de conforto” a que recorre mentalmente nos
momentos mais difíceis.
Mas a proposta implícita nesse episódio com os judeus só será
compreendida pela simplicidade mental de Biberkopf após toda a sua
experiência entre grupos e ideologias pelas quais transita ao longo da
narrativa. O pequeno espaço da Alexanderplatz torna-se um universo
extenso para as experiências de Franz. Seu calvário tem por estações a
adesão às diversas teorias políticas de seu tempo, em que busca
misticamente a felicidade. E suas desventuras se repetem tragicamente
ao longo da narrativa, sempre em decorrência de sua ingênua
confiança nas ideias políticas que lhe são ensinadas pelos vários grupos
aos quais se associa sucessivamente. O que seduz Biberkopf por todo o
romance são ideologias, que o arrastam sempre e cada vez mais fundo
até que consiga finalmente desvencilhar-se pela morte simbólica e um
renascer de olhos bem abertos.
A construção ficcional se torna quase alegórica, ao representar a
credulidade de Franz, a sedução manipuladora dos grupos ideológicos
que o cooptam e a real esterilidade de todos esses discursos, uma vez
que a felicidade prometida por eles nunca se. A experiência pessoal de
Franz concretiza as propostas ideais de felicidade de todas as grandes
utopias, sendo que em todas elas ao final de sua experiência o
protagonista perceberá que nenhuma utopia resiste à materialização de
suas propostas em vida cotidiana. A miséria e desesperança, o desejo
de um pouco mais da vida vai guiando o ingênuo Biberkopf por todas
as possibilidades de utopia, sem que nenhuma delas possa realmente
salvá-lo. Franz transitará, portanto entre as possibilidades de organização
sociopolítica, desde o liberalismo – representado por sua curta iniciativa
de comercio ambulante de gravatas, que fracassando decai para o
proxenetismo e finalmente o guiará para os braços do nazismo e,
finalmente para o comunismo.
Estas experiências apenas conseguem agudizar a situação de
Franz e levá-lo ainda mais profundamente à criminalidade e ao
desespero. O clímax de suas desventuras se dá por uma prisão injusta,
202
decorrente da atuação de seu suposto melhor amigo Reinhold que, não
satisfeito em envolve-lo em um acidente no qual perde um braço,
decide-se por assassinar a namorada de Franz, Mieze – e finalmente
manipula a situação de maneira a incriminá-lo. Esse momento é o
grande clímax do calvário de Biberkopf: a prisão injusta, a traição de
Reinhold, a perda de Mieze, fazem com que mergulhe no abismo de
sua vida, de maneira totalmente desesperançada. No entanto, dessa
quase morte vem um “renascimento” que é quase uma conversão
religiosa.
Após seguir a tudo e todos sem questionamentos, Franz decide-se
por olhar o mundo com os olhos muito abertos contra as ideologias e
qualquer um que queira levá-lo: “se devo marchar, depois irei pagar
com a cabeça aquilo que os outros pensaram” (DÖBLIN, 1995, 425). É a
descoberta de que ele deve pensar por si, afinal “o homem recebeu o
juízo, em vez disso os bois formam manada” (DÖBLIN, 1995, 425). E essa
conversão final de Biberkopf se transforma numa importante proposta de
negação das grandes teorias e sua substituição por uma nova utopia,
proposta por Biberkopf (e Döblin): os olhos abertos, o pragmatismo
político e a solidariedade humana. A crítica contida na obra de Döblin
não restringe a validade da política: o homem não se salvará sozinho.
Sua crítica é contra as ideologias: essas sim, as grandes opressoras. E
Berlin Alexanderplatz assim se demonstra como uma fábula (e assim,
uma narrativa com fundo pedagógico e exemplar) sobre um homem
que acreditava nas ideologias.
Uma pedagogia fabulosa
Assistir a isso valerá a pena para muitos que, como
Franz Biberkopf, habitam uma pele humana e com os
quais acontece o mesmo que a Franz Biberkopf, isto é,
querer mais da vida do que pão com manteiga.
(Berlin Alexanderplatz Alfred Döblin).
A advertência inicial de Döblin nos dá noção da dimensão
“didática” desta obra. Dedicada a todos que “habitem uma pele
humana”, principalmente aos que “desejem um pouco mais que pão e
203
manteiga”. As características que se destacam em Franz são sua
humanidade e sua ambição de uma “vida melhor”. O desejo de
conforto material e ascensão social e sua esperança depositadas nas
utopias fazem dele uma vitima das vontades políticas alheias. A trajetória
de Franz demonstra-se assim como uma advertência dos perigos a que
se expõe o ser humano que não faz uso de senso crítico ao ser
apresentado às ideologias e propostas coletivas de felicidade. A
alienação de Franz (seu maior pecado) se representa desde a forma
como vivencia sua participação na I Guerra (da qual desconhece as
razões), até o momento em que segue Reinhold cegamente, negandose a perceber que ele não quer seu bem.3 Sua cegueira, seu desejo de
uma fantasia redentora fazem dele um alvo fácil de quaisquer discursos
de sucesso. Sua incapacidade de ver além das palavras, sua
credulidade ambiciosa, são os grandes responsáveis pela Via Crucis que
se representa na narrativa de Berlin Alexanderplatz.
A primeira estação do calvário de Biberkopf será a ajuda vinda da
classe mais desconsiderada entre todas; Biberkopf é salvo por judeus. E
mais – além de ajuda, eles lhe dão um conselho: Franz precisa aprender
a ver a realidade.
Um deles lhe conta uma história sobre um rapaz
muito esperto (Zannowich) que se dá muito bem na vida, graças à sua
inteligência. É a encenação da ideologia liberal, que Franz conhece e
admira, apesar de não saber o nome.
Há neste trecho, um “mise-en-abyme” para o desenrolar da obra:
a separação entre a fabula que o judeu narra (o que é dito, a ficção) e o
seu comportamento (o que se vive, a realidade). Esse homem sabe
diferenciar aquilo que se diz, daquilo que se vive, histórias e realidade.
Portanto, mais que a ajuda que prestam a Franz em um momento de
necessidade, os judeus lhe dão um conselho que será a chave de saída
para o labirinto que é sua vida: “o principal no ser humano são seus
olhos e pés. É necessário ver o mundo, e caminhar até ele” (DÖBLIN, 1995,
18). Este paralelismo está sempre presente na trajetória vivida por Franz:
há que escolher entre a ficção representada por uma ideologia que
3
Franz é alienado porque acredita nas ideologias que lhe são propostas, sem
questionamento.
204
acena com promessas vãs e a realidade de algo que realmente lhe
seria benéfico. Mas durante quase toda a obra Biberkopf é incapaz de
reconhecer a diferença entre eles.
A segunda estação de seu calvário será representada por sua
adesão ao liberalismo. Com seu amigo Meck, começa a frequentar as
reuniões de comerciantes, em que recebe uma carteirinha e lhe
prometem um grande destino. Saindo dali como possível futuro grande
comerciante, Inicia a carreira de vendedor de gravatas ambulante, que
cedo se demonstra pouco rentável. As gravatas serão substituídas pela
cafetinagem que também não resulta. Mesmo assim, Franz acredita no
sucesso do modelo liberal ainda que perceba a política como algo
distante: “o que um homem como nós tem a ver com a justiça, polícia e
política?” (DÖBLIN,1995, 58)
Após curta temporada no modelo liberal entre os negócios de
gravatas e de sexo, Franz vê fracassar sua fé no livre comércio e
individualismo e abraçará o nazismo. O episódio é curto e se revela pela
narrativa de reuniões e o uso da braçadeira. Também não será melhor
esse período da sua vida e, por fim, ele se envolve com o comunismo,
que acarretará experiências de perseguição e violência política. Franz
passa por todas as ideologias de sua época sem grandes avanços. A
subclasse a que pertence Franz, e seu mundo representado pela
Alexanderplatz, dão a perceber o horizonte daqueles personagens que
vivem de maneira especular com o “grand monde”.
Indicial dessa situação é o fato de que as notícias oficiais
permeiam a história com a fatuidade da ficção. O isolamento ideológico
dos
habitantes
da
Alexanderplatz
tornam-nos
indiferentes
aos
acontecimentos da superestrutura, por quem são igualmente ignorados.
Noticias sobre o dirigível de Hindenburg, sucessos tecnológicos e políticos
realizados pelos pactos internacionais, a mobilização sutil para a
próxima Guerra, nada disso interfere no dia-a-dia pantanoso dos
berlinenses da Alexanderplatz. A realidade reside nas coisas que Franz
escuta, nas histórias que lhe contam. A obra é uma fabula sobre um
homem que acreditava naquilo que lhe diziam. Franz será vitimado por
205
sua boa vontade, até chegar ao paroxismo da dúvida. Daí renascerá
para a solidariedade.
“Enfim, é mais agradável e melhor estar com os outros”
Não se deve dar tanta importância a si mesmo. É
preciso escutar os outros. Quem lhe diz que o senhor é
tão importante? Deus não deixa ninguém cair de Sua
mão, mas há outras pessoas no mundo.
(Berlin Alexanderplatz Alfred Döblin)
Após atravessar todas as possibilidades ideológicas propostas por seu
tempo – enquanto ilustra as flutuações do povo alemão do entre guerras
por entre elas – Franz visualiza outro caminho: a solidariedade, que lhe foi
proposta no inicio da narrativa pelo gesto bondoso do “judeu ruivo”. A fábula
se encerra quando Biberkopf a reconhece como válida e como única saída
possível (DÖBLIN: 1995, 425)
Muita desgraça vem do fato de se andar sozinho. Quando
há muitos, a coisa é diferente. A gente precisa acostumar-se
a escutar os outros, pois o que os outros dizem também me
diz respeito. Aí percebo quem eu sou e o que posso me
propor. Ao meu redor e por toda parte se luta a minha luta,
preciso prestar atenção, antes que note, chegou a minha
vez.
Nesse momento Biberkopf vivencia uma revelação, em que percebe como
saída, não o projeto imposto em sentido vertical, mas a caminhada
construída a partir da experiência cotidiana e o diálogo entre as pessoas,
que se deve construir na prática diária. Só então ele consegue perceber o
valor das práticas solidárias ocorridas ao longo da narrativa, justamente os
momentos mais belos, sempre personificados por personagens de quem
Franz recebe comiseração e ajuda e a quem pouco valoriza: primeiro o
judeu. Depois Meck, Eva, e Herbert. Por fim Mina: são os momentos em que a
narrativa da vida de Franz se colore. Mas ele não consegue perceber isso, e
apenas segue as más influencias de Willi e Reinhold, que lhe parecem mais
sedutores, justamente porque lhe dizem aquilo que ele quer ouvir.
Prometem-lhe a glória que ele acredita ser seu destino e direito. E, no
206
entanto, após seguir as ficções, políticas ou não, que lhe seduzem ele vai
despertar para a última grande ficção, que Döblin chama de “revelação”69.
Franz Biberkopf morre para a vida que levava e renasce mais crítico. Tem
agora olhos e pés, como lhe propusera o “judeu ruivo”, e pretende usá-los. A
hora da batalha pode se aproximar a qualquer momento e ele estará
preparado – junto com os outros. Diferentemente da postura das grandes
ideologias, o marxismo e o nazismo, que levarão à cegueira e à guerra,
Franz crê agora que é preciso permanecer junto, porém crítico. Franz
adivinha que uma guerra se aproxima. E percebe que é preciso estar
preparado: mas não como gado. Para Franz, os soldados que perderam a
vida e/ou partes do corpo, na Primeira Guerra, se assemelhavam a bois indo
para o matadouro: não sabiam porque lutavam. Estavam fascinados pela
vaidade de defender a pátria. Mas Franz percebe que a luta (a Segunda
Guerra) se aproxima e que todos são responsáveis: “Se houver guerra e me
convocarem e eu não souber porque, e a guerra também existir sem mim,
serei culpado e será bem feito para mim” (DÖBLIN: 1995, 425).
Há algo de existencialismo neste ideário döbliniano, aproximando-se de
Albert Camus na crença sobre a responsabilidade que o ser humano tem
em relação aos seus semelhantes, como também pela proposição de uma
utopia redentora em que o humanismo se afirma como valor. Ele chega
admitir que há uma “linha filosófica, até mesmo metafísica” em sua obra
(DÖBLIN: 1995, 429). Isto se revelará durante e, principalmente ao final da
obra. Temas como a questão sacrificial pelo bem comum, a noção da vida
humana como o vale de lágrimas são marcas de uma a metafísica religiosa
subjacente a toda a obra, proposta como caminho alternativo às grandes
ficções políticas. Descrente de todas as utopias, Döblin só considera possível
uma ressurreição através do amor universal entre os homens, algo como um
anarquismo cristão.
Conclusão
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre
eles,
considero
a
enorme
realidade.
69
A escolha desse termo é bem clara, uma vez que o conceito de revelação remete a
uma experiência religiosa.
207
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
(Mãos dadas – Carlos Drummond de Andrade)
A sofisticação da narrativa e a crítica às utopias políticas, aliada à crueza da
representação
da
realidade,
presentes
à
obra
Döbliniana,
seriam
justificativas suficientes para a relativa frieza da recepção dos leitores de sua
época. O realismo explicito da surrealidade cotidiana da miséria alemã do
entre-guerras, as insinuações sobre uma possível guerra próxima; a
revelação da incontornável hostilidade entre nazismo e comunismo; a
desmistificação das ideologias como supostas libertadoras e a denúncia de
sua verdadeira face como formas de controle, eram proféticos demais para
serem compreendidos – e não foram.
Sabemos hoje da triste veracidade de todas as “previsões” de Döblin. Isto só
confirma nossa afirmação da “parabolicidade” do autor em relação às
questões, por vezes impalpáveis, de sua época. E mais: é interessante
perceber que Döblin tem ainda muito a nos dizer. Isto porque as ideologias
totalitárias, não só nunca deixaram de dominar o cenário político, como hoje
vivem perigoso recrudescimento: mais especificamente o nazismo (na
Europa), o “socialismo real” na Rússia entre tantos “ismos”, aliados a uma
super nova alienação “internética” expressa pelo “autismo narcisista” das
redes sociais, cujos efeitos ainda estão por se conhecer e que não apenas
reproduzem como amplificam a cegueira biberkopfiana.
Não temos tanto direito, porém à justificativa da ingenuidade de Franz
Biberkopf. Tanto quanto o protagonista de Berlin Alexanderplatz, temos hoje
até mais conhecimento e experiência do uso perverso dessas utopias, a
ponto de podermos afirmar com ele que: “Sabemos o que sabemos, e
pagamos caro por isso” (DÖBLIN, 1995,426). O século XXI possui a experiência
da geração de Franz e ainda mais, embora pareça caminhar de olhos
nada abertos ... Nesse ponto vale recuperar essa experiência e aprender
com a fábula döbliniana que “As palavras rolam ao nosso encontro, temos
de nos prevenir para não sermos atropelados. ... Não aposto em nada desse
mundo. Pátria amada, descanse, tenho os olhos abertos e não caio mais
nessa.”(DÖBLIN, 1995,426)
208
REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. Documentos de cultura, documentos de barbárie. Escritos
escolhidos, sel. e org. por Willi Bolle. São Paulo: Cultrix/Edusp,1986.
CORNELSEN, Élcio. O Conceito de ‘Kinostil’ e o princípio de montagem no
romance BERLIN Alexanderplatz, de Alfred Döblin”. In: Aletria. Revista de
estudos de literatura, Belo Horizonte/ UFMG-FALE, n 8: “Literatura & Cinema”,
Dezembro de 2001, p165-171.
DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz. A história de Franz Biberkopf. Rio de
Janeiro: Rocco, 1995.
GAY, Peter. A cultura de Weimar. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1978.
HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos – O breve século XX. São Paulo: Cia das
Letras, 1995.
HOWE, Irwing. A Política e o romance. São Paulo, Perspectiva, 1998.
NUNES, Benedito. “Narrativa histórica e narrativa ficcional”. In. RIEDEL, Dirce
Côrtes (Org.). Narrativa: ficção e história. Rio de Janeiro: Imago, 1998.
209
AS REPRESENTAÇÕES PUBLICITÁRIAS:
UM ESTUDO PARA UTILIZAÇÃO DOS ANÚNCIOS COMERCIAIS EM
UMA ABORDAGEM CULTURAL DO POLÍTICO
Marina Helena Meira Carvalho1
Os anúncios comerciais podem ser interessantes fontes históricas
para uma abordagem cultural do político, uma vez que veiculam
representações sociais para realizar o elo identificador entre produto e
público presumido.
Consideramos aqui uma história cultural do político, e não da
política, por, assim como Pierre Rosavallon sugere, o político se tratar de
campo mais amplo, que “é tudo aquilo que constitui a polis para além
do poder, da ação governamental cotidiana e da vida ordinária das
instituições.” (ROSAVALLON: 2010, p.73) Segundo Leffort, o político seria a
“instância que atravessa o conjunto social, faz-se presente em todos os
seus domínios, e é inseparável do ser social” (CAPELATO & DUTRA: 200,
p.233). Observamos, assim que, as propagandas se inserem no discurso
do político, uma vez que os publicitários, como sujeitos históricos,
colocam em suas representações posicionamentos, opiniões, projetos,
etc. Figueiredo considera que “o discurso publicitário, além de persuadir
seu público-alvo a adquirir determinada mercadoria ou serviço, acaba
por fazer também propaganda subjacente de uma opinião, um hábito
ou um traço cultural geral.” (FIGUEIREDO, 1998. p.18-19, nota 3).
Isso ocorre porque as propagandas não são desvinculadas de
seus contextos. Muito pelo contrário, para que o público se identifique
com tal propaganda, ela deve munir-se de signos caros a ele.
Segundo Roger Chartier, para que se estabeleça uma relação
inteligível entre texto e leitor são necessárias duas condições: “o
1
Marina Helena Meira Carvalho é mestranda do Programa de Pós Graduação em
História da UFMG pela linha História das Culturas Políticas e membro do Projeto
Brasiliana. O presente texto consta de versão modificada do trabalho final apresentado
para a disciplina História e Culturas-políticas ministrada pelo professor Rodrigo Patto Sá
Motta. Agradeço ao professor e aos colegas pelas discussões frutíferas.
[email protected].
210
conhecimento do signo enquanto signo, no seu distanciamento da coisa
significada, e a existência de convenções partilhadas que regulam a
relação do signo com a coisa” (CHARTIER: 1990. p.21). Sendo assim, as
publicidades têm que, no mínimo, nutrir-se de convenções partilhadas
por uma comunidade de sentido para que sejam inteligíveis, marcandose como artefato histórico e social. Textos e imagens, segundo esse
historiador, são presos na rede contraditória das utilizações que os
constituíram historicamente (CHARTIER: 1990, p.61). E a propaganda, como
imbricação dos dois recursos, não poderia deixar de o ser.
Para Falcon, “a força e o sentido de um determinado conjunto de
representações derivam, em grande parte, de seu contexto social e de
suas relações com as redes sociais e políticas em que são elaboradas”
(FALCON: 2000, p.70).
Roland Barthes analisa que a linguagem publicitária abriga três
mensagens, simultâneas e imbricadas: a literal ou denotada, a
associada ou conotada e a declarada ou referencial.
A segunda mensagem, a qual Barthes atribui como centro da
linguagem publicitária, é composta pelos sentidos, o que implicam
associações culturais e variações segundo o leitor. Essa mensagem é
composta muitas vezes por metonímias, metáforas e expressões
idiomáticas que necessitam um pertencimento cultural para que sejam
inteligíveis e interpretáveis.
Muniria as palavras e as imagens dos
sentidos socialmente a elas atribuídas, de sonho, sono, elegância,
euforia... Sentidos esses que costumam ser parcamente analógicos e
muito mais construídos histórica e socialmente. (BARTHES: 2005, 104-110).
A historiadora Maria Rúbia Sant’anna, que se dedica ao estudo da
propaganda como fonte histórica, conclui que “é impossível trabalhar
sobre anúncios sem conhecer o processo que o produz, o que o constitui
a priori, seu contexto universo semântico de enunciação.” (SANT’ANNA:
2012, p 304). Esse contexto indica quem, para quem, onde e em que
momento a enunciação foi feita. É importante estudar, assim, não só o
texto e a imagem da publicidade, mas também o objeto/veículo que o
dá suporte e as práticas de leitura do mesmo (CHARTIER: 1990).
211
Dessa forma, as representações publicitárias devem servir de
partida para análise dos atores históricos que as pensaram, do suporte
em que são veiculadas e do seu público presumido. Todos esses
elementos, direta ou indiretamente, influirão na mensagem final
veiculada pela publicidade.
O contexto social, econômico, político, histórico e cultural por
diversas vezes é significado pelos publicitários para gerar empatia em
seu público, e apropriando-os para fins comerciais. Entretanto, a
resignificação muitas vezes extrapola o objetivo da venda, como
podemos
ver,
veiculando
também
ideias
e
valores,
fazendo
propaganda de um estilo de vida e debatendo sobre questões
contemporâneas a ele.
Podemos citar alguns exemplos já trabalhados pela historiografia:
muitos anúncios comerciais no Brasil do final dos anos 1930 e início dos
anos 1940 divulgavam o American way of life como maneira de
aproximação entre Brasil e Estados Unidos 2 ; após a entrada dos EUA na
Segunda Guerra Mundial e a aliança estabelecida entre esses países,
passa-se a difundido nos anúncios comerciais propagandas em apoio à
guerra
e
incentivando
a
contribuição
dos
brasileiros(TOTA:2000;
MOURA:1988; MONTEIRO:2006); nas décadas de 1950 e 1960, ainda no
Brasil, os anúncios comerciais apoiaram projetos políticos e econômicos
e ajudaram a estabelecer uma cultura de consumo, demonstrando
uma inflexão nos conceitos de liberdade e democracia veiculados pelas
peças publicitárias(FIGUEIREDO:1998). Os exemplos citados reafirmam a
ideia de que as propagandas comerciais são lócus de veiculação e de
debate do político.
As mensagens publicitárias são transmitidas por meio de
representações sociais. O conceito de representação, longe de ser um
consenso na historiografia, apresenta múltiplas análises as quais o faz,
inclusive, ganhar sentidos excludentes entre si (FALCON: 2000). Ressalta-se,
2
Pedro Antônio Tota, Gerson Moura e Erica Gomes Daniel Monteiro, ainda que
dediquem maior esforço em seus estudos a partir da década de 1940, se inserem aqui.
Os diálogos entre americanismo e nacionalismo por meio dos anúncios comerciais
entre 1937-1940 é o tema da pesquisa de mestrado que está sendo realizada por mim.
212
então, a necessidade do pesquisador de conceituar “representações”
quando utilizar tal termo.
A principal diferenciação na abordagem dos historiadores diz
respeito à correspondência com uma realidade prévia. Enquanto alguns
defendem a representação como o simulacro da verdade, outros tantos
defendem que o mundo é construído por representações.
Para além das divergências conceituais, pautadas em debates
mais abrangentes sobre a própria concepção da História enquanto
conhecimento e sua relação com a verdade, o termo “representação”
também seria polissêmico, podendo significar presença ou ausência.
Falcon explora aqueles que seriam os dois sentidos modernos do
termo representações: “a ‘representação’ entendida como objetivação,
figurada ou simbólica, de algo ausente - um ser animado ou inanimado,
material ou abstrato – e a ‘representação’ definida como estar presente
em lugar de outra pessoa, substituindo-a, podendo-se ou não ‘agir em
seu nome’, na qualidade de seu representante.” (FALCON: 2000, p.45).
Adotamos para o universo publicitário, mais frequentemente, a
noção de representação como objetivação. Por meio de textos e
imagens, os profissionais da propaganda representam seu público alvo
(uma determinada parcela da sociedade, tanto em níveis etários,
quanto de gênero, classe, etc) e o produto, além de muitas vezes
representarem o país de origem e o país receptor do objeto, questões
contemporâneas (como guerras, crises econômicas, questões políticas).
Para Ginzburg, tal sentido de representação evoca a ausência,
fazendo ás vezes da realidade representada, mas, ao mesmo tempo, a
presença, ainda que por sucedâneo (GINZBURG: 2001). Ginzburg nega,
portanto,
as
análises
de
o
mundo
como
uma
representação,
apresentando, em seu lugar, a realidade como algo a priori e a
representação como um sucedâneo do real.
Chartier também considera que o representante difere do
representado (CHARTIER: 1990). Entretanto para esse, com quais ideias nos
alinhamos mais, representações são instituições sociais, mas também
são matrizes de práticas que constroem o próprio mundo social
213
(CHARTIER: 2002, p.71), além de identidades para si mesmo e para os
outros (CHARTIER: 1990). Dessa forma, ao mesmo tempo em que elas
significam,
estando
inseridas
em
uma
comunidade
de
sentido
partilhado, constroem (CHARTIER: 1990, p.79).
Partindo de outro princípio, o estruturalismo, Bourdieu havia feito
raciocínio semelhante, o qual nos ajuda a pensar o universo publicitário.
Para ele, os enunciados são, ao mesmo tempo, estruturas estruturadas,
dependendo
de
fatores
pré-existentes,
como
estruturantes,
estabelecendo novas influências (BOURDIEU: 1989; 1998; 2000; 2003).
Adotamos aqui a concepção de que o acesso ao real se dá por
meio de representações, o que significa que as representações não são
capazes de determinar a veracidade ou não dos acontecimentos, como
o discutido caso do Holocausto, mas que as interpretações, as análises e
as formulações sobre o próprio acontecimento serão moldadas pelas
representações, as quais, inclusive, indicam para as diferentes visões de
mundo. Entendemos aqui as narrativas como uma representação do
real, não nos interessando, entretanto, firmar uma dicotomia simplista
entre prática e representação.
Segundo Ricoeur o próprio acontecimento já é em si pré-textual.
Em sua análise da tríplice mimese, identifica a primeira delas como a
vivência. A própria experiência já seria uma pré-narração, pois está
baseada numa “pré-concepção do mundo e da ação: de suas
estruturas inteligíveis, de suas fontes simbólicas e de seu caráter
temporal” (RICOUER: s.d. p.88). A vivência organizaria passado, presente e
futuro, uma compreensão prática que articula a ação.
O texto, ou a representação, constando aqui como a segunda
mimese, seria a escrita da ação por um autor que tece um sentido, uma
síntese do heterogêneo, ordenando princípio, meio e fim, por meio de
um fio condutor. (RICOEUR: s.d.) A narrativa, dessa forma, parte de uma
pré-narrativa ocorrida na experiência, organizada por significações
presentes na comunidade de sentido.
Vale ainda ressaltar que mesmo entre os autores que trabalham
com publicidade citados nesse trabalho nem todos eles utilizam o
214
mesmo
conceito
de
representação
e
nem
menos
o
conceito
representação para se referir aos anúncios publicitários, sendo que
muitos deles preferem imaginário. Conceituamos imaginário social como
quando uma sociedade, grupos ou mesmo indivíduos de uma
sociedade se vêm ligados numa rede comum de significações,
em que símbolos (significantes) e significados (representações)
são criados, reconhecidos e aprendidos dentro de circuitos de
sentido; são capazes de mobilizar socialmente afetos, emoções
e desejos [...] se traduz como sistema de ideias, de signos e de
associações indissoluvelmente ligado aos modos de
comportamento e de comunicação.(CAPELATO; DUTRA: 2000,
p.229)
Consideramos,
assim,
o
imaginário
como
conjunto
de
representações e, dessa forma, as representações publicitárias estão
inseridas em contextos culturais que as ultrapassam, conformando e
ressignificando imaginários sociais.
Elas, por si, não se configuram um imaginário publicitário, mas, por
outro lado, legitimam ou até mesmo reformulam imaginários existentes.
Imaginários sociais não são fixos e diferentes representações provocam
movimentações no interior dos mesmos. Negamos, portanto, a afirmativa
de Backzo de que “aquilo que os mass media fabricam e emitem, para
além das informações e atualidades, são os imaginários sociais”
(BACZKO: 1985, p.314). Os mass media, em nossa concepção, produzem
representações as quais estão em combate com tantas outras e servem
para legitimar, conformar e ressignificar imaginários.
Segundo Roger Chartier, “não há praticas ou estruturas que não
seja produzida pelas representações, contraditórias e afrontadas, pelas
quais os indivíduos e os grupos dão sentido a seu mundo” (CHARTIER:
2002, p.66). Assim, as representações publicitárias, longe de serem
homogêneas, também se inserem nas disputas representacionais. Essas
pressupõem
concorrência
e
competições,
poder
e
dominação
(CHARTIER: 1990). Por isso, ao estudarmos anúncios publicitários não
podemos nos deixar cair na armadilha harmonizante que os mesmos
forjam. Aos anúncios, não interessa passar ao público alvo o espaço do
conflito. Pelo contrário, o próprio objeto consumido não é percebido
como fruto do trabalho humano, amenizando as opressões e diferenças
sociais (FIGUEIREDO, 1998). Muitos pesquisadores das propagandas,
215
como é o caso de Barthes, se dedicaram a ver o espaço do consenso e
do pertencimento gerado pelos anúncios, ignorando, entretanto, o
espaço do dissenso e exclusão. Ele analisa como as imagens que são
dirigidas aos consumidores causam reconhecimento nos mesmo, se
sentindo parte de um grupo e “normais” (BARTHES: 2005, 113 e 115).
Entretanto,
harmoniosos,
longe
as
de
serem
propagandas
espaços
comerciais
homogeneizantes
possuem
um
e
público
presumido – um “eu” – e um “outro”, ao qual se opõe. O próprio valor de
uso é determinado socialmente, não existindo objetos puramente
funcionais e atribuem às mesmas ligações identitárias e de status com
seu público. Consumir, nessa lógica, significa enquadrar-se, que, por sua
vez, traduz na não rejeição. O conflito aqui acontece, destarte, pela
omissão, pelo subentendido e pelas hierarquizações, mesmo que
realizadas de forma muito sutil.
As ligações identitárias, entretanto, não se formam somente por
pares de oposição. Elas se forjam por pares de comparação, marcando
não só diferenças como semelhanças. Ressaltamos ainda que as
identidades não são formadas por caráter objetivo, e sim por imagens,
projeções, representações e sonhos. O que eu penso que eu sou, o que
eu gostaria de ser/parecer, o que pensam que eu sou e o que
gostariam
que eu fosse
são elementos
constituintes
de minha
identidade.
Segundo Falcon, práticas sociais como um todo, se baseiam na
distinção ou imitação (FALCON: 2000). A identidade, ao contrário de
apenas opor um “eu” a um “outro”, pode também se projetar no outro
por ausência e ambição do vir a ser. Muitas vezes os anúncios
comerciais se ocuparão em representar o espaço do onírico e as
projeções identitárias. Ela não se forja apenas por pares de oposição,
mas de comparação.
Perde-se o sentido, então, de se buscar correspondência entre as
representações
publicitárias
e
a
realidade.
Muitas
vezes
peças
publicitárias são acusadas de não retratarem homens/mulheres reais.
Ainda que tais representações possam causar opressões na medida em
216
que geram exclusão e identificação, essa última pode ser gerada
também pelas projeções e desejos, e não apenas pelas características
objetivas e “reais”. Destarte, homens e mulheres idealizados se
aproximariam do eufemismo, do agradável, das projeções identitárias.
Tais representações seriam legitimadas pela própria sociedade, ou parte
dela.
Assim sendo, busco aqui nesse parágrafo um pouco da minha
pesquisa de mestrado.
A retratação de artistas Hollywoodianas ou
modelos norte-americanas nas propagandas no Brasil durante as
décadas de 1930 e 1940, longe de não representarem as brasileiras por
possuírem estereótipos às vezes muito diferentes dos nossos, agem no
sentido do onírico, identificando-se por base do star system, do pavor do
anonimato, da vontade da fama, do encantamento dos fãs com seus
ídolos. Cabe lembrar que os filmes norte-americanos já haviam
conquistado os corações brasileiros e eram sucesso de público desde a
década de 1920. O americanismo não necessariamente se oporia,
assim, ao nacionalismo das décadas de 1930 e 1940, estabelecendo-se
um vínculo identitário pela Política de Boa Vizinhança.
As representações dos sonhos e desejos, portanto idealizadas,
tanto são legitimadas pela sociedade que, a partir do momento em que
se passa a questionar a falta de correspondência dos modelos com
pessoas “reais”, algumas empresas munem-se também desses discursos
para realizar seus anúncios. Cito um exemplo.
217
Imagem 1: Campanha Dove Real Beleza
Fonte: http://feguedes.wordpress.com/tag/dove-real-beleza/ Acessado em:
07/04/2014
A marca Dove em 2004 encomendou uma pesquisa global
intitulado “The Real Truth About Beauty”, para entender a relação da
mulher com a beleza. A partir desses dados, e da constatação da falta
de autoestima feminina, segundo site da empresa, Dove apostou em
uma série de peças publicitárias denominada “Real Beleza”. Uma delas,
veiculada em vários meios brasileiros, representava várias mulheres com
corpos “reais”, ressaltando a beleza presente neles. As modelos
retratadas estão felizes e descontraídas em suas poses, indicando uma
possível auto-aceitação independente se seus corpos seguem ou não
padrões. Outra peça, o “Verão sem vergonha”, essa veiculada no verão
brasileiro de 2005, na televisão, recebeu música cantada por Fernanda
Abreu incentivando a diversidade e o realce das diferenças: “curvas
diferentes porque ninguém é igual, realce em você o que é especial (...)
porque o sol nasceu pra todas”. Em 2006, ainda como parte dessa
campanha
“Real
Beauty”
lançou
a
peça
de
vídeo
“Evolution”
218
demonstrando como a maquiagem realizada na modelo e o
Photoshop distorcem a real beleza.
O uso de estereótipos que não sejam os de modelos, os quais
difeririam muito de mulheres “reais”, não é utilizado somente pela Dove.
A citamos como forma de exemplo, sem pretensões de alongarmos no
assunto. Entretanto, com um levantamento rápido podemos perceber
que inúmeras outras marcas o fazem, como a marca de lingerie Aire e a
Duloren, o canal canadense de TV Wnetwork, dentre outros. Saindo
estritamente do universo publicitário, o clipe "Nouveau Parfum", da
cantora húngara Boggie, música de 2013, clipe do ano vigente, revela
também as transformações que são possíveis por meio do Photoshop
pela fabricação da beleza e questiona esses padrões que seriam
destruidores de nossa autoestima: “Qual eu escolho? Por que eu escolho?
Quem quer que eu escolha? Eu não sou o produto deles”. Global
Democracy criou um vídeo também criticando como os corpos das
modelos são transformados pelo Photoshop. França, Inglaterra e Brasil
possuem projetos-leis que visam proibir a alteração de corpos por
Photoshop em campanhas publicitárias.
Longe de negar a opressão e a exclusão do “outro” contidas nas
publicidades, gostaria apenas de realçar que sociedade e publicidade
se auto nutrem. Discutir se esses padrões são criados ou apropriados
pelas propagandas cairia em discussão semelhante de “quem nasceu
primeiro: o ovo ou a galinha”. Lembremos que as propagandas
significam e constroem, como já mencionamos anteriormente. E que
elas partem de imaginários legitimados para gerar representações,
resignificando-os, algumas vezes. Os conceitos de belo e feio, de
agradável e detestável, de desejável ou não, utilizados nas campanhas,
são apropriados de imaginários presentes na comunidade de sentido
para qual são destinadas. O próprio fato de retratação de desejos e
projeções identitárias, ou de realismo nas representações, realizando
identificações mais diretas, indicam para discussões e concepções
contemporâneas às peças publicadas.
219
Segundo Figueiredo, a propaganda não objetivaria criar valores,
ideias ou imagens absolutamente inéditas (FIGUEIREDO: 1998, p19). A
chave de nossa pergunta encontra-se na utilização da comunidade de
sentido. Obviamente os publicitários realizam apropriações seletivas da
tradição e, também, dos ideais de “novo” e “moderno”, conceitos que
são constantemente resignificados. Ao momento que admitimos esse
fato, buscamos nos anúncios comerciais as representações de mundo
realizadas por esse grupo, mas que estão pautadas num imaginário e
num contexto mais amplo, que os ultrapassa. A publicidade, ao munir-se
de valores e símbolos presentes na sociedade, ou em uma parcela da
mesma, os resignifica e apropria para as suas necessidades comerciais.
Não afirmamos, também, que um publicitário utiliza-se dO imaginário e
dA representação contemporânea a ele, mas, como já vimos
anteriormente, de representações, as quais estão em embate com
tantas outras.
Percebemos que o universo publicitário é como um ciclo vicioso,
pois parte de imaginários sociais, por meio de modelos partilhados e
das identidades construídas, para apropriar-se deles tanto referindo-se
ao lexical quanto ao iconográfico e gerar identificação, por um lado, e
ação, por outro. Segundo Bhabha, a própria linguagem seria uma
metáfora transformadora da realidade (SANT’ANNA: 2012). A publicidade
significa, a partir do momento que utiliza de elementos da comunidade
simbólica, mas também constrói, pois insere costumes, ideiais, modos de
ver o mundo, gera hábitos e ação, além de criar/reforçar/resignificar
identidades.
Por isso, anúncios publicitários são importantes lócus de pesquisa
para historiadores do cultural do político, os quais por meio das
representações por eles veiculadas podem investigar sobre o contexto,
comunidade de sentido, imaginários, ideias, valores, apoios ou não
políticos, crises e várias outras coisas que aparecem não só como plano
de fundo dos anúncios, mas em suas próprias representações.
Vale ainda ressaltar, por último, que as publicidades abrem amplo
leque de pesquisa, não se limitando à História Cultural do Político. Alguns
220
trabalhos atuais com publicidade não seguem a linha que propomos,
mas História social, cultural, de gênero, ambiental, dos ofícios, das modas,
dos corpos, das relações internacionais, ensino de história, dentre outros.
REFERÊNCIAS
BARTHES, Roland. Sociedade, imaginação, publicidade.
Roland. Inéditos. V.3. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
In: BARTHES
BACZKO, Bronislaw. “A imaginação social”. In: LEACH, Edmund et Alii.
Enciclopedia Enaudi. Anthropos-Homem. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa
da Moeda, 1985
BOURDIEU, Pierre . O que falar quer dizer. Lisboa: Difel, 1998.
____________. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil,
1989.
____________. Questões de Sociologia. Lisboa: Fim de Século, 2003.
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Intelectuales, política y poder. Buenos Aires, Eudeba, 2000, pp. 23-42.
CAPELATO, Maria Helena Rolim; DUTRA, Eliana Regina de Freitas.
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historiografia brasileira”. IN: CARDOSO, Ciro Flamarion; MALERBA, Jurandir
(orgs.)
Representações.
Contribuições
a
um
debate
transdisciplinar.Campinas: Papirus, 2000.
CHARTIER, Roger. A História Cultural – Entre práticas e representações..
Lisboa: Difel, 1990.
_____________. O mundo como representação”. In: À Beira da Falésia - A
História entre certezas e inquietudes. Porto Alegre: Ed. Universidade/
UFRGS, 2002.
FALCON, Francisco. “História e representação.” IN: CARDOSO, Ciro
Flamarione MALERBA, Jurandir (orgs.) Representações. Contribuições a um
debate transdisciplinar.Campinas: Papirus, 2000.
FIGUEIREDO, Anna Cristina Camargos Moraes. “Liberdade é uma calça
velha, azul e desbotada”. Publicidade, cultura de consumo e
comportamento político no Brasil (1954-1964). São Paulo: Editora HUCITEC,
História Social, USP, 1998.
221
GINZBURG, Carlo. “Representações” In: Olhos de madeira: nove reflexões
sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001
MONTEIRO, Érica Gomes Daniel. A guerra como slogan: visualizando o
Advertising Project na propaganda comercial da revista Seleções do
Reader`s Digest (1942-1945). Dissertação (mestrado). Rio de Janeiro:UFRJ,
PPGHIS, 2006.
MOURA, Gerson. Tio Sam chega ao Brasil: a penetração cultural
americana. Coleção tudo é história, Editora Brasiliense, São Paulo: 1988.
5ª edição.
RICOEUR. Paul. “O que é um texto”. IN: Do texto a acção – ensaios de
hermenêutica II. Porto: Rés, s.d.
ROSANVALLON, Pierre. Por uma história do político. São Paulo: Alameda,
2010.
SANT’ANNA, Mara Rúbia. De perfumes aos pós: a publicidade como
objeto histórico. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.32, nº64, p.299324, 2012.
TOTA, Antonio Pedro. O imperialismo sedutor: a americanização do Brasil
na época da Segunda Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
222
ORVIL:
A HISTÓRIA “POSTA EM FORMA” PELO EXÉRCITO BRASILEIRO
(1985-1988)
Mauro Teixeira1
Introdução
Em 1979, com a promulgação da lei de anistia no Brasil, diversos
ex-militantes de organizações clandestinas de esquerda, que haviam
combatido a ditadura instalada em 1964 2, começaram a retornar do
exílio, ou a sair de prisões brasileiras.
O relaxamento da censura
jornalística e editorial permitiu que eles contassem sua versão daquela
luta, através de livros de memórias, depoimentos assinados, filmes e
entrevistas3 . Ao mesmo tempo, reportagens investigativas passaram a
expor os fundamentos e o funcionamento da repressão política no Brasil.
Naquelas fontes, aparecia a imagem de um regime que adotara
o sequestro, a tortura e as execuções sumárias como métodos
sistemáticos
de
combate
contra
seus
opositores.
A
fartura
de
depoimentos e a impressionante coerência entre eles tornava muito
difícil contestar as denúncias que então se fazia.
Esta situação se revelava um problema significativo para as
instituições castrenses: principais artífices e condutoras do processo de
“abertura” política, pretendiam transmitir o poder aos civis sem abdicar
do papel institucional privilegiado de que gozavam sob a Constituição
de 1967. Além disso, aquelas acusações poderiam prejudicar mais dois
objetivos das Forças Armadas: preservar a impunidade que a anistia de
1979 garantira aos agentes e comandantes da repressão e reproduzir,
1 Doutorando em História pela Universidade Federal de Ouro Preto, com bolsa
Capes/CNPq. E-mail: [email protected].
2
Para descrições factuais dos eventos da luta armada e da repressão,
recomendamos as obras de Gorender (2003) e de Gaspari (2002). Para análises mais
aprofundadas sobre a composição e as identidades políticas das organizações de
esquerda, ver Ridenti (1996) e Aarão Reis Filho (1990). Para os pressupostos e o
funcionamento do aparelho repressivo, Fico (2001) e Joffily (2014).
3 Os livros de memórias sobre o período se contam às dezenas. Para alguns
exemplos que consideramos significativos, ver Gabeira (1979), Sirkis (1981) Polari (1982),
Daniel (1982), Caldas (1983) e Guarany (1984). Para reportagens, ver Lago (1979) e Fon
(1979). Para depoimentos de próprio punho, Romeu (1981).
223
nas novas gerações de oficiais, os pressupostos das doutrinas da “Guerra
Revolucionária” (Martins Filho, 2009) e da “Segurança Nacional” (Borges,
2003), que haviam norteado o golpe de 1964 e a atuação do aparelho
repressivo.
Convivendo com estes objetivos mais pragmáticos, devemos
admitir a existência de um temor sincero em relação à mobilização de
esquerda que começava a se reconstruir no país, e que setores militares
e civis entendiam como sendo a volta da “ameaça comunista”. Para
estes setores, como veremos mais adiante, a “difamação” das Forças
Armadas por parte dos ex-guerrilheiros visava a desmoralizá-las,
afastando-as da função de segurança interna e tornando mais fácil a
ascensão dos comunistas ao poder.
Este é o contexto em que o Ministério do Exército determinou ao
Centro de Informações do Exército (CIE)4 , em 1985, a elaboração de um
livro que contivesse a versão oficial das Forças Armadas acerca de sua
luta contra as organizações clandestinas de esquerda.
Este trabalho, que retoma e reelabora considerações presentes
em nossa dissertação de mestrado (Teixeira, 2012, seção 4.2) procura
compreender esta obra como uma tentativa de se construir uma
narrativa oficial, chancelada pelas Forças Armadas, da violência política
dos anos 1960 e 1970, bem como da atuação militar na repressão a
movimentos armados e desarmados de esquerda ao longo de meio
século (1935-1985). Ao contar a sua versão daqueles acontecimentos, o
Exército revelava muito sobre sua alta oficialidade, sobretudo em termos
de cultura histórica e identidade político-ideológica, elementos que
procuraremos expor e analisar.
4
Criado em 1967, especificamente para combater as organizações de esquerda, o CIE
centralizava as informações produzidas pelas três Forças, pelo Serviço Nacional de
Informações (SNI) e pela Polícia Federal. Teve também ativo papel na repressão direta
à luta armada e, no início dos anos 1980, envolveu-se em atividades terroristas de
direita. Ver Brandão (2002, pp. 68-73 e 79-101).
224
O Orvil: da proposição ao arquivamento
Um documento do Centro de Informações do Exército (CIE) datado
de março de 1984 (“Apreciação”, 19845 ) propunha que a força terrestre
reagisse contra as denúncias produzindo um relato consistente, para
consumo amplo, que expusesse a versão dos militares acerca daqueles
acontecimentos. Parte deste plano seria posta em prática a partir do ano
de 1985. É razoável supor que, para que isto acontecesse, tenha sido
decisiva, naquele ano, a publicação, em forma de livro, por parte da
Arquidiocese de São Paulo, do relatório condensado do Projeto Brasil:
Nunca Mais (BNM)6 .
O trabalho se desenvolveu ao longo de três anos. Como se tratava
de iniciativa ainda sigilosa, a elaboração do relato foi alcunhada de
“Projeto Orvil” (a palavra “livro” de trás para a frente), nome que acabou
prevalecendo sobre o título oficial, que era “As tentativas de tomada do
poder”.
O plural se explica pelo fato de que, na visão do CIE, a luta
armada desenvolvida entre 1967 e 1973 se inseria no quadro maior da
ação comunista no país, sendo apenas uma (a terceira) de um total de
quatro investidas da esquerda no sentido de assumir o controle do
Estado brasileiro. A primeira seria a chamada “Intentona”, de 1935; a
segunda, a mobilização comunista entre 1946 e 1964; e a quarta,
considerada a “mais perigosa” (Orvil7 , p. XVII), da qual fariam parte o
BNM e outras ações de “desmoralização” das Forças Armadas, estaria
em curso durante os anos 1980.
Concluído em 1988, o Orvil apresentava, em mais de 900 páginas
5
Devo a cessão deste documento à Prof. Dra. Priscila Carlos Brandão, da UFMG.
Diferentemente dos relatos individuais de ex-guerrilheiros ou de reportagens pontuais,
a publicação trazia um relato consistente da construção e da atuação do aparelho
repressivo comandado pelos militares, e demonstrava o caráter sistemático da tortura e
de outras violações de direitos humanos, usando como fontes uma extensa coleção de
processos arquivados no Superior Tribunal Militar e copiados durante anos, de forma
semiclandestina. O BNM se tornou um gigantesco sucesso de vendas, e uma das mais
permanentes narrativas da luta armada e da repressão.
7
Por termos tido acesso a esta versão apenas no formato de “e-book”, que dificulta
citações, optamos por citar o Orvil a partir da versão em .pdf disponibilizada na internet
em 2009 (ORVIL).
6
225
datilografadas, um relato extremamente minucioso e detalhista da ação
política não só dos comunistas, mas também de nacionalistas de
esquerda, socialistas democráticos e católicos progressistas ao longo do
século XX. Nele, eram negadas enfaticamente todas e quaisquer
violação
de
direitos
humanos
por
parte
das
Forças
Armadas,
apresentadas como guardiãs indispensáveis do regime democrático.
Porém, uma vez pronto, o livro acabou sendo arquivado, em vez
de publicado. Em nosso entendimento, são duas as razões principais
para esta decisão. Em primeiro lugar, à época de sua conclusão,
haviam diminuído a frequência e a intensidade das denúncias contras
as Forças Armadas. Do ponto de vista político, não era interessante para
elas voltar ao assunto. Em segundo lugar, o papel de relevo das Forças
Armadas na nova Constituição já parecia garantido. Assim, as instituições
castrenses garantiam seu protagonismo no presente e no futuro do
Estado brasileiro, tornando dispensável a polemização com a esquerda.
Mesmo arquivado, o livro nunca foi totalmente esquecido. Alguns
anos mais tarde, cópias xerográficas foram feitas e circularam entre
oficiais “de confiança”, na visão dos membros do CIE. A partir deste
material, vários livros da autoria de antigos oficiais de segurança e
informações (Ustra, 1987 e 2006; Torres, 1998; Augusto, 2001) foram
elaborados e publicados, obtendo, porém, pouca repercussão. Em 2009,
a obra foi digitalizada e disponibilizada na internet (Orvil, 2009). Em 2012,
organizado por dois oficiais da reserva, finalmente se materializou em
livro (Maciel; Nascimento, 2012).
Um livro para o passado, o presente e o futuro
No início dos anos 1980, os oficiais que haviam estado
anteriormente envolvidos com a repressão política viviam uma fase de
transição em termos de prestígio social e situação político-institucional. Ao
mesmo tempo em que vários ex-protagonistas dos órgãos repressivos
ocupavam cargos de destaque no comando do Exército (“Os filhos...”,
1981, p. 15), avolumavam-se denúncias de violações de direitos
226
humanos por eles cometidas, resultando na perda de cargos de
confiança e mesmo de espaço na memória coletiva (“Fora...1983, p. 91”).
Aquelas denúncias reforçavam nos comandantes militares uma
sensação de “agressão psicológica” (Orvil, p. 836), motivada, no seu
entendimento, por aquilo a que chamavam de “revanchismo”, ou seja,
a vontade, por parte dos antigos integrantes da esquerda armada, de
“transformar a derrota militar que lhe foi imposta, em todos os
quadrantes do território nacional, em vitória política” (idem, p. 839).
Para os comandantes militares e os oficiais da área de
informações, a publicação do BNM e outras formas de denúncia de
atrocidades por eles cometidas representava uma crise, no sentido
proposto por Rüsen (2009, p. 170), uma vez que são rompidos padrões
estabelecidos de interpretação do tempo histórico, sobretudo no que diz
respeito à relação entre vencedores e vencidos: “Há que se fazer a
História. Nós, vencedores, temos que escrevê-la.” (Apreciação, 1984, p. 2).
Assim, a comunidade de segurança8
pretendia, ao redigir a obra,
restaurar a condição dominante dos vencedores no sentido de contar a
versão oficial do passado.
Porém, não podemos nos esquecer que o Orvil não se fazia
apenas no sentido de se “corrigir” a visão da sociedade sobre o
passado, mas também era pensado como uma arma de intervenção
para o presente e para o futuro. Não por acaso, a “quarta tentativa” dos
comunistas, a que estava em curso durante a elaboração do relato, era
considerada “a mais perigosa”. Assim, o relato do CIE não tinha apenas
o objetivo de desagravar a comunidade de segurança, mas também e
principalmente o de colaborar na manutenção do lugar institucional das
Forças Armadas e no afastamento das esquerdas das possibilidades de
ascensão ao poder.
Era necessário, assim, resgatar o sentido da atuação da
comunidade de segurança; parte deste esforço se destinava a identificar
a "ameaça comunista" como uma realidade móvel no tempo, de forma
8
Para Carlos Fico (2004, pp. 80-2), a “comunidade de segurança” era formada por
órgãos criados por decretos secretos e voltados especificamente para a repressão
contra as organizações clandestinas.
227
alguma específica da época em que aquela atuação se deu; mostrar
sua constância no passado, sua permanência no presente e seu
potencial para o futuro. O Orvil criará, para isso, uma narrativa ambiciosa
em termos de tempo histórico.
O comunismo como ameaça perene
O viés principal da atribuição de sentido a um combate como o
que
foi
efetivado
pela
comunidade
de
segurança
contra
as
organizações de esquerda repousa na construção/desconstrução do
adversário combatido. O Orvil, não deixa dúvidas quanto ao oponente
contra quem reage. O comunismo e as organizações que o propõem
aparecem, ao longo de toda a obra, como inimigo a ser combatido: a
"subversão"
é
sempre
de
autoria
comunista,
e
o
subversivo,
conscientemente ou não, age no sentido de viabilizar a "comunização"
do país.
Ao tratar o comunismo como a “fonte da violência” (Orvil, p. 2), o
Orvil coloca as forças armadas em uma posição meramente reativa em
face da violência do inimigo; e, ao repetir insistentemente as acusações
fidelidade a governos de outros países, sublinha a necessidade de se
reprimir aquela atuação, que seria danosa à própria soberania nacional.
Ocorre que estas duas características serão, na visão do Orvil, uma
presença constante na atuação "vermelha", em qualquer tempo e lugar
em que ela se coloque. Ao empreender a narrativa das tentativas
comunistas de tomada do poder no Brasil, seus autores evidenciarão
conceber o comunismo, se não como realidade imutável, como algo
que só muda em sua superfície, apenas o suficiente para se adaptar a
novas circunstâncias; o recuo até os anos 1920, neste sentido, se faz com
o objetivo de demonstrar as permanências na atuação dos comunistas
brasileiros.
Assim, no entender dos autores do Orvil, a sua própria atuação no
combate à luta armada insere-se em uma espécie de continuum
anticomunista, que começara muito antes deles e precisava continuar
228
indefinidamente. Desta forma, a comunidade de segurança pensa seu
papel histórico como parte de um combate secular entre comunismo e
democracia.
Neste sentido, o relato do CIE parece compreender o tempo em
um sentido de duração, de permanência. Essa moldura temporal
referencial ver-se-á perturbada pela emergência de uma memória
adversa a seus autores, que atinge seu ponto máximo com a
publicação do BNM.
Os autores do Orvil tentarão inserir as denúncias contra eles em
uma narrativa das tentativas de tomada do poder pelos comunistas. A
maquinação comunista explicaria o opróbrio, a "agressão psicológica"
vivida pela comunidade de segurança no presente (1985), e apontaria
para a necessidade da continuidade do combate ao comunismo, no
futuro.
Controle das fontes como recurso político
A partir da concepção temporal acima descrita, o CIE seleciona
suas fontes e a forma de trabalhar com elas de modo a ressaltar
aqueles aspectos supostamente recorrentes da atuação política dos
comunistas.
Na produção de sua versão dos acontecimentos relacionados à
luta armada e à repressão, o Orvil se vale, principalmente, de
documentos constantes no arquivo do próprio CIE, onde, segundo Lucas
Figueiredo (2009, pp. 78-9), havia toda a documentação produzida pelo
próprio centro desde 1967, além de cópias dos acervos de outros
órgãos
de
informação
e
repressão
e
“toneladas”
de
material
apreendido junto a organizações de esquerda.
Ocorre que, em nenhum momento, o "livro secreto" explicita estar
citando estes tipos de documentação. A maior parte da exposição
transcorre sem menção às fontes que fornecem as informações que,
frequentemente, como veremos, alcançam alto grau de detalhamento.
Em
nosso
entendimento,
esta
ausência
de
referências
sugere
229
possibilidades para iluminar a cultura histórica da oficialidade brasileira
dos anos 1980.
Em primeiro lugar, a comunidade de segurança nos parece
acreditar que sua condição de participante e de vencedora do
combate abalizaria seu testemunho, sem necessidade de comprovação
documental. Entretanto, como vimos, esse status, no momento da
redação do Orvil, estava em franco processo de deterioração, dada a
conjuntura política e à emergência da memória da esquerda.
Em segundo lugar, podemos notar a compreensão estratégica
dos arquivos como instrumentos de luta política. Se, em meados dos
anos 1980, o Exército julgou necessário tornar pública sua versão da luta
armada, isso não implicaria fazer o mesmo com as fontes que
embasavam estas versões. Estas, aparentemente, são vistas como
armas importantes no combate ao comunismo, e o CIE não pretende
dividir o acesso a elas com o conjunto da sociedade. A história da
“comunidade de segurança” é dada a conhecer por ela própria, mas
na forma de uma narrativa pronta, cuidadosamente preparada e
impossível (pelo menos até hoje) de ser cotejada com as fontes.
Paul Ricoeur (2007, p. 188) nos lembra de que “Os documentos só
falam quando lhes pedem que verifiquem, isto é, tornem verdadeira tal
hipótese”. Procuremos, então, dirigir nossa olhar para as perguntas que,
declaradamente, o Orvil faz aos documentos que consulta. Tentaremos
detectar, já nestas perguntas, a formulação das hipóteses com que
trabalha o "livro secreto":
Para a compreensão dessa luta [da esquerda contra a ditadura],
foram suscitadas muitas perguntas: Como se formaram? Qual a
inspiração ideológica? Quais os objetivos das organizações
subversivas nela empenhadas? Qual o caráter da revolução que
pretendiam fazer? (Orvil, p. XV)
Este conjunto de perguntas (bem mais extenso do que o citado
acima)
já
anuncia, em nosso
entendimento, uma
"busca",
nos
documentos a serem consultados, por elementos que comprovassem a
hipótese que configurava a esquerda armada como uma pequena elite
230
intelectualizada que, orientada por interesses externos, desencadeou
uma luta vanguardista e violenta pela tomada do poder 9 .
As interrogações propostas pelo Orvil se voltam também para o
tema da repressão desencadeada contra aquelas organizações:
O nível que as ações terroristas alcançaram colocava em
cheque o monopólio da força armada organizada? (...) O seu
combate exigia o envolvimento das Forças Armadas? Era
imprescindível que provocasse a restrição da liberdade e que se
suprimisse do público as informações a que tem direito uma
sociedade democrática? (Orvil, p. 15)
Observe-se que estes dois conjuntos de perguntas tentam conduzir
à compreensão da luta armada como algo que se deflagra de forma
espontânea, sem estímulos conjunturais, a não ser a inspiração
estrangeira. A esquerda age motivada unicamente pela sua vontade de
tomar o poder. Já a ação da repressão é meramente reativa:
dependeria do "nível das ações terroristas", que poderiam "exigir" ou não
o emprego das Forças Armadas.
O extenso corpo documental de que dispunham acerca da
esquerda permitiu aos historiadores do CIE levantar mínimos detalhes
(nomes, marcas de automóveis, endereços, técnicas utilizadas) da
atuação da esquerda, numa aparente tentativa de dar suporte
comprobatório à exposição.
Por maior que fosse o detalhismo nas descrições das ações da
esquerda armada e mesmo, em certos aspectos, dos órgãos de
repressão, o CIE sabia que omissões deliberadas seriam inevitáveis. A
própria “Apreciação” (p. 3) que propôs o trabalho lembrava que “há
muita coisa que não pode ser contada. Sabemos, entretanto, que há
muita coisa que pode e deve ser contada”.
Esta interdição dizia respeito, evidentemente, aos episódios de
violações de direitos humanos praticados por integrantes do aparelho
repressivo. Conforme lembra Fico (2004, p. 84), “a tortura envergonhava,
9
Excetuando-se a predominância do elemento externo e a caracterização de
"terrorismo", esta visão não se distancia muito da que foi formulada por mais de um
analista acadêmico, nenhum deles vinculado à causa anticomunista. Ver Ridenti (1996)
e Aarão Reis Filho (1990).
231
comprometia a honra de todos os militares”. O mesmo se pode dizer
das execuções sumárias, ocultações de cadáveres e outros crimes. No
Orvil, nenhum só caso desses é admitido, e todos são, em bloco,
atribuídos à tentativa da esquerda de “desmoralizar” as Forças Armadas.
O imenso acervo do CIE era filtrado e organizado de forma a produzir
uma versão que ambicionava ocupar um lugar de relevo na memória
coletiva10.
A extensa coleção de documentos clandestinos reunida pelo CIE
lhe deu material para reivindicar a condição de intérprete autorizado
dos caminhos e descaminhos da esquerda brasileira. Para tal condição,
os autores do Orvil julgaram necessário explicitar o conhecimento
acumulado sobre a esquerda de forma a não deixar dúvidas sobre sua
amplitude. Este objetivo determinou suas opções estéticas e narrativas
na formulação do relatório, como veremos a seguir.
O Orvil e seu modelo de narrativa
No Orvil, é bastante evidente a tentativa de se construir uma
narrativa histórica capaz de tomar às esquerdas o controle da memória
dos “anos de chumbo”. Para tanto, não bastava apenas recontar, pela
ótica das Forças Armadas, o embate destas contra os grupos de
esquerda. Era preciso
realizar esta tarefa de uma
forma que
conquistasse o público leitor de duas formas: no sentido de convencê-lo
a ler uma obra de grande extensão (mais de 900 páginas) e também
no sentido de levá-lo a aderir à visão expressa naquele relato.
No caso em questão, tais estratégias envolviam, em primeiro lugar,
uma alternância de estilos que nos parece intencional. Em momentos
chave, busca causar grande impacto no leitor, atraindo sua atenção
para, em seguida, assumir um tom circunspecto, quase burocrático,
como a querer criar para si uma aura de sobriedade ou equilíbrio.
10
O tamanho do livro ao final de sua elaboração – 909 páginas – não ajudava a
consecução deste objetivo. Ainda que ele tivesse se limitado, como inicialmente
planejado, ao período da luta armada entre 1967 e 1973 – a "terceira tentativa" – isto o
deixaria com cerca de 650 páginas, volume bastante caudaloso se considerarmos as
312 do Brasil: Nunca Mais.
232
Esta alternância entre o espetacular e o circunspecto se verifica
em inúmeros momentos do livro, permitindo-nos concluir que ela não se
deve ao acaso. Trata-se, a nosso ver, de uma estratégia deliberada, no
sentido de criar no leitor, através do impacto das descrições mais
"coloridas", a disposição de acompanhar as explicações oferecidas para
aqueles eventos.
Conquistada a atenção do público, a segunda tarefa era fazê-lo
compreender a narrativa oferecida e aderir a ela. O livro foi construído
em um formato rigorosamente cronológico, em que os acontecimentos
são ordenados de acordo com sua sequência no tempo. Em relação ao
período que ocupa a maior parte do relatório, 1964 a 1973, o Orvil
chega a dedicar um capítulo para cada ano – sempre aberto por uma
introdução e fechado por um balanço. Aparentemente, este formato foi
escolhido por questões de organização (Brandão; Leite, 2012, pp. 239240), mas não há dúvidas de que ele constitui, voluntariamente ou não,
uma forma de facilitar a absorção do relato pelo leitor. Conforme Pereira
(2009, p. 140),
A linearidade cronológica dissimula a operação historiográfica,
pois, se o historiador parte de traços do passado que subsistem
no presente, a ordem de restituição se faz em sentido inverso, na
medida em que a história é escrita a partir do presente daquele
que a escreve.
Neste processo, o encadeamento que o historiador estabelece
entre estes “traços” aparece como algo “natural”, presente na essência
mesma dos eventos do passado, e não como algo construído pelo
autor do relato a partir de sua perspectiva no presente. Na narrativa do
Orvil, esta dissimulação se manifesta na medida em que a sucessão em
que são colocados os acontecimentos desde 1922 dá a impressão de
que a trajetória histórica do Brasil neste período foi determinada,
principalmente, pela ação política dos comunistas no sentido da
tomada do poder, o que abriria caminho para a justificação do
combate anticomunista, no passado e no presente.
Podemos ressaltar, ainda, a tendência do relato do CIE em
233
valorizar sobremaneira o eventual e o conjuntural, em detrimento do
estrutural. Localizada, como já demonstramos, a "fonte da violência", o
livro se dedica centralmente a descrever a sequência de eventos que
compõem a sua narrativa, fazendo referência, em momentos isolados, a
mudanças nas orientações dos centros irradiadores do "comunismo
internacional" ou no comportamento do governo brasileiro em relação a
ele. Mesmo esta conjuntura tende a ser enfocada pelo ângulo
estritamente político, dando pouca atenção a fenômenos econômicos e
quase nenhuma à dimensão cultural.
Este modelo narrativo facilita a ênfase nos agentes individuais.
Lideranças de esquerda são seguidamente demonizadas, enquanto as
qualidades pessoais dos líderes militares são ressaltadas e consideradas
determinantes
para
os
rumos
do
país.
Sugere-se,
assim,
uma
interpretação individualista e maniqueísta da história, um esquema
“heróis x vilões”, no qual se busca de forma intensiva a identificação do
leitor com um dos lados em questão.
Em comparação com a ativa participação destes líderes na
construção da história, o conjunto da sociedade assume uma posição
consideravelmente passiva no relato do CIE.
Sua ação, sobretudo
quando contrária à "ordem", se dá sob incitação de "agitadores
profissionais" (Orvil, p. 64). O livro parece defender a necessidade de
tutela política da população, já que existiria um "invencível tropismo das
massas para a mentira" (Idem, p. 880), do qual se valeriam os
comunistas.
Todos esses fatores levantados seriam canalizados para a função
de orientação que o Orvil pretendia exercer no momento da transição
política brasileira.
Ordem para os civis, coesão para os militares
As formas de utilização das fontes e de estruturação do texto a que
temos nos referido se relacionam com as funções que o Orvil, no
entender de seus redatores e do comando do Exército, deveria
234
desempenhar depois de publicado. Rüsen (2009, p. 187) coloca que os
estudos históricos se fazem sob um compromisso com um determinado
“discurso político da memória coletiva”, o que faz da narrativa histórica
um instrumento de luta por poder e reconhecimento. Neste aspecto, “o
pensamento histórico funciona como um meio necessário para a
legitimação ou deslegitimação de todas as formas de dominação e
governo.”
Em nossa visão, esse objetivo de legitimação se concretiza, no
Orvil, em duas dimensões: uma externa, dirigida à sociedade em geral,
e outra interna, visando especificamente “os jovens oficiais e praças”
(Apreciação, pp. 1-2).
No primeiro caso, é necessário lembrar que a transição brasileira
se deu sem que houvesse uma ruptura com o poder das Forças
Armadas sobre as instituições, conforme já demonstramos em outro
trabalho (Teixeira, 2013, p. 60). Ao planejar e por em prática o processo
de “redemocratização”, os comandantes militares pretendiam retirar-se
dos postos de poder mantendo o papel efetivo das Forças Armadas
como instância decisória, e sem permitir que emergisse um quadro
político que desse lugar a movimentos sociais autônomos e atuantes,
considerados pelo CIE como mecanismo dos comunistas na luta pela
tomada do poder (Orvil, pp. 876-7).
Com efeito, o Orvil, falando já sobre o seu presente (1985-1988),
considerava admissível apenas a oposição que se fizesse de forma “leal
às instituições”, ou seja, aquela que se submetesse ao ordenamento
legal imposto pela ditadura nas décadas anteriores. O livro sugere,
inclusive, que a “esquerda” não faria parte da “oposição legal”, uma vez
que procurava “confundir-se” com ela (Orvil, p. 86; Teixeira, 2013, p. 71).
Tal modelo de transição demandava que se legitimasse o golpe
de 1964 e o regime por ele instaurado. Ora, esta legitimação ficava
comprometida com a avalanche de denúncias de violações de direitos
humanos praticadas pelas Forças Armadas, da qual o Brasil: Nunca Mais
era o ápice. O Orvil entrava nesta luta ao negar in totum aquelas
denúncias e atribuí-las a uma “quarta tentativa” de tomada do poder
235
pelas organizações comunistas.
Em relação ao público interno, a preocupação dos redatores do
Orvil se manifesta não só na Apreciação, citada acima, mas também no
próprio texto do livro. Para eles, a campanha de “difamação” dos
militares, empreendida pelas entidades de defesa dos Direitos Humanos,
atingiu tal volume que “as mensagens das esquerdas passaram a ser
aceitas até por boa parte do público interno, que passou a ver os que
lutavam contra a subversão como os responsáveis pelo desgaste da
própria Instituição perante a opinião pública” (Orvil, p. 457).
O CIE parecia temer pela preservação das doutrinas de
“Segurança Nacional” e de “Guerra Revolucionária”, que haviam
norteado a formação de oficiais nas décadas anteriores e ainda
continuavam a fazê-lo nos anos 1980.
Ao propor o contra-ataque contra as denúncias da esquerda, os
oficiais da comunidade de segurança pretendiam, supomos, demonstrar
aos futuros comandantes a necessidade de manutenção daqueles
pressupostos, o que explica a insistência em apontar o caráter deletério
da ação comunista mesmo no presente, bem como o fato de o Orvil
considerar a quarta tentativa de tomada do poder como a “mais
perigosa”.
Os objetivos políticos da elaboração do Orvil, que detalhamos
nesta seção, evidenciam que a obra não se tratava apenas de uma
releitura do passado. Ao contrário, este passado, aqui, aparece como
objeto de disputa não em si mesmo, e sim como arma em uma luta
política que tinha como objetivo-fim o controle do presente e do futuro.
Considerações finais
Proporemos agora, a partir da análise do Orvil, algumas
considerações acerca da cultura histórica predominante entre a alta
oficialidade brasileira nos anos da transição, e tentar deduzir, a partir daí,
elementos que permitam caracterizar uma identidade política partilhada
por uma elite que, naquele período, ocupava posições do mais alto
236
relevo em termos de poder decisório.
Para Rüsen (2009, p. 172), a cultura histórica é uma realidade
multidimensional, na qual se manifestam concretamente “o trabalho
interpretativo da consciência histórica e seu produto, a estrutura cognitiva
chamada 'história'”. Ele identifica, na formação desta cultura três
dimensões básicas que, a nosso ver, podem ser verificadas no Orvil.
A primeira delas é a dimensão política, que se relaciona com as
relações de poder e a legitimação de uma determinada ordem, que
passam a ser inscritas na própria identidade do sujeito que narra. Em
nosso objeto, este aspecto aparece na naturalização de ideal de
sociedade, baseado na ausência de antagonismo entre as classes e na
ideia da existência de um “povo” único, que englobaria “todos os
componentes de uma nação, independente de sua condição social,
política ou econômica” (Orvil, p. 876), e de grupos “naturalmente
hierarquizados” (ibidem) na sociedade. Partindo dessas visões, todo
movimento social independente seria deletério, pois traria divisões a um
todo “naturalmente” coeso e harmônico, justificando, assim, a reação do
Estado contra esse movimento.
A segunda dimensão é a estética, relativa à “eficácia psicológica
das interpretações históricas, ou com a parte de seus conteúdos que
afetam os sentidos humanos” (Rüsen, 2009, p. 172). O Orvil, em sua maior
parte, opta pela formalidade neste aspecto: como vimos, ora adota um
estilo frio e professoral, ora parte para sentimentalismo solene e
cerimonioso. Em ambos os caminhos, ressalta-se a distância entre
narradores
e
leitores,
sendo
que
destes
últimos
se
espera,
aparentemente, docilidade e aceitação perante aos ensinamentos dos
primeiros.
Por fim, Rüsen (idem, p. 173) nos fala da dimensão cognitiva da
cultura histórica, aquela que trabalha com “os eventos passados
significativos para o presente e seu futuro”. Aqui, como já ressaltamos, os
autores do Orvil se mostram apegados àquilo que o autor alemão
chama de “concepção hermenêutica” (Rüsen, 2010, p. 136) da história,
na qual “as intenções individuais se encaixam sem rupturas, ou ao
237
menos se associam.
A representação histórica de continuidade, que
garante sentido, perpassa o direcionamento intencional das ações
humanas atuais”. Conforme demonstramos, o relato construído pelo CIE,
além do enfoque cronológico que supõe uma continuidade linear na
ação comunista, privilegia as intenções dos indivíduos como fator
decisivo
da
história,
despreza
a
atuação
das
coletividades
e,
frequentemente, apela ao maniqueísmo como forma de distinguir os
atores históricos em foco.
Revela-se, assim, nas páginas do Orvil, uma cultura histórica
voluntarista, formalista e individualista, que lança luz sobre uma
identidade política mais ampla, que, em nosso entender, caracteriza não
só os autores do relato do CIE, mas também e principalmente a parcela
hegemônica da alta oficialidade brasileira durante a transição. Fazemos
essa generalização baseados no caráter oficial da obra, já discutido na
introdução.
Nesta identidade, três características nos chamam a atenção. A
primeira delas é o militarismo, aqui entendido como a defesa do
“controle dos militares sobre os civis e a sistemática vitória das instâncias
dos primeiros sobre os segundos” (Pasquino, 1998, p. 749). A apologia da
intervenção militar em 1964 e da tutela exercida pelas forças armadas
sobre a sociedade demonstra que, na visão do CIE, a sociedade civil
não era capaz de defender-se, por si só, de “ameaças” como o
comunismo. No esquema maniqueísta imaginado pelos autores do livro,
os militares representam o “bem”, a estabilidade, a segurança, um porto
seguro indispensável à tranquilidade dos civis.
Uma segunda característica política sugerida pela cultura histórica
do Orvil é o autoritarismo, ou seja, a negação da igualdade entre os
homens e a defesa do princípio hierárquico, como define Stoppino (1998,
p. 94). Desta postura ideológica derivaria, em nosso entendimento, a
opção por construir a versão das Forças Armadas sem a preocupação
de informar as fontes utilizadas, e muito menos de oferecer ao leitor a
possibilidade de verificação da veracidade do que estava escrito;
aparentemente, os redatores creem que sua condição de “autoridade”
238
é suficiente para que suas palavras sejam aceitas pelo público leitor.
Por fim, há que se ressaltar o elitismo, tomado na acepção de
“teoria segundo a qual, em toda sociedade, existe, sempre e apenas,
uma minoria que, por várias formas, é detentora do poder, em
contraposição a uma maioria que dele está privada” (Bobbio, 1998, p.
385). No Orvil, o relevo dado à ação individual, sobretudo a dos líderes
políticos e militares, e a pouca consideração à ação coletiva dos setores
populares, revelam uma concepção em que a história é feita pelas
elites, cabendo ao restante da população apenas aceitar estes
caminhos e desempenhar o papel que lhe for destinado pelos grandes
artífices do processo histórico.
Esta identidade política, partilhada pelos comandantes militares
brasileiros no momento histórico em que se construía a “Nova
República”, expõe um sério entrave colocado, já naquele momento, ao
desenvolvimento da democracia no país. As Forças Armadas, que
constituíam uma das principais instâncias decisórias (se não a principal)
daquele momento, mostravam-se refratárias a um modelo de transição
que permitisse a abertura de rumos político-sociais essencialmente
diferentes daqueles trilhados pelo país após 1964.
Na
busca
de
impedir
que
isso
acontecesse,
os
militares
mobilizaram a história, resultando na elaboração do Orvil. Porém, não
bastava trazer o passado à tona: era preciso “pô-lo em forma”, fazê-lo
marchar em ordem unida, sem contradições, ambiguidades ou lacunas,
mesmo que, para tanto, fosse necessário ignorar e omitir elementos
conhecidos pelos autores do relato, como as violações de direitos
humanos praticadas pela repressão. Foi este o exercício praticado pelo
Centro de Informações do Exército entre 1985 e 1988.
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242
O MÁGICO DE OZ:
A INFLUÊNCIA DOS MITOS E ALEGORIAS NA CONSTRUÇÃO DO
PENSAMENTO POLÍTICO E CULTURAL DA MODERNIDADE
Stéfany Sidô Ventura 1
Introdução
A literatura é responsável pelo cumprimento de uma importante
função social, pois expressa, reaviva, cria e recria mitos, estórias, histórias
que alimentam padrões culturais, sociais e políticos influenciando os
modos de presença do poder e da resistência. O Mágico de Oz foi
escritor em 1900 por L. Frank Baum. Inicialmente voltado para o
segmento infanto-juvenil o livro acabou se tornando um clássico literário.
L. Frank Baum - norte-americano - (1856-1919) durante sua vida foi
roteirista, escritor, editor, ator, produtor de cinema e dedicou-se a doutrina
filosófica da Teosofia. Para além de “O Mágico de Oz” produziu 13 livros
sobre a saga de Dorothy e seus companheiros (Espantalho, Homem de
Lata e o Leão Covarde).
A mais famosa obra de Baum alcançou reconhecimento mundial,
popularizou-se e ultrapassou as expectativas de público por seu caráter
fantástico e maravilhoso que integra elementos da magia, da ordem da
natureza, bruxos, territórios e populações sobrenaturais e extraordinárias.
Narrativas e obras literárias com este teor são produzidas e frutificadas ao
longo dos séculos. De acordo com a perspectiva de Bettelheim (1979),
um conto clássico inicia-se com uma situação mundana que contem
algum problema e logo após entra em um mundo com situações
fantásticas
nas
quais
os
acontecimentos
têm
fortes
significados
simbólicos. Neste sentido, o Mágico de OZ contempla este tipo de
narrativa.
A respeito disto Jacques Le Goff (2009) demonstra em seu livro
“Histórias e Maravilhas da Idade Média” como este mundo fantástico e
maravilhoso que integra elementos da magia, da ordem da natureza,
1
Graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais. Email:
[email protected]
243
bruxos, territórios e populações sobrenaturais e extraordinários.
O domínio do maravilhoso é a estupefação dos homens e
mulheres da Idade Média. Ele suscita o maravilhamento e
depende do mais bem exercitado e exaltado sentido do
homem medieval: a visão. O maravilhoso fazia os olhos dos
homens e mulheres da Idade Média arregalarem-se ao
mesmo tempo em que estimulava o intelecto deles. (LE GOFF,
2009,p. 24)
A partir da revisão bibliografia de demais trabalhos produzidos
sobre o Mágico de Oz (Littlefield, 1964; Martins, 2008) e principalmente
seguindo os estudos produzidos sobre as raízes medievais (LE GOFF, 2007;
2009; SOARES, 2012; BLOCH, 1993) proponho-me a refletir sobre a
iconografia, lendas, mitos o simbolismo dispostos tão fortemente na obra
de Baum. Em uma análise do texto e contexto o esforço será no sentido
de revelar como o Mágico de Oz remonta as origens, certas formas de
poder, resistência e formação de comportamentos e pensamentos
sociais e políticos presentes no cotidiano.
UMA ANÁLISE POLÍTICA PARA SE CONTEXTUALIZAR “O MÁGICO DE OZ”
Em 1964, Henry Littlefield publica o artigo “The Wizard of Oz: Parable
on Populism” apresentando a alegoria da história contada em o
“Mágico de OZ” com a realidade política e a crise econômica vivida
pelos Estados Unidos e a Guerra Civil no final do século XIX. Neste sentido,
alguns elementos do livro podem ser analisados, como por exemplo:
Tem-se o Kansas descrito como um estado cinza, cujo os moradores não
tinham perspectivas, um estado a parte das idéias de desenvolvimento,
progresso e industrialização que era tão prezadas na época.
Quando Dorothy ficava na porta e olhava ao redor, ela não
podia ver nada além da grande pradaria cinza dos dois lados.
Nada de árvores ou casas interrompia o amplo espaço de
campo liso que se estendia até o horizonte em todas as
direções. O sol havia torrado a terra arada, transformando-a
numa massa cinza com pequenas rachaduras. Até a grama já
não era mais verde, porque o sol queimara a ponta de suas
longas folhas até ganharem a mesma cor de todo o resto. A
casa já tinha sido pintada, certa vez, mas o sol descascou a
tinta e as chuvas a levaram embora, e agora a casa estava tão
sem graça e sem cor como tudo à sua volta. (BAUM, 2011, p. 12).
244
O Kansas é, de acordo com a interpretação de Littlefield, um
estado primordialmente agrário com forte apoio ao Partido Populista
(partido hegemonicamente composto por fazendeiros). Uma das pautas
do Partido era a implantação do padrão bi metálico. Este bi metalismo
(este padrão consistia na utilização do ouro e prata estabelecendo
regras e preços de troca igual para ambos. Sendo assim, a circulação
de dinheiro – papel-moeda – podia ser convertido para os dois metais).
Isto aparece nas análises de Littlefield quando Dorothy, de posse dos
sapatos de prata da Bruxa Má do Oeste, representação do poder
bancário e especulativo, segue o caminho da estrada de tijolos
amarelos (ouro). Os sapatos, durante o percurso da narrativa, têm seu
grande poder oculto, fazendo-se conhecer somente ao final quando,
são eles o grande trunfo para que Dorothy regresse a casa.
Dorothy, com seu fiel cachorrinho Totó, seria a representação do
americano comum. Ela seria o ideal: corajosa, equilibrada, sóbria e com
um individualismo “saudável” que a torna persistente e focada.
Dorothy não disse nada, porque não estava certa sobre qual
dos dois amigos estava certo, e ela decidiu que, se pudesse
voltar para Kansas e para a tia Em, não importaria se o Homem
de Lata ainda não tivesse um cérebro e o Espantalho não
tivesse coração, ou que cada um conseguisse o que queria.
O que mais preocupava é que o pão estava quase acabando,
e outra refeição para ela e Totó iria esvaziar o cesto. Com
certeza, nem o Homem de Lata nem o Espantalho comiam
nada, mas ela não era feita de lata ou palha, e não poderia
sobreviver sem comer. ( BAUM, 2011, p. 47).
Os parceiros de viagem de Dorothy são também apresentados na
interpretação de Littlefield. O Espantalho seria a representação do
homem do campo, que é considerado sem cérebro, pobre, desgastado,
mas que ao longo do livro, mostra-se essencial para resolver as
diversidades que se apresentam.
Dorothy apoiou o queixo na mão e olhou pensativamente para
o Espantalho. Sua cabeça era um saco pequeno cheio de
palha , com olhos nariz e boca pintados nele para representar
um rosto. Um velho chapéu pontudo, que pertencera a algum
Munchkin, estava enfiado em sua cabeça, e o resto da figura
era um terno azul, puído e desbotado, que também fora
recheado de palha. Aos pés havia botas velhas com faixas
245
azuis, assim como as que todos os homens usavam naquela
região, e a figura estava erguida acima das fileiras de milho
pelo poleiro presa em suas costas. (BAUM, 2011, p.31).
Considerando esta interpretação, um elemento bastante intrigante
na narrativa são as vestimentas do Espantalho. A noção de espantalho
segundo a visão de Freitas (2009) no trabalho intitulado “Espantalhos:
uma metáfora dos sujeitos” é:
Ele não encena, não move, não conta história alguma. Ele está
lá, feito um cristo que morreu, e por um breve tempo, aparenta
tudo ter capitulado. A começar pelo nome, a primeira
evocação é a do espantalho, um espanto extenso, espant-a-lho.
Sua situação indica solidão, abandono, mudez, resíduo total.
(FREITAS, 2009, p.08)
O Homem de Lata é a imagem do proletariado industrial, que
perdem seus sentimentos (a capacidade de amar) por trabalharem
excessivamente nas indústrias.
Foi uma sorte terem esse novo companheiro, porque logo que
começaram a jornada chegaram a um lugar onde as árvores
e galhos estavam tão grossos sobre a estrada que não era
possível passar. Mas o Homem de Lata começou a trabalhar
com seu machado. E trabalhou tão bem que logo abriu
passagem para todos eles. (BAUM, 2011, p.44).
O Leão representaria a William Jennings Bryan (Partido Populista)
que candidatou-se cinco vezes a presidência e mesmo com toda sua
eloqüência e persuasão não foi capaz de ser eleito, dado que não
mostrava o mesmo entusiasmo durante o período eleitoral. Havia
grandes apostas políticas sobre ele, mas, não se concretizaram. A
representação de Bryan na figura do Leão Covarde seria uma espécie
de sátira e alegoria ao próprio Partido Comunista Americano, que fazia
muito barulho com baixa efetividade eleitoral.
Acho que nasci assim. Todos os outros animais na floresta
naturalmente esperam que eu seja corajoso, porque Leão é
visto por todos como O Rei dos Animais. Aprendi que, se eu
rosnar bem alto, qualquer ser vivo se assusta e sai do meu
caminho. Sempre que encontro um homem, fico morrendo de
medo; mas, apenas rujo, e ele corre o mais rápido que pode.
Se os elefantes, os tigres e os ursos tentarem me enfrentar, eu é
quem devo fugir. Sou um baita covarde. (BAUM, 2011, p.51).
A decomposição, que acaba de ser feita, da obra de Littlefield
serve como subsidio constitutivo e elucidativo da relação entre literatura,
246
cultura e política. Littlefield constrói bons argumentos a fim de explicitar o
cunho político presente na obra. Observa como a cultura da época está
nitidamente presente na obra (mesmo esta sendo uma alegoria
fantástica, ocorrida em um mundo paralelo) e, principalmente, aponta
para a importância e o vigor da literatura. Há uma indissolúvel relação
entre literatura e sociedade como podemos observar na obra de Jean
Yves Tadié (1992):
A sociedade existe antes da obra, porque o escritor está
condicionado por ela, reflete-a, exprime-a, procura transformála; existe na obra, na qual nos deparamos com seu rastro e sua
descrição; existe depois da obra, porque há uma sociologia da
leitura, do público, que, ele também, promove a literatura, dos
estudos estatísticos à teoria da recepção. (TADIÉ, 1992, p. 163)
A literatura é social. O escritor está impregnado com seus registros
sociais, culturais, seus sentimentos e vivencias. A literatura constitui-se de
uma retroalimentação: por um lado ela é a expressão do vivido,
experimentado e do desejo e por outro ela pode cumprir diferentes
funções como de manutenção, resistência, poder e criação. Através da
literatura podemos reconhecer papeis e tensões sociais, as tônicas e as
considerações de determinados assuntos.
Enquanto ser social, o autor exprime idéias e noções, estas podem
ser reformistas, conservadoras, religiosas, etc., que não são inatas, mas,
sim construídas. A cultura pode ser observada aí. Estas construções de
sentido, símbolos e imagens são sociais. Na visão de Antonio Candido
Uma tríade indissolúvel. O público dá sentido e realidade à obra,
e sem ele o autor não se realiza, pois ele é de certo modo o
espelho que reflete a sua imagem enquanto criador. Os artistas
incompreendidos, ou desconhecidos em seu tempo, passam
realmente a viver quando a posteridade define afinal o seu valor.
Deste modo, o público é fator de ligação entre o autor e a sua
própria obra. A obra, por sua vez, vincula o autor ao público, pois
o interesse deste é inicialmente por ela, só se estendendo à
personalidade que a produziu depois de estabelecido aquele
contacto indispensável. Assim, à série autor-público-obra, junta-se
outra: autor-obra-público. Mas o autor, do seu lado, é
intermediário entre a obra, que criou, e o público, a que se dirige;
é o agente que desencadeia o processo, definindo uma terceira
série interativa: obra-autor-público. (CANDIDO, 1985, p. 38)
Neste sentido, podemos dizer que o autor nunca está só. Ele não
escreve, somente, para a sociedade ele é parte integrante e fala por
247
crenças, segmentos e grupos contidos nela.
IDEIAS RESISTENTES
Para se pensar as ideias resistentes presentes na obra de Frank
Baum, O Mágico de Oz, é importante tornar a noção de representação
coletiva construída por Émile Durkheim como um dos marcos explicativos
teóricos do trabalho. Essas representações coletivas são como funções
sociais que categorizam o pensamento e o conhecimento socialmente
produzidos.
O conjunto de crenças e sentimentos comuns à média dos
membros de uma mesma sociedade forma um sistema
determinado, que tem sua vida própria; pode-se chamá-lo de
consciência coletiva ou comum. Sem dúvida, ela não tem por
substrato um órgão único; ela está, por definição, difusa em
toda extensão da sociedade. [...] Com efeito, ela é
independente das condições particulares onde os indivíduos se
encontram; eles passam e ela continua. [...] Ela é o tipo psíquico
da sociedade, tipo que tem suas propriedades, suas condições
de existência, seu modo de desenvolvimento, assim como os
tipos individuais ainda que de outra maneira. [...] As funções
jurídicas, governamentais, científicas, industriais, em uma
palavra, todas as funções especiais são de ordem psíquica,
uma vez que elas consistem em sistemas de representações e
de ações: contudo elas estão evidentemente fora da
consciência comum. (DURKHEIM, 1978, p. 41)
Essas representações coletivas são frequentemente encenadas na
literatura, potencializando assim, seu caráter duradouro e difuso. De certa
forma, são essas representações coletivas que dão forma a estrutura, a
mágica e mística da obra de Frank Baum. A dicotomia entre civilização e
magia, a imagem arquetípica que se faz de personagens como os
heróis, as bruxas, os monstros acompanham nosso imaginário mítico e
imagético desde a Idade Média.
As chamadas “ideias resistentes” são aqueles que resistem ao
tempo, sendo vividas e recriadas por lendas, contas, histórias e estórias.
Ideias que habitam, dão sentido e ordenação ao nosso imaginário, ao
fantástico e ao fabuloso. Mas, para, além disto, estas ideias incorporam
padrões de poder, resistência, qualidades e defeitos. Ao imaginarmos
uma bruxa, um herói ou um mostro somos impelidos sobre o que
podemos esperar de suas virtudes, suas posturas e suas aparências.
248
Mas, de onde surgem essas construções?
Proponho-me a recorrer a certas origens a fim de elucidar como
chegamos a estes arquétipos (que enquanto culturais não são estáticos),
mas, são importantes fontes para se pensar a
política, a cultura e a
sociedade de hoje através de expressões do passado.
CIVILIZAÇÃO VERSUS MAGIA
Dorothy – deixada pelo ciclone naquele desconhecido lugar conta a Bruxa Boa do Norte, que vinha do Kansas. A Bruxa, confusa, diz
estranhar o tal lugar que de onde a menina alegara vir. Neste trecho a
Bruxa Boa apresenta um questionamento a Dorothy:
- Não sei onde fica o Kansas, porque nunca ouvi falar nesse país
antes. Mas, me diga, é um país civilizado?
- Ah, é sim – respondeu Dorothy.
- Então está tudo explicado. Nos países civilizados eu creio que
não existam mais bruxas, nem magos, nem feiticeiras e
mágicos. Mas, veja só, a Terra de Oz nunca foi civilizada, porque
estamos separados do restante do mundo. Por isso ainda há
bruxas e mágicos entre nós. (BAUM, 2011, p. 20).
Com processo de racionalização, a partir da Modernidade, magia,
religião e ciência são assumidas com novas posturas pela sociedade.
Para Weber
A magia representa o momento anterior da religião, com nítida
afinidade eletiva com o estágio “animista” de uma
humanidade imersa num mundo cheio de espíritos, nem
essencialmente bons, nem essencialmente maus, apenas
capazes de influir de maneira favorável ou não na vida
humana, habitando de maneira invisível um universo não dual
(WEBER, 2004, p. 69).
O processo explicativo e de construção de ideias começa a transitar por
outras formas, que não as mágicas, desencadeando a mudança no
modus vivendi. O pensamento mágico foi a primeira resposta aos
diversos questionamentos vividos cotidianamente pelos homens, era ele
a explicação, a razão e a resolução.
Este pensamento “primário” tinha base no maravilhoso, no
sobrenatural, no desconhecido e no fantástico associado aos elementos
regulares como a natureza e seus fenômenos (como espíritos dos
249
animais, das plantas, dos antepassados, lugares mágicos, pessoas com
poderes extraordinários que sabiam fazer a manipulação de porção
para diversos fins, ideia de florestas que tomam a vida remonta a lendas
celtas e medievais. Acreditava-se que as árvores possuíam espíritos, por
isso, eram capazes de se expressar, mover-se, sentir dor e, em alguns
casos, até conversar).
Segundo Weber, a partir da Modernidade o pensamento mágico
é substituído por um pensamento mais pragmático, empírico dotado de
um caráter cientifico explicativo. Esse pensamento “racional” inicia uma
nova forma de apreender o mundo e neste universo o pensamento
mágico ganha um caráter mitológico.
Monstros
Em O Mágico de Oz há diversas representações de seres
fantásticos por vezes com feições humanas ou animalescas como os
Kalidahs que eram “feras monstruosas com corpo de urso e cabeça de
tigre”. De acordo com a visão de Soares:
O mostro é a caricatura que mostra e assim, como o portento e
o prodígio, expõe um sinal ou aviso. É uma figura de
advertência. Seu exagero, tamanho ou estranheza garantem
um senso de urgência a sua interpretação. (SOARES, 2012, p.189).
A ideia da monstruosidade está intimamente ligada a definições
medievais onde “as figuras monstruosas apresentavam-se como
construções compósitas, em que cada elemento trazia uma nova
camada de sentidos possíveis e ampliavam seu sentido alegórico.”
(SOARES, 2012, p. 188).
Nos relatos das primeiras grandes navegações havia o constante
medo do encontro das embarcações com monstros que viviam nas
águas desconhecidas. Os monstros são uma espécie de materialização
das situações de incerteza, da busca de aventura. Estão normalmente
associados à transgressão de limites num momento de dubiedade. Na
obra de F. Baum os monstros também devem ser entendidos neste
sentido.O próprio Oz se apresenta de formas que desafiam as noções
dos viajantes.
250
(...) os monstros desempenham, reconhecidamente, um papel
político como mantenedor de regras sociais. Grupos sociais
precisam de fronteiras para manter seus membros unidos
dentro delas e proteger-se contra os inimigos fora delas. (...) As
fronteiras existem para manter medida e ordem; qualquer
transgressão desses limites causa desconforto (...). O mostro é um
estratagema para rotular tudo que infringe esses limites culturais.
(JEHA, 1996, p.07)
Quando Dorothy o viu pela primeira vez, ele era “enorme cabeça,
sem corpo para sustentá-la ou qualquer braço ou perna. Não havia
cabelo na cabeça, mas ela tinha olhos, nariz e boca, e era muito maior
que a cabeça do maior dos gigantes” (BAUM, 2011, p. 93). Para o
Espantalho mostrou-se de “vestido transparente de seda verde e usava
sobre os cachos verdes uma coroa de esmeraldas. Cresciam asas de
seus ombros, de uma cor linda e tão leves que flutuavam o menor sopro
do ar” (BAUM, 2011, p. 95). Para o Homem de Lata Oz se apresentou como
uma fera terrível “havia cinco braços longos saindo de seu corpo, e também
cinco pernas finas e compridas. Um pelo logo enrolado cobria cada parte do
seu corpo; não se podia imaginar um monstro mais medonho” (BAUM, 2011, p.
97) e para o Leão Covarde viu que “havia uma bola de fogo, tão quente e
brilhante que ele mal podia aguentar olhar”.
Os principais personagens da saga, Dorothy, Homem de Lata,
Leão Covarde e o Espantalho, estavam em uma situação de hesitações
e dúvida. A cada etapa de seu caminho, rumo ao incerto para alcançar
seus desejos, os aventureiros se deparam com mundos, criaturas, avisos
e provações desconhecidos.
O herói
De acordo com a visão de Jacques Le Goff (2009):
O termo “herói”, que na Antiguidade designava uma
personagem fora do comum em função de sua coragem e
vitórias sem que por isso ela pertencesse às categorias
superiores dos deuses ou semideuses, desapareceu da cultura
e da linguagem com a Idade Média e o Cristianismo no
Ocidente. Os homens a partir de então eram considerados
como heróis – sem que este termo fosse empregado – eram
um novo tipo de homem, o santo, e um tipo de governante,
promovido ao primeiro plano, o rei. (...) Os heróis de que se trata
aqui são personagens de alto posto ou nível elevado que se
definem não como santos e reis, mas de outra forma. O termo
da linguagem medieval que mais se aproxima em francês
251
antigo do que pretendo designar aqui é o adjetivo preux
(corajoso, valente), que, no final do século XII, passa a ser
substantivo. No século XII, o termo de onde vem a palavra
prouesse (proeza) era associado ao valor guerreiro e à
coragem, a na maior parte das vezes designava um homem
destemido, um bom cavalheiro. No século XIII, ele modificou-se
adotando principalmente o sentido cortês, gentil, belo, franco. (LE
GOFF, 2009, p.15)
A autora Anna Faedrich Martins (2008) constrói em seu artigo “O percurso
heroico de Dorothy” argumentos demonstrando como Dorothy pode ser
tida com a representação de personagem heroico:
A trajetória heroica a ser analisada é aquela que Dorothy
percorre em O Mágico de Oz. A intenção é observar como se
dá o ritual da passagem da heroína, que passa por uma
situação de iniciação – do não conhecer ao conhecer - , uma
vez que Dorothy sai de uma condição inicial, passa por uma
experiência e chega a outra condição. Através dessa jornada
heroica, ela se conhece e se fortalece, pois a trajetória é, ao
mesmo tempo, externa e interna. O movimento interno é a
busca de si mesmo, e o movimento externo é uma descoberta
do mundo. Ao descobrir a si própria e mudar o seu interior, ela
muda a sociedade, o mundo exterior. Através do exercício de
seu caminho, ela ajuda a coletividade (...). (MARTINS, 2008 ,p. 176).
Entre as aventuras relatadas na estória O Mágico de OZ encontrase algumas atitudes e posturas da protagonista Dorothy que contrariam
os princípios do herói e tendem ao do anti-heroísmo. Seu único objetivo
na narrativa era voltar para sua casa no Kansas. As benesses
alcançadas pelos demais personagens do enredo foram alcançadas,
na grande parte das vezes, por mero acaso ou por méritos inerentes a
cada um e não devido ao altruísmo da garotinha.
Dorothy mostra-se muito mais preocupada e abalada quando
algo se interpõe entre ela e seu caminho de regresso para casa. No
capitulo em que Dorothy e seus companheiros fora encontrados pelos
Macacos Alados a mando da Bruxa Má e estes “destroem” o Homem
de Lata e o Espantalho causando a disjunção do grupo, Dorothy inicia
sua vida de trabalhos no castelo da bruxa a única coisa que é relatado
a respeito da tristeza que sentia era motivada “porque ela percebeu que
seria mais difícil do que nunca voltar para o Kansas e para tia Em”
(BAUM, 2011, p. 111). Outro interessante ponto da narrativa, encontra-se no
capítulo “plantação mortal de papoulas” onde o grupo atravessa um rio
com uma jangada, mas ,neste percurso o Espantalho prende-se e se
252
perde no rio. Dorothy e seus amigos seguem o caminho até que
eventualmente reencontram o Espantalho.
(...) Dorothy só parou uma vez para pegar uma linda flor. Depois
de um tempinho, o Homem de Lata gritou:
-Olhem!
Todos olharam para o rio e viram o Espantalho empoleirado na
vara, no meio da água, com uma cara muito triste e solitária.
-O que podemos fazer para salvá-lo? Perguntou Dorothy. (BAUM,
2011, p. 69)
Neste sentido, Dorothy não representa o imaginário do herói
altruísta , tipicamente guiado pelos idéias de justiça, .liberdade, coragem
e sacrifício. Esta tem sua construção mais aproximada do anti-heroísmo
que apresenta falhas e qualidades durante seu percurso, buscando,
primordialmente beneficio próprio.
O Trono
Outro ponto profícuo é a discussão sobre a imagética e a
iconografia que circundam o “trono”. O trono é utilizado desde a Grécia
Antiga como símbolo de poder real. Na Idade Média, de acordo com os
estudos de Marc Bloch (1993) e Ernst Kantorowicz (1998) a imagem
(imago) tinha uma utilização prática e hierárquica. Era utilizada como
instrumento de dominação e reafirmação do poder (divino, monástico e
político). O poder divino e político se confluíam na figura do Rei.
É um fato que a representação imagética dos monarcas na
Idade Média em sua grande maioria, e principalmente após a
coroação de Carlos Magno, foi investida de um caráter divino.
De fato, sabemos que a maior parte – quase totalidade – da
produção iconográfica do período possui como foco principal
elementos religiosos. (KLANOVICZ; RODRIGUES; ANDRADE, 2009, p.
138).
De acordo com Le Goff (2007), os reis, durante todo o período
medieval, construíram para si um forte apelo ao reconhecimento de seu
caráter sagrado e religioso. A iconografia, utilizada em imagens em
afrescos, tapeçarias e quadros para a representação do rei, em seu
trono, confunde-se com a própria representação do Trono de Deus.
Em O Mágico de Oz, o Grande Oz aparece em seu trono que
253
“tinha a forma de uma cadeira, pontilhado com pedras preciosas”
(BAUM, 2011, p. 93), assim como um rei medieval, associado àquele que e
á habilidoso, poderoso, que possui bondade, mas, que também pode
ser terrível (associação com o Deus cristão).
A bruxa
Para se pensar “a bruxa” tão presente na literatura e no imaginário
infantil devemos nos remeter as chamadas bruxas da Idade Média. No
medievo a mulher era subjugada ao marido e aos filhos. Havia por
parte da Igreja a constante desconfiança sobre elas, pois, não mais
sujeitas ao pecado que os homens e também os encaminhava a pecar
com suas artimanhas. As mulheres, portanto, vivam passivas, no domínio
da casa, sempre guiada por um homem para se manterem corretas.
As mulheres desafortunadas que perdiam seus maridos ou não se
casavam passavam grandes dificuldades (sociais e financeiras, pois,
eram deixadas a margem). Muitas delas, para desviar-se da pobreza,
dedicavam à manipulação das plantas com fins medicinais e a benzer
e rezar para quem as procurasse.
Essas mulheres subvertiam a lógica da moral cristã, social e
cultural. Sobreviviam sem a presença de um homem (marido ou filhos),
sustentava-se
sem
eles,
possuíam
grande
autonomia
e
ainda
praticavam uma sub cultura católica (que logo foi associada ao
paganismo que era fortemente condenado) com suas rezas e bênçãos.
Cresceu no imaginário popular uma série de superstições que
implicavam que esta mulher “errante” fosse tratada como bruxa e era a
personificação do mau.
A bruxa na literatura está normalmente associada à escravidão e
servidão de pessoas ou de todo um povo. Isto porque a Igreja e a
sociedade entendiam que havia um grande poder de influência
maléfica destas mulheres, unidas ao Satã, sobre as pessoas. Esse poder
conduziria ao erro, submissão, subordinação e ao cativeiro.
A “caça as bruxas” produzida pela Igreja católica tinha como
intenção purgar a alma dessas mulheres que estavam entregues à
254
ambição e aos propósitos do demônio. Segundo Custódio (2012)
(...) é inegável que a posição da mulher na sociedade medieval
estava ligada a uma visão distorcida pela teologia, responsável
pela criação de um imaginário negativo, segundo o qual a
mulher teria inúmeras fraquezas físicas, morais e espirituais,
sendo responsável pela perdição do gênero humano desde o
princípio e contribuindo parar perpetuar o mal na sociedade.
(CUSTÓDIO, 2012, p. 21)
Para se encontrar essas mulheres que haviam feito pacto com o
Demônio procuravam sinais físicos como manchas, pintas e verrugas.
Estes seriam os símbolos deixados por Satã nas quais havia consumado
a união.
Na narrativa criada por Baum está presente esta idéia da mulher
má, que faz de um povo seus escravos, que tem objetivos perversos, que
possui uma aparência desagradável, que tenta enganar e tirar
vantagem das pessoas. Possui poderes e objetos mágicos que são
utilizados a fim de fazer valer suas vontades malevolentes.
Histórias e personagens maravilhosos
Na estória escrita por Baum os principais personagens da trama
têm desejos bastante específicos e enfrentam os desafio e perigos da
jornada com o
objetivo
de alcançá-los.
Fazendo
uma
analise
comparativa alegórica temos: o Espantalho em busca de seu cérebro
(inteligência, astúcia, raciocínio), o Homem de Lata em busca de um
coração (sentimentos, paixão, compaixão, emoção), o Leão covarde em
busca de coragem (bravura, valentia, audácia, poder) e Dorothy,
juntamente com Totó, desejam o lar, a casa (território, residência,
habitação, pátria). Cada um destes aspectos marca valores louváveis e
desejáveis desde o Medievo.
O esforço do Espantalho para achar seu cérebro, capaz de lhe dar
o intelecto que para ele é essencial, nos remete a Renart, o raposo.
Importante personagem dos contos e histórias medievais, Renart, é
encenado nas Fabulas de La Fontaine como esperto, capaz de criar
complexas estratégias a fim de satisfazer-se. De acordo do o historiador
Jacques Le Goff “no imaginário medieval e europeu, Renart representa
255
uma dimensão que os antigos gregos definiram com o nome de metis,
sem terem criado uma personagem que lhe fosse correspondente.” (LE
GOFF, 2009, p. 234).
O Homem de Lata perde seu coração e seu dom de amar por um
romance proibido, por restrições sociais e políticas, e acaba mal
sucedido. Voltar a se apaixonar e sentir prazer com as pequenas coisas
da vida é a motivação que o leva em busca da Cidade das Esmeraldas.
Na lenda de Tristão e Isolda, a princesa (Isolda) é prometida para o tio e
criador de Tristão, porém, o órfão e a filha da rainha da Irlanda bebem
erroneamente o filtro do amor e se apaixonam perdidamente. Os
amantes, então, são condenados a morte por este amor proibido.
O Mito de Tristão e Isolda marcou profundamente o imaginário
europeu: as imagens do casal e do amor foram muito
influenciadas por ele, o filtro tornou-se o símbolo do amor a
primeira vista e da fatalidade do amor, a história do trio
associou fortemente a paixão ao adultério e, por fim, o mito
enraizou no imaginário ocidental a ideia do laço fatal entre o
amor e a morte. (LE GOFF, 2009, p. 275)
Semelhante enredo percebe-se na obra de Romeu e Julieta de
Shakespeare.
A coragem tão desejada pelo Leão Covarde (que deveria ser o
Rei da Selva) apresenta na história de destemor e intrepidez de Robin
Hood. Em sua trama Robin Hood, Robin de Locksley, filho do Barão
Locksley, tem sua posição nobre revogada pelo sucessor de seu rei
enquanto estava em batalha nas Cruzadas. Ao voltar e perceber as
funestas mudanças ocorridas em sua terra natal ele torna-se “o defensor
dos pobres e oprimidos, o homem da floresta, de um bando” (LE GOFF,
2009, p.250). Semelhantemente, o Leão ao “adquirir” a coragem
desejada restaura a ordem em uma situação caótica ocorrida na selva,
com valentia e determinação, e assume para si o posto de nobreza que
lhe era de direito.
O forte desejo de regresso ao lar, expresso por Dorothy, pode ser
entendido como apego ao seu território, sua terra pátria e seus vínculos
familiares. Esse anseio do retorno, de um lugar desconhecido para casa,
fica bastante explícito em histórias sobre cavaleiros cruzados. Tomando
por exemplo a lenda do Rei Artur pode-se encontrar características e
256
traços, tanto de personalidade quanto de propósitos, presentes também
na personagem Dorothy. Artur era um líder astuto, um conquistador que
possuía ajuda de Merlin (o mago) e de artefatos mágicos a fim de
alcançar a vitórias nas batalhas, pois, só assim poderia regressar ao lar.
Segundo Le Goff “como todos os heróis, e em especial na Idade Média,
Artur está estritamente ligado a lugares. São lugares de batalhas, de
residência e de morte”. (LE GOFF, 2009, p.40).
Conclusão
Ao longo do trabalho buscou-se sacramentar a relação entre a
literatura, política e resistência através das representações coletivas ou na
visão de Hanciau (2009) do “mental coletivo”.
A literatura captará essa linguagem nos documentos e papéis,
vestígios (traces) que fixam a ortodoxia cristã e nos quais podem
ser encontradas as pegadas do universo mágico. Lembranças
de lugares comuns e todo um manancial das mais diversas
manifestações culturais constituem o “mental coletivo” de que se
fala, no qual devem ser buscadas as continuidades, as perdas,
as rupturas, enfim, a reprodução mental das sociedades.
(HANCIAU, 2009, p. 76)
Este mental coletivo é capaz de fazer construções sociais, culturais e
políticas. E sua característica mais importante é sua capacidade de ser
durável e, por vezes, se transmutar para a continuidade de uma crença
ou valor.
O imaginário transborda o território da representação e é
levado adiante pela fantasia, no sentido forte da palavra. O
imaginário constrói e alimenta lendas e mitos. Podemos defini-lo
como o sistema de quimeras de uma sociedade, de uma
civilização que transforma a realidade em visões ardentes do
intelecto. (LE GOFF, 2009, p. 12)
Os elementos da obra O Mágico de Oz trabalhados são as
expressões de “ideias resistentes”. Estas têm, normalmente, seu momento
de fundação na Idade Média na Europa. Período de grandes e
constantes guerras, das Cruzadas de “reconquista” à Terra Santa,
ascensão da influência da Igreja católica na rotina cultural, social e
política. Os territórios eram divididos em reinos, havendo a ausência de
um Estado central, estes reinos muitas vezes lutavam entre si para
conquista de poder e terras. As relações de suserania e vassalagem
257
garantiam não amigos, mas sim, aliados em busca de proteção e outros
benefícios mútuos. Valores como coragem, astucia, força, fé e disciplina
eram altamente desejados para a sobrevivência.
A
obra
mágico/fabuloso
de
Baum
popular.
é
construída
Seus
sob
principais
este
imaginário
personagens
têm
características e histórias bastante semelhantes aquelas constitutivas dos
romances, trovas e jograis medievais. Segundo Le Goff “a história do
imaginário permite atribuir à literatura medieval o seu lugar essencial na
cultura, mentalidade e ideologia da época, e mais ainda na sua
continuação através dos séculos.” (LE GOFF, 2009, p. 36)
A protagonista da obra, Dorothy, apresenta valores heróicos
medievais (um herói que é bom, mas, é humano e como tal tem
imperfeições e tendem, em certos momentos, ao anti-heroísmo). A bruxa
é a representação da “feiticeira” medieval que fisicamente dava indícios
de sua maldade e estava socialmente a margem da sociedade. Essas
mulheres, como dito, normalmente eram pobres, viúvas ou solteiras, que
moravam sozinhas, se sustentavam e viviam sem a presença de um
homem estando, desta forma, vulnerais aos intentos do Demônio.
Essas ideias resistem no imaginário popular até os dias de hoje. A
literatura tem a capacidade de expressar e reforçar essas ideias, ela
perpassa o tempo e é habilidosa para influenciar ao ponto de formar
“representações coletivas”. Estas podem se manifestar de diversas
formas, no estigma associado às mulheres com alguma deformidade
física, ou que não se casam e vivem sozinhas e reclusas, na forma do
machismo ao retratar a necessidade da presença de um homem para
estabilidade financeira e pessoal, assim por diante. Muitas destas ideias
falam da penetração da Igreja e do dogma cristão na vida social,
política e cultural.
As “ideias resistentes” venceram o tempo, associaram-se a
literatura e ao imaginário popular para influenciar várias gerações. Nos
relatos e histórias originais há grandes diferenças dos produzidos hoje,
pois, como a cultura não é estática produz novidades constantes sendo
a mutação algo inerente. Mas, o que nos é perene são as idéias
258
resistentes, as reminiscências do passado que ainda vivem.
REFERÊNCIAS
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BLOCH, Marc. Os Reis Taumaturgos: o caráter sobrenatural do poder régio,
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Disponível em: Anais do 17º Congresso de Leitura do Brasil COLE.
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2007.
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259
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Brasil. 1992.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do Capitalismo. São Paulo, Cia
das Letras, 2004.
260
AS REPRESENTAÇÕES DO 11 DE SETEMBRO E DAS POLÍTICAS
ANTITERRORISTAS NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS DA MARVEL
COMICS
Victor Callari 1
Introdução
Os atentados ocorridos na manhã do dia 11 de setembro de 2001
representaram
mais
do
que
a
morte
de
2.996
pessoas.
Eles
representaram um ataque à maior potência econômica do mundo, em
uma ação íntima que solapou a crença na hegemonia americana
alcançada desde o final da Guerra Fria e conhecida por Nova Ordem
Mundial, além de terem derrubado um dos maiores símbolos do
sistema capitalista e moldado o cenário das relações internacionais
durante a primeira década do novo milênio.
A magnitude e importância dos atentados foram percebidas por
inúmeros intelectuais, tal qual o cientista político português Vasco Rato
que afirmou: “As imagens de dois aviões chocando-se contras as Torres
Gêmeas de Manhattan na manhã de 11 de Setembro de 2001 tornarse-iam iconográficas, um dos mais marcantes símbolos da época
contemporânea” (RATO, 2011, p.85), ou como o historiador britânico Eric
Hobsbawm que, em entrevista concedida ao jornal Estado de São Paulo,
disse: “a queda das torres do World Trade Center foi certamente a mais
abrangente experiência de catástrofe que se tem na história, inclusive
por ter sido acompanhada em cada aparelho de televisão, nos dois
hemisférios do planeta”
2
. Aproximando-se do final do período Bush, o
professor de literatura inglesa da Queen’s University, apresentou um
1
Mestrando em História e Historiografia na Universidade Federal de São Paulo sob
orientação da professora Dra. Ana Lúcia Lana Nemi e professor de História e Linguagens
e História Contemporânea no curso de História do Centro Universitário das Faculdades
Metropolitanas Unidas (FMU). Contato: [email protected]
2
Eric Hobsbawm em entrevista concedida à jornalista Laura Greenhalg do jornal
“Estado de São Paulo” no dia 11 de setembro de 2011. Disponível em:
<http://m.estadao.com.br/noticias/suplementos,trocando-mitos-por-historia,771081.htm>
(acessado em 08/08/2012.).
261
preciso diagnóstico não apenas dos atentados, mas também de suas
consequências:
In the late twentieth century, the number “911” evoked
associations of trauma and panic in emergency calls for help.
Ronald Reagan even designated September 11th a “9-1-1
Emergency Telephone Number Day” in 1987. Exactly fourteen
years later, the meaning of this number was dramatically
overwritten to signify a much greater trauma: not only the
surprise terrorist attacks on the architectural symbols of America’s
economic and military might—the World Trade Center in New
York City and the Pentagon in Washington D.C.—but also the
normalized nightmare of twenty-first century history. The “post9/11 world” stamps itself in the daily news headlines with reports
of increased violence and political turmoil worldwide, anxieties of
global proportions, and the replacement of once-sacrosanct civil
liberties with an unassailable regime of “security,” ostensibly to
prevent further acts of terrorism. (SMITH, 2008, p.1).
Foi precisamente nesse contexto de privação dos direitos civis em
prol da segurança da nação diante do perigo terrorista que a saga Civil
War foi escrita e publicada. Busca-se, portanto, por meio desse artigo
destacar a partir da análise do arco de histórias intitulado Civil War, da
editora Marvel Comics, as representações acerca dos atentados do 11
de Setembro e das subsequentes políticas antiterroristas adotadas pela
administração Bush, destacando as características específicas de
linguagem da arte sequencial em sua construção narrativa.
Civil War, o 11 de Setembro e o antiterrorismo
Lançada entre os meses de Julho de 2006 e janeiro de 2007, a
obra foi considerada um dos maiores crossovers3
produzidos pela
editora Marvel, com repercussões em jornais e outros meios de
comunicação de massa e alcançou ainda a maior tiragem de uma
história em quadrinhos na década, perdendo seu posto apenas em
Janeiro de 2009 para a edição que trazia o encontro do recém eleito
presidente Barack Obama e o icônico personagem Homem-Aranha. As
representações4 construídas pelos artistas responsáveis pela obra, Mark
3
Termo utilizado quando personagens de histórias diferentes ou mesmo de editoras
diferentes aparecem em uma mesma revista.
4
Utilizaremos o conceito de “representação” tal qual ele vem sendo desenvolvido
pelo historiador francês Roger Chartier, a partir do diálogo com as reflexões do
sociólogo Pierre Bourdieu e do conceito de Habitus de Norbert Elias, considerando a
262
Millar e Steve Mcniven, foram supervisionadas pelo editor chefe da
editora, Joe Quesada; suas escolhas tiveram conseqüências em todos
os outros selos da editora, evidenciando a importância de coordenação
e planejamento da equipe da “casa das ideias”.
A história começa com uma equipe de televisão acompanhando
um grupo de super-heróis - conhecidos por Novos Guerreiros - em seu
cotidiano de combate ao crime, em uma espécie de “reality show” com
o intuito de alavancar os índices de audiência da emissora e a
popularidade da equipe, até então praticamente desconhecida. Com
poucos quadros em cada uma das páginas, os artistas optaram por
uma narrativa dinâmica, elipses escuras e diálogos curtos e objetivos;
apenas
quatro
balões
compostos
nas
primeiras
sete
páginas,
precisamente para destacar a qualidade dos desenhos de Mcniven.
Em uma ação impulsiva o grupo dos Novos Guerreiros entra em
confronto com alguns supervilões mais poderosos do que eles
reconhecidamente poderiam lidar. O resultado da ação inconsequente
do grupo é uma explosão deflagrada pelo vilão Nitro, que culmina com
a destruição de diversos quarteirões, uma escola e mais de “oitocentas
baixas”, evocando de forma evidente a tragédia dos atentados de 11
de Setembro.
representação como uma categoria no qual a inteligibilidade do mundo real é
organizada e se manifesta a partir das disposições dos diferentes grupos sociais que
ora se tornam seus “construtores”, ora se tornam seus “receptores”, evidenciando assim,
a disposição da dominação, da luta pelo poder e pelo controle do poder que se
manifesta na tentativa das diferentes classes sociais de impor sua concepção e
interpretação do mundo real.
263
Figura 1 – Ação “terrorista” do vilão Nitro no 1° volume da série Civil War
Uma das principais características da narrativa gráfica da obra
pode ser observada na imagem 1, páginas metricamente divididas em
quatro quadros com formatos retangulares em que alternam-se
enquadramentos fechados, que privilegiam expressões denotadoras de
sentimentos ou personalidade das personagens, com planos abertos
capazes de intensificar a ação e seus resultados. A essa diagramação
padrão intercalam-se páginas cheias ou duplas, além de pequenas
variações da divisão quadro retangular tradicional.
264
Figura 2 – Página dupla da destruição após o ataque. Edição 1 da série Civil War
A imagem 2, exemplo de páginas duplas na obra, já evidencia
um dos elementos norteadores da trama que seria desenvolvida ao
longo da série. Em lados opostos da imagem, encontram-se o Homem
de Ferro e o Capitão América. Os dois personagens que dividiriam os
super-heróis entre aqueles a favor da lei de registros e aqueles que
passariam
à
clandestinidade, os
dois
são
separados pelo
Sol,
desenhado no centro da imagem com o ponto de fuga conduzindo ao
horizonte. A primeira página dupla da revista destaca a destruição
perpetrada pelos supervilões e a ação dos super-heróis na tentativa de
resgatar os sobreviventes. A explosão de Nitro, nesse momento, evoca
enquanto representação a presença dos atentados terroristas ao World
Trade Center, as vítimas inocentes e a incapacidade de defesa do
governo dos Estados Unidos, reforçada pela bandeira destruída
embaixo de um dos maiores símbolos da cultura estadunidense, um
Capitão América de cabeça baixa, sem altivez e com o punho cerrado.
Os fatídicos eventos do 11 de setembro aparecem aqui como eventos
265
que escapam da possibilidade de controle até mesmo do mais
preparado governo.
O processo que se inicia após esse evento diz respeito à liberdade
de atuação dos super-heróis dentro da sociedade. A atuação
desregulamentada dos heróis passa a ser vista com receio pela
sociedade civil que manifesta sob diferentes formas sua insatisfação
diante da insegurança e do receio de viver não apenas entre vilões
com superpoderes, mas entre heróis que não respondem publicamente
por seus atos.
Figuras 3 e 4 – Velório dos mortos no atentado. Edição1da série Civil War.
Nas imagens acima, é possível observar Tony Stark, o Homem de
Ferro, sendo responsabilizado pela mãe de uma das vítimas durante o
velório. A escolha por planos fechados permite o leitor acompanhar de
perto as emoções de dor – por parte da mãe – e de surpresa por parte
de Tony Stark pela responsabilidade a ele atribuída nos eventos. O
último quadro da primeira página “emoldura” a ação com a imagem
das vítimas, enquanto que na página seguinte é possível perceber a
utilização de uma estratégia de substituição da figura do narrador –
266
aquele que informa o leitor através das legendas – pela figura dos
meios de comunicação como elemento comunicador das ações e do
tempo decorrido na trama.
O drama de uma mãe que perdera seu filho no atentado não é o
único exemplo dado por Millar em sua trama. O temor e a revolta da
sociedade civil, que responde sem ponderar sobre o acontecido, são
retratados na sequência em que o personagem Tocha Humana é
agredido por homens comuns na fila de uma boate.
Figura 5 e 6 – Sequência em que civis agridem o Tocha Humana. Edição 1 da
série Civil War
As consequências cotidianas da ação dos Novos Guerreiros e o
ataque terrorista do vilão Nitro colocam em lados opostos a sociedade
civil e os super-heróis, a insegurança da população estadunidense faz
com que ela se volte contra aqueles que a deveriam proteger, uma
alusão direta ao clamor popular que pedia uma ação do governo logo
após os atentados. Cabe ainda destacar o recurso gráfico utilizado por
Macniven no primeiro quadro; a trajetória de fogo é a linha cinética que
267
apresenta o caminho percorrido pela personagem, podendo-se ainda
frisar a opção por tons de azul para evidenciar a luz artificial em frente à
casa noturna, além é claro, de mais uma vez o último quadro reservado
para a repercussão na mídia.
Enquanto
o
governo
procura
responder
à
sensação
de
insegurança e acalmar as massas, os super-heróis são chamados a
apoiar a proposta de lei de registros, que têm como objetivo colocar
todos os super-heróis sob a tutela do Estado, obrigando-os a registraremse, revelar suas identidades secretas; e tornarem-se verdadeiros
funcionários públicos; uma afronta aos direitos individuais e ao
discernimento de cada um sobre quem ou o que representaria uma
ameaça ao povo. Tal questão levanta uma referência ao Patriot Act5 e
ao clima de tensão que se instaurou nos Estados Unidos após o 11 de
Setembro, onde a suspeita de terrorismo permitiu ao governo deter
suspeitos sem uma acusação formal por mais de setenta e duas horas,
grampear ligações mesmo sem autorização formal da justiça, e
investigar cidadãos estadunidenses denunciados por seus vizinhos
apenas por possuírem ascendência árabe.
O desenrolar da trama se desenvolve com o apoio de três dos
mais inteligentes personagens da editora apoiando a lei de registro, o
Senhor Fantástico, o Jaqueta Amarela e o Homem de Ferro, enquanto
um grupo de dissidentes é formado por outros super-heróis, liderado
pelo Capitão América.
5
Este é o nome dado ao ato H.R.3162, aprovado pelo Congresso norte americano no
dia 26 de outubro de 2001. Em seu texto o ato é apresentado como “An act to deter
and punish terrorist acts in the United States and around the world, to enhance Law
enforcemente investigatory tools, and for other purposes” (Um ato para deter e punir
atos terroristas nos Estados Unidos e ao redor do mundo, para melhorar as ferramentas
de direito de investigação e outros fins” – tradução livre). Disponível em:
<http://epic.org/privacy/terrorism/hr3162.pdf> (acessado em 20/03/2012.)
268
Figuras 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 13 – Sequência de 7 páginas, narrando eventos que
colocam o Capitão América na clandestinidade. Edição 1 da série Civil War
269
270
A sequência de imagens acima retrata um diálogo entre o
Capitão América e a comandante da agência S.H.I.E.LD6 , agente Hill7 ,
desenvolvido dentro de uma base aérea da agência. A comandante
anuncia ao Capitão América que a lei de registros é uma realidade e
que conta com sua participação no controle daqueles heróis que
eventualmente
se
tornassem
dissidentes.
Para
a
surpresa
da
comandante, e do leitor menos acostumado com a essência do
personagem, o Capitão se recusa a lutar contra seus próprios colegas,
colocando-se contra a lei de registros e contra o próprio governo dos
Estados Unidos.
A quantidade de balões de fala utilizados conduz o leitor a uma
leitura mais atenta dos diálogos em um momento importante da trama,
privilegiando
nas
primeiras
três
páginas
a
argumentação
das
personagens, e nas últimas três páginas a narrativa por meio da ação.
No diálogo presente na segunda página, a comandante solicita o apoio
do herói, enquanto esse responde: “você está me pedindo para prender
pessoas que arriscam suas vidas por esse país todos os dias da
semana”, a resposta vem de forma direta: “não, estou pedindo a você
para obedecer o desejo do povo americano, Capitão”.
A escolha dos planos fechados tem por objetivo destacar as
expressões
das
personagens
durante
os
diálogos
e
denota
a
ambiguidade da estratégia escolhida por Millar e Mcniven, pois quando
a comandante faz uso do apelativo argumento da “vontade do povo
americano”, o enquadramento em um plano contra-plongée dado ao
Capitão América o favorece em detrimento do enquadramento linear
dado à própria comandante. A luz que aparece acima da cabeça do
Capitão, alternando tons de azul e branco, remete às cores de seu
6
A agência foi criada por Stan Lee e Jack Kirby, em 1966, e desde 1991 é traduzida
como “Superintendência Humana de Intervenção, Espionagem, Logística e Dissuasão”.
7
“Originally from Chicago Maria Hill joined SHIELD and rose to the position of
commander. After Nicholas Fury's "Secret War" Maria was chosen to be director of SHIELD
by the President himself after he commended her on her work while she was stationed
on assignment in Madripoor. Although many others who she herself admitted were
better suited for position were not considered for directorship she was assigned director. It
has emerged that Maria was chosen as the other candidates were "Fury Loyalists" and
SHIELD
needed
"new
direction".
Disponível
em:
<http://marvel.com/universe/Hill,_Maria#ixzz2lfM2hGL9>. Acessado em 25/11/2013.
271
uniforme e à bandeira dos Estados Unidos enquanto que o tom de
vermelho ausente se manifesta nas janelas que iluminam o cenário da
base aérea com o pôr do sol.
Com
o
impasse
das
personagens
os
soldados
presentes
engatilham suas armas, o que pode ser percebido pelo uso da
onomatopeia no quadro final da segunda página. A ação tem início na
página
quatro,
fazendo
uso
de
duas
narrativas
simultâneas
desenvolvidas ao longo de toda a página cinco. No primeiro quadro, o
personagem do Capitão América arremessa seu escudo com a mão
direita, e nos quadros seguintes o leitor acompanha, de forma
intercalada, o escudo atingindo soldados e armas enquanto o Capitão
América luta contra outros adversários, terminando com o retorno do
escudo às suas mãos. O impacto e os detalhes da luta são enfatizados
graças aos planos fechados e ao uso das linhas cinéticas de ação, que
dinamizam e dão movimento à cena. Na última página Mcniven faz uso,
mais uma vez do recurso de linha cinética para demonstrar a trajetória e
o movimento do personagem após sair pela janela até cair em uma
aeronave, ao mesmo tempo em que se defende, com seu escudo, das
balas disparadas pelos soldados.
Nas edições seguintes a divisão dos super-heróis alude à própria
divisão da sociedade estadunidense nos anos que sucederam aos
atentados, a divisão daqueles que acreditavam ser necessário o Patriot
Act, as guerras, invasões e medidas internas adotadas, e aqueles que
acreditavam que mesmo a segurança nacional não justificaria uma
afronta aos direitos individuais e a liberdade privada adquirida nos
últimos duzentos anos de história.
A escolha da divisão dos super-heróis em cada um dos grupos,
além dos pequenos detalhes contidos na trama, aponta para um
cuidado dos autores e da própria editora para não influenciar os leitores
sobre
quem
eles
deveriam
apoiar,
escamoteando
seus
posicionamentos políticos para as entrelinhas da história, obrigando o
leitor a uma leitura minuciosa de cada um dos eventos, do enredo e
também das narrativas gráficas.
272
A última edição apresenta a Guerra Civil em seu momento mais
violento. Os dois lados em conflito são teletransportados de dentro da
prisão para o centro de Nova York, onde o combate ganha enormes
proporções. Contra a legião de clones utilizados pelo Homem de Ferro,
os dissidentes ganham o apoio de Namor e seu exército do mar. Nesse
momento, os mais populares personagens da editora apóiam o Capitão
América e os rebeldes, deixando o Homem de Ferro praticamente
isolado.
As páginas finais levam o Capitão América da vitória ao martírio,
fazendo prevalecer a retidão moral e os valores que ele representa
desde sua criação.
Figura 14 a 19 – Sequência da rendição do Capitão América. Edição 7 da série
Civil War
273
274
Dividida em cinco quadros a primeira página alterna diferentes
planos e pontos de vista, utilizando de linhas cinéticas que indicam o
movimento dos golpes desferidos pelo Capitão América contra o
Homem de Ferro. O espaço para a fala do líder do governo indica o
espaço de tempo de hesitação do herói rebelde diante da fragilidade
de seu adversário, o tempo necessário para a intervenção de
bombeiros, paramédicos e outros representantes da sociedade civil, que
se jogam sobre os combatentes, porém não à favor de um e contrário
ao outro, mas para chamar a atenção à violência e destruição que a
Guerra Civil estava causando, tão ou mais violenta do que os próprios
atentados, como pode ser observado na página três.
O detalhe do escudo caindo ao chão demonstra a perplexidade
do Capitão América que aparece em close up, no último quadro, com
uma lágrima escorrendo do rosto. O herói vitorioso sacrifica-se em prol
do bem comum, e, ao tirar a máscara, deixa claro que os valores que
ele representa não poderiam ser presos ou derrotados. A imagem do
Capitão América algemado, em primeiro plano, a expressão atônita dos
outros heróis no fundo e o jogo de luz e sombras martiriza o
personagem a partir de sua escolha ao mesmo tempo em que
engrandece sua atitude.
As últimas páginas da publicação são dedicadas à celebração
do grupo “vitorioso”, da implementação do projeto Iniciativa - que tem
como objetivo um grupo de super-heróis treinados e respondendo ao
governo em cada um dos cinquenta estados da união – e da sagração
individual de seus agentes. O Homem de Ferro torna-se diretor da
S.H.I.E.L.D., Hank Pym capa da revista Time e Sue Storm volta para Reed
Richards.
Apesar da vitória do governo, e de uma última página que utiliza
de tons dourados, iluminando a fala de Tony Stark de que “o melhor
ainda está por vir”, as críticas construídas pela editora prevalecem e seu
discurso político não se mantém neutro ou isento de posicionamento
acerca das questões suscitadas pelo contexto em que a obra foi
produzida.
275
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SMITH, Jordan Rendell. 9/11 TragiComix: Allegories of National Trauma in
Art Spiegelman’s In the Shadow of No Towers. Queen’s Journal of Visual &
Material Culture, Issue I, 2008.
276
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Anais - Fafich - Universidade Federal de Minas Gerais