Anais eletrônicos do I Congresso Sergipano de História
- ANPUH/SE e IHGSE -
ANAIS ELETRÔNICOS
Aracaju, 08 a de 10 de outubro de 2008
ISBN - 978-85-7822-067-9
1
Anais eletrônicos do I Congresso Sergipano de História
- ANPUH/SE e IHGSE -
ANAIS ELETRÔNICOS DO I CONGRESSO
SERGIPANO DE HISTÓRIA
(TEXTOS COMPLETOS)
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Associação Nacional de História /Núcleo Sergipe – ANPUH/SE
Endereço:
Universidade Federal de Sergipe
Departamento de História
Edifício da Adm. Departamental II/Sala 04
Av. Marechal Rondon, s/n - Jardim Rosa Elze, São Cristóvão – Sergipe
Página da Instituição: http:// www.se.anpuh.org
Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe - IHGSE
Endereço:
Rua Itabaianinha, 41, Centro – Aracaju/SE
49000-000
Página Institucional: http://www.ihgse.org
Organização dos Anais Eletrônicos:
José Vieira da Cruz (Editor)
José Ibarê da Costa Dantas
Antonio Fernando de Araújo Sá
Aldair Smith Menezes
Revisão
José Vieira da Cruz
Aldair Smith Menezes
Joceneide Cunha dos Santos
Cristine Vitório de Souza
Diagramação:
Adeilton Smith Menezes
Cláudia dos Santos Evaristo
Faustina Andrade dos Santos Bispo
Capa:
Adeilton Smith Menezes
Arte-finalização:
Adeilton Smith Menezes
Observação: A adequação técnico-lingüística dos textos é de responsabilidade dos autores
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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE
Congresso Sergipano de História : História e Memória
(1. : 2008 out. : São Cristóvão, SE).
C749c
I Congresso Sergipano de História : História e
Memória, São Cristóvão, SE, 08 a 10 de outubro de
2008 : Anais Eletrônicos. – São Cristóvão, SE :
ANPUH/ SE ; Aracaju : IHGSE, 2008.
1299 p.
1. História. I. Título.
CDU 94
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DIRETORIA ANPUH/SE
José Vieira da Cruz – Diretor
Antônio Fernando de Araújo Sá – Vice-Diretor
Dilton Cândido Santos Maynard – Secretário
Cristina de Almeida Valença – Tesoureira
Antonio Bitencourt Júnior – 1º Suplente
Hermeson Alves de Menezes – 2º Suplente
Itamar Freitas de Oliveira – 3º Suplente
Marcos Silva – Conselheiro
Joceneide Cunha dos Santos – Conselheiro
Lourival Santana Santos – Conselheiro
DIRETORIA DO IHGSE
José Ibarê Costa Dantas – Presidente
Terezinha Alves de Oliva – Vice-Presidente
Lenalda Andrade Santos – Secretária Geral
Tereza Cristina Cerqueira da Graça – 1ª Secretária
José Rivadávio Lima – 2º Secretário
Antonio Carlos dos Santos – Orador
Saumíneo da Silva Nascimento – 1º Tesoureiro
Ancelmo de Oliveira – 2º Tesoureiro
Verônica Maria Menezes Nunes – Diretora do Museu e da Pinacoteca
Itamar Freitas de Oliveira – Diretor do Arquivo e da Biblioteca
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COMISSÃO CIENTÍFICA
Antônio Fernando de Araújo Sá
Cristiane Vitório de Souza
Cristina de Almeida Valença Cunha Barroso
Dênio Santos Azevedo
Dilton Cândido Santos Maynard
Emanuelle Tourinho Almeida
Francisco Cancela
Hermeson Alves de Menezes
Itamar Freitas
Joceneide Cunha dos Santos
José Roberto dos Santos
José Vieira da Cruz
Josivaldo Pires
Maria Fernanda dos Santos
Maria Hilda Baqueiro Paraíso
Sheyla Farias Silva
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COMISSÃO ORGANIZADORA DO I CONGRESSO SERGIPANO DE HISTÓRIA:
Organização geral:
José Vieira da Cruz
José Ibarê Costa Dantas
Antônio Fernando de Araújo Sá
Comissão institucional ANPUH-SE/IHGSE
Cristina de Almeida Valença Cunha Barroso
Dilton Cândido Santos Maynard
Itamar Freitas
Joceneide Cunha dos Santos
Maria Fernanda dos Santos
Antonio Bitencourt Júnior
Terezinha Alves de Oliva
Lenalda Andrade Santos
Tereza Cristina Cerqueira da Graça
Verônica Maria Menezes Nunes
Secretaria:
Cláudia dos Santos Evaristo
Eduardo Lopes Teles
Faustina Andrade dos Santos Bispo
Maria Fernanda dos Santos
Mariana Emanuelle Barreto
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Comissão de Divulgação
Aldair Smith Menezes
Emanuelle Tourinho Almeida
Mariana Emanuelle Barreto
Paulina Vilar Carvalho
José Vieira da Cruz
Comissão de Infra-Estrutura
Allisson Fabiano Silva Ferro
Aaron Sena Cerqueira Reis
Anne Caroline Santos Lima
Gilsimara Andrade Torres
Joana Santos de Carvalho
José Alberto Caldas Júnior
Kátia Maria da Silva Leite
Kleckstane Farias e Silva Lucena
Mariana Emanuelle Barreto
Mateus Antonio de Almeida Neto
Patrícia Abreu dos Santos
Rafael Coelho Santana
Patrícia Abreu dos Santos
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Apoio:
Universidade Federal de Sergipe - UFS
Universidade Tiradentes – UNIT
Faculdade São Luís de França - FSLF
Faculdade de Sergipe - FASE
Faculdade José Vieira - FJAV
Governo do Estado de Sergipe
Prefeitura Municipal de Aracaju
Secretaria de Cultura do Estado de Sergipe
Secretaria de Turismo do Estado de Sergipe
Museu do Homem Sergipano/UFS
Arquivo Público do Estado de Sergipe
Memorial do Poder Judiciário de Sergipe
Escola do Legislativo do Estado de Sergipe
Fundação de Amparo a Pesquisa e Extensão de Sergipe - FAPESE
Patrocínio:
Indaía Brasil Águas Minerais LTDA
Empresa Senhor do Bomfim
Art’s Legais
L’ Ostéria
Decide Imobiliária – CRECI PJ-001
Federação do Comércio de Sergipe - FECOMERCIO/SE
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SUMÁRIO
I - APRESENTAÇÃO....................................................................................................
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I - PROGRAMAÇÃO DO CONGRESSO .....................................................................
III - SIMPÓSIOS TEMÁTICOS......................................................................................
11
13
Simpósio 1: História da escravidão e das culturas afro-brasileiras
Coordenadores : Profª. Msc. Joceneide Cunha e Prof. Msc. Josivaldo Pires ..................
14
Simpósio 2: História Social
Coordenação: Prof. Dr. Dilton Maynard..........................................................................
16
Simpósio 3: História Política
Coordenação: Prof. Msc. José Vieira da Cruz e Prof. Msc. Dênio Santos Azevedo......
17
Simpósio 4: História da Educação
Coordenadoras: Profª. Msc. Cristina de Almeide Valença e Profª. Msc. Cristiane
Vitório de Souza...............................................................................................................
18
Simpósio 5: Ensino de História
Coordenação: Prof. Dr. Itamar Freitas e Prof. Hermeson Alves de Menezes ................
20
Simpósio 6: História, Sujeitos e Práticas Culturais
Coordenação: Profª. Msc. Sheyla Farias Silva.................................................................
21
Simpósio 7: História dos Índios no Nordeste
Coordenação: Profª. Drª. Maria Hilda Baqueiro Paraíso e Prof. Msc.. Francisco
Cancela.............................................................................................................................
23
IV – SESSÃO DE PAÍNEIS DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA
Coordenadores: Profª. Emanuele Tourinho, Prof. José Roberto dos Santos e Profª
Maria Fernanda Santos.....................................................................................................
24
V – ÍNDICE REMISSIVO..............................................................................................
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I - APRESENTAÇÃO
O Instituto Histórico Geográfico de Sergipe (IHGSE) aproximou-se da
Associação Nacional de História – Núcleo Sergipe (ANPUH-SE), nascendo daí uma parceria
que, com a cooperação da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e de outras instituições,
resultou na organização do I Congresso Sergipano a ser realizado de 08 a 10 de outubro de
2008.
Os sócios do IHGSE, desde cedo, demonstraram grande interesse em aprofundar e
socializar os estudos históricos. Em 1945, quando havia um grupo de professores afeiçoados
com a ciência de Clio, houve uma tentativa de realizar um Congresso de História em Sergipe.
Mas, as dificuldades se manifestaram intransponíveis naquela ocasião à concretização do
projeto. Todavia, em 1973, Sergipe sediou o V Congresso de História do Nordeste com a
participação de professores e alunos de vários Estados.
Neste momento, em pleno século XXI, quando estão em funcionamento em
Aracaju pelo menos cinco cursos superiores de História, distanciados entre si, a necessidade
de um encontro tornou-se premente no sentido aproximar professores, pesquisadores em geral
e alunos, de estabelecer uma permuta de experiências. Como se isso não bastasse, a vinda de
profissionais de outros estados tende a enriquecer ainda mais o Congresso, tornando
certamente as discussões mais diversificadas, não apenas nos diversos mini-cursos que serão
ofertados, mas também na sessão de painéis, nos simpósios temáticos e nas palestras
proferidas por historiadores.
Dentro desses propósitos de contribuir para o maior intercâmbio entre os
profissionais de História e do crescimento intelectual, o Instituto Histórico e Geográfico de
Sergipe e a Associação Nacional de História – Núcleo Sergipe apostam na participação de
todos os integrantes no sentido de que o I Congresso Sergipano de História signifique um
marco de referência nos estudos de História e Memória em Sergipe e quiçá no Brasil.
Associação Nacional de História - Núcleo Sergipe/ANPUH-SE
Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe – IHGSE
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II – PROGRAMAÇÃO
08 de outubro de 2008 – quarta-feira
14h – Início do credenciamento
15h – Programação cultural
19h – Solenidade de abertura
19 h e 30 min. – Conferência de abertura “História Política de Sergipe (1820-1889)”
Conferencista: Prof.. Msc. José Ibarê Costa Dantas /IHGSE
Coordenação: Prof. Msc. José Vieira da Cruz /ANPUH-SE/SEED/UNIT
Local: Auditório do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe
09 de outubro de 2008 – quinta-feira
08h às 12h – Mini-cursos
13h às 16h - Simpósios temáticos
16h às 18h – Mesa redonda “Índios e Negros no Nordeste”
Profª Drª Maria Hilda Baqueiro Paraíso/ UFBA
Profª Msc. Beatriz Goes Dantas /UFS
Prof. Dr. Luiz Mott/UFBA
Coordenação: Prof.ª Drª Suely Amâncio Martinelli/UFS/UNIT
Local: Auditório do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe
18h – Lançamento de livros
19h e 30 min. – Mesa redonda “Lugares de Memória em Sergipe”
Profª Drª Terezinha Alves de Oliva/MUHSE/UFS
Profª. Msc.Verônica Maria Meneses Nunes /UFS/IHGSE
Prof. Manoel Alves /APES/FSLF
Coordenação: Prof. Msc. Antonio Bittencourt Júnior/UNIT/ANPUH-SE
Local: Auditório do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe
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10 de outubro de 2008 – sexta-feira
08h às 12h – Mini-cursos
13h às 16h – Simpósios Temáticos
16h – Mesa redonda “História e Memória do AI-5 no Nordeste”
Prof. Dr. Muniz Ferreira/UFBA
Profª Dr.ª Lucileide Cardoso /UFRB
Secretario de Estado João Augusto Gama da Silva
Coordenador: Prof. Msc. Ruy Belém de Araújo/UFS
Local: Auditório do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe
19h – Apresentação do Conjunto de Música Antiga Renantique
19h e 30 min. – Conferência de encerramento: História e Memória
Conferencista: Prof. Dr. Antônio Fernando de Araújo Sá/ANPUH-SE/UFS
Coordenação: Prof. Dr. Dilton Cândido Mayanard /ANPUH-SE/UFS
Local: Auditório do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe
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III – SIMPÓSIOS TEMÁTICOS
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Simpósio 1: História da escravidão e das culturas afro-brasileiras
Coordenadores : Profª. Msc. Joceneide Cunha e Prof. Msc. Josivaldo Pires ..............................................
26
A FAMÍLIA RITUALÍSTICA: RELAÇÕES DE COMPADRIO E DE SOLIDARIEDADE ENTRE HOMENS E
MULHERES ESCRAVOS EM SANTO AMARO (1816-1850)
Joceneide Cunha....................................................................................................................................................................................
27
A ILEGALIDADE DO TRÁFICO NEGREIRO NO MUNICÍPIO DE MACAÉ (1830-1865)”
Josane Rodrigues Boechat
Jorge Prata.............................................................................................................................................................................................
38
RIQUEZA ESCRAVA EM LAGARTO (1800-1850)
Carlos Roberto Santos Maciel ..............................................................................................................................................................
47
A INTERAÇÃO DOS QUILOMBOLAS COM A SOCIEDADE ENVOLVENTE NA REGIÃO DA COTINGUIBA (18707879)
Ana Carla de Jesus.................................................................................................................................................................................
55
SENHORES E QUILOMBOLAS: HISTÓRIAS DE CONFLITOS E BARGANHAS NA ZONA DA COTINGUIBA
(1870-1879)
Ana Carla de Jesus ................................................................................................................................................................................
65
OS PRETOS DOS MATOS: A EXPERIÊNCIA QUILOMBOLA NA PROVÍNCIA DE SERGIPE D’EL REY (18711888).
Igor Fonsêca de Oliveira ......................................................................................................................................................................
76
HISTÓRIAS DE PEDESTRES: ATUAÇÕES, CONFLITOS E SOLIDARIEDADES ENTRE CAPTURADORES DE
ESCRAVOS FUGIDOS (SALVADOR, 1850-1857)
Kleberson da Silva Alves .....................................................................................................................................................................
88
ESCRAVOS DA BAHIA ENVIADOS PARA A GUERRA DO PARAGUAI
Osvaldo Silva Felix Júnior ...................................................................................................................................................................
101
FUGAS, ROUBOS E SUICÍDIOS: A RESISTÊNCIA NEGRA NA ARACAJU OITOCENTISTA.
Patrícia Abreu dos Santos....................................................................................................................................................................
112
VOZES DISSONANTES: NOTÍCIAS DA ESCRAVIDÃO E DA LIBERDADE NA IMPRENSA ABOLICIONISTA
CACHOEIRANA, 1887 – 1889
Jacó dos Santos Souza...........................................................................................................................................................................
125
“QUAL ABOLIÇÃO QUEREMOS?” : DEBATES NA IMPRENSA SERGIPANA SOBRE A ABOLIÇÃO DA
ESCRAVATURA (DÉCADA DE 1880)
Josimari Viturino Santos ......................................................................................................................................................................
138
REESTRUTURAÇÃO SOCIAL: O OLHAR “BRANCO” SOBRE O “PRETO” NA SOCIEDADE SERGIPANA PÓSABOLICIONISTA (1885-1890)
Camila Barreto Santos Avelino ............................................................................................................................................................
148
ÁFRICAS DO MEU INTERIOR: POESIA DE ALOÍSIO RESENDE E A MEMÓRIA AFRO-BRASILEIRA NA FEIRA
DE SANT’ ANNA DA BAHIA
Josivaldo Pires de Oliveira ...................................................................................................................................................................
157
A “INGRATIDÃO” DE MARIA E O “EXEMPLO” DE JOSEFA OU OS TRAUMAS DE UMA ELITE EM DECLÍNIO
Marcelo Souza Oliveira ........................................................................................................................................................................
168
RACISMO E RESISTÊNCIA CULTURAL NA AMAZÔNIA BRASILEIRA
Luiz Augusto Pinheiro Leal .................................................................................................................................................................
182
A HISTÓRIA DE UM TERREIRO DE CANDOMBLÉ: AXÉ ILÉ OBÁ ABAÇA ODÈ BAMIRÊ
Flávia Delfino dos Santos ....................................................................................................................................................................
195
ENTRE O RACISMO E A CIDADANIA: O LUGAR DO CANDOMBLÉ NO UNIVERSO RELIGIOSO BRASILEIRO
NAS DÉCADAS DE 1930 E 1940
Julio Cláudio da Silva ..........................................................................................................................................................................
207
“EM COSME E DAMIÃO EU POSSO CONFIAR”: REPRESENTAÇÕES DO CATOLICISMO POPULAR NO
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COTIDIANO DAS REZADEIRAS.
Alaíze dos Santos Conceição ................................................................................................................................................................
220
A ESTÉTICA NEGRA EM SALVADOR
Cassi Ladi Reis Coutinho......................................................................................................................................................................
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Simpósio 2: História Social
Coordenação: Prof. Dr. Dilton Maynard..........................................................................
16
246
‘SERGIPE EM TRÂNSITO”: CIRCULAÇÃO DE AUTOMÓVEIS NO INÍCIO NO SÉCULO XX.
Andreza Santos Cruz Maynard .........................................................................................................................................................
247
CAPRICHOS E TRAPICHES: CONCEPÇÕES EM TORNO DO TRABALHO FEMININO, EVIDENCIADO A
PARTIR DE UM OLHAR SOBRE A ATIVIDADE FUMAGEIRA EM CONCEIÇÃO DO ALMEIDA-BA. 1960-1980.
Margarete Nunes Santos Gomes ...........................................................................................................................................................
256
A MULHER OPERÁRIA EM SERGIPE (1910-1932): TRABALHO E CONDIÇÕES DE VIDA
Sharlene Souza Prata ..........................................................................................................................................................................
270
VIVER EM RIO FUNDO: COTIDIANO, REPRESENTAÇÕES E MEMÓRIAS DE UMA VILA NO RECÔNCAVO
BAIANO (1930-1960)
Simone Cristina Figueiredo de Jesus...................................................................................................................................................
283
LIMA BARRETO E A DISPUTA PELA IMAGEM DE UMA CIDADE MODERNA
Carlos Alberto Machado Noronha ........................................................................................................................................................
296
AS “LOJAS DAS ROÇAS”: SUAS MÚLTIPLAS FUNÇÕES E SIGNIFICADOS PARA O HOMEM DO CAMPO.
Josiane Thethê Andrade ……………………………………………………………………………………………………………
306
TOMÉ NUNES/BA: UMA RECONSTITUIÇÃO PELA MEMÓRIA.
Leila Maria Prates Teixeira .................................................................................................................................................................
317
O CANGACEIRO E SUAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS NO CINEMA BRASILEIRO: (1950 -1970)
Caroline Lima Santos ........................................................................................................................................................................
326
HISTÓRIA SOCIAL DO USO DA INTERNET: REFLEXÕES SOBRE A FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL DE
JOVENS EM FASE DE ESCOLARIZAÇÃO
Vinícius Silva Santos
Antônio Vital Menezes de Souza..........................................................................................................................................................
338
O SISTEMA ÚNICO E DESCENTRALIZADO DE SAÚDE (SUDS) EM SERGIPE ATRAVÉS DOS RECORTES DE
JORNAIS
José Dias Junior .................................................................................................................................................................................
350
A CAPITANIA DE SERGIPE SOB O RONCO DO TRABUCO DE BENTO JOSÉ DE OLIVEIRA (1773-1806).
Wanderlei de Oliveira Menezes ..........................................................................................................................................................
362
ENTRE A LEI E A DESORDEM: A GUARDA ∗ MUNICIPAL E A URBANIZAÇÃO EM ITABUNA (1930-1947)
Philipe Murillo Santana de Carvalho ...................................................................................................................................................
371
NOS LABIRINTOS DA CRIMINALIDADE: FORMAS DE COMPREENSÃO, VIVÊNCIA E CONSTRUÇÃO DA
CRIMINALIDADE EM SALVADOR (1940-1964)
Wanderson B. de Souza ......................................................................................................................................................................
382
VALIENTES E CAPOEIRAS: CONSTRUÇÃO DE TERRITÓRIOS EM ITABUNA NA DÉCADA DE 1950.
Gissele Raline da Cunha Fernandes Moura ..........................................................................................................................................
395
“NÃO GOSTO DE VIVER SEM 'LIBERDADE'” – OS MENDIGOS E O USOS DA AUTORIDADE CULTURAL EM
ITABUNA (BA) NA DÉCADA DE 1950
Erahsto Felício de Sousa ......................................................................................................................................................................
407
MEMÓRIAS DO SERTÃO: MUCUNÃ E COURO CRU NA DIETA ALIMENTAR DURANTE A SECA DE 1932
Daiane Dantas Martins .........................................................................................................................................................................
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Simpósio 3: História Política
Coordenação: Prof. Msc. José Vieira da Cruz e Prof. Msc. Dênio Santos Azevedo......
430
NORDESTE: ASPECTOS POLÍTICO, SOCIAL E MEMORIALÍSTICO
Maria Isabel Andrade de Almeida Santos ............................................................................................................................................
431
REPRESENTAÇÃO DO CANGAÇO EM “OS DESVALIDOS”
Aldair Smith Menezes
Antônio Fernando de Araújo Sá ..........................................................................................................................................................
443
BAHIA E SERGIPE: FRONTEIRAS EM CONSTRUÇÃO (1824-1850)
Lina Maria Brandão de Aras .
Vagner Souza de Assis ........................................................................................................................................................................
451
REPÚBLICA DE FAUSTO: O PENSAMENTO REPUBLICANO DE FAUSTO CARDOSO EM SERGIPE NOS
PRIMEIROS MOMENTOS DA REPÚBLICA BRASILEIRA
Humberto F. da Silva ...........................................................................................................................................................................
460
TRAJETÓRIA DO INTEGRALISMO NO RECÔNCAVO SUL: SUSSURROS DE TEMPOS DE TENSÕES
POLÍTICAS – 1933 A 1937
Alex de Jesus Oliveira .........................................................................................................................................................................
471
A DIALÉTICA DA CONSTRUÇÃO DA NAÇÃO NAS MEMÓRIAS DE IMIGRANTES CABOVERDIANOS NO RIO
DE JANEIRO (1950-1973)
Artur Monteiro Bento ..........................................................................................................................................................................
481
UM QUEBRA-CABEÇA ESQUECIDO: A PERFORMANCE DA AESI EM ARES ACADÊMICO (1971-1988)
Gislaine Santos Carvalho .....................................................................................................................................................................
493
MEMÓRIAS DE TEMPOS SOMBRIOS: A CENSURA TEATRAL EM SERGIPE
Mayara Gabrielly Carvalho Matos .......................................................................................................................................................
505
FRENTE DE MOBILIZAÇÃO POPULAR: MUDANÇAS POLÍTICAS E PODER LOCAL EM UNA DE 1960-1965
Soanne Cristina A. dos Santos ..............................................................................................................................................................
517
PÁS DE DEUX : ENTRE O ENSINO DO BALÉ E A SOCIEDADE DE CULTURA ARTÍSTICA DE SERGIPE – SCAS
(1965 – 1969)
Mateus Antonio de Almeida Neto
José Vieira da Cruz ..............................................................................................................................................................................
528
OS DOCENTES FUNDADORES DA FACULDADE DE FILOSOFIA DA BAHIA E SUAS TRAJETÓRIAS POLÍTICOINTELECTUAIS (1930-1945): PERSPECTIVAS ANALÍTICAS E PROPOSTAS DE PESQUISA
Vanessa Magalhães da Silva ................................................................................................................................................................
538
MOVIMENTO ESTUDANTIL BRASILEIRO: UM OLHAR HISTORIOGRÁFICO
José Vieira da Cruz................................................................................................................................................................................
551
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Simpósio 4: História da Educação
Coordenadoras: Profª. Msc. Cristina de Almeide Valença e Profª. Msc. Cristiane
Vitório de Souza...............................................................................................................
560
FILANTROPIA E EDUCAÇÃO NA CIDADE DE MENORES “GETÚLIO VARGAS” (1942-1974)
Alessandra Barbosa Bispo ....................................................................................................................................................................
561
UM INTERNATO PÚBLICO: OS BENS E SERVIÇOS OFERTADOS AOS INTERNOS
Joaquim Tavares da Conceição ............................................................................................................................................................
574
ENSINO DE BIOLOGIA NO ATHENEU SERGIPENSE DA DÉCADA DE 1970: FORMAÇÃO DOCENTE NO
INSTITUTO DE BIOLOGIA E NO CURSO DE CIÊNCIAS BIOLÓGICAS DA UFS
Kátia de Araújo Carmo.........................................................................................................................................................................
587
MARCOS LEGAIS DA HISTÓRIA DA DIRETORIA DE EDUCAÇÃO DE ARACAJU
Luciano Rodrigues dos Santos
Jorge Carvalho do Nascimento .............................................................................................................................................................
594
A FACULDADE CATÓLICA DE FILOSOFIA DE SERGIPE: ANTECEDENTES E ORIGENS
Nayara Alves de Oliveira .....................................................................................................................................................................
607
ARACAJU SOB O OLHAR DAS UNIVERSIDADES
Emanuele Tourinho Almeida ...............................................................................................................................................................
617
RODRIGUES DÓREA, CARLOS SILVEIRA E HELVÉCIO DE ANDRADE: REFORMADORES DA INSTRUÇÃO
PÚBLICA SERGIPANA (1910-1913)
Cristina de Almeida Valença.................................................................................................................................................................
630
“QUEM CALA SE SENTA”: A DISCIPLINARIZAÇÃO INFANTIL ATRAVÉS DO DISCURSO MÉDICOPEDAGÓGICO (1917)
Paloma Porto Silva ...............................................................................................................................................................................
643
O JORNAL A DEFESA COMO FONTE PARA A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO: UMA ANÁLISE DA
MATERIALIDADE DO IMPRESSO
Ana Luzia Santos ..................................................................................................................................................................................
655
A ESCRITA EPISTOLAR DE SÍLVIO ROMERO: O USO DAS CARTAS COMO FONTE PARA A HISTÓRIA DA
LEITURA
Cristiane Vitório de Souza ...................................................................................................................................................................
668
CULTURA E IMAGEM: INSTRUMENTOS DE COMPREENSÃO DOS CONCEITOS MATEMÁTICOS NO LIVRO
DIDÁTICO
Josoel Pereira da Silva ..........................................................................................................................................................................
678
A INCLUSAO DE ALUNOS SURDOS NO ENSINO REGULAR: A IMPORTÂNCIA DA SALA DE RECURSOS LUAN
FAGUNDES DOMINGOS (2003 a 2008)
Mônica de Góis Silva Barbosa .............................................................................................................................................................
690
FORMAÇÃO DE PROFESSORES NO SÉCULO XXI: ENTRE A FORMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA CRÍTICA E A
REPRODUÇÃO DE CLASSES
Manoel Lacerda Santos Júnior ............................................................................................................................................................
699
CASA FORMOSA: CENTRO ILUSTRADO DE EDUCAÇÃO FEMININA (1917 – 1952)
Maria de Lourdes Porfírio Ramos Trindade dos Anjos.........................................................................................................................
709
A FORMAÇÃO DA ECONOMIA DOMÉSTICA E SUA RELAÇÃO COM A FAMÍLIA, O FEMINISMO E O GÊNERO
Ana Carla Menezes de Oliveira.............................................................................................................................................................
720
MÃE, ESPOSA E PROFESSORA: A EDUCAÇÃO FEMININA E PROFISSIONAL DE EX-DOCENTES SERGIPANAS
DO JARDIM DE INFÂNCIA JOSÉ GARCEZ VIEIRA
Ana Paula dos Santos Lima...................................................................................................................................................................
729
ASPECTOS DA EDUCAÇÃO FEMININA NO BRASIL COLONIAL: OU PROCESSO EDUCATIVO DESIGUAL
Iêda Maria Leal Vilela ..........................................................................................................................................................................
742
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19
HISTÓRIAS DE PROFESSOR:
A EDUCAÇÃO E A PROFISSÃO DOCENTE DA MICRORREGIÃO DE
ITABAIANA
Antônio Vital Menezes de Souza ........................................................................................................................................................
753
O PROFESSOR SEVERIANO CARDOSO E LOJA CAPITULAR COTINGUIBA
Maria Fernanda dos Santos...................................................................................................................................................................
765
O PERFIL BIOGRÁFICO DE MANOEL CLEMENTE NA PROVÍNCIA DE SERGIPE (1825-1826)
Mariângela Dias Santos........................................................................................................................................................................
771
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20
Simpósio 5: Ensino de História
Coordenação: Prof. Dr. Itamar Freitas e Prof. Hermeson Alves de Menezes ................
784
AS POLÍTICAS EDUCACIONAIS, A FORMAÇÃO DO PROFISSIONAL E O ENSINO DE HISTÓRIA
Alix Pinheiro Seixas de Oliveira...........................................................................................................................................................
785
A EDUCAÇÃO PARA O PATRIMÔNIO E O ENSINO DE HISTÓRIA E CULTURA AFRO-SERGIPANA EM SÃO
CRISTÓVÃO-SE
Marcelo Santos ....................................................................................................................................................................................
795
DESCORTINAMENTO HSTÓRICO ATRAVÉS DA SÉTIMA ARTE
Onesino Elias Miranda Neto.................................................................................................................................................................
807
A PEQUENA HISTÓRIA DE SERGIPE: OBRA-PRIMA DA HISTÓRIA REGIONAL DE UM “INTELECTUAL
FORASTEIRO”.
Diogo Francisco Cruz Monteiro ...........................................................................................................................................................
816
ESCRITA DA HISTÓRIA NA TRAJETÓRIA INTELECTUAL DE JOÃO RIBEIRO
Silvia Carolina Andrade Santos ............................................................................................................................................................
827
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Simpósio 6: História, Sujeitos e Práticas Culturais
Coordenação: Profª. Msc. Sheyla Farias Silva.................................................................
834
EVOCAÇÃO AO CÉU: A IGREJA DE NOSSA SENHORA DO SOCORRO UMA EXPRESSÃO DO PENSAMENTO
JESUÍTICO NA ALDEIA DO GERU (1683-1759)
Ane Luíse Silva Mecenas ....................................................................................................................................................................
835
“EM COSME E DAMIÃO EU POSSO CONFIAR”: REPRESENTAÇÕES DO CATOLICISMO POPULAR NO
COTIDIANO DAS REZADEIRAS.
Alaíze dos Santos Conceição.................................................................................................................................................................
848
SOBRAL: REPRESENTAÇÕES DA CIDADE NA DÉCADA DE TRINTA
Luciana de Moura Ferreira ..................................................................................................................................................................
862
MODERNIDADE E COTIDIANO EM FEIRA DE SANTANA NAS DÉCADAS DE 50 E 60 DO SÉCULO XX
Ana Maria Carvalho dos Santos Oliveira .............................................................................................................................................
872
NOS CAMINHOS DA LEMBRNAÇA: ALAGOINHAS NAS MEMÓRIAS DE JOANITA DA CUNHA
Carlos Nássaro Araújo da Paixão.........................................................................................................................................................
884
A FAMÍLIA CORRÊA DANTAS NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE CULTURAL DE SERGIPE
Joceli Nascimento S. Sales
Magna Cecília Sobral Silva
Solimar Guindo M. Bonjardim..............................................................................................................................................................
896
HISTÓRIA E CULTURA CASA E IGREJA JESUÍTICA EM SERGIPE: O EXEMPLO DE TEJUPEBA
Maria Helena de Oliveira .....................................................................................................................................................................
907
“INFÂNCIA E ASSOLDADAMENTO”: AÇÕES, SABERES E SUJEITOS.
Nelly Monteiro Santos Silva................................................................................................................................................................
914
DE VIOLÊNCIA FAMILIAR NA ESTÂNCIA OITOCENTISTA
Sheyla Farias Silva ..............................................................................................................................................................................
926
HERDEIRAS E SENHORAS DE SEU DESTINO: MULHERES DE JUAZEIRO – 1850/1891
Mônica Sepúlveda Fonseca..................................................................................................................................................................
939
CANUDOS: UMA GUERRA, MUITAS MULHERES.
Udineia Braga .............................................................................................................................................................................
951
VIVER PRA PARIR, LABUTAR E NÃO MORRER: PARTO, DOENÇAS E MORTALIDADE NO COTIDIANO DE
TRABALHADORAS RURAIS DO SERTÃO BAIANO, VILA DE UIBAÍ, XIQUE-XIQUE, DÉCADA DE 1950.
Taiane Dantas Martins ..........................................................................................................................................................................
961
REVIRANDO AREIAS: O VIVER DAS MARISQUEIRAS DE SALINAS DA MARGARIDA (1960-1990).
Rosana Costa Gomes.............................................................................................................................................................................
973
PENSANDO A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DA MASCULINIDADE E A INSERÇÃO DAS MULHERES NA
HISTÓRIA
Silvana Santos Bispo.........................................................................................................................................................................
986
O ESTUDO BIOGÁFICO COMO FONTE DE PESQUISA
Mariângela Dias Santos ........................................................................................................................................................................
998
PRECEPTORAS ALEMÃS NA BAHIA E EM SERGIPE (1860-1920)
Samuel Barros de Medeiros e Albuquerque .......................................................................................................................................
1009
PROFISSÃO DOCENTE: PRÁTICA ESCOLAR E A TRANSMISSÃO CULTURAL
Carmen Regina de Carvalho Pimentel. ................................................................................................................................................
1019
ARTE E ARQUITETURA RELIGIOSA POPULAR DO ANTÔNIO VICENTE MENDES MACIEL, O ANTÔNIO
CONSELHEIRO
Jadilson Pimentel dos Santos ...............................................................................................................................................................
1029
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A BENEFICENTE DOS “ARTISTAS” SANTANTONIENSES
Eliane Menezes .....................................................................................................................................................................................
1041
NESTOR DUARTE: REFORMA SOCIAL E CRIAÇÃO CULTURAL NA BAHIA DA DÉCADA DE 1930
Rogério França.....................................................................................................................................................................................
1053
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Simpósio 7: História dos Índios no Nordeste
Coordenação: Profª. Drª. Maria Hilda Baqueiro Paraíso e Prof. Msc.. Francisco
Cancela.............................................................................................................................
RELIGIÃO, PODER E MUNDO AGRÁRIO NOS ALDEAMENTOS SERGIPANOS,1650-1802
Pedro Abelardo de Santana ..................................................................................................................................................................
ADMINISTRAÇÃO DO DIRETOR GERAL DE ÍNDIOS DA PROVÍNCIA DA BAHIA
Antonietta d´Aguiar Nunes
Aline Santos Oliveira ...........................................................................................................................................................................
VILAS DE ÍNDIOS NA CAPITANIA DE PORTO SEGURO: UM ESPAÇO MULTICULTURAL DE TRABALHO,
RESISTÊNCIAS E REELABORAÇÃO DE IDENTIDADES.
Francisco Cancela .................................................................................................................................................................................
TUPINAÊS, TUPINAMBÁS, FRANCESES E PORTUGUESES EM KIRIMURÉ: ALIANÇAS, CONFLITOS E
MORTES
Maria Hilda Baqueiro Paraíso.............................................................................................................................................
OS “ATORES COADJUVANTES” DA HISTÓRIA DA CAPITANIA DA PARAÍBA: OS RELATOS E A PRODUÇÃO
HISTORIOGRÁFICA ACERCA DOS POVOS INDÍGENAS.
Jean Paul Gouveia Meira
Juciene Ricarte Apolinário ...................................................................................................................................................................
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1096
1111
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IV – SESSÃO DE PAÍNEIS DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA
Coordenadores: Profª. Emanuele Tourinho, Prof. José Roberto dos Santos e Profª
Maria Fernanda dos Santos..............................................................................................
24
1121
HISTÓRIA DAS EXPERIÊNCIAS ARTÍSTICAS E PEDAGÓGICAS DOS ANARQUISTAS: A EDUCAÇÃO E O
TEATRO ANARQUISTAS
Ana Luiza dos Santos Rodrigues Paulo
Luiz Renato Dias Gomes Padilha .........................................................................................................................................................
1122
CONTINUIDADE DE SENTIDO: ARTIGOS ENQUANTO ESTRATÉGIAS DE PROGRESSÃO REFERENCIAL NO
TEXTO DOS LIVROS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA
Ana Maria Garcia Moura.......................................................................................................................................................................
1133
O ENSINO SUPERIOR PARA AS MULHERES: UMA REIVINDICAÇÃO PELO PAVILHÃO FEMININO NA CASA
DO ESTUDANTE DO BRASIL – 1931
Caren Victorino Regis
Nailda Marinho da Costa Bonato..........................................................................................................................................................
1143
ENTRE EXPECTATIVAS E DISPUTAS: A HISTÓRIA DO ENSINO SUPERIOR PÚBLICO EM ITABAIANA/SE
(1997-2007)
Antônio Teles de Lima
Gersivalda Mendonça da Mota
Janilda Freitas de Almeida ..................................................................................................................................................................
1153
LIVROS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA REGIONAL: ANÁLISE HISTORIOGRÁFICA
Kléber Rodrigues Santos ......................................................................................................................................................................
1172
IMAGENS DA ÁFRICA: UMA ANÁLISE DA COLEÇÃO PROJETO ARARIBÁ
Lucas de Oliveira Carvalho
Raíssa Tainá Carvalho de Santana
Williams Santos da Silva
Joceneide Cunha ...................................................................................................................................................................................
1183
JONGO: SIMBOLO DE RESISTÊNCIA E VALORIZAÇÃO DA CULTURA NEGRA
Elizabeth Ramos da Silva
Ricardo Fernandez
Maria Amélia Gomes de Souza Reis ...................................................................................................................................................
1196
AS ATIVIDADES ECONÔMICAS DAS COMUNIDADES CAENDA E MALHADA DOS NEGROS
Igor Iury Jurubeba Santos
Lucília Cardoso dos Santos
José Joaquim Santos Nascimento
Leyla Menezes Santana
Joceneide Cunha ...................................................................................................................................................................................
1207
REGISTROS PARÓQUIAIS: FONTE PRECIOSA PARA O ESTUDO DA ESCRAVIDÃO
Bruno Oliveira Santos
Raíssa Tainá Carvalho de Santana
Joceneide Cunha ..................................................................................................................................................................................
1215
AS ARTES CÊNICAS NO FASC: FRAGMENTOS DA HISTÓRIA TEATRAL EM SERGIPE.
Rochelle Figueiredo Freitas
José Vieira da Cruz...............................................................................................................................................................................
1225
CULTURA, IDENTIDADE E MEMÓRIA: UMA ANÁLISE DA RELAÇÃO DO TURISMO COM O PATRIMÔNIO
ARQUITETÔNICO NA CIDADE HISTÓRICA DE SÃO CRISTÓVÃO/SE
Ivan Aragão
Denio Azevedo .....................................................................................................................................................................................
1236
ENTRE FEIRANTES E CARREGADORES: UM ESTUDO ESPAÇO-SOCIAL DO MERCADO ANTÕNIO FRANCO
DE 1926 A 1949
Kelly Cristiana Santos Linos
Rafhael Almeida Oliveira
Sheyla Farias........................................................................................................................................................................................
1246
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25
ENTRE TRILHOS E CAMINHOS: OS BONDES EM ARACAJU, NO PERIODO DE 1900 À 1950.
Luciana de Souza Santos
Maria Carla Andrade de Carvalho
Sheyla Farias Silva..............................................................................................................................................................................
1261
MEMÓRIA, IDENTIDADE E TRADIÇÃO ORAL: JOGOS E BRINCADEIRAS INFANTIS NA COMUNIDADE DO
MATIAS.
Eraldo Eronides Maciel
Maria Lindaci Gomes de Souza............................................................................................................................................................
1269
PRODUÇÃO DO ESPAÇO AGRÁRIO EM AREIA BRANCA SE: APONTAMENTOS DA HISTÓRIA DO TEMPO
PRESENTE
Cláudio Ubiratan Gonçalves
Adelvan Santos Dória............................................................................................................................................................................
1280
VIOLÊNCIA EM ESTÂNCIA NO PERÍODO OITOCENTISTA
Jessyca Cristina Reis Santos
Sheyla Farias ........................................................................................................................................................................................
1288
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3.1– SIMPÓSIO 1:
HITÓRIA DA ESCRAVIDÃO E DAS CULTURAS
AFRO-BRASILEIRAS
Coordenação:
Profª Msc. Joceneide Cunha Santos (ANPUH-SE/UNIT/SEED)
Prof. Msc. Josivaldo Pires (Doutorando-CEAO/UFBA)
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SOLIDARIEDADE ENTRE HOMENS E MULHERES ESCRAVOS EM SANTO
AMARO (1816-1850)
Joceneide Cunha - ANPUH/SE-UNIT
[email protected]
A nova historiografia da escravidão, pós década de oitenta, têm se debruçado sobre vários
temas dentre esses estão as relações de compadrio que envolvia homens e mulheres escravos.
Os escravos construíam uma rede de solidariedade, muitas vezes essas redes ultrapassavam os
limites do cativeiro. E as tais relações também podem ser percebidas através das relações de
compadrio. Este trabalho tem como intuito analisar as relações de compadrio em Santo
Amaro que envolviam escravos no interstício de 1816-1850. Enfatizo que utilizei a categoria
gênero para analisar os dados. Para atingir meus objetivos, pesquisei os registros de batismo,
os mesmos como fonte histórica permitem uma quantificação e esta foi uma das metodologias
utilizadas. Ressalto que a pesquisa ainda está em andamento, no entanto, os dados coletados
permitem discutir a condição social e civil dos padrinhos e madrinhas escravas, ou livres e
libertos, os tipos de famílias escravas, as idades que as crianças eram batizadas, também
percebemos que as cerimônias de batismo eram um ato coletivo, e por fim, os locais que as
crianças eram batizadas.
Palavras-chave: escravidão, Sergipe, batizados.
Nos anos oitenta do século XX, surgiu a chamada nova historiografia da
escravidão. Entre os pesquisadores destacam-se João José Reis, Maria Odila Leite Dias,
Silvia Lara, Robert W. Slenes, Flávio Gomes, Hebe de Castro e Sidney Chalhoub. Alguns
dessa corrente tiveram como influência teórica, entre outros, Eugene Genovese e Edward P.
Thompson. Esses intelectuais buscaram ver o escravo como agente histórico e possibilitaram
a emergência de estudos sobre, mulher, família escrava, os significados da liberdade e as
estratégias para consegui-la, os africanos e suas identidades, e sinalizaram a importância das
irmandades para compreendê-las, além de outras temáticas1. Para estudar essas temáticas se
1
Ver em: CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: Uma história das últimas décadas da escravidão na
corte. SÃO PAULO: Companhia das Letras, 1986; DIAS, Maria Odila Leite. Quotidiano e Poder em São
Paulo no século XIX. SÃO PAULO: Brasiliense. SLENES, Robert W. Na Senzala, uma Flor: esperanças e
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fez necessário uma ampliação no leque de fontes, os documentos cartorários, eclesiásticos
dentre outros que passaram a ser considerados fontes históricas e foram incorporados nas
pesquisas, além dos já utilizados anteriormente, como os relatos de viajantes2.
Dentro dessa perspectiva um dos temas que tem surgido é o estudo das relações de
compadrio que envolvia os escravos. Alguns autores têm se debruçado sobre essa temática
dentre eles temos: Stuart Schwartz e Cristiany Miranda.
Schwartz possivelmente foi o
pioneiro, pois no livro Segredos Internos já menciona a temática. O mesmo autor estuda o
compadrio na Bahia e em Curitiba e pontua que a escolha dos compadres possivelmente
variou de região para região. Portanto, ele não descarta que em alguns casos foi a escolha
eram dos escravos e em outros uma imposição dos senhores. Em outro artigo, Schwartz e
Gudeman pontua que os meninos tinham mais oportunidades de possuírem padrinhos livres,
pois eles precisavam de maior proteção de pessoas livres que as meninas, por serem mais
caros. E, a Cristiany Miranda afirma que as relações ritualísticas eram escolhidas pelos
escravos, para a autora estudar o compadrio é analisar as possibilidades de escolhas dos
mesmos e as estratégias que utilizaram3.
Este trabalho tem como intuito analisar as relações de compadrio em Santo Amaro
que envolviam escravos no interstício de 1816-1850. O marco temporal foi delimitado através
de dois elementos, a documentação e bibliografia. O ano de 1816 foi delimitado por conta da
documentação, pois os primeiros registros de batismo encontrados são referentes a esse ano. E
em 1850, em virtude do término do tráfico de escravos.
Ressalto também que houve um crescimento no número de engenhos nas terras
sergipanas nesse período. Em 1756, havia 46 engenhos, no ano de 1798, 140 unidades e em
recordações na formação da família escrava, Brasil sudeste, século XIX. RIO DE JANEIRO: Nova Fronteira,
1999. LARA, Silvia H. Campos da Violência: Escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808.
RIO DE JANEIRO: Paz e Terra. 1988. REIS, João J. Rebelião Escrava no Brasil: A história do levante dos
malês (1835). 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.
2
Ressalto que acerca desse tema houve, durante algum tempo, a idéia de não existirem documentos para
pesquisar sobre a escravidão, por conta das ordens de Rui Barbosa que mandou queimar boa parte do acervo.
Vide: SLENES, Robert. “O que Rui Barbosa não queimou: novas fontes para o estudo da escravidão no século
XIX”. Estudos Econômicos 13, N ° 1, 1983, pp. 117-150.
3
ROCHA, Cristiany Miranda. Histórias de famílias escravas. Campinas: Editora da UNICAMP, 2004. Sobre
batismo de escravos conferir também: GUDEMAN, Stephen & SCHWARTZ, Stuart. “Purgando o pecado
original: compadrio e batismo de escravos na Bahia do século XVIII”. In: REIS, João. Escravidão e Invenção
da Liberdade: estudos sobre o negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense; CNPq, 1988. pp.33-59.; Ver em: FALCI,
Miridan Knox. Escravos do Sertão. Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 1995. pp.96-110; FARIA,
Sheyla. Op. cit ; METCALF, Alida. “Vida familiar dos Escravos em São Paulo no Século Dezoito: O caso de
Santana de Parnaíba”. In: Estudos Econômicos, vol.17, n ° 2, 1987. pp.229-243; SCHWARTZ, Stuart.
Segredos Internos: Engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Companhia das Letras. 1988;
SCHWARTZ, Stuart. “Abrindo a roda da família: compadrio e escravidão em Curitiba e na Bahia”. In:
Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru, São Paulo: EDUSC, 2001.
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1852, 6804. Lembrando que nesse período houve um declínio na produção mineradora, e
aumento da produção açucareira, sobretudo baiana, até aproximadamente 18225, portanto,
provavelmente o aumento da produção baiana tinha a participação do açúcar produzido nas
terras sergipanas. Meu interesse é analisar a vivência dos escravos, nesse momento de
efervescência econômica. Enfatizo que a pesquisa ainda está em andamento. Poucos são os
trabalhos em Sergipe que versam sobre a escravidão na primeira metade dos Oitocentos.
Na historiografia sergipana, provavelmente o primeiro a comentar sobre os
escravos e noticiar a existência de suas famílias foi Marcos Souza, classificado pelos
historiadores como cronista. Marcos Souza foi vigário no inicio dos Oitocentos da Freguesia
de Pé do Banco6, localizada nas terras sergipanas. Segundo o Vigário, Santo Amaro era a Vila
mais afamada e rica da capitania, possuía 2000 brancos, 1500 pretos e vários mestiços. E, os
africanos, crioulos e mulatos estariam envolvidos no trabalho da lavoura7.
Ele defende que a escravidão em Sergipe era mais branda que no Recôncavo
Baiano e utiliza três elementos para sustentar a sua idéia, a alimentação, as vestimentas e a
existência de famílias escravas. Não entrarei na discussão sobre a “docilidade” das relações
senhor e escravo em Sergipe, pois a mesma já foi alvo de contestações em alguns trabalhos8.
No entanto, o vigário nos dá indícios sobre a existência das famílias escravas no período
estudado, chegando a afirmar que era possível o casamento entre escravos de senhores
diferentes. Todavia, o vigário não comenta sobre os batizados dos escravos que
possivelmente realizou inúmeros, bem como os casamentos. Talvez fosse algo tão corriqueiro
no seu cotidiano e por isso ele não julgou ser digno de nota no seu livro. Entretanto, especulo
que se os casamentos eram permitidos entre escravos de senhores distintos, a relação de
compadrio também pode ter sido. Em uma pesquisa que realizei anteriormente percebi que os
escravos batizavam seus filhos com escravos de outros senhores9. Todavia, saliento que o
compadrio em Sergipe é pouco estudado.
As fontes utilizadas nesse primeiro momento foram os registros de batismo. Os
mesmos foram quantificados e analisados. Há na paróquia dois livros no interstício
4
MOTT, Luis. Sergipe Del Rey: população, economia e sociedade. Aracaju: Fundesc, 1986. pp.145-146.
OLIVEIRA, Maria Inês Côrtez. Quem eram os “negros da Guiné”? A origem dos africanos na Bahia. AfroÁsia, 19/20. (1997) p.57.
6
Atual Siriri
7
SOUZA, Marcos Antônio. Memória sobre a capitania de Sergipe. Sergipe/Aracaju. 2005.
8
Vê em: MOTT, Luis. Sergipe Del Rey: população, economia e sociedade. Aracaju: Fundesc, 1986.
9
SANTOS, Joceneide Cunha dos. Entre farinhadas, procissões e famílias: a vida de homens e mulheres
escravos em Lagarto, Província de Sergipe (1850-1888). Salvador, 2004. Dissertação (Mestrado em História).
Pós-graduação em História Social – Universidade Federal da Bahia.
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mencionado. Esses registros permitem termos noção dos padrões de batismo, bem como ter
alguns elementos sobre a vivência dos escravos.
Nos registros de batismo possui o nome da criança batizada, os nomes dos pais e a
condição de ambos, a cor, a nacionalidade, o nome do proprietário ou dos proprietários, pois
os pais poderiam pertencer a pais diferentes. O(s) nome(s) dos padrinho e/ou madrinha e dos
seus senhores no caso dos mesmos serem escravos. Por fim, a idade da criança, o local que foi
batizado, a data e o nome do pároco. Ressalto que os registros de batismo não são
padronizados, havia alguns párocos que colocavam mais informações nos registros de batismo
como o estado civil dos padrinhos. E no caso do livro pesquisado, como houve vários párocos
batizando e provavelmente coletando as informações, nem todos coletavam as mesmas
informações, por isso há registros diferenciados no interior do mesmo livro.
Entre o meses de setembro de 1816 e maio de 1817 foram catalogados 105
batizados de índios, africanos e seus descendentes. Desses, 94 eram escravos, incluindo os
índios e 11 livres, crianças filhas de mães libertas ou livres e pais escravos.
Este artigo está divido em três partes, na primeira mencionarei sobre os locais que
os escravos e seus descendentes foram batizados, e citar alguns elementos desse ritual, na
segunda parte, pontuarei quem foram os batizados, na última parte mencionarei alguns dados
de quem eram os padrinhos e madrinhas.
1 – Os locais que se realizavam o ritual
No Brasil, o compadrio foi um ritual bastante praticado tanto por livres como por
escravos e trata-se de uma herança da cultura ibérica. Através do ritual do batismo, a família
era ampliada pelos laços espirituais.
Em Santo Amaro, as crianças, filhas de homens e mulheres escravos, ou escravos
adultos foram batizados em diversos lugares. Dentre eles as capelas de Nossa Senhora do
Rosário, De Maruim de Baixo, Nossa Senhora da Conceição, no Oratório do Capitão-mor e na
Igreja Matriz.
A “ população de cor” batizou seus filhos majoritariamente na Capela de Nossa
Senhora do Rosário, 68,57% dos batizados foram nesse local. Em 1813, há notícias da
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existência uma Irmandade do Rosário dos homens Pretos em Santo Amaro10; possivelmente a
mesma estava abrigada na referida capela. Ou seja, essa capela possivelmente era um espaço
que os africanos e seus descendentes cultuavam seus santos católicos, construíam as suas
relações ritualísticas através do batismo e do casamento. Em suma, era um espaço de
sociabilidade dos mesmos.
Além da capela já mencionada, o segundo lugar mais procurado pelos homens e
mulheres escravos batizarem seus filhos foi a Igreja Matriz de Santo Amaro, templo esse que
Marcos Souza classifica como majestoso11. Vinte e um escravos ou filhos de escravos foram
batizados na Matriz. Incluindo um escravo do pároco da Igreja, o reverendo Gonçalo Pereira
Coelho que batizou o escravinho Florêncio, filho da sua escrava Felizarda que era casada com
Antônio, também escravo12.
Três escravos foram batizados na Capela de Nossa Senhora da Conceição que
ficava em uma propriedade particular, o engenho Caieira13. Os escravos dos proprietários do
engenho, bem como os dos parentes, dos vizinhos ou agregados da propriedade deveriam
batizar seus filhos nessa capela. Pois, os escravos batizados encontrados até o momento não
pertenciam aos senhores do engenho14.
Quatro escravos foram batizados no oratório do capitão-mor, o Capitão Felipe
Luís de Faro. Ambrosio e Brígida pertenciam ao mencionado capitão, e Margarida e Romão a
Gregório Luis das Virgens. Por fim, dois escravos que foram batizados na capela de Maruim
de Baixo.
O batismo era um ato coletivo e por isso várias crianças – livres e escravas –
recebiam o sacramento numa mesma cerimônia. Escravos de um mesmo senhor e de senhores
distintos apadrinhavam os filhos no mesmo dia. A data do batizado era marcada num dia em
que todos pudessem ir à Vila: padrinhos e escravos. Em alguns casos, possivelmente os
proprietários de escravos também estavam presentes. Acredito que nos batizados ocorridos
nas propriedades havia uma probabilidade maior dos senhores estarem presentes nos
batizados dos filhos dos seus escravos.
10
MOTT, Luis. Sergipe Del Rey: população, economia e sociedade. Aracaju: Fundesc, 1986.p.57
SOUZA, Marcos Antônio. Memória sobre a capitania de Sergipe. Sergipe/Aracaju. 2005.p.67
12
Livro de Batismo de Santo Amaro nº 2, pág. 13v
13
A capela existe na atualidade e é tombada pelo IPHAN desde 1944. Vê em: LOUREIRO, Kátia Afonso Silva.
Arquitetura Sergipana do Açúcar. FUNCAJU/UNIT, 1999.
14
Segundo Loureiro a família que era proprietária desse engenho era A Diniz Sobral e os escravos batizados
nessa capela pertenciam a João Pereira, Francisco Xavier do Bomfim e Manoel José de Souza.
11
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Possivelmente alguns dias festivos foram preferidos para realizar a tal cerimônia,
por como o dia consagrado a São Benedito15. Em seis de janeiro de 1817, dia que se
comemorava São Benedito em Sergipe; quatro pessoas foram batizadas dentre elas, três
escravos gêges, Joaquim , Mathias e Bento e a menina Joaquina que era livre.
2 - Os batizados e batizadas
Os escravinhos eram batizados logo após o seu nascimento, com até três meses de
idade, 63,23% dos batizados estavam nessa categoria. Os demais batizados e batizadas eram
molecotes ou adultos. As idades dos índios batizados foram informadas nos registros, os
mesmos tinham entre 14 e 20 anos. Todavia, a dos africanos não foi mencionada, só através
do cruzamento das informações dos registros com as dos inventários post-mortem é que será
possível descobrir a idade de alguns dos africanos. Ressalto que há alguns registros sem a
referência da idade, e sem a menção de quem são os pais, assim podemos especular que
possivelmente não eram crianças.
O sacramento batismal marca a entrada no mundo cristão e o registro de batismo
era o documento que oficializava a existência das pessoas, por esses motivos era necessário
que o ritual acontecesse enquanto a criança estivesse nova. Todavia, o registro de batismo ia
além de um documento eclesiástico, ele também era um documento social, pois trazia várias
informações sobre o indivíduo, a sua família e os padrinhos. No período em estudo não havia
os registros civis. Por conta desses dados, percebemos que os senhores provavelmente se
preocupavam que seus escravos fossem convertidos à “Fé Católica”, pois assim oficializavam
a sua posse sobre a criança nascida.
Sobre a legitimidade houve um equilíbrio nas relações dos escravos e escravas.
Um pouco mais da metade das crianças batizadas eram fruto de relações legítimas 60%, e as
demais eram provenientes de relações não sancionadas pela igreja, as chamadas ilegítimas,
possivelmente algumas delas eram consensuais. A existência de casamentos entre escravos do
mesmo senhor, indicia a existência de médias e grandes posses, assim, os escravos teriam
como escolher seus cônjuges na posse do seu senhor.
15
O culto a São Benedito foi muito difundido entre os escravos, a idéia era difundir a idéia de um escravo
submisso. Vê em: PINTO, Tânia Maria de Jesus. Os negros cristãos católicos e o culto aos santos na Bahia
Colonial. Salvador, 2000. Dissertação (Mestrado em História Social) – Programa de Pós-Graduação em História,
Universidade Federal da Bahia.
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Dos batizados dezenove eram africanos, ou seja, 18,09 dos batizados; esses eram
de nação angola, gege e Costa da Mina. Além de serem batizados os africanos também
levavam seus filhos para serem batizados, 16,20% das crianças eram crioulas, ou seja, filhos
de africanos. Dentre os africanos os gege eram maioria, no entanto, Marcos Souza menciona a
existência dos africanos da Guiné e os Angola em Santo Amaro.
8,57% eram índios, classificados como gentios de nação. E os demais eram
descendentes de africanos; distribuídos em pardos e pretos. Os últimos tinham larga maioria
sobre os primeiros, a miscigenação não era acentuada entre os escravos. Muitos pardos foram
batizados, mas eram livres.
Os homens foram maioria entre os batizados, entre as crianças houve um
equilíbrio. No entanto, entre os adultos batizados que incluíam os africanos, índios e alguns
sem informações os homens foram majoritários.
3 - Os compadres e comadres
A larga maioria das crianças e adultos foram batizados por pessoas livres e/ou
forras. Essas pessoas livres podiam ser agregadas das propriedades que os escravos
trabalhavam, vizinhos ou parentes dos senhores. Pretendo saber mais elementos sobre essas
pessoas. No entanto, possivelmente eram pessoas próximas desses escravos. Em Lagarto
encontrei o tesoureiro da irmandade de Nossa Senhora do Rosário batizando uma criança
escrava. Ou seja, ele era uma pessoa próxima dos pais da criança, já que a irmandade também
admitia escravos16.
Apenas nove escravos foram batizados por escravos, desses nove, quatro eram
africanos. Sete desses padrinhos eram parceiros17 de trabalho dos pais dos seus afilhados ou
dos próprios afilhados como o caso dos africanos. Como Delfina e Pedro que batizaram
Leandro, filho de Ana; todos eram escravos de Antônio Dias de Vidal Melo 18. Possivelmente
16
SANTOS, Joceneide Cunha dos. Entre farinhadas, procissões e famílias: a vida de homens e mulheres
escravos em Lagarto, Província de Sergipe (1850-1888). Salvador, 2004. Dissertação (Mestrado em História).
Pós-graduação em História Social – Universidade Federal da Bahia.
17
Segundo Mattos, a denominação parceiros foi utilizada pelos escravos, em algumas ocasiões. no sentido de
que eram escravos do mesmo senhor, as exceções eram os amásias(os) ou cônjuges, irmãos, pais/mães e
comadres/compadres; em outros momentos a idéia implícita é a de companheiro de sofrimento ou de jornada.
Em Lagarto, foi possível perceber as duas utilizações do termo, escravos depoentes chamaram de parceiros,
escravos que os acompanhavam no eito ou escravos do mesmo senhor e companheiros de sofrimento. Vide:
MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista, Brasil século
XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. pp.130-131
18
Livro de Batismo de Santo Amaro nº 2, pág.9v
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algumas posses de escravos eram médias e grandes, o que possibilitava aos escravos
possibilidades de escolher um padrinho no interior da propriedade do seu senhor.
Sheyla Faria chegou a conclusão que as crianças ilegítimas e que estavam em
pequenas e médias posses foram batizadas por pessoas livres que eram pequenos proprietários
de escravos, enquanto que as crianças legítimas tiveram como padrinhos escravos que
pertenciam ao mesmo senhor do batizado, eles faziam parte de grandes posses19. Ou seja, os
escravos das grandes propriedades tinham um leque mais diversificado para escolher um
compadre entre os seus parceiros de trabalho. Na Bahia, os escravos buscavam alianças: (i)
horizontais, quando os pais escravos buscavam outros escravos para serem padrinhos,
integrando ainda mais a criança à comunidade escrava; (ii) verticais, quando os pais
entregavam os seus filhos a padrinhos livres, nesta situação os escravos buscavam ascensão
social para os seus filhos20.
Em Santo Amaro, os escravos preferiam construir alianças
verticais que as
horizontais. Futuramente esperamos responder as razões dessa escolha. No entanto, ressalto
que o batismo não significava apenas a entrada para o mundo cristão, mais também era uma
possibilidade de construir laços de solidariedade. E, padrinho ou madrinha seria responsável
pelos elementos espirituais e materiais do afilhado.
A maioria das crianças e adultos batizados tiveram um casal como padrinhos
63,80%. No entanto, nem todas as crianças e adultos puderam usufruir desse privilégio,
alguns tiveram apenas um padrinho ou madrinha. Dentre esses, os homens foram preferidos
para apadrinharem as crianças e adultos, 33 crianças e adultos foram batizados apenas por
homens e quatro crianças escravas tiveram somente a madrinha. Novamente, a possibilidade
de contar com ajudas materiais fizeram que os homens fossem escolhidos e não as mulheres.
Analisando os batismos dos escravos e seus descendentes percebemos que há
alguns personagens que se repetem, ou seja, houve escravos, pessoas livres e libertas que
batizaram várias crianças e/ou adultos. Jacinto e Josefa que eram escravos e possivelmente
casados, batizaram Joaquim e Paulo e Rosa. Todos eram escravos do Capitão Manoel
Rollemberg de Andrade, os dois primeiros eram africanos e foram batizados no mesmo dia, já
19
FARIA, Sheyla de Castro. A Colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1998.
20
GUDEMAN, Stephen & SCHWARTZ, Stuart. “Purgando o pecado original: Compadrio e Batismo de
escravos na Bahia do século XVIII”. In: REIS, João. Escravidão e Invenção da Liberdade: estudos sobre o
negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense; CNPq, 1988. pp.33-59. Metcalf chegou a esta conclusão pesquisando
São Paulo Setencentista, acredito que ocorreu algo muito próximo em Lagarto nos Oitocentos. Ver em:
METCALF, Alida. “Vida familiar dos Escravos em São Paulo no Século Dezoito: O caso de Santana de
Parnaíba”. In: Estudos Econômicos, vol.17, n ° 2, 1987.pp.229-243
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Rosa era brasileira e foi batizada em outro dia21. Outro exemplo era Vicente José Barreto que
batizou em dias distintos; duas crianças Pascacia e Geronimo e Antônio Angola 22.
Cristiany Miranda Rocha estudando o compadrio percebeu que alguns escravos
batizaram várias crianças, posteriormente ela observou que esses escravos preferidos para
serem padrinhos conseguiram a alforria. Por conta, desse elemento ela deduziu que os
escravos preteridos para serem padrinhos eram próximos aos senhores ou exerciam uma
função de destaque; por esses motivos os demais escravos escolhiam os mesmos para
apadrinharem seus filhos23. Era uma possibilidade de aproximação com o senhor e assim
barganhar alguns dos seus interesses. Assim podemos especular que Jacinto e Josefa, já
citados, podiam exercer uma espécie de liderança na posse do ser senhor, que possivelmente
tinha inúmeros escravos, pois nos registros até o momento foram encontrados onze escravos,
seja na posição de padrinho ou de afilhado.
Algumas considerações finais
Primeiramente quero ratificar que este texto é fruto de uma pesquisa inacabada,
portanto ao término da mesma os dados poderão ser alterados. Segundo, que pretendo utilizar
outras fontes e assim fazer o cruzamento de informações.
A Capela do Rosário era um espaço dos escravos e seus descendentes, incluindo
os índios se batizarem. Talvez houvesse uma identificação dos escravos com esse espaço, já
que provavelmente no mencionado templo funcionava uma Irmandade de homens pretos.
Enfatizo que o batizado era um ritual coletivo, no mesmo dia crianças e adultos, livre e
escravos eram batizados.
Os escravos batizavam seus filhos logo após o nascimento. O batizar era algo que
interessava o senhor, pois era criado um documento que oficializava a criança como sua
propriedade, e era importante para os escravos, pois através do compadrio construíam laços de
solidariedade e/ou alianças. Os homens e mulheres escravos de Santo Amaro optaram em
construir essa rede de alianças com pessoas livres e/ou libertas; ou as possibilidades de
construção dessas redes eram escassas no cativeiro.
Em suma, através do batismo podemos conhecer um pouco a vivência dos
escravos, suas opções e estratégias cotidianas.
21
Livro de Batismo de Santo Amaro nº 2, pág.13 v, e 14
Livro de Batismo de Santo Amaro nº 2, pág. 3,7, 9v
23
ROCHA, Cristiany Miranda. Histórias de famílias escravas. Campinas: Editora da UNICAMP, 2004.
22
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FONTES
FONTE PRIMÁRIA
Impressa
SOUZA, Marcos Antônio. Memória sobre a capitania de Sergipe. Sergipe/Aracaju. 2005.
Manuscrita
Livro de Batismo de Santo Amaro nº 2
REFERÊNCIAS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Chaves, 1995. pp.96-110
GUDEMAN, Stephen & SCHWARTZ, Stuart. “Purgando o pecado original: compadrio e
batismo de escravos na Bahia do século XVIII”. In: REIS, João. Escravidão e Invenção da
Liberdade: estudos sobre o negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense; CNPq, 1988. pp.33-59.
FARIA, Sheyla de Castro. A Colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano
colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.LOUREIRO, Kátia Afonso Silva. Arquitetura
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MOTT, Luis. Sergipe Del Rey: população, economia e sociedade. Aracaju: Fundesc, 1986.
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OLIVEIRA, Maria Inês Côrtez. Quem eram os “negros da Guiné”? A origem dos africanos na
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PINTO, Tânia Maria de Jesus. Os negros cristãos católicos e o culto aos santos na Bahia
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UNICAMP, 2004.
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e mulheres escravos em Lagarto, Província de Sergipe (1850-1888). Salvador, 2004.
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SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos: Engenhos e escravos na sociedade colonial. São
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SLENES, Robert W. Na Senzala, uma Flor: esperanças e recordações na formação da
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A ILEGALIDADE DO TRÁFICO NEGREIRO NO MUNICÍPIO DE
MACAÉ (1830-1865)”
Josane Rodrigues Boechat – UNIVERSO
[email protected]
Jorge Prata - UNIVERSO
A presente pesquisa propõe um estudo acerca do tráfico ilegal e suas implicações na primeira
metade do século XIX, no município de Macaé. A temática do tráfico ilegal é
significativamente recorrente nos estudos historiográficos, como por exemplo, a abordagem
dado por de Jaime Rodrigues no livro “O Infame Comércio” em que trata o tema do tráfico
ilegal como contrabando e pirataria no Brasil no primeiro meado do século XIX, mostrando
de forma abrangente como esta prática perpassou por todo o litoral do território brasileiro. Por
um outro lado, instiga e abrem leques para novos e aprofundamentos estudos sobre a temática.
Nessa abordagem de tráfico e contrabando de africanos negros, de suspeitas e apreensões de
navios, pelas auditorias instaladas pela Marinha Imperial Brasileira, mostra a apreensão do
navio Iate “Rolha” no porto de Macaé, pelo navio vapor da marinha “Urânia” com abordagem
e apreensão de 212 africanos negros boçais somando conjuntamente com a apreensão de uma
garoupeira “Santo Antônio Brilhante” com 4 homens africanos adultos no mesmo dia e porto.
Assim, a pesquisa propõe averiguar a prática do tráfico ilegal da cidade de Macaé, a rota do
tráfico ilegal, do contrabando e pirataria de africanos, na influência da economia do comércio
negreiro com a província, a incidência com o que ocorria o desembarque de contrabando de
negros africanos no território do município, dos traficantes residentes na província, as
apreensões feitas na costa do município, seja por navios da polícia da marinha brasileira ou
inglesa, como e quantos navios foram apreendidos como suspeitos ou por contrabando e
pirataria.
Palavras-chave: História, escravidão, tráfico, Macaé.
A pesquisa propõe estudo acerca do tráfico ilegal e suas implicações na primeira
metade do século XIX, no município de Macaé. Chama a atenção para os navios que atuavam
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nessa atividade ilegal, que foram autuados no tráfico de contrabando de africanos negros
boçais vindos da África.
Assim, a pesquisa propõe averiguar a prática do tráfico ilegal da cidade de Macaé,
a rota do tráfico ilegal, do contrabando e pirataria de africanos, na influência da economia do
comércio negreiro com a província, a incidência com o que ocorria o desembarque de
contrabando de negros africanos no território da província, dos traficantes residentes na
província ou imediações, as apreensões feitas na costa do município, seja por navios da
polícia da marinha brasileira ou inglesa, como, quantos navios e quem dos traficantes foram
apreendidos como suspeitos por contrabando e pirataria. Os desembarques clandestinos se
processam nos portos, nas praias desertas, com a colaboração muitas vezes da população
litorânea.
Interessa, também, nesse estudo dar conta dos sujeitos envolvidos nessa prática
ilegal, na região do município de Macaé. Vários foram os barcos suspeitos de tráfico,
contrabando e pirataria nas imediações da cidade de Macaé como o navio brigue escuna
Tentativa e o iate Rolha e da Garoupeira Santo Antonio Brilhante, de tantos outros foram
apresados e removidos em depósito para a Casa de Correção da Corte para inquérito e
responder ao processo-crime de tráfico, contrabando e pirataria.
A comunicação tem por objetivo demonstrar pela analise do período do comércio
ilegal de africanos vindos através do Atlântico para o Brasil. O trabalho ainda não está
concluído estando em fase de construção, mas desvela desde já um complexo sistema legal
onde processava uma emaranhada rede. Implicava numa sociedade conivente, por um país
agro-exportador expressamente representado por uma demanda de mão-de-obra escravista. A
tudo isso, somava-se ao comércio, através do contrabando de africanos. A partir fim do tráfico
legal pelas Leis de 183124 (BETHELL, 1976, p.76) e 185025 impedindo sua negociação livre
dificultando seu trânsito, portanto implicando a um comércio ilegal.
Assim, o nascente país que despontava Brasil, mantido por uma economia
escravista dependente, já com uma permanência de quase 300 anos, passa a sofrer sanções por
24 Diogo Antonio Feijó, padre liberal, responsável pela aprovação do projeto de Barbacena, (com algumas
emendas) tornando lei em 7 de novembro de 1831. Feita em obediência a um compromisso do Brasil com a
Inglaterra a fim de extinguir o tráfico de escravos, libertava os africanos chegados ao Brasil após sua assinatura.
25 Lei nº. 581, de 4 de setembro de 1850 – Lei Eusébio de Queirós - Estabelece medidas para a repressão do
tráfico de africanos neste Império. Em 4 de setembro de 1850 foi sancionada a lei que, depois de uma sucessão
de medidas inócuas, determinou o fim do tráfico de escravos no Brasil. A lei tomou o nome de seu propositor, o
então ministro da Justiça Eusébio de Queirós.
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parte das autoridades brasileiras também pela política inglesa que interpõe de modo
abrangente dificultando o comércio transatlântico.
A essa dificuldade somam-se acordos Brasil – Inglaterra regida por decretos,
artigos e leis fundamentando aos ingleses e brasileiros a levar a cabo e por fim ao comércio
transatlântico de escravos feito, a partir dos apresamentos de navios que comercializavam
com a Costa d’África, carga humana.
Deste modo, o Brasil torna grande provedor no contrabando de africanos, que são
embarcados e trazidos da Costa d’ África sendo então, desembarcados muito deles nas praias
desertas e afastadas ao longo do litoral brasileiro em cidades litorâneas implicadas na
manutenção do tráfico e ao abastecimento não só do próprio local do ocorrido desembarque
dos africanos, mas também no intercâmbio do comércio interno do país.
Com isso, os navios negreiros que faziam o tráfico com a África levando na ida
para o continente negro, produtos brasileiros como cachaça, fumo, cacau, e tantos outros
artigos, sua volta ao continente brasileiro era abastecido por um carregamento de africanos
para manutenção da escravidão.
Assim, o processo-crime do Iate Rolha e da Garoupeira Santo Antonio Brilhante
com a apreensão por contrabando, tráfico e pirataria de africanos negros é o tema de estudo e
propõe acerca do tráfico ilegal e suas implicações na primeira metade do século XIX, no
município de Macaé.
A rota do tráfico ilegal, do contrabando e pirataria de africanos, na influência da
economia do comércio negreiro com a província, a incidência com o que ocorria o
desembarque de contrabando de negros africanos no território da província, dos traficantes
residentes na província ou imediações, as apreensões feitas na costa do município. Os
desembarques clandestinos se processam nos portos, nas praias desertas, com a colaboração
muitas vezes da população litorânea.
Tem por sua estrutura uma divisão que se apresenta por Ofícios do escrivão, na
nomeação por este mesmo receber impedimento para fazer parte do processo como também
da designação do Dr. Auditor Geral da Marinha encarregado de fazer junto a Comissão, a
Corte, o Ministério dos Negócios e da Justiça, a Marinha de Guerra Imperial26.
Sendo assim, dá-se prosseguimento ao processo a partir de ofícios por meio do
escrivão determinado e de despachos de Avisos feitos em Cartórios, tudo por ordem do Dr.
Auditor Geral. As intimações e de comparecimentos para auto de perguntas mais diligências.
26
Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (ANRJ).
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Devidas Cartas Ofícios são outro meio de se fazer à mediação e deferência do caso em
questão. Não só de relatórios são deferidos as questões, mas no ato de remoções e de
transferências como também o ato de se fazer um relatório constando de uma lista ou rol,
perfazendo uma relação dos africanos apreendidos constando o mesmo de vários itens na
apresentação e reconhecimento, na distinção dos africanos, seja por marcas ou mesmo de sua
etnia até mesmo pela sua idade e sexo. A relação é feita constando às referências que
possibilitam o reconhecimento e o registro dos africanos apreendidos. A relação é utilizada na
transferência dos africanos quando em depósito das instituições públicas ou privadas, e no
reconhecimento dos africanos, como é anexado um resumo da lista ou rol de africanos.
A transferência em depósito tanto dos africanos quanto a tripulação é mais outro
apêndice que consta dos processos no tramite do mesmo para que este possa ser transparente,
evidente e específico para o entendimento daqueles que o venha lê-lo. A Casa de Correção
emite um ofício do montante recebido em depósito, incorporado ao processo, dirigido ao
Doutor Auditor Geral da Marinha.
As juntadas são cartas ofícios, citando avisos, relatórios ou mesmo referências
atualizando e acrescentando ao processo fatos ocorridos a que venha esclarecer ao processocrime. Acrescenta algum novo episódio, evento ou uma passagem, engrossando o processo–
crime.
Os ofícios de aviso são cartas referidas de uma instituição ou repartição a outra na
qualidade de esclarecer ou incorporar com fatos que serão incorporados no decurso do
processo-crime como sendo mais um fator de justificar ou então de reafirmar o ato cometido.
Além desses tópicos da estrutura do processo como item, temos o inquérito de
perguntas e diligências que são feitas à tripulação, mestres e passageiros da embarcação
apreendida e também a tripulação do navio apresador como de testemunhas sem deixar de
mencionar os próprios africanos.
A lista de objetos é mais um recurso do processo. Listando e descrevendo os itens
encontrados a bordo da embarcação apresadas, demonstra nos artigos arrolados a justificativa
da certeza da apreensão do navio.
Diligências de perguntas e respostas são argumentos ou mais, para formalizar o
crime de contrabando, tráfico e pirataria de africanos novos. São alegações, inquirindo, aos
envolvidos, aqueles que se encontravam no momento da apreensão da embarcação estando a
bordo ou não; caracteriza-se por indagações a cerca da investigação; com intenção de provar o
crime ou refutar o mesmo.
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Passa-se então, a serem feitos inquisições a testemunhas as quais podem ser a
tripulação e passageiros das embarcações apresadas e também do navio apresador na
qualidade de poder fazer um acareamento das respostas dadas por ambas as testemunhas.
Assim, se ouve tantas quantas testemunhas forem necessárias para se ter uma visibilidade
geral das respostas e poder fundamentar as questões e se chegar então a uma conclusão.
O auto de inventário judicial, arrecadação e depósito dos pertences do iate feito na
presença de um membro da tripulação e mais testemunhas na qualidade de assegurar a
veracidade do mesmo, elemento de valorizar os objetos encontrados procedendo ao inventário
e de desocupação formulando bases para delegar ao inquérito um fator positivo ou negativo
do apresamento.
Com isto, são feitos uma lista dos objetos encontrados que venham incriminar ou
reabilitar o mesmo. Constituindo de averiguação em demonstrar a criminalidade ou não nos
aspectos que venham indicar sua culpabilidade como referência às escotilhas fechadas ou com
grades, os mastros reais em outras redes enfim, peças que fazem parte do navio, possibilitam
realçar o envolvimento do mesmo no tráfico. Desse modo ficam sob judice do depositório
delegado para esse fim.
No mesmo dia em que foi feita a apreensão do iate Rolha no porto de Macaé, foi
também apresado nas imediações do litoral indo, em direção a Cabo Frio, uma garoupeira de
nome Santo Antonio Brilhante, sendo interceptada pelo mesmo vapor de guerra Urânia e
constatado a presença de quatro africanos a bordo. Portanto essa embarcação foi redirecionada
seu destino para o porto de Macaé, onde os negros africanos encontrados a bordo da
garoupeira foram incluídos, no rol com os africanos do iate Rolha.
Assim, tão logo uma relação feita dos africanos contrabandeados no iate Rolha e
na Garoupeira Santo Antonio Brilhante, distinguindo nesse documento cada qual, fazendo
uma contagem, pela sua origem como nação e marcas étnicas e constando as idades
presumíveis, o local proveniente de seu embarque ou mesmo de seu apresamento na Costa da
África, para então que se faça à denúncia pública e a remoção dos mesmos para a Casa de
Correção juntamente da tripulação, tanto o mestre, a tripulação e até mesmo o passageiro
passam por toda a segurança necessária e de recomendação a uma fortaleza em que a bordo de
um navio de guerra, pelo Doutor Auditor. Somente em último caso serão conduzidos para a
Cadeia do Arsenal. Fica a tripulação na obrigação de serem responsáveis durante o
julgamento pela sua manutenção dos africanos.
Essa relação acusa nessa listagem 95 africanos do sexo feminino entre elas 27
mulheres adultas e 78 mulheres muitos jovens estando na faixa etária de 8 a 12 anos de idade,
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constando também 117 africanos do sexo masculino dentre eles 29 homens e 96 jovens em
idades que variavam entre 10 a 15 anos. O total de indivíduos apreendidos foi de 221 entre
africanos e tripulação, todos destinados a Casa de Correção em depósito.
Interessa, também, nesse estudo dar conta dos sujeitos envolvidos nessa prática
ilegal, bem como dos destinos e cotidianos dos africanos negros apreendidos na região do
município de Macaé. Destacaram-se em Macaé os traficantes: Victorio Emmanuel Paretto
(italiano), José Bernardino de Sá (português), Joaquim Ferramenta, José de Souza Velho,
Francisco Domingues de Araújo. Assim, aumentando o preço abusivamente, enriqueciam,
justificando as dificuldades encontradas para transportar os africanos, sendo um dos maiores
negócios da época.
A proibição do tráfico veio aumentar abusivamente o preço dos escravos trazidos
da África, justificada pela dificuldade para o transporte, e assim, os traficantes sediados no
litoral brasileiro, tornavam-se cada vez mais ricos, fazendo do tráfico ilegal um negócio
altamente rentável da época: O tráfico ilegal mostrava-se tão intenso que consta a entrada no
país (...) 3.000 africanos desembarcados ilegalmente em 1851, em barracões e em armazéns
no município de Macaé, informado por Charles Hamilton James, embaixador inglês. 27
Torna-se notório, o tráfico ilegal, não só em Macaé, mas, nos arredores, de Cabo
Frio, São João da Barra, Cabo de São Tomé, Ponta de Búzios, Itapemirim, Paraty,
Marambaia, Angra dos Reis; mantinham elementos de ligação, escolhendo locais de
desembarque, e estabelecem as praias desertas e de pequenos barcos para ter contato com os
navios negreiros, passam a adotar sistemas de comunicação como códigos, avisos e sinais
costeiros, para a sua própria segurança.
A terra fluminense28 foi um viveiro de escravos, tendo sido aqui introduzidos por
vários pontos de entrada, de onde seguiam a outros locais, podendo ser por via fluvial ou por
picadas feitas nas matas, os que se destinavam ao interior do Brasil chegando até Minas
Gerais, Goiás e Mato Grosso, uma relação com o contrabando e comércio inter-regional.
O mínimo e o máximo exigido é que o julgamento aconteça num prazo de duração
de 8 meses. O processo em média: 6 meses para a abertura do processo; 37 dias para que as
comissões venha dar suas sentenças; 70 dias para que a sentença fosse executada nos casos de
navios condenados; 28 dias antes que os escravos por ventura encontrados fossem libertados
até então permaneciam à bordo.
27
OSCAR, João. Escravidão & Engenhos: Campos; São João da Barra; Macaé; São Fidélis. RJ: Editora
Achhiamé. 2000. pp.78
28
CASADEI, Thalita de Oliveira. Os escravos na terra fluminense. Ed. Parceria Editorial. 2000. p. 24.
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No final do inquérito a embarcação é julgada e considerada “boa presa”, devido à
embarcação apresentar um número tal de apetrechos indicando ser um navio devidamente
aparelhado ao tráfico de africanos. É disposto um veredicto e uma sentença que muitas vezes
a venda em leilão do navio é necessária para cobrir o pagamento do tramite do julgamento
como também pelo crime de tráfico, contrabando e pirataria do qual foram acusados e
julgados formalizando a contravenção.
BIBLIOGRAFIA E FONTES PRIMÁRIAS
Fontes primárias:
Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
Microfilme
AN ─ 114  2001  AGM;
AN ─ 115  2001  AGM;
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Série Justiça
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IJ6  469 – Africanos. 1824 – 1864.
IJ6  470 – Africanos. 1840 – 1868.
IJ6  471 – Africanos livres. 1834 – 1864.
IJ6  472 – Tráfico de africanos. Navios suspeitos. 1838 – 1860.
IJ6  480 – moeda falsa e tráfico de africanos. 1836 – 1864.
IJ6  481 – Moeda Falsa. 1855.
IJ6  510 – Moeda falsa e tráfico de africanos.
IJ6  521 – Tráfico de africanos – 1853 – 1865.
IJ6  522 – Tráfico de africanos. 1841 – 1865.
IJ6  523 – Africanos livres. 1833 – 1864.
IJ6  525 – Africanos 1831 – 1864.
IJ6  15 – Tráfico de africanos.
IJ6  16 – Africanos livres.
IJ1  450 – Africanos. Carta de emancipação.
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IJ1  974 – Ministério da Marinha ao Ministro da Justiça.
IJ1 1067 – Ministério da Justiça – 1877.
Série Guerra
Códices  807  v.7  Diversos  1840;
Códices  807  v.2  Diversos  Império  1839;
Códices  807  v.15  Diversos  Portos  Brasil.
Caixas Topográficas  Escravos  2627, 1, 3; 2627, 1, 2; 2627, 2, 28;
Caixas Topográficas  Inventários  2635, 4, 23.
Referências Bibliografias:
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Janeiro: Vozes, 2003.
BETHELL, Leslie. A abolição do tráfico de escravos no Brasil: a Grã Bretanha, o Brasil e
a questão do tráfico de escravos, 1807-1869. Rio de Janeiro: EDUSP / Expressão e Cultura,
1976).
CASADEI, Thalita de Oliveira. Os escravos na terra fluminense. RJ: Ed. Parceria Editorial,
2000.
DIÁRIO OFICIAL. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Procuradoria Regional da
República da 1ª Região. COORDENADORIA PARA ERRADICAÇÃO DAS FORMAS
CONTEMPORÂNEAS DE ESCRAVIDÃO E PARA QUESTÕES INDÍGENAS. Diário
Oficial. Lei nº. 581, de 4 de setembro de 1850 – Lei Euzébio de Queirós. Estabelece medidas
para repressão do tráfico de Africanos neste Império. Em 4 de setembro de 1850 foi
sancionada a lei que, depois de uma sucessão de medidas inócuas, determinou o fim do tráfico
de escravos no Brasil. A Lei tomou o nome do seu propositor, o então ministro da Justiça
Euzébio de Queirós.
OSCAR, João. Escravidão & Engenhos: Campos, São João da Barra, Macaé, São Fidélis.
RJ: Editora Achiamé, 1998.
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PARADA, Antonio Alvarez. Tráfico de negros africanos no litoral do nosso Estado. “S.D.”
RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de
africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas, SP: Editora da UNICAMP/CECULT, 2000.
(Coleção Várias Histórias).
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RIQUEZA ESCRAVA EM LAGARTO (1800-1850)
Carlos Roberto Santos Maciel – UNIT
[email protected]
A presente pesquisa sobre a riqueza escrava em Lagarto (1800-1850), tem como propósito
analisar a participação do bem escravo na composição da riqueza dos proprietários locais.
Essa pesquisa apóia-se na análise e interpretação dos inventários post-mortem, que
possibilitam a obtenção de informações acerca da composição das fortunas locais. Dos 159
inventários catalogados 83,02% dos proprietários tinha pelo menos um escravo na
composição de sua fortuna. Isto comprova que o bem escravo estava bastante difundido entre
as riquezas dos proprietários da vila. Entre os proprietários de apenas um cativo, percebemos
que na maioria das vezes esses eram mulheres. Essas eram preteridas devido sua versatilidade
e pelo fato que poderia aumentar o número de escravos. Encontramos famílias escravas em
alguns proprietários e essa tinha uma grande participação no montante-mor, houve casos em
que essas famílias representavam mais de 86% da riqueza. O bem escravo tinha maior
participação no total das riquezas de pessoas menos afortunadas, pois muitos tinham nesse seu
bem mais valioso, chegando em alguns casos a representar mais de 80%da fortuna do
proprietário. Os preços dos escravos tiveram aumento no decorrer do período.
Palavras-chaves: Riqueza escrava – Sergipe – Lagarto
É comprovado que existiu um número razoável de escravos na região do Agreste
de Lagarto29, foi computada uma população cativa composta por 732 escravos no período de
1800-1850. Sobre a economia de Lagarto, no marco temporal escolhido, uma era
caracterizada principalmente pelo cultivo de gênero alimentício e pela criação de gado,
havendo apenas cinco engenhos, esses aparecerão em maior número na segunda metade do
século XIX30. Precisamos constatar qual a importância da riqueza escrava em uma economia
de subsistência, como era a participação do bem escravo na composição das fortunas locais.
Este trabalho ainda está em fase de levantamento de dados, e não está concluído.
29
MOTT, Luiz R. B. Sergipe Del Rey: População, Economia e Sociedade. Aracaju: Fundesc, 1986. p. 242.
SANTOS, Joceneide Cunha dos. De senhores de engenho a lavradores de mandioca: um estudo sobre a
propriedade escrava (Agreste-Sertão de Lagarto 1850-1888). São Cristóvão, 2001. Monografia (Licenciatura em
História) – Departamento de História, Universidade Federal de Sergipe.
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O escravo se constituía em muitos casos a maior parte da riqueza dos proprietários
da região. Para elucidar melhor a questão analisemos o gráfico 1, elaborado a partir a análise
de 58 inventários. Os principais itens que constituíam a fortuna dos moradores de Lagarto
eram: escravos, semoventes, bens de raiz e outros31.
Gráfico 1
Lagarto-Sergipe
Fonte: Inventários 1º e 2º ofício de Lagarto 1800-1839 AGJSE
Como podemos perceber a maior parte das fortunas dos moradores locais eram
representadas pelos escravos. O escravo era sem dúvida um relevante fator de produção e um
dos componentes de grande importância no estoque da riqueza dos proprietários de Lagarto
durante o período analisado.
A posse de escravos era muito difundida nessa região, pois dos 159 inventários
catalogados 83,02% dos proprietários tinha pelo menos um escravo na composição de sua
fortuna.
Sobre a distribuição dos proprietários de escravos, analisando o tamanho da posse
escrava, em pequena, média ou grande, observemos a tabela 1. Lembrando que os parâmetros
a pequena posse (1 a 3 cativos), a média (4 a 9 cativos) e a grande com 10 ou mais escravos.
31
Outros: produtos, roças, jóias, moveis, ferramentas, dívidas ativas.
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Tabela 1
Lagarto-Sergipe (1800-1850).
Distribuição da posse escrava por tamanho da posse
Tamanho das posses
Número de escravos
% dos escravos
N. de inventários
Pequeno
113
15,43%
63
Médio
245
33,33%
45
Grande
374
51,09%
24
Total
732
100%
132
Fonte: Inventários 1º e 2º Ofício de Lagarto 1800-1850 AGJSE
Com fica evidente na tabela 1, apesar do número de pequenos proprietários ser
maior que o de médios e grandes proprietários, esses últimos é que detêm o maior número de
escravos. Percebe-se que o bem escravo era bastante difundido entre os moradores, como
também fica clara que existe uma grande concentração do bem nas mãos de poucos
proprietários.
De lado, nota-se relativa concentração da riqueza medida pela posse de
escravos, dado o grande número de escravos em mãos de poucos
proprietários. Do outro lado, a propriedade escrava encontrava-se
disseminada por toda a sociedade, como indicado pelo grande número de
proprietários com poucos escravos”. (MELLO, 1990, p. 107)
O escravo era um bem muito valioso e cobiçado por muitos. Muitas pessoas em
Lagarto tinham no escravo o seu maior montante: chegando em alguns casos a representa
mais de 90% da fortuna.
O escravo representava uma parcela significativa na composição das fortunas,
sejam dos pequenos proprietários, médios ou grandes. Mas o bem escravo tinha um maior
percentual na composição das fortunas principalmente nas dos pequenos proprietários, onde
em alguns casos a riqueza escrava compunha mais de 90% do montante-mor, como era o caso
Dona Anna Francisca das Virgens, cujo os dois escravos que possuía equivalia a 93,98% da
sua fortuna.
“A importância do escravo na sociedade em apreço é evidenciava pela sua
constante presença nas fortunas, já que pode ser encontrado entre os mais
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pobres, os quais depositavam suas econômicas neste que às vezes era fonte
de sustento e único ativo”. (SILVA, 2003, p. 32)
Para esclarecer melhor a participação da riqueza escrava no montante-mor dos
pequenos médios e grandes proprietários observamos a tabela 2.
Tabela 2
Lagarto-Sergipe
Participação da riqueza escrava por década nas propriedades
Período
1810-1819
1820-1829
1830-1839
Tamanho das posses
Pequena
Média
Grande
Pequena
Média
Grande
Pequena
Média
Grande
%
70,68%
59,84%
37,64%
58,35%
49,23%
14,63%
53,29%
71%
57,41%
Fonte: Inventários 1º e 2º ofício de Lagarto 1800-1839 AGJSE
Analisando a tabela 2 é possível perceber que os escravos tinham maior
participação nas fortunas dos pequenos e médios proprietários, os grandes proprietários eram
mais afortunados e investiam suas fortunas na criação de animais e fazendas. Só que isto
muda a partir da década de 30 como percebemos um possível motivo para isso que há um
aumento do número de escravos na região, portanto uma maior quantidade representaria um
maior valor, e assim uma maior participação na total geral das fortunas. Além de que há um
aumento 86,13% no preço do cativo durante a década, na região em estudo32, e estes
aumentos dos preços dos escravos fizeram este bem ser mais representativos na riqueza dos
proprietários.
É possível perceber um declínio da participação dos escravos nas fortunas dos
pequenos proprietários, isto pode ser explicado pelo aumento do preço do escravo, isto
provocou uma maior dificuldade dos mais pobres adquirir cativos.
“Numa sociedade em que o trabalho braçal era visto como uma maldição
bíblica, portanto, depreciado, a mão-de-obra escrava apresentava-se como
sustentáculo da economia e disseminara-se em todos os setores. A
escravidão representava bem mais que uma instituição econômica lucrativa,
32
MACIEL, Carlos Roberto Santos; SANTOS, Carlos José Andrade e SANTOS, Ronaldo Pinheiro dos. ArraiaMiúda: uma analise sobre a propriedade escrava e da população cativa em Lagarto-SE (1880-1850). Estância,
2007 Monografia (Licenciatura em História). Universidade Tiradentes. p. 56
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significava abastanças e ostentara status para os outros”. (SILVA, 2005, p.
69)
Sobre as variações dos preços dos escravos, por década segundo sexo observemos
a tabela 3.
Tabela 3
Lagarto – Sergipe
Média dos preços dos escravos em Lagarto por década segundo o sexo.
Década
Média
Homem
1810-1819
1820-1829
1830-1839
98$07
158$59
260$260
Mulher
108$33
113$71
232$922
Fonte: Inventários 1º e 2º ofício de Lagarto 1800-1839 AGJSE
Como podemos perceber na tabela 3, houve um aumento crescente de década a
década. Os preços dos escravos variavam principalmente em função do sexo idade, profissão,
aptidão, saúde e conjuntura econômica. “Além do sexo e da idade, por si só suficiente para
fazer variar amplamente a cotação de um cativo, eram também considerados os defeitos
físicos, estado de saúde, a etnia (quando africano) e, principalmente, as eventuais profissões.
(BACELLAR, 2000, p. 249).
Os dados da tabela 3 apontam que o escravo do sexo masculino tinha um preço
superior ao das escravas. Isto comprova a hipótese de que o sexo definiria o preço do escravo.
Na monografia33, ao analisar o período de 1800-1850, percebemos que havia uma
equivalência nos preços. Como falta analisar a década de 40 podemos afirmar que a escrava
tinha um preço mais elevado em relação ao do escravo. Uma possível explicação para, isto é,
que o medo com o término do trafico de escravos fez o preço o tráfico negreiro, esta seria a
única via de obtenção de mão-de-obra cativa a partir da reprodução natural.
O número de proprietários de apenas um escravo de apenas um escravo é de vinte
e seis inventariados, os escravos desses eram em sua maioria mulheres. Possivelmente, os
menos afortunados ao adquirirem seu primeiro cativo, optavam pela compra de uma mulher,
já que essa poderia desenvolver atividades domésticas, como também trabalhos nas
propriedades rurais, já que a base da economia local era a produção de gêneros de
abastecessem o mercado interno.
33
Idem
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Outra hipótese que justificava a compra de uma escrava, era a importantes pois,
poderiam aumentar a posse de cativos e conseqüentemente a fortuna de seu proprietário, isto
através da reprodução natural.
“Podemos supor que comprar uma escrava seria talvez, parte de uma
estratégia de ampliação ou multiplicação mais acessível da mão-de-obra
forçada, sem recorrer às parcas e difíceis poupanças familiares. Apesar dos
riscos de uma elevada mortalidade materna e infantil, e em que se pese a
necessidade de aguardar o crescimento do revento, a reprodução natural
talvez fosse, para um pequeno lavrador, um roceiro ou um artesão, uma
opção viável, que não envolvia maiores dispêndios de capital”.
(BACELLAR, 2000, p. 243)
Essa reprodução natural aumentava as fortunas de seus proprietários. A
constituição da família escrava dentro das posses, chegavam em alguns casos a ser a maior
parte da riqueza, como era o caso de José de Jesus de Passos34, cujo possuía uma escrava com
dois filhos, essa família escrava representava 68,56% da fortuna do proprietário. Outro caso é
o de Dona Anna Josefa, ela possuía uma escrava que tinha um filho, esses representavam
86,21% da fortuna dessa senhora. A partir dos exemplos acima mencionados, nos parece claro
que muitos proprietários incentivavam a reprodução natural para aumentar as suas fortunas.
Ressaltamos que possuir um escravo seria um grande auxilio para aumentar a
produção. Como também concederia ao senhor prestigio e status, por isso muitos se
esforçavam para adquirir um ou mais cativos, na tentativa de se fazer notar na sociedade da
época.
“O escravo era um bem de produção, o seu trabalho produzia riqueza. Mas,
nem sempre estavam ocupados numa atividade produtiva, ou geradora de
riqueza, muitos eram destinados a serviços domésticos, ou a outras
atividades sem rendimento pecuniário. Ter escravo qualificava a pessoa
como proprietário e lhe dava status. Poder-se-ia não ser proprietário de terra,
de casas, de embarcações de plantações, mas ao ser proprietário de uma
unidade humana, de um escravo, ter alguém servindo, dava a condição de ser
servido. Possuir escravo significava ter uma das qualidades da sociedade de
ordem daquela época: não ter necessidade de trabalhar, ou seja,
proporcionava ao senhor a condição de não trabalhar, de não manchar as
mãos com o trabalho, limpava as mãos de seu senhor. Assim, os menos
afortunados valeria todo e qualquer esforço, para comprar ou repor um
escravo morto, inválido ou fugido”. (MASCARENHAS, 1998, p. 122)
34
Inventariado: José de Jesus de Passos. Inventariante: Rosalina Maria de Jesus. Inventário post-mortem.
Cartório de 2º Ofício de Lagarto, 06/08/1850, caixa 15, doc. 15.
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O bem escravo era algo bastante difundido entre as riquezas dos moradores,
porquanto percebemos que um grande número de pessoas conseguiam adquirir escravos,
apesar da região produzir gêneros agrícolas voltado para o abastecimento do mercado interno,
e o dedicar a criação de gado, também com o mesmo fim.
Além de bastante disseminado, o bem escravo constituía na principal fortuna na
composição da riqueza dos proprietários locais. Algumas conclusões são impossibilidades
devido a pesquisa ainda estiver em andamento.
FONTES
Manuscritas
Arquivo Geral do Judiciário de Sergipe.
Cartório de Lagarto 1º e 2º Ofício.
Inventários post-mortem (1800-1850). Caixas 01 – 15 e Caixa 01.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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SILVA, Maria Beatriz Nizza da (org). Brasil: colonização e escravidão. Rio de Janeiro:
Novas Fronteira, 2000. PP. 238-254.
MACIEL, Carlos Roberto Santos; SANTOS, Carlos José Andrade e SANTOS, Ronaldo
Pinheiro dos. Arraia-Miúda: uma analise sobre a propriedade escrava e da população cativa
em Lagarto-SE (1880-1850). Estância, 2007 Monografia (Licenciatura em História).
Universidade Tiradentes.
MASCARENHAS, Maria José Rapassi. Fortunas Coloniais: Elites e Riqueza em Salvador
1760-1808. São Paulo, 1998. (tese de Doutorado em História Econômica apresentada na
USP).
MELLO, Zélia M. Cardoso de. Metamorfose da Riqueza: São Paulo, 1845-1895.
Contribuição ao estudo da passagem da economia mercantil-escravista à economia
exportadora capitalista. 2ª edição. São Paulo. Hutitec, 1990.
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MOTT, Luis R. B. Sergipe Del Rey: População, economia e sociedade. Aracaju: Fundesc,
1986.
OLIVEIRA, Lélio Luiz de. Economia e História em Franca século XIX: Franca:
UNESP;FMDSS: Amazonas Prod. Calçados S/A, 1997.
SANTOS, Joceneide Cunha dos. Entre farinhadas, procissões e famílias: a vida de homens
e mulheres escravos em Lagarto, Província de Sergipe (1850-1888). Salvador, 2004.
Dissertação (mestrado em História). Pós-graduação em História Social – Universidade
Federal da Bahia.
______________________. De Senhores de engenho à lavradores de mandioca: um estudo
sobre a propriedade escrava (Agreste-Sertão de Lagarto 1850-1888) -. São Cristóvão, 2001.
SILVA, Sheyla Farias. Riqueza em Movimento: A Construção de Fortunas na Estância
Escravocrata (1850-1888). São Cristóvão, 2002 (Monografia de Licenciatura) DHI-UFS.
____________________. Nas teias da fortuna: homens de negócio na Estância Oitocentista
(1820-1888). Salvador, 2005. Dissertação (Mestrado em História), Pós-graduação em História
Social – Universidade Federal da Bahia.
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A
INTERAÇÃO
DOS
QUILOMBOLAS
COM
A
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SOCIEDADE
ENVOLVENTE NA REGIÃO DA COTINGUIBA (1870-7879)
Ana Carla de Jesus – UFS
[email protected]
A resistência escrava é um dos temas mais trabalhados e revisitados pela historiografia da
escravidão, e os quilombos e quilombolas estão inclusos nesta temática. Assim, pretendo
analisar a relação entre os quilombolas da Zona da Cotinguiba da década de 70 do século
XIX, e a comunidade envolvente. Para isso, utilizei como fonte histórica principalmente os
ofícios da segurança pública e do governo. Os quilombolas mantiveram relações estreitas com
diversos grupos sociais, integrando profundamente a sociedade escravista. Ao longo da
década de 1870, os quilombolas existentes na região da Cotinguiba estabeleceram redes de
comércio, relações de trabalho, de amizade, parentesco e proteção envolvendo escravos,
libertos, e até mesmo gente livre branca, como alguns proprietários de engenhos. Podemos
constatar que, na sua maioria, os quilombos não existiam isolados, distantes da sociedade
escravista, e notaremos também que a interação do mundo quilombola com a sociedade
envolvente modificou lenta, porém profundamente os contornos da sociedade em que viviam.
Palavras-chave: Quilombolas, Sociedade Envolvente.
O trabalho escravo impôs uma realidade social extremamente violenta. No
entanto, como afirma Sidney Chalhoub, homens e mulheres escravizados não se tornaram
passivos receptores dos valores senhoriais, ao contrário, os escravos pensavam e agiam
segundo premissas próprias35.
Esses cativos buscavam negociar espaços de autonomia com seus Senhores, no
entanto, quando essa negociação falhava abria-se espaço para fuga e possível formação de
35
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São
Paulo: Companhia das letras, 1990.
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ISBN - 978-85-7822-067-9
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quilombos, sendo esta uma das formas mais notórias de resistência dos escravos e que se fez
presente em quase todo território nacional36.
Na Província de Sergipe, as notícias sobre quilombos remetem ao século XVII,
como bem afirma Felte Bezerra37. Contudo, é a partir do século XIX que esses quilombos
começaram a se destacar. De acordo com Lourival Santos isso deve ter ocorrido ou porque
foram mais constantes nessa época, ou porque a documentação preservada permite a
constatação de sua existência38.
O objetivo deste texto é, portanto, analisar as relações travadas entre os
quilombolas sergipanos e a sociedade envolvente na região da Cotinguiba, na década de 1870,
pois parto do pressuposto que os quilombos não eram redutos de negros marginalizados e
isolados da sociedade, ao contrário, os quilombolas buscaram, sempre que possível, uma
interação com o “mundo” escravista através de uma complexa rede social de proteção, na qual
procuravam obter uma maior autonomia e controle sobre suas vidas.
Nas últimas décadas da escravidão a relação entre escravos africanos e crioulos
foi algo constante nos quilombos sergipanos, notadamente na zona da Cotinguiba. Os laços de
solidariedade e identidade coletiva ultrapassavam as barreiras da nacionalidade. Antes de
serem Africanos ou Brasileiros, eram escravos tentando reinventar os significados da
liberdade. Esse estreitamento das relações entre africanos e crioulos na década de 1870,
parece estar ligado ao fato de que na época em análise a Província de Sergipe contava com um
número reduzido de africanos.
Segundo Mott, a impossibilidade de importar negros diretamente da Costa da
África e o próprio estilo de pequena empresa doméstica dos engenhos, seriam talvez as duas
principais razões que explicam a alta taxa de reprodução dos escravos e conseqüentemente o
predomínio de crioulos na terras sergipanas39.
Alguns estudiosos da escravidão, como é o caso de Kátia Mattoso; defende a idéia
de que as relações entre africanos e crioulos foram bastante difíceis, as tradições culturais e a
língua teriam se tornado barreiras entre esses escravos40. Contudo, como poderemos perceber,
pelo menos no período analisado, quilombolas africanos e crioulos souberam transpor as
fronteiras que os separavam e lutaram juntos para se manterem aquilombados.
36
Ver REIS, João José.; GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil.
São Paulo: Companhia das letras, 1996.
37
BEZERRA, Felte. As etnias sergipanas. Aracaju: J. Andrade, 1984, p.107.
38
SANTOS, Lourival Santana. Quilombos e quilombolas em terras de Sergipe no século XIX. Revista do
Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Aracaju: n.31, p.32,1992.
39
MOTT, Luiz R.B. Sergipe Del Rey: população, economia e sociedade. Aracaju: FUNDESC, 1986, pp.139150.
40
cf. MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 3ª ed. 2003.
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O escravo José Maroim, natural da África, testifica isso ao demonstrar o
sentimento de compromisso e de interesses recíprocos que havia entre africanos e crioulos.
Ao ser preso em 1873, após passar um tempo aquilombado, José Maroim declara para as
autoridades que “(...) sendo pego pelo Proprietário do Engenho Piedade, e este o colocando
em tronco, João Mulungu, e outro (...) quebraram o tronco, e puseram em liberdade”41.
Que motivos teria o quilombola João Mulungu para tomar essa atitude em prol de
José Maroim? Além da questão solidária que unia esses escravos, na mentalidade de João
Mulungu talvez perpassasse naquele momento o desejo de não ver, através da captura de José
Maroim, a vitória do Senhor de engenho; mais que isso, a quebra daquele tronco (símbolo da
repressão e do cativeiro) e conseqüente libertação do dito escravo, tem forte valor simbólico
na medida em que demonstra que os escravos não eram sujeitos passivos dentro do regime
escravocrata, ao contrário, a ação do quilombola João Mulungu é um exemplo do papel do
individuo, neste caso do negro escravizado, como agente de sua própria história.
O “favor” recebido por José Maroim foi retribuído, pois este tardou o quanto pode
para revelar os locais onde João Mulungu e seu grupo tinham rancho:
Perguntado mais se sabe aonde tem rancho de escravos fugidos? Respondeu
que ouviu dizer ter no [...] Termo de Itabaiana e disse mais que não tem
declarado os lugares de rancho deles em atenção a João Mulungu42.
A atitude do escravo africano José Maroim foi de inestimável valia para que o
quilombola, crioulo, João Mulungu prosseguisse com sua fuga. Esse laço de solidariedade
recíproco foi um dos motivos da manutenção do quilombismo durante vários anos na
Província de Sergipe Del Rey.
Além de José Maroim, a documentação nos remete a uma grande quantidade de
quilombolas africanos que mantinham estreitas relações com crioulos, dentre eles tínhamos
Izabel, Venceslau e Maurício.
No entanto, essa rede social de proteção que se formava, não estava restrita a
aliança entre quilombolas africanos e crioulos. Havia um relacionamento entre escravos
fugidos e libertos, independente da nacionalidade.
É importante insistirmos na capacidade que os quilombolas tinham de recriarem
seus espaços dentro da sociedade escravista; fato reforçado através das alianças que
celebravam, sejam com assenzalados, libertos (ex-escravos) e até mesmo com pessoas livres,
como comerciantes locais e proprietários de engenho.
41
42
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 298.
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 298.
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Como afirma Flávio dos Santos Gomes, “através de variadas e complexas
relações, as diversas comunidades quilombolas, além de uma ampla rede de socialização,
construíram uma verdadeira teia de proteção que as manteve também abastecidas”43.
A aliança desencadeada entre escravos quilombolas com libertos contribuiu para
sustentar a longa vida dos quilombos sergipanos. A Zona da Cotinguiba, no ano de 1876, nos
serve de exemplo demonstrando a inegável importância assumida por essas alianças.
Chegando ao meu conhecimento que no lugar denominado Camaratuba,
próximo a cidade de Laranjeiras existiam alguns quilombos, dirigi-me sem
parada de tempo para aquela cidade levando comigo o número de oito
praças. Lá chegando tive de demorar-me um pouco até que chegasse o guia
(...). Por aquele soube que os escravos eram em número de seis e que se
achavam em diversas casas pertencentes a alguns libertos ali residentes(...)44.
Acima temos o chefe de polícia expondo para o presidente de província a situação
com a qual se deparou no cumprimento de suas funções. A partir do exposto, é possível
verificar que a idéia de reificação dos escravos, defendida por alguns estudiosos45; ou ainda a
concepção de que “a resistência do negro através dos quilombos foi uma resistência de fora
para dentro, no contexto da sociedade escravista”46; não condiz com a realidade dos
quilombos sergipanos, nos quais seus componentes buscaram desenvolver uma relação
simbiótica com vários setores da população.
Diversas podem ter sido as razões para que esses libertos acoitassem em suas
casas os quilombolas: laços de solidariedade, religião, amizade, interesses por trocas
mercantis, ou até mesmo uma ação solidária desinteressada (razão pouco provável). Contudo,
independente da razão, a proteção dos libertos a esses quilombolas representou uma ajuda de
incalculável valor, uma vez que, impossibilitou a ação das autoridades locais, pois as casas
dos libertos eram
Muito próximas umas das outras , sendo portanto impossível atacá-las ao
mesmo tempo com tão pouca gente, sob pressão de trabalhar infruticuamente
e nada mais fazendo do que espantar (...). Semelhante procedimento deu
43
GOMES, Flávio dos Santos. História de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de
Janeiro – século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995, p.95.
44
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 652.
45
Suely Queiroz traça um panorama da escravidão negra no Brasil; para essa autora o negro cativo foi o suporte
da economia brasileira por todo o período que durou a escravidão, no entanto, a violência da escravidão havia
transformado o negro em um “ser” coisificado. Ver QUEIROZ, Suely R. Reis de. Escravidão negra no Brasil.
São Paulo: Ática, 1987. Série Princípios.
46
SANTOS, Lourival Santana. Quilombos e quilombolas em terras de Sergipe no século XIX. Revista do
Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Aracaju: n.31, p.42,1992.
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lugar a que eu não prosseguisse pois não convinha fatigar sem resultado
algum os praças que já se achavam tão cansados47.
O apoio dado aos quilombolas pela sociedade envolvente, contribuiu para
dificultar a tarefa do governo em exterminar os quilombos. O trecho apresentado nos serve
para retificar a idéia de que na Província de Sergipe, o que ocorria por parte dos negros
fugidos era um movimento desprovido de coesão e planejamento; concepção que nos conduz
a inferir que havia uma falta de organização dos quilombolas48.
Tal teoria choca-se com as informações expostas pela documentação utilizada, na
qual notamos, por exemplo, a organização e estratégia de defesa empregada pelos
quilombolas com o auxilio dos ex-escravos. Estratégia essa que contribuiu para ineficácia das
expedições reescravizadoras.
Na região da Cotinguiba os quilombolas eram também auxiliados pelos escravos
das senzalas, com os quais entretinham relações não somente de proteção, mas também
comercial. Essa foi mais uma aliança que perdurou durante o desenvolvimento do
quilombismo na Província de Sergipe corroborando para formação e sobrevivência deste
movimento. Pois, “a amizade e proteção que quase todos os escravos dos engenhos votam
aos quilombolas são sérios obstáculos: dão não só guarida no caso de qualquer emergência,
mesmo dentro das senzalas”49.
A aliança dos quilombolas com os escravos da senzala dificultou, em diversas
ocasiões, a ação das autoridades em prol da captura dos escravos fugidos. O jornal de
Aracaju, em agosto de 1872, expressa como essa relação burlava o êxito das diligências
policiais:
Vão de novo aparecendo em alguns pontos os escravos fugidos. O rigor do
inverno faz-los procurar as proximidades dos povoados e a proteção dos
parceiros dos engenhos, proteção que muitas vezes tem burlado as
diligencias da policia. Ultimamente na vila de Japaratuba fez-se uma
diligencia que se não fosse aquela proteção grande seria a presa. Pressentiam
o movimento de força e deixaram os ranchos com precipitação refugiaram-se
os quilombolas nas senzalas dos engenhos50.
47
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 652.
ver tal concepção em SANTOS, Maria Nely. A sociedade Libertadora “Cabana do Pai Thomaz” : Francisco
José Alves, uma história de vida e outras histórias. Aracaju: Gráfica J. Andrade, 1997.
49
Jornal de Aracaju, 20 de março de 1872. Apud MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala. São Paulo:
Brasiliense, 3ª Ed. 1981.
50
Jornal de Aracaju, 10 de março de 1872. Apud MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala. São Paulo:
Brasiliense, 3ª Ed. 1981.
48
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Devido à constatação desse empecilho que atrapalhava a ação das expedições
punitivas, cabia aos proprietários se esforçarem de maneira que prevenissem ou acabassem
com esse “conluio”.
É de crer que os proprietários , os mais ameaçados com a nova atitude que
vão tomando os quilombolas , se esforcem para manter nos engenhos severa
vigilância em ordem e prevenir o perigoso concluio que se dá para frustrar os
planos da autoridade51.
Os escravos das senzalas serviam muitas vezes de informantes, deixando os
quilombolas cientes de qualquer força que se aproximasse em busca desses escravos fugidos;
temos aí mais uma estratégia de sobrevivência dos quilombos. Esse foi um dos motivos
apontados pelo Chefe de Policia ao Juiz Municipal de Japaratuba como causa da improdutiva
diligência que conduziu:
Hoje foi repetida a mesma diligencia com 77 praças da Guarda Nacional e os
cinco da cadeia, mas infelizmente nada se encontrou a não ser mais cinco
ranchos novos em outro lugar, tendo convicção qual que os negros são
protegidos pelos do dito engenho Coqueiro se relacionam e são avisados de
qualquer força que contra eles se dirija52.
As autoridades, freqüentemente, justificavam o fracasso das diligências devido às
relações que os escravos fugidos estabeleciam com os escravos dos engenhos. Depreende-se,
portanto, que essa complexa rede social de proteção foi vital para que os quilombolas
constituíssem ou recriassem seu modo de vida dentro da sociedade escravista vigente.
Os quilombolas conseguiam por meio de trocas comerciais, com os escravos das
fazendas, produtos que necessitavam nos quilombos. A zona da Cotinguiba foi palco de vários
intercâmbios mercantis, como publicou o Jornal de Aracaju: “a experiência tem mostrado o
grau de relação que entretêm os quilombolas com os escravos dos engenhos: acham aqueles
apoio e proteção; trocam farinha e agasalho pela partilha nos roubos dos primeiros e em
caso de perigo invadem as senzalas”53.
O quilombola Romão, com certa constância, praticou trocas mercantis recebendo
de um escravo assenzalado farinha em troca de carne de ovelha.
Fora preso ontem a noite no engenho Capim-assú dentro de uma das
senzalas pertencentes ao escravo Roberto do mesmo engenho Capim-assú,
51
Idem
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 363.
53
Jornal de Aracaju, 03 de abril de 1872. Apud MOURA, Clóvis. Rebeliões da senzala. São Paulo: Brasiliense,
3ª Ed. 1981.
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tendo ali ido buscar ração de farinha da mão do dito Roberto, a quem ele
(Romão) tendo por costume pedir e receber farinha em troca de carne de
ovelha que ele (Romão) muitas vezes levava54.
O grupo dirigido pelo quilombola João Mulungu, mantinha estreita relação com
os escravos do engenho São José, “a ponto de arrancarem mandioca para fazerem a farinha
que repartiam (...) igualmente repartiam [...] dos gados que furtavam os ditos fugidos pelos
pastos dos engenhos vizinhos (...)”55.
A importância dessa aliança entre quilombolas e os escravos das senzalas não se
resume ao aspecto econômico. Contribuiu também para o fortalecimento das relações
familiares, manutenção de praticas cultural e religiosa. A documentação nos revela casos de
quilombolas que se reuniam com os escravos das fazendas para “batucarem” e se divertirem
durante a noite. Na época de São João e do Natal, esses batuques se realizavam de forma mais
constante56. Essa era uma ocasião onde os quilombolas reviam parentes e amigos; era um
momento de sociabilização.
Muitos escravos que optavam pela fuga deixavam nas fazendas entes queridos,
que por motivos diversos (idade avançada, doença, impossibilidade de prosseguir em fuga
com crianças pequenas, ou até mesmo a escolha de se manter como escravo na fazenda) não
os acompanhavam; no entanto, esse não era um motivo para que os laços familiares fossem
definitivamente quebrados. Foram justamente esses laços que facilitaram o cotidiano de
muitos quilombolas.
Cotidiano que foi permeado também pela presença feminina, uma vez que na
região da Cotinguiba as mulheres, fossem elas escravas, livres ou forras, se fizeram presentes
nessa imensa rede de socialização.
A documentação da década de 1870 apresenta um leque variado de informações
sobre essas mulheres que se aventuravam a fazer parte dos quilombos na região da
Cotinguiba. Tínhamos mulheres escravas de 13 anos de idade até a faixa etária dos 35 anos.
Algumas dessas escravas fugidas tiveram que optar entre exercer a maternidade
ou prosseguir sua luta nos quilombos. Foi o caso da escrava (quilombola) Luisa, que declarou
ter “um filho que mandou depositar na porta da igreja de São Benedito em Laranjeiras”57.
A escolha desta igreja para deixar seu filho não se deu forma aleatória. A Igreja de
São Benedito era a sede da irmandade e foi construída para devoção da fé dos negros e pelos
54
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 705.
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 176.
56
cf. Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 373.
57
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 176.
55
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próprios negros58. A escrava Luisa sabia que ali seu rebento seria acolhido, era um local em
que ela confiava.
O jornal de Sergipe em maio de 1873 denunciou o que corriqueiramente acontecia
com os filhos das escravas quilombolas:
a prisão da escrava não deixa de ser de importância, porque veio se
descobrir que tivera ela um filho nos matos e que o viera depositar em
casa de uma mulher moradora de Laranjeiras conhecida por Maria
Cabocla. O Sr. Dr. Chefe de policia tendo conhecimento desse fato,
recomendo que o delegado procedesse as averiguações necessárias
para saber se com efeito existe o menor em poder da dita mulher, a
fim de que sendo tenha ciência o dr. Juiz de órfão, a quem cabe
proceder a respeito da forma do reg. que baixou com o decreto de 13
de novembro de 1872, por ser o menor considerado liberto. Vê-se bem
que esses quilombolas praticam toda sorte de perversidade nos lugares
em que se encontram. Roubam, fazem mil tropelias, privam-se de seus
próprios filhos quando não lhes dão a morte, como muitas vezes terá
acontecido (...)59.
O jornal não revela o porquê de essa mulher aceitar o filho da quilombola, mas a
forma como é chamada – “Maria Cabocla”- já nos dá uma pista de que ela possivelmente
tinha origem mestiça, poderia ser uma forra e deveria ter algum tipo de contato com a escrava,
a ponto desta confiar seu filho aos seus cuidados. Outro dado exposto pela documentação diz
respeito ao infanticídio, uma prática comum entre as escravas60.
É importante ressaltar que aquilo que para alguns representa uma atitude de
crueldade, para essas escravas simbolizava uma forma de sobrevivência. A repressão aos
quilombos se dava de maneira contínua; os quilombolas viviam em constante processo de
fuga, e para que fosse bem sucedida a mobilidade e agilidade era essencial. As crianças
viriam a dificultar a movimentação desses escravos, facilitando a captura dos mesmos.
Algumas dessas escravas quilombolas se tornaram amásias de seus companheiros.
Anna Rita, por exemplo, escrava fugida do engenho Tábua, quando presa em 1873 declarouse casada , mas assumiu ter mantido “relações ilícitas” com o quilombola João Mulungu.
58
NUNES, Maria Thetis. Sergipe Provincial II (1840/1889). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2006, p.60.
Jornal de Sergipe, 14 de maio de 1873. Apud MOURA, Clóvis. Rebeliões da senzala. São Paulo: Brasiliense,
3 ª ed.1981.
60
SANTOS. Joceneide Cunha dos. Entre farinhadas, procissões e famílias: a vida de homens e mulheres
escravos em Lagarto, província de Sergipe (1850-1888). Salvador, 2004. Dissertação de mestrado- Universidade
Federal da Bahia, PP.95-98.
59
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Quando perguntada sobre os presentes que ela havia recebido de Mulungu, respondeu que
“deu-lhe a quantia de cinco mil reis”61.
A atitude do escravo João Mulungu gerou conflitos entre Anna Rita e a escrava
fugida Vicência, que também era amásia do mesmo. O escravo citado tinha ainda uma
companheira, “uma preta de 13 anos”62. Temos uma teia de relação afetivas e conflituosas,
comum entre os quilombolas sergipanos.
Contudo, a relação afetiva dos quilombolas não se dava apenas com mulheres
escravas. Maria, mulher forra, “era amásia do fugido Mathias”.Maria vivia de costuras, tinha
25 anos e não fazia parte de quilombos, apenas tinha comunicação com os escravos fugidos.
No dia de Natal, Maria havia ido batucar com os quilombolas Anna Rita, Marcolino, Nabuco,
João Mulungu, Maximiano e Mathias, e “com eles divertiu-se toda noite”63.
Como é perceptível, a vida desses homens e mulheres não se resumia a fugas,
tinha-se espaço para o lazer, pois “a vida concreta dos escravos era algo como um jogo de
capoeira – luta, música e dança a um só tempo. Quilombolas que reivindicam a liberdade
para ‘brincar, folgar e cantar’; religiões de santos guerreiros e santos de paz”64.
A partir do exposto, podemos constatar que, na sua maioria, os quilombos não
existiam isolados, distantes da sociedade escravista. É claro que houve casos de quilombos
isolados, mas as fontes documentais indicam uma relação intensa entre quilombolas e outros
grupos sociais.
Cada vez mais evidente a diversidade na formação desses grupos, torna-se
imprescindível uma ampliação da definição de quilombo; bem como a percepção de que a
interação do mundo quilombola com a sociedade envolvente modificou lenta, porém
profundamente os contornos da sociedade em que viviam.
BIBLIOGRAFIA E FONTES
Fontes Primárias
Arquivo Público do Estado de Sergipe
Segurança Pública (SP1), pacotilhas 298, 652, 363, 705, 176, 373, 564.
61
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 373.
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 564.
63
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 373.
64
REIS, João Jose.; SILVA. Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo:
Companhia das letras, 1999,p.11.
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REFEÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão
na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades de
senzalas no Rio de Janeiro – século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.
JESUS, Ana Carla. Construindo a liberdade: Entre conflitos e alianças, quilombolas (re)
inventam sua história na região da Cotinguiba (1870-1879).2008.76p. Monografia (graduação
em história) – Universidade Federal de Sergipe, São Cristovão, 2008.
MATTOSO, Kátia. Ser escravo no Brasil. 3. ed., São Paulo: Brasiliense, 2003.
MOTT, Luiz. Sergipe Del Rey: população, economia e sociedade. Aracaju: Fundesc, 1986.
MOURA, Clóvis. Rebeliões da senzala: quilombo, insurreições e guerrilhas. Rio de
Janeiro: Conquista, 1972.
NUNES, M. Thétis. Sergipe Provincial II (1840/1889).Rio de Janeiro:Tempo
Brasileiro,2006.
QUEIROZ,Suely R.Reis de. Escravidão negra no Brasil. São Paulo:Ática,1987.Série
princípios.
REIS, João José.; GOMES, Flávio dos Santos (org). Liberdade por um fio: história dos
quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil
escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
SANTOS, Joceneide Cunha dos. Entre farinhadas,procissões e famílias:a vida de homens e
mulheres escravos em Lagarto, Província de Sergipe (1850-1888). Dissertação (mestrado em
história) – Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2004.
SANTOS, Lourival Santana. Quilombos e quilombolas em terras de Sergipe no século XIX.
Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Aracaju: n.31, pp.31- 43,1992.
SANTOS, Maria Nely. A sociedade Libertadora “Cabana do Pai Thomaz”: Francisco José
Alves, uma história de vida e outras histórias. Aracaju: Gráfica J. Andrade, 1997.
Aracaju, 08 a de 10 de outubro de 2008
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64
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SENHORES E QUILOMBOLAS: HISTÓRIAS DE CONFLITOS E
BARGANHAS NA ZONA DA COTINGUIBA (1870-1879)
Ana Carla de Jesus – UFS
[email protected]
Os escravos, sempre representaram importante mão de obra para os Senhores de Engenho.
Contudo, no decorrer da segunda metade do século XIX, a percentagem de cativos decresceu
na Província de Sergipe, ocorrendo uma redução no número de escravos em idade
economicamente ativa para lavoura. A partir dessa constatação pretendo analisar o
comportamento de alguns Senhores de Engenho da Zona da Cotinguiba, na década de 1870,
diante da fuga e formação de quilombos. Para isso, utilizei como fonte histórica
principalmente os ofícios da segurança pública e do governo. Ao lado de Senhores que
buscaram reprimir a formação de núcleos de escravos fugidos, também existiram alguns
Fazendeiros que apoiavam os quilombolas, dando-lhes proteção. Buscaremos perceber,
portanto, o jogo de interesses que envolvia quilombolas e Senhores de Engenho. Poderemos
notar que o envolvimento dos fazendeiros no acoitamento de quilombolas, não se deu por uma
solidariedade desinteressada, os agentes históricos envolvidos nessa rede de socialização
tinham lógicas próprias, e entrecruzavam interesses e solidariedade.
Palavras-chave: Quilombolas, Senhores.
O trabalho escravo impôs uma realidade social extremamente violenta. No
entanto, como afirma Sidney Chalhoub, homens e mulheres escravizados não se tornaram
passivos receptores dos valores senhoriais, ao contrário, os escravos pensavam e agiam
segundo premissas próprias1.
Esses cativos buscavam negociar espaços de autonomia com seus Senhores, no
entanto, quando essa negociação falhava abria-se espaço para fuga e possível formação de
quilombos, sendo esta uma das formas mais notórias de resistência dos escravos e que se fez
presente em quase todo território nacional2.
Na Província de Sergipe, as notícias sobre quilombos remetem ao século XVII,
como bem afirma Felte Bezerra3. Contudo, é a partir do século XIX que esses quilombos
começaram a se destacar. De acordo com Lourival Santos isso deve ter ocorrido ou porque
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foram mais constantes nessa época, ou porque a documentação preservada permite a
constatação de sua existência4.
O objetivo deste texto é, portanto, analisar as relações travadas entre os
quilombolas sergipanos e a sociedade envolvente na região da Cotinguiba, na década de 1870,
pois parto do pressuposto que os quilombos não eram redutos de negros marginalizados e
isolados da sociedade, ao contrário, os quilombolas buscaram, sempre que possível, uma
interação com o “mundo” escravista através de uma complexa rede social de proteção, na
qual procuravam obter uma maior autonomia e controle sobre suas vidas.
Nas últimas décadas da escravidão a relação entre escravos africanos e crioulos
foi algo constante nos quilombos sergipanos, notadamente na zona da Cotinguiba. Os laços de
solidariedade e identidade coletiva ultrapassavam as barreiras da nacionalidade. Antes de
serem Africanos ou Brasileiros, eram escravos tentando reinventar os significados da
liberdade. Esse estreitamento das relações entre africanos e crioulos na década de 1870,
parece estar ligado ao fato de que na época em análise a Província de Sergipe contava com um
número reduzido de africanos.
Segundo Mott, a impossibilidade de importar negros diretamente da Costa da
África e o próprio estilo de pequena empresa doméstica dos engenhos, seriam talvez as duas
principais razões que explicam a alta taxa de reprodução dos escravos e conseqüentemente o
predomínio de crioulos na terras sergipanas5.
Alguns estudiosos da escravidão, como é o caso de Kátia Mattoso; defende a idéia
de que as relações entre africanos e crioulos foram bastante difíceis, as tradições culturais e a
língua teriam se tornado barreiras entre esses escravos6. Contudo, como poderemos perceber,
pelo menos no período analisado, quilombolas africanos e crioulos souberam transpor as
fronteiras que os separavam e lutaram juntos para se manterem aquilombados.
O escravo José Maroim, natural da África, testifica isso ao demonstrar o
sentimento de compromisso e de interesses recíprocos que havia entre africanos e crioulos.
Ao ser preso em 1873, após passar um tempo aquilombado, José Maroim declara para as
autoridades que “(...) sendo pego pelo Proprietário do Engenho Piedade, e este o colocando
em tronco, João Mulungu, e outro (...) quebraram o tronco, e puseram em liberdade”7.
Que motivos teria o quilombola João Mulungu para tomar essa atitude em prol de
José Maroim? Além da questão solidária que unia esses escravos, na mentalidade de João
Mulungu talvez perpassasse naquele momento o desejo de não ver, através da captura de José
Maroim, a vitória do Senhor de engenho; mais que isso, a quebra daquele tronco (símbolo da
repressão e do cativeiro) e conseqüente libertação do dito escravo, tem forte valor simbólico
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na medida em que demonstra que os escravos não eram sujeitos passivos dentro do regime
escravocrata, ao contrário, a ação do quilombola João Mulungu é um exemplo do papel do
individuo, neste caso do negro escravizado, como agente de sua própria história.
O “favor” recebido por José Maroim foi retribuído, pois este tardou o quanto pode
para revelar os locais onde João Mulungu e seu grupo tinham rancho:
Perguntado mais se sabe aonde tem rancho de escravos fugidos? Respondeu
que ouviu dizer ter no [...] Termo de Itabaiana e disse mais que não tem
declarado os lugares de rancho deles em atenção a João Mulungu8.
A atitude do escravo africano José Maroim foi de inestimável valia para que o
quilombola, crioulo, João Mulungu prosseguisse com sua fuga. Esse laço de solidariedade
recíproco foi um dos motivos da manutenção do quilombismo durante vários anos na
Província de Sergipe Del Rey.
Além de José Maroim, a documentação nos remete a uma grande quantidade de
quilombolas africanos que mantinham estreitas relações com crioulos, dentre eles tínhamos
Izabel, Venceslau e Maurício.
No entanto, essa rede social de proteção que se formava, não estava restrita a
aliança entre quilombolas africanos e crioulos. Havia um relacionamento entre escravos
fugidos e libertos, independente da nacionalidade.
É importante insistirmos na capacidade que os quilombolas tinham de recriarem
seus espaços dentro da sociedade escravista; fato reforçado através das alianças que
celebravam, sejam com assenzalados, libertos (ex-escravos) e até mesmo com pessoas livres,
como comerciantes locais e proprietários de engenho.
Como afirma Flávio dos Santos Gomes, “através de variadas e complexas
relações, as diversas comunidades quilombolas, além de uma ampla rede de socialização,
construíram uma verdadeira teia de proteção que as manteve também abastecidas”9.
A aliança desencadeada entre escravos quilombolas com libertos contribuiu para
sustentar a longa vida dos quilombos sergipanos. A Zona da Cotinguiba, no ano de 1876, nos
serve de exemplo demonstrando a inegável importância assumida por essas alianças.
Chegando ao meu conhecimento que no lugar denominado Camaratuba,
próximo a cidade de Laranjeiras existiam alguns quilombos, dirigi-me sem
parada de tempo para aquela cidade levando comigo o número de oito
praças. Lá chegando tive de demorar-me um pouco até que chegasse o guia
(...). Por aquele soube que os escravos eram em número de seis e que se
achavam em diversas casas pertencentes a alguns libertos ali residentes(...)10.
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Acima temos o chefe de polícia expondo para o presidente de província a situação
com a qual se deparou no cumprimento de suas funções. A partir do exposto, é possível
verificar que a idéia de reificação dos escravos, defendida por alguns estudiosos11; ou ainda a
concepção de que “a resistência do negro através dos quilombos foi uma resistência de fora
para dentro, no contexto da sociedade escravista”12 ; não condiz com a realidade dos
quilombos sergipanos, nos quais seus componentes buscaram desenvolver uma relação
simbiótica com vários setores da população.
Diversas podem ter sido as razões para que esses libertos acoitassem em suas
casas os quilombolas: laços de solidariedade, religião, amizade, interesses por trocas
mercantis, ou até mesmo uma ação solidária desinteressada (razão pouco provável). Contudo,
independente da razão, a proteção dos libertos a esses quilombolas representou uma ajuda de
incalculável valor, uma vez que, impossibilitou a ação das autoridades locais, pois as casas
dos libertos eram
muito próximas umas das outras , sendo portanto impossível atacá-las ao
mesmo tempo com tão pouca gente, sob pressão de trabalhar infruticuamente
e nada mais fazendo do que espantar (...). Semelhante procedimento deu
lugar a que eu não prosseguisse pois não convinha fatigar sem resultado
algum os praças que já se achavam tão cansados13.
O apoio dado aos quilombolas pela sociedade envolvente, contribuiu para
dificultar a tarefa do governo em exterminar os quilombos. O trecho apresentado nos serve
para retificar a idéia de que na Província de Sergipe, o que ocorria por parte dos negros
fugidos era um movimento desprovido de coesão e planejamento; concepção que nos conduz
a inferir que havia uma falta de organização dos quilombolas14.
Tal teoria choca-se com as informações expostas pela documentação utilizada, na
qual notamos, por exemplo, a organização e estratégia de defesa empregada pelos
quilombolas com o auxilio dos ex-escravos. Estratégia essa que contribuiu para ineficácia das
expedições reescravizadoras.
Na região da Cotinguiba os quilombolas eram também auxiliados pelos escravos
das senzalas, com os quais entretinham relações não somente de proteção, mas também
comercial. Essa foi mais uma aliança que perdurou durante o desenvolvimento do
quilombismo na Província de Sergipe corroborando para formação e sobrevivência deste
movimento. Pois, “a amizade e proteção que quase todos os escravos dos engenhos votam
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aos quilombolas são sérios obstáculos: dão não só guarida no caso de qualquer emergência,
mesmo dentro das senzalas”15.
A aliança dos quilombolas com os escravos da senzala dificultou, em diversas
ocasiões, a ação das autoridades em prol da captura dos escravos fugidos. O jornal de
Aracaju, em agosto de 1872, expressa como essa relação burlava o êxito das diligências
policiais:
vão de novo aparecendo em alguns pontos os escravos fugidos. O rigor do
inverno faz-los procurar as proximidades dos povoados e a proteção dos
parceiros dos engenhos, proteção que muitas vezes tem burlado as
diligencias da policia. Ultimamente na vila de Japaratuba fez-se uma
diligencia que se não fosse aquela proteção grande seria a presa. Pressentiam
o movimento de força e deixaram os ranchos com precipitação refugiaram-se
os quilombolas nas senzalas dos engenhos16.
Devido à constatação desse empecilho que atrapalhava a ação das expedições
punitivas, cabia aos proprietários se esforçarem de maneira que prevenissem ou acabassem
com esse “conluio”.
É de crer que os proprietários , os mais ameaçados com a nova atitude que
vão tomando os quilombolas , se esforcem para manter nos engenhos severa
vigilância em ordem e prevenir o perigoso concluio que se dá para frustrar os
planos da autoridade17.
Os escravos das senzalas serviam muitas vezes de informantes, deixando os
quilombolas cientes de qualquer força que se aproximasse em busca desses escravos fugidos;
temos aí mais uma estratégia de sobrevivência dos quilombos. Esse foi um dos motivos
apontados pelo Chefe de Policia ao Juiz Municipal de Japaratuba como causa da improdutiva
diligência que conduziu:
hoje foi repetida a mesma diligencia com 77 praças da Guarda Nacional e os
cinco da cadeia, mas infelizmente nada se encontrou a não ser mais cinco
ranchos novos em outro lugar, tendo convicção qual que os negros são
protegidos pelos do dito engenho Coqueiro se relacionam e são avisados de
qualquer força que contra eles se dirija18.
As autoridades, freqüentemente, justificavam o fracasso das diligências devido às
relações que os escravos fugidos estabeleciam com os escravos dos engenhos. Depreende-se,
portanto, que essa complexa rede social de proteção foi vital para que os quilombolas
constituíssem ou recriassem seu modo de vida dentro da sociedade escravista vigente.
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Os quilombolas conseguiam por meio de trocas comerciais, com os escravos das
fazendas, produtos que necessitavam nos quilombos. A zona da Cotinguiba foi palco de vários
intercâmbios mercantis, como publicou o Jornal de Aracaju: “a experiência tem mostrado o
grau de relação que entretêm os quilombolas com os escravos dos engenhos: acham aqueles
apoio e proteção; trocam farinha e agasalho pela partilha nos roubos dos primeiros e em
caso de perigo invadem as senzalas”19.
O quilombola Romão, com certa constância, praticou trocas mercantis recebendo
de um escravo assenzalado farinha em troca de carne de ovelha.
Fora preso ontem a noite no engenho Capim-assú dentro de uma das
senzalas pertencentes ao escravo Roberto do mesmo engenho Capim-assú,
tendo ali ido buscar ração de farinha da mão do dito Roberto, a quem ele
(Romão) tendo por costume pedir e receber farinha em troca de carne de
ovelha que ele (Romão) muitas vezes levava20.
O grupo dirigido pelo quilombola João Mulungu, mantinha estreita relação com
os escravos do engenho São José, “a ponto de arrancarem mandioca para fazerem a farinha
que repartiam (...) igualmente repartiam [...] dos gados que furtavam os ditos fugidos pelos
pastos dos engenhos vizinhos (...)”21.
A importância dessa aliança entre quilombolas e os escravos das senzalas não se
resume ao aspecto econômico. Contribuiu também para o fortalecimento das relações
familiares, manutenção de praticas cultural e religiosa. A documentação nos revela casos de
quilombolas que se reuniam com os escravos das fazendas para “batucarem” e se divertirem
durante a noite. Na época de São João e do Natal, esses batuques se realizavam de forma mais
constante22. Essa era uma ocasião onde os quilombolas reviam parentes e amigos; era um
momento de sociabilização.
Muitos escravos que optavam pela fuga deixavam nas fazendas entes queridos,
que por motivos diversos ( idade avançada, doença, impossibilidade de prosseguir em fuga
com crianças pequenas, ou até mesmo a escolha de se manter como escravo na fazenda) não
os acompanhavam; no entanto, esse não era um motivo para que os laços familiares fossem
definitivamente quebrados. Foram justamente esses laços que facilitaram o cotidiano de
muitos quilombolas.
Cotidiano que foi permeado também pela presença feminina, uma vez que na
região da Cotinguiba as mulheres, fossem elas escravas, livres ou forras, se fizeram presentes
nessa imensa rede de socialização.
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A documentação da década de 1870 apresenta um leque variado de informações
sobre essas mulheres que se aventuravam a fazer parte dos quilombos na região da
Cotinguiba. Tínhamos mulheres escravas de 13 anos de idade até a faixa etária dos 35 anos.
Algumas dessas escravas fugidas tiveram que optar entre exercer a maternidade
ou prosseguir sua luta nos quilombos. Foi o caso da escrava (quilombola) Luisa, que declarou
ter “um filho que mandou depositar na porta da igreja de São Benedito em Laranjeiras”23.
A escolha desta igreja para deixar seu filho não se deu forma aleatória. A Igreja de
São Benedito era a sede da irmandade e foi construída para devoção da fé dos negros e pelos
próprios negros24. A escrava Luisa sabia que ali seu rebento seria acolhido, era um local em
que ela confiava.
O jornal de Sergipe em maio de 1873 denunciou o que corriqueiramente acontecia
com os filhos das escravas quilombolas:
a prisão da escrava não deixa de ser de importância, porque veio se descobrir
que tivera ela um filho nos matos e que o viera depositar em casa de uma
mulher moradora de Laranjeiras conhecida por Maria Cabocla. O Sr. Dr.
Chefe de policia tendo conhecimento desse fato, recomendo que o delegado
procedesse as averiguações necessárias para saber se com efeito existe o
menor em poder da dita mulher, a fim de que sendo tenha ciência o dr. Juiz
de órfão, a quem cabe proceder a respeito da forma do reg. que baixou com o
decreto de 13 de novembro de 1872, por ser o menor considerado liberto.
Vê-se bem que esses quilombolas praticam toda sorte de perversidade nos
lugares em que se encontram. Roubam, fazem mil tropelias, privam-se de
seus próprios filhos quando não lhes dão a morte, como muitas vezes terá
acontecido (...)25.
O jornal não revela o porquê de essa mulher aceitar o filho da quilombola, mas a
forma como é chamada – “Maria Cabocla”- já nos dá uma pista de que ela possivelmente
tinha origem mestiça, poderia ser uma forra e deveria ter algum tipo de contato com a escrava,
a ponto desta confiar seu filho aos seus cuidados. Outro dado exposto pela documentação diz
respeito ao infanticídio, uma prática comum entre as escravas26.
É importante ressaltar que aquilo que para alguns representa uma atitude de
crueldade, para essas escravas simbolizava uma forma de sobrevivência. A repressão aos
quilombos se dava de maneira contínua; os quilombolas viviam em constante processo de
fuga, e para que fosse bem sucedida a mobilidade e agilidade era essencial. As crianças
viriam a dificultar a movimentação desses escravos, facilitando a captura dos mesmos.
Algumas dessas escravas quilombolas se tornaram amásias de seus companheiros.
Anna Rita, por exemplo, escrava fugida do engenho Tábua, quando presa em 1873 declarou-
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se casada , mas assumiu ter mantido “relações ilícitas” com o quilombola João Mulungu.
Quando perguntada sobre os presentes que ela havia recebido de Mulungu, respondeu que
“deu-lhe a quantia de cinco mil reis”27.
A atitude do escravo João Mulungu gerou conflitos entre Anna Rita e a escrava
fugida Vicência, que também era amásia do mesmo. O escravo citado tinha ainda uma
companheira, “uma preta de 13 anos”28. Temos uma teia de relação afetivas e conflituosas,
comum entre os quilombolas sergipanos.
Contudo, a relação afetiva dos quilombolas não se dava apenas com mulheres
escravas. Maria, mulher forra, “era amásia do fugido Mathias”.Maria vivia de costuras, tinha
25 anos e não fazia parte de quilombos, apenas tinha comunicação com os escravos fugidos.
No dia de Natal, Maria havia ido batucar com os quilombolas Anna Rita, Marcolino, Nabuco,
João Mulungu, Maximiano e Mathias, e “com eles divertiu-se toda noite”29.
Como é perceptível, a vida desses homens e mulheres não se resumia a fugas,
tinha-se espaço para o lazer, pois “ a vida concreta dos escravos era algo como um jogo de
capoeira – luta, música e dança a um só tempo. Quilombolas que reivindicam a liberdade
para ‘brincar, folgar e cantar’; religiões de santos guerreiros e santos de paz”30.
A partir do exposto, podemos constatar que, na sua maioria, os quilombos não
existiam isolados, distantes da sociedade escravista. É claro que houve casos de quilombos
isolados, mas as fontes documentais indicam uma relação intensa entre quilombolas e outros
grupos sociais.
Cada vez mais evidente a diversidade na formação desses grupos, torna-se
imprescindível uma ampliação da definição de quilombo; bem como a percepção de que a
interação do mundo quilombola com a sociedade envolvente modificou lenta, porém
profundamente os contornos da sociedade em que viviam.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Fontes Primárias
Arquivo Público do Estado de Sergipe
Segurança Pública (SP1), pacotilhas 298, 652, 363, 705, 176, 373, 564.
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Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Aracaju: n.31, pp.31- 43,1992.
SANTOS, Maria Nely. A sociedade Libertadora “Cabana do Pai Thomaz”: Francisco José
Alves, uma história de vida e outras histórias. Aracaju: Gráfica J. Andrade, 1997.
___________________________
Notas
1
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São
Paulo: Companhia das letras, 1990.
2
Ver REIS, João José.;GOMES,Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil.
São Paulo: Companhia das letras, 1996.
3
BEZERRA, Felte. As etnias sergipanas. Aracaju: J. Andrade, 1984, p.107.
4
SANTOS, Lourival Santana. Quilombos e quilombolas em terras de Sergipe no século XIX. Revista do
Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Aracaju: n.31, p.32,1992.
5
MOTT, Luiz R.B. Sergipe Del Rey: população, economia e sociedade. Aracaju: FUNDESC, 1986, pp.139150.
6
cf. MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 3ª ed. 2003.
7
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 298.
8
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 298.
9
GOMES, Flávio dos Santos. História de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de
Janeiro – século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995, p.95.
10
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 652.
11
Suely Queiroz traça um panorama da escravidão negra no Brasil; para essa autora o negro cativo foi o suporte
da economia brasileira por todo o período que durou a escravidão, no entanto, a violência da escravidão havia
transformado o negro em um “ser” coisificado. Ver QUEIROZ, Suely R. Reis de. Escravidão negra no Brasil.
São Paulo: Ática, 1987. Série Princípios.
12
SANTOS, Lourival Santana. Quilombos e quilombolas em terras de Sergipe no século XIX. Revista do
Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Aracaju: n.31, p.42,1992.
13
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 652.
14
ver tal concepção em SANTOS, Maria Nely. A sociedade Libertadora “Cabana do Pai Thomaz” : Francisco
José Alves, uma história de vida e outras histórias. Aracaju: Gráfica J. Andrade, 1997.
15
Jornal de Aracaju, 20 de março de 1872. Apud MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala. São Paulo:
Brasiliense, 3ª Ed. 1981.
16/17
Jornal de Aracaju, 10 de março de 1872. Apud MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala. São Paulo:
Brasiliense, 3ª Ed. 1981.
18
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 363.
19
Jornal de Aracaju, 03 de abril de 1872. Apud MOURA, Clóvis. Rebeliões da senzala. São Paulo: Brasiliense,
3ª Ed. 1981.
20
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 705.
21
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 176.
22
cf. Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 373.
23
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 176.
24
NUNES, Maria Thetis. Sergipe Provincial II (1840/1889). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2006, p.60.
25
Jornal de Sergipe, 14 de maio de 1873. Apud MOURA, Clóvis. Rebeliões da senzala. São Paulo: Brasiliense,
3 ª ed.1981.
26
SANTOS. Joceneide Cunha dos. Entre farinhadas, procissões e famílias: a vida de homens e mulheres
escravos em Lagarto, província de Sergipe (1850-1888). Salvador, 2004. Dissertação de mestrado- Universidade
Federal da Bahia, PP.95-98.
27
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 373.
28
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 564.
Aracaju, 08 a de 10 de outubro de 2008
ISBN - 978-85-7822-067-9
74
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29
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 373.
REIS, João Jose.; SILVA. Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo:
Companhia das letras, 1999,p.11.
30
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OS PRETOS DOS MATOS: A EXPERIÊNCIA QUILOMBOLA
NA PROVÍNCIA DE SERGIPE D’EL REY (1871-1888).
Igor Fonsêca de Oliveira - UNEB.
[email protected]
Este trabalho apresenta resultados parciais acerca de um estudo mais que amplo que venho
desenvolvendo sobre o fenômeno quilombola na província sergipana, mais precisamente
sobre a região da Cotinguiba. Neste, é demonstrado os conflitos, o desespero, as conquista e
as derrotas que diversos negros fugidos experimentaram no árduo caminho, muitas vezes sem
fim, rumo à liberdade. Toda esta conturbada realidade é demonstrada através de densa análise
crítica de fontes dispersas, onde informações a respeito de estratégias, organizações sociais,
objetivos, dentre outras questões aparecem em formas de indícios.
Palavras - chave: Escravidão. Sergipe Del Rey. Quilombos.
1. INTRODUÇÃO
Lá se iam apenas 15 dias da sua administração, quando o recém empossado
governador da província de Sergipe, Luiz Álvares, tomava ciência de um antigo problema que
há tempos era motivo de preocupações para as autoridades locais. Um longo ofício redigido
pelo chefe de polícia o ilustrava e clamava providências enérgicas acerca da emergência de
ajuntamentos de negros fugidos em “alguns pontos da província”. 65
Segundo o Dr. Joaquim Barboza, dita autoridade militar, a mau interpretação que
a escravaria estava tendo acerca da Lei do Ventre Livre, de 28 de setembro de 1871, seria a
principal razão para o atual estado de insegurança pública e individual.
Alguns escravos mal aconselhados, e imbuídos da falsa idéia de que se
acham de todos livres do cativeiro pela Lei N° 2040 de 28 de setembro do
ano passado, e que não gozam de suas liberdades, porque os seus senhores a
isso se opõem, se tem refugiado nas matas, e reunidos em quilombos, saem
de vez em quando de seus esconderijos, e pelas povoações e pelas estradas
cometem roubos, espancam as vítimas de seus latrocínios, e já algumas
65
Relatório do Presidente da Província de Sergipe Luiz Álvares de Azevedo Macedo, 4 de março de 1872, p. 5.
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mortes tem cometido. O susto e a desolação têm assaltado o povo, que vê
em perigo a sua vida e a sua propriedade [...].66
Um noticiário pode ter influenciado decisivamente para a propagação desta “falsa
idéia”. Sob nota intitulada A Abolição da Escravatura no Brasil, um periódico local
transcreveu em suas páginas uma matéria publicada dias anteriores em um periódico
português – Jornal da Noite. Nesta, constava que o Brasil acabara de libertar os escravos: “O
governo propôs, o corpo legislativo aprovou, a nação aplaudiu e a história universal registrará
em páginas de ouro este imortal triunfo da civilização brasileira, esta gloriosa homenagem á
liberdade e ao evangelho”. 67 Entendiam eles, que a promulgação da lei de 1871 correspondia
ao fim imediato do regime escravista na sua ex-colônia além mar.
Equivocada, porém objetiva. Nesta curta notícia, está implícito todo o processo
por qual uma lei deveria passar até sua promulgação. Afinal, um projeto-lei fora proposto (o
governo propôs), a câmara legislativa em seguida teria o aprovado (o corpo legislativo
aprovou) e agora a nação comemorava tal feito.
Mas, equivoco mesmo seria o senhor chefe de polícia restringir-se apenas a “falsa
idéia”, ou seja, na sua ótica, à ingenuidade escrava para justificar uma maior incidência de
quilombos a partir de 1871. No decorrer das páginas seguintes, tomando como ponto de
partida na minha análise a fala do senhor Joaquim Barbosa, buscarei adentrar no cotidiano dos
quilombolas sergipanos, tentando identificar suas expectativas, conquistas e derrotas nas
últimas décadas do regime escravista.
2. DA LAVOURA ÀS MATAS
Sergipe D’el Rey, menor província do Império brasileiro, contava com cerca de
650 engenhos nos anos setenta do século XIX. A Cotinguiba, principal região agro-econômica
provinciana, concentrava grande parte destas unidades. Núcleos pequenos, contendo em
média 20 escravos, muitos destes braços destinados quase que exclusivamente ao trabalho na
lavoura.
66
67
Ibidem.
“Emancipação de escravos”, Jornal do Aracaju, n° 226, 23 de dezembro de 1871, p. 3.
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A agricultura da cana-de-açúcar despontava como principal fonte econômica,
sendo densamente cultivada em dez das onze comarcas que compunham a Cotinguiba.68
Técnicas rústicas, ausência de capitais financeiros e a carência de mão-de-obra são
constantemente apontadas como os grandes males enfrentados pelos agricultores sergipanos.
A maior incidência no número de fugas escravas nas últimas décadas do regime escravista
acentuaria ainda mais esta carência de braços produtivos nas lavouras da província.
Ao abandonar as senzalas, os negros tinham a convicção que iniciava uma nova
fase de suas vidas. Não menos tranqüila, não menos cruel! A sobrevivência, lá, nas matas,
muitas vezes poderia ser mais tensa que a vivência sob o julgo dos seus senhores. Cientes
desta realidade, a trama da fuga deveria ter um destino certo. Não bastava escapar das
“amarras senhoriais”, era preciso buscar um ambiente onde estes pudessem passar
despercebidos das vistas ansiosas e incumbidas de capturá-los. Os quilombos atraíram muitos
escravos por vislumbrar estas possibilidades.
Não seria irrefutável pensar que muitos quilombolas tomaram conhecimento da
existência desses núcleos ainda no cativeiro. O negro José, após ser pego furtando das roças
do seu senhor “um cesto de mandioca”, pois este tinha “precisão de farinha por ser muito
pequena a ração que recebia”, foi punido com castigos e “um ferro ao pescoço”. Tais castigos
teriam motivado-o a fugir “para as matas do engenho São José onde lhe informaram” haver
quilombos.69
A ciência da existência de quilombos em determinadas regiões não bastava para
que as fugas lograssem êxito. A aproximação e a inserção nestes núcleos provavelmente era
uma etapa muito difícil ainda a ser vencida. Abstenho-me de tecer longos comentários acerca
da desconfiança e as razões com que muitos quilombolas devem ter tidos acerca da inserção
de um novo membro em suas habitações. O ingresso de um novato em um determinado bando
deve ter sido obtido não antes de este dar uma prova de confiabilidade. Nos quilombos, os
pretos dos matos iniciavam uma nova fase de suas vidas marcada e operada pelas suas
experiências vivenciadas no cativeiro.
68
O cultivo da cana-de-açúcar impulsionaria o desenvolvimento de dez núcleos urbanos nesta região. A capital
da província, Aracaju, também estava ai localizado e desempenharia o papel de pólo decisório acerca da
comercialização e do escoamento do açúcar.
69
Sumário de Culpa do escravo José Africano. Fundo: Laranjeiras – cart. 1° ofício, cx. 291. Arquivo Judiciário
de Sergipe.
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3. PELAS MATAS
Os quilombos destacavam-se como uma grande ameaça ao regime escravista. As
autoridades civis e militares buscaram ao longo dos anos criarem diversas instituições e leis
visando inibir a união de escravos fugitivos nestes redutos.
Experiências passadas de grandes revoltas eram constantemente lembradas para
justificar a urgência com que estes núcleos deveriam ser reprimidos. Um mês após a revolta
dos escravos muçulmanos na cidade de Salvador, o presidente da província sergipana advertia
que não só de homens livres é composta a sociedade local “e que para policiar esta segunda
parte da população [a escrava]” é indispensável que o “governo tenha gente armada, e
assoldadada à sua disposição”. Segundo ele, “essa insurreição, que acaba de ter lugar na
Bahia, é prova assaz e convincente” da sua asserção.70
A tal “gente armada e assoldadada” a que se referia o presidente Manoel Ribeiro
competia aos corpos da Guarda Nacional. Esta é constantemente apontada ao logo dos
relatórios oficiais como uma instituição que “não se pode contar, porquanto só nominalmente
[...]. Mesmo na Capital [Aracaju] ela nenhum serviço presta. Sem instrução, até mesmo a
maior parte de seus oficiais, sem fardamento, sem armamento, evidencia-se que a instituição
aqui falseia completamente”.71
Recrutar homens e preparar uma diligência para combater os mocambos não era
tarefa das mais fáceis. Muitas vezes, devido à demora e a burocracia nos preparativos, as
ordens e as discussões das estratégias a serem empreendidas tinham início em um governo e o
real envio das tropas só era realizado em outro. Esta realidade pode ter sido mais acentuada na
província sergipana, pois entre os 17 anos compreendidos neste estudo passaram pela cadeira
presidencial 29 indivíduos.
Estas constantes alterações no executivo deveriam retardar consideravelmente a
tomada de providências mais enérgicas para conter esta “onda negra”. Como estas alterações
muitas vezes geravam também mudanças em níveis municipais (juízes de paz, juízes
municipais, chefes de polícia, inspetores de quarteirões, etc.), acredito que muitas diligências
nem mesmo chegaram a ser formadas para averiguar a veracidade das denúncias.
Já as diligências que rumaram às matas nem sempre logravam êxitos. Após
discutir todos os planos e estratégias uma diligência sob o comando do capitão Deocleciano
70
Relatório do Presidente da Província de Sergipe Dr. Manoel Ribeiro da Silva Lisboa, 25 de fevereiro de 1835,
p. 6.
71
Relatório do Presidente da Província de Sergipe Francisco José Cardoso Júnior, 03 de março de 1871, p. 29.
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Aurélio marcharia para dar combate a um grande grupo de criminosos que estavam alojados
as margens do rio São Francisco, justamente na encruzilhada entre as províncias de Sergipe,
Bahia e Alagoas. Diante desta realidade, couberam aos dirigentes das províncias se unirem
para combater “tal mal”. Ao total, marcharam cerca de 300 soldados para combater os
criminosos ali alojados. Na batida, apesar do grande vulto da tropa repressora, conseguiu
capturar apenas “um criminoso e um recruta”, este último, provavelmente um desertor.72
Após a batida o bando vitimara o guia Pedro, que conduzira as tropas repressoras
até o ponto que os salteadores estavam alojados. “Mataram-no barbaramente, fazendo
propalar que darão o mesmo destino a todo aquele que servir de guia as forças estacionadas
ali”.73 As autoridades recorriam muitas vezes a guias para evitar que as tropas repressoras
ficassem vagando sem rumo pelas matas fechadas.
Novas medidas teriam que ser adotadas para “reprimir a audacia dos bandidos”, e
assim “prende-los e puni-los, destruir os quilombos que se formam, para que se restitua a
tranqüilidade ao povo, e evite uma insurreição, que pode sobreviver, si, o que há, for
abafado”.74
Entre os capturados, nota-se a presença de um recruta. Como a fuga representava
uma ameaça à ordem escravocrata, e a partir deste momento eram considerados malfeitores e
bandidos, não seria incomum que pessoas livres, perseguidas pela justiça, se juntassem a esses
negros em busca de abrigo e proteção. Estas alianças forjadas em meio à escravidão eram de
suma importância para a manutenção da liberdade. Tratava-se de relações informais que
podiam ser moldadas e redefinidas a depender dos interesses daqueles imersos nesta ampla
teia.
Erguendo seus mocambos nos arredores das matas dos engenhos, os negros ali
reunidos mantinham constantes comunicações com os negros remanescentes das senzalas.
Fato este que foi bem descrito pelo Jornal do Aracaju em abril de 1872: “A experiência tem
mostrado o grau de relações que entretém os quilombolas com os escravos dos engenhos:
acham aqueles apoio e proteção: trocam estes farinhas e agasalho pela partilha nos roubo dos
primeiros e em caso de perigo invadem as senzalas”. Aos donos de escravos cabia “exercerem
assídua fiscalização na sua escravatura, cortando quanto for possível a comunicação protetora
que tanto tem embaraçado as diligências”. 75
72
Relatório do Presidente da Província de Sergipe Luiz Álvares de Azevedo Macedo, 04 de março de 1872, p. 7.
Relatório do Presidente da Província de Sergipe Luiz Álvares de Azevedo, 4 de março de 1872, p. 8.
74
Idem, p. 9.
75
“Quilombolas”, Jornal do Aracaju, n° 257, 3 de abril de 1872, p. 2.
73
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Apenas 21% das terras dos engenhos eram ocupadas com plantações, quantidade
equivalente seria ocupada com matas e cerca de 60% eram compostas por campos
(AMARAL, 2007, p. 67). Ao erguer seus mocambos nestas áreas inóspitas, os quilombolas
contariam também com forte proteção geográfica. A movimentação lenta das diligências por
dentro das florestas fechadas propiciava tempo suficiente para que os amocambados, ao
tomarem ciência das tropas que marchavam aos seus encontros, fugissem para terras distantes
ou para as senzalas dos engenhos.
Ao seguir para dar combate a um quilombo existente nos arredores do engenho
Brejo, em Laranjeiras, o tenente Jeremias Roberto de Carvalho relataria que encontrara
grandes dificuldades devido “ao mau tempo” e “a dificuldade de marchar a escolta
regularmente em uma mata extensa e intransitável”. Apesar dos esforços empregados,
evadiram-se os escravos. Conseguindo apenas a escolta apreender uma parda de nome
Francisca, fugida a mais de um ano do seu senhor Manuel Curvelo de Mendonça”.
Interrogada, Francisca relataria ter parido “um filho nos matos, e que o viera depositar em
casa de uma mulher” moradora do mesmo termo “conhecida por Maria Cabocla”.76
Tal noticiário continuaria relatando que os “quilombolas praticam toda a sorte de
perversidade nos lugares em que se acoitam. Roubam, fazem mil tropelias, privam-se de seus
filhos, quando não lhes dão a morte, como muitas vezes terá acontecido. Convém, pois,
empregar todos esforços para extinguir estes malfeitores”.77
Nota-se, diante destes relatos, qual era a visão construída pela classe senhorial
para com os negros fugidos. Esta ótica, muitas vezes destorcida e inflamada, fazia com que a
autoria de muitos crimes, mesmo sem provas, recaísse sob os calhambolas. Contudo, nem
todas as populações livres se voltaram contra estes negros. Muitos os tiveram como aliados,
sejam por serem simpáticos à suas causas ou por visarem angariar benefícios econômicos.
Em março de 1873, proprietários de engenhos de diversos municípios
(Laranjeiras, Divina Pastora, Rosário, Capela e Japaratuba), seriam acusados pelo chefe de
policia de estarem realizando um “desleixo criminoso” diante a presença de quilombolas em
suas propriedades. Estes “não só deixam que esses escravos se acoitem em suas terras, como
também não impedem que se relacionem com os que possuem nos seus engenhos, o que é de
grande proveito àqueles, que não podem ser apreendidos sem grande dificuldade”.78
76
“Quilombolas”, Jornal do Aracaju, n° 376, 14 de maio de 1873, p. 2.
Ibidem.
78
“Captura de Quilombolas”, Jornal do Aracaju, n° 361, 19 de março de 1873, p.2.
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As autoridades militares buscavam a todo custo romper estas ligações, buscando
identificar e punir os indivíduos envolvidos. Informações a respeito dos núcleos quilombolas
também eram de suma importância. Onde estavam arranchados? Qual o número de escravos
que ali habitavam? Quais os armamentos empregados pelos escravos fugidos? Tais respostas
eram fundamentais para que uma diligência repressora lograsse êxito.
Para obter tais respostas, as autoridades nomeavam constantemente espiões.
Muitas vezes sitiantes e até mesmo escravos se ocupavam de tal serviço, um tanto perigoso.
Na noite do dia 13 de novembro de 1873, Albano, escravo fugido do major José Ribeiro de
Souza, assassinou com tiros o senhor José Victal dos Santos e sua esposa no termo de
Riachão. O motivo que o levara a cometer tal delito era por “crer que este casal estava
incumbido de efetuar sua captura”.79
O escravo Albano prometeria ainda retirar a vida de mais quatro pessoas, todos
residentes na mesma vila. Estas estariam incumbidas de capturá-lo. Pelo menos mais um
homicídio lhe seria atribuído, cerca de 10 dias após ter assassinado o casal Victal, Albano
mataria nas imediações do rio Pianhy, na mesma vila, o senhor Manoel Pedro Ferreira. Um
destacamento seria solicitado para seguir a Riachão e efetuar sua captura.80
Albano “se fizera notável por alguns assassinatos” e por ser considerado “o
flagelo e o terror da população daquele termo”. Capturado, o negro fora levado preso para
responder juridicamente “pelos crimes cometidos”.81 Diversos quilombolas devem ter tido
seus nomes e crimes ecoados pelos municípios, causando terror e medo entre os sitiantes e os
proprietários de engenho. O escravo Albano, provavelmente fora um desses nomes.
Ameaçados e acuados as populações rurais solicitavam incessantemente as
autoridades locais providências plausíveis para que se estabelecesse de volta a segurança
individual e de propriedade. As fontes revelam que a partir do ano de 1872 várias diligências
estavam adentrando as matas e confrontando-se com os cativos fugidos. O Jornal do Aracaju
traria na primeira folha um noticiário intitulado Captura Importante. Segundo esta nota, “as
diligências promovidas pelo senhor chefe de polícia para captura dos quilombolas vão
produzindo o desejado efeito. Ultimamente foi preso no termo do Rosário o africano
Vencesláo, um dos chefes mais temíveis dos quilombolas, e quem pesam os crimes de
assassinato, roubo e outras tropelias por ele praticadas”.82
79
“Expediente do Governo do dia 26 de novembro de 1873”, Jornal do Aracaju, n° 434, 3 de dezembro de 1873,
p. 1.
80
Ibidem.
81
Relatório do Presidente da Província de Sergipe Antônio dos Passos Miranda, 15 de janeiro de 1874, p. 3.
82
“Captura Importante”, Jornal do Aracaju, n° 364, 30 de março de 1873, p. 1.
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Quem já há algum tempo vinha se destacando na realização de importantes
capturas por todo o Vale da Cotinguiba era o militar João Batista da Rocha Banha. Ao longo
desta pesquisa, surpreende sua rápida ascensão hierárquica nos corpos da polícia (alferes,
tenente e capitão). Certamente esta realidade reflete a importância diante a captura de diversos
pretos dos matos.
Em relatório ao presidente da província, o chefe de polícia relatava que as
investidas contra os quilombos infelizmente não correspondem ainda aos esforços
empregados. Destacaria ainda que das diversas diligências procedidas após assumir tal cargo,
sempre pôde contar com a presença do já distinto tenente João Batista. Ao total as tropas
chegaram ainda alcançar o saldo de 8 capturas em Rosário, 4 em Divina Pastora e 2 no
município de Laranjeiras.83
O escravo Rufino, considerado um dos mais perigosos quilombolas sergipanos e
companheiro do escravo Vencesláo dantes citado, se entregaria poucos meses depois na casa
do seu senhor. Sua rendição teria como causa as constantes diligências empreendidas pelo
Tenente João Batista na região.84 A redenção do negro Rufino, vislumbra o quanto a vida em
fuga poderia ser muito mais cruel que o próprio cativeiro. Mesmo sabendo que poderia ser
punido pela fuga e pelos seus delitos cometidos, o escravo se entregara na propriedade do seu
senhor.
Outros buscavam intermediar suas rendições através do apadrinhamento. Ao
padrinho, caberia negociar com os proprietários dos escravos fugidos o retorno destes ao
cativeiro. De certo, clamava-se que fosse abolida qualquer espécie de castigo mais fervoroso
ao escravo regresso. Já outros indivíduos, acuados nas matas buscariam “proteção” nas
próprias instituições militares.
Foi o caso do escravo Deusidério, que se entregara na casa prisional de Aracaju
confessando ter assassinado sua irmã na vila de Lagarto. Quando as autoridades iniciaram as
averiguações necessárias para detectar a veracidade de tal fato, Deusidério tentou suicidar-se.
As autoridades responsáveis pelo inquérito chegaram à conclusão de que “parece, em vista
disto, simulado o assassinato de que se acusa o referido escravo, e que ele prefere, portanto,
ser punido como criminoso, a sofrer às conseqüências do cativeiro”.85
83
Relatório do chefe de polícia da província de Sergipe senhor Manoel José Espínola Júnior, 26 de outubro de
1872, p. 5. Documento anexo ao Relatório do Presidente da Província de Sergipe Cypriano Almeida Sebrão, 1 de
março de 1873.
84
“Quilombolas”, Jornal do Aracaju, n° 370, 23 de abril de 1873, p. 3.
85
“Tentativa de Suicídio”, Jornal do Aracaju, n° 403, 17 de agosto de 1873, p. 2.
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Em primeiro de fevereiro de 1874, um habitante do município de Divina Pastora,
sob o pseudônimo de O Paciente, escreveria um ofício à presidência da província e ao chefe
de policia revelando e cobrando providências acerca da falta de segurança em que se
encontravam. Seus relatos seriam publicados no jornal A Liberdade duas semanas depois,
vejamos:
Buscam todos um apoio e ninguém o encontra senão nos próprios recursos,
os quais, como é fácil compreender, não podem satisfazer e dar
tranqüilidade a população culta e muito laboriosa deste município assas,
rico pela uberdade dos seus terrenos e digno de melhor sorte.
É tal a condição anômala do município nestes últimos tempos, que parece
trazer a reprodução de outras eras em que a justiça se fazia pelo
bacamarte.O município de Divina Pastora se acha na posse do salteador
João Mulungu. E nem se presuma que há exageração neste dizer, e senão
que sejam ouvidos os habitantes deste município e em especial desta vila.
O quilombola João Mulungu acaba de estabelecer sua residência com a
terrível quadrilha no seu antigo aposento do Eng° Limeira, após a diligência
que em pessoa dirigiu o Snr. Dr. Chefe de Policia para os lados do Rosário
do Catete. Não tardou em manifestar-se pelos roubos nas fontes de lavar,
pelos furtos de cavalos e bois nos pastos dos engenhos, carneiros, perus e
mais criações nos quintais das casas desta vila, e pelas freqüentes fugidas
dos escravos que são seus seduzidos e escandalosamente ingressam a
quadrilha. O terror, o desanimo, a falta de segurança estão na consciência de
todos. 86
A denúncia segue relatando uma série de crimes que os escravos “insubordinados”
tinham causado aos proprietários da região. Ao total fora contabilizado 2 espancamentos, 2
assassinatos de escravos, vários furtos de animais (bois, cavalos, perus, galinhas, carneiros) e
1 arrombamento.Contudo, as culpas não recaiam apenas ao negro João Mulungu e seu bando.
O Paciente destacaria ainda que o grande culpado por esta insegurança era o “Juiz Municipal
Dr. Jenuino José Gomes, pela maneira porque tem relaxado o exercício do seu cargo, suas
tendências em favor dos criminosos pela impunidade dos crimes e o menosprezo com que são
tratados os deveres do seu magistério.”87
Segundo o depoimento do morador de Divina Pastora, o capitão João Batista da
Rocha lhe confessara que muitas das diligências empenhadas na captura de João Mulungu e
outros malfeitores malograriam devido ao aviso que o dito Juiz concedia aos quilombolas.
João Mulungu já vinha a algum tempo sendo procurado pelas autoridades
militares. Os escravos estariam “abandonando os carros e outros serviços de moagem para se
86
87
Jornal A Liberdade, n° 42, 16 de fevereiro de 1874, p. 1.
Ibidem.
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meterem na quadrilha” que provavelmente ele era líder.88 Em julho de 1873, o chefe de
polícia informou ao presidente o paradeiro de João Mulungu e seu bando. Estes se
encontravam “residindo na margem do rio Vasa Barris, junto ao engenho Itaperoá, do termo
de Itaporanga”.89 Tomando conhecimento do paradeiro provisório do bando, a presidência
expediu ordens para que o tenente João Batista da Rocha, que até então estava à caça de
quilombolas pelos matos do município de Rosário, fosse remanejado para “promover a
captura dos quilombolas no termo de Itaporanga”.90
Porém, Mulungu e seu bando já haviam rumado para novas matas. Em ofício, a
autoridade policial do município de Divina Pastora noticiava ao chefe de polícia sobre o novo
paradeiro do tal quilombola:
Consta-me que o regente desses malfeitores é o celebre quilombola João
Mulungu, e o seu imediato é Manoel Jurema.
Hoje chegou ao meu conhecimento, que aqueles malfeitores esta
preparando-se com muitos quilombolas para invadirem esta Vila,
prometendo vir até o quartel com seus companheiros atacarem a força, e já
tem prevenido dois quilombos com quinze escravos para esse fim; mas não
se pôde ainda capturar aquele malfeitor porque todo o movimento que se dá
na vila ele no mato é sabedor, visto ter sócios nesta vila que se prestam a
avisarem a ele. 91
Tomando conhecimento dos crimes cometidos pelos escravos na região de Divina
Pastora, o capitão João Batista escreveu em 14 de janeiro de 1876, ao chefe de polícia Vicente
de Paula se propondo a realizar a captura do negro Mulungu. Com a experiência de já ter no
seu currículo a captura de 53 calhambolas, João Batista dizia que tinha ainda “muito prazer
em prestar este pequeno serviço a minha Província e à V. Sª que tanto tem se esforçado para
moralidade dela”.92
O novo Juiz Municipal de Divina Pastora, Manoel Cardoso Vieira, mostrou logo
estar mais empenhado que seu antecessor em resgatar a segurança individual e da propriedade
da cidade sob sua jurisdição.93 Assim que soube que o negro Mulungu estava a atacar sitiantes
por aquelas terras, se dirigiu pessoalmente ao chefe de policia dispondo-se a auxiliá-lo na
88
Ibidem.
“Expediente do Governo do dia 16 de julho de 1873”, Jornal do Aracaju, n° 398, 30 de julho de 1873, p. 1.
90
“Expediente do Governo do dia 16 de julho de 1873”, Jornal do Aracaju, n° 398, 30 de julho de 1873, p. 1.
91
Ofícios expedidos – AG.1.04 – APES. 13 de janeiro de 1876, doc. 05.
92
Ofícios: escravos – AG.1.04 – APES. 14 de janeiro de 1876, doc. 06.
93
Ressalto que até então não pude saber qual o verdadeiro motivo da substituição do ex-juiz municipal Jenuino
por Manoel Cardoso Vieira. Acredito que se as acusações do Paciente fossem plausíveis, resultaria daí sua
substituição.
89
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captura do dito quilombola. Vicente de Paula, o chefe de polícia, designou que uma diligência
sob a liderança do capitão João Batista, fosse ao encontro dos quilombolas.
Entre os dias 14 e 19 de janeiro daquele ano, João Batista acompanhado de alguns
praças bateram as matas dos engenhos da Cotinguiba sem sucesso. No caminho de retorno ao
município de Divina Pastora, a tropa nas proximidades do engenho Vassouras encontrou “um
escravo de nome Severino, do engenho Flor da Roda, termo de Laranjeira, que entregou uma
carta comunicando que se encontrava nas senzalas do engenho João Mulungu”.94
Severino ficaria incumbido de guiar a tropa até o dito engenho. Lá chegando,
constataram que o temido quilombola realmente esteve por àquelas terras, mas que no
momento tinha saído e que retornaria por volta do meio dia. No dia 20, Severino encontrandose com a tropa, “deu parte que João Mulungu se achava descansando com um seu
companheiro no centro de um canavial. Partiu a tropa e chegando próximo ao canavial
mandou o tenente João Batista da Rocha que seis soldados franqueassem pela esquerda, nove
pela retaguarda e três praças atacassem pela frente. Vendo a tropa, João Mulungu tentou fugir
sendo arrojado no chão com um golpe na cabeça”.95
Encerravam-se assim os quase dez anos de “vida erradia” do negro Mulungu.
Capturado, o quilombola fora trazido para a capital da província como um troféu. Segundo o
chefe de polícia, “por toda parte em que a intrépida escolta passava com o referido escravo,
era vitoriada pelo povo em massa que manifestava ainda francamente o seu agradecimento ao
Dr. Juiz Municipal de Divina Pastora, ao capitão João Batista da Rocha e ao alferes
Marcolino, os quais acompanharam aquele malfeitor até esta capital onde tem sido objeto de
curiosidade”.96
Levado a interrogatório ainda em Divina Pastora, o negro revelara que o rigor
com que o seu senhor lhe tratava desde ainda muito menino, surrando-o enquanto este já
estava acorrentado, fez com o que ele fugisse por três vezes, numa tentativa desesperadora de
arranjar outro senhor. Como não conseguira quem o comprasse, decidiu entranhar-se pelos
matos. Este negro “um pouco ladino e insinuante” no seu depoimento diria também que
preferia “ser enforcado na praça pública a voltar para a casa de seu senhor”.97
Para as forças policiais, a captura do “chefe dos escravos fugidos” representava a
vitória branca frente às sublevações negras na província. Sua captura gerou tanta euforia entre
94
Arquivo Público do Estado de Sergipe, CM3, 1876. Apud SANTOS, Lourival Santana. Quilombos e
quilombolas em terras de Sergipe no século XIX. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
Aracaju, n°31, 1992, p. 38.
95
Ibidem.
96
Relatório do Presidente da Província de Sergipe João Ferreira d’Araujo Pinho, 1 de março de 1876, p. 12.
97
Ibidem.
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as autoridades policiais que Vicente de Paula, chefe de polícia, chegou a declarar ao
presidente da província que agora tinha “a satisfação de dizer a V. Exc. que considero extintos
os quilombos. O mais forte elemento de resistência, o calhambola João Mulungu, de quem
geralmente mais se receava, foi capturado [...]”.98
O entusiasmo pela captura do negro Mulungu logo teria fim. Sua captura, não
corresponderia à extinção do fenômeno quilombola nas matas da província. As vésperas da
abolição (9 de fevereiro de 1888), o chefe de policia expedia ordens de apreensão a um grupo
de quilombolas que estavam instalados nas matas do engenho Pedras, termo de Maruim.
No quilombo, a tropa acabou encontrando “um rancho feito e bem construído,
assim com uma grande cocheira, com cinco cavalos, porção de carne sol, muito milho, açúcar
e mais cereais tudo em grande quantidade, porção de couro de gado enterrado, e porções de
armas de fogo, facas, foices e machados [...]”. Pela quantidade de materiais localizados no
quilombo, suponho que estes estavam arranchados neste ponto já há algum tempo. A grande
quantidade de couro enterrado pode significar que estes negros tinham furtados alguns bois e
teriam enterrados a couraça para impedir que seus donos detectassem suas crias pela cor dos
pêlos, caso o rancho fosse descoberto.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A luta negra pela liberdade foi uma constante na província de Sergipe Del Rey.
Como modelo de resistência, destacou-se o grande número de fugas do cativeiro. Contudo as
grandes preocupações das autoridades estavam centradas nas ações dos quilombolas. Dentro
de uma classificação proposta por alguns historiadores, os quilombos sergipanos seriam de
caráter predatório, detentores de uma economia parasitária. Acredito que esta classificação
oculte mais do que revele os verdadeiros significados das ações dos quilombolas. Seus crimes,
furtos e delitos não são simples atos de resistência, e sim, de sobrevivência.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMARAL, Sharyse Piroupo do. Liberdade e Resistência em Sergipe: Cotinguiba, 18601888. Tese de doutorado em História, UFBA, 2007.
SANTOS, Lourival Santana. Quilombos e quilombolas em terras de Sergipe no século
XIX. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Aracaju, n°31, 1992.
98
Relatório do Presidente da Província de Sergipe João Ferreira d’Araujo Pinho, 1 de março de 1876, p. 12.
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HISTÓRIAS
DE
SOLIDARIEDADES
PEDESTRES:
ENTRE
ATUAÇÕES,
CAPTURADORES
88
CONFLITOS
DE
E
ESCRAVOS
FUGIDOS (SALVADOR, 1850-1857)
Kleberson da Silva Alves - UNEB
[email protected]
A história da escravidão é também a história de diversas formas de resistência do trabalhador
cativo e das estratégias de repressão. As fugas, práticas que comprometiam a ordem social e
econômica vigente, foram reprimidas por senhores e pela administração colonial e imperial.
Repressão que, para os centros urbanos, onde o Estado responsabilizou-se pela vigilância da
população “de cor”, gerou documentos que foram preservados nos arquivos. Analisaremos a
documentação produzida pela Companhia de Pedestres, responsável pela captura oficial de
escravos fugidos em Salvador, entre 1850 e 1857, além dos registros de engajamentos dos
indivíduos que atuaram na Companhia, buscando conhecer um pouco de suas histórias. Tais
documentos são registros preciosos que mesmo escritos na perspectiva da burocracia
repressiva oficial, oferecem indícios sobre os indivíduos das classes populares, os pedestres,
que seguindo a regra não deixaram seus pobres asilos repletos de documentos para
analisarmos. Histórias de conflitos e solidariedades apontam para questões importantes
relativas a atuação dos capturadores de escravos fugidos, sua proximidade social, econômica e
habitacional com aqueles que deveriam vigiar e reprimir.
Palavras-chave: Repressão; Captura de escravos; Pedestres.
A escravidão no Brasil não foi um regime homogêneo, que submetia os
escravizados às mesmas condições de sociabilidade. Diferenciou-se, por exemplo, quanto ao
campo e a cidade. Enquanto no campo, predominou os escravos da lavoura submetidos à
vigilância dos senhores e seus agentes (feitores e capitães-do-mato); nas cidades
predominaram cativos de ganho que circulavam pelas ruas a procura de quem necessitasse de
seus serviços ou comprasse suas mercadorias. Segundo Ana de Lourdes Ribeiro da Costa, os
escravos de ganho foram fundamentais “para o funcionamento de Salvador”: uma parcela da
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população livre necessitava de seus serviços para sua sobrevivência.99 Questão também válida
para a cidade do Rio de Janeiro e até outros centros urbanos do Império. Na estimativa
adotada por Cláudio Pinheiro, 90% da população residente na cidade do Rio de Janeiro, das
três primeiras décadas do século XIX, possuía ao menos um cativo, sendo estes 50% da
população da cidade. Era um elemento essencial da vida carioca, sendo empregado nos mais
diversos serviços.100
Conforme Joseli Nunes Mendonça, referindo-se a realidade dos centros urbanos,
“para que os senhores pudessem angariar sua ‘recompensa’ pecuniária, era necessário que tais
escravos [de ganho] dispusessem de uma margem considerável de autonomia para trabalhar”.
Tais indivíduos poderiam residir fora da residência senhorial e circulavam entre a população
livre das cidades. 101 Realidade também da cidade do Salvador.102 Todavia, assim como no
campo, os senhores dos centros urbanos possuíam mecanismos que buscavam garantir a
manutenção da propriedade privada (o escravo), da ordem social e econômica vigente. João
José Reis, em artigo sobre os trabalhadores negros da cidade do Salvador de meados do
século XIX, demonstra que existia uma preocupação da população branca para com tais
trabalhadores.103
Em 1857, ocorreu em Salvador a “greve negra”, um protesto dos trabalhadores de
ganho contra uma postura municipal que prévia o cadastro – obrigatório – para os
“ganhadores” e, para além, a apresentação de um fiador que “se comprometesse pelo
comportamento futuro deles”, caso esse fosse liberto. Foi uma medida, como muitas outras,
concebida para “disciplinar o negro no espaço público, tanto de trabalho como de lazer”.
Medida que demonstra os temores que a minoria “branca” conservava sobre a população “de
cor”.104 Segundo Costa, as características da escravidão na cidade do Salvador, onde
predominou a existência de escravos de ganho que necessitavam de autonomia para trabalhar,
só foi possível porque o Estado buscou assumir o controle sobre os escravos através de seu
aparato legal e policial.105
99
COSTA, Ana de Lourdes Ribeiro da. “Espaços negros: ‘cantos’ e ‘lojas’ em Salvador no Século XIX”.
Caderno CHR (suplemento), 1991, p. 20.
100
PINHEIRO, Cláudio. “No governos dos mundos: escravidão, contextos coloniais e administração de
populações”. Estudos Afro-Asiáticos, ano 24, n. 3, 2002, pp. 432-433.
101
MENDONÇA, Joseli Nunes. Cenas da abolição: escravos e senhores no Parlamento e na justiça. São Paulo:
Editora Fundação Perseu Abramo, 2001, p. 39.
102
COSTA, “Espaços negros”, pp. 19-20 e 27-31.
103
REIS, João José. “A greve negra de 1857”. Revista USP, n. 18, jun./ago., 1993.
104
REIS, “A greve negra de 1857”, pp. 8-9 e 14.
105
COSTA, “Espaços negros”, pp. 20-21.
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Vigiar e (se “necessário”) coibir os comportamentos dos trabalhadores negros na
cidade do Salvador para o período entre 1850 e 1857 era tarefa dos pedestres. Engajados
provisoriamente, os pedestres tinham a função de “a’prender criminosos, desertores, e
escravos fugidos” além de coibir e reprimir insurreições ou qualquer movimento contrário à
“ordem” pública.106 Recebiam, além de um insignificante soldo (500 réis mensais),
gratificações equivalentes a sua atuação (captura de escravos, desertores e criminosos
pronunciados de roubo). Para além, “qualquer descoberta , apreensão, captura ou achado a
que estivesse prometida alguma gratificação” tal lhe era imputada.107 Gratificações que, para
João Mauricio Wanderley, chefe de polícia da província da Bahia, seria um “incentivo ao
melhor desempenho das obrigações á que estão sujeitos os Pedestres, e contribuirá para que se
alistem pessoas mais hábeis á todos os respeitos”.108 O chefe de polícia, em 10 de fevereiro de
1851, considerava que a “falta de pessoas habilitadas” e a “mesquinha retribuição” (500 réis
mensais) que os pedestres recebiam de soldo eram elementos que justificavam o não
preenchimento das vagas na Companhia. No livro em que eram registradas as matrículas dos
pedestres consta a ocorrência de trinta e um registros realizados até o dia sete de fevereiro de
1851.109 Matrículas que não implicavam no número do contingente de pedestres já que eram
freqüentes as demissões.110 É bastante provável a veracidade das informações emitidas pelo
chefe de polícia, em 10 de fevereiro, na qual, a despeito dos trinta e um registros, a
Companhia, até aquela data, nunca tivesse sido composta pelo efetivo planejado de 20
homens. Por isso o incentivo ao engajamento e a atuação de tais profissionais através das
recompensas.
Mesmo quando não era prometida alguma gratificação, os pedestres faturavam
alguns réis extras com sua atuação. Para tanto foi constituído um cofre cujo caixa era
produzido com a metade do valor das apreensões que tivessem consignação ou promessa de
gratificação. O pedestre apreensor faturava apenas a metade.111 Recebiam, ainda, gratificações
de acordo a importância que a ocasião denotasse, e os fundos policiais permitissem, “pela
106
“Instrucções dadas pelo chefe de policia”, 09/08/1850. In: BAHIA. Falla que recitou o Presidente da
Provincia da Bahia, o Dezembargador Conselheiro Francisco Gonçalves Martins, n’abertura da Assemblea
Provincial da mesma Provincia no 1º de março de 1851. Bahia: Tipographia Constitucional de Vicente Ribeiro
Moreira, 1851, p. 7.
107
FUNCEB. Legislação da Província da Bahia sobre o negro: 1835-1888. Salvador: FUNCEB, 1996, p. 171.
108
“Offício em que o chefe de policia emitte sua opinião sobre a creação dos Pedestres fallando do estado, e
numero delles”, 10/02/1851. In: BAHIA. Falla que recitou o Presidente, 1851, p. 4.
109
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais, Fundo Polícia, Matrícula de Pedestres, n. 5913 (18501857), 65fls.
110
Das 131 matriculas consta que 68, saíram, por algum motivo – como morte, demissão, doenças, ingresso na
polícia – da Companhia.
111
“Creação dos Pedestres: artigos additivos ao Regulamento de 21 de março de 1850”, 21/03/1850. In: BAHIA.
Falla que recitou o Presidente, 1851, p. 6.
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descoberta de uma insurreição”.112 A busca por melhores condições de existência, sem
dúvidas, foi um elemento preponderante para a atuação dos pedestres e outros capturadores de
escravos fugidos ciosos por aumentarem seus escassos provimentos.
A receita fixa mensal dos pedestres, estabelecida em aditivo ao regulamento de 21
de março de 1851, era um soldo de apenas quinhentos réis, valor duzentas vezes menor do
que um pedestre receberia caso, em 1853, capturasse João Cancio, escravo de Laurentino José
Miranda da cidade do Rio Formoso, da província de Pernambuco, cujo senhor presumia
encontrar-se em Sergipe ou na Bahia. 113 Ao que tudo indica, as gratificações provenientes de
sua atuação constituía-se como principal fonte de renda dos pedestres.
Um ato de solidariedade ocorrido quando da morte de um pedestre demonstra que
os provimentos de seus companheiros superava os quinhentos réis pagos pelos cofres
públicos. Na tarde de três de novembro de 1854, faleceu o pedestre Bernardino Cardoso,
pardo claro, natural de Valença, casado, com aproximadamente 41 anos.114 Sendo o falecido
pobre, condição comum aos capturadores de escravos fugidos, houve a necessidade de
recorrer ao auxiliou para a realização do enterro. Como costume da época, Bernardino foi
enterrado na igreja, em seu caso na de São Francisco, sendo as despesas parcialmente pagas
por seus parceiros de Companhia. Conforme carta enviada pelo cabo-pedestre, superior da
Companhia, ao chefe de polícia datada de sete de novembro, foram realizadas seis
contribuições no valor de quinhentos réis ($500), mesmo valor que os pedestres recebiam de
soldo, e uma de 1$000 (mil réis). Houve, ainda, duas contribuições posteriores (anotadas
abaixo da assinatura do cabo-pedestre) no valor de $500 ambas. As contribuições cujos
registros tivemos acesso somam cinco mil réis que, juntamente com outras contribuições, que
desconhecemos a origem, saudaram 20$000 de um total de 36$740 gastos com as despesas do
enterro.115
A comunicação entre a Companhia e o chefe de polícia era realizada através do
cabo-pedestre que, entre suas atribuições, tinha a função de organizar as partes diárias
recebidas dos pedestres rondantes e apresentá-las à autoridade policial superior. Entre as
cartas enviadas existe muita semelhança com as comunicações realizadas por subdelegados e
112
FUNCEB, Legislação da Província, pp. 171-172.
BPEB. O Guayacuru, ano 10, n. 389, Bahia, 27/06/1853, p. 4. Laurentino José, em anúncio publicado em
periódico baiano, oferecia 200$ de gratificação cujo valor hipoteticamente dividimos entre o pedestre apreensor
e o “cofre” para as gratificações que não possuíam promessa de pagamento.
114
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais, Fundo Polícia, Matrícula de Pedestres, n. 5913 (18501857), fl. 29v.
115
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais, Fundo Polícia, Correspondência recebida da Companhia
de Pedestres – Companhia de Polícia Urbana, maço 6298 (1853-1876), 04/11/1854 e 07/11/1854. Consta entre a
documentação, enviada ao chefe de polícia, diversos comprovantes de despesas do enterro.
113
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delegados: a apresentação de prisão é a tônica de muitas delas. Como em casos de prisão por
“desordem”, a exemplo da ocorrida com “as africanas Rozalina e Adriana encontrada ambas
em dezordem a ladeira da rua passos”, no dia nove de julho de 1854.116 Mas, também
apresenta conflitos e enseja sobre solidariedades entre o grupo.
Os capitães-do-mato, outro tipo de capturador de escravos fugidos, também foram
registrados por autoridades para exercer sua função,117 todavia não compunham um corpo
hierarquizado e burocraticamente organizado como os pedestres. Ademais, nada impedia que
indivíduos se aventurassem no exercício da função, como a personagem Cândido Neves, de
Machado de Assis.118 Os capitães-do-mato não possuíam uma autoridade hierárquica formal
que exigisse uma comunicação diária. Elemento que se relaciona diretamente com a produção
e preservação documental. Provavelmente, excetuando casos de expedições a exemplo de
Palmares (quando o combate aos escravos era uma questão de Estado) ou quando estes
sofriam atentados,119 tenhamos raros documentos que forneçam indícios sobre a vida dos
capitães-do-mato. Ademais, sua atuação particular e pulverizada foi um elemento que
dificultou a catalogação e preservação dos registros sobre e por eles produzidos.
Pertencer ao aparato repressivo oficial, à burocracia provincial, foi um elemento
fundamental para que a documentação produzida pelos pedestres fosse preservada nos
arquivos. Conforme E. P. Thompson, “‘os trabalhadores pobres’ não deixaram seus asilos
repletos de documentos para os historiadores examinarem”.120 Pedestres e capitães-do-mato,
ambos trabalhadores pobres, não fugiram a essa regra. Todavia, enquanto componente formal
do aparato repressivo do Estado, os pedestres produziram documentos – da burocracia
repressiva oficial – dos quais podemos apreender elementos de suas vidas.121 As partes diárias
116
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais, Fundo Polícia, Correspondência recebida da Companhia
de Pedestres – Companhia de Polícia Urbana, maço 6298 (1853-1876), 10/07/1854.
117
LARA, Silvia Hunold. “Do singular ao plural: Palmares, capitães-do-mato e o governo dos escravos”. In:
REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos (orgs.). Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 81-109.
118
ASSIS, Machado de. “Pai contra mães” [1906]. In: Contos escolhidos. São Paulo: Martin Claret, 2002, pp.
61-71.
119
Casos em que capturadores de escravos sofreram atentados foram citados por: Isabel Cristina Ferreira dos
Reis (“Uma negra que fugio e consta que já tem dous filhos: fuga e família entre escravos na Bahia”. Afro-Ásia,
n. 23, 1999, pp. 36-37) e Walter Fraga Filho (Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e libertos na
Bahia (1870-1910). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2007, pp. 99-108). Ademais, tais sujeitos sociais
quando aparecem em bibliografias é em menções curtas.
120
THOMPSON, Edward P. “Patrícios e plebeus”. In: Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular
tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 26.
121
Conforme Manuela Carneiro da Cunha (“Sobre os silêncios da lei: lei costumeira e positiva nas alforrias de
escravos no Brasil do século XIX”. In: Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade. São Paulo:
Brasiliense: EDUSP, 1986, p. 134), o controle dos escravos ficava exclusivamente a cargo dos senhores (exceto
em casos de assassinatos e insurreições), todavia a partir do século XVIII, essa regra permaneceu válida no
campo. Já nos centros urbanos o Estado se colocou a serviço da “justiça particular dos senhores”.
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enviadas ao chefe de polícia objetivavam detalhar a atuação da Companhia. São documentos
da esfera pública produzidos por indivíduos das classes populares, os pedestres, que
pertenciam à burocracia provincial. Registros que não refletem a vontade dos pedestres, mas
sim do corpo administrativo da província, das classes dirigentes. Todavia podemos, por
intermédio deles, conhecer um pouco sobre os pedestres e conseqüentemente sobre outros
capturadores de escravos fugidos que não nos legaram muitas fontes.
Conforme Ivan de Andrade Vellasco, em artigo sobre as transformações no
policiamento da província de Minas Gerais para o período entre 1831 e 1850, “os pedestres
formavam uma organização a parte” das demais forças coativas do Estado. Eram recrutados
entre as camadas mais subalternas da sociedade, “homens cuja posição social só suplantava a
dos próprios escravos”. Recebiam os piores salários.122 Analisando os dados apresentados nas
matrículas dos pedestres para a cidade do Salvador, para o período entre 1850 e 1857,
constatamos que tal assertiva é válida para a cidade e período aqui estudado.123 Outros autores
sugerem a proximidade social entre capturadores e escravos. Para Renilson Rosa Bezerra, a
proximidade social de tais agentes do senhor com aqueles que deveria reprimir era
fundamental para o exercício de seu ofício. Conforme o autor, a “perícia [profissional de tais
indivíduos] definia-se por sua capacidade de conhecer os signos socioculturais do mundo dos
quilombolas e outros escravos fugidos”. Lúcio Kowarick, em estudo sobre a transição do
trabalho escravo ao livre na província de São Paulo, destacou que o trabalhador nacional foi
“essencial na manutenção do domínio, cujas raízes se assentavam a preservação do cativeiro”,
já que estes eram “os executores da violência com que a ordem senhorial conquistava e
mantinha suas propriedades e reprimia seus escravos”.124
A partir do exposto, podemos considerar que para a manutenção da propriedade
escrava, além de uma dominação cultural que tornasse a escravidão socialmente legitima, era
necessário um contingente de mão-de-obra livre pauperizado que empregasse suas forças na
tentativa de manter a ordem social e econômica vigente. Talvez, a própria concessão de
alforrias tivesse se prestado a formação deste contingente disponível as necessidades coativas
dos senhores e da burocracia repressiva oficial. Bernardo Guimarães, em conto publicado em
122
VELLASCO, Ivan de Andrade. “Policiais, pedestres e inspetores de quarteirão: algumas questões sobre a
vicissitude do policiamento na província de Minas Gerais (1831-50). In: CARVALHO, José Murilo de (org.).
Nação e cidadania no Império: novos horizontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 249.
123
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais, Fundo Polícia, Matrícula de Pedestres, n. 5913 (18501857), 65fls.
124
BEZERRA, Nielson Rosa. “Entre escravos e senhores: a ambigüidade social dos capitães do mato”. Revista
Espaço Acadêmico, n. 39, ago., 2004, http://www.espacoacademico.com.br, acessado em 15/09/2006;
KOWARICK, Lúcio. Trabalho e vadiagem: a origem do trabalho livre no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1987,
pp. 109-110.
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1871, nos indica tal possibilidade. Anselmo, personagem que atua enquanto capitão-do-mato,
é um liberto que, por características como a “lealdade” e a “coragem” – honrava a liberdade
que gozava –, é considerado apto na tentativa de destruir um quilombo. Era um liberto
considerado ideal e, para além, difusor do processo de emancipação e contenção dos
comportamentos considerados inadequados dos escravos.125
Os pedestres matriculados na cidade do Salvador eram majoritariamente “de cor”.
O engajamento de pretos (2), pardos (54), cabras (3) e crioulos (15) somam para o período
estudado um total de 74 (56,5%) do universo de 131 matrículas. Número que ainda pode ser
superior, pois em vinte e duas (16,8%) matrículas não foram apresentados este dado. Outro
aspecto que nos chama a atenção é a predominância de engajamento de indivíduos solteiros
(75,6%). Cruzando os dados relativos à cor e ao “estado civil”, notamos uma grande
incidência de engajamentos de indivíduos “de cor” e solteiros que compreendiam cinqüenta e
seis (42,74%) pedestres (ver Tabela 1).126 Tais dados indicam que os pedestres eram
arregimentados entre as camadas populares da cidade. A população de Salvador de meados do
século XIX foi estimada em 86.984 habitantes, sendo que 30% eram escravos. Pretos e
mestiços somavam 67%.127 Entres os trabalhadores de rua da cidade do Salvador, grupo que
os pedestres vigiavam e reprimiam, a maioria não eram casados. Conforme Costa, servindo-se
do censo de 1855, “91% eram solteiros e 3,5% viúvos, embora haja evidências de
concubinatos”, comportamento que acreditamos ter sido realizado também pelos capturadores
de escravos.128
Tabela 1. Relação cor e estado civil dos pedestres matriculados entre os anos de 1850 e 1857.
Fonte: APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais, Fundo Polícia, Matrícula de
Pedestres, n. 5913 (1850-1857), 65f.
Casados
“De cor”
Brancos
Não apresenta
Total
10
7
3
20
l
civi
Cor
125
Autores como Walter Fraga Filho (Encruzilhadas da liberdade, pp. 49, 109) e Manuela Carneiro da Cunha
(“Sobre os silêncios da lei”, pp. 123-144) argumentaram que a concessão de alforria foi tida pelos senhores como
uma forma de gerar uma mão-de-obra livre subordinada. Buscavam promover um processo “ordeiro” que
mantivesse a autoridade (ex)senhorial. Podemos acrescentar que, como sugere Bernardo Guimarães, também
apta a difundir o processo de emancipação. Ver, também: GUIMARÃES, Bernardo. “Uma história de
quilombolas”. In: Lendas e romances. São Paulo: Livraria Martins, s.d. [1871], pp. 5-105.
126
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais, Fundo Polícia, Matrícula de Pedestres, n. 5913 (18501857), 65fls.
127
COSTA, “Espaços negros”, p. 20.
128
COSTA, “Espaços negros”, p. 31.
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Solteiros
56
26
17
99
Viúvos
1
1
0
2
Não apresenta
7
1
2
10
Total
74
35
22
131
Provavelmente, devido a um faturamento incerto, os mais jovens e solteiros foram
os que mais buscaram ingressar na Companhia de Pedestres. É, ainda, possível que alguns (se
não muitos) tivessem enfrentado dramas devido à escassez de recursos, como a personagem
machadiana Cândido Neves, que teve de concorrer com “mais de um desempregado [que]
pegou em si e numa corda, foi aos jornais, copiou os anúncios e deitou-se à caçada”.129 A
média etária entre os pedestres foi de 29 anos, levando em consideração as 126 matrículas que
apresentaram esta informação. Entre os solteiros, que, como vimos, foram numericamente
superiores os registros, temos a menor média etária, 28 anos. Cruzando os dados relativos ao
“estado civil”, cor, e faixa etária, observamos que trinta (22,9%) matrículas indicam que os
indivíduos eram “de cor”, solteiros e possuíam entre 18 e 29 anos de idade. Foi o número
mais expressivo que retiramos deste cruzamento.130 No quadro total, 65 registros indicam que
tais agentes estavam na faixa etária mencionada (ver Tabela 2).
Tabela 2. Relação cor, estado civil e faixa etária dos pedestres matriculados. Fonte: Matrícula
de Pedestres, n. 5913 (1850-1857), 65f. Ver Tabela 1 para um quadro total.
129
130
Estado
civil
Casados
Solteiros
Viúvos
Não apresenta
Total
“De cor”
1
30
0
3
34
Brancos
2
17
0
1
20
Não apresenta
0
10
0
1
11
Total
3
57
0
5
65
Estado
civil
Casados
Solteiros
Viúvos
Não apresenta
Total
4
14
0
2
20
4
5
0
0
9
3
5
0
0
8
11
24
0
2
37
Estado
civil
Acima dos 40
anos
Faixa etária
30 a 39 anos
18 a 29 anos
Cor
Casados
Solteiros
Viúvos
Não apresenta
Total
5
10
0
2
17
1
4
1
0
6
0
1
0
0
1
6
15
1
2
24
ASSIS, Machado de. “Pai contra mães” [1906]. In: Contos escolhidos. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 65.
Seguido por 17 que indicam serem brancos, solteiros e na mesma faixa etária.
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Estado
civil
Não apresenta
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Casados
Solteiros
Viúvos
Não apresenta
Total
0
2
1
0
3
0
0
0
0
0
0
1
0
1
2
96
0
3
1
1
5
Enfim, houve uma maior incidência de indivíduos “de cor”, jovens e solteiros na
captura oficial de escravos fugidos em Salvador para o período entre 1850 e 1857. Tal
incidência, provavelmente, foi reflexo, ao mesmo tempo, das necessidades coativas do estado
que necessitava de indivíduos culturalmente e fisicamente hábeis para o exercício da função,
bem como das condições de emprego e sobrevivência a que estava submetida a população “de
cor” da cidade do Salvador. Como destacou Kowarick, alijados do sistema produtivo, o
trabalhador não escravizado, seja livre ou liberto, foram, sobretudo, os executores da
violência senhorial.131 Ser capturador de escravo fugido era uma questão de sobrevivência,
mas pode ter representado também uma questão de prestígio social que afastava o indivíduo,
de maneira muito sutil, do mundo do cativeiro.132 Poderia representar também a possibilidade
de ingresso na polícia, força mais prestigiada e melhor remunerada que os pedestres, como foi
o caso de Estanilau de Brito Pinheiro, natural de Salvador, solteiro, pardo, engajado em oito
de abril de 1852, com trinta e três anos de idade. Em setembro do ano seguinte, Estanilau
ingressou na polícia.133
A proximidade social dos capturadores de escravos fugidos com aqueles que
deveria reprimir implicou também em casos de utilização pessoal de certos privilégios ou de
sua função. Em três de julho de 1854, o cabo-pedestre Zacarias de Castro Lima noticiava, em
sua carta diária, ao chefe de polícia, que “o pedestre Joze Perª da Rocha que rondou ontem a
tarde a fregª da Sé deo parte que deo voz de prisão […] a crioula Paulina moradora ao beco
das Campelas por insultar a elle com palavras injuriosas estando elle de ronda e o motivo foi
por que tinha elle pedido dês tustoez que ella lhe devia de Obra”.134 Esse conflito entre a
crioula Paulina e o pedestre José Pereira da Rocha indica, também, que o pedestre em questão
buscava por outras fontes de renda. Em Minas Gerais, segundo Vellasco, os pedestres eram
131
KOWARICK, Lúcio. Trabalho e vadiagem: a origem do trabalho livre no Brasil. São Paulo: Brasiliense,
1987, pp. 109-110.
132
Bezerra (“Entre escravos e senhores”) enfatiza justamente este aspecto. O ofício de capitão-do-mato atendia
as demandas relativas à questão de distinção social almejada pelos setores pobres e “de cor”.
133
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais, Fundo Polícia, Matrícula de Pedestres, n. 5913 (18501857), fl. 25.
134
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais, Fundo Polícia, Correspondência recebida da Companhia
de Pedestres – Companhia de Polícia Urbana, maço 6298 (1853-1876), 03/07/1854.
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todos empregados em pequenos ofícios.135 Certamente, assim como outros capturadores, José
Pereira não poderia dispensar os dez tostões que lhe devia Paulina: as condições sócioeconômicas dos pedestres não eram das melhores, o ato de solidariedade acima mencionado
demonstra isso.
O conflito entre Paulina e José demonstra que para além do aspecto cultural, os
capturadores conheciam pessoalmente os indivíduos que deveriam perseguir. Poderiam
inclusive residir em locais próximos. Essa proximidade (física, cultural e residencial) foi, de
certo modo, pensada pelos dirigentes da burocracia repressiva. Em 1857, quando foi criada a
Companhia de Polícia Urbana (e ao que tudo indica extinta a Companhia de Pedestres),136 o
chefe de polícia recomendava: “sempre que for possível, serão preferidos a servir na
Freguesia os Guardas que nellas morarem”. Os guardas urbanos tinham, assim como os
pedestres, entre suas atribuições, a função de coibir “reunião de escravos”.137 Tais reuniões
eram, sobretudo, de escravos de ganho que reunidos nos “cantos” da cidade “estabeleciam
vínculos, trocavam idéias e podiam até mesmo conspirar, na medida em que não estavam sob
o controle e vigilância direta do seu senhor”.138
Mas, a proximidade entre escravos e capturadores poderia representar perigo para
a classe proprietária ou suas finanças. O historiador e poeta inglês Robert Southey, em sua
Historia do Brazil escrita entre 1806 e 1819, e publicada no Brasil em 1862, ressaltou que os
capitães-do-mato eram “quasi tão perigosos, como os mesmos salteadores que tinhão por
dever perseguir”. Para ele os capturadores haviam inventado algumas velhacarias: “prendia
negros que não erão fugidos”, aproveitavam-se dos serviços dos capturados, e, ainda, “alguns
bargantes d’esta profissão”, enfatizou ele, “para se tornarem mais commoda a couza,
costumavão em logar de correr atraz de negros fugitivos, pagar a escravos que fugissem e
viessem ter com elles”. Segundo Southey, para previnir tais práticas “não devião os
magistrados deixar os capitães do mato residir muito tempo em qualquer villa ou arraial”,139
enfim era preciso restringir essa proximidade.
135
VELLASCO, “Policiais, pedestres e inspetores de quarteirão”, p. 252.
No ano de 1857 houve apenas dois engajamentos de pedestres: no dia três de janeiro o maranhense Zuntiliano
de Oliveira, solteiro, branco, então com 42 anos, retornava à Companhia após aproximadamente um ano e quatro
meses. E no dia 12 do mesmo mês temos o último registro de engajamento, o de Severino Rois de S. Anna,
natural de Salvados, cabra, solteiro, com 32 anos de idade. Ademais, neste mesmo ano, desaparece do Arquivo a
documentação da Companhia.
137
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais, Série Polícia, Atos de criação da Guarda Urbana, maço
2946 (1857), 25/07/1857.
138
COSTA, “Espaços negros”, p. 27.
139
SOUTHEY, Robert. Historia do Brazil. Traduzida por Dr. Luiz Joaquim de Oliveira e Castro e anotada pelo
Conego Dr. J. C. Fernandes Pinheiro. Tomo quinto. Rio de Janeiro: Livraria de B. L. Garnier, 1862, pp. 522-323.
136
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FONTES
APEB (Arquivo Público do Estado da Bahia)
Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais:
Fundo Polícia: Matrícula de Pedestres, n. 5913 (1850-1857), 65fls; Correspondência recebida
da Companhia de Pedestres – Companhia de Polícia Urbana, maço 6298 (1853-1876).
Série Polícia: Atos de criação da Guarda Urbana, maço 2946 (1857).
BPEB (Biblioteca Pública do Estado da Bahia)
O Guayacuru, ano 10, n. 389, Bahia, 27/06/1853, p. 4.
Obras literárias
ASSIS, Machado de. “Pai contra mães” [1906]. In: Contos escolhidos. São Paulo: Martin
Claret, 2002, pp. 61-71.
GUIMARÃES, Bernardo. “Uma história de quilombolas”. In: Lendas e romances. São Paulo:
Livraria Martins, s.d. [1871], pp. 5-105.
BAHIA. Falla que recitou o Presidente da Provincia da Bahia, o Dezembargador
Conselheiro Francisco Gonçalves Martins, n’abertura da Assemblea Provincial da mesma
Provincia no 1º de março de 1851. Bahia: Tipografia Constitucional de Vicente Ribeiro
Moreira, 1851. Com anexos.
REFERÊNCIAS
BEZERRA, Nielson Rosa. “Entre escravos e senhores: a ambigüidade social dos capitães do
mato”. Revista Espaço Acadêmico, n. 39, ago., 2004, http://www.espacoacademico.com.br,
acessado em 15/09/2006.
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COSTA, Ana de Lourdes Ribeiro da. “Espaços negros: ‘cantos’ e ‘lojas’ em Salvador no
Século XIX”. Caderno CHR (suplemento), 1991, pp. 18-34.
CUNHA, Manuela Carneiro da. “Sobre os silêncios da lei: lei costumeira e positiva nas
alforrias de escravos no Brasil do século XIX”. In: Antropologia do Brasil: mito, história,
etnicidade. São Paulo: Brasiliense: EDUSP, 1986, pp. 123-144.
FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e libertos na
Bahia (1870-1910). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2006.
FUNCEB. Legislação da Província da Bahia sobre o negro: 1835-1888. Salvador: FUNCEB,
1996.
KOWARICK, Lúcio. Trabalho e vadiagem: a origem do trabalho livre no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1987.
LARA, Silvia Hunold. “Do singular ao plural: Palmares, capitães-do-mato e o governo dos
escravos”. In: REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos (orgs.). Liberdade por um fio:
história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 81-109.
MENDONÇA, Joseli Nunes. Cenas da abolição: escravos e senhores no Parlamento e na
justiça. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2001.
PINHEIRO, Cláudio. “No governos dos mundos: escravidão, contextos coloniais e
administração de populações”. Estudos Afro-Asiáticos, ano 24, n. 3, 2002, pp. 425-457.
REIS, Isabel Cristina Ferreira dos. “Uma negra que fugio e consta que já tem dous filhos:
fuga e família entre escravos na Bahia”. Afro-Ásia, n. 23, 1999, pp. 27-46.
REIS, João José. “A greve negra de 1857”. Revista USP, n. 18, jun./ago., 1993.
SOUTHEY, Robert. Historia do Brazil. Traduzida por Dr. Luiz Joaquim de Oliveira e Castro
e anotada pelo Conego Dr. J. C. Fernandes Pinheiro. Tomo quinto. Rio de Janeiro: Livraria de
B. L. Garnier, 1862.
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THOMPSON, Edward P. “Patrícios e plebeus”. In: Costumes em comum: estudos sobre a
cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, pp. 25-85.
VELLASCO, Ivan de Andrade. “Policiais, pedestres e inspetores de quarteirão: algumas
questões sobre a vicissitude do policiamento na província de Minas Gerais (1831-50). In:
CARVALHO, José Murilo de (org.). Nação e cidadania no Império: novos horizontes. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, pp. 237-265.
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ESCRAVOS DA BAHIA ENVIADOS PARA A GUERRA DO PARAGUAI
Osvaldo Silva Felix Júnior – UNEB
[email protected]
Entre 1864 e 1870 o Brasil esteve envolvido na chamada Guerra do Paraguai. O conflito
envolveu as principais Províncias do Império, mobilizando um grande efetivo de homens para
complementar os quadros do Exército Nacional e da Armada. A Província da Bahia foi uma
das mais exigidas, enviando para a guerra um efetivo superior a 18 mil homens. Entre esses
homens estavam voluntários e recrutados pegos à força. Este texto trata de um recurso
utilizado pelo Governo Provincial Baiano, sob a orientação do próprio Governo Imperial, para
complementar os efetivos dos Corpos que seguiram da Bahia, a fim de complementarem os
quadros do Exército Nacional, o envio de escravos. Segundo indicam as fontes, a idéia das
autoridades imperiais era de sensibilizar pessoas de posses e determinadas instituições a
libertarem seus escravos como um “empenho patriótico” em favor da nação ou mesmo
comprar os escravos e alforriá-los, mandando-os para a guerra. Após o exame de uma variada
e diversificada gama de fontes escritas (manuscritas e impressas), oficiais e pessoais,
encontradas no Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB), apresento uma série inédita de
descobertas sobre o tema.
Palavras - chaves: História, Bahia, Escravidão.
Em 7 de janeiro de 1865, atendendo a apelos dos chefes militares e de
parlamentares brasileiros, para a complementação dos efetivos do Exército Nacional, que se
vira, inesperadamente, engajado na guerra com o Paraguai, D. Pedro II, assistido pelo
Ministro da Justiça, Senador Francisco José Furtado, expediu o Decreto Imperial de número
3371, criando os chamados Corpos de Voluntários da Pátria.1 Pelo Decreto o Imperador
apelava para os sentimentos do povo brasileiro a fim de, voluntariamente, cerrar fileiras em
torno do Exército Nacional, e dar a resposta às Forças Paraguaias, que atentavam contra a
soberania brasileira.
1
Pelo Decreto 3371, poderia compor esses Corpos todo cidadão entre 18 e 50 anos de idade, que aceitasse as
condições ali estabelecidas.
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A idéia do Império era de formar, nas Províncias, Batalhões constituídos de
voluntários que pudessem complementar os efetivos do Exército de Linha, que se encontrava
em inferioridade numérica em relação ao Exército Paraguaio. Em conjunto com o Decreto, o
Governo Imperial determinou a convocação obrigatória de parcela dos batalhões da Guarda
Nacional,2 estabelecendo para cada Província o número de homens que deveria ser enviado. 3
Quando da chegada da notícia do Decreto, encontrava-se como presidente da
Província da Bahia o Desembargador Luiz Antônio Barbosa de Almeida, que
recebeu do Governo Imperial a informação a respeito da criação dos Corpos
de voluntários da pátria e sobre as condições estipuladas. Foi orientado a
dirigir proclamações à população, exortando ao voluntariado, e
determinando o envio à Côrte, de toda a Força de Linha (tropas do Exército
Nacional) existente na Província. 4
Nos primeiros dias de janeiro, o Desembargador promoveu reuniões no
palácio do Governo com as principais autoridades provinciais para tratar da
execução dos serviços relativos ao alistamento de civis e a designação dos
guardas nacionais, na Capital e no interior, medidas por ele vistas como
necessárias para que a Bahia pudesse cumprir as determinações imperiais. 5
Entre essas medidas constavam: a remessa de comunicações a homens influentes
das vilas e cidades do interior, em particular do Recôncavo baiano, para que eles atuassem
junto à população de suas localidades, na missão de alistar o maior número possível de
homens; a intensificação, no jornal Diário da Bahia, de matérias que incitassem os homens
das classes populares ao alistamento para a guerra; a orientação para as câmaras de Salvador e
dos municípios do interior para o apoio no chamamento da população de seus municípios para
o alistamento para o conflito.6
De inicio, as condições estipuladas no Decreto e as medidas adotadas pelo
Governo Provincial tiveram algum êxito e conseguiram angariar certo número de voluntários,
na Capital e no interior. Entre esses voluntários estavam estudantes, moços de famílias
abastadas e oficiais da Guarda Nacional. Passado esse momento, a Bahia vivenciou um
período caracterizado por uma grande procura por parte das autoridades provinciais, civis e
2
A Guarda Nacional foi criada em 1831, ainda no período regencial. Tinha a missão de substituir as extintas
Milícias, Ordenanças e Guardas Municipais, e, em último caso, auxiliar o Exército em questões externas. Em
1850 foi reorganizada, ficando subordinada aos Juizes de Paz, Presidente de Províncias e ao Ministro da Justiça.
3
DUARTE, Paulo de Queiroz. Os Voluntários da Pátria na Guerra do Paraguai. Rio de Janeiro: Bibliex, 1981.
p. 199.
4
Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB). Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais. Inventário dos
documentos do Governo da Província. 1ª parte. Série Administração. Maço 828.
5
DUARTE, Paulo de Queiroz. Os voluntários da pátria na guerra do Paraguai. Rio de Janeiro: Bibliex, 1981.
p. 232.
6
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais. Presidência da Província. Avisos recebidos do Ministério da
Guerra. Originais - 1865. Maço 828; Boletim do Diário da Bahia, 04 de setembro de 1865 e Maço 3668; Arquivo
Municipal de Salvador. Atas da Câmara Municipal 1861/1869. N º. 950.
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militares, de homens que pudessem completar os efetivos dos batalhões da Guarda Nacional,
transformados em Corpos de voluntários da pátria, suprindo, assim, as crescentes
necessidades do Exército em operações.
Um dos recursos utilizados pelo Governo Provincial para complementar os
efetivos dos Corpos de voluntários da pátria foi de mobilizar escravos que pudessem ser
aproveitados nos serviços para a guerra. Segundo indicam as fontes, a idéia das autoridades
imperiais era de sensibilizar pessoas de posses e determinadas instituições a libertarem seus
escravos como um “empenho patriótico” em favor da nação. Caso não conseguissem esse
intento, a outra estratégia seria de comprar os escravos e alforriá-los, mandando-os para a
guerra.
Na Bahia, uma das instituições que se alinhou ao Governo no compromisso de
alforriar escravos e enviá-los para o conflito foi a Igreja Católica. Como exemplo, em janeiro
de 1867, a abadessa do Imperial Convento de Santa Clara do Desterro, em Salvador, passou
carta de liberdade ao escravo de nome Lourenço, a fim de ele seguir para o conflito, e o abade
de São Bento, também em Salvador, apresentou 10 forros para servirem no Exército. Em
resposta, o Governo Imperial informou que esperava que a “solicitude paternal” do reverendo
fizesse com que muitos outros forros fossem apresentados para o mesmo fim. 7
Ao contrário da Igreja, o pensamento dos donos de escravos não estava
sincronizado com o objetivo que o Ministério da Guerra pensava alcançar, de conseguir o
maior número possível de escravos que pudessem combater ao lado das tropas imperiais e,
aproveitando a oportunidade e a falta de compromisso das autoridades provinciais baianas,
esses proprietários venderam ao Governo escravos em péssimas condições físicas.
Em abril de 1867, o Ministro da Guerra devolvia ao presidente da Província 12
escravos forros que tinham sido enviados para a Corte a fim de serem empregados nas
atividades de guerra. O Ministro informava que eles tinham sido inspecionados e julgados
incapazes para o serviço do Exército. Orientava a fim de que os escravos fossem
inspecionados, com rigor, antes de serem enviados.
8
Anexo ao documento, existia uma
relação onde constavam os dados pessoais relativos a esses homens, o nome, a naturalidade e
o motivo da incapacidade. 9
O Ministério da Guerra, através de ofício “circular”, determinou aos presidentes
de Províncias que remetessem, com urgência, relação dos libertos que tendo ido para a Corte,
7
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais. Inventário dos documentos do Governo da Província. 2ª
parte. Série Militares. Correspondências recebidas de voluntários da guerra do Paraguai. Maço 3668.
8
Idem, maço 830.
9
Idem, Ibidem.
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voltaram por terem sido declarados incapazes para o serviço militar, informando a quem
pertencia, por quem foram oferecidos, ou se foram comprados por conta do Estado. 10 Era uma
forma de o Império descobrir se estava havendo realmente dolo por parte dos proprietários ou
se as autoridades provinciais não estavam dando a importância devida para a inspeção desses
homens, e com isso penalizar os responsáveis.
Por outro lado, o caráter “circular” do documento indicava que não só da Bahia
seguiram negros alforriados para a guerra e que muitos escravos voltaram para as suas
Províncias de origem por não satisfazerem as condições físicas exigidas pelo Exército.
Embora o Governo Imperial esperasse conseguir um bom número de escravos, o
Exército, aparentemente, não teve preocupação em priorizar a incorporação de alforriados às
suas fileiras; ao contrário, manteve nas suas juntas de inspeção de saúde uma postura de
resistência a essa política, só recebendo aqueles homens que realmente tinham plenas
condições físicas.
As informações apresentadas pelo presidente da Província à Assembléia
Legislativa da Bahia, em abril de 1869, mostram que, para o Governo Provincial, seguiram
para a guerra 1.647 escravos (o somatório dos escravos enviados para o Exército e para a
Armada), sendo 1.376 especificamente para a Armada.
11
Ou seja, para o Exército seguiu,
apenas, 271 escravos, o que corrobora as informações encontradas nos documentos
comentados acima, de que o Exército não priorizou a incorporação de alforriados. Ao
contrário, a Armada, aparentemente não teve o mesmo posicionamento, absorvendo grande
quantidade de escravos em suas fileiras.
No relatório do Ministério dos Negócios da Guerra, de 1872, consta que na
Província da Bahia foram libertados, a fim de seguirem para a guerra: por Conventos, 12
escravos; por particulares, o mesmo número; e que foram comprados e libertados pelo
Governo Provincial e enviados para o Exército 248 escravos, dando um total de 272 homens.
12
Embora não plenamente concordantes, os dados dos dois relatórios corroboram-se.
Caso interessante ocorreu com o escravo de nome Modesto, pertencente a
Joaquim Anselmo de Barros Bittencourt. O escravo, em novembro de 1867, foi condenado
por júri popular à pena de 500 açoites, e trazer um ferro preso ao pescoço por espaço de dois
anos. Porém, em fevereiro de 1868, o Jornal da Bahia noticiou que um escravo de nome
Modesto, condenado por crime, tinha seguido para a guerra, incorporado à Armada. De
10
Idem, Ibidem.
APEB. Biblioteca. Relatório do presidente da Província, em 11 de abril de 1869.
12
APEB. Biblioteca. Relatório do Ministério dos Negócios da Guerra, em 1872.
11
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imediato, o presidente da Província determinou ao juiz de direito da 3ª Vara, Pedro Caetano
da Costa, na qual correu o processo contra Modesto, que verificasse a veracidade ou não dos
fatos informados pelo jornal. 13
Após realizar uma sindicância, em que ouviu todos os envolvidos, o juiz informou
ao presidente que o escravo realmente pertencia a Joaquim Anselmo; que logo depois de
açoitado, foi vendido a Domingos Fernandes Moreno, negociante na praça de Salvador, com
armazém de “molhados” na rua Nova do Comércio, por um conto de réis; que a venda foi
efetuada sem ter-se cumprido a pena de condução de ferro ao pescoço, e que, mesmo sabendo
da pendência, o comerciante Domingos Moreno passou carta de liberdade a Modesto, com a
condição de que ele servisse na Armada, e que ele recebeu pela venda a quantia de um conto e
setecentos e cinqüenta mil réis.
Esclareceu que, assim como foi noticiado pelo jornal, o escravo seguiu para a
guerra. O juiz sugere ao presidente que traga Modesto de volta, pois, por não terem sido
cumpridas as penas legais, a transação entre Joaquim e Moreno não tinha validade. O juiz
enfatiza, ainda, que estranhava que o escravo tivesse sofrido quinhentos açoites em novembro
e fosse considerado apto pela inspeção médica da Armada em fevereiro. 14
Esse caso nos mostra outra face da incorporação de negros alforriados na Bahia,
que não consta nos relatórios oficiais do Governo: o comércio desses homens. O caso de
Modesto indica que a venda de alforriados foi muito lucrativa para comerciantes e donos de
escravos, como Anselmo Bittencourt e Domingos Moreno, que viram, nessa atividade, uma
maneira de ganhar dinheiro fácil e rápido ou de se livrarem de escravos tidos como
problemáticos.
Outro ponto que marcou a mobilização e incorporação de escravos, e que também
não foi levado em consideração nos relatórios oficiais do Governo foi o reclamo, por parte de
proprietários, de escravos que foram enviados para o Sul do império sem a devida
autorização. Pedro Alves Campos reclamou a posse de um homem de nome Dionísio, que
assentou praça voluntariamente e seguiu para a guerra com o nome de Jorge Alexandre. O
Governo solicitou que ele provasse ser realmente o proprietário do escravo e enfatizou que
13
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais. Inventário dos documentos do Governo da Província. 1ª
parte. Série Justiça. Correspondência recebida de Juízes. Juízes Municipais da 3ª Vara. Maço 2672.
14
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais. Inventário dos documentos do Governo da Província. 1ª
parte. Série Justiça. Correspondência recebida de Juízes. Juízes Municipais da 3ª Vara. Maço 2672.
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Dionísio permaneceria como praça enquanto Pedro Campos não apresentasse as provas
exigidas. 15
Também o chefe de Polícia da Capital reclamou a posse de um escravo que se
alistou com o nome de José Bomfim, na 2ª companhia de zuavos baianos, mas que era, na
realidade, escravo do comendador Manuel de Lima e se chamava Agostinho.
16
E até o padre
Juvenal Fernandes da Silveira, residente em Salvador, pediu, por meio do seu procurador, o
bacharel Joaquim Baptista Rodrigues da Silva, que mandasse dar baixa do serviço militar ao
escravo Passiano, de propriedade de sua irmã, D. Rosa Oliveira da Silveira, que foi para a
Côrte, tendo assentado praça na 1ª companhia de zuavos baianos com o nome de João
Francisco de Souza.
17
Esses casos nos revelam que a estratégia de fugir e se alistar nas
Unidades do Exército, em particular nas companhias de zuavos, foi uma opção explorada
pelos escravos, que viam na ida para a guerra uma maneira de conquistar suas liberdades.
Em suas reminiscências, o memorialista Dioniso Cerqueira afirma haver entre os
voluntários uma tropa trajando uniforme estranho e diferente, com largas bombachas
vermelhas presas por polainas que chegavam à curva da perna, jaqueta azul, aberta, com
bordas de trança amarela, guarda-peito do mesmo pano, o pescoço limpo, sem colarinho nem
gravata e um “fez” na cabeça. Afirma que eram todos negros e chamavam-se – zuavos
baianos. Que os oficiais também eram negros.
18
O próprio Conde D’EU, em determinado
momento da guerra faz referencia às companhias de zuavos, como sendo tropas lindas, com
militares de boa postura. 19
Parcela significativa da população baiana, provavelmente constituída em sua
maioria de libertos, contribuiu para que essas companhias tivessem seguido bem
uniformizadas. O periódico político O Liberal organizou uma subscrição, em 1865, com o
apoio da população, especificamente para angariar fundos para o fardamento de militares das
companhias de zuavos. Segundo Cyrillo Eloy Pessoa de Barros, responsável pelo jornal, tão
logo abriu a subscrição houve uma grande procura para realizar doações, que, de imediato,
chegaram à quantia de um conto e vinte e sete mil réis. 20
15
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais. Inventário dos documentos do Governo da Província. 1ª
parte. Série administração. Correspondência recebida do Ministério da Guerra. Originais. Maços 828.
16
Idem, Ibidem.
17
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais. Inventário dos documentos do Governo da Província. 1ª
parte. Série administração. Correspondência recebida do Ministério da Guerra. Originais. Maços 828.
18
CERQUEIRA, Dionísio. Reminiscências da campanha do Paraguai. Rio de Janeiro: Bibliex, 1974.p. 104.
19
SILVA, Eduardo. O príncipe Obá, um voluntário da pátria. In: Guerra do Paraguai. 130 anos Depois. (Org.)
MARQUES, Maria Eduarda Castro Magalhães. Rio de Janeiro: Relume Dumaré, 1995. p. 75.
20
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais. Inventário dos documentos do Governo da Província. 2ª
parte. Série militares. Correspondências recebidas de voluntários da guerra do Paraguai. Maço 3668.
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Além dessa subscrição, em 7 de março de 1865, o jornal Diário da Bahia acusava
a arrecadação da quantia de seiscentos e cinqüenta e cinco mil réis, como fundos para o
fardamento dos zuavos. E o Governo arrecadou também uma quantia vultosa, fruto de
doações diretas à presidência da Província, que, em março do mesmo ano, já somava um
conto, oitocentos e vinte e quatro mil e oitenta réis.
E a preocupação de mostrar-se bem apresentado parece ter sido algo que norteou,
em particular, o pensamento dos oficiais comandantes das companhias de zuavos. Em
requerimento datado de 20 de julho de 1865, o tenente André Fernandes Palmeira,
comandante da 4ª companhia de zuavos, solicitou ao presidente da Província a indenização da
quantia de cento e setenta e seis mil réis, que ele havia gasto com o fardamento “rico”,
uniforme para apresentações sociais, anexando ao documento notas referentes aos gastos por
ele realizados. Assim procedeu também Balbino Nunes Pereira, comandante da 7ª Companhia
de zuavos, solicitando a indenização da quantia de duzentos e nove mil réis.
O então alferes Marcolino José Dias informou ao presidente da Província, em 5 de
abril de 1865, que necessitava de uma quantia para que ele pudesse mandar confeccionar o
seu fardamento, e que estava sem recursos para fazer tal despesa. Ele recorreu ao exemplo do
tenente Quirino Antonio do Espírito Santo que, segundo ele, teve o seu uniforme fornecido a
custos do Estado ou da subscrição tirada em favor dos zuavos. 21
As fontes nos revelam que, a princípio, a boa apresentação dos militares que
compuseram as companhias de zuavos foi fruto da vontade de parcela da população baiana
em vê-los bem uniformizados e do orgulho pessoal dos comandantes em apresentar-se bem.
Um jovem zuavo baiano ficou muito conhecido, chamava-se Cândido da Fonseca
Galvão, “Dom Obá II D’África”. 22 Cândido Galvão era descendente de escravos e nasceu em
Vila dos Lençóis, no sertão baiano. Era filho de africanos, brasileiro de primeira geração, por
direito de sangue, príncipe africano, provavelmente neto do poderoso Alá àfin Abiodum, o
último rei a manter unido o grande império Iorubá de Oyó, na 2ª metade do século XVIII. 23
No início do ano de 1865, Cândido Galvão se alistou como voluntário da pátria e
seguiu para a guerra na 3ª companhia de zuavos. Segundo o historiador Eduardo Silva,
Cândido Galvão participou de diversas batalhas, entre elas as de Tuiuti, em maio de 1866 e de
Isla Capará, em agosto do mesmo ano, onde teve a sua mão direita inutilizada, sendo obrigado
21
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais. Inventário dos documentos do Governo da Província. 2ª
parte. Série militares. Correspondências recebidas de voluntários da guerra do Paraguai. Maço 3670.
22
“Dom Obá” quer dizer “rei” em Iorubá.
23
SILVA, Eduardo. O príncipe Obá: Um voluntário da pátria. In: MENEZES, Eduarda Magalhães (Org.).
Guerra do Paraguai: 130 anos depois. Rio de Janeiro: Relume Dumaré, 1995. p. 67.
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a retirar-se da luta prematuramente. Ainda segundo o historiador Eduardo Silva, Cândido
Galvão gozava de bom conceito entre as autoridades militares, e o seu desempenho o
credenciou a ser promovido a oficial honorário, por bravura. 24
Porém a fonte a que tive acesso no Arquivo Público da Bahia não expressa essa
realidade e coloca em “xeque” as colocações do historiador Eduardo Silva. Ao observar a
Ordem do Dia nº. 54, de 13 de janeiro de 1866, do Comandante em Chefe do Exército
Brasileiro em Operações na Província de São Pedro do Sul, averbada pelo tenente-coronel
José Antonio da Silva Lopes, Deputado do Ajudante General, constatei que Cândido Galvão
foi “demitido”, ainda como alferes, em 12 de janeiro de 1866, segundo a autoridade que
emitiu o documento, por mau comportamento “habitual” e desordeiro. 25
Fica a dúvida, como Cândido Galvão poderia estar combatendo em Tuiuti, em
maio de 1866 e em Isla Capará, em agosto do mesmo ano, já que ele tinha sido “demitido” em
janeiro.
26
Fica também dúvida quanto a sua promoção a oficial por bravura, pois quando de
sua demissão, em janeiro de 1866, ele já era alferes em comissão, primeiro posto da
hierarquia dos oficiais, e quanto ao seu relacionamento com a instituição Exército.
Ainda segundo o historiador Eduardo Silva, ao retornar da guerra, ele permaneceu
algum tempo no Rio de Janeiro, onde era reverenciado pelos outros negros como príncipe, e
onde conseguiu uma eminência muito grande ao defender o direito dos negros à liberdade e a
uma vida melhor, chegando a ser convidado a freqüentar o palácio e travar uma amizade
pessoal com o Imperador.27
Uma de suas frases nos revela traços da sua personalidade: “O Brasil deve desistir
da questão da cor, pois que a questão é de valor e, quando o varão tiver valor, não se olhará à
cor”. 28 Talvez esse seu comportamento contestatório, para a época, tenha sido a razão para a
sua demissão do Exército.
A poesia intitulada O canto do zuavo baiano, de autoria de Domingos de Faria
Machado, procurou retratar, em 1865, a situação dos Zuavos. Assim, ele se expressou
24
Ver SILVA, Eduardo. O príncipe Obá II: Um voluntário da pátria. In: MENEZES, Eduarda Magalhães (org.).
Guerra do Paraguai: 130 anos depois. Rio de Janeiro: Relume Dumaré, 1995. p. 67,74 e 75. Ver também o texto
de Eduardo Silva, “D. Obá II, o príncipe do povo: vida, tempo e pensamento de um homem livre de cor”.
25
APEB. Biblioteca. Ordens do Dia. Guerra do Paraguai. Marques de Souza – 50- 103.1866-1867. p. 33.
26
Idem, Ibidem.
27
Com relação a essa afirmativa ver SILVA, Eduardo. O príncipe Obá II: Um voluntário da pátria. In:
MENEZES, Eduarda Magalhães (org.). Guerra do Paraguai: 130 anos depois. Rio de Janeiro: Relume Dumaré,
1995. p. 69.
28
Idem, Ibidem.
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Sou soldado, na pátria aguerrida,
Muito embora nascido na paz,
Nasci livre, qual águia no ninho,
Ser escravo, outra vez não me apraz.
Ao bramir do gigante que acorda,
A princesa do monte se ergueu!
Minha terra foi lá a primeira,
Da vanguarda o soldado sou eu. 29
Analisando as estrofes da poesia, podemos verificar que Domingos Machado
enfatiza alguns pontos tidos como importantes para ele, naquele momento. O ser soldado, a
condição de liberto, a condição de pertencimento a uma pátria e a repulsa à escravidão são
aspectos que Domingos Machado faz questão de externar. Ressalta, ainda, a grandeza do
território brasileiro e o pioneirismo baiano na defesa do Império.
O ser soldado representava para o liberto a oportunidade de ascendência social e
uma colocação como cidadão na sociedade baiana, tal qual o capitão Marcolino José Dias ou
o alferes Cândido Galvão. 30 A condição de liberto significava estar “vivendo de si”, ou seja,
não ter qualquer vínculo com a ordem escravista, onde os laços de paternalismo e mando
prendiam o escravo ao senhor. 31 Não sei se, assim como Domingos Machado, os soldados das
companhias de zuavos tinham o perfeito entendimento da noção de “pátria”, ou se,
simplesmente, assimilaram o discurso criado pelas autoridades imperiais no sentido de
mobilizar as classes menos favorecidas a lutar em defesa de Império.
Um caso que talvez nos mostre a motivação que tinha parcela dos homens que
compuseram as tropas de zuavos, em particular aqueles escravos que fugiam e iam se alistar
nessas tropas, ocorreu com o escravo de nome Thomaz de Aquino. 32
Em 1869, Thomaz de Aquino foi preso, pronunciado e sentenciado a levar 200
açoites, depois ser vendido e o dinheiro ser depositado nos cofres públicos. Logo depois da
sua sentença, suplicou ao presidente da Província para mandá-lo para a guerra, pois segundo
ele, “já há muito tinha vocação para as contendas bélicas”. Solicitou ir à presença do
29
MACHADO, Domingos de Farias apud CALMOM, Pedro. História do Brasil na poesia do povo. Nova edição
aumentada. Rio de Janeiro: Edições Bloch, 1973. p. 228.
30
Sobre o “ser soldado”, ver o texto de Eduardo Silva, “D. Obá II, o príncipe do povo: vida, tempo e
pensamento de um homem livre de cor”. MACHADO, Domingos de Farias apud CALMOM, Pedro. História do
Brasil na poesia do povo. Nova edição aumentada. Rio de Janeiro: Edições Bloch, 1973. p. 228.
31
Sobre a expressão “vivendo de si”, ver o texto de Hebe Maria Mattos, “Das cores do silêncio”.
32
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parte. Série militares. Correspondências recebidas de voluntários da guerra do Paraguai. Maço 3671.
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presidente, alegando que ao examiná-lo certamente o mandaria para o combate,
provavelmente por ter bom porte físico. Alegou que lá seria de muita utilidade, e onde estava
ficaria inutilizado, precisando o Governo de homens para defender a nação brasileira. Em
despacho, o presidente da Província respondeu, em 16 de fevereiro de 1869, que não tinha
lugar o que ele requeria. 33
O pedido de Thomaz de Aquino nos mostra que, para aquele homem, a ida para a
guerra representava a sua sobrevivência temporária e a sua liberdade. Não existiria qualquer
compromisso daquele escravo com a nação brasileira. Ao contrário, o seu único compromisso
seria consigo mesmo. É possível que, para parcela dos soldados das companhias de zuavos, a
motivação fosse a mesma.
A historiografia da guerra é “plural”, quando se trata de realizar considerações
referentes ao número de escravos enviados para combater no Paraguai. Como pontuou
Ricardo Salles:
Determinar o número de escravos que combateram na guerra e qual a contribuição
relativa em termos de manancial humano é algo bastante difícil, seja devido às peculiaridades
estatísticas da época, seja devido ao desejo de se ocultar o quanto uma sociedade escravocrata
dependeu de escravos para responder ao chamado de defesa da pátria 34
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CALMOM, Pedro. História do Brasil na poesia do povo. Nova edição aumentada. Rio de
Janeiro: Edições Bloch, 1973.
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Brasiliense, 1985.
DORATIOTO, Francisco Fernando Monteoliva. Maldita Guerra: Nova história da guerra
do Paraguai. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
33
Idem, Ibidem.
SALLES, Ricardo. Guerra do Paraguai: escravidão e cidadania na formação do exército. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1990.
34
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________________ Sociabilidades sem história: Votantes pobres no império, 1824-1881. In:
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DUARTE, Paulo de Queiroz. Os voluntários da pátria na guerra do Paraguai. O
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QUERINO, Manoel. A Bahia de o’utrora. Vultos e fatos populares. Bahia: Livraria
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SOUZA, Jorge Prata de. Escravidão ou morte: os escravos brasileiros na guerra do
Paraguai. Rio de Janeiro: Marrad and Adesa, 1996.
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FUGAS, ROUBOS E SUICÍDIOS: A RESISTÊNCIA NEGRA NA
ARACAJU OITOCENTISTA.
Patrícia Abreu dos Santos- UNIT140
[email protected]
Através da literatura percebemos que a liberdade era um objetivo a ser alcançado pelos
escravos e escravas, para conseguir tal intuito, em algumas situações, vários métodos foram
utilizados na conquista dessa liberdade. Ainda há poucos estudos sobre a escravidão em
Aracaju, sobretudo os que trabalham com a categoria gênero. Nosso objetivo é analisar as
estratégias de resistência das escravas e dos escravos em Aracaju, no período de 1855-1888.
Queremos compreender quais eram as possibilidades de resistência para essas escravas e
escravos. Para isso, utilizaremos anúncios de escravos nos jornais, processos-crime, sumário
de culpa. E a metodologia nessa pesquisa utilizada é o método indiciário. Entretanto, as
dificuldades impostas para algumas mulheres negras e homens negros eram tamanhos que
muitas deles perdiam a esperança e por fim chegavam a cometer o ato do suicídio, e nosso
estudo também buscará este gesto que para alguns historiadores é analisado como um ato de
resistência. Portanto, essa pesquisa pretende contribuir para a compreensão da escravidão
urbana na Província sergipana, e das relações de gênero no interior da escravidão.
Palavras-chave: Resistência, Mulheres Negras, Liberdade.
Numa sociedade cujo sistema em voga era o paternalismo, os senhores valiam-se
da idéia de posse do escravo e do controle social como uma questão privada, “... o escravo,
sendo dependente moral e materialmente do senhor, não poderia ver essa relação bruscamente
rompida quando alcançada a liberdade”. (CHALHOUB, 1990: 136), entendiam que o escravo
não possuía direitos e pensamentos que pudessem possibilitá-lo de viver em liberdade .
A sociedade entendia que o poder da liberdade do escravo estava concentrado nas
mãos do senhor, sendo que o escravo entendia que o caminho para a liberdade passava pela
obediência e submissão devidos ao proprietário, ou seja, na relação senhor x escravo era
permeada por muitas facetas: negociação, obediência, submissões e resistência.
Fugas, roubos, e suicídios, fazem parte do que os historiadores classificam como
Resistência Escrava. Segundo Isabel Reis(2002), observa-se que essa ocorre de diversas
140
Graduada em Licenciatura Plena em Historia – Unit/SE.
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formas, através revoltas, fugas, suicídios, insultos, insubordinações, arruaças, manifestações e
conspirações.
Convém ressaltar que a vivência dos escravos no século XIX, havia agressões e
acusações de roubos, esses elementos mostram que os escravos viviam em um ambiente onde
eram marginalizados e os senhores entendiam que os tais não possuíam o preparo para as
obrigações de uma pessoa livre, sendo assim deveriam passar de escravos a homens livres
dependentes141.
Segundo Mary Karasch, em a vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850),
havia dois tipos de resistência, a resistência violenta e a resistência não violenta.
A resistência não violenta consistia em fazer rituais espirituais, diminuição no
ritmo do trabalho, fingir doenças, insultos, excesso de bebidas e comportamento autodestrutivo.
Já a resistência violenta, era constituída por campanhas de guerrilhas, atos
coletivos de agressão armada, fugas e rebeliões.
Um grande exemplo de resistência escrava, que ocorreu no Brasil foi a Revolta do
Malês, que ocorreu em 1835 na Bahia. Essa rebelião foi liderada por escravos sudaneses, que
em sua maioria eram letrados e mulçumanos. Uma rebelião que segundo Reis (2000), foi
planejada e articulada, com um objetivo especifico que era a conquista da liberdade. A
rebelião foi uma das formas de resistência mais explicita.
Em Sergipe, segundo Mott (1986), as revoltas dos escravos, também chamados de
gente de cor, possuíam o caráter de lutar contra uma elite senhorial. “... por vezes o conflito
revestiu-se mais de conotações raciais, os pardos e pretos almejando a destruição dos brancos
e de seus lacaios” (MOTT, 1986 p.189), os escravos oprimidos e insatisfeitos desejavam
inverter a posição na hierarquia do poder. Contrariando assim o dito que “há que tenha
sugerido que Sergipe foi um dos locais da colônia onde as distâncias sociais e raciais entre
senhores e escravos foram menores ( BEZERRA, 1950:156-157, Apud MOTT,1986,p.190),
“havendo um tratamento mais humano e generoso vis a vis a escravaria, inclusive no tocante a
alimentação e o vestuário” (SOUZA, 1808:17, Apud MOTT, 1986, p.190).
No entanto Mott foi um dos pioneiros em mostrar a existência de uma resistência
escrava em Sergipe, na rebelião na primeira metade do século XIX, conhecida como a revolta
dos pretos em 1809, na região do Contiguiba. Assim podemos perceber que a relação senhor x
escravo não era tão amistosa quanto antes sugerida.
141
CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade - uma Historia das Ultimas Décadas da Escravidão na Corte.
São Paulo:Companhia Letras, 1990.
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O relacionamento amistoso é logo desmentido através dos anúncios de jornais e
processos crimes, que evidenciam um relacionamento pautado na violência defendida por
algumas autoridades. Através dessas fontes, pretendemos pontuar alguns elementos da relação
senhor x escravo em Aracaju.
1. Das Fugas
As fugas como descreve Isabel Reis, iam de pequenas escapadelas pra
divertimento, como para a pratica religiosa, visita a parentes, encontros amorosos ou fugas
definitivas, ou seja “a idéia de livra-se da submissão do cativeiro permeava o pensamento do
negro escravizado, a idéia de poder viver a liberdade, significa fazer o que quisesse de sua
vida e apropriar-se do fruto de seu trabalho” (REIS, 2002, p. 92). Já Mary Karash (2000) a
fuga era a forma mais comum de resistência, elas representavam alternativas de resistências
ao sistema opressor senhorial.
Kátia Mattoso(2003), avalia que a fuga era uma forma de revolta interior do
escravo não adaptado, ou seja, ele fugia do senhor e dos problemas de sua vida cotidiana e da
falta de enraizamento.
Através dos anúncios de jornais podemos observar um retrato daqueles que
fugiam, com suas características, o que possuíam, os seus vícios, jeito de andar e falar e
principalmente de onde eram e sua cor.
“Escravo Fugido
Fugiu do abaixo assignado o seu escravo Mauricio, de cor vermelho,
cabellos crespos, barbado, pés rachados e um tanto calvo no alto da cabeça.
Levou calça azul e chapeo de chile já usado. Quem o capturar e apresental o
a seu senhor no sitio Boa Vista, da Barra do Poxim, será bem recompensado.
Aracaju, 18 de dezembro de 1874”142.
Os anúncios são ricas fontes de material histórico e relatam à forma de
perspectivas do senhor, indícios sobre suas relações sociais com o escravo. Ao analisar-mos
os anúncios podemos perceber motivações, estratégias e significados para as evasões
realizados por homens e mulheres escravos.
Podemos traçar um breve perfil dos escravos fugidos de Aracaju que foram
anunciados nos jornais, como: os escravos fugidos estavam no auge da produtividade ( 18 a
142
Doc. Nº 467, Jornal do Aracaju, Aracaju. N. 545, 19 dez. 1874, p. 04 (SIMH 005-22-001-0184)
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45 anos), com exceção de dois escravos que possuíam a idade de 13 anos e outro de 70 anos.
Os escravos em sua totalidade eram brasileiros, porém nem todos nascidos em Sergipe, do
material pesquisado podemos observar que 14 homens e 4 mulheres, com a predominância
das cores parda(4), preta(3) e fula(3), apenas dois escravos possuíam especialidade: 01
sapateiro e 01 que possuía varias profissões como: Padeiro, Pedreiro, Cozinheiro. E os sinais
do corpo: 01 castigo, que nos revelam os maus-tratos sofridos pelos escravos, sobretudo
percebemos que fugir não era uma tarefa fácil, porque os escravos que assim conseguiam,
deveriam possuir características e informações que os ajudasse na fuga.
Ainda sobre os anúncios podemos ler, que as fugas eram de caráter individual,
todos eram solteiros, convém afirmar que os escravos que fugiam na idade produtiva (18 a
45), tinham as maiores condições físicas de realizarem a fuga com sucesso, já que fugir não
era uma tarefa fácil, o escravo deveria possuir alguns atributos como conhecimentos de
pessoas e lugares e resistência física143.
Ressaltamos que alguns anúncios de jornais não informavam se o escravo era de
Aracaju, podendo assim este escravo ser de outra vila e ser anunciado aqui, por seu senhor ter
casa em Aracaju como em outra localidade.
Também por viverem nas duas localidades e por conta da distância, os senhores
esperavam um tempo para anunciar a fuga do escravo nos jornais, sendo assim decorrendo de
alguns dias da fuga ao anúncio, como vemos no anúncio abaixo descriminado:
“No dia 8 do vigente fugio do engenho Marim, propriedade do abaixo
firmado, seu escravo Belmiro, cujos signaes são os seguintes: -pardo, idade
35 annos pouco mais ou menos, alto, secco, pouca barba, com principio de
um belida em um olho, e hum tanto surdo;-quem o aprehender, e entregar
ao mesmo abaixo firmado, será bem recompensado. Aracajú – 23 de
Dezembro de 1861. Cônego Eliziario Vieira Muniz Telles”144.
Os escravos buscavam uma nova forma de vida e através das fugas, e os procuram
reconstruir suas vidas longe dos seus antigos senhores, podendo ser mais fácil para aqueles
que sabiam ler e possuíam alguma aptidão para este recomeço: “...os que tinham boas
aptidões para as atividades, corteses, bonitos e espertos. Essas características os ajudariam na
reconstrução de suas vidas após as fugas” (CUNHA, 2004:151).
143
Karasch, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808 – 1850). Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo
Companhia das Letras, 2000.
144
Doc. 362, Correio Sergipense, Aracaju, n. 102, 24 dez. 1861, p.64 (SIMH 007-29-004-0620)
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Podemos observar que em sua maioria os homens escravos fugiam mais que as
mulheres escravas, pois possuíam maior liberdade que as mulheres, já que se constituíam de
vendedores, negros de ganho, carregadores, marinheiros como relatado no 1º capitulo.
As negras escravas segundo Cunha (2004), por vezes eram domésticas ficavam
em casa e por este motivo estavam mais junto aos seus senhores, dificultando a sua fuga, as
mulheres que trabalhavam nos serviços do lar, tinham mais acesso ao afeto do senhor, assim
como melhores oportunidades de conseguir a carta, já que eram mais vigiadas. Embora
utilizassem outros métodos como através da negociação, via sexo e ou o uso de seus atributos
no afazeres e nas relações afetivas como meio de conseguir a liberdade. Um outro motivo
seriam os filhos, pois elas eram as responsáveis pela criação.
Sobre as possíveis motivações de fugas, a mais comum seria pelo castigo ou no
caso de mulheres, o assédio ou abuso sexual dos feitores, senhores e agregados. Anúncios de
jornais nos ajudam a exemplificar melhor esta problemática, eles acentuavam atributos com
teor erótico. Como o caso de Eufrásia, escrava, que no seu anúncio de fuga, vem descrevendo
que é corpulenta. O que segundo Amâncio Cardoso é uma situação muito apreciada pelos
escravocratas para iniciação dos filhos ou abuso próprio. Em casa ou na roça as negras
sofriam perseguições, e a essas investidas sexuais estão entre as razões das evasões femininas.
“Fugio no dia 5 do corrente a escrava de nome Eufrásia pertencente ao
abaixo assignado. Tem ella os siguintes signaes: preta, estatura regular,
corpulenta, dentes falhados, um pouco carrancuda e ainda é moça. Quem
apprehendêl-a ou der noticia certa della, será bem recompensado. Aracajú,
24 de julho de 1880. Gonçalo Vieira de Mello145
Entretanto alguns escravos, mesmo que regristas146sofriam maus - tratos e fugiam,
como o caso relatado no Jornal do Aracaju, em 19 de novembro de 1873, que conta a historia
de Manoel, mulato, com 22 anos , onde em suas características é informado que possuí
“signaes de ter sido castigado” , sendo o mesmo “ muito regrista”147.
Outro ponto importante é a questão do escravo e a Igreja, mesmo os negros que
pertenciam aos padres e vigários, resistiam à escravidão, levantando a interrogativa sobre
como eram tratados e que muitas dessas fugas surgiam porque os negros podiam não
identificar-se com a religião instituída. Como também podemos observar a conivência da
Igreja com o sistema escravocrata.
145
Doc- 567, O raio, Aracaju, n. 189, 25 jul. 1880, p. 04 ( SIMH-003-17-003-0423)
Escravo considerado compenetrados, bons ajudadores e não dado a preguiça.
147
Doc – 446, Jornal do Aracaju, Aracaju, n. 430, 19 de nov. 1873, p.04 (SIMH 005-21-002-0398)
146
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Como vemos no anuncio do dia 02 de agosto de 1856 os padres e vigários
poderiam ser senhores que maltratavam os seus escravos, como o escravo Manoel, comprado
a Anna Joaquina do Sacco, de cor fula, cara lisa e pés largos, no anuncio o seu senhor o Padre
Agostinho Rodrigues Braga, pede que quem o encontrar ou der noticias sua seria bem
recompensado.148
Também fugiam porque seus donos não cumpriam ou não permitia que eles
comprassem sua liberdade, com o uso do seu pecúlio 149, na primeira oportunidade este
escravo fugia, para pressionar o seu senhor a baixar o preço ou a aceitar o dinheiro
conseguido pelo escravo, a esta fuga era dado o nome de fuga reivindicatória. Embora
quaisquer que fossem os motivos da fuga, depois de realizada, os escravos viviam o problema
de evitar a recaptura.
Negociações entre senhores e escravos existiam para que os mesmos comprassem
sua alforria, quando o dono não permitia este ato, ou pretendia vender escravo, surgia à fuga,
ora o escravo não aceitava a mudança de senhor, pois isto implicava em possível afastamento
de sua família, como também eles perderiam as conquistas alcanças com o senhor que já o
possuía, e teria que negociar novamente com o novo senhor.
Cunha(2004) relata que na morte do seu dono, o escravo passava pelo sofrimento
de ser vendido ou destinado a outro dono, que não o trataria como o dono anterior, e a meio a
essa disputa de herdeiros os escravos fugiam para muitas vezes reivindicar a liberdade.
Os escravos fugidos mantinham uma rede de solidariedade com moradores de
engenhos e povoados, livres ou cativos, sendo muitos dos que ajudavam poderiam ser amasios
deles.
Entretanto vemos alguns casos em que as pessoas que ajudavam eram
abolicionistas, como se destaca em Sergipe em 1882, Francisco José Alves, que possuía “a
crença insofismável na liberdade de todo e qualquer ser humano independente da cor e dos
credos políticos e religioso”(SANTOS, 1997:46), com a sociedade libertadora a Cabana do
Pai Thomaz, que consistia em defender os escravos do cativeiro, com a responsabilidade de
alforriar os escravos cativos em Sergipe.
Podemos especular que os negros fugiam para vender-se a outros senhores, que
desesperadamente necessitando de trabalhadores escondiam os escravos fugidos em meio aos
148
Doc – 237, Correio de Aracaju, Aracaju, n. 40, 02 de agosto 1856, p.04 (SIMH 007.28.002.0225)
- Forma de juntar dinheiro, concedido ao escravo a partir de 1871, onde o escravo poderia juntar dinheiro para
comprar sua liberdade.
149
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seus próprios escravos. Através do anúncio de jornal do Aracaju, de 02 de agosto de 1876,
que conta a fuga de Messias, escravo cheio de habilidade que foge.
“Do abaixo assignado fugio Messias escravo, de côr parda, baixo de
estatura, muito hábil; sabe o officio de pedreiro, cosinheiro, copeiro,
entende de pintura, cabelleireiro, etc.; é musico de instrumento de
barbeiro. Pede se a quem o pegar e trouxer que garante se a paga. Sua
sahida de casa fazem 12 dias, e sabese quem procurou em Laranjeiras
o snr. Antonio de Paiva para este o comprar. Aracajú 25 de julho de
1876. Antonio Rodrigues dos Cotias.”150
Da mesma forma como possuíam associações para ajuda a escravos, o senhores de
escravos possuíam uma rede de pessoas que os ajudavam a capturar escravos fugidos ou bem
como servir de receptor do escravo fugido nas cidades que ele passasse, como vemos num
trecho do anuncio de Valério, escravo, que fugiu do seu senhor Oliveira & Penna, que possuía
ligações com José Pereira de Magalhães, em Aracaju, Capitão João Baptista de Meira, em
Laranjeiras, João Antonio da Silva Ribeiro, em Maruim, André Ramos Romero, Lagarto.151
Em meio a essa relação de associações que lutavam por seus ideais, surgem os
quilombos que foi a forma mais expressiva de movimento na luta pela liberdade, não
observamos nos registros oficiais nenhum quilombo em Aracaju, porém podemos afirmar que
os estudos dos quilombos revelam uma organização por parte dos escravos. Que segundo
Amâncio Cardoso (2002), o quilombo representava o projeto coletivo de liberdade, ligado a
uma rede de solidariedade, e criava-se um apoio a comunidade.
2. O Uso da Justiça
Mesmo com a afirmação de que o poder de libertar estava nas mãos do senhor,
alguns escravos, a partir de 1871, vêem esse desejo ser inserido no campo da possibilidade, a
partir da Guerra do Paraguai onde é dado o direito a alguns negros de possuir sua liberdade,
através de suas economias, o negro que já possuía projetos de uma nova vida, tem a
oportunidade de conquistá-los152.
Alguns escravos fugiam e/ou matavam seus senhores e feitores, pois não queriam
permanecer no estado escravizado, após o ato de crime, muitos destes iam refugiar-se nas
150
Doc. 490, Jornal do Aracaju, Aracaju, n.719, 02 agosto.1876, p.04 (SIMH-005-22-002-0374)
Doc- 536, Correio de Sergipe, Aracaju, n. 67 24 de agosto.1861, p.04 ( SIMH 007-29-003-0543)
152
CHALHOUB, Sidney. Diálogos Políticos em Machado de Assis. In: Visões da liberdade: uma história das
ultimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
151
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cadeias, entregando-se a justiça, onde afirmavam que “preferiam morrer pela mão da justiça,
do que pela mão do senhor.” (CHALHOUB, 1999: 147)
O uso da justiça não se resumia a busca apenas em situações de atos criminosos
praticados pelos escravos, como também era o meio de muitos buscarem a liberdade, através
de ações, para o uso devido do pecúlio, e era o meio do escravo denunciar os maus tratos
sofridos pelos cativos por seus senhores ou por pessoas que sendo ou não próximas
efetuavam.
O motivo mais comum de ações de justiça por escravos eram os maus tratos e a
liberdade através da lista de classificação, onde podemos observar que muitos entravam por
não ter seus nomes inseridos na lista, mesmo que preenchendo os requisitos para tal.
Através dos curadores os escravos pleiteavam na justiça a liberdade, nas ações
realizadas por escravas, são percebidas alegações que ajudavam a escrava conseguir sua
liberdade, através da desvalorização do seu valor comercial, “algumas alegações,
provavelmente foram estratégias utilizadas pelos escravos para diminuir o seu valor”
(CUNHA, 2004:141).
Alguns escravos entravam na justiça por estarem livres pela metade (forros), onde
segundo Chalhoub (1999) eram escravos que possuíam o direito de serem considerados livres
após o seu dono lhe faltasse, ou como em muitos casos, o direito era dado como um ato de
gratidão do seu senhor a prestação de serviço do escravo que o fez com zelo, por muito anos.
Os escravos que viviam como forros, eram por muitas vezes considerados negros
“sobre si”, ora eles viviam sem a sujeição senhorial, e por conta dessa liberdade, muitos
entravam na justiça, informando que a afirmação antes mencionada de que o escravo é
escravo por necessitar de proteção senhorial, não valia para eles.
Os escravos possuíam a idéia de livres, pois trabalhavam fora e viviam como
queriam longe dos seus senhores, mesmo que esse trabalho fosse um trabalho ligado a função
do seu senhor. Já que muitos proprietários não possuíam renda para manter-se, alguns
alugavam os seus escravos para outros senhores e assim permitindo o deslocamento deste
escravo para outra localidade.
Conforme documentação do século XIX, encontrada no Arquivo Judiciário do
Estado de Sergipe, uma petição de Manoel, liberto pela metade, no qual o autor da ação
solicita que seja matriculada a parte dele escrava do peticionário, que pertence a Pedro
Nogueira, com o intuito de não o prejudicar na sua parte liberta153.
153
Petição de Manoel escravo pela metade cx 02.2476 ano de . Arquivo Judiciário do Estado de Sergipe.
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Podemos então notar através dos processos, a orientação do negro escravo, que
via na justiça uma forma de buscar caminhos para liberdade, sem que esse houvesse a
necessidade do embate físico que percebia que “no máximo o que poderia acontecer com ele
seria receber a pena de Galés Perpétuos, o que para ele possuía o sentido de liberdade”
(Santos, 1991: 42).
Entretanto não encontramos só ações de ordem libertária, encontramos também
ações onde o réu é o escravo por tentar fugir, e no meio de sua fuga, agredir fisicamente uma
pessoa. É o caso de Romão154, escravo de Manoel Raymundo Muniz Barreto, solteiro,
trabalhador do serviço da lavoura, onde é acusado de agredir fisicamente Antonio Felix de
Andrade, que em sua canoa no momento da cobrança de sua passagem pela viagem, recebeu
golpes de faca.
Contudo observamos nesse processo que o ato de ferir a Antonio Felix, não
passava de um meio do escravo ser julgado pela justiça e sair das mãos do seu senhor, que o
agredia e por saber que seria castigado em razão de ter aparecido na propriedade do seu
senhor um boi espancado, e isto ser atribuído a ele. Romão afirma que por já saber que seu
senhor não o venderia, usou deste artifício da agressão, para que levado a justiça, sai-se das
mãos do seu senhor e ainda nos explica que como no momento não havia alguém que pudesse
validar o seu ato, correu para prisão.
Percebemos assim que a justiça por mais que fosse castigá-lo, não seria
certamente da mesma forma que o seu senhor, deixando assim claro a formação de caráter dos
senhores de escravos, os meios de castigá-los e afirmando novamente a corrente de
pensamento negro que preferia morrer nas mãos da justiça a morrer nas mãos do seu senhor.
3. Roubos
Outro elemento a ser destacado seria o roubo, como forma de liberdade, o escravo
utilizava desse meio para com o que foi roubado, utilizar tanto para sua liberdade, como
também para sua sobrevivência fora da casa do seu senhor. Há casos em que o roubo também
servia como abastecimento dos quilombos próximos de onde o escravo vivia.
Segundo Santos (1991), a criminalidade dos cativos esteve sempre presente na
escravidão, porém vale ressaltar que atos como roubar, matar e fugir, são apenas movimentos
de tentativa de busca pela liberdade.
154
Réu: Romão, escravo de Manoel Raymundo Muniz Barreto cx. 03.2639-sumario de culpa.
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Há que surgira que os escravos que praticavam este ato, não eram da cidade e só
acontecia nas cidades cujo o aspecto social era elevado, Todavia encontramos o caso de
Miguel, escravo de propriedade de Jose Moreira de Souza Mangueira, que foi acusado de
roubar um caixão do naufrágio do “Ventura Feliz”.
Em depoimento Miguel155, utiliza estratégias para dizer que não foi um roubo, fala
que num domingo, apareceu boiando sobre o algodão um caixão que após ser recolhido por
ele e passar muito dias sem que alguém o reclamasse, ele retirou para uso próprio algumas
peças de prata, como facas e colheres. Sendo Miguel denunciado por outro escravo por nome
Fortunato, servo também do seu senhor Moreira. Perguntado a ele para tinha roubado, Miguel,
afirma a idéia que tais peças seriam roubas para o uso de sua liberdade, podendo assim vendelas e conseguindo o dinheiro comprar sua alforria.
Como vimos na afirmativa acima realizada por Miguel, indicamos que os roubos
em sua maioria servia para o uso do próprio escravo em comprar a tão sonhada liberdade.
Por conta dos maus tratos sofridos pelos escravos, este meio de conseguir a
liberdade seria para eles um meio justo, e com tais tentativas eles nos ressaltam que esta
forma, era apenas um meio para sair do conceito de coisa, tão inserida no pensamento do
senhor de escravos.
Os negros que não conseguiam fugir e conseguir por meio legais a sua alforria,
poderiam chegar ao ato mais trágico da historia da escravidão. O Suicídio.
4. Suicídios, Infanticídios
O suicídio possuía dois aspectos a serem estudados: o suicídio na ótica do
escravista era uma doença social, que já vinha inserido no cotidiano escravo, e para os
abolicionistas o suicídio era o fruto de uma degradação das leis morais, em meio ao regime de
subserviência.
O suicídio foi uma das formas mais trágicas de conseguir a liberdade, os escravos
que por decidirem “não mais esperar a liberdade, matavam-se na expectativa de seus espíritos,
completarem a jornada de volta para casa” (Karasch, 2000:438).
As causas que motivavam os suicídios são difíceis de abordar, pois estão inseridas
dentro do imaginário do negro que viveu a experiência, todavia os métodos mais utilizados
são: os afogamentos, enforcamentos, o uso de arma de fogo ou brancas, comer terra,
forçavam-se a não comer, inanição, banzo e auto – envenamento. Sobre os suicídios, estes não
155
Réu: Miguel, escravo; Autor: Justiça Pública - Aracaju - 1º vara CRI- Cid. 01/2637, Sumário de Culpa
04/10/1858.
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recebiam o conhecimento oficial, para que pudesse ser efetuado o enterro de quem o
cometesse, conforme a tradição da época.
Segundo Goulart (1972) o afogamento foi o mais comum, entretanto os escravos
que se matavam com esse método ao eram identificados como suicidas, só sendo identificados
se houvesse testemunha. Karasch(2000) nos fala que quando o escravo já cansado de viver,
começava a buscar formas de livra-se delas, como comer terra, onde após o ato, caso o senhor
percebe-se a tentativa de suicídio, colocavam mascaras de ferro para que não comesse mais.
Uma forma muito conhecida era o banzo, que consistia em engolir a língua viver
um sentimento de nostalgia, que sem nenhum sinal visível ou até dano físico, faziam com que
os escravos parassem de respirar.
Ainda temos também o auto-envenamento, os negros possuíam a reputação de ser
envenenadores e conhecedores de plantas venenosas. E utilizavam desses métodos para o uso
próprio.
Para alguns historiadores o estupro seria uma das causas que levavam ao suicídio,
como também a separação da família. Ora a possibilidade de vê seus familiares separados e
sofrendo castigos e açoites, poderia levar a atos violentos como o infanticídio.
Como vemos no caso do escravo do Alferes Ignácio José de Matos, que na
ocasião por ter sido vendido com sua mulher também escrava, achou por bem tirar a vida do
seu filho um menino de dois anos de idade, para que ele não sofresse a dor da escravidão
sozinho, com o ato de deferi-lhe uma cacetada que quebrou-lhe os braços e mais uma parte do
corpo156.
Quanto ao desespero pela liberdade, parece ter motivado o escravo Desidério,
conforme relato do Jornal que vem a seguir:
No dia 8 do corrente, pelas 5 horas da manhã, um escravo de nome
Desiderio, que se acha recolhido à casa de prisão da Capital, tentou
suicidar-se, sendo, felizmente, obstado pelo próprio instrumento de
que serviu-se: era uma pequena faca sem ponta e sem corte de que
uzão alguns presos para a factura de trabalhos de palha de que ali se
encarregão157.
O escravo relata que tentava matar-se pra não ter que voltar para mãos do seu
senhor, podendo assim ser dado como criminoso do que voltar ao seu senhor.
156
157
APES- Pac.SP¹ 149.
JORNAL DO ARACAJÚ – Sergipe, Domingo, 17 de Agosto de 1879. Anno IV. Nº 403. pg 02.
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Portanto podemos supor que as formas de cativeiro existentes, faziam com que
para os escravos houvesse conseqüências tão desesperadas, que o ato do suicídio era visto
como um desejo de possuir a liberdade, mesmo que seja esta de forma definitiva.
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VOZES DISSONANTES: NOTÍCIAS DA ESCRAVIDÃO E DA
LIBERDADE NA IMPRENSA ABOLICIONISTA CACHOEIRANA, 1887
– 1889*
Jacó dos Santos Souza – UNEB
[email protected]
Às vésperas da abolição surgia o jornal abolicionista O Asteróide, na cidade de Cachoeira,
interior da Bahia. Com uma linguagem incisiva e combativa aos interesses escravagistas, o
referido periódico destacou-se como importante espaço de luta pela emancipação escrava,
envolvendo-se diretamente em conflitos relacionados à abolição. Esta comunicação busca
refletir sobre resultados parciais do projeto de pesquisa de mestrado, ainda em andamento.
Busco analisar a atuação de O Asteróide no movimento abolicionista cachoeirano. Desse
modo, entendo que, dentre os inúmeros domínios nos quais os abolicionistas lutaram contra a
escravidão, a imprensa periódica desempenharia um papel estratégico. Isto porque os jornais
foram as principais vias de propaganda e denúncia dos horrores da escravidão, dos abusos
sofridos pelos escravos e a própria repressão ao movimento abolicionista. Assim, uma
reflexão sobre a atuação da referida folha abolicionista poderá evidenciar práticas cotidianas
que, por sua vez, me fornecerão diversos caminhos para se pensar como a questão escrava era
vivida, noticiada e lida naquela parte do Recôncavo baiano, nos momentos finais do
escravismo.
Palavras-chaves: Imprensa Abolicionista, Escravidão, Liberdade.
Às vésperas da abolição surgia o jornal abolicionista O Asteróide, na cidade de
Cachoeira, Bahia. Resultado de um projeto idealizado por uma equipe de jornalistas, o
periódico, logo em seu número inaugural de 23 de setembro de 1887, fez questão de tornar
evidente os princípios motivadores de sua circulação que, entre outras coisas, residia no
desejo de promover a “emancipação do ‘escravo’, e igualmente, a emancipação do povo, que
não poderia ainda, moralmente obtê-la!”.
158
Essa declaração sugere que a questão
perseguida pelo periódico não se resumia apenas ao fim do cativeiro. O jornal se alinhava a
*
Este artigo inclui resultados parciais do projeto de pesquisa de mestrado, ainda em andamento.
Jornal O Asteróide. 23 de set. de 1887 (nº. 1)
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uma corrente abolicionista que tinha na abolição a possibilidade de desencadear ampla
reforma na sociedade brasileira.
A mais recente folha noticiosa cachoeirana dedicou-se exclusivamente a divulgar
questões relacionadas à campanha abolicionista no Recôncavo baiano e em outras localidades.
Em seu primeiro exemplar, numa demonstração de elevado entusiasmo, a equipe jornalística
anunciava em palavras impressas um tempo de esperança para aqueles que vivam sob o jugo
do escravismo.
(...) em auxilio da luz, surge hoje no jornalismo pátrio o ‘Asteróide’, órgão
da propaganda abolicionista, procurando no choque das lutas intelectuais o
desenvolvimento de infinitas e luminosas irradiações, que projetando-se em
todas as direções, possam formar outros tantos luminosos ‘meteoros’ 159
A partir dessa apresentação, os idealizadores do periódico já pretendiam apontar
para a postura incisiva e aguerrida adotada pelo jornal. Os “luminosos meteoros” produzidos
em conseqüência do “choque” parecem sinalizar para a possível adesão da sociedade à idéia
abolicionista mediante a sua veiculação. A imagem casa, ainda, com a idéia de que a abolição
poderia se desdobrar em outras reformas, inclusive em possibilidades várias de liberdade. Mas
a abolição deveria ser precedida pelas luzes do saber e da informação. O nome do jornal já
revela a forma como os seus fundadores o entendiam, como um órgão que tinha como missão
o esclarecimento, ou melhor, levar a luz às consciências ainda mergulhadas na escravidão.
O contexto de produção e difusão de O Asteróide estava marcado por forte
agitação social. Prisões, fugas e acoitamentos eram cenas freqüentes na Cachoeira dos últimos
anos de vigência do escravismo. A condição do cativo já havia mobilizado diversos
segmentos da sociedade que, desde 1870, uniram-se na fundação da Sociedade Abolicionista
25 de Junho.
160
A escravidão, traduzida em violência física e moral tanto para os cativos
quanto para os livres e libertos, passou a ser vista como insustentável por alguns cachoeiranos
que, ao longo das décadas de 1870 e 1880, envolveram-se na luta contra os setores favoráveis
ao escravismo.
O nome do abolicionista Cesário Ribeiro Mendes aparece com grande freqüência
na documentação da época. Sobre ele pesava o “crime” de agitar a população escrava e
159
Jornal O Asteróide. 23 de set. de 1887 (nº. 1)
De acordo com Nascimento, “comerciantes, advogados e alguns proprietários rurais uniram-se, nesse
momento, para instituírem clubes, sociedades e jornais de inspiração abolicionista e republicana e inserir-se
partidariamente na política e administração local”. Ver: NASCIMENTO, Luiz Cláudio. “Terra de
macumbeiros”: redes de sociabilidades africanas na formação do candomblé jeje-nagô em Cachoeira e São
Félix - Bahia, Salvador, Bahia: Dissertação de Mestrado, CEAO, 2007.
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promover diversos acoitamentos, o que provocava grandes insatisfações em senhores locais
que viam nele uma constante ameaça diante de suas “propriedades” humanas. 161
Em 6 de março de 1888, na sessão ordinária do Conselho da Sociedade Monte Pio
dos Artistas Cachoeiranos, foi informado pelo relator a libertação do sócio Cesário Mendes
que encontrava-se preso desde outubro de 1887 devido a uma queixa feita pelo coronel
Joaquim Ignácio de Cerqueira Bulcão, onde fora acusado de acoitar escravos na região. A
notícia da libertação foi recebida com grande alegria pelos presentes naquela audiência.
Com bastante contentamento vos anuncio que o nosso sócio Cesário Mendes
Ribeiro acha-se livre e no seio de sua família, por ter o tribunal do Júri desta
Heróica cidade [ilegível] da justiça da causa que em má hora os perseguidores
do nosso consócio, contra ele intentaram para abafar uma idéia santa e que
motivara o Sacrifício do Gólgota, o absolveu unanimemente mostrando com
esse ato toda independência e justiça. 162
Ao que parece, Cesário Mendes ficou alguns meses retidos na delegacia local. No
entanto, ele não foi o único a utilizar-se do incitamento visando a libertação do cativo.
Segundo Walter Fraga, panfletos assinados por abolicionistas de São Félix e Cachoeira
chegaram a ser distribuídos nas senzalas dos engenhos da região, incitando os escravos às
fugas, o que levava os senhores de engenho ficarem atemorizados diante da possibilidade de
perderem suas fontes geradoras de riquezas e, simultaneamente, arruinarem-se. 163
Além do incitamento, a imprensa escrita foi um espaço privilegiado na luta pela
emancipação escrava na Bahia. Os jornais foram as principais vias de propaganda e denúncia
dos abusos sofridos por abolicionistas. A esta importância deve-se associar o fato de que os
periódicos eram importantes veículos de comunicação de massa, tendo em vista que atingia
um maior número de pessoas, embora a prática da leitura fosse um privilégio de poucos na
sociedade oitocentista.
164
Apesar de muitos não lerem, não ficavam totalmente alheios aos
161
Em março de 1885 diversos senhores da freguesia de Muritiba, comarca de Cachoeira, enviaram um abaixoassinado, com 77 assinaturas, para o Presidente da Província onde solicitavam providências quanto as ações de
Cesário Mendes e seus companheiros, acusando-os de “seduzir os escravos alheios para acoitá-los
escandalosamente para firmarem quilombos no centro das cidades e até pregarem a insurreição (...)”. (grifo no
original) APEB, Seção Colonial e Provincial – Presidência da Província, maço 2897 (1873-1887).
162
ASMPAC – Relatório do Conselho da Sociedade Monte Pio dos Artistas Cachoeiranos de 1886 a 1887; de
1887 a 1888. (Documento no 57)
163
FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910).
Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2006. p. 114. De acordo com Célia Maria Marinho, o “incitamento de
escravos por elementos de fora das fazendas” tornou-se cada vez mais freqüente na década de 1880 devido a
propagação da campanha abolicionista no sudeste, o que gerou um clima de “horror” nas fazendas da região.
Ver: AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites – século
XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 201.
164
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Retrato em branco e negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final
do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 55.
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assuntos veiculados nos jornais, isto porque a leitura em voz alta era prática e estilo comum
nesse período. 165
A Província da Bahia da segunda metade do século XIX não era alfabetizada.
Grande maioria da população baiana não sabia ler, podendo chegar a um total de 90% dos
indivíduos.166 Essa questão torna imperativo nosso interesse em saber o total de alfabetizados
em Cachoeira de finais do século XIX. Afinal, é fundamental saber a que público leitor se
dirigia o discurso de O Asteróide que, por sua vez, pode revelar os projetos políticos e de
futuro traçados pelo jornal. No entanto, não podemos perder de vista a possibilidade de que
muitos escravos ficaram informados do conteúdo impresso mediante a leitura em conjunto,
em voz alta ou mesmo ao ouvirem pessoas falar.
Nesse debate, não há como desprezar os objetivos políticos que norteavam toda
folha noticiosa, na medida em que atuavam como formadores de opinião. No interesse em
orientar o leitor/ouvinte para a adoção de alguns pontos de vistas específicos, os discursos
jornalísticos apresentam-se como “verdadeiros” e inquestionáveis. Segundo Meire Reis, “o
jornal é uma fonte produzida com o objetivo explícito de informar e implícito de transmitir
mensagens intencionais”.
167
Desse modo, ao informar o ocorrido, a imprensa o constrói.
Portanto, ao propor um estudo da imprensa abolicionista procuro entendê-la com agente que
influencia e também é influenciada pela sociedade, que polemiza, cria conflitos. Embora
procure posicionar-se de modo imparcial, a imprensa demonstra um evidente caráter parcial
na medida em que institui normas e procura formar opiniões da sociedade.
O periódico O Asteróide era impresso na tipografia do Sr. Olympio Pereira da
Silva que também era um dos entregadores. Possuindo quatro páginas, ele tinha como
proposta duas publicações semanais. Sua circulação se daria nas terças e quintas-feiras.
Contudo, a análise dos diferentes números nos mostrou uma variação de dias para sua
veiculação. Isso pode ser atribuído ao calor da notícia, antecipando ou retardando a
publicação de determinado número ou mesmo a ausência de recursos financeiros para a
impressão haja vista que em muitos momentos do texto o leitor se depara com constantes
apelos da equipe jornalística solicitando aos assinantes o pagamento da folha noticiosa. 168
Além da possibilidade de comprar o jornal de forma avulsa, no valor de 60 réis, o
leitor poderia assinar as folhas de forma mensal ou anual. Para aqueles que optassem pela
165
REIS, Meire Lúcia Alves dos. A cor da notícia: discursos sobre o negro na imprensa baiana, 1888 – 1937,
Salvador, Bahia: Dis. Mest, UFBA, 2000. p. 8.
166
Idem, p. 7.
167
Ibidem, p. 9.
168
De acordo com Schwarcz, as assinaturas podiam representar a sobrevivência ou não de determinado jornal.
Ver SCHWARCZ, Lilia Moritz. Op. cit. p. 16.
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assinatura mensal, o valor estava fixado em 500 réis, já os que preferiam a forma anual
deveriam dispor de 5$000 réis. Em relação aos anúncios, o valor para aqueles que pretendiam
publicá-los era diferenciado. Assinantes desembolsariam 40 réis, enquanto os demais
pagariam a quantia de 60 réis. O jornal ainda abria espaços para aqueles que desejassem
publicar artigos ou correspondências. Porém, estabelecia alguns critérios como “não
contiverem ofensas a moral pública, ao decoro familiar, o que não forem de encontro à idéia
abolicionista (...)”. 169
É interessante refletir sobre o espaço dedicado à prática da publicidade e,
portanto, venda de produtos no interior dos jornais. Pensando em periódicos do século XIX,
Lilia Schwarcz entende essa prática como determinante uma vez que a prosperidade de jornais
estava diretamente ligada à quantidade de anúncios editados em suas páginas.
170
Assim, os
anúncios figuram como importante recurso financeiro para a manutenção de jornais tendo em
vista que os custos com a tipografia, tintas, papel, entregadores, entre outros, eram
relativamente onerosos.
Em O Asteróide nota-se que a seção de anúncios foi adquirindo maiores espaços à
medida que o jornal foi se consolidando. A princípio, meio que timidamente, os anúncios não
chegavam a ocupar nem uma página do periódico. No decorrer das publicações eles passaram
a preencher duas páginas e, por vezes, chegaram a ocupar espaços na terceira. Esse aumento
progressivo de anúncios pode ser um indicativo de uma maior adesão à idéia abolicionista e,
também, que o jornal era lido por muitas pessoas. Porém muitas outras indagações podem ser
feitas a partir dessa primeira constatação como: quem anunciava no periódico? O que se
anunciava? A que setor social era dirigido os diversos anúncios editados? Questões
importantes para chegarmos ao lugar social ocupado pelo jornal no movimento abolicionista.
Em relação aos aspectos comerciais, acreditamos que esse não era o fim único de
O Asteróide. É evidente que para se manter era preciso contar com ajuda de parceiros – os
assinantes, compradores avulsos. No entanto, parece evidente que a linha editorial desse
veículo atribuía maior importância em noticiar questões vitais do momento, incluindo-se mais
na idéia de órgão de propaganda, deixando para segundo plano o interesse comercial, ou seja,
o desejo em auferir lucros financeiros. Isso parece se evidenciar nas constantes dificuldades
pelas quais passava o jornal, recorrendo constantemente à compreensão dos assinantes
inadimplentes na quitação de seus débitos.
169
170
Jornal O Asteróide. 23 de set. de 1887 (nº. 1)
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Op. cit. p. 66.
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A recepção do conteúdo impresso pela população local é um outro dado relevante
para a compreensão do modo como atuou O Asteróide. Para entendermos melhor este
pressuposto precisamos lançar um olhar atento nas diferentes seções desse veículo. A
principio, nota-se que além de propagar o movimento abolicionista a nível regional e nacional
e denunciar os “abusos” por autoridades locais, pode-se identificar variações nas
representações do negro, ora apresentado como insubmisso, quando optava pelas fugas, ora
mostrado acorrentado, vítima do cativeiro.
Estudos recentes demonstram que houve um grande apoio popular à emancipação
escrava no Recôncavo.
171
De acordo com Walter Fraga esse atuou decisivamente nos rumos
tomados pela campanha abolicionista nessa localidade. No entanto, a questão que quero
perseguir é a extensão do apoio popular tão presente no discurso de O Asteróide. Em uma das
matérias o articulista explicita essa prerrogativa da seguinte forma: Surgiu o dia 23 de
setembro, e com ele o ‘Asteróide’. Acolhido pela máxima parte dos habitantes desta cidade,
ou por outra, pelo povo geralmente (...). 172 (grifo meu)
Em diversos momentos, a linguagem adotada pelo jornal circunscreve-se no
sentido de exaltar o “povo” cachoeirano. Parece evidente que, ao exaltar os atos da população
citadina, o articulista pretendia ganhar o apoio da população local, além de estimulá-lo na
participação pelo fim do escravismo. Ao direcionar o discurso para os escravocratas, o
articulista deixa evidente que o “povo” não coadunava com a idéia escravista e para tanto não
admitiria a “caçada humana” que fazia os capitães-do-mato e senhores, na Cachoeira. Ao que
parece, a lógica da narrativa subscreve-se no fato de que, enaltecendo a postura dos
cachoeiranos, impulsionava-o a participar ativamente do movimento abolicionista.
Os jornalistas ligados ao O Asteróide produziram discursos minuciosos, revelando
um acentuado caráter sensacionalista que orientava a linguagem impressa, em geral,
impregnada de emoção. Aos senhores e autoridades policiais eram dirigidos epítetos nada
lisonjeiros como “déspotas”, “irracionais”, “tiranos” entre outros. Ao adotar essa postura, o
periódico mostrava que possuía objetivos definidos ao envolver-se na campanha pela
emancipação escrava. Uma idéia que perpassa diversas matérias é a exaltação do
envolvimento popular nos conflitos ocorridos no perímetro da urbe. Com freqüência evocavase o sentimento patriótico dos “filhos do Paraguaçu” que, a semelhança da decisiva
171
Ver BRITO, Jailton Lima. A abolição na Bahia: uma história política, 1870-1888. Salvador CEB, 2003;
MATA, Iacy Maia. “Os treze de maio”: ex-senhores, polícia e libertos na Bahia pós-abolição (1888-1889).
Salvador, Bahia: Dis. Mest, UFBA, 2002.
172
Jornal O Asteróide. 23 de set. de 1887 (nº. 1)
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participação nos conflitos pela independência da Bahia, em 1823, deveriam estar
comprometidos na causa pela abolição.
Aqui vale assinalar a força da palavra impressa. Pensar em jornais é muito mais
que entendê-lo como circulação de palavras impressas. É pensar em circulação de idéias e
valores numa sociedade marcada por interesses antagônicos, como o era a sociedade
oitocentista. Assim, nesse debate sobre a atuação de periódicos deve-se levar em consideração
a influência que exerciam sobre as pessoas. Afinal, além de narrar os acontecimentos, os
jornais devem ser entendidos como formadores de opinião. Valores impressos em papel e que
deveriam ter conotação no viver diário dos leitores/ouvintes.
Quase tudo era motivo para virar notícia em O Asteróide. Com freqüência,
denunciava-se a procura de escravos fugidos, por senhores e capitães-do-mato; os maus tratos
em que eram submetidos os cativos por seus senhores, em aparente desejo de colocar a
opinião publica contra o cativeiro. Por outro lado, noticiava-se com grande entusiasmo as
libertações que aconteciam com grande freqüência no sudeste, apresentadas com o objetivo de
forjar atitudes e comportamentos que servissem de exemplo a ser seguido; as cartas de
alforrias “concedidas” pelos senhores cachoeiranos e de cidades circunvizinhas; possíveis
intenções da destruição de tipografias. Enfim, cenas da luta cotidiana contra a escravidão.
Antecipando-Se À Lei Da Abolição: “O Único Recurso É Libertar Os Escravos E
Abraçá-Los Para Não Deixarem Quem Os Criou”. 173
Embora utilizasse uma linguagem, em certos momentos, bastante agressiva, O
Asteróide noticiava as libertações como dádiva dos senhores a cativos que, em geral, figuram
como receptores agradecidos. Sob a epígrafe “Cachoeira liberta-se”, a seção de liberdades
ganhou maiores espaços à medida que avançava os primeiros meses de 1888 e o fim da
instituição escravista parecia inevitável. Uma possível interpretação desse episódio pode ser
atribuída ao temor dos senhores de perderem suas “propriedades” humanas, seja mediante
ações do governo em aprovar leis que sinalizavam para o fim do escravismo, seja pela atuação
do movimento abolicionista que ganhava fôlego progressivamente, tornando cada vez mais
evidente a abolição da escravatura.
173
Jornal O Asteróide. 4 de nov. de 1887 (nº. 12) A expectativa de muitos senhores ao “conceder” alforrias
condicionais ou incondicionais, quase sempre, tinha como meta ganhar a eterna gratidão dos cativos, segundo
Sidney Chalhoub. No entanto, quando o ex-escravo não correspondia a essa expectativa, o proprietário poderia
revogar a alforria alegando ingratidão, amparado na lei. Ver CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma
história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 134
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O jornal O Asteróide noticiava as grandes libertações com elevado entusiasmo,
tornando-se freqüentes à proporção que chegava o mês de maio, dando mostras do avanço da
propaganda abolicionista, das ações escravas e das notícias que chegavam do Rio de Janeiro
de que o projeto de libertação já estava em curso na Câmara.
Na seção de liberdades
veicularam-se ações de inúmeros senhores em concederem alforrias a seus escravos, ora com
a obrigação de prestação de serviços com data previamente estabelecida, ora de forma
incondicional.
Nota-se um predomínio das alforrias condicionais onde o senhor libertava seu
cativo com prestação de serviço por tempo previamente determinado. É o caso noticiado em
28 de dezembro de 1887, em que o tenente coronel Antonio Olympio Mascarenhas enviou à
redação do periódico uma cópia da carta de alforria, de 20 de dezembro de 1887, onde
libertava os escravos Gabriel, Anselmo, Francisco, Thomaz, João e Pedro. No entanto, os excativos ainda esperariam algum tempo para celebrar a efetiva emancipação. Isto porque, a
liberdade era seguida de uma cláusula de prestação de serviços, ou seja, eles deveriam
trabalhar na propriedade do coronel até 31 de dezembro de 1889. 174
As grandes libertações aparecem nesse momento como obrigação dos senhores
que desejassem manter os ex-escravos em obediência, gratos e submissos à sua autoridade,
acomodando-os nos seus ambientes de trabalho. Um exemplo dessa preocupação está ligado
ao bom andamento da produção agrícola. Em matéria veiculada no dia 6 de abril de 1888, dias
antes da abolição, o articulista noticiou o ato de um senhor em libertar 300 escravos e
ingênuos, contratando-os como trabalhadores livres em seguida. De acordo como autor da
nota, este era um excelente meio de promover “a paz e a segurança que deve existir nos
centros agrícolas”. 175
A idéia da gratidão do cativo ante a “benesse” do seu proprietário fica ainda mais
evidente nas palavras enfáticas do redator quando parabeniza certo capitão por conceder
liberdade aos seus escravos, com prestação de serviços por dois anos: Estes homens que
acabam de sob uma condição gozarem de sua liberdade não poderão jamais odiar ao seu
benfeitor porque além dos dias santificados trabalharão para si nas segundas e terças-feiras.
176
174
Jornal O Asteróide. 28 de dez. de 1887 (nº. 27)
Jornal O Asteróide. 6 de abril de 1888 (nº. 53)
176
Jornal O Asteróide. 6 de dez. de 1887 (nº. 21)
175
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Um outro caso que merece observação aqui aconteceu quase às vésperas da
abolição. Numa quarta-feira do mês de abril, após noticiar alforrias em massa, o redator
expressa que
(...) o coronel Themístocles ofereceu um lauto jantar a seus escravizados, no
qual houveram muitos brindes, notando-se trez dos libertos, que pronunciaram
frases de gratidão ao seu benfeitor, prometendo em nome de seus
companheiros nunca abandonar aquela casa. 177
Não obstante o envolvimento do Recôncavo no debate a respeito da questão
escrava, muitos senhores decidiram por permanecer com seus escravos até os últimos
momentos mesmo sabendo que a extinção do escravismo parecia ser inevitável num futuro
próximo.
178
Entretanto, a atitude do coronel Themístocles insere-se no contexto das
libertações em massa que ocorreram com grande freqüência nos momentos finais da década
de 1880. Na tentativa de minimizar o “impacto político” que seria produzido pela lei da
abolição total da escravatura e “prender” seus escravos pelo sentimento de gratidão, muitos
senhores libertaram os seus escravos, promovendo grandes comemorações.
O mais curioso no episódio acima relatado foi o que aconteceu durante a
comemoração. Segundo o autor da nota, três libertos pediram a palavra, no auge da festa,
assegurando ao seu ex-senhor suas permanências e de seus companheiros de lida nas
propriedades do coronel. Esse fato nos conduz a duas possíveis interpretações: de um lado
está o senhor, preocupado com a manutenção de seus bens e, diante da futura abolição,
propõe-se estrategicamente libertar seus cativos; do outro, os ex-escravos que, contrariando o
pensamento de que agiam ingenuamente, optaram estrategicamente em permanecerem com o
coronel. Pode ser que pesou na decisão dos libertos o fato de estarem diante de um destino
incerto, daí melhor seria continuar no território do ex-senhor, assegurando e tentando ampliar
direitos adquiridos.
Ao que sugere as diversas matérias, ao utiliza-se de uma linguagem que visava
promover e/ou despertar o sentimentalismo dos leitores no tocante às libertações concedidas
177
Jornal O Asteróide. 18 de abril de 1888 (nº. 56)
Wlamyra Albuquerque notou que muitos escravocratas baianos esperavam indenizações ou mesmo preservar
relações escravistas ao negarem libertar seus cativos na iminência do maio de 1888. Ver: ALBUQUERQUE,
Wlamyra R. de. A exaltação das diferenças: racialização, cultura e cidadania negra (Bahia, 1880 – 1890). Tese
de doutorado. Campinas, SP, 2004. p. 99; Ver também MATA, Iacy Maia. “Os treze de maio”: ex-senhores,
polícia e libertos na Bahia pós-abolição (1888-1889). Salvador, Bahia: Dis. Mest, UFBA, 2002. p. 15; Hebe
Mattos constatou que em São Paulo não foram poucos os senhores que se negaram a alforriar seus escravos, na
esperança de futura indenização. CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Das cores do silêncio: os significados da
liberdade no sudeste escravista - Brasil século XIX. 2. ed Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p. 231.
178
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pelos senhores, a imprensa abolicionista não poupou elogios às alforrias espontâneas,
crescentes a partir da década de 1880.
179
Nesse momento o ato da libertação parece assumir
um novo caráter, qual seja o de garantir a continuidade do paternalismo senhorial, atentando
para a lógica de “ceder um pouco para não perder tudo”.
180
Era preferível aderir ao
abolicionismo, fato quase consumado, e manter os antigos escravos do que perdê-los por
conta das fugas. Contudo, em diversos momentos os escravocratas não lograram êxito nas
tentativas de manterem seus escravos submetidos ao paternalismo, na perspectiva dos
interesses senhoriais, após receberem suas alforrias. O “abolicionismo de última hora” dos
senhores não foi capaz de impedir que inúmeros cativos abandonassem o domínio senhorial,
provocando desconforto para muitos senhores de engenhos do Recôncavo baiano. 181
Essa postura do jornal leva-nos para uma outra questão que se refere ao tipo de
abolicionismo defendido pela equipe de O Asteróide. A crescente expectativa para a abolição
do escravismo parece ter gerado na equipe jornalística uma dualidade quanto ao meio ideal
para alcançá-la, ora adotando uma postura moderada, ora sugerindo um caráter radical. Uma
nota de 3 de abril de 1888 aponta para esse duplo posicionamento:
(...) Exercendo o nobre direito de defesa própria, eles, as vítimas da barbárie,
tem abandonado os seus algozes em busca de suas liberdades e consta-nos
que nestes 3 dias últimos já sobe a 100 o número de retirantes (...)
Muito bem, é digno de louvor aqueles que reagem, com toda a prudência e
moralidade, contra seus algozes. 182 (grifo meu)
Nas falas do articulista, a princípio, fica evidente a aprovação das fugas escravas.
Logo, essa postura pode apontar, numa primeira impressão, que o periódico assumiu um
abolicionismo de caráter radical, o que fica ratificado em outras matérias onde predomina a
idéia de incitamento escravo. Contudo, a análise atenta da nota acima transcrita leva-nos a
acreditar que ele possuía uma postura mais voltada para uma vertente moderada. Ou seja, a
proposta dos envolvidos na luta pela emancipação escrava tinha como objetivo uma mudança
que não produzisse transtornos à ordem estabelecida. Portanto, não pretendiam eles
“desorganizar” o trabalho nas fazendas. A transformação deveria ocorrer, mas sem atrapalhar,
sobretudo, os grandes centros agrícolas da região.
179
COSTA, Emília Viotti. Da senzala à colônia. São Paulo: Ciências Humanas, 1982. p. 461.
Idem, p. 442.
181
FRAGA FILHO, Walter. Op. cit. p. 118.
182
Jornal O Asteróide. 3 de abril de 1888 (nº. 53)
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A postura moderada do jornal fica explicita na parte final da nota. Após comentar
a retirada de alguns cativos do ambiente de trabalho, o articulista expressa ser “digno de
louvor aqueles que reagem, com toda a prudência e moralidade, contra seus algozes”. Na
ótica do jornalista, os escravos podiam até reagir à realidade do cativeiro, desde que fossem
observados alguns princípios. Mesmo apoiando as fugas da população escrava, o jornal
recomendava “prudência e moralidade”.
Diferente de jornais paulistas ligados ao grupo de caifazes que defendiam um
abolicionismo radical, fora dos tramites legais, a leitura de O Asteróide sugere que esta folha
noticiosa adotou uma postura legal na promoção da abolição do cativo. Embora em muitos
momentos os editorias, matérias e artigos fossem constantemente inflamados, o caráter
conciliador é evidente em suas páginas. Nesse sentido, recorre-se constantemente à legislação
na intenção de demonstrar que sua posição era orientada dentro dos limites impostos pela lei.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na década de 1880 a campanha abolicionista, que vinha caminhando lentamente
desde décadas anteriores, ganhou impulso e parte da elite letrada adotou a libertação escrava
como bandeira de luta ao mesmo tempo em que procurou mobilizar a opinião pública a favor
da causa emancipacionista. Isso promoveu maiores perspectivas de liberdade para o cativo,
uma vez que podia-se contar com maior apoio populacional. Este poderia vir tanto por meio
da legalidade – através das ações de liberdade, contando com a ajuda de advogados e juristas
simpatizantes ao abolicionismo – quanto mediante a colaboração de populares insatisfeitos
com ações de senhores e capitães do mato, em situações de fugas, por exemplo.
A imprensa abolicionista envolveu-se diretamente no debate sobre a extinção do
sistema escravista. Em Cachoeira, o jornal O Asteróide destacou-se como importante espaço
de luta pela emancipação escrava ao mesmo tempo em que teve papel fundamental no
processo de divulgação das mazelas da escravidão. No discurso do articulista, a abolição seria
uma “missão” que eles deveriam empreender. Desse modo, busco respostas e significações a
questões que me possibilitarão chegar ao lugar social ocupado pelo jornal no movimento
abolicionista. Por exemplo, procuro perseguir os projetos políticos defendidos pelo periódico;
que reformas queriam os abolicionistas empreender na sociedade brasileira com o fim da
escravidão? A que corrente abolicionista se alinhava o jornal?
Questão igualmente relevante nesse debate refere-se ao tratamento dispensado
pela imprensa à festa da abolição. É certo que nem todos festejaram. Os senhores que
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permaneceram com seus escravos até os últimos momentos certamente temeram diante de um
possível abandono em massa dos ex-escravos. No entanto, segundo noticiou O Asteróide, a
abolição foi intensamente celebrada em Cachoeira e São Félix. Durante mais de uma semana
a população desses municípios reuniu-se em clubes, ruas e praças para comemorar o fim do
sistema escravista. Acreditamos que uma análise mais especifica poderá mostrar como os
diferentes setores sociais participaram das comemorações pela abolição além de revelar
“retratos” das relações sociais no pós-abolição.
Enfim, entendemos que as matérias, anúncios e artigos veiculados n’O Asteróide
expressam imagens, embora carregadas de subjetividade, do cotidiano escravista numa
localidade com intensa predominância de escravos. Desse modo, uma reflexão sobre a
atuação da referida folha abolicionista poderá evidenciar práticas cotidianas que, por sua vez,
me fornecerão diversos caminhos para se pensar como a questão escrava era vivida, noticiada
e lida naquela parte do Recôncavo baiano, nos momentos finais do escravismo.
ARQUIVOS E FONTES
Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB)
- Jornal O Asteróide – 23 de set. de 1887 a 02 de junho de 1888 - Seção de
microfilmagem.
- Escravos - Seção Colonial e Provincial – Presidência da Província, maço 2897 (18731887).
Arquivo da Sociedade Monte Pio dos Artistas Cachoeiranos (ASMPAC)
- Relatório do Conselho da Sociedade Monte Pio dos Artistas Cachoeiranos de 1886 a
1887; de 1887 a 1888. (Documento no 57)
- Atas do Conselho Administrativo da Sociedade Monte Pio dos Artistas Cachoeiranos,
1874 a 1888.
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“QUAL ABOLIÇÃO QUEREMOS?” : DEBATES NA IMPRENSA
SERGIPANA SOBRE A ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA (DÉCADA DE
1880)
Josimari Viturino Santos - UFS
[email protected]
No Brasil a abolição da escravatura foi tema central durante toda a década de 80 do século
XIX, e apesar de ser discutida com veemência por diversos setores da sociedade havia
divergências sobre a forma como essa deveria ser feita. Com isso, o lema que prevaleceu na
maioria dos discursos (salvo algumas exceções) foi o de ordem e cautela, ou seja, a abolição
não poderia acontecer de “uma hora para outra,” primeiro seria necessário preparar o país para
os “novos tempos”, pois sem isso as conseqüências seriam graves. Assim sendo, o objetivo
desse trabalho é apresentar os debates ocorridos na imprensa sergipana de cunho abolicionista
durante a década de 1880 sobre a emancipação dos escravos destacando, sobretudo, através da
analise das diversas seções dos periódicos a idéia de abolição defendida por esses. Para tanto,
foram analisadas as folhas O Libertador de Aracaju e O Horizonte de Laranjeiras onde
percebemos no decorrer da pesquisa “opiniões” divergentes sobre o tema em questão, pois
enquanto a primeira defendia uma abolição imediata a outra folha era mais cautelosa
defendendo a emancipação de forma gradual.
Palavras-chave: Debates, Abolição, Imprensa.
A escravidão no Brasil perdurou por mais de três séculos, justificada pela religião
e sancionada pelo Estado essa não foi “questionada” pelo menos de maneira mais enérgica até
o século XVIII.
Contudo, é na década de 80 do século XIX que a campanha a favor da
emancipação do escravo é intensificada com a participação de vários “setores” da sociedade e
tendo a imprensa como uma “grande aliada’ para a divulgação do “ideário abolicionista”.
Com isso, até se chegar ao 13 de maio a abolição passa a ser tema recorrente das
discussões travadas tanto pelos seus “defensores” como para os que eram contra,provocando
algumas vezes divergências entre esses grupos .
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Diante do que foi exposto, o presente trabalho tem como objetivo demonstrar
como se deu os debates em periódicos abolicionistas-antiescravistas sobre o processo de
“extinção do cativeiro” na Província de Sergipe durante o período de 1882-1886.
Através da analise dos discursos contidos nas diversas seções desses periódicos
apresentaremos, sobretudo a “idéia da abolição” defendida por esses, ou melhor, “o que se
falou sobre a abolição” durante o período, para tanto utilizaremos como fontes principais os
jornais O Libertador (1882-1884) de Aracaju e O Horizonte (1885-1886) de Laranjeiras.
Consideramos essa discussão pertinente já que em maio desse ano foi
comemorado 120 anos da promulgação da lei Áurea, através da reconstrução do “imaginário”
podemos apreender um pouco das inquietações que o tema provocou na época.
1-A Imprensa Sergipana e Abolição da Escravatura
No que diz respeito á questão do elemento servil a grande parte dos periódicos
que circularam na Província de Sergipe durante o século XIX era omissa ou simplesmente
não condenava a escravidão já que na maioria das vezes esses eram propriedades de
escravocratas.
Porém, apesar de ser a minoria podemos destacar na Província de Sergipe como
propagadores das idéias antiescravistas, em Aracaju, os jornais Luz Matinal (1882)
propriedade da Sociedade União ás letras, O Descrido (1882) e O Libertador (1882-1884)
que pertenciam a Francisco José Alves.
Já em Laranjeiras, temos as folhas O Horizonte (1885-1886) propriedade do
negociante Francisco C.M.Polliciano e O Larangeirense (1887-1888) de Joaquim Anastácio
de Meneses.
O próximo item irá tratar sobre a idéia de abolição defendida pelo abolicionismo
brasileiro de modo geral para em seguida demonstrar como se deu esse debate na imprensa
sergipana abolicionista-antiescravista ao longo de 1882 a 1886 período de circulação dos
periódicos O Libertador e O Horizonte.
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2- Uma Abolição á Brasileira...
A partir da década de 1880 com a intensificação da campanha a favor da
emancipação dos escravos a abolição se torna tema principal dos debates ocorridos pelo país
tanto na tribuna como na imprensa.
Como nos diz Lilia Schwarcz (2007),
O assunto era de fato central, sendo tratado de duas maneiras, em primeiro
lugar era preciso afirmar a ordem e o controle por parte das elites brancas
diante da libertação iminente dos escravos e em segundo lugar estabeleciase a necessária submissão e lealdade dos cativos que começavam a ganhar
liberdade.
E ainda,
Apesar das diferenças que dividiam as próprias elites brancas, a abolição
surge como um processo de uma só mão, isto é, conduzido por brancos
“benfeitores”, cujo papel é trazer os negros para a civilização, com ordem e
muita cautela era preciso “preparar o terreno para a libertação.
Com isso, ordem e cautela passa a ser era o lema da abolição no Brasil, tanto
para aqueles que eram a favor dessa (salvo algumas exceções) como para os que eram
contra.
De maneira geral os abolicionistas brasileiros tendiam a “combinar” a luta a favor
da abolição com o respeito ás leis e sem a participação dos escravos, pelo menos é o que
sugere o famoso abolicionista Joaquim Nabuco,
A emancipação há de ser feita, entre nós, por uma lei que tenha os requisitos,
externos e internos, de todas as outras. È assim, no Parlamento e não em
fazendas ou quilombos do interior, nem nas ruas e praças das cidades, que se
há de ganhar, ou perder, a causa da liberdade. (O Abolicionismo, p.44 2003)
E afirma Sydney Challoub (1999) “toda a iniciativa, devia caber aos
abolicionistas, aos iluminados ou esclarecidos que sabiam exatamente o que era melhor
para os cativos, e que tinham mesmo, “o mandato da raça negra”.
Em suma, Célia Azevedo (2004) assinala como projeto abolicionista os seguintes
argumentos:
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Em primeiro lugar a escravidão não tem razão de ser porque não se enquadra
na fase atual de progresso e civilização (por isso é preciso aboli-la e de
forma imediata) e em segundo lugar é necessário garantir a ordem, sem a
qual não há progresso (abolição com ordem quer dizer com a introdução dos
elementos do progresso, ou seja, os imigrantes. E por fim sem a escravidão,
as famílias ficarão livres dos negros e os costumes até então pervertidos por
eles encontrarão o caminho ordeiro.
2.1- Já na Província de Sergipe. (1882-1886)
[..] A abolição da escravatura neste paiz só se fará depois de derramar se
muito sangue e se isso tem de acontecer daqui a seis ou oito annos,aconteça
logo porque ao menos os brazileiros que sobreviverem á catastrophe não
lamentarão mais como lamentamos hoje scenas de canibalismo.(O
Libertador,14 de Dezembro de 1882)
Essa citação é o reflexo do clima da época para muitos a abolição era algo
inevitável e o medo do conflito era crescente, porém nem todos pensavam dessa forma, pois
apesar da escravidão está dando os seus “últimos suspiros” a economia da Província ainda
era muito dependente do trabalho escravo.
Ao longo de nossa analise percebemos que essas posições divergentes eram
comuns até para aqueles que se diziam “defensores dos escravos” para O Libertador, a
abolição era algo inevitável já O Horizonte defendia uma abolição lenta e gradual.
Deste modo, nós próximos tópicos iremos apresentar as concepções de abolição
que são apresentadas nós jornais O Libertador e O Horizonte.
2.1.1- O Inevitável:
O Libertador Periódico Crítico e Litterario (Aracaju-1882-1884): Propriedade
de Francisco José Alves considerado o maior abolicionista da Província de Sergipe,
substituiu O Descrido em 19 de outubro de 1882.
Era publicado duas vezes por mês, possuía quatro páginas e não aceitava em suas
colunas anúncios sobre escravos fugidos. E tinha como objetivo defender as leis
emancipacionistas de 1830(Proibição do Tráfico de Escravos) e a de 28 de setembro de
1871(Ventre Livre).
Para O Libertador (1883) a abolição deveria ser feita o mais rápido possível,
pois, [...] Ainda mesmo que seja um mal presentemente a extincção da escravatura, como
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dizem alguns dos escravocratas, o que contestamos; Ella deve fazer-se sem perda do tempo,
porque esse mal de hoje será immemsamente compensado pelo bem de amanhã.
E para esse,
O Combustível está preparado e para fazer explosão bastará a morte de mais
alguns escravos e de alguns abolicionistas. Ao governo pertence evitar o
choque, e só o pode fazer decretando a abolição da escravatura existente por
meio de uma indeminização módica, calculada pelas idades dos escravos que
em vista das matriculas, não podem ser alteradas. (O Libertador, 8 de Junho
de 1883).
Além disso, esse periódico trabalha a abolição através da divulgação da fundação
de sociedades abolicionistas, de festas que tinham como objetivo arrecadar fundos para a
libertação de escravos ou serviam para a entrega de cartas alforrias etc.
Festa Abolicionista- No dia 1’ de janeiro o nosso amigo, acadêmico Álvaro
de Alencar e Sr.Tenente Coronel Tristão de Alencar, fundaram em
Mecejanu duas sociedades abolicionistas [..] Durante a grande festa
libertarão- se 11 escravos sem condição alguma [..] (O Libertador, 24 de
fevereiro de 1883).
As “Festas abolicionistas” são sem dúvida o destaque dessa folha, pois além de
mostrar a interação com abolicionistas de outras províncias elas ainda servem como
argumento para essa demonstrar o quanto a escravidão está com “os dias contados” e que a
abolição é algo inevitável.
2.1.2- O Gradual:
O Horizonte Órgão Imparcial (Laranjeiras-1885-1886): Propriedade de Francisco
C.M.Polliciano, negociante, possuía quatro páginas e era publicado semanalmente.
Para Terezinha Oliva (1991) O Horizonte era um órgão de divulgação de novas
idéias como aquelas sobre educação popular e sobre a implantação do trabalho livre.
Essa folha defendia uma abolição lenta e gradual, ou seja, “sem maiores danos”,
já que, “Hoje querem, a todo transe, sem medirem as conseqüências funestas de que vai ser
victima o paiz, a abolição, sem terem aplainado o terreno, preparado o povo para soffrer de
chofre esta metamorphose”. (29 de Julho de 1885)
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Nessa também encontramos notícias sobre entrega de alforrias concedidas pelos
senhores aos seus escravos bem como observamos a interação com abolicionistas de outras
províncias.
Além disso, há uma crítica veemente ao governo sobre a forma como “a
emancipação estava sendo construída”, destacando algumas vezes a inutilidade de
determinadas leis ou criticando a forma como elas estavam sendo “administradas”.
Já que para O Horizonte (1885), O melhor meio de se acabar com a escravidão
não é formular projectos absurdos e combinações legislativas engenhosas. O melhor meio de
acabal-a é cerceal-a, pol – a em estado de sitio, estabelecer com ella a concurrencia, tornal-a
inútil e depois nociva e impossível [..].
No entanto, quando falamos em abolição além de ser discutido qual o momento
mais propício para que essa aconteça outro aspecto importante é sobre como ficaria o exescravo e a lavoura de maneira geral.
Quais as propostas que os abolicionistas sergipanos tinham para o pós-abolição?
Como ficaria a situação dos libertos?
Essas são as questões que iremos responder no próximo item, pois já que
apresentamos a idéia de abolição divulgadas nos periódicos ficará mais “fácil” responder a
esses questionamentos.
3-A Imprensa Abolicionista e as Propostas para a Reorganização do Trabalho
Em Sergipe as discussões acerca do processo de substituição do trabalho e porque
não dizer sobre o futuro do “ex-escravo” já que esse na maioria das vezes tem inicio com a
criação do Imperial Instituto Sergipano de Agricultura em 20 de janeiro de 1860 pelo
Imperador D. Pedro II.
È também em 1860 que os debates sobre o emprego de imigrantes na lavoura
sergipana se intensificam onde é aprovado um projeto de colonização que pretendia criar
cinco colônias (duas nacionais e três estrangeiras).
Esse debate continuou pela década de 1880, podemos disser que era até freqüente
nos jornais que estão sendo analisados onde mais uma vez percebemos divergências as quais
vamos apresentar a seguir.
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3.1-Nacionais x Estrangeiros:
De inicio, gostaríamos de salientar as posturas dos periódicos com relação ao
tema, O Libertador defendia a “transição” com o emprego dos trabalhadores nacionais, isto
é, ex-escravos e/ou homens livres, para a folha O Horizonte a imigração seria a “salvação da
lavoura” da Província de Sergipe.
Entretanto, O Libertador além de defender a substituição do trabalho escravo
com a colocação dos trabalhadores nacionais e não de estrangeiros, [...] Para a lavoura das
províncias do norte progredir não precisamos de colonos estrangeiros; temos um pessoal
mais que sufficiente precisamos é de regulamento para o trabalho e divisão d’elle.
Essa folha sugere para o pós - abolição a permanência dos ex-escravos nas
fazendas desde que seja feito pelo sistema de parcerias com a divisão dos lucros ou com o
pagamento diário ou a distribuição de terras por parte do governo.
N’ O Libertador de 19 de janeiro de 1883, podemos confirmar o que foi exposto
anteriormente, [...] Dê o governo brazileiro aos nacionaes o que dá aos estrangeiros: terras
baratas e a longos prazos, que elles não irão plantar n’esses terrenos,hortaliças que nada
rendem para o estado ,e sim [ilegível] cana,café,algodão,milho,[ilegível].
Para O Horizonte a imigração seria “a melhor saída” para a resolução do
“problema da lavoura” (trabalho escravo) porque além do desenvolvimento da lavoura, traria
outros benefícios como á indústria, ”florescimento das artes”, “pureza da raça” entre outros,
ou seja, a imigração é vista como um elemento “modernizador” não só da lavoura como da
sociedade no geral.
È o que podemos constatar n’ O Horizonte de 22 de Novembro de 1885, -[...]
Precisamos muito de uma convivencia que, alem de purificar-nos, apresente-nos um
panorama de novas idéas, novas theorias, novas leis economicas e uma nova política.
Todavia, estudos comprovam que as expectativas dos “periódicos” nas foram
“atendidas”, já que nos que diz respeito á substituição do trabalho com a introdução dos
“nacionais”, segundo Lenalda Andrade (1991), algumas fontes documentais referentes ao
inicio do século XX mencionam o abandono das propriedades pela maioria dos trabalhadores
após a abolição.
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E no que se refere ao emprego dos imigrantes na lavoura de Sergipe, não passou
de “calorosas discussões”, é o que conclui Passos Subrinho (2000),
Portanto do ponto de vista do suprimento da força de trabalho, a imigração
de estrangeiros pode ser desconsiderada em Sergipe. Entretanto, do ponto
de vista das discussões que provocou, dos argumentos utilizados no ataque
e na defesa aos projetos de imigração, a mesma contribuiu para esclarecer
as dificuldades de “ordenamento do trabalho”, após a abolição da
escravidão.
Por fim, ao fazermos uma analise comparativa entre os discursos dos periódicos,
podemos concluir que enquanto O Libertador tinha como objetivo principal os interesses dos
escravos defendendo uma abolição imediata e se preocupando com o “futuro” desses com o
emprego na lavoura.
O Horizonte até se interessava pela “causa dos escravos”, porém a sua maior
preocupação estava em “defender” a lavoura pelo menos foi o que concluímos com a sua
defesa de uma abolição gradual e o emprego de imigrantes na lavoura para acima de tudo
“purificar a raça”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A abolição foi acima de tudo um processo de mudança na “ordem” social, com
isso não era de se estranhar o “medo” que ficava latente nos discursos divulgados pelos
periódicos do período pró-abolição.
Pois, ao mesmo tempo em que se sabia que a abolição era algo “inevitável”, havia
o receio das conseqüências que viriam se essa fosse feita sem um projeto “sério” que
contemplasse todos os envolvidos, ou seja, os senhores e principalmente os próprios escravos.
A ordem e a cautela passam a ser o lema da abolição perdurando até assinatura da lei Áurea.
Diante disso, como era de se esperar, a abolição foi feita de uma forma lenta e
gradual como defendia o jornal O Horizonte, porém ao contrário do que esperava essa folha
pelo menos no caso da Província de Sergipe não houve o emprego de estrangeiros.
E as expectativas d’ O Libertador também não foram atendidas, pois além da
emancipação ter acontecido de forma lenta e essa folha defendia uma abolição imediata, não
houve nenhum tipo de reparo para com aqueles que eram frutos de mais de três séculos de
escravidão, ou seja, os libertos foram abandonados a própria sorte.
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Em resumo, esse foi um trabalho de “reconstituição” do imaginário de pessoas
que viveram em uma época de transição e como já havíamos no referido, acreditamos que
esse seja um momento oportuno, pois ao fazê-la 120 anos depois podemos conhecer um
pouco sobre as inquietações comuns pra época já que a “abolição” poderia acontecer a
qualquer momento.
Fontes Primárias:
Jornais:
O Libertador (1882-1884)
O Horizonte (1885-1886)
Livro:
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Universidade Federal de Sergipe, Núcleo de Estudos Afro-Brasileiro, 2007.p.1-10.
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Quase Cidadão: Historias e antropologias da pós-emancipação no Brasil. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2007.p.23-54.
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REESTRUTURAÇÃO SOCIAL: O OLHAR “BRANCO” SOBRE O
“PRETO” NA SOCIEDADE SERGIPANA PÓS-ABOLICIONISTA (18851890).
Camila Barreto Santos Avelino -UNEB
[email protected]
O presente trabalho busca elucidar a reestruturação social sergipana após a abolição da
escravatura. Objetiva-se de forma panorâmica analisar as particularidades da abolição da
escravatura na sociedade sergipana e a situação dos ex-escravos no pós-abolicionismo no
período que se estende de 1885 a 1890. Neste estudo buscaremos desvendar o modo como os
ex-escravos foram ingressos na nova estrutura social amalgamada entre brancos e negros a
partir da Lei Áurea que os colocou em níveis de igualdade, por meio da análise de suas
particularidades e as posições que os libertos ocuparam nessa nova sociedade. Desse modo,
este trabalho constrói hipóteses para o que acreditamos caracterizar a reestruturação social em
Sergipe após a abolição da escravatura e seus reflexos na sociedade. Cremos que em Sergipe a
situação do ex-escravo no pós-abolicionismo não o beneficiou com a liberdade, pois para
gozar os direitos de serem livres não foi permitido ao liberto uma condição social e
econômica de igualdade, sem recursos e meios para proverem seu sustento e da sua família,
espoliado e excluído da sociedade sergipana os ex-escravos permearam os caminhos da
marginalidade social.
Palavras-chave: Pós-abolição, Sociedade, Marginalidade.
Após a promulgação da Lei Áurea em 13 de maio de 1888, o liberto viu-se,
abruptamente, "proprietário de si mesmo". Passou de propriedade a proprietário numa ordem
social diversa da originária, tendo que comandar seus destinos em busca de uma vida cidadã.
O novo quadro social ao qual os ex-escravos se inseriam ao tornar-se liberto, exigiam-lhes
responsabilidades diferentes e novas. A liberdade foi conferida ao ex-escravo sem qualquer
planejamento quanto ao futuro desse ser, que por toda vida viveu em cativeiro desmuniciado
dos aparatos necessários à sobrevivência em um mundo extremamente complexo em cuja
lógica competitiva não abarcava nem mesmos todos os brancos.
Creditou-se à abolição o peso de ser uma panacéia para todos os males
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engendrados por quase quatro séculos em que a diferença foi constantemente reafirmada e
chancelada pela lei dos homens e até de “Deus” onde os corpos “pretos” recebiam as marcas e
as insígnias de propriedade até então inalienável. Os negros, enquanto seres humanos,
receberam da civilização a recusa de uma participação igualitária já que eram considerados
anomalias apenas suportáveis dentro da esfera servil, como corpo simples à eminência branca.
Ao discorrer sobre a historiografia brasileira, grande parte dos historiadores,
quando se dedicaram a pesquisar a escravidão no Brasil se privaram de estudar os pequenos
acontecimentos que culminaram na abolição e a reestruturação social após a abolição da
escravatura. Ganharam ênfase, assim, o movimento abolicionista, as revoltas quilombolas e a
decadência da economia açucareira. A nova estrutura social, a marginalização do ex-escravo
e as relações sociais ficaram durante anos relegadas nesse contexto historiográfico, por serem
considerados de menor importância e de pouca contribuição para o processo histórico que se
desenrolaria a partir dali.
Diversos autores, ao escrever sobre a abolição da escravatura no Nordeste e em
Sergipe, têm retratado esta temática apenas em seu contexto econômico (SUBRINHO
2000)183. Estes estudos promoveram uma grande contribuição para o conhecimento e para a
construção historiográfica do Nordeste brasileiro, mas se faz necessário repararmos as lacunas
existentes referentes ao contexto social pós-abolicionista.
No tocante as temáticas sociais pós-abolicionistas na atualidade podemos
encontrar trabalhos pioneiros e iniciante desse contexto temático. Merecem destaque os
trabalhos de Walter Fraga Filho 184 que pesquisa o pós-abolicionismo na Bahia e os trabalhos
de Hebe Mattos e Ana Lugão Rios185, dentre outros. Em Sergipe alguns estudos mais recentes,
vêm contribuindo para o crescimento do conhecimento sobre a sociedade sergipana, como os
trabalhos dos autores (SANTOS, 1997)·, (NUNES, 2006)186, (FIGUEREDO, 1977)187,
Sharyse Amaral188, dentre outros, que estudam o sistema escravista em Sergipe a partir dos
movimentos sociais reconstruindo o cenário social sergipano frente à mobilização nacional no
183
SUBRINHO, Josué Modesto dos Passos. Reordenamento do trabalho. Trabalho escravo e trabalho livre
no Nordeste Açucareiro - Sergipe 1850/1930. Aracaju: Funcaju, 2000.
184
FRAGA FILHO, Walter . Mendigos, Moleques e Vadios na Bahia do Século XIX. 1. ed. São Paulo:
HUCITEC/EDUFBa, 1996. v. 1. 189 p.
______________. Encruzilhadas da Liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910). 1. ed.
São Paulo: Editora da UNICAMP, 2006. v. 1. 360 p.
185
MATTOS, H. ou CASTRO, H. M. M. ; RIOS, A. M. L. . Memórias do Cativeiro: Família, trabalho e
cidadania no pós-abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. 301 p.
186
NUNES, Maria Thétis. Sergipe Provincial II (1840-1889). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2006.
187
FIGUEIREDO, Ariosvaldo. O negro e a violência do branco: o negro em Sergipe. Rio de janeiro, j.
Álvaro, 1977.
188
AMARAL, S. P. Escravidão, Liberdade e Resistência em Sergipe: Cotinguiba, 1860-1888. Universidade
Federal da Bahia, UFBA, Brasil. 2007.
Aracaju, 08 a de 10 de outubro de 2008
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tocante ao movimento abolicionista, que se repercutiu em todo o país.
Buscando aprofundar os estudos iniciados sobre a sociedade sergipana e
objetivando elucidar a participação do elemento negro em Sergipe, destacando as suas
especificidades, resultaram os trabalhos monográficos de (CRUZ, 1997)189 e (AVELINO,
SANTIAGO e GOUVEIA, 2007)190 que discorrem sobre o processo abolicionista em Sergipe
dando ênfase ao contexto social pós-abolicionista e a inserção do negro como cidadãos livres
na sociedade republicana.
Em Sergipe, como em todo país, a abolição não atendia às reais expectativas dos
escravos, nem dos abolicionistas, pois, apesar de adquirirem a liberdade, estes não
encontraram o apoio para proverem sua subsistência, pelo contrário, eles foram objeto de
perseguição e desprezo enfaticamente denunciado pelo autor Florestan Fernandes,
O liberto viu-se convertido sumaria e abruptamente, em senhor de si mesmo,
tornando-se responsável por sua pessoa e por seus dependentes, embora não
dispusesse de meios materiais e morais para realizar esta proeza nos quadros
de uma economia competitiva. (FERNANDES, 1978, p. 189)
A realidade social excludente acabou por manchar o sonho de liberdade. Em
Sergipe, os reflexos do quadro pós-abolicionista nacional não vão ser diferentes. O Estado de
Sergipe, as vésperas da abolição ainda era sustentado por uma economia agrícola e
dependente da mão-de-obra escrava, tendo a cana de açúcar como o principal item para a
economia no período estudado, mesmo com a introdução de novas culturas na produção
agrícola sergipana, estas não conseguiram suplantar a cana de açúcar. Isso deu especificidades
ao modo como se organizaram as relações de trabalho na agricultura e, especificamente, em
relação ao ex-escravo. Como se observa,
Os ex-escravos foram lançados à própria sorte e a sua mera existência
perturbava a ordem pública deveria a qualquer custo exercer alguma
atividade útil ao lugar suplantada a resistência da sociedade em reconhecê-lo
como cidadãos. (CRUZ, 1997, p. 30)
Em sua obra “História de Sergipe República” o autor sergipano Ibarê Dantas
(2004, p. 24), ao abordar a situação social e econômica sergipana cita que “se existiam
189
ZELICE, Gabriela de Queiros da Cruz. EX-ESCRAVOS: cidadãos sem liberdade. São Cristóvão:
Universidade federal de Sergipe, 1997.
190
AVELINO, Camila B. S. SANTIAGO, Fabio Santos e GOUVEIA, Reginaldo de Sa. ANOMALIA SOCIAL
(VADIOS LADRÕES E DEFLORADORES): O Negro na Sociedade Sergipana Pós-Abolicionista (18851890). 2007. Monografia. Universidade Tiradentes. Aracaju.
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grandes desafios para a sociedade sergipana, não eram menores os que se apresentavam para a
sociedade brasileira”.
Na nova estrutura social abolicionista e republicana, o Senhor de Engenho via o
trabalhador através das lentes da ideologia de explorador, não confiando nos negros enquanto
homens livres sem perceber, justamente pela deformação ideológica escravocrata, que os
negros tão pouco ou nenhuma confiança podiam ter naqueles que os exploraram
impiedosamente como escravos. Para eles, liberdade também significava, se possível, livrarse da fazenda. Logo, tem-se uma descrença recíproca, muito mais prejudicial ao negro, ainda
aspirante a cidadão, do que ao branco protagonista e “senhor” do sistema republicano
emergente. Esse processo leva o negro ao confinamento e, por conseguinte, ao construto de
uma nova ordem, a “ordem do diferente", muito caracterizado em nosso Estado como
“marginal”.
Marcados inexoravelmente pelo desprezo e pelo abandono, não só do Estado, mas
do conjunto da decadente sociedade tradicional de modelo europeizante, pobres, ex-escravos e
também um grande número de estrangeiros, associados aos livres nacionais marginais,
formavam um conjunto de “cultura paralela”, corporificada, diferente e subterrânea em que
pesem seus vasos comunicantes com a sociedade tradicional. Desenvolveram uma cultura
especial que servia de código idiossincrático, capaz de enganar aqueles que não conviviam
cotidianamente com a marginalidade, inclusive a polícia. Muitas vezes, este artifício servia
não só como defesa do grupo, mas também denunciava o quanto eram independentes e
autônomas estas formações.
O olhar “branco” sobre o “preto” após a abolição é um olhar pejorativo e
eminentemente racista cujos substratos racionais foram construídos pela necessidade de
legitimar a inferioridade do negro para além dos princípios hermenêuticos da lei. Uma lei que
antes dizia, categoricamente, que aquele ser era sua propriedade e agora ele é igual, mesmo de
forma quase insignificante, ou seja, era preciso reinventar a diferença, não importando se pelo
insulto, pelo deboche ou pelo desdenho.
A historiografia sergipana poucas vezes se preocupou em responder os
questionamentos suscitados referente a fase pós-abolicionista. O presente trabalho não
pretenderá responder todos os questionamentos levantados, mas sim contribuir e continuar
aprofundando o processo iniciado por outros autores. E é este o principal objetivo deste
trabalho: recriar o quadro social da sociedade sergipana, destacando a cultura negra exescrava nessa província através dos agentes sociais, elucidando as relações sócias pósabolicionistas entre negros e brancos. Intencionar-se, com este estudo, instigar também outros
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pesquisadores a abordar o nosso passado escravista, tão injustamente pouco trabalhado em
relação a sua diversidade, e assim preencher lacunas da historiografia de Sergipe sobre a
história oficial, defendendo a afirmativa de que o processo de emancipação do negro não
culminou na abolição, começou com ele, e ainda está longe de se concretizar, estudarmos a
fase escravista em Sergipe representa um auto-conhecimento, ou seja, avaliar nossa própria
memória e identidade social, cultural e econômica.
Neste estudo, procuramos entender os impactos psicossociais conseqüentes das
mutações administrativas que mimetizavam uma civilização que não reservava espaço para a
“arraia miúda”, pois gente como os ex-escravos não estavam presente nos planos e nos
ideários republicanos construídos no Brasil no período estudado, onde esqueceram do mais
importante ao proclamar a República: o povo. Ao analisar a condição social dos ex-escravos
no final do Império e no início da República, identificando as formas desenvolvidas por esses
grupos para sobreviver em um mundo que os rejeitava, percebe-se que eles existiam em
caráter de exclusão, pois suas práticas eram incongruentes com o arquétipo de sociedade no
limiar da República. Como observa o Professor Eduardo Marques, “marginal é todo aquele
que desobedece às normas de uma sociedade pela qual termina sendo abandonado, pois não se
enquadra nas regras determinadas pelo grupo hegemônico”.191 Por anomalia social, entendemse as formas “extralegais” de existência devido à dificuldade de ingressar na vida produtiva e
social, assimilando formas culturais laterais extensivas à moradia, ao trabalho e ao convívio
com a lei.
A exclusão social do negro se generalizou em toda região nordestina
principalmente onde vigorou até as vésperas da abolição a produção açucareira. Liberto desse
sistema opressor, excluído dos benefícios emancipacionistas, sem terras e sem meios
econômicos os libertos buscaram formas extralegais de sobrevivência. Através de versos de
um antigo samba de roda o autor Walter Fraga em sua obra Encruzilhadas da liberdade ilustra
a repercussão dos conflitos existentes entre escravos e senhores de engenho em relação as sua
pequenas roças de subsistência que era permitido ao negro enquanto escravo semeá-la, mais
após a abolição da escravatura o quadro dessa sistema se alterou:
Quem tiver seu boi
Qui prenda no currá
Eu não planto roça, ê
Para boi roubá...
191
SILVA, Eduardo M. “E o rabo balançou o cachorro?! A crise de uma história de controle eficiente que
educou um Brasil multicultural. In : tamandare.g12.br, Profº Eduardo Marques. Acesso 10 maio de 2007.
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Quem tive seu boi
Qui prenda no mourão,
Eu não planto roça, ê
Para boi ladrão192
Ao negro, restava-lhe as ocupações residuais como demonstram pesquisas
preliminares apoiada em jornais da época, analisando com maior atenção os classificados de
empregos, concomitantemente sobre critérios exigidos para a ocupação desses postos de
trabalhos, mapeando, analisando anverso e avesso desses diálogos impregnados de racismos e
reverberando ranços e ressentimentos para com os negros, ex-escravos, pretensos iguais. Vale
ainda ressaltar que até 1890, corte temporal disposto neste referido estudo, sinteticamente é
clara a referência à cor, pois é aquilo que chancela, credencia a ocupação desses postos e,
nesses casos supracitados, as funções são as menos remuneradas e, portanto, as que exigem
menos qualificação, por assim dizer, ou seja, são funções “residuais” ou “inferiores” dentro da
hierarquia ocupacional capitalista.
Optou-se por essa abordagem pós-abolicionista no âmbito social, porque se
acredita que estão no imaginário social os signos que permitiam a sobrevivência de práticas
de segregação, que reafirmavam e delimitavam enfaticamente o campo existencial tanto da
elite quanto o dos marginais, uma disputa por espaços ou uma territorialidade que permearia a
transição do Império para a República, onde os atores representavam um espetáculo de
riquezas e misérias, de progressos e fracassos, pois, enquanto uns sonhavam com as
conquistas republicanas vindouras, outros celebravam sua desesperança e seu imobilismo.
A sociedade sergipana, no limiar de um novo modelo político, econômico e
social, portava-se anacronicamente como anomalias sistêmicas teimosamente reafirmadas.
Mesmo diante de uma incompatibilidade legal ou de um contra-senso inquestionável, foram
percebidas formas patentes e por vezes tácitas nas quais práticas coloniais coexistiam em um
sistema republicano ou em uma República à brasileira. Assim sendo, a relutância das classes
dirigentes sergipanas em ceder às mudanças das relações de produção bem como a relações
sociais e políticas e à alheação das classes subordinadas, egressas do sistema escravista,
respondem pelas raízes desse nosso mal crônico, perene nesses nossos mais de quinhentos
anos. Logo, as razões de nossa desigualdade imanente não podem ser vistas apenas como
reflexo da opressão dos dominadores, mas também da imobilidade dos dominados em resistir
192
Versos de um antigo samba de roda cantado pelos moradores da Usina Cinco Rios (antigo engenho
Maracangalha), registrado por Valdevino Neves Paiva em seu livro: Maracangalha: torrão de açúcar, talhão de
massape. Bahia: Gráfica Santa Helena, 1996, pp. 71-72.
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e exigir que se faça valer a República.
A libertação dos escravos não trouxe consigo a igualdade efetiva. Essa igualdade
era afirmada nas leis, mas negada na prática. Ainda hoje, apesar das leis, prevalece o
privilégio de poucos e a marginalização de muitos, correspondendo estes fatores para o
desfavorecimento e a humilhação dos excluídos. Os resquícios da exclusão social do negro
propiciaram a formação de uma classe subalterna de cidadãos, ou seja, sem recursos e sem
meios para garantirem sua sobrevivência, muitos dos ex-escravos optaram pela promiscuidade
e pela ociosidade, daí então a origem dos cidadãos anômalos ou freqüentemente considerados
pela sociedade como marginais. Segundo o autor Fraga:
Ao reforçar o estigma de vadios e ociosos dos livres e libertos, as elites
encontraram pretexto pra repressão aos costumes e à recusa dessa gente em
colocar sua força de trabalho à disposição da grande lavoura. Amparados na
legislação que punia a vadiagem, era possível constrangê-los ao trabalho e
removê-los de seus antigos hábitos. (FRAGA, 1996, p. 174)
Assim, o liberto convivia com seus grilhões inorgânicos e intrínsecos à praxe
social, e era de maneira contumaz relembrado quanto a sua “insignificância” e seu passado
escravo era por assim dizer, reprisado diante dos seus olhos todo tempo porque a cor de sua
pele impedia-o de vislumbrar um presente e um futuro menos obscuro, logo, sua liberdade,
sua condição jurídica igual pouco importava diante de um mundo capitalista cujas roseiras
assentavam-se sobre os estercos de um escravismo duradouro que teimava em vociferar e
calar os suspiros de justiça que há séculos vinham sendo suprimidos no peito de cada homem
e mulher de “cor”. “Os ex-escravos teriam de aprender que o trabalho livre significava ‘medo
da fome’ em vez de ‘medo de chicote’; era isso que arquitetos da emancipação queriam dizer
com transição das dificuldades brutais para as racionais” (COOPER, 2005, p. 69).
Reaprender a viver, com certeza, não seria fácil e não o foi tanto que existem
amostras inequívocas do malogro de grande parte dos ex-escravos que ainda hoje vêem à
distância uma realidade mais justa e, portanto, mais humana. Estabeleceram uma República e,
concomitantemente, a isonomia, ou seja, tornaram os desiguais em iguais de uma noite para o
dia em meio a discursos eloqüentes impregnados de sentimentalidades e fechando, entretanto,
os olhos para as raízes do problema e condenando doravante os ex-cativos a uma existência
anômala.
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ÁFRICAS DO MEU INTERIOR: POESIA DE ALOÍSIO RESENDE E A
MEMÓRIA AFRO-BRASILEIRA NA FEIRA DE SANT’ ANNA DA
BAHIA
Josivaldo Pires de Oliveira – UFBA
[email protected]
O interior da Bahia, inclusive, a região denominada “sertão”, foi receptador das populações
negro-africanas na diáspora e, portanto, responsável por uma produção de saberes e práticas
de matrizes africanas a exemplo dos sambas, batuques e candomblés em suas multifacetadas
especificidades. Nas últimas décadas os estudos históricos e antropológicos têm avançado
para além da capital e recôncavo açucareiro, região sobre a qual se restringiram, por muito
tempo, os estudos sobre o negro na Bahia. Nesse sentido, outras possibilidades de fontes
foram exploradas, entre as quais as memórias cristalizadas em seus diferentes espaços. Este é
o caso da poesia do escritor feirense Aloísio Resende, na qual este ensaio objetiva identificar
as experiências culturais produzidas pelas reinvenções africanas e crioulas na região de Feira
de Santana, BA, registradas pela pena do poeta. Assim pode-se potencializar a literatura local
como fonte para a história das práticas culturais afro-brasileiras, experimentadas no interior da
Bahia.
Palavras-chave: História da Bahia, Literatura, Cultura Afro-brasileira
O interior da Bahia, inclusive a região denominada “sertão”, foi receptador das
populações negro-africanas na diáspora e, portanto, responsável por uma produção de saberes
e práticas de matrizes africanas a exemplo dos sambas, batuques e candomblés em suas
multifacetadas especificidades. Nas últimas décadas os estudos históricos e antropológicos
têm avançado para além da capital e recôncavo açucareiro, região sobre a qual se
restringiram, por muito tempo, os estudos sobre a experiência africana na Bahia. Nesse
sentido, outras possibilidades de fontes foram exploradas, entre as quais as memórias
cristalizadas em seus diferentes espaços. Este foi o caso da poesia do escritor feirense Aloísio
Resende, na qual o presente ensaio objetiva evidenciar as experiências culturais produzidas
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pelas reinvenções africanas e crioulas na região de Feira de Santana-BA. Entendendo a
literatura como espaço de memória, o aspecto que interessa aqui na produção do poeta é
aquele que mais o caracteriza como um testemunho da diáspora negra no interior baiano: o
universo afro-religioso.193
Neste ensaio me ocuparei, portanto, em pontuar algumas reflexões em torno da
experiência de Aloísio Resende, no tocante aos registros que o mesmo fez através de sua pena
testemunhando as práticas afro-religiosas e outras manifestações, que compartilhavam este
universo de representação da diáspora africana no interior baiano. Pretendo provocar, a partir
das reflexões que se seguem, uma releitura da história de Feira de Santana, incluindo a
experiência afro-diaspórica como um importante capítulo da história social de uma das
maiores cidades do Nordeste brasileiro.
1. A Escravidão Atlântica e a Experiência Negra no Interior da Bahia.
Em que medida a cultura africana formatou as culturas afro-diaspóricas e
americanas? Esta provocação, de Linda M. Heywood, tem como preocupação o quanto ainda
se desconhece a cerca da experiência africana no processo de crioulização das comunidades
americanas e, no caso aqui intentado, na constituição do que se denominou chamar de mundo
afro-brasileiro.194 Essa questão está intimamente ligada à dinâmica da escravidão atlântica e a
experiência negra no Brasil.
A abertura do Atlântico, conseqüente da navegação européia na chamada
modernidade, foi crucial e teve um significado muito mais profundo do que possamos
imaginar. Segundo John Thornton, este evento não só fomentou como reconfigurou um
conjunto de sociedades, propiciando a criação de um “Novo Mundo”.195 Essa nova
configuração envolveu a África por completo, pois em meados do século XVII os africanos
representavam a maioria dos novos colonos no mundo Atlântico contemporâneo.196
193
As poesias de Aloísio Resende que tratam do universo afro-religioso em Feira de Santana, foram publicadas
entre 1939 e 1940. Destaco que este conjunto de 13 poesias revela importantes elementos trabalhados por mim
na tese de doutorado. Não utilizo suas poesias na minha pesquisa precisamente como fontes, entretanto, elas me
oferecem instrumentos de interpretação da documentação que utilizo na tese, a saber: documentos judiciários e
notícias de jornais. A parte da tese que foi qualificada em 27 de agosto último intitula-se: “Os adeptos da
mandinga: uma história da repressão às práticas de candomblé em Feira de Santana (1900-1960)”, tendo
participado da banca os professores Dr. Jéferson Bacelar (orientador), Dr. Nicolau Parés (Pós-Afro) e Drª.
Lucilene Reginaldo (UEFS).
194
HEYWOOD, Linda M. (org). A diáspora negra no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008, p. 22-23.
195
THORNTON, John. A África e os africanos na formação do mundo atlântico (1400-1800). Rio de Janeiro:
Campus, 2004, p. 54-55.
196
Idem
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O convívio dos africanos com as sociedades do Novo Mundo reelaborou
lentamente uma experiência cultural de vida com as populações americanas influenciadas por
características herdadas do além mar, sendo que nessa dinâmica de crioulização alguns
valores foram perdidos outros misturados. Herbert S. Klein afirma que “a cultura que eles [os
africanos] e os escravos nascidos nas colônias criaram derivou-se de fontes africanas,
americanas e européias, e foi parcialmente compartilhada pela elite branca que os mantinha
em cativeiro”.197
Muitos dos aspectos da cultura dos trabalhadores escravos eram comuns a outras
sociedades escravocratas nas Américas sendo grande parte desenvolvida dentro do contexto
latino americano. No Brasil assim como em outras regiões da América Latina, na experiência
da escravidão, houve o desenvolvimento, por exemplo, de poderosos movimentos de práticas
religiosas proscritas que foram intensamente influenciadas por um sincretismo das divindades
religiosas africanas. 198
Essas experiências religiosas somadas à dinâmica da vida social entre africanos e
crioulos caracterizada inclusive por uma gama diversificada de conflitos e experiências
culturais implicou na criação de um sistema religioso que proporcionasse uma melhor
possibilidade de sobrevivência e adaptação dos africanos que chegavam e que tinham que
aculturar-se ao novo mundo em que se encontravam.199 Essas questões possibilitaram o
desenvolvimento das práticas de divinação e curandeirismo, levando assim ao surgimento de
especialistas em feitiçaria. Devido à importância que esses ofícios tinham na África e à falta
de uma função assim claramente definida dentro da sociedade branca, era inevitável que a
influencia africana predominasse.
Essas questões já mereceram atenção de antropólogos e historiadores em
diferentes regiões do Brasil. Os estudos sobre as experiências afro-religiosas de norte a sul do
Brasil, têm destacado o fato de que a repressão a essas práticas se dá em sua maioria ao seu
aspecto mágico-religioso, a saber: o curandeirismo e a feitiçaria. 200
No caso da Bahia, a historiografia tem identificado experiências como estas
desde finais do século XVIII. Exemplo ilustrativo foi o caso de Sebastião de Guerra, líder
197
KLEIN, Hebert S. O tráfico de escravos no Atlântico: novas abordagens para as Américas. São Paulo:
FUNPEC, 2004, p. 176.
198
Idem.
199
Idem. Ver também MINTZ, Sidney W., e PRICE, Richard. O nascimento da cultura afro – americana: uma
perspectiva antropológica. Rio de Janeiro: Ed. Pallas / Universidade Cândido Mendes, 2003.
200
A título de exemplo ver:
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africano de um calundu que funcionava na Rua do Pasto, em Cachoeira, em 1785.201
Sebastião já tinha um currículo de processos judiciais sobre sua prática de feitiçaria, pois o
mesmo era bastante conhecido no Recôncavo baiano como poderoso curador. Segundo Luis
Nicolau Parés, o caso do calundu de Sebastião serve como exemplo para entender como os
“curadores-adivinhos” conseguiam uma mínima infra-estrutura coletiva para conduzir suas
atividades religiosas, pois mantinha uma incipiente congregação de participantes em volta de
um culto que funcionava com certa regularidade, porquanto era sabido da comunidade local
que ali se dançava o calundu.202 Mesmo com certa infra-estrutura e notoriedade como foi o
caso do calundu de Sebastião as práticas mágico-religiosas sofriam forte repressão policial.
João José Reis identificou uma série de processos judiciais movidos contra líderes religiosos
no Recôncavo baiano durante todo o século XIX. Segundo ele, “em todos esses casos a
repressão foi efetivada ou pelo menos recomendada em função principalmente do sucesso dos
ditos feiticeiros em atrair prosélitos e clientes, e não só entre os escravos”.203
As práticas afro-religiosas reelaboradas por africanos e crioulos no Brasil, fora
experimentadas em diferentes regiões da Bahia, não apenas na capital e recôncavo açucareiro.
Outras regiões como o sertão baiano ainda é merecedor de estudos que busque evidenciar
essas experiências.
Na última década os historiadores começaram a se interessar pela experiência da
escravidão africana no sertão baiano, o que já soma um conjunto importante de estudos sobre
o negro no Alto Sertão e vale do São Francisco.204 Estes trabalhos já tem revelado algumas
pistas importantes acerca da experiência afro-religiosa e outras práticas produzidas pela
experiência da diáspora negra no sertão baiano. Entretanto, Feira de Santana, ainda não foi
contemplada por essa produção acadêmica. É nesse sentido que se revela a experiência do
poeta negro Aloísio Resende e sua produção sobre as práticas afro-religiosa na década de
1930, explicitando as áfricas do interior baiano.
201
Sobre este caso ver REIS, João José. “A magia jeje na Bahia: a invasão do calundu da Rua do Pasto de
Cachoeira” e PARÉS, Luis Nicolau. A formação do candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia.
202
PARÉS, Luis Nicolau. A formação do candomblé, p. 117.
203
REIS, João José. “Nas malhas do poder escravista: a invasão do candomblé do accú”. In ______ e SILVA,
Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras,
1989, p. 41.
204
NEVES, Erivaldo Fagundes. Uma comunidade sertaneja: da sesmaria ao minifúndio – um estudo de história
regional e local. Salvador: Edufba/Feira de Santana: UEFS, 1997; PIRES, Maria de Fátima Novais. O crime na
cor: escravos e forros no alto sertão da Bahia (1830-1888). São Paulo: Annablume/Fapesp, 2003; PINHO, José
Ricardo Moreno. Escravos, meeiros ou quilombolas? Escravidão e cultura política no Médio São Francisco.
Dissertação de mestrado. Salvador: UFBA, 2000; PINA, Maria Cristina Dantas. Santa Isabel do Paraguassú:
cidade, garimpo e escravidão nas lavras diamantinas, século XIX. Dissertação de mestrado. Salvador: UFBA,
2000.
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2. Feira de Santana: Um Entroncamento de Experiências e Culturas
Localizada na região leste do Estado, a pouco mais de cem quilômetros da capital,
Feira de Santana tem sua história relacionada ao desenvolvimento da referida feira livre, a
qual se tornou importante entroncamento comercial para mercadores de gado provenientes do
Alto Sertão baiano e região do Piauí e Goiás que se dirigiam até o porto da Cachoeira, no
Recôncavo baiano para escoar seus produtos para o mercado da capital.205
A pacata feira livre do século XVIII se tornou ao longo do século XIX um
importante centro de comércio que mediava às relações do Alto Sertão com as regiões do
Recôncavo, por conta de uma localização geográfica estratégica. Na primeira metade do
século XX, a cidade de Feira de Santana era composta, além da sede, por comunidades negras
rurais que não dispõe ainda de estudos reveladores sobre origem e pertencimento étnico-racial
destas comunidades. 206 Alguns autores têm sugerido, em rápidas referências, a existência de
quilombos na região que constituíram muitos destes distritos, desde o século XVIII.207
Entretanto, as migrações que ocorreram na pós-abolição parecem ter sido a maior responsável
quando comparado os índices populacionais.
Relacionando os dados estatísticos de 1872 e 1940 observa-se um aumento da
população negra nessa região caracterizando assim a predominância dos descendentes de
africanos. Em um quadro demonstrativo elaborado pelo historiador Rollie Poppino intitulado
“Grupos raciais em Feira de Santana”, com referência a essas datas, encontram-se as seguintes
cifras: em 1872, a população “branca” soma 14.653 (28%), ao tempo que em 1940 atinge
apenas 10.122 (12%); a população de “negros” em 1872 soma 12.761 (25%); ao tempo que
em 1940 atinge o número de 23.553 (28%); quanto à população de “mulatos”, em 1872 soma
205
Para maiores dados sobre a localização e outros aspectos geográficos ver FREITAS, Nacelice Barbosa.
Urbanização em Feira de Santana: influência da industrialização (1970-1996). Dissertação de mestrado.
Salvador: UFBA, 1998; ALMEIDA, Oscar Damião de. Dicionário de Feira de Santana. Feira de Santana:
Editora Talentos/Gráfica Santa Rita, 2006.
206
Um projeto de pesquisa que procura trabalhar a história dessas populações foi proposto pela parceria entre a
Universidade Estadual de Feira de Santana e Universidade do Estado da Bahia. O projeto intitula-se “Itinerários
da memória: comunidades negras rurais no Paraguaçu (Bahia, 1880-1940)”.
207
Ver MOREIRA, Vicente Diocleciano. Projeto memória da feira livre de Feira de Santana – primeira fase:
texto nº 4. A escravidão em Feira de Santana (primeira parte), memeo. O estudo da professora Maria Ângela
Nascimento sobre a Matinha dos Pretos, comunidade negra rural de Feira de Santana, elevada recentemente à
categoria de distrito, apresenta pistas importantes pra revelar a história de muitas comunidades de quilombo.
NASCIMENTO, Maria Ângela. As práticas populares de cura no povoado de Matinha dos Pretos- BA:
eliminar, reduzir ou convalidar? Tese de doutorado. São Paulo: USP, 1997.
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21.718 (42%) conseguindo alcançar em 1940 a alta cifra de 49. 593, portanto 60% da
população de Feira de Santana.208
Com base nestes dados nota-se que a população de negros e mulatos predomina
em Feira de Santana, na primeira metade do século XX. Poppino chega a afirmar que a
maioria dos habitantes que chegaram após 1872, era de origem africana, indicando assim as
cifras da população negra em Feira de Santana no tempo de Aloísio Resende.
209
A
observação de Poppino sugere que entre o Recôncavo e o Sertão baiano estabeleceu-se um
circuito de mão dupla na constituição das comunidades distritais de Feira de Santana e,
portanto, das experiências culturais reelaboradas entre negros e mestiços reinventores das
práticas afro-brasileiras, constituindo assim uma memória que se é revelada através da poesia
de Aloísio Resende, como o que denomino “Áfricas do meu interior”. Com esta metáfora me
refiro tanto a perspectiva de uma produção simbólica do universo afro-brasileiro na região e
Feira de Santana, quanto a “África” produzida no subjetivo do sentimento de pertença do
poeta.
3. Aloísio Resende e a “África” do Interior Feirense
Em 26 de outubro de 1900, nasceu na cidade de Feira de Santana, Aloísio
Resende. Jornalista e boêmio, Zinho Faúla, como era apelidado, ficou conhecido dos leitores
do jornal Folha do Norte por suas poesias publicadas entre finais da década de 1920 até o ano
de 1940, pois o poeta faleceu em janeiro de 1941.210 Não viveu sempre em Feira de Santana,
fizeram parte de sua trajetória cidades como Recife, em Pernambuco, Maceió, no Estado de
Alagoas, São Luiz do Maranhão e Salvador, capital baiana, na qual, inclusive, durante a
década de 1920, trabalhou no jornal A Hora.211
No início da década de 1930 retornou a Feira de Santana e ingressou como
jornalista no Folha do Norte, importante periódico de circulação local, onde atuou até seus
últimos dias de vida.212 Aloísio foi boêmio, freqüentador das quitandas e cabarés, mas
208
POPPINO, Rollie. Feira de Santana. Salvador: Itapoã, 1968, p. 248. Destaco as categorias entre aspas por
serem nomeadas pelo próprio autor.
209
POPPINO, Rollie. Feira de Santana, p. 18.
210
Vale ressaltar que Aloísio Resende foi autor de conhecidas marchinhas carnavalescas, muitas das quais
publicadas no mesmo periódico. Os dados biográficos que faço referência aqui e em outras partes da tese foram
extraídos de MORAES, A. A. V., PORTO, C. M., ASSUNÇÃO L. C. (org.) Aloísio Resende: poemas com
ensaios críticos e dossiê. Feira de Santana: UEFS/PPGLDC, 2000.
211
PORTO, C. M. “Notas à margem”. In: MORAES, A. A. V., PORTO, C. M., ASSUNÇÃO L. C. (org.)
Aloísio Resende: poemas com ensaios críticos e dossiê, op. cit., p. 85.
212
Idem, p. 87.
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também dos terreiros de candomblés, de onde muita inspiração tirou para a composição de
suas poesias. Segundo Ana Angélica V. de Morais, “o olhar de Aloísio Resende sobre os
elementos que constituíam o suporte de base afro, na formação da cidade, se explicita em seus
versos”.213 De fato o Jornal Folha do Norte publicou nos últimos dois anos de sua vida, 1939
e 1940, um conjunto de poesias de autoria de Aloísio Resende, as quais dão visibilidade ao
universo da diáspora negra em Feira de Santana, com destaque a elementos representativos da
cultura afro-religiosa, aos saberes mágicos de cura, assim como aos sambas que ocorriam nas
festas de terreiro daquele período. Ainda segundo Ana Angélica V. de Morais, o poeta era
freqüentador do terreiro de uma mãe-de-santo conhecida por Filhinha, esta foi imortalizada
nas estrofes de Aloísio Resende:
MÃE-FILHA
Entre a opala do céu e a esmeralda da terra,
Alvejando na várzea a luz do sol que brilha,
Vê-se, frente ao levante, a casa de mãe-filha,
Que da negra macumba os mistérios encerra.214
Nota-se a admiração do poeta por mãe Filhinha, denominada aí de “Mãe-Filha”.
Não se trata de uma simples narração e sim do depoimento de alguém de dentro, um “nativo”,
como diriam os antropólogos. Em diferentes momentos dessa poesia, como em outras
composições, o poeta revela o universo de práticas afro-brasileiras como nenhum outro o fez
em Feira de Santana neste período, assim caracterizando-se como testemunho potencial da
memória afro-diaspóricas na região, rompendo assim com os silêncios da história sobre a
experiência africana em Feira de Santana. Aloísio, que já foi denominado o “poeta contra a
ordem”, era muitas vezes controverso na opinião de muitos colegas jornalistas de ofício,
contemporâneos do mesmo semanário feirense.215 Enquanto muitos se ocupavam em
denunciar as práticas de curandeirismo ao mesmo tempo em que cobravam ação mais
enérgica da polícia contra os candomblés, o poeta explicitava em sua lírica poesia publicada
nas páginas do mesmo periódico os saberes mágicos de mãe Filhinha:
De encantados sem par a prestimosa dona,
Sacerdotisa, enfim, de Nanan-burucu,
213
MORAES, A. A. V. “A africanidade na poesia de Aloísio Resende”. In: MORAES, A. A. V., PORTO, C.
M., ASSUNÇÃO L. C. (org.) Aloísio Resende: poemas com ensaios críticos e dossiê, op. cit., p. 100.
214
MORAES, A. A. V., PORTO, C. M., ASSUNÇÃO L. C. (org.) Aloísio Resende, p. 54 (grifos das
organizadoras). Ver também Folha do Norte, Feira de Santana, 27/04/1940, p. 1.
215
Quanto à referida denominação Ver OLIVEIRA, C. F. R. M. “Um poeta contra a ordem”. In: MORAES, A.
A. V., PORTO, C. M., ASSUNÇÃO L. C. (org.) Aloísio Resende, op. cit.
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Que favores iguais recebe de omolu,
É a melhor curandeira, aqui, de nossa zona.216
O poeta destaca o incomparável valor da mãe-de-santo identificando inclusive o
seu prestígio com diferentes orixás, o que lhe garante o posto de melhor curandeira. Mãe
Filhinha parecia ser de fato considerada a melhor curandeira da região de Feira de Santana,
por certo período. A avaliação de Aloísio Resende, em sua poesia, é compartilhada pelas
memórias de Antônio do Lajedinho:
A “rezadeira” mais conhecida e com tradição de pitonisa [adivinhação]
infalível era a curandeira ou mãe-de-santo conhecida por mãe Filhinha.
Residia em um pequeno povoado onde era a maior autoridade.
Semanalmente dançavam o candomblé e periodicamente faziam uma festa
em louvor a Iansã, para onde convergiam todos os moradores da região.217
Lajedinho afirma o que havia dito setenta anos antes Aloísio Resende: mãe
Filhinha tinha autoridade reconhecida na região.218 É importante destacar que o narrador
(trata-se de uma crônica memorialista) estabelece como equivalente curandeira e mãe-desanto, destacando ainda a festa de Iansã oferecida no terreiro de mãe Filhinha, talvez fosse
esse orixá um dos principais daquele terreiro, pois se repetem as referências a ela, não
escapando inclusive da poesia de Aloísio Resende:
E pula na fogueira feita em brasa
A mulher, sobre a qual baixou Iansã.
E o fogo, aos seus pés nus, é coisa vã,
Pois a dona do raio o gesto apraza.219
O pertencimento religioso de Aloísio Resende o expunha muitas vezes entre os
seus pares letrados, criando inclusive alguns obstáculos para sua ascensão social. Lajedinho
registra em suas memórias um fato que informa aos leitores que Aloísio Resende foi
“discriminado como cidadão e como poeta por um único motivo: era umbandista”.220
216
MORAES, A. A. V., PORTO, C. M., ASSUNÇÃO L. C. (org.) Aloísio Resende: poemas com ensaios
críticos e dossiê, p. 55. (grifo das organizadoras)
217
LAJEDINHO, A. “Parteiras, rezadeiras e curandeiras”. In: A Feira no século XX – memórias. Feira de
Santana: Talentos, 2006, p. 43-44. (grifos meus).
218
Lajedinho é o pseudônimo do escritor Antônio Moreira Ferreira. Membro do Instituto Histórico e Geográfico
de Feira de Santana tem nos últimos anos publicado suas memórias, tornando-se importante testemunho dos
acontecimentos da “Feira antiga”.
219
RESENDE, A. “No Bembé”. In: MORAES, A. A. V., PORTO, C. M., ASSUNÇÃO L. C. (org.) Aloísio
Resende, op. cit, p. 60. (grifo das organizadoras). Ver também Folha do Norte, Feira de Santana, 29/06/1940, p.
1.
220
LAJEDINHO, A. “Os candomblés”. In: A Feira na década de 30 – memórias. Feira de Santana: s/n, 2004, p.
93.
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Lajedinho, na verdade, se refere ao candomblé e denuncia uma discriminação que
pode ser interpretada como preconceito racial e negação do culto afro-religioso, característico
de determinado seguimentos social e político sociedade de então, pois como lembra o
memorialista, ele “freqüentava todos os terreiros da região e suas poesias faziam apologia ao
candomblé”. Cabe lembrar que Aloísio era um homem negro e pobre que incomodava com
sua arguta inteligência e habilidade de escritor em uma sociedade de brancos e mestiços que
nem sempre tinham o domínio das letras, o que o poeta fazia muito bem. Aloísio era um
testemunho das áfricas representadas nas experiências culturais e religiosas do interior baiano.
Em outubro de 1940 um contemporâneo de Aloísio Resende, já percebendo sua
saúde debilitada, escreveu para o jornal Folha do Norte, publicando uma matéria
extremamente curiosa na qual revela os elementos da diáspora que caracterizam a postura do
poeta como descendente confesso do povo de além mar:
Meu caro senhor, admiro seus versos que dizem dos costumes dessa gente,
cujos descendentes merecem instrução e educação, porque as classes
trabalhistas no Brasil são constituídas por crioulos e mestiços, em sua
maioria. Guardam ainda seus cânticos guerreiros, hinos e saudações a Deus,
e, por um egoísmo próprio da raça, chamam seus santos Xangô, lemanjá,
Õgum, Abaluaé, etc. sem que por isso mereçam pena de morte.221
O texto acima explicita um discurso que, ao mesmo tempo em que elogia Aloísio
Resende e reconhece seu compromisso com as questões relacionadas ao universo afroreligioso, se manifesta intolerante ao culto afro-brasileiro, evidentemente ao qual estava
vinculado o poeta. Entretanto, o trecho citado vale aqui como referência de um outro
testemunho da representação que a diáspora africana produziu em Feira de Santana, a África
simbólica que circunscrevia o universo social, político e acima de tudo cultural que viveu o
poeta negro Aloísio Resende. Era a “África” do seu interior, cantava em suas poesias, a
“África” de Feira de Santana da primeira metade do século XX.
4. A Guisa de Conclusões: Diáspora Negra e a (re)Escrita da História Feirense
A experiência africana no sertão baiano a pouco vem sendo revelada pelos estudos
históricos. A maior parte desses estudos se concentra no século XIX buscando identificar as
peculiaridades do ser “escravo” no sertão baiano e, por mais que esses autores não tenham
como objetivo as relações sociais e políticas em torno das práticas simbólicas de africanos e
221
Vicente Reis, Jornal Folha do Norte, 31/10/1940, p.1.
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crioulos revelam pistas importantes para descortinar a versão oficial da história dessas cidades
que compõem esse todo chamado sertão.
A história de Feira de Santana se enquadra perfeitamente nessa problemática, ela
ainda está refém de uma memória que estabelece a feira e o comércio de gado como único
parâmetro de compreensão das experiências vivenciadas pelos indivíduos que produziram a
história da mais importante cidade do interior baiano, e como diria Thales de Azevedo, uma
das mais importantes do nordeste brasileiro.
Os estudos em andamento já têm revelado os reclames de uma história-problema
para Feira de Santana, na qual uma história não se faz sem experiências humanas. Fala-se em
um comércio mas onde estão os mercadores? se fala em gado, qual o lugar dos vaqueiros? E
ao falar em experiências humanas não há mais como negar a eminência das populações afrodiaspóricas na formação de Feira de Santana, portanto, a diáspora negra reclama uma reescrita
da história feirense, inclusive já sugerida pela obra de Aloísio Resende.
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A “INGRATIDÃO” DE MARIA E O “EXEMPLO” DE JOSEFA OU OS
TRAUMAS DE UMA ELITE EM DECLÍNIO
Marcelo Souza Oliveira – UNEB
[email protected]
Este texto tem como objetivo analisar o conto Violeta & Angélica, publicado em 1906, pela
ex-senhora de engenho Anna Ribeiro de Araújo Góes Bittencourt (1843-1930), no Jornal de
Notícias [Salvador-Ba]. A narrativa aborda as “desventuras” de uma família senhorial no dias
seguinte ao 13 de maio de 1888. Sob uma ótica paternalista a autora constrói dois arquétipos
nas personagens Maria e Josefa, ex-escravas da fictícia família Bastos. Enquanto a primeira
abandona sumariamente os senhores após tomar conhecimento da Lei Áurea, a segunda
repudia o comportamento “ingrato” da amiga e resolve permanecer no engenho para continuar
servindo aos ex-senhores em “agradecimento” por terem oferecido “um melhor cativeiro”.
Este conto demonstra o imaginário social de uma elite ressentida com um processo
abolicionista que não aconteceu sob o seu controle, cujas experiências foram traumáticas,
conforme se infere também nas palavras e reações dos Bastos, no decorrer da trama.
Documentos sobre a família de Anna Ribeiro, indicam que o mesmo comportamento também
foi visto em seu antigo engenho, no ano de 1888, o que reforça a idéia de que a literatura foi
utilizada como expressão das representações e dos sentidos que ela conferiu às suas próprias
experiências. Assim, utilizando o aporte conceitual e metodológico da História Cultural
intenciona-se perceber as representações e os (re)sentimentos de uma elite que viu no fim do
trabalho escravo o desfecho de sua própria decadência.
Palavras-chave: Literatura; História: pós-abolição; paternalismo; imaginário.
No rodapé do Jornal de Notícias, do dia 19 de novembro de 1906, encontram-se
as primeiras páginas de mais um conto:
Corria o ano de 1888.
Era um domingo. Na varanda de sua vivenda campestre, passeava o Sr.
Alfredo Bastos, com ar triste e preocupado, em contradição com sua
fisionomia, habitualmente calma e prazenteira.
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Era um homem de quarenta e tantos anos, cheio de corpo, abdômen um
pouco desenvolvido, fronte serena, porque ele se aproximava da velhice, a
percorrer uma estrada, larga e plana, apenas interrompida, de longe em
longe, por uma moita de espinhos, porque essas nunca deixam de existir no
percurso da vida.
[...]
É que se dera o golpe de estado, abolindo a escravidão ao Brasil, e ele temia
pelos resultados já apreciados, ver a sua propriedade cair em decadência,
pela falta de braços, e sua família querida experimentar as privações a que
não estava habituada (BITTENCOURT, 1906).
O trecho publicado pelo jornal soteropolitano é parte de Violeta & Angélica, de
autoria da escritora Anna Ribeiro de Araújo Góes Bittencourt (1843-1930)222. O Conto narra a
história das famílias senhoriais nos fins do século XIX. Nele as intenções da autora eram
aparentemente bem definidas: instruir e orientar as suas patrícias, expondo modelos de
comportamento.
A história se passa no Recôncavo baiano no ano de 1888 e retrata a “difícil”
situação dos Bastos, uma numerosa e destacada família de senhores de engenho que sofre o
“golpe” dado na sociedade açucareira. O “golpe”, pelo que se entende na narrativa, consistia
na decisão do governo da Princesa Isabel e de “seus ministros” na “classe dos agricultores do
Recôncavo”, quando libertou os escravos em plena colheita. No decorrer do conto, a autora
discute o 13 de maio e o 15 de novembro, construindo o segundo evento como conseqüência
do primeiro. Enquanto o governo teria sido responsável pelo golpe nos senhores de engenho,
estes teriam respondido à ação “imprevidente” da Princesa com uma “revolução”, a
Proclamação da República.
Para reforçar esta idéia, são construídos tipos sociais de senhores de engenho que
ou se comportaram “resignadamente” ou de forma “imprudente”. Assim, são descritos os
irmãos Alfredo e Alberto Bastos: enquanto o primeiro reagiu à abolição apoiado nos valores
da família e do trabalho; o segundo tem uma vida desregrada, vende o seu engenho e muda-se
para São Paulo onde perde toda a sua fortuna num investimento na cultura do café. Nesta
linha inscreve-se a literatura de Anna Ribeiro: ela constrói modelos de comportamento para os
leitores e leitoras egressos da sociedade escravista da Bahia nas primeiras décadas da
222
A autora assinava suas obras apenas como Anna Ribeiro. D. Anna assinava o sobrenome da mãe em seus
textos o que não era normal em sua época. O fato de não escrever nem o nome do marido, nem o do pai pode ter
muitas explicações, uma delas pode estar ligada ao orgulho e respeito que tinha pelo Bisavô - Major Pedro
Ribeiro – ao qual dedicou o primeiro volume do seu livro de memórias. Outra poderia ser em decorrência da
enorme consideração e respeito que tinha pela mãe – Anna da Anunciação Ribeiro – que dizia ser uma “santa”.
Assim, daqui para frente será usado o nome que ela assinava em suas obras.
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República, tomando como referencial a sua realidade e a sua vivência como senhora de
Engenho.
Anna Ribeiro pertenceu a uma das famílias mais tradicionais da Bahia. Esse grupo
familiar estava ligado a outros como os Berenguer, os Calmon, os Mariani etc. Foi no século
XIX que os Araújo Góes se instalaram nos arredores de Santana do Catu, formando o que
Kátia Mattoso chama de clã. Eram inúmeros “primos e primas”, “tios e tias”, cujo poder
social e econômico foi se instituindo na medida em que, ainda na primeira metade daquele
século, a economia açucareira ia crescendo. Assim, pode-se considerar a familiar de Anna
Ribeiro como uma representante da aristocracia rural baiana, que enriqueceu com a
exportação de cana-de-açúcar e com a exploração da mão-de-obra escrava.
A sociedade baiana do século XIX se apresentava de forma fortemente
hierarquizada. No topo da sociedade do Recôncavo se encontrava uma aristocracia rural que
aspirava à condições de nobreza nos moldes do que se verificava em Portugal. Kátia Mattoso
reitera que no Brasil uma pessoa nobre poderia ser reconhecida pela sua linhagem ou pela
colocação de seus bens e educação a serviço da pátria. Mesmo que um indivíduo não fosse
fidalgo de linhagem (filho d’algo), poderia ser “agraciado” pelo imperador de acordo com a
sua disposição em “servir” ao império (MATTOSO, 1997: 154). Nos Longos serões do
campo: infância e juventude, Anna Ribeiro faz uma elucidativa referencia a esse respeito:
[...] os Araújo Góes, do Catu, que ali ocupavam vasta área de território,
gozaram sempre da reputação de homens probos, cumpridores de seus
contratos, nunca desmentindo da espécie de aristocracia formada pela classe
muito considerada dos senhores de engenho, que era a segunda nobreza do
país, como era na França a magistratura. Tendo gozado de grandes
privilégios nos tempos coloniais, conservavam ainda bastantes garantias no
Império, como ainda vi na minha mocidade (BITTENCOURT, 1992: 01).
(Itálico meu).
A tentativa de atribuir status de nobreza ao ramo paterno de sua genealogia se
estabelece de maneira aparentemente desinteressada, mas se revela tendenciosa logo nas
primeiras linhas do discurso, afinal os Araújo Góes eram homens “probos” (retos, dignos e
incorruptíveis), “cumpridores de contratos”, pertencentes à classe muito “considerada”. O
reconhecimento do espírito distinto que, segundo Anna Ribeiro, todos atestavam, era o
primeiro de seus argumentos em busca de um auto-reconhecimento de nobreza. A família
Araújo Góes é uma das mais antigas e tradicionais da Bahia.
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Entretanto, nas últimas décadas do século XIX a economia açucareira deu sinais
de desgaste. Desde o início da década de 1870, a lavoura mergulhou numa crise financeira
que se estendeu até o final do século XIX. A queda dos preços do açúcar nos mercados
externos e a concorrência do açúcar de beterraba diminuíram o volume de exportação do
produto. Para agravar a situação, a lavoura açucareira, extremamente dependente do trabalho
escravo, vinha sofrendo as conseqüências da extinção do tráfico africano, em 1850, e das
sucessivas leis emancipacionistas das décadas de 1870 e 1880 (FRAGA FILHO, 2006: 34).
Esse processo é perceptível na própria trajetória da nossa autora:
Circunstâncias supervenientes e imperiosas exigiram sua volta a condição de
senhora de engenho. No exercício dessa missão construtora das finanças da
família, revelou-se, como sempre, superiora, inflexível quanto ao
cumprimento do dever, mas profundamente humana e generosa para todos
aqueles que dela dependiam, até para os escravos (MACHADO, 1952: 16).
Mesmo se considerando “abolicionista”, Anna Ribeiro sabia da importância que
os escravos tinham no funcionamento do engenho. A “generosidade” de Anna Ribeiro ao que
parece não conseguiu evitar que em 1879 ela hipotecasse cerca de dez cativos, juntamente
com algumas propriedades rurais pertencentes à família223. Provavelmente essa transação
deve ter sido feita para tentar amenizar as tais “circunstâncias supervenientes” a que se referiu
o seu biografo na citação acima. Anos depois a abolição dos escravos praticamente pois fim à
estas circunstâncias, visto que sem preparação para a transição de mão-de-obra os senhores de
engenho viram sua atividade econômica ir à bancarrota.
A extinção do trabalho servil foi um processo que terminou com o decreto de 13
de maio de 1888. Mesmo que a abolição tenha consistido num processo que se estendeu por
praticamente durante toda a segunda metade do século XIX, o 13 de maio de 1888
estabeleceu-se como um marco na memória social daqueles que à viveram, sobretudo dos
libertos e dos senhores. Para os senhores, Hebe Maria Matos avaliou que a abolição teve um
caráter traumático, pelo seu sentido irreversível e desarticulador de antigas relações de
subordinação e controle social (ALBUQUERQUE, 2004: 89). Na Bahia, há registros de
situações extremas de senhores que se suicidaram após o 13 de maio (FRAGA FILHO, 2006:
132). A mensagem enviada pelos telégrafos para o interior baiano causou apreensão nas elites
locais, uma vez que, a abolição não aconteceu da maneira que elas desejavam. As
reivindicações feitas por parte dos proprietários baianos referente à indenização a ser paga
223
ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA, Seção Judiciária, Livro 586, p. 20.
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pelo governo também não foram ouvidas. Para completar, muitos agricultores reclamaram que
a medida emancipadora foi tomada pela Coroa Brasileira sem considerar as especificidades
das províncias do norte, uma vez que era tempo de colheita quando se deu o decreto da
Princesa Isabel. O trauma com o 13 de maio e suas implicações fica patente nos discursos dos
membros de Anna Ribeiro, como atesta sua neta Anna Cabral:
Assim, continuou seguindo a sua vocação até 1888 quando veio a abolição.
Na sua família a tradição de humanidade entre os senhores e escravos era
constante.
Meus avós possuíam cera de 100 escravos, eles arruinados, pode-se dizer,
com o decreto de 13 de maio, mostravam-se inteiramente serenos e
justificavam a Princesa – pelas injustiças que haviam presenciado.
Minha avó contava que o 13 de maio fora um dia de festa no Engenho.
Danças, flores, todos manifestando gratidão aos senhores que
compartilhavam da alegria dos escravos. Depois, vieram as ingratidões,
abandono do trabalho, a paralisação do Engenho, mas ela e meu avô não
desanimaram (CABRAL, S/D).
Nos engenhos da família Araújo Góes, após os festejos do dia 13 de maio de
1888, vários negros abandonaram as senzalas e dirigiram-se a cidade de Salvador para tentar
uma nova vida na capital. Em plena época de colheita, os senhores se viram sem mão-de-obra
para procederem a moagem. Na sua já declinante situação econômica, a extinção da
escravidão forçou vários membros da família a tentar a vida na capital, como funcionários
públicos.
Tomando como referência que a escritura de um indivíduo é condicionada pelo
local de onde ela escreve, pode-se inferir que as histórias que Anna Ribeiro retrata, detém a
memória social da elite que a que ela fazia parte. Pressupõe-se que olhar que ela lança sobre a
Bahia dos fins do século XIX e que servem de pano de fundo para a construção da trama
Violeta & Angélica, é imersa no imaginário senhorial acerca do seu passado.
Um olhar sobre a obra de Anna Ribeiro, no momento da escrita e/ou de suas
publicações, revela que ela teve três fases de publicação distintas que podem fornecer indícios
das características de suas obras. Na primeira fase, ela publicou dois romances, e ainda antes
da abolição da escravatura: A filha de Jephté (1882) e O Anjo do Perdão (1885). Após
dezesseis anos, a autora publicou Helena (1901), dando início a segunda fase de sua escritura.
A partir daí a autora publica mais quatro obras: os contos Dulce e Alina (1901), Violeta &
Angélica (1906), Marieta (1908) e, finalmente, o romance Letícia (1908). A autora volta a
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publicar treze anos depois, com Abigail (1921), deixando uma obra inédita que teria o título
de Suzana.
Nancy Rita Vieira Fontes afirma que Anna Ribeiro produziu ao longo da sua
carreira no mundo das letras um projeto literário que tinha três objetivos básicos: construir um
romance para mulheres; o intuito de escrever romances que tivessem um caráter formativo; e
criar uma obra que enfatizasse aspectos da realidade baiana (FONTES, 1995: 78). Nas
histórias ficcionais da romancista focam-se situações onde as famílias senhoriais têm de se
adaptar às mudanças verificadas na sociedade baiana no período de decadência da cultura
canavieira e do processo abolicionista.
É paradoxalmente esta intensa “aparência” de realidade que revela a intenção
ficcional ou mimética em Anna Ribeiro (CÂNDIDO, 1968: 20). Assim, permanece a
reinterpretação dada por ela nas suas escrituras, procurando dar “tons reais” a uma obra
imaginada a partir de sua realidade de vida. A própria Anna Ribeiro menciona esta questão
quando afirma na dedicatória feita à sua prima Mariotti de Araújo Góes, em Letícia:
“Acharás, porém, princípios de sã moral, bons exemplos tirados de fatos, nem todos
imaginários e sim colhidos na experiência e observação”. (BITTENCOURT, 1908: III)
Antonio Cândido considera que na ficção em geral, também na de cunho trivial, o
raio de intenção dirige-se à camada imaginária, sem passar diretamente as realidades
empíricas possivelmente representadas (CÂNDIDO, 1968: 42). As questões que concernem
ao imaginário de Anna Ribeiro como suporte para composição de suas narrativas têm
relevância nodal dentro da perspectiva de um estudo que propõe a análise dos textos literários
e das visões de uma ex-senhora de engenho. O vínculo entre o autor e a sua personagem
estabelece um limite à possibilidade de criar, à imaginação de cada romancista, que não é
absoluta, nem absolutamente livre, mas depende dos limites do criador. Ou seja, o imaginário
dos indivíduos é engendrado por uma série de experiências e discursos inerentes à realidade
do autor.
Sandra Pesavento lembra que o imaginário224 deve ser percebido como um
dinamismo organizador, dinamismo este que se converte em fator de homogeneização da
representação. (PESAVENTO, 1995: 21) Longe de ser mera reprodução ou espelho da
realidade, ela é em si elemento de transformação do real e de atribuição de sentido ao mundo.
224
O Imaginário é aqui tomado como um conjunto de imagens e relações de imagens que constituem o capital
pensante do homo sapiens. (PESAVENTO, 1995: 17).
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Faz parte ainda de um campo de representação225 e, como expressão do pensamento,
manifesta-se por imagens e discursos que pretendem dar uma definição da realidade.
É nesta perspectiva que o conto Violeta & Angélica pode ser lido, se a intenção
for utilizá-lo como fonte de estudo para a História. Em suas linhas estão inscritas as
representações de uma ex-senhora de engenho que insere na sua narrativa a memória social do
seu grupo social acerca dos seus próprios traumas. Sendo a autora uma senhora de engenho
que atendia aos papéis que lhe conferidos no seio da família senhorial, o seu olhar acerca da
abolição da escravatura oferece uma leitura bastante peculiar sobre este evento.
A simples falta de serviçais para trabalhar na cozinha da casa-grande se
transforma numa “cena” dramática digna de inúmeros comentários por parte dos senhores e
senhoras de engenho. A (ex)senhora de engenho Anna Ribeiro lança mão de seus atributos de
escritora para construir modelos e contra-modelos de subalternos. Assim, existe o “bom” e o
“mau” ex-cativo e ele é caracterizado de acordo com a sua subordinação incondicional ou não
ao seu ex-senhor. Essa subordinação, na ótica paternalista, deve ser uma forma de
agradecimento pelo “bom cativeiro” que tiveram sob o poder das “piedosas famílias
senhoriais”. Dessa forma, enquanto uma é o modelo idealizado pelos senhores e se mostra tão
“agradecida” a ponto de trabalhar de graça e de atender aos seus desmandos; a segunda, pelo
contrário, é demonstrada pela autora como “rebelde” e ingrata, por que “abandona” seus
senhores logo após tomar consciência da Lei Áurea. Anna Ribeiro discute as posturas
adotadas pelos “bons” e pelos “maus” ex-cativos e constrói estigmas e eufemismos que
ajudam a compor esses tipos. As “Marias” e “Josefas”, como as personagens do conto Violeta
& Angélica, fizeram parte não só da ficção de Anna Ribeiro, como também do imaginário dos
ex-senhores e senhoras de engenho no Brasil.
Silvio Humberto dos Passos Cunha menciona que o controle sobre os libertos e a
necessidade de mantê-los sob a disciplina do trabalho eram preocupações centrais das elites
dirigentes nas sociedades pós-escravistas. Entretanto, observam-se diferenças acerca dos
mecanismos adotados para controlá-los, o que, por sua vez, guarda uma relação fundamental
com o tamanho do passado escravista a ser administrado. A atmosfera dos primeiros dias de
liberdade e a reação de perplexidade e indefinição dos oligarcas e seus porta-vozes
sinalizavam, em todo momento, que a economia baiana, em particular o Recôncavo,
caminhava para a débâcle caso não fossem adotadas medidas urgentes com vistas à
reorganização do trabalho, fosse compelindo o liberto ao trabalho ou arregimentando novas
225
Aqui a noção de representação deve ser tomada a partir da concepção de Jacques Lê Goff: “é tradução mental
de uma realidade exterior percebida e liga-se ao processo de abstração”. (Apud PESAVENTO, Op. Cit, p. 15)
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fontes de mão-de-obra (CUNHA, 2004: 126). Com a Lei do 13 de maio no entanto, muitos
ex-cativos dirigiram-se para a cidade de Salvador, ou para outros locais abandonando o local
onde viveram o antigo cativeiro, provocando uma desestrutura nas antigas lavouras e não só
lá, mas como registra Anna Ribeiro em sua prosa, muitas ex-senhoras se ressentiram de ter
que fazer os serviços domésticos, antes atribuídos aos escravos. O Barão de Vila Viçosa
registra a situação das “pobres” senhoras nos tempos seguintes a abolição:
Quando mães de famílias qualificadas viram-se obrigadas a ir para a
cozinha, quando crianças ficarão sem amamentação, viúvas octogenárias
foram forçadas a esmolar o pão pelas portas, quando os próprios libertos
incapazes de trabalho, abandonados pelos filhos morreriam de fome e se não
contassem com a caridade de seus ex-senhores, estava eloqüentemente
demonstrado que a lei 13 de maio era um ponto final à colheita da safra.
(Barão De Vila Viçosa, 1889)
O artigo do Barão reforça aquilo que Anna Ribeiro registrou sob o viés da exsenhora de engenho. Demonstra também a visão dos ex-senhores sobre a sorte dos negros,
uma vez fora dos domínios dos antigos senhores. Descontando a manipulação discursiva
empregada pelo Barão para convencer os leitores do Diário da Bahia de que a abolição da
forma com que foi precedida pelo Estado brasileiro foi prejudicial para ambos os lados o que
fica claro também é o ressentimento do ex-senhor em verificar que as elites femininas dos
engenhos de açúcar não teriam mais a “Corte de subalternas” ao seu redor para realizar os
serviços domésticos.
O Barão de Vila Viçosa sintetiza em parte o discurso adotado por Anna Ribeiro na
construção das personagens Maria e Josefa. Para, além disso, verifica-se também certo
afinamento entre os discursos dos ex-senhores. Em Violeta & Angélica as senhoras são
obrigadas a trabalhar nas funções que antes eram atribuídas as escravas, assim como o Barão
se ressentia em ser obrigado a "testemunhar” este cenário. Nesse caso, vale destacar a
permanência desse discurso na memória social da classe dos ex-senhores e de como eles se
preocuparam em dar uma versão sua da história, culpando o governo e os ex-cativos pela sua
derrocada econômica e social. Para isso, as estratégias de estigmatização adotadas pela ficção
de Anna Ribeiro são eficazes em transformar ex-cativos em “ingratos” ou “exemplos”. Como
se pode perceber nos tipos sociais das ex-escravas da Família Bastos em Violeta & Angélica.
Na narrativa, a “ingratidão” dos ex-escravos era na verdade a demonstração pelos
cativos de que suas vidas já não dependiam da vontade dos senhores. O trauma senhorial
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consiste na impossibilidade da manutenção da condição básica de sua autoridade, que
consistia em mandar e ser acatado. O que na visão senhorial eram “pirraças”, “manhas” e
“ingratidões” dos negros, para estes era a simples consumação legal da sua liberdade. Mas a
ideologia paternalista tende a reverter o sentido histórico desse acontecimento a partir de sua
ótica.
Daí a “vitimização” dos senhores e a “demonização” dos escravos na literatura de
Anna Ribeiro. Tratava-se de uma estratégia para estigmatizar os fatos e os eventos em
desabono do discurso do dominador. O jogo de palavras, enunciado nas suas narrativas,
fortalece essa idéia: os “bons” senhores que sempre ajudaram os seus escravos salvando-os e
curando-os das doenças, criando-os quase como filhos, são traídos e abandonados pelos
“ingratos” homens e mulheres que vão embora sem nem ao menos dar-lhes o tempo para
serem substituídos. Nesse caso o destaque também é para as relações entre senhores e
escravos dentro do ambiente doméstico, pois ele indica uma leitura de alguém que era
especialista no ambiente privado dentro do sistema patriarcal: a senhora de engenho.
É manhã de domingo, em Violeta & Angélica e as mulheres componentes da
família Bastos suam no fogão e na arrumação da casa grande. Só não trabalham mais do que
no tempo dos escravos, pois “a fiscalização era uma tarefa fatigante para quem não costumava
castigar os cativos e queria tudo a tempo e a hora”. A vida parece perfeita não fora uma
conversa entre Alfredo e D. Flora, sua esposa, acerca da família de seu irmão:
- Rosinha mandou-me dizer que não os esperasse para o almoço; que viriam,
porém, antes do meio-dia.
- Deus permita, disse D. Flora, que passem mais distraídos.
Que vida levam aquelas criaturas! Sempre a se queixarem, sempre de mau
humor! Isto é falta de resignação com a vontade divina.
- Na verdade, minha amiga, viver-se sempre envaidecido é insuportável!
Mas, às vezes... não se é santo. Hoje, fiquei furioso quando vi aquela
endiabrada vir despedir-se sem te haver avisado com antecedência, para
procurares outra ama. (BITTENCOURT, 1906)
D. Flora reclama do mau humor do seu irmão e das suas lamúrias ante a nova vida
sem o braço escravo. Segundo ela, eles deveriam se conformar com a “vontade divina”.
Alfredo, porém, afirma entender esse sentimento, e menciona o abandono da negra Maria, que
trabalhava para ele na casa-grande antes da Lei Áurea, mas que havia partido para a Cidade da
Bahia, logo quando soube da validação da lei. A liberta Maria encaixa-se no perfil daqueles
que, como Walter Fraga Filho menciona, entendiam que a migração significava distanciar-se
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do passado da escravidão (FRAGA FILHO, 2006: 314). Alfredo Bastos conta que a negra
fora embora sem nem ao menos despedir-se, mas o verdadeiro motivo da revolta do chefe dos
Bastos se revela nas linhas seguintes:
Ela, a quem sempre trataste mais como mãe do que senhora! A quem
salvaste a vida pelos desvelos que lhe prodigalizaste, há pouco tempo,
naquela grave moléstia!
- Ora Alfredo, nunca devemos esquecer que o dia do beneficio é a véspera da
ingratidão; e quando fizermos qualquer bem, procuraremos ter sempre os
olhos de Deus, nunca esperando o agradecimento das criaturas. Tendo isso
em mira, jamais nos surpreenderá o que deu com ela, e tem se dado coma a
maioria dos escravos. Demos graças a Deus de não sofrer com isso o que
outros sofrem. (BITTENCOURT, 1906)
Como foi dito, Maria representa os libertos que depois da Lei de 13 de maio
preferiram abandonar o antigo local do cativeiro em busca de um novo lugar para levar sua
vida sem a necessidade de manter relações de dependência com os antigos senhores. Além
disso, ela traduz a imagem do negro abandonando o engenho e, na visão dos senhores,
engrossando as fileiras dos desempregados e vadios das cidades. O temor das elites baianas
está sintetizada nessa personagem. A imagem do abandono das senzalas era uma projeção de
antigos medos senhoriais, algo que se intensificou nas últimas décadas do século XIX
(FRAGA FILHO, 2006: 312-313). Após abolição essa imagem continuou presente e como
visto nos contos de Anna Ribeiro ainda duas décadas depois ela permaneceria na memória
social dos antigos senhores.
Um “favor” concedido por Dona Flora, e uma consecutiva não retribuição da
negra Maria, explica a sua ingratidão. Ou seja, na perspectiva senhorial, a dependência dos
subalternos fortalecia-se, através de uma rede de concessão de favores, que deveriam
culminar na sua “gratidão”. No desenrolar da narrativa, entra em cena outra negra chamada
Josefa que, ao contrário de Maria, reconheceria os favores dos antigos senhores, e pagaria
tanta “bondade” com trabalho condicional.
Enquanto saboreava alegremente, entrou uma mulher, de cor parda, que
abraçou D. Flora pelos joelhos, á moda das escravas.
Depois de cumprimentar do mesmo modo as meninas, pediu a benção ao Sr.
Alfredo Bastos. Todos responderam-lhe amavelmente, e a esposa do
lavrador perguntou-lhe:
- Então, Josefa, você ainda por aqui? Disseram-me que tinha ido para a
Bahia.
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- É verdade, Yayá, que desejo ir; vossemecê bem sabe que tenho lá minha
filha. Mas, diga-me uma coisa: é certo Maria ter-se ido embora?
-É verdade, Josefa.
Oh! Meu Deus, exclamou a mulata, não podia acreditar?
O lavrador tomou aquela exclamação como um fingido sinal de sentimento,
para ocultar o gosto que a ex-escrava experimentava, vendo a colega pregar
uma peça a ex-senhora; e disse com ar zombeteiro:
- Ela fez o que vocês todas fazem. Felizmente, não sentimos a menor falta:
nunca almocei tão bem!
A mulata ficou triste e atarantada, dizendo depois:
- Minha senhora, eu sabendo que Maria saíra, vinha oferecer-me para ficar
servindo , até que vossemecê achasse outra melhor. Queria assim mostrar
que não me esqueço do que fez por mim naquela ocasião: si não me tivesse
apadrinhado, talvez hoje eu não existisse!... (BITTENCOURT, 1906)
Josefa é tão “resignada” que parece ter saído dos sonhos de qualquer senhor de
engenho. Ela mal consegue acreditar que Maria fizera o “absurdo” de abandonar seus exsenhores. Josefa é uma escrava que pensa a partir da lógica senhorial. Extremamente “grata”,
ela se esmera em agradar os antigos senhores. É como se ela atendesse a todas as
prerrogativas da ideologia paternalista idealizada pelos senhores. Posição semelhante assume
o garoto Pancrácio, personagem de uma das crônicas de Machado de Assis. Com toda
irreverência e ironia peculiar aos escritos machadianos, Pancrácio seria mais ou menos a
projeção do escravo presente no imaginário do senhor, enquanto o senhor seria aquele
imaginado, sarcasticamente na [re]criação de Machado. A crônica, já referida anteriormente,
conta a história de um senhor que se antecipa a abolição e decreta a “liberdade” de um de seus
escravos. A partir daí, ele simula uma situação que lhe garante a posição de benfeitor da
liberdade do “pobre” Pancrácio, e esse lhe é tão grato que continua trabalhando para o exsenhor mesmo depois a sua “alforria”. Um trecho da crônica, em especial, é bastante
elucidativo sobre as intenções do senhor de Pancrácio:
- Tu és, livre, podes agora ir para onde queres. Aqui tens casa, amiga, já
conhecida e tens um ordenado, um ordenado que...
- Oh! meu senhor fico.
- Um ordenado pequeno, mas que há de crescer. Tudo cresce nesse mundo;
tu cresceste imensamente. Quando nasceste, eras um pirralho deste tamanho;
hoje estás mais alto que eu. Deixa ver; olha só estás mais alto quatro dedos.
Artura qué dizer nada, não, senhô...
- Pequeno ordenado, repito, uns seis mil réis, mas é de grão em grão que a
galinha enche o papo. Tu vales mais que uma galinha.
Eu vaio um galo, sim senhô.
[...] és livre, antes que o digam os poderes públicos, sempre retardatários,
trôpegos e incapazes de restaurar a justiça na terra para satisfação do céu
(ASSIS, 1957 62-64).
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É bem verdade que o senhor de Pancrácio machadiano foi bem mais esperto que o
Sr. Alfredo Bastos do conto de Anna Ribeiro, ao se antecipar à abolição, como o próprio
personagem afirmou “eu pertenço a uma família de profetas [...] toda essa história de lei de 13
de maio já estava prevista por mim”. Mesmo assim, a intenção era a mesma: se utilizar dos
artifícios da velha ideologia senhorial para conseguir manipular os ex-cativos e tentar
arrancar-lhes alguma expressão de “agradecimento”. No caso da Maria, ex-escrava de Alfredo
Bastos, esses recursos parecem não ter tido lá grande êxito, pois ela abandonou seus antigos
senhores, sem nem ao menos despedir-se e partiu para a Cidade da Bahia [Salvador]. Quanto
a Josefa, a escrava “agradecida” preferiu retribuir os favores “concedidos” por Alfredo e D.
Flora, sem nem ao menos intentar em combinar o salário. Nesse ponto, a ex-cativa do conto
de Anna Ribeiro aproxima-se muito do Pancrácio da crônica machadiana. Os dois estão
agradecidos pelos seus senhores, os dois prestam-lhe serviços como seres “livres”. Liberdade
essa que não lhe garantia mais que “alguns petelecos”, como os aplicados pelo senhor de
Pancrácio, no jovem garoto, por “impulso natural”.
Com certeza, tanto Josefa, quanto
Pancrácio valem “mais que uma galinha”, como nos diz o narrador machadiano, pois ambos
são necessários para a manutenção dos privilégio dos seus senhores. Os dois também são
projeções do imaginário senhorial vigente no Brasil final do século XIX. Certamente, a
descrição do senhor de pancrácio resumia bem o sentimento de ex-cativos e senhores, tanto da
crônica machadiana, quando do conto de Anna Ribeiro escrito dezoito anos depois do 13 de
maio: “Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados quase divinos” (ASSIS,
1957: 64).
O “bom” Sr. Bastos zomba da negra Josefa, por não acreditar nas intenções
“sinceras” e “agradecidas” da ex-cativa. Afirmando que não estavam sentindo a menor falta e
que, aliás, como tentam mostrar também sua esposa e filhas. Se sentiam falta ou não, o fato é
que D. Flora, aceita de pronto o pedido de Josefa:
- E pode entrar hoje? [pergunta D. Flora]
Agora mesmo.
- Então, fique; hoje temos visitas: você fará o jantar.
- Vou buscar minha caixa, que não trouxe por não saber si vossemecê me
queria: em um instante estou aqui.
E sai apressada e alegremente (BITTENCOURT, 1906).
A negra afirma que só iria para a Cidade da Bahia quando os Bastos “não
precisassem mais dela”. Josefa era uma negra bondosa e agradecida, o tipo de subalterno
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almejado pela ideologia senhorial. Era tipificada a partir desse ponto de vista, a opinião dos
cativos após a sua liberdade. Segundo essa forma de ver o mundo, os dependentes sempre
seriam contemplados pela bondade senhorial e em troca deveriam ser-lhes eternamente gratos.
No entanto, a própria D. Flora expõe que Josefa era apenas uma exceção – que não se deve
esquecer: fictícia. No intuito de dar uma lição às filhas ante ao “exemplo” da negra ela afirma:
“- Vejam, minhas filhas, nem todos são ingratos. É verdade que entre cem se encontra um
agradecido; mas, por isso mesmo, fica-se agradavelmente surpreendido; quando se faz
qualquer beneficio, sem a expectativa de agradecimento” (BITTENCOURT, 1906).
Essa “lição” denuncia que a ideologia paternalista fracassara, por não levar em
conta as posições dos outros sujeitos envolvidos na questão do “elemento servil”. Na verdade,
o comportamento de Josefa não é regra, e sim exceção. Assim como os mais de 100 escravos
pertencentes ao engenho dos familiares de Anna Ribeiro, a maioria dos ex-cativos dos
engenhos dos Bastos também tinha abandonado o antigo cativeiro e partido para a Salvador.
Aqui representações sociais e literárias se confundem, mas ambas expressam a mesma coisa:
os traumas de uma elite em decadência. Sem dúvida, do ponto de vista dos antigos senhores a
abolição da escravatura ocorreu de forma traumática (FRAGA FILHO, 2006: 131). E as
narrativas literárias de Anna Ribeiro não afirmam o contrário.
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RACISMO
E
RESISTÊNCIA
CULTURAL
NA
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AMAZÔNIA
BRASILEIRA
Luiz Augusto Pinheiro Leal - UFBA
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Este trabalho visa apresentar os principais debates em torno da presença africana na
Amazônia, ressaltando tanto a ausência de estudos especializados até os anos 60, além da
regular legislação repressora das manifestações culturais de origem negra presentes na região.
Tem como principal argumento a evidência de que a repressão desencadeada contra as
práticas culturais negras representava não apenas um racismo físico, mas também um racismo
cultural. Em outras palavras, observaremos que o projeto de embranquecimento da população
brasileira extrapolava os limites do clareamento de pele e alcançava o controle disciplinar do
corpo. O contexto histórico de referência trata da organização dos novos estudos raciais
brasileiros, especialmente entre os anos 30 e 60, do século XX.
Palavras-chave: racismo, embranquecimento cultural, intelectualidade, Amazônia.
.
.Do ponto de vista histórico, tal recorte temático consiste em uma perspectiva
unilateral, no que diz respeito às interpretações históricas do lugar da região norte na história
do Brasil, que segue outras interpretações monotemáticas A Amazônia, como referencial
simbólico, está na ordem do dia quando a mídia nacional ou internacional apresenta questões
relativas ao futuro da humanidade, particularmente no que diz respeito à preservação do meio
ambientejá desenvolvidas para o mesmo lugar. A própria noção de racismo na Amazônia
pode causar certo espanto devido à perspectiva que predominou por muito tempo a respeito da
irrelevância demográfica negra no norte do país. Fruto da teoria economicista dos grandes
ciclos econômicos e da centralização dos saberes acadêmicos no eixo centro-sul, a desatenção
à presença africana e negra no norte ficou relegado, muitas vezes, aos levantamentos de
exotismos culturais. Contudo, esse tipo de abordagem já foi duramente criticado por
antropólogos e historiadores que se debruçaram sobre a questão. Os antropólogos Napoleão
Figueiredo e Anaíza Vergolino, em 1990, ao desenvolver análise sobre a questão afroreligiosa amazônica, depararam com uma vasta documentação sobre a presença africana na
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região desde o período colonial. 226 Por outro lado, os historiadores Flávio Gomes e Jonas
Queiroz apresentam uma vasta documentação e bibliografia sobre a experiência negra na
Amazônia revelando os diversos aspectos da resistência negra no norte do Brasil.227
Neste artigo, abordarei, em um primeiro momento, o esforço de intelectuais que se
debruçaram sobre a questão negra no estado do Pará, de literatos e folcloristas aos primeiros
antropólogos e historiadores. Em seguida, desenvolverei uma interpretação acerca do lugar da
história e cultura negra no Brasil a partir da trajetória de duas práticas culturais: o candomblé
e a capoeira. O ponto central da análise será a interação entre intelectuais e produtores de
cultura afro-brasileira, particularmente os praticantes da capoeira e de outras tradições
culturais afro-brasileiras. O período escolhido abrange os anos de 1934 até 1953. O ano de
1934 tornou-se referência por sediar a realização do I Congresso afro-brasileiro, em Recife,
sob a coordenação de Gilberto Freire. Já o Ano de 1953 representa o ano da chegada de
Edison Carneiro em Belém e seu primeiro contato com o paraense Vicente Salles, que daria
continuidade aos estudos sobre o negro na Amazônia. O período escolhido contempla o
momento de reorganização dos símbolos nacionais, a partir da implantação das políticas do
Estado Novo, e de ampla divulgação do discurso nacionalista brasileiro.228
BEM ANTES DOS ANTROPÓLOGOS...
Em 16 de novembro de 1938, um grupo de intelectuais compareceu ao palácio do
governo paraense para reivindicar “a liberdade dos cultos africanos em Belém”. Na ocasião
foram acolhidos pelo interventor federal José Malcher que, ao receber um “memorial
solicitando o restabelecimento dos cultos afro-brasileiros, então proibidos pela polícia”, se
comprometeu a ler o documento e tomar as providências necessárias. Contudo, nada foi feito.
Somente em 1948, quando um dos intelectuais envolvidos no manifesto (Paulo Eleutério
Filho), assumiu a chefia de polícia do estado e “alguns pais de terreiro” o foram procurar
visando obter “livre garantias ao exercício dos seus cultos”, a proposta inicial do movimento
foi atendida. 229
226
VERGOLINO-HENRY, Anaíza & FIGUEIREDO, Arthur Napoleão. A Presença Africana na Amazônia
Colonial: Uma notícia histórica. Belém: Arquivo Público do Pará, 1990, p. 27-31.
227
GOMES, Flávio e QUEIROZ, Jonas Marçal. “Em outras margens: escravidão africana”. In DEL PRIORE,
Mary & GOMES, Flávio (Orgs.). Os Senhores dos rios: Amazônia, margens e histórias. Rio de Janeiro:
Editora Campus, 2003.
228
GOMES, Ângela Maria de Castro. História e Historiadores. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio
Vargas, 1996, pp. 15-25.
229
Todos os trechos contidos entre aspas constam em SALLES, Vicente. O negro no Pará sob o regime da
escravidão. 3.ed. ver. ampl. – Belém: IAP; Programa Raízes, 2005, p. 164, nota 47.
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O memorial apresentado pelos intelectuais possuía um caráter estratégico.
Destacava tanto a ausência de perigo, por parte dos cultos, aos princípios religiosos católicos
em vigor, como sugeria a importância de sua manutenção por auxiliar nos estudos e pesquisas
que poderiam vir a serem feitos. Para os intelectuais, segundo Vicente Salles, “o caráter dos
batuques ainda era religioso, com os ritos e os fundamentos místicos de uma religião
primitiva, já em contato com uma religião superior, como o catolicismo”. E, além disso, “não
se tratava apenas da liberdade dos cultos, mas da contribuição desses terreiros. Mesmo com
seu caráter profano, aos estudos sociais brasileiros”.230 Tais posicionamentos tanto
significavam um certo nível de cuidado com a tendência religiosa dominante, possivelmente
para evitar conflitos, como também uma atenção para a possibilidade da relação destes
intelectuais com o campo de saber associado às práticas culturais afro-brasileiras.
O manifesto de 1938 foi iniciado pelo folclorista Gentil Puget e teve a adesão de
25 intelectuais. Dentre eles, destaco os nomes de Bruno de Menezes, Nunes Pereira, Dalcídio
Jurandir e do próprio Gentil Puget que, entre outros, vão desenvolver estudos e referências
relativas ao negro no Pará. No mesmo ano, mas com quatro meses de antecedência, esteve em
Belém a Missão Folclórica Paulista, liderada por Luis Saia. Na ocasião, a missão teve a
oportunidade de registrar, entre os meses de junho e julho, tanto a manifestação do boi-bumbá
quanto o ritual do babaçuê231 em plena capital paraense. 232 Devido à proximidade espaçotemporal, é possível considerar a possibilidade de relação entre o manifesto e a presença da
Missão Folclórica. Por outro lado, no ano anterior, em janeiro de 1937, ocorrera na capital
baiana o II Congresso afro-brasileiro que reuniu pesquisadores de diferentes temáticas e os
produtores de cultura negra da cidade. Entenda-se a categoria “produtores de cultura” como
os agentes responsáveis pela criação e realização de determinada prática cultural (capoeiras,
candoblezeiros, sambistas, etc).
A repressão aos cultos ou outras práticas culturais de origem africana não tinha
sido um fenômeno de violência experimentado exclusivamente na capital paraense. Em
Salvador e Recife uma dura repressão também fora desencadeada aos cultos de origem
africana, seja em relação ao candomblé ou ao culto de Xangô, respectivamente. O objetivo
também seria o controle ou a eliminação dos elementos da cultura negra do Brasil. Em relação
ao Pará, a violência institucional praticada contra os cultos afro-brasileiros era uma espécie de
230
Idem.
Babaçuê ou Babassuê consiste em uma doutrina afro-religiosa Amazônica. Na Missão Folclórica foram
levantadas três versões: "Doutrina de Lamanjá (Emanjá Já Micô Oro Ireê)", "Doutrina de Dossu (La Dossu
Semenome)" e "Doutrina da Cabocla Erondina (Vem me Ajudar a Rezar)".
232
Sobre a documentação gerada pela Missão ver http://www.sescsp.org.br/sesc/hotsites/missao/index.html
231
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continuidade a um projeto anterior de disciplinamento da população pobre, de origem negra
e/ou indígena, implementado desde o século XIX. Nesse caso, os principais alvos da política
pública em vigor foram os praticantes de capoeira e os membros de bois-bumbás.233
Em Salvador, no entanto, a experiência do II Congresso possibilitou a organização
institucional dos diversos terreiros de candomblé, principalmente como forma de resistência
às intensas campanhas de repressão promovidas pela polícia baiana.234 Intelectuais e
produtores de cultura negra se articularam de modo a construir uma nova forma de resistência
à violência instituída contra os grupos populares de origem afro-brasileira.235 Em Belém, a
articulação entre intelectuais e produtores de cultura não se deu no mesmo sentido.
O interesse pela cultura negra, longe de ser alvo de atenção de antropólogos e
outros cientistas sociais, como ocorrera na Bahia, sofreu um processo de quase completo
esquecimento após a década de 40. No entanto, a ausência de atenção era relativa. Se no
“paraíso da antropologia”, como muitos se referiam a Amazônia, os cientistas sociais haviam
“esquecido” da presença negra, outros intelectuais assumiram seus deveres. Nesse sentido,
Gentil Puget, Bruno de Menezes, Nunes Pereira, entre outros, dedicaram-se ao estudo das
religiões negras no Pará. Eram folcloristas, poetas e literatos que assumiam as tarefas que na
Bahia eram feitas por antropólogos e outros cientistas sociais.
Somente na década de 1960 a pesquisa antropológica retomaria a atenção para a
presença negra na Amazônia. Desta vez através de um casal de pesquisadores americanos
preocupados em estudar os terreiros de Belém entre os anos de 1963 e 1965.236 Em seguida
surgem os trabalhos de Vicente Salles e de Anaíza Vergolino, a nova geração de estudiosos da
cultura negra no norte do Brasil. 237 Com estes autores surgia a pesquisa acadêmica interessada
na história e cultura negra do Pará.
INTELECTUALIDADE E EXPERIÊNCIA NEGRA
O referencial metodológico utilizado para compreender a ação dos intelectuais
paraenses em relação à liberdade de culto, em 1938, corresponde ao conjunto de estudos
233
LEAL, Luiz Augusto Pinheiro. A política da capoeiragem: a história social da capoeira e do boi-bumbá
no Pará republicano (1888-1906). Salvador: EDUFBA, 2008.
234
BRAGA, Júlio. Na Gamela do Feitiço: repressão e resistência nos candomblés da Bahia. Salvador:
EDUFBA, 1995.
235
CARNEIRO, Édison. Ursa maior. Salvador: UFBA/Centro de Estudos Afro-Orientais, 1980.
236
LEACOCK, Seth and LEACOCK, Ruth. Spirits of the Deep: Drums, Mediums and Trance in a Brazilian
City. Garden City/New York: The American Museum of Natural History Press, 1972.
237
SALLES (2005) e VERGOLINO-HENRY, Anaíza. & FIGUEIREDO, Arthur Napoleão. Presença Africana
na Amazônia: a notícia histórica. Belém, Arquivo Público do Pará, 1990.
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relativos à formação da intelectualidade brasileira. Nesse caso, três trabalhos são bastante
significativos para a interpretação da temática proposta. O primeiro trata-se da pesquisa de
Nicolau Sevcenko sobre dois letrados do Rio de Janeiro – Euclides da Cunha e Lima Barreto
– que desenvolveram seus projetos literários sob uma perspectiva de intervenção nos
diferentes projetos sociais do final do século XIX238; o segundo é o trabalho de Sérgio Miceli
acerca da trajetória e engajamento sócio-político de intelectuais na República Velha e no
período do governo de Getúlio Vargas239; e por último a pesquisa de Aldrin Moura de
Figueiredo que apresenta pistas significativas em relação a produção intelectual no Pará do
final do século XIX até os anos de 1950240. A abordagem proposta neste artigo é distinta das
que foram apresentados pelos autores citados devido à atenção especial que será dada para a
interação entre os intelectuais e a cultura negra brasileira. Além do mais, os dois primeiros
estudiosos apresentados, ao tratar da construção de suas temáticas, não acrescentam
informações sobre o movimento intelectual no Norte do Brasil, salvo em relação aos estudos
de José Veríssimo.
Na Bahia, diferentes intelectuais do começo do século XX voltaram sua atenção e
estudos para a experiência africana no país. Parte de seus trabalhos tinha uma característica
literária-memorialística, mas posteriormente os temas dos trabalhos foram substituídos por
estudos “científicos” de caráter etnográfico.241 Logo a compreensão sobre a categoria raça
passou a assumir características culturais mais do que biológicas. No Pará, os estudos iniciais
voltados para a questão racial foram desenvolvidos até o início do século XX, mas em seguida
a atenção dos principais estudiosos paraenses se voltou quase que exclusivamente para a
literatura.242 Desse modo, parece não ter se desenvolvido uma atenção especial para a questão
racial entre os letrados paraenses. Até mesmo as experiências comuns entre a Bahia e o Pará,
como a ação de capoeiras na capangagem e a repressão às práticas religiosas de origem
238
SEVCENKO, Nicolau. A literatura como missão. Tensões sociais e criação cultural na primeira
República. São Paulo: Brasiliense, 1985.
239
MICELI, Sérgio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
240
FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. A Cidade dos Encantados: pajelanças, feitiçarias e religiões afrobrasileiras na Amazônia a constituição de um campo de estudo 1870 – 1950. Dissertação de Mestrado em
História, UNICAMP: Campinas, 1996.
241
No primeiro caso podemos encontrar os trabalhos de QUERINO, Manuel Raimundo. A Bahia de outrora, 3ª.
ed. Salvador, Progresso, 1946; VIANNA, Antônio. Casos e coisas da Bahia. Salvador: Fundação Cultural do
Estado da Bahia, 1984; VIANNA, Antônio. Quintal de nagô e outras crônicas. Salvador: Centro de Estudos
Baianos, 1979; no segundo, os estudos de Nina Rodrigues, Arthur Ramos e Edison Carneiro. Sobre eles, ver
CARNEIRO, Edison. Candomblés da Bahia. 6ª edição. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1978;
CARNEIRO, Edison. Antologia do negro brasileiro. Rio de Janeiro: Agir, 2005; CAMPOS, Maria José.
Arthur Ramos – luz e sombra na antropologia brasileira. Rio de Janeiro: Edições Biblioteca Nacional, 2004.
242
No primeiro caso destaco os trabalhos de VERÍSSIMO, José. “Raças cruzadas do Pará” [1878]. In: Estudos
Amazônicos, s/l, 1970; e nos seguintes a atuação dos letrados que trataram diretamente do tema racial em seus
trabalhos, particularmente, Bruno de Menezes e Dalcídio Jurandir.
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africana, na década de 1930, não tiveram a mesma repercussão nos dois estados. Na Bahia o
engajamento de intelectuais garantiu a transformação de certas práticas culturais em
verdadeiros símbolos culturais do estado. No Pará, como vimos acima, houve mobilização
intelectual em torno da defesa da liberdade de culto nos terreiros, mas o movimento não gerou
uma interação maior entre os letrados e os produtores de cultura, tal como ocorreria na
Bahia.243
A ênfase dada à literatura como a documentação principal para o desenvolvimento
deste trabalho tem uma razão própria. A capoeira e outras práticas culturais afro-brasileiras
são representadas na literatura paraense através de diferentes trabalhos que variam entre
romances, crônicas e poesias. O período de alcance deste tipo de trabalho no Pará é
abrangente, inicia-se em 1888 (com a publicação de Hortência, de Marques de Carvalho) e
segue até os dias atuais (apesar dos interesses desta pesquisa não ultrapassarem as obras da
década de 70). Em pesquisa anterior, tive a oportunidade de constatar que diversos capoeiras
aparecem como personagens de obras literárias. 244 A representação dos capoeiras nesses
trabalhos pode ser classificada em pelo menos três estilos e períodos distintos. Em um
primeiro, a capoeira estaria caracterizada racialmente como uma prática típica do indivíduo
mulato. É o estilo naturalista exercitado em Belém de 1888 através do romance Hortência, de
Marques de Carvalho 245. Em seguida, partindo das primeiras décadas do século XX, através
do estilo literário que ficou conhecido como “Literatura do proletariado”,246 personagens
capoeiras, ora reais ora fictícios, perpassam as obras de Nélio Reis, Lauro Palhano e Dalcídio
Jurandir.247 Esta fase interage com uma terceira, cuja diferenciação está tanto no período
abordado como na forma de trabalho escolhida. Nesta etapa estariam dois escritores que, ao
contrario dos anteriores, não teriam apresentado os capoeiras como personagens de romances
completos, mas como participantes de crônicas memorialísticas sobre a cultura popular. Neles
os indivíduos citados não seriam fictícios. Existiram e seus feitos são contados por Jaques
243
SALLES, Op. Cit.
LEAL, Op. Cit.
245
CARVALHO, Marques de. Hortência. Ed. especial, Belém, Cejup/Secult, 1997.
246
Tendência que se caracterizava pelo engajamento sócio-político dos literatos brasileiros. Na Bahia, destcamse as diversas obras de Jorge Amado. No Pará, além de Bruno e Dalcídio Jurandir, pode-se destacar o trabalho de
REIS, Nélio. O rio corre para o mar. 2 ed. Pref. de Josué Montello. Belém: Fundação Cultural do Pará
Tancredo Neves/SECULT, 1990. 250 p. (Lendo o Pará).
247
REIS, Nélio. Subúrbio, Rio de Janeiro: José Olympio, 1937; PALHANO, Lauro. pseud. de Inocêncio
Campos. O Gororoba - Cenas da vida proletária. 2ª ed. Rio de Janeiro, Pongetti, 1943; JURANDIR, Dalcídio.
Belém do Grão-Pará, São Paulo, Martins, 1960; e JURANDIR, Dalcídio. Chão dos Lobos, Rio de Janeiro,
Record, 1976.
244
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Flores e José Sampaio de Campos Ribeiro.248 Ainda caberia nessa fase a obra Batuque, do
poeta Bruno de Menezes, cuja evidência de africanidade revela múltiplas características de
ação “capoeiral” no poema “Pai João”.249
Os jornais do período revelam o engajamento dos diversos intelectuais na política
partidária do Estado. A Folha do Norte (oposicionista), A Província do Pará (independente),
O Estado do Pará (governista), O Liberal (governista) e A Vanguarda (independente) são os
principais periódicos analisados para o recorte temporal proposto. Através deles,
considerando suas polarizadas atuações políticas, é possível captar o contexto político e
cultural em que os diferentes intelectuais estiveram envolvidos frente ao tema de seus estudos
e de seus princípios ideológicos. Resta agora compreender o significado da articulação
intelectual para a formação de certa identidade nacional para o Brasil, onde o negro poderia
ter lugar.
A INVENÇÃO DE UMA IDENTIDADE PARA O BRASIL
A compreensão
da formação
da
identidade nacional
brasileira passa
necessariamente pelos debates e projetos racialistas e racistas que permearam os bastidores
intelectuais e políticos no Brasil desde a segunda metade do século XIX. Conde Gobineau,
Sílvio Romero, Nina Rodrigues, entre outros, são invocados, em contextos diferentes, para
representar aqueles que viam como uma influência negativa a presença negra na constituição
da nação brasileira. A eugenia, inspirada por estes intelectuais, fundamentava medidas
políticas que visavam o embranquecimento da população brasileira no menor tempo
possível.250 Entre tais medidas se destacam as diversas campanhas a favor da imigração
européia para o país e a violenta repressão às práticas culturais de origem negra em favor de
modelos culturais europeus. Repressão evidentemente resistida dos mais variados modos, o
que garantiu a permanência e organização das diferentes manifestações de cultura negra no
Brasil.
Entre as mais diversas práticas culturais afro-brasileiras que sofreram repressão no
Brasil, destacam-se duas manifestações culturais que ao longo das últimas décadas têm
proporcionado a guarda de saberes e a proteção material de diferentes elementos da tradição
248
FLORES, Jaques. pseud. de Luiz Teixeira Gomes, Panela de Barro, 2ª edição, Belém, Secult/Pa, 1990,
RIBEIRO, José Sampaio de Campos. Gostosa Belém de Outrora. Belém: Editora Universitária, 1965.
249
MENEZES, Bruno de. Batuque. Belém, Falangola, 1960.
250
SCHWARCZ, Lílian K. Moritz. “Raça como negociação – sobre teorias raciais em finais do século XIX no
Brasil.” In FONSECA, Maria Nazareth Soares (org). Brasil afro-brasileiro. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica,
2001.
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cultural negra no Brasil: a capoeira e o candomblé. Ambas ao logo de suas histórias têm
recebido a atenção das autoridades brasileiras visando diversos fins. Na capoeira a trajetória
variou de usos e abusos a favor ou contra seus praticantes. No candomblé, a violência contra
os praticantes caracterizou o diálogo da sociedade com este saber ancestral dos africanos no
Brasil. Em ambos os casos, os produtores de cultura negra foram os mais prejudicados.
Contudo, a interação de diversos intelectuais, brasileiros ou estrangeiros, com as
manifestações culturais negras brasileiras gerou experiências positivas tanto para a divulgação
pública destes saberes tradicionais como para a delimitação sistemática das características de
culto, rito e/ou fundamentos destas práticas culturais. 251
Em relação à capoeira, por exemplo, o ano de 1937 é um marco para a sua
emancipação. Nesse ano a sua prática sairia do rol de crimes do código penal brasileiro.252
Para muitos capoeiras a descriminalização estaria vinculada ao esforço de mestre Bimba253
em promover a capoeira como educação física ainda na década de 30. Além disso, outro fator
que teria influenciado a saída da capoeira do código penal estaria relacionado a uma
apresentação que mestre Bimba fez, também em 1937, na Bahia, para Getúlio Vargas, então
presidente do Brasil. No entanto, o que poucos capoeiras sabem é que no mesmo ano ocorreu
em Salvador o II Congresso Afro-brasileiro promovido por diversos intelectuais preocupados
com o estudo da cultura negra no Brasil. Nesse congresso, os diferentes representantes de
práticas culturais afro-brasileiras foram convidados a se pronunciar, ampliando o diálogo
entre os estudiosos e os produtores de cultura negra na Bahia.254
Por trás dos novos significados atribuídos à capoeira (esporte, luta nacional ou
folclore) estavam os diferentes interesses de capoeiristas e intelectuais que inovaram os
estudos sobre a questão negra no Brasil ao substituírem, em suas interpretações, a categoria
raça pela de cultura (Destacam-se nesse aspecto os trabalhos de Arthur Ramos, Edson
251
CARNEIRO, Édison. Ursa maior. Salvador: UFBA/Centro de Estudos Afro-Orientais, 1980.
Em oposição a sua criminalização, de 1890 até 1937, surgiu, como alternativa funcional para a capoeira, a
folclorização, a partir da década de 1950, na Bahia; a esportivização, experimentada inicialmente nos anos 1960,
com a migração de mestres baianos para São Paulo, e oficializada em 1972 por portaria do MEC. Estes, então,
seriam os principais horizontes apontados para o futuro da capoeira. Interesses que correspondiam a projetos de
intervenção externa na capoeira, mas que na maioria dos casos também foi apoiada por capoeiras que buscavam
viver de seu ofício. Cf. REIS, Letícia Vidor de Souza. O mundo de pernas para o ar: a capoeira no Brasil.
Rio de Janeiro: Publisher, 1998, p. 3; e BRUHNS, Heloisa Turini. Futebol, carnaval e capoeira. Campinas, SP:
Papirus, 2000, 24-38.
253
Manoel dos Reis Machado (1899-1974), mestre Bimba, foi estivador, carvoeiro, carpinteiro e trapicheiro.
Fundou a 1ª Academia de Capoeira, denominada Clube União em Apuros, situada à Rua do Bângala, Bairro da
Mouraria, Salvador-Ba, registrada e legalizada oficialmente na Secretaria de Educação, Saúde e Assistência
Pública, em 09 de Junho de 1937, como Centro de Cultura Física Regional, marco do ingresso da Capoeira na
“resistência legalizada.” Adaptação do site http://www.fortedacapoeira.org.br/regional.php
254
BRAGA, Júlio. Na Gamela do Feitiço: repressão e resistência nos candomblés da Bahia. Salvador:
EDUFBA, 1995.
252
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Carneiro e Gilberto Freyre). Posteriormente a capoeira também seria resgatada a partir das
obras de Jorge Amado, Carybé e Pierre Verger255. Literatura, pintura e fotografia seriam,
respectivamente, os instrumentos de divulgação das principais características positivas
daquela arte-luta. Claro que esses intelectuais não estavam dando atenção exclusiva para a
capoeira, mas sim a uma boa parte das manifestações culturais afro-brasileiras. Entre elas, as
práticas religiosas de origem africana, em especial o candomblé. Os homens das ciências e
das artes citados buscavam aprofundar seus estudos e trabalhos acerca da experiência africana
no Brasil a partir das manifestações culturais negras presentes em todo o país.
Nesse sentido, a capoeira e o candomblé, entre outras tradições afro-brasileiras,
desenvolveram ainda no século XX o processo de definição de sua prática e doutrina. A partir
da Bahia, a aproximação entre intelectuais e produtores culturais ajudou a expressar, dos mais
variados modos (livros, fotos, esculturas, pinturas, etc.), os significados da cultura afrobrasileira vivenciada pelos seus herdeiros diretos: o povo do candomblé e da capoeira. Então,
podemos considerar que as práticas culturais de origem negra no Brasil transformaram-se em
um fenômeno inusitado de representação da identidade nacional às avessas. Ou seja,
carregava em si o paradoxo de ser um saber marginalizado pelos diversos projetos nacionais e
ao mesmo tempo um instrumento incomparável de divulgação da história e cultura afrobrasileira pelo resto do mundo. Além disso, antes mesmo de qualquer debate político ou
acadêmico sobre o assunto, a capoeira e o candomblé já eram, para seus praticantes, um meio
excepcional de resistência e sustentação da identidade negra no Brasil, particularmente no que
diz respeito à guarda e divulgação de seus saberes.
Se em relação à Bahia, o processo de construção deste fenômeno pode parecer
mais evidente, o mesmo não acontece no que diz respeito a outras regiões do Brasil.
Intelectuais e artistas que contribuíram decisivamente para a divulgação nacional e
internacional da cultura negra baiana também demonstraram interesses por experiências
negras que estavam longe dos limites baianos. É o caso de Pierre Verger, Edison Carneiro e
Jorge Amado que, em momentos diferentes de suas trajetórias, construíram interações diretas
ou indiretas com a cultura, arte ou literatura sobre o negro no Pará. No entanto, estes aspectos
de suas trajetórias pouco são explicitados nos estudos relacionados aos seus respectivos
trabalhos. Cabe então interpretar os percursos destes intelectuais com outros que na Região
255
AMADO, Jorge. Jubiabá. 58ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2000 e Tenda dos milagres. 30ª edição. Rio
de Janeiro: Record, 1983; CARYBÉ. As Sete portas da Bahia. 5ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1987; e
http://www.pierreverger.org/br/photos/photos_themetree.php?leThemeID=1188
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Norte deram atenção para a presença negra na Amazônia. Em particular, Dalcídio Jurandir,
Bruno de Menezes e Vicente Salles.
A VEZ DA AMAZÔNIA
Enquanto a experiência religiosa negra era estudada de modo mais intensivo na
Bahia e no Maranhão, a Amazônia era considerada como o paraíso dos antropólogos
indigenistas. Havia uma perspectiva defendida por intelectuais como Edson Carneiro, em
1953, de que as tradições religiosas da Amazônia seriam apenas um reflexo imediato do que
acontecia no Maranhão. A diferente e menos expressiva presença negra na Amazônia, se
comparada com o Nordeste, fazia com que a atenção dos pesquisadores pelo aspecto
numérico menosprezasse a importância da presença africana na Amazônia. As tradições
negras, nesse contexto, eram alvos apenas da perseguição policial, detrimento jornalístico e,
gradativamente, da arte dos literatos.
citados acima.
Neste último aspecto encontramos os intelectuais
Os mesmos que apresentavam o negro em suas novelas, crônicas ou
memórias, também se interessavam em desenvolver estudos paralelos sobre o chamado
“folclore amazônico”. Nestes, longe de apenas trazerem informações sobre a vida cultural
indígena, também expunham casos relativos às tradições negras na capital paraense. Exemplo
disso é a coletânea de poesias intitulada Batuque, de Bruno de Menezes; a série de romances
de Dalcídio Jurandir, em que as manifestações da cultura negra do Marajó e de Belém
aparecem com bastante regularidade; e os estudos etnográficos de Nunes Pereira, que além da
temática indígena, também deu atenção aos estudos da Casa de Mina no Maranhão visando
entender a experiência religiosa no Pará.
A fase dos estudos sobre o negro, interessando apenas os literatos e folcloristas,
veio somente a ser modificada com a intervenção inicial dos primeiros estudiosos de
formação antropológica, a partir da década de 50. Vicente Salles, que trabalhou junto com
Edson Carneiro na Campanha de Defesa do Folclore, foi um dos pioneiros na abordagem do
negro na Amazônia de um modo mais sistematizado. Sua trajetória de vida e pesquisa se
entrelaça com as diversas situações culturais e históricas relacionadas ao negro no Pará.
Vindo do interior, conheceu bem cedo o poeta e folclorista Bruno de Menezes. Participou da
“Academia do peixe frito” e foi “desafiado” por Edson Carneiro a comprovar a importância
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da presença negra na Amazônia. Sua resposta, após extensa pesquisa, foi a elaboração de um
dos clássicos da bibliografia sobre o negro na Amazônia, o livro O Negro no Pará.
Somente a partir da década de 1970, com a fundação da Universidade Federal do
Pará, é que a abordagem acadêmica formal passa a se interessar pelo tema das religiões negras
na Amazônia. Nesse caso, o trabalho se inicia através da ação de Napoleão Figueiredo, um
militar convertido em antropólogo, que coletou material diverso relativo tanto às tradições
negras quanto às indígenas. Napoleão orientará a pesquisa de uma das pioneiras no estudo
das religiões de matrizes africanas no Pará: a antropóloga Anaíza Vergolino.
Relacionar praticantes de cultura com estudiosos de cultura auxilia na
compreensão da identidade brasileira como um imbricado processo de violência, negociação e
resistência do negro no Brasil. Além disso, permite que possamos pensar na própria atividade
do pesquisador/intelectual em relação aos compromissos éticos que ele poderia ter em relação
aos sujeitos estudados. Compromisso que, em primeira instância, poderia ser o rompimento
com uma das bases mais sólidas da injustiça social: a hierarquização entre o trabalho manual e
o intelectual, ou, em outras palavras, a prática cultural (experiência) e a sua respectiva análise
acadêmica (interpretação).
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A HISTÓRIA DE UM TERREIRO DE CANDOMBLÉ: AXÉ ILÉ OBÁ
ABAÇA ODÈ BAMIRÊ
Flávia Delfino dos Santos - FSLF
[email protected]
A pesquisa em destaque tem como objetivo principal narrar à trajetória do terreiro e descrever
a vida de um sacerdote, que tem como nome de batismo José Augusto dos Santos, que nasceu
em 07 de abril de 1929, e morreu no dia 24 de outubro de 2006, mais conhecido como Zé
D’Obacoussou. Primeiramente serão revelados os principais momentos da vida do biografado
(José Augusto dos Santos) destacando as fases como infância, juventude e adulta ao mesmo
tempo foram abordadas as dificuldades enfrentadas por José e a sua aproximação com alguns
políticos, e principalmente destacar como se deu sua iniciação para em seguida compreender
os motivos que o levou a fazer parte do Candomblé. Zé D’Obacoussou contribuiu de fato para
a expansão do Candomblé. No segundo momento esta inserida a narração da história do
terreiro de Zé D’Obacoussou em Aracaju, sendo este atualmente Axé Ilé Obá Abaça Odé
Bamirê, neste foi visualizado as mudanças de locais do terreiro abre um novo espaço no
Município de São Cristóvão no Bairro Rosa Elze, no Eduardo Gomes. A principal fonte de
pesquisa se dá através da oralidade (fonte oral) de pessoas próximas ao mesmo, com o auxilio
também de alguns documentos.
Palavras-chave:: Zé D’Obacoussou, Candomblé, Terreiro.
1. A Vida de um Babalorixá
1.1. Memória e vida
Entre os sacerdotes de grande apreço e respeito no universo do Candomblé de
Aracaju, destaca-se José Augusto dos Santos, (mais conhecido como Zé D’Obacoussou) e por
isso ele é tema do presente trabalho. O sacerdote nasceu no município de Divina Pastora, no
Povoado Bomfim (antigamente Saco de Bomfim), no dia 07 de abril de 1929. Morava na Rua
do Canto em uma casa de taipa com três compartimentos ou cômodos. 256
256
Depoimento de Acelina Santana Bento, concedido a Flávia Delfino do Santos, no município de Divina
Pastora, no Povoado Bomfim, 27.11.2007.
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José Augusto conviveu com os seus pais, sendo estes Felisberto Augusto dos
Santos e Maria Tereza de Jesus e com seus cinco irmãos. Seu pai nasceu durante a vigência da
lei do Ventre Livre. Seu Felisberto Augusto dos Santos, conhecido por “Cubéu”, segundo
Santos, era um sábio e um bom rezador. Era quem assumia as despesas com a casa, pois os
sete filhos sobreviviam da “profissão” do pai que exercia a função de boiadeiro em fazendas.
José Augusto dos Santos revelou em seu livro que eram felizes, pois tinham uma casa, cabras,
galinhas, entre outros, para ajudar no sustento da família. Um dos momentos mais
complicados para a época foi que não havia uma legislação que beneficiasse (aposentadoria)
esses trabalhadores. Infelizmente muitos se viam lançados na marginalidade e no banditismo.
257
Segundo as memórias de Zé D’Obacoussou, o seu pai o Sr. Felisberto era do santo
e era de descendência Nagô. Essa memória permite especular sobre a existência de culto
doméstico afro na República Velha em Sergipe e também possibilita estipular sobre as
estratégias no processo de constituição de identidade e legitimação do seu ofício. Afinal o seu
pai já era do santo. “... Meu pai era pessoa do santo, mais não tinha casa aberta (...) Eu sou
descendente de nagô (...)”. (José Obacossô- sacerdote). 258
Já sua mãe, Dona Maria Tereza de Jesus era freqüentadora da Igreja Católica
Apostólica Romana. Trabalhava em uma das Usinas instaladas na época no povoado Bomfim,
mais precisamente na Usina Novo Horizonte, local onde infelizmente perdeu um dos braços.
Segundo Acácia descreve, “minha avó era branca, os cabelos dela segundo meu pai (Zé
D’Obacoussou), não dava uma volta e ela não tinha um braço”.
259
Ela tinha o papel
fundamental de cuidar do lar, das crianças e também tinha como ofício a função de rendeira,
meio de distração da população da época.
José Augusto dos Santos nasceu no ano de 1929, momento em que aconteceu a
queda da bolsa de valores (Estados Unidos). No Brasil a queda é refletida na diminuição do
preço do café e também na exportação deste. Em Sergipe a “classe” empresarial e as finanças
internas também foram abaladas economicamente. Nessa fase também teve início a atuação
do grupo de Lampião na parte interiorana de Sergipe, mais propriamente no sertão. 260
257
SANTOS, José Augusto dos. A vida de um babalorixá: a luz D’Obacoussou brilha sobre nagô de Aracaju.
Rio de Janeiro: Portais, 2000.
258
MAIA, Janaina Couvo Texeira. Umbanda em Aracaju: na encruzilhada da história e da etnografia. São
Cristóvão - SE/ 1998
259
Depoimento de Acácia Maria S. Sampaio, concedido a Flávia Delfino dos Santos, São Cristóvão,
10.10.2007.
260
DANTAS, Ibarê. História de Sergipe: República (1889- 2000). – Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro 2004.
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José Augusto dos Santos nasceu laçado e revestido com uma pele, sendo que as
suas parteiras foram duas negras nagôs, Rosa de Quirino e Maria Cecília. Mas é importante
relatar que foi Rosa quem o aparou na gamela e deu o primeiro banho nele com uma cuia e
colocou o primeiro nome dele, José, justamente por causa da película e pelo cordão umbilical
ter sido laçado na criança. Ou seja, segundo as memórias, é possível perceber que José
conviveu com pessoas de descendência africana. 261
Dona Maria Tereza de Jesus faleceu no dia 31 de Julho de 1932 e foi enterrada no
Cemitério de São Gonçalo em Divina Pastora. José se encontrava apenas com quatro anos de
idade incompletos. Nessa fase, em Divina Pastora, observa-se que a assistência médica da
época era muito precária, pois não houve um laudo pericial da causa morte da mãe de José.
Em termos de estudo José só conseguiu freqüentar a escola pública até a quarta
série primária, pois foi expulso. Em seguida, José foi para a Escola Municipal Filenila Fontes,
onde, por intermédio de D. Finé, ele conseguiu algumas roupas como também aprendeu a
magia da leitura. Mais por motivo de sobrevivência foi trabalhar no campo.
(...) logo fui obrigado a deixar a escola para ir para o campo trabalhar”...
plantei capim, cana-de-açúcar, chamei boi e também lancei tijolo na olaria.
Quando tinha tempo pescava guanhamum de ratoeira. Quando havia caxixe
pescava de jerére nos rios. Caxixe era sobra dos caldos-de-cana que o
engenho soltava e apodrecia as águas. Os peixes ficavam como bêbados e ai
eu podia pegar muitos para comer. (SANTOS, 2000: 10)
Mesmo com todos os problemas no âmbito econômico e educacional em Sergipe
da época, Zé D’ Obacoussou conseguiu, com o seu mérito, concluiu o ensino já na fase adulta,
tanto do primeiro grau quanto do segundo, ou seja, do ensino fundamental e médio através de
um “Cursinho” por correspondência.
Com a morte da sua mãe a família fica composta pelo pai e seus seis filhos; João
Augusto dos Santos, Maria Luzia, Eunice Augusto (Nice), Maria da Glória (Pequena,
Dofona), Ernestina Augusto (Neta), Aluízio Augusto (Daí) e José Augusto dos Santos
(Cubéu) o filho caçula. Com um ano de falecimento da mãe de José seu pai e os irmãos
passam a enfrentar diversas dificuldades. Após a venda dos animais e da casa do povoado
Bomfim, eles se mudam para o município de Riachuelo, na fazenda Olinda. 262
261
Depoimento de Acácia Maria S. Sampaio, concedido a Flávia Delfino dos Santos, São Cristóvão,
10.10.2007.
262
SANTOS, José Augusto dos. A vida de um babalorixá: a luz D’Obacoussou brilha sobre nagô de Aracaju.
Rio de Janeiro: Portais, 2000.
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1.2 Juventude de Cubéu
Na Fazenda Olinda, em Riachuelo José começou a freqüentar sessão de mesa de
Toré. Com o afastamento de seus irmãos, o único que permaneceu ao lado do pai foi José. 263
Ele começa a dar indícios de como foi a sua inserção no meio dos cultos afros, sendo assim no
início do século XV.
Durante a sua infância, José Augusto não teve tempo para brincar, já na juventude
Cubéu (nome herdado do seu pai), sempre se dedicou a ajudar no sustento do seu pai, através
da pesca, da roça entre outros. Com o retorno de José para o Riachuelo trabalhou como
alfaiate e depois foi trabalhar em uma mercearia para o senhor Zacarias, já com treze anos de
idade, Cubéu foi trabalhar de marceneiro.
Com apenas quinze anos de idade ele vinha para a capital aracajuana. Saia a pé
do Povoado Bomfim para o Município de Riachuelo e tentava pegar o trem que de lá saía com
destino a Aracaju. E, infelizmente, quando não conseguia pegar o trem, ele vinha a pé para
Aracaju devagarzinho cortando pelo mato até chegar. Outro motivo das vindas de José a pé
para Aracaju poderia também ser o financeiro, pois ocorre a possibilidade de que ele não
tivesse o dinheiro para viajar se utilizando desse transporte (trem).
O trem era um meio de transporte bastante utilizado na época, dentre as cidades
do interior e da capital.
(...) o deslocamento era facilitado pelos trens da Leste Brasileira,
popularmente conhecidos como Maria Fumaça, que passando pela periferia
de Aracaju e em várias outras cidades sergipanas e baianas, transportavam
mercadoria e gente. (DANTAS, 2002: 97)
José Augusto, com intuito de ajudar o seu pai vinha a pé para a Cidade de Aracaju
ou na Marinete do Senhor Mizael para trabalhar na casa de Dona Feia. Logo em seguida, sua
irmã Luzia foi trabalhar com ele na mesma casa. Tanto José como Luzia faziam doces na
Casa de Dona Feia sendo que estes eram vendidos de porta em porta. Já durante os finais de
semana quinzenalmente e de trem Cubéu e Luzia levavam o que ganhavam para o pai
(Felisberto). José ia nos finais de semana fazer carrego264 no Mercado Central da época
levando em um cesto apoiado na cabeça as compras.
263
Idem.
264
Carrego é ato de carregar as compras de alguns consumidores em troca de alguns trocados as quais eram
revertidos para o seu pai.
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Percebe-se que entre a infância e a juventude José Augusto teve que encarar
diversas dificuldades como fome, a perda da mãe com sua pouca idade, o afastamento dos
irmãos e depois tentar encontrar subsídios para cuidar de seu pai e para sobreviver, sendo que
ele foi o único que não abandou o pai com a vinda para o município de Riachuelo, mais
precisamente para uma fazenda localizada em Olinda.
Vários dos seus irmãos migraram para municípios vizinhos e até para outros
estados, como Rio de Janeiro e Salvador.
Então, diante das dificuldades, Cubéu resolveu sair da zona rural para a zona
urbana. No ano de mil novecentos e quarenta e três, o pai de José, Felisberto tem uma
infecção intestinal a qual provoca o seu falecimento no mesmo ano. Após o ocorrido José,
com o objetivo de mudar de vida, sai de Riachuelo (Olinda) para tentar uma nova vida na
capital aracajuana.
Após sua mudança definitiva, Cubéu encontrou a sua primeira mãe de santo
Maria das Dores, depois ele conheceu Maria de Pelage, e posteriormente Bailó. Estas eram
mães- de- santo antigas aqui na capital de Aracaju. Maria das Dores foi que o “abrigou” em
sua pensão. Essa senhora era filha de santo de Nanã de Aracaju.265
Ainda jovem, com exatamente 18 anos de idade, Cubéu namorou uma senhora,
Dona Flora, que teve a oportunidade de conhecer na casa de Nanã. Ela morava no Bairro
América, no Alto da Bela vista e era iniciada. Mas José Augusto só esteve pouco tempo ao
lado desta senhora. Com ela teve o seu primeiro filho, chamado Emanuel, mas a senhora
vendeu a criança, segundo Santos, quando esta tinha exatamente três meses de nascida. José
ao descobrir o acontecido foi conversar com D. Flora e soube que a criança tinha sido levada
para conviver ao lado de um casal. Logo em seguida, abandonou D. Flora e depois de algum
tempo ele soube que ela estava grávida do segundo filho chamado de José Augusto. No
entanto, José falou a Dona Flora que só criaria os dois filhos. 266
José Augusto foi por um tempo evangélico, mas depois ele se deu conta de que a
parte espiritual ou mediunidade continuava prevalecendo, ou seja, mesmo sem nenhuma
preparação ou iniciação a mediunidade já era aflorada. Tentou também ser coroinha da Igreja
Católica, levando o defumador, mas também não encontrou nessa a sua religião.
Observa-se que José circulou por várias religiões. É nesse momento que amplia-se
o Toré ou Torreia em Aracaju. Nesse contexto ele começou a freqüentar o Toré, pois achava
265
SANTOS, José Augusto dos. A vida de um babalorixá: a luz D’Obacoussou brilha sobre nagô de Aracaju.
Rio de Janeiro: Portais, 2000.
266
Idem.
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bonito. Quando passou a freqüentar seus orixás boiadeiro, amazoneiro e senhores caboclos
que já se faziam presentes, desde muito cedo para ensinar remédios.
Segundo suas memórias, desde sua infância se torna perceptível a sua
mediunidade, fato que marcou sua vida. Então constata-se que era realmente um autodidata,
pois, mesmo sem possuir "formação” alguma, conseguiu aprender e ensinar aos seus “filhos”
diversos conhecimentos desde relacionados à natureza até o ato de lidar com os cultos e o
respeito para com a tradição.
Já que naquela época ele se encontrava solitário, José começa a freqüentar casas
de santo. Entre as pessoas que ele conheceu na cidade de Aracaju tem a Srª. Maria Luiza a
qual narrou que era praticamente vizinha dele no Bairro Suíssa e por gostar de freqüentar e
olhar Candomblé o conheceu. Maria Luiza revela que nesse momento José estava casado com
uma senhora com o nome de Zizinha. É exatamente nessa fase que os três (Zé D’Obacoussou,
Maria Luiza e Zizinha) saíam, com o intuito de brincar nas casas de Candomblé.
1.3 O início da vida de um Babalorixá
No nagô há uma “hierarquia” que está dividida em Louxa, Babalouxa, Ialouxa,
Patrão e Ajudante os quais, têm raiz africana. As orações, os cantos fazem parte dessa
religião. Não há a raspagem do cabelo, somente lava-se a cabeça e canta-se para o santo que o
filho de santo recebe.
No dia 3 de maio de mil novecentos e quarenta e cinco, data como sua primeira
obrigação, a senhora Maria de Pelage, da nação Nagô lavou a cabeça de José no Rio Sergipe,
coroando em sua cabeça Obacoussou o rei que nunca morre (Xangô), “nasce” então Zé
D’Obacoussou.
Segundo Santos:
(...) fiz santo no dia primeiro de fevereiro de mil novecentos e quarenta e
nove, na Rua do Acre com minha mãe Bailo. Recebi adeká com minha mãe
Nanã e Bailo no mês de julho já no bairro Suíssa, em Aracajú, pois já tinha
casa de santo, o primeiro barco que recolhi foi de cinco iaôs e assim
prossegui com minha vida de Babalorixá.”(SANTOS, 2000: 18).
A partir desse momento Zé D’Obacoussou começou a trabalhar com o santo, ou
seja, fazendo consultas com os caboclos Boiadeiro, Juremeiro (raspado Erê Jureminha) e Tupi
Amazoneiro, e trabalhou também durante um tempo com o Exú Bandeira.
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Outra senhora que chegou a compartilhar parte da vida com Zé D’Obacoussou foi
a Srª. Ondina Borges ou D. Zizinha, que era viúva e foi à primeira esposa dele. Ela era natural
do município de Riachuelo, local onde Zé D’Obacoussou morou durante alguns anos, sendo
uma das fases da sua vida com o seu pai. Ao lado de Zizinha, José chegou a ter sua primeira
filha oficialmente reconhecida. Foi chamada Maria Tereza Borges dos Santos que chegou a
gerar um filho Francisco César Borges, neto de Zé D’Obacoussou.
Ao receber seu adecá, o babalorixá ou pai- de -santo, passa fazer iaô, que são os
filhos de santos; ogan, que são responsáveis pelos toques para que os virantes (filhos de santo)
recebam as entidades de acordo com o seu chamado, havendo assim uma hierarquia no
Candomblé.
Francisco, filho de Maria Tereza, morava com a sua avó mais com o falecimento
de sua avó Srª. Ondina, passou a residir na casa de seu avô (Zé D’Obacoussou) durante um
ano e meio. Os filhos que Zé D’Obacoussou teve do primeiro namoro, com a senhora D. Flora
foram Emanuel Lima e José Augusto dos Santos, a primeira filha fruto (casamento) foi Maria
Tereza, já Acácia Maria é a quarta filha e Elielson, são fruto de um novo casamento entre Zé
D’Obacoussou e a Senhora Nercília Silva quando este já se encontrava morando no Estado do
Rio de Janeiro.
Durante a década de setenta, fase em que Zé D’Obacoussou foi ao Rio de Janeiro,
ele passou por momentos complicados, pois teve em uma noite de natal uma trombose
cerebral. Depois, no próximo ano, exatamente no mês de dezembro, teve um problema na
garganta e recebeu a notícia de que não iria mais conseguir se comunicar. Mas no mês de
dezembro com os festejos para Iansã, com a finalização dos festejos, houve a cura para José.
Já na década de oitenta, Zé D’Obacoussou tem um infarto agudo no miocárdio,
com a sua melhora depois de um intenso tratamento. Após retorna para casa e faz suas
obrigações. Depois de certo tempo José tem uma infecção intestinal que teve duração de um
ano e alguns meses. Após driblar tantas vezes a “morte” por intermédio dos Orixás que o
protegia, retorna para Sergipe de forma um tanto forçada, pois José não tinha o objetivo de
retornar para Aracaju.
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1.4 Ketu e Zé D’Obacoussou
Segundo Acácia “(...) ele fundou a casa dele não é, a primeira casa de candomblé
que ele fundou foi na Suíssa, ai da Suíssa, quando ele começou a crescer e daí venho para a
Avenida Rio de janeiro número 1949, dali ele foi fazer uma filial no Rio de Janeiro onde
durou trinta, trinta e um anos, na Rua Helena, número 12 cidade Leal”.
Com a saída “definitiva” de Zé D’Obacoussou para o estado do Rio de Janeiro a
sua irmã Maria da Glória (Dofona) assumiu e ficou à frente do terreiro na Avenida Rio de
Janeiro, conhecida como Linha de Ferro. Entre os filhos de santo que foram iniciados lá tem
Manuel Antônio (Sileu Ace) que foi recebido por Dofona e foi iniciado na Avenida Rio de
Janeiro,
Eu chegando da Umbanda de São Paulo aonde fiquei nove anos, né o
problema espiritual, eu mi levaram até a casa de Zé D’Obacoussou na linha
de ferro aonde, lá eu encontrei a irmã, a falecida Dofana, né.” (Manuel
Antônio). 267
Com a sua saída para o Rio de Janeiro, onde permaneceu por 31 anos, Zé
D’Obacoussou conseguiu criar e confirmar diversos adeptos, inclusive foi no Rio que ele
conseguiu se tornar mais conhecido e respeitado, com a nação Angola.
Entre as suas viagens realizadas pelo sacerdote, existiram as nacionais como para
São Paulo e as internacionais (sendo estas a África, Paraguai, Uruguai, Argentina, Estados
Unidos). Todas as viagens realizadas foram de cunho principal voltado para trabalhos e a
viagem para a África, mais especificamente para a terra de Xangô (Oió), com o objetivo de
conhecer mais fundo a origem de sua entidade maior.
Com o retorno, de Zé D’ Obacoussou abre um novo espaço religioso no Eduardo
Gomes.
É através destas viagens que o sacerdote Zé D’Obacoussou consegue “conhecer”
adquirir e aprimorar o culto religioso, pois estas viagens possuem um papel muito
significativo para alguns sacerdotes, por serem uma forma de promover transações ou até
ligações com as raízes dos Cultos, desde viagem ao Rio de Janeiro, até principalmente para a
África, tida como o berço dos cultos. Deste espaço é possível retirar não só o conhecimento,
267
Depoimento de Manuel Antônio, concedida a Flávia Delfino dos Santos, Aracaju, 08.11.2007.
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mas profundo sobre os cultos mais também trazer elementos do continente africano para o
Brasil como forma de veracidade ao culto ou até mesmo de continuidade e de valorização da
tradição africana.
Com o falecimento de sua irmã Maria da Glória (Dofona) e com grave problema de
saúde, Zé D’Obacoussou retornou para Aracaju onde acaba abrindo um novo espaço
religioso, localizado no Eduardo Gomes no município de São Cristóvão, na Rua Almir Caz de
Azevedo, número 595.
Foi no Eduardo Gomes que Zé D’Obacoussou conseguiu manter bons
relacionamentos com políticos, entre estes Leandro Maciel, que foi Senador e Deputado
federal, servindo como representante do estado de Sergipe. Essa relação é refletida e
comentada, por seus descendentes, Segundo Acácia:
Na época que meu pai morava aqui em Aracaju, ele contava pra gente que
dia de aniversário dele, Leandro Maciel mandava sempre uma banda do
corpo de bombeiros acordar ele, então ele era acordado com aquele toque
das cornetas dos bombeiros, meu pai sempre foi muito querido, muito bem
quisto.268
Percebe-se então que Zé D’Obacoussou mantinha uma relação muito boa para
com a política da época. A prova disso é que era realizado um tipo de homenagem durante os
dias de seu aniversário, sendo que essa homenagem era mantida por parte de um político de
destaque na época, ou seja, se encontrava em grande evidência no cenário político, sendo este
Leandro Maynard Maciel que por intermédio da UDN (União Democrática Nacional) foi
eleito em uma fase em que no Brasil os udenistas estavam sendo considerados como os
causadores da morte de Getúlio Vargas. Mesmo assim, o Leandrismo é considerado como
uma das fases que Sergipe teve realmente uma liderança política que sempre desenvolveu em
atividade administrativa uma política desenvolvimentista voltada para o Estado.
Exerceu relacionamento amistoso com as lideranças dos diversos grupos de
culto afro brasileiro e facilitou o acesso de homens do “povo” ao Palácio,
muitas vezes sem hora determinada nem protocolo para recebê-los.
(DANTAS, 2004: 132).
Com o seu retorno para a cidade diversos adeptos promovem uma festa, em que se
comemorou a volta do sacerdote mesmo estando gravemente debilitado, pois as doenças
268
Depoimento de Acácia Maria S. Sampaio, concedido a Flávia Delfino dos Santos, São Cristóvão,
10.10.2007.
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provocaram em alguns momentos de fragilidade. Mas o chefe religioso continuou sendo um
bom zelador e companheiro dos que chegavam ao terreiro, “a volta dele do Rio de Janeiro
para o Eduardo Gomes, quando ele veio definitivo, foi a maior festa de todos os tempos, foi
em 89 ou 90 (...).” (Manuel Antônio).
Passaram-se os anos e por motivo de saúde, e até mesmo para preservar a
minha vida meu pai Oxosse pediu que voltasse para Aracaju onde estão as
minhas raízes, meu primeiro axé, assim foi feito com a ajuda de Deus e de
todos os orixás. Foi construído outro barracão, pois precisava dar obrigação
e seguimento do axé D’Obacoussou pois tudo de ruim me acontecia.
(SANTOS, 2000: 94)
Com o seu retorno para a capital aracajuana o Babalorixá já tinha suas mãos
abençoadas pelos Orixás de Xangô, Oxosse, Oxum, Oxalá e Iansã.
Entre as viagens realizadas anualmente por Zé D’Obacoussou, estava a ida a sua
cidade natal no município de Divina Pastora para o Povoado Bomfim com o simples objetivo
de estar presente na celebração de missas anuais e rever parentes e amigos de infância.
O espaço religioso fundado e mantido por Zé D’Obacoussou durante muitos anos
recebe atualmente o nome de Axé Ilé Obá Abaça Odé Bamirê, sendo que quem assumiu o
trono foi o Babalorixá Obá Fanidê, Arvanley Augusto.
Diante dos ensinamentos deixados pelo sacerdote Zé D’Obacoussou é visível que
tanto na música ou através de seus cânticos e do seu livro o respeito e a tradição da cultura
afro permanecerá viva dentro de cada um dos seus três mil filhos de santo que reconhecem e
valorizam a vida de Zé D’Obacoussou.
Nosso personagem principal morreu em 24 de outubro do ano de 2006 no
aeroporto internacional do Rio de Janeiro o Babalorixá Odê Bamirê mais conhecido como Zé
D’Obacoussou. Essa então foi a última vez que Zé D’Obacoussou retornou para a sua cidade.
Seu corpo foi transportado até o cemitério no carro do Corpo de Bombeiros, onde teve
centenas de seguidores. Durante o cortejo e diversos poderes civis, militares, federais,
administrativos e políticos de Aracaju e de outras localidades prestaram sua homenagem.
Zé D’Obacoussou foi uma pessoa ilustre, que valorizava a beleza natural das
plantas, ervas, era um sacerdote que adorava principalmente dançar e cantar Candomblé, um
personagem da História da cultura afro de Sergipe para o mundo e para a maioria das pessoas
que o conheceram, o tinha como “rei”.
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edição. Editora Eco.
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África. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. Ed. UFRJ, 2003. 287p.
ENTREVISTAS
Depoimento de Acácia Maria S. Sampaio, concedida a Flávia Delfino dos Santos, São
Cristóvão, 10.10.2007.
Depoimento de Acelina Santana Bento, concedida a Flávia Delfino dos Santos, Povoado de
Divina Pastora – Bomfim, 27. 11. 2007.
Depoimento de Manuel Antônio, concedida a Flávia Delfino dos Santos, Aracaju,
08.11.2007.
Depoimento de Maria Luiza, concedida a Flávia Delfino dos Santos, Aracaju, 09.11.2007.
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Depoimento de Maria de Lurde Santos; concedida a Flávia Delfino dos Santos; Aracaju,
28.11.2007.
Depoimento de Maria José Jesus; concedida a Flávia Delfino dos Santos; Aracaju,
28.11.2007.
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ENTRE O RACISMO E A CIDADANIA: O LUGAR DO CANDOMBLÉ
NO UNIVERSO RELIGIOSO BRASILEIRO NAS DÉCADAS DE 1930 E
1940
Julio Cláudio da Silva - UFF
[email protected]
Qual é o lugar do candomblé e das religiões de origem africana no universo religioso
brasileiro? O candomblé é a religião dos orixás formada na Bahia no século XIX, a partir das
tradições e costumes de grupos africanos escravizados trazidos para o Brasil. Nossa
comunicação analisa o papel dos especialistas nos estudos das religiões afro-descendentes nas
lutas pela liberdade dos cultos religiosos nos candomblés da Bahia, nas décadas de 1930 e
1940. Líderes religiosos, intelectuais e ativistas negros reivindicaram a liberdade religiosa
como parte da luta anti-racista do período. Um caso emblemático desse processo foi à
fundação do Conselho Africano da Bahia e a elaboração do Memorial a ser encaminhado ao
governador do Estado. O argumento central do Memorial é o de que já estaria provado por
Nina Rodrigues, Arthur Ramos, e os integrantes do Congresso Afro-brasileiro de 1934 e 1937
que as religiões de origem africana não atentam contra a moral e a ordem pública. Fez parte
da luta pelo respeito aos direitos civis à retirada das mãos da polícia do controle daquelas
atividades religiosas. No limiar do século XXI o governo federal brasileiro tem adotado
diversas medidas para valorizar positivamente o afro-descente e sua cultura, inclusive sua
religião. Nossa comunicação tentara identificar um dos momentos precursores a esse
processo: a organização de um amplo arco de aliança na luta anti-racista de valorização
positiva dos afrodescendentes e sua cultura no Brasil na primeira metade do século XX.
Palavras-chave: Candomblé, congresso afro-brasileiro.
O Anti-Racismo dos Estudos das Populações e Culturas de Origem Africana
Qual é o lugar do candomblé e das religiões de origem africana no universo
religioso brasileiro? O candomblé é a religião dos orixás, formada na Bahia no século XIX,
por ladinos a partir das tradições e costumes de grupos africanos escravizados trazidos para o
Brasil. Para podermos responder minimamente a essa questão é necessário percebermos as
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marcas das hierarquias sociais da sociedade escravista, metamorfoseada em hierarquias raciais
de cunho pseudocientíficas engendradas na América Colonial Portuguesa, no Brasil Império e
nas primeiras décadas da República. A percepção negativa das populações e culturas
afrodescendentes se desenvolveu no decorrer do século XIX com certos níveis de hegemonia,
no Brasil e no mundo, até o fim da década de 1940. O presente artigo analisa o papel dos
especialistas nos estudos das religiões afro-descendentes nas lutas pela liberdade dessas
religiões em geral e dos candomblés em particular, nas décadas de 1930 e 1940. A valorização
positiva das religiões de origem africana nesses estudos fez parte do posicionamento político
de alguns de seus estudiosos. Na primeira metade do século XX, líderes religiosos,
intelectuais e ativistas negros reivindicaram a liberdade religiosa, como parte da luta antiracista do período. Um caso emblemático desse processo foi a fundação do Conselho
Africano da Bahia e a elaboração do Memorial a ser encaminhado ao governador do Estado
da Bahia, em 1937. O argumento central do Memorial é o de que já estaria provado por Nina
Rodrigues, Arthur Ramos, e os integrantes do Congressos Afro-brasileiros de 1934 e 1937
que as religiões de origem africana não atentam contra a moral e a ordem pública. Fez parte
da luta pelo respeito aos direitos civis a retirada das mãos da polícia do controle das
atividades religiosas. Todavia a resistência às reivindicações destes setores da sociedade nos
leva a acompanhá-las até o último ano da década de 1940. No limiar do século XXI o governo
federal brasileiro tem adotado diversas medidas para valorizar positivamente o afro-descente e
sua cultura, inclusive sua religião. Contudo, novos desafios se apresentam. As religiões dos
afrodescendentes não são mais um caso de polícia, mas são percebidas e combatidas, sobre
tudo pelas igrejas pentecostais, como demoníacas.
As décadas de 1930 e 1940 foram marcadas pelo debate em torno da elaboração,
redefinição do novo conceito de nação. Como parte deste processo foram ampliados e
sistematizados os estudos acadêmicos dos significados das populações e culturas de origem
africana na formação social brasileira. Ao buscar contribuir e influir nos debates acerca de
nossa formação social esses estudos constituíram-se em objeto de um campo intelectual
(BOURDIEU, 1992; 1990; 1974) de reflexão, conhecido neste período como Estudos Afrobrasileiros. Neste campo intelectual, os estudos das religiões afrodescendentes tornaram-se
um dos seus principais objetos de estudo.
Um dos objetivos do presente artigo é analisar os significados do estabelecimento
de relação de alianças entre os especialistas nos estudos das religiões afrodescendentes, seus
lideres religiosos e o ativismo negro, no processo de valorização positiva dessas
manifestações culturais, em particular as estratégias e lutas desses grupos pela liberdade dos
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cultos das religiões afrodescendentes em geral e dos candomblés da Bahia em particular, nas
décadas de 1930 e 1940. A referida relação de alianças fez parte dos posicionamentos antiracistas do período, tomados em espaços de sociabilidade como o 1º Congresso
AfroBrasileiro do Recife, 1934, o 2º Congresso Afro-Brasileiro ocorrido na Bahia em 1937, é
1º Conferência do Negro Brasileiro, realizada no Rio de Janeiro em 1949, bem como a
manifesto público pela liberdade religiosa feita nas páginas do jornal Quilombo em 1950.
Tomaram parte nessas redes de relações especialista nos estudos das religiões de origem
africana como Arthur Ramos269 e os intelectuais ativistas negros como Edson Carneiro270.
Anti-Racismo E Cidadania: A Luta pela Liberdade Religiosa dos Negros na Bahia
O anti-racismo presente nos Estudos Afro-Brasileiros e na trajetória de alguns de
seus especialistas os aproximou dos intelectuais ativistas dos “movimentos negros”, nos
espaços de sociabilidade intelectual. Essa aproximação se deu em eventos como os
Congressos Afro-brasileiros de 1934(Recife) e 1937(Bahia), as Comemorações do
Cinqüentenário da Abolição da Escravidão 1938 (São Pulo) as preparações das celebrações
pelo Cinqüentenário do Fim do Tráfico Negreiro, 1ª Conferência Nacional do Negro de 1949
(Rio de Janeiro) 1º Congresso do Negro Brasileiro 1950 (Rio de Janeiro). Estes eventos foram
marcados por uma grande participação de intelectuais, gerando debates e disputas em torno
das interpretações do papel das populações e culturas de origem africana na sociedade
brasileira. Esses registros revelam o estabelecimento de alianças entre os intelectuais e
membros das “associações negras” (SILVA, 2005).
Nesta relação, coube aos intelectuais garantirem a legitimidade das ações e
reivindicações de movimentos sociais, como no Congresso de 1937 e na 1º Conferência do
Negro Brasileiro de 1949, mensurada sua importância pela participação ou expressão de apoio
de intelectuais reconhecidos. Nesses eventos os trabalhos poderiam ser apresentados
pessoalmente pelos autores ou lidos por seus representantes. Uma outra forma de vinculação
ao evento era o apoio manifesto: “quando, por uma questão de brevidade de tempo, não
pudessem enviar trabalhos”. No caso do Congresso de 1937 esse tipo de apoio teria sido dado
269
Arthur Ramos de Araújo Pereira nasceu no Estado de Alagoas em 1903, foi professor catedrático em
Antropologia e Etnologia na Faculdade Nacional de Filosofia e diretor do Departamento de Ciências Sociais da
UNESCO, em Paris, onde falecerá em 1949.
270
Edison de Souza Carneiro nasceu em Salvador, Bahia, em 12 de agosto de 1912. Faleceu no Rio de Janeiro
em 1973. Diplomou-se em Direito em 1935 na Faculdade de Direito da Bahia. Foi ensaísta, jornalista e redator
dos jornais Estado da Bahia (1936-1939), O Jornal (1939) e da Associed News (1941), folclorista e etnólogo.
(COUTINHO e SOUSA, 20001. p. 1411-1412. Vol. I).
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por Rüdiger Bilden, Fernando Ortiz, Richard Pathee, Melville Herskovits (CARNEIRO e
FERRAZ, 1940. 8).
A ampla rede de solidariedade, na qual se assentara o 2º Congresso AfroBrasileiro, era formada também pelo apoio de instituições religiosas e laicas. Assim como em
34, os “terreiros” da Bahia teriam participado do Congresso de 37. Mas neste último ficou
registrado oferecimento de festas aos congressistas. O Axé Apo Afonjá, do Engenho Velho,
“o mais velho ‘terreiro’ do Brasil”, teria oferecido uma delas. Outras festas teriam sido dadas
pelos terreiros de Procópio, de Bernadino e do Alaketu (CARNEIRO e FERRAZ, 1940. 8). O
Congresso da Bahia foi o primeiro a receber significativa atuação e apoio de organizações
definidas por Arthur Ramos como “Associações Negras Contemporâneas” (RAMOS, 1971).
Foi recorrente a reivindicação de Edison Carneiro e Aydano do Couto Ferraz, em relação à
cientificidade do Congresso da Bahia. Contudo, vinculado aos “movimentos negros”, neste
evento se deu a fundação de uma entidade em defesa da liberdade de culto religioso, a União
das Seitas Afro-Brasileiras da Bahia (CARNEIRO e FERRAZ, 1940. p. 11).
A luta pela “liberdade religiosa dos negros” na Bahia parece ter sido uma
iniciativa de Edison Carneiro. No dia 3 de agosto ele teria convocado ogãs, pais-de-santo e
gente de candomblé para fundar o Conselho Africano da Bahia. O Conselho designaria um
representante de cada candomblé para substituir a polícia no controle dos cultos. Neste dia
todos teriam assinado o memorial ao governador, solicitando a liberdade religiosa e o
reconhecimento da autoridade dos conselheiros. Nessa tomada de posição anti-racista
Carneiro contava com o prestígio de um importante aliado: Arthur Ramos, a quem escreve.
“Já fiz o memorial e vou fazer os estatutos do Conselho. Acho que conseguiremos tudo, pois
o governador271 tem uma bruta admiração por você e por Nina”.272 O argumento central do
“Memorial” é de que Nina Rodrigues, Arthur Ramos e os participantes do 1º e 2º Congresso
Afro-brasileiros já teriam provado que a prática de seitas africanas não atenta contra a moral
ou ordem pública. Todos os intelectuais ligados aos congressos “têm reclamado a liberdade
religiosa dos Negros como uma das condições essenciais para o estabelecimento da justiça
entre os homens”.273
O “Memorial” é uma evidência dos resultados possíveis da aliança entre
intelectuais e os ativistas dos movimentos sociais. Todavia é o processo de utilização do nome
271
Segundo Waldir Freitas Oliveira, o governador citado era o capitão Juracy Magalhães interventor do estado
da Bahia e eleito para o cargo em 1934. Cartas de Edson Carneiro a Arthur Ramos de 04/01/1936 a 06/12/1938.
(FREITAS e LIMA, 1987. p.152-153).
272
Carta de Edson Carneiro a Arthur Ramos 19 de julho de 1937. Arquivo Arthur Ramos-FBN/RJ
273
O documento foi publicado em RAMOS, Arthur. O Negro na Civilização Brasileira(1939). Rio de Janeiro,
Guanabara, Editora Casa do Estudante do Brasil, 1971. p. 200.
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dos intelectuais participantes dos Congressos de Recife e da Bahia, particularmente o de
Arthur Ramos, na construção do argumento de autoridade cientifica que nos interessa
destacar. Essa passagem revela como as teses acadêmicas formuladas por Ramos sustentaram
as reivindicações dos atores sociais organizados em 37 e posteriormente em 49, entre as quais
a liberdade de culto religioso. Reivindicar a livre expressão de uma religião é tentar, na
prática, garantir direitos civis, logo uma atitude política, portanto rechaçar algum nível de
discriminação. Talvez isso explique a razão de especialistas nos Estudos Afro-Brasileiros,
sobretudo, nos estudos de religiões de origem africana, estabelecerem essas aproximações ou
relações de solidariedade com esses atores sociais.
Parece que os diversos modos de contato e aproximações dos especialistas nos
Estudos Afro-brasileiros ou Afro-americanos com os ativistas negros foram além dos limites
dos Congressos e dos países. A ação da rede internacional de idéias permitiu a Melville
Herskovits o acesso a uma das obras de Edison Carneiro, Religiões Negras274. Naqueles anos
o “Negro” Edison Carneiro era definido como um escritor “contemporâneo dedicado aos
problemas do Negro”, e também percebido como um “dos elementos de destaque no moderno
movimento brasileiro de reivindicação do negro”.275
Esses dados podem ser importantes para o estudo da trajetória dos atores sociais
envolvidos com o ativismo negro, pois no final dos anos quarenta Edison Carneiro também
co-organizou, ao lado de Abdias Nascimento276 e Guerreiro Ramos277, a 1º Conferência do
Negro de 1949. No último ano desta década Edison Carneiro redigiu um artigo publicado no
jornal Quilombo do Teatro Experimental do Negro, liderado por Abdias do Nascimento.
Nesse artigo Edison Carneiro denuncia a privação da liberdade religiosa e exorta os fiéis
prejudicados a uma mobilização coletiva.
274
Nas correspondências Arthur Ramos e Melville Herskovits comentam a proximidade
existente nas abordagens de Religiões Negras e O Negro Brasileiro. Sobre esta obra,
Herskovits a teria utilizado extensivamente para a elaboração do “paper” enviado ao 2º
Congresso Afro-brasileiro. Cartas de Arthur Ramos a Melville Herskovits de 01/12/1936 e de
Melville Herskovits a Arthur Ramos de 7/01/1937. Arquivo Arthur Ramos-FBN/RJ.
275
“Lista dos brasileiros de qualquer raça que influenciaram sobre a vida dos Negros”. Manuscrito de 1937, S/L.
Arquivo Arthur Ramos/FBN-RJ.
276
Abdias Nascimento nasceu em Franca, São Paulo no dia 14 de março de 1914. Diplomou-se em contabilidade
em 1929 e ciências econômicas em 1938. Foi diretor-fundador do Teatro Experimental do Negro (1944-1968) e
um dos organizadores do Primeiro Congresso do Negro Brasileiro de 1950. Dicionário Histórico Biográfico
Brasileiro Pós 30. (ABREU et al. 2001. p. 4030-4031).
277
Alberto Guerreiros Ramos nasceu em Santo Amaro, na Bahia, em 13 de setembro de 1915 e faleceu em Los
Angeles, Califórnia, nos Estados unidos, em 7 de abril de 1982. Bacharel em Direito em 1943 pela Faculdade de
Direito do Rio de Janeiro, Assessorou Getúlio Vargas entre 1951 e 1954 e dirigiu o Departamento de Sociologia
de ISEB. bid. ABREU, Alzira A. et al. p. 4883.
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Uma iniciativa do Teatro Experimental do Negro, com o apoio do Quilombo, a 1º
Conferência do Negro Brasileiro de 1949 também buscou dar relevo ao caráter cientifico do
certame. A proposta de reunião estaria “despida de qualquer tendência político partidária”,
mas centrada em temas acadêmicos: “exclusivamente com estudos dos problemas de
antropologia e sociologia relacionados ao negro”. O objetivo da Conferência era organizar um
“Congresso dos Negros” de âmbito nacional, o qual receberia representação de todo o país
para o debate em torno “das questões básicas para o progresso da gente de cor”. Para a
Conferência seriam convidados todos os intelectuais e artistas que em alguma medida
estivessem preocupados com o desenvolvimento da temática, entre os quais: “Gilberto
Freyre278, Arthur Ramos”. Como ocorrera no Congresso de 37, o apoio de especialistas nos
estudos afro-brasileiros como Arthur Ramos e Roger Bastide, 279 além dos representantes das
Nações Unidas e dos “negros”, garantiram a legitimidade acadêmica e política para o
acontecimento.
O evento recebeu uma cobertura internacional muito valorizada, a do “The
Pittsburgh Courier”, na figura do “eminente jornalista George Schuyler”280.Segundo o
Quilombo, o escritor e jornalista George S. Schuyler representava “o mais importante órgão
da imprensa negra norte-americana”. Sua presença seria o testemunho “da importância
nacional e internacional desse evento” (Quilombo. nº.3. 1949. p.6). Mas ela também pode ter
refletido a ampliação do arco de aliança dos especialistas nos Estudos Afro-brasileiros. Foi a
um deles que Schuyler solicitou informações, sobre o evento que pensara ser o primeiro do
gênero no Brasil. Por isso o The Pittsburgh Courier o considera um episódio muito
significativo.281 Cabe sublinharmos a extensão das alianças estabelecidas pelos especialistas
do campo dos Estudos Afro-brasileiro, particularmente nos estudos das religiões de origem
africana, junto aos movimentos sociais. As relações com os movimentos sociais se
estenderam até os órgãos de imprensa negra norte-americano
278
Gilberto Freyre nasceu em 15 de março de 1900 em Pernambuco, onde faleceu em 18 de julho de 1987. Foi
Sociólogo formado na Universidade de Bayler e em Columbia, nos EUA. (COUTINHO e SOUSA, (Dir), 20001.
p. 733-734.
279
Roger Bastide nasceu em 1898 (o dicionário não informa data ou local de seu falecimento). Foi Professor da
FFCL da USP e membro do Instituto Internacional de Sociologia. Foi especialista em Sociologia e Folclore da
Religião. (Dicionário de Sociologia., 1981. p.42).
280
Idem p. 1 e 8. Sobre a cobertura jornalística de Schuyler ver também os nº. 2. p. 1; 3. p. 6-7..
George S. Schuyler nasceu na Provincia de Rhode Island, nos Estados Unidos da América, em 25 de fevereiro de
1895. Foi editor do The Pittisburgh Courrier. Descrição Biográfica de Schuyler S/D. S/L. Arquivo Arthur
Ramos/ FBN. Dª Ruth de Souza confirmou a presença de Schuyler no Brasil em 1949 e o descreveu como
“negro”. Entrevista com a atriz Ruth de Souza, feita em dia 31 de julho de 2004.
281
Carta de George S. Schuyler a Arthur Ramos 22/4/1949. Arquivo Arthur Ramos-FBN/RJ.
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Anti-Racismo e Cidadania: A Luta pela Liberdade Religiosa dos Negros nas Páginas do
Quilombo
Em janeiro de 1950 Edison Carneiro retoma o tema da liberdade dos cultos afrodescendentes ao publicar nas páginas do jornal Quilombo o artigo “Liberdade de culto”. A
publicação deste artigo, treze anos após a publicação do memorial apresentado ao Governador
da Bahia, evidencia a longevidade destas reivindicações.282 Em outras palavras, associações
negras e seus líderes lutavam por esse direito na segunda metade da década de 1930 e
defendiam essa causa ainda no último ano da década de 1940. O artigo aponta os limites para
a prática da cidadania naqueles dias. Em diversas passagens do texto Edison Carneiro faz uma
etnografia do conflito dos religiosos com a policia (Quilombo, nª 5, 1950. p.7).
“Nenhuma das liberdades civis tem sido tão impunemente desrespeitada no Brasil,
como a liberdade de culto”. Apesar de sua base democrática o texto constitucional não tratava
com a clareza necessária quais eram os limites para as práticas religiosas. Por isso qualquer
policial “se acha no direito de intervir numa cerimônia religiosa para semear o terror entre os
crentes.” Segundo Carneiro esse tipo de intervenção teria se tornado uma prática cotidiana,
um “habito”, mesmo que a casa de culto possua “personalidade jurídica”, como prevê a
Constituição (Quilombo, nª 5, 1950. p.7).
O autor refere-se ao desrespeito a um direito elementar do cidadão afrodescendente e dos demais seguidores daqueles cultos. Segundo Carneiro está era uma
liberdade “elementar”. Contudo, sua limitação seria diretamente proporcional à escala da
hierarquização na qual eram percebidas “as religiões chamadas inferiores” por diversos
setores da sociedade e também pela polícia: “E quanto mais inferiores, mais perseguidas”, ao
contrário da Igreja Católica que não seria incomodada pelas autoridades policiais, mesmo que
seus fieis em procissão interrompam o tráfego de uma cidade como o Rio de Janeiro. As seitas
protestantes, budistas e mulçumanas também não seriam alvo da atenção policial por terem
seus cultos protegidos pelo manto da discrição (Quilombo, nª 5, 1950. p.7).
As evidências de experiências de discriminação praticada e patrocinada pelo
Estado através da polícia às religiões de origem africana remontam ao final do século XIX.
282
Ver também “O problema da liberdade de culto” seguida da transcrição da carta do Sr. Paulo Eleutério Filho,
ex-chefe de polícia para o Prof. Nunes Pereira. Quilombo, nª 10, jun/jul de 1950. p.4.
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‘O Sr. Dr Secretário de Polícia e Segurança Pública por oficio que dirigu ao Dr.
Primeiro Comissário Falcão recomendou-lhe que faça cessar um candomblé,
que há dias está funcionado no lugar denominado Gantóis, e contra o qual tem
havido queixas’.283
Os cultos afrodescendentes, com suas danças rituais, possessões e oferendas,
associada à possibilidade de audição, de seus cantos e instrumentos certamente lhes conferem
um certo nível de visibilidade. Pode ter contribuído para ampliar sua visibilidade o
significativo número de fiéis e templos praticantes de religiões de origem africana. Pelo
menos este é o quadro sugerido por Edison Carneiro em diversas passagens do texto. Com as
imagens que se seguem o autor nos sugere as razões pelas quais tais cultos tornaram-se presas
fáceis da pouca tolerância religiosa daqueles dias. “Já as religiões mais populares, mais do
agrado da massa, – o espiritismo e macumba, – são vítimas quase cotidianas da influência
moralizadora – depredação, as borrachadas e os bofetões – da polícia” (Quilombo, nª 5, 1950.
p.7).
Carneiro ligava a ação policial a uma campanha na imprensa quase que diária, “de
segunda a sábado”, contra os cultos afrodescendentes. Para ele as “folhas diárias numa
inconsciência criminosa dos perigos a que expõem todos os brasileiros, incitam policiais a
invadir esta ou aquela casa de culto, cobrindo de ridículo as cerimônias que ali se realizam”
(Quilombo, nª 5, 1950. p.7).
A Constituição então vigente, em seu artigo 141 parágrafo 7, garantia a
inviolabilidade da liberdade de consciência e de culto. Todavia havia uma ressalva. Caberia
ao Estado intervir quando os cultos “contrariam a ordem pública ou os bons costumes”. Para
ele a falta de clareza resulta da falta de uma lei complementar que regulamente a matéria,
cabendo às instituições policiais a interpretação do que seria contrariar a ordem pública e os
bons costumes (Quilombo, nª 5, 1950. p.7).
Naquele janeiro de 1950 o intelectual e ativista negro Edison Carneiro, em tom de
denúncia, deixava claro suas desconfianças a respeito da ação policial. E colocava em duvida
a legitimidade da ação policial em função de sua truculência e da sua falta de prerrogativas
para avaliar ou lidar com as alternativas religiosas que se apresentavam para a sociedade
brasileira naqueles dias.
Sabemos o que pode acontecer, em desmando e em arbitrariedade, quando
algum dos direitos do homem fica entregue aos façanhudos. Javerts
indígenas. Quanto à ordem pública e aos bons costumes, será a policia quem
pode decidir nestas questões? (Quilombo, nª 5, 1950. p.7).
283
Diário de Notícias. Salvador, 6 de outubro de 1896. Apud. (Memórias das Palavras, 2006).
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Em mais uma passagem na qual relaciona a campanha pública veiculada na
imprensa como uma invocação das instituições policiais, Edison Carneiro indaga por que as
práticas religiosas poderiam ser interpretadas como contrárias à ordem e aos bons costumes, e
descrevendo o tipo de tratamento dado pelos policiais aos fiéis. Neste sentido esta é uma
passagem elucidativa, quanto à definição de truculência, apontado pelo autor (Quilombo, nª 5,
1950. p.7).
O macumbeiro que fuma o charuto do Velho Lourenço, engole brasa ou esmaga
cacos de vidro com os pés nus, não está prejudicando ‘os bons costumes’. Isso não impede
que seja espancado, metido no tintureiro, atirado no enxovia, ultrajado e vilipendiado pelos
escribas da imprensa venal. Nem o médium espírita servindo de veículo para os mortos,
conduzindo para o seio dos vivos os irmãos do espaço, está pondo em perigo ‘a ordem
pública’. Com efeito, que ‘ordem pública’, ‘bons costumes ’serão esses? Todos sabem que é a
intervenção policial nesses cultos que subverte a ordem (Quilombo, nª 5, 1950. p.7).
Liberdade de Culto” representa a continuidade da luta iniciada em 1937,
liderada pelo próprio Edison Carneiro e seus pares. Nesta batalha também se
denunciou o controle policial sobre a realização das festas previstas no
calendário religioso dos Candomblés da Bahia: “a despeito de sua fama
internacional, do respeito que merece de homens de consideração, ainda
paga um selo policial para realizar as suas festas”.
A estratégia argumentativa de Edison Carneiro consistia em demonstrar que as
limitações religiosas não recaiam somente sobre as “macumbas do Rio, os parás de Porto
Alegre, os xangôs de Maceió e do Recife, a pajelança e o catimbó, o tambor-de-mina, as
sessões espíritas”, em fim, as religiões não católicas, mormente as afrodescendentes. Segundo
Carneiro, naqueles anos a Igreja Católica Brasileira teve suas atividades religiosas suspensas
em função da ação judicial. Seu objetivo era demonstrar em que medida as religiões não
católicas estavam sujeitas a limitações de suas práticas, e como tais limitações ferem um
direito universal a cidadania.
Em Liberdade de Culto, Edison Carneiro utiliza a mesma estratégia dos
defensores da tese de que as religiões de origem africana atentam contra a moral e os bons
costumes, ao utilizar a imprensa como veículo privilegiado de ampliação e circulação de suas
idéias. Porém, o objetivo do intelectual e ativista negro, é promover o efeito contrário, uma
ação antidiscriminatória, anti-racista.
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A imprensa seria um meio de conscientizar e
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arregimentar seguidores das mais diversas religiões, para a luta de uma causa comum: a
liberdade de culto.
Contando com o declarado apoio de dezenas de milhares de pessoas, em cada
cidade brasileira, as religiões perseguidas necessitam de coesão entre si, precisam organizarse para a conquista comum – por cima das divergências e das diferenças de concepção do
mundo – de um direito que interessa a todas. Não é a polícia quem assegura o exercício dos
direitos do homem – a prática o tem demonstrado – mas a organização, a vigilância e a
combatividade dos cidadãos. Lutando organizadamente pela liberdade de culto, as pequenas
religiões conquistarão o seu lugar ao sol (Quilombo, nª 5, 1950. p.2).
Entre a Demonizaçao e a Cidadania: O Anti-Racismo na Valorização Positiva do AfroDescendente e sua Cultura no Limiar do Século XXI
Nas últimas décadas a sociedade brasileira tem testemunhado uma multiplicação
do número de fiéis das igrejas evangélicas, pentecostal e neo-pentecostal. Entre as igrejas não
católicas que se apresentam como alternativa religiosa, as neo-pentecostais são as que mais se
multiplicam e possuem as estratégias de evangelização mais agressiva. Apesar de não
contarem com a brecha da lei e o apoio policial, essas religiões não deixam de possuir um
aliado poderoso: a mídia eletrônica.
Através de programas e cultos televisionados, em seus canais exclusivos ou em
horários pagos, igrejas as pentecostais e neopentecostais promovem um duro combate às
igrejas católicas e às religiões de origem africana. A estratégia evangelizadora consiste na
demonização de religiões como a Umbanda, religião de origem africana que reúne elementos
religiosos do Candomblé, do catolicismo e do kardecismo. O mesmo se dá em relação aos
Candomblés, religião com forte identidade com suas matrizes africanas, subdivididas em
nações como Angola, Congo, Jeje, Nagô, Ketu e Ijexá.
Os rituais praticados nas casas ou terreiros são dirigidos por um sacerdote
denominado Babalorixá (pai-de-santo) ou por uma sacerdotisa Ialorixá (mãe de santo). Os
orixás são divindades ligadas a elementos da natureza, mas, para as igrejas pentecostais e
neopentecostais os orixás em geral são identificados com satanás e sua ação na terra, sendo o
Exu a divindade que mais sofre essa identificação. Nos candomblés os Exus são divindades
consideradas o elo de ligação, o intermediário entre o céu e a terra. Dotados de poderes como
a onipresença são os donos das encruzilhadas. Também são os orixás mais identificados com
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a essência humana, despida de idealizações, a ambivalência humana dos comportamentos e
desejos contraditórios.
Em relação aos orixás e particularmente aos exus, as igrejas neopentecostais
promovem uma verdadeira cruzada, com momentos em seus cultos para a sua expulsão, ou
dias específicos destinados ao seu descarrego ou libertação. Vários dos conflitos e
dificuldades de ordem econômica, ou ligada à saúde física ou emocional, são atribuídas às
macumbas ou aos exus.
Pelas ruas de diversos bairros do subúrbio do Rio de Janeiro e Baixada
Fluminense é possível se ler nos muros pichações que estabelecem a relação entre a
demonização das religiões de origem africana, de seus orixás e, sobretudo dos exus. “Só Jesus
expulsa demônios”, “Só Jesus expulsa o Tranca Rua” ou “Só Jesus expulsa os Exus”.
Nos últimos anos tem havido uma tentativa de intervenção profunda na
organização do ensino fundamental no Brasil. Uma delas foi a aprovação e implementação
dos PCNs no final dos anos noventa. Segundo Hebe Mattos, por ser seu objetivo a formação
do cidadão, a adoção de temas transversais, como o da “pluralidade cultural”, pode
“transformar-se em ferramentas importantes na luta contra a discriminação racial no
Brasil”(2003, p. 126-136). Mais recente foi a alteração de parte da LDB (Lei. 9.394 de 20 de
dezembro de 1996) em função de novas atribuições estabelecidas pela lei 10.639 (9 de janeiro
de 2003) cujo artigo “26-A” estabelece a inclusão, nos conteúdos programáticos das escolas
do ensino fundamental e médio do estudo da História da África e doa africanos, a luta dos
negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional,
resgatando a contribuição do povo negro na área social, econômica e política e pertinentes à
História do Brasil.284 A reabilitação, via legislação federal, de temas conhecidos nos anos 30 e
40 como Estudos Afro-brasileiros talvez seja um caminho para se rechaçar formas antigas e
modernas de discriminações das manifestações culturais de origem africana, entre as quais as
religiões. Talvez as inovações promovidas por esta legislação, viabilizem a criação de novos
modos de construção do conhecimento que considerem o direito à diversidade humana, que
respeite as diferentes crenças e as alternativas religiosas existentes na sociedade brasileira.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
284
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“EM COSME E DAMIÃO EU POSSO CONFIAR”: REPRESENTAÇÕES DO
CATOLICISMO POPULAR NO COTIDIANO DAS REZADEIRAS.
Alaíze dos Santos Conceição – UNEB
[email protected]
A comunicação presente visa refletir sobre alguns elementos que permeiam o universo
religioso das Rezadeiras do município de Governador Mangabeira, levando em consideração
a presença do catolicismo (re) significado, tido como popular, um misto das contribuições do
catolicismo europeu associado a contribuições das populações afro-brasileiras. Assim,
pretende-se investigar de que maneira o apego religioso pôde contribuir para pensarmos na
formação identitária das Rezadeiras.
Palavras – chave: Rezadeiras; Catolicismo popular; religiosidade.
INTRODUÇÃO:
Pesquisadores como Nina Rodrigues, Roger Bastide e Gilberto Freyre,
285
desde o
início do século XX já investigavam a formação cultural brasileira e mais tarde chegaram a
conclusão que esta descendia especialmente da influência de três povos: brancos, índios e
negros. Tais populações experimentaram um mesmo “espaço” territorial, desde o Brasil
colonial, e puderam a partir daí externalizar práticas culturais provenientes de suas diferentes
concepções de mundo.
Os portugueses logo que aqui chegaram objetivaram transpor parte dos elementos
culturais vigentes na Europa para o Brasil, interessados em transformar a colônia numa
extensão territorial européia. Contudo, na prática, o que se verificou foram outros
acontecimentos, os portugueses se depararam com demonstrações de resistência indígena e
posteriormente resistência africana ao ignorar as diversas concepções culturais já existentes.
Os ameríndios e africanos possuíam concepções culturais que zelavam o mundo
natural e as diversas entidades sobrenaturais, o que se contrapunha ao mundo pré-moldado e
ortodoxo ao qual os lusitanos faziam parte. A importância que diversos elementos advindos
da natureza possuíam, sobretudo nas religiões tradicionais africanas, recebiam interpretações
285
Nina Rodrigues no livro “Os Africanos no Brasil”, Roger Bastide em “As religiões Africanas no Brasil” e
Gilberto Freyre em Casa-grande & Senzala já se dispunham a historiar as raízes culturais brasileiras.
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depreciativas na concepção portuguesa acarretando diversos conflitos. O sociólogo francês,
pesquisador das religiões africanas, Roger Bastide assinalou com bastante precisão tal
fenômeno: “O branco não podendo compreender uma religião tão diferente da sua, julgava-a ‘
demoníaca’ já que não era cristã”. (BASTIDE, 1985, p.128).
Em meio às tentativas de sufocar as celebrações do mundo africano, os
portugueses elaboraram estratégias para manter o controle daqueles cultos, inclusive em
diversos momentos os africanos percebendo tal intencionalidade também se faziam de
“rogados” e tiravam bom proveito da situação. O processo de adoração aos santos católicos e
virgens negras e a (re) significação implantada pelos africanos, podem ser considerados como
nítido exemplo da (re) interpretação da população afro-brasileira na tentativa de manter vivo
elementos integrantes de suas práticas culturais.
Esses fatores bem indicam que o culto de santos negros ou de virgens
negras foi, de início, imposto de fora ao africano, como uma etapa da
cristianização, e que foi considerado pelo senhor branco como meio de
controle social, um instrumento de submissão para o escravo. (BASTIDE,
1985, p.163).
Os portugueses acreditavam que podiam controlar os passos dos africanos, e estes
– por sua vez – se utilizavam dessas brechas para preservar as diversas celebrações de seus
guias e orixás que de maneira inteligente puderam servir nas “associações” aos santos
católicos, através das trocas culturais, servindo para manter a ordem e as aparências cobradas
pelos portugueses.
O apego ao mundo natural e as divindades sobrenaturais, faziam as populações
negras não aceitarem o catolicismo da forma ortodoxa e pré-moldada que os portugueses
insistiam em representar, mas em meio a presença marcante desses diversos elementos
culturais poderia ter nascido um catolicismo mais “popular” ligado às camadas afrobrasileiras da população. Um misto do mundo indígena, negro e português.
Em se tratando de Recôncavo sul baiano, podemos identificar à presença marcante
desse “emaranhado de crenças, saberes e práticas em que ritos originários dos índios, dos
negros se interpenetraram ao catolicismo e às tradições mágicas religiosas européias,
aumentando a riqueza e a complexidade de tais práticas” (LESSA SANTOS, 2005, p.75). Este
é o caso, por exemplo, das rezadeiras, curandeiros, raizeiros, mandigeiros, dentre outros que
ainda hoje habitam o Recôncavo e colocam em prática o exercício das benzeções, curas ou
receituários provenientes dessa longa tradição.
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É considerando justamente essa heterogeneidade cultural que se faz presente em
diversos espaços do país, que o artigo pretende se debruçar, para tanto se faz necessário levar
em consideração as diversas contribuições desses povos e pensar de que forma diversas
práticas culturais puderam contribuir na formação identitária das rezadeiras do Recôncavo sul
baiano.
CATOLICISMO POPULAR
Desde a colonização brasileira o catolicismo foi declarado religião oficial, não
admitindo, portanto, a existência, de qualquer outra prática religiosa. O catolicismo que se
implantaria no Brasil procuraria se caracterizar como o catolicismo presente no mundo
europeu, uma religião ortodoxa sem grandes flexibilidades.
Contudo, a presença dos elementos religiosos dos ameríndios, juntamente com as
concepções religiosas dos africanos, proporcionaram a formação de um outro catolicismo
paralelo aquele desenvolvido na Europa: o catolicismo popular. Entende-se por catolicismo
popular:
O conjunto de representações e práticas religiosas dos católicos que não
dependem da intervenção da autoridade eclesiástica para serem adotados
pelos fiés. Concretamente chamamos provisoriamente ‘catolicismo popular’
as representações e práticas relativas ao culto dos santos e à transação com a
natureza e não os sacramentos e a catequese formal (RIBEIRO OLIVEIRA,
1985, p.113).
As celebrações vindas do catolicismo popular admitem a intercessão de outros
indivíduos que não precisam ser necessariamente padres ou representantes da igreja e
apresenta grande aproximação com os elementos da natureza como a utilização de plantas,
banhos e chás. Tais práticas, muito tem em comum com a religiosidade indígena e afrobrasileira.
No catolicismo popular, existe um apego muito grande aos santos, cujas
representações transcendem ao mundo material. São seres dotados de poderes sobrenaturais,
capazes de exercer influências sobre o mundo natural e espiritual (RIBEIRO OLIVEIRA,
1985). O catolicismo popular possibilita a veneração de diversos santos: os canonizados
oficialmente, os santos populares e os santos locais que possuem relativa significância em
espaços limitados, haja vista o não reconhecimento da igreja.
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O fato dos santos estarem no céu não impedem sua intercessão, muito
menos suas representações no cotidiano das pessoas. Eles podem se fazer
presentes através da devoção intercedida pela representação simbólica da
imagem. A presença da imagem do santo no catolicismo popular representa
o possível contato direto entre os devotos e o santo, sem haver a
necessidade de intercessão de um membro religioso. Os santos são
acessíveis a todos os fiés. (RIBEIRO OLIVEIRA, 1985, p.117).
As rezadeiras demonstraram uma grande afeição a figura dos santos, fazendo
questão de demonstrar de forma prática sua eficácia e revelaram possíveis intervenções que
determinados santos puderam fazer em suas vidas.
Elas são consideradas sujeitas históricas que estão inseridas no âmbito do
catolicismo popular e pratica diversos ensinamentos herdados desse catolicismo alternativo,
ajudando a preservá-lo. A realização de uma súplica religiosa, por exemplo, intercedida pela
figura da rezadeira, tende a possibilitar novos vínculos de propagação da fé quebrando a visão
conservadora dos pedidos serem sempre intercedidos por membros eclesiásticos, a saber, do
padre. Veja o depoimento:
Eu tô viva abaixo de Deus , com a força e a fé, eu já sofri! Já cuidei de tanta
gente... Nossa alegria é nossa oração, vai pra igreja, tudo na igreja, mas a
gente pode fazer nossas oração dentro de casa 286.
A srª Celina287 embora tenha tido uma vida muito ativa ao freqüentar a igreja
católica, mesmo assim reconheceu a importância e eficácia da reza, independente do espaço
que é executada.
Ainda hoje, a rezadeira Celina possui um altar em sua casa com diversos santos:
Cosme & Damião, Rita de Cássia, São Pedro, Santo Antônio, São José, Nossa Senhora
Aparecida, Santo Expedito etc e ela insiste em dizer que faz suas orações para todos eles e por
isso se sente muito abençoada e protegida, mesmo que não possa freqüentar a igreja como
fazia antes. Segundo ele, mais importante que está sempre presente nas celebrações da igreja,
é estar em dias com as orações.
As rezadeiras que vivenciam esta atmosfera de crença parecem não atentar para a
existência dessas duas modalidades de catolicismo, o popular e o oficial, simplesmente
286
287
Srª Celina Neris, charuteira aposentada e rezadeira. Apelidada de Dona Celininha.
Depoimento da srª Celininha.
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comungam desses dois universos religiosos sem restrições, daí o caráter inclusivo das
concepções de mundo presentes entre elas. A rezadeira Neném288 contribuiu sobre o assunto
com o depoimento:
Sou católica. Credito em tudo que é passado em minha igreja eu credito.
Quando não vou lá em baixo, eu vou aqui ó (fazendo menção a igreja de
São Benedito). Tanta igreja, eu vou no Gravatá , vou no Bonsucesso. Dia de
Domingo quando não tô com as pernas cansadas vou lá fazer visita dele.
Quando to em Salvador, eu vou no Bonfim, aquele do Cristo Redentor é
perto. Aquela que tem junto da praia,... Conceição da Praia é tudo perto da
casa de meus filhos 289.
Ao mencionar tão enfaticamente sua atuação enquanto católica, a srª Neném se
demonstrou bastante orgulhosa pela escolha feita, fazendo questão de elencar os diversos
espaços religiosos que costuma freqüentar.
Contudo, nesse campo de crenças religiosas (re) significadas por negros, índios e
europeus, as rezadeiras, trazem em seu cotidiano amostras desses imbricamentos e elementos
presentes na natureza como as ervas, banhos e chás, que foram utilizados também no intuito
de levar tranqüilidade àqueles que precisavam. Pensar no encontro de culturas diferenciadas,
requer que consideremos as trocas culturais existentes no processo, ao tempo em que devemos
atentar para esses empréstimos recíprocos como possibilidade de enriquecer as práticas
culturais dos povos, muitas vezes contribuindo para o surgimento de concepções culturais
híbridas, como bem assinalou o historiador Peter Burke (2003).
Quando levado em consideração o imbricamento cultural religioso, a rezadeira
Merú290 assim que perguntada acerca de sua formação religiosa relatou:
Sou católica, tenho devoção a santo, Santo Antônio. Sete flecha, D. Oxum,
a princesa do mar, todos orixá 291.
O depoimento deixa evidente essa interpenetração cultural, pois a rezadeira se
autodenomina católica, justamente pelo caráter flexível que concebe a religião, fruto,
sobretudo da incorporação das diversas concepções culturais. A fluidez a qual a srª Merú
assinala com relação aos seus devotos “Santo Antônio”, santo reconhecido pela igreja
288
Srª Francisca Santos Oliveira, lavradora aposentada e rezadeira. Apelidada na comunidade de Dona Neném.
Depoimento da srª Neném.
290
Srª Aumerinda Conceição Rodrigues, lavradora e charuteira em exercício da profissão. Apelidada na
comunidade como dona Merú.
291
Depoimento da srª. Merú já citado.
289
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católica, Sete flecha, o caboclo e Oxum, orixá das religiões tradicionais africanas ou do
Candomblé brasileiro, nos leva a acreditar que o “sincretismo é fluído e móvel, não é rígido e
nem cristalizado” (BASTIDE, 1985, p.370). A interpenetração cultural defendida por Bastide
(1985) assinala essas aproximações entre os diversos elementos religiosos.
A possibilidade de a srª Merú poder ser devota do santo católico, do caboclo e do
orixá do Candomblé ao mesmo tempo, revela aspectos religiosos existentes entre as religiões
tradicionais africanas, na qual zela pela inserção de novos elementos culturais e ao contrário
da cultura ocidental, não separa elementos culturais nem religiosos, mas inclui, somando
novos símbolos e ritos. Portanto, nessa visão de mundo, é possível sim, a rezadeira ser
católica e ao mesmo tempo resguardar práticas dos cultos afro-brasileiros, sem nenhum
problema.
A rezadeira Neném relatou uma situação vivida, para justificar sua devoção a São
Benedito. Segundo ela, seu Marido Ovídio ao cometer adultério começou a maltratá-la e aos
seus filhos. As súplicas ao santo Benedito, bem como a promessa feita no momento de
angústia, tornou-se de fundamental importância para alcançar a graça:
Ai,... Ovídio deixou a casa, ranjou uma mulher e foi morar com a mulher
,...e tinha um senhor e uma senhora de junto de mim, era muito minha
amiga ai disse: Isso não foi a toa( é não sei) o que não sei o quê! Vamo lá
em Cachoeira (...).
E lá vai, lá vai...quem me valeu foi São Benedito, viu, foi São Benedito que
me valeu, não precisou ir em lugar nenhum. Tinha festa lá de São Benedito
qui quando deu 6 horas eu juelhei pro lado dele e pedi: Oh! Meu São
Benedito que vóis me ajudar que cumpade Luís bote Ovídio dessa fazenda
pra fora , pra ele procurar outro trabalho, eu sou devota de vóis enquanto
vida eu tiver. Quando cabou a festa de São Benedito, cumpade Luís chegou
lá e disse: Seu Ovídio, eu sou seu cumpade, mas não quero o Senhor aqui
mais não. O senhor procure seu lugar, que eu ajudo a comprar, mas a
fazenda quem vai tomar conta sou eu.
(...) a gente com fé em Deus, pede e vê mermo (...) O santo vale rapaz,
quem quiser acreditar, acredita! Nessa eu nasci, nessa eu morro! Não tem
quem me faça sair!292
A narrativa de srª Neném assinala com precisão a eficácia da intervenção dos
santos protetores, devoção esta de suma importância para o retorno do marido para casa.
Segundo ela, as súplicas associadas à fé de alcançar o pedido desejado bastaram para ser
atendida. Nesse caso, insinua que resistiu ao apelo da vizinha que queria levá-la para uma
casa de candomblé e resolver o problema na cidade de Cachoeira, cidade esta bastante
292
Depoimento da srª. Neném já citado.
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conhecida pela quantidade de terreiros existentes. O depoimento também nos possibilita
compreender a veneração aos santos e virgens negras ao qual Bastide faz alusão em seu livro:
As religiões Africanas no Brasil (1985).
Desse modo, nota-se que uma vida intercedida por santos protetores tende a
assegurar a estabilidade cotidiana das rezadeiras, nesse caso, os santos equivalem a
personificação das forças sagradas entre os seres humanos.
DEVOÇÃO AOS SANTOS GÊMEOS: SÃO COSME E DAMIÃO.
São Cosme e São Damião são santos católicos com grande receptividade entre as
camadas afro-brasileiras do Recôncavo baiano. No “sincretismo religioso”293, os santos foram
“associados” aos Ibejís, divindades gêmeas do Candomblé. Apesar do catolicismo oficial
venerar a figura de Cosme e Damião como santos adultos e que dedicaram a vida a praticar a
medicina caridosa, os mesmos santos “correspondem” a entidades infantis nos cultos afrobrasileiros, e é justamente dessa maneira que Cosme e Damião são venerados pela maior parte
de seus devotos: os santos meninos.
Nos dias de comemoração 26 e 27 de setembro seus devotos geralmente ofertam
doces, balas, pirulitos, pipocas para alegrar a meninada ou preparam e ofertam o tradicional
caruru de sete meninos. O culto aos santos gêmeos: Cosme e Damião teve seu início no século
XVI, sendo trazido para o Brasil pelos portugueses. Com o passar dos anos, os santos que se
tornaram padroeiros dos médicos, dos farmacêuticos e dos cirurgiões foram rejuvenescendo e
aos poucos se identificando com os mitos africanos: o orixá Ibeji, responsável pelo
nascimento de gêmeos entre os nagôs. É importante pensar que os novos contatos culturais de
uma sociedade mestiça favoreceram a infantilização dos santos. (LIMA, 2005).
É justamente nesse contexto de devoção que podemos notar o envolvimento das
rezadeiras nos festejos aos santos gêmeos e a popularidade que estes têm. Indiretamente, a
forma pela qual existe a veneração dos santos gêmeos, nos remete a elementos presentes nos
cultos afro-brasileiros e que historicamente foram incorporados ao catolicismo através das
trocas culturais. As rezadeiras vivenciam essas diversas trocas culturais, sobretudo em função
da presença marcante dos elementos africanos no Brasil. Entretanto, algumas demonstraram
293
A utilização do termo sincretismo religioso no parágrafo, pode ser justificada pela necessidade encontrada em
relatar como se deram as primeiras concepções conceituais acerca das trocas culturais existentes no Brasil, desde
a colonização. Entretanto, é inegável que tal conceito é rebatido por diversos estudiosos das religiões, sobretudo
por entenderem que o conceito “sincretismo” trata-se de uma nomenclatura de cunho etnocêntrico, tendo em
vista a notória tentativa de sobreposição de elementos culturais europeus, em contraposição aos africanos.
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certo menosprezo em reconhecer as possíveis origens da benzeção, bem como se
demonstraram um tanto quanto taxativas ao relegar as religiões que descendem dos africanos.
Nesse sentido, a srª Celina disse que:
Rezo de tudo minha fiá, com os poderes de Deus! Meu corpo ta doente, mas
minha mente não! Tenho amigo do Candomblé, mas não sou do
Candomblé! Sou católica, acredito nas forças da Virgem Maria. A gente
tem que escolher um caminho só!294
A fala deixa transparecer uma ligeira recusa da rezadeira Celininha a manter
relações de aproximações com o Candomblé, o que segundo ela desvia por completo da opção
religiosa que faz parte: o mundo católico. Ela admite relativas aproximações com os
freqüentadores dos cultos afro-brasileiros, entretanto está segura do “caminho” que escolheu.
Assim como Celininha, outras rezadeiras se demonstraram reticentes aos cultos
afro-brasileiros, sobretudo quando interrogadas se conheciam ou acreditavam na sua eficácia.
A rezadeira Teka295 demonstrou opinião parecida com a da srª Celininha acerca dos cultos
afro-brasileiros:
Não credito nesse negócio de Candomblé! Eu... Credito em Deus. Nunca fui
nesse lugar, desde pequena acho que esse negócio não bota ninguém a frente.
O povo (...) tudo atrasado! A gente crê em Deus, é quem nos vale e não essas
coisas!296
Nota-se a repulsa da srª Teka ao falar do Candomblé, entretanto não devemos
esquecer que essa visão preconceituosa acerca dos cultos afro-brasileiros foi historicamente
construída como mais uma estratégia do mundo europeu em sempre associar a cultura negra a
atributos pejorativos. Prova desse processo é justamente o repúdio que determinadas pessoas
atribuem ao Candomblé sem ao menos visualizar alguns elementos básicos que o compõe.
Trata-se de estereótipos erguidos e que sobrevivem até hoje.
Ora, apesar de algumas rezadeiras possuírem concepções conservadoras acerca dos
cultos afro-brasileiros, todas elas demonstraram grande afinidade ao São Cosme e Damião e
os festejos existentes nas celebrações dos santos gêmeos. É justamente esta “harmonia” e
devoção que passaremos a analisar. São Cosme e Damião são tão presentes na vida das
294
Depoimento da srª. Celininha.
Srª Maria Custódia Cerqueira, lavradora aposentada e rezadeira. Apelidada na comunidade de dona Teka.
296
Depoimento da srª. Teka.
295
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rezadeiras que careceram de atenção especial, os santos gêmeos conseguiram adentrar nesses
espaços da cultura popular com relativa facilidade:
O São Cosme era de meu pai, mas eu era uma filha tão amada de pai que ele
já tava velhinho, ele me entregou o São Cosme que eu adoro desde
mocinha,...297
A relação estabelecida entre a srª Celininha e o São Cosme foi feita antes mesmo
de seu nascimento, pois a devoção de seu pai remontava longa data. Assim, o vínculo entre o
santo era de cunho familiar e de aliança, na qual existia uma relação permanente de devoção e
proteção entre eles, membros da família. As celebrações feitas em homenagem aos santos
gêmeos existiam de maneira incondicional e não por razões de promessas ou pedidos de
favores. O São Cosme deveria proteger a família da srª Celininha independente das
solicitações.
Observa-se ainda que o culto aos santos gêmeos é justificado por diversos motivos
e razões. A rezadeira Teka iniciou o culto aos santos por ter tido netas gêmeas e na busca pela
saúde de suas netas e proteção, resolveu ofertar o caruru como possível forma de selar aliança
com os santos. No caso da srª Neném, ela foi aconselhada a fazer a oferta do caruru a fim de
“abrir seus caminhos” e ter mais prosperidades na vida. Vejamos o que informou a rezadeira
Neném:
O negócio é pegar,... não podia dormi de noite, aquele negócio, aquele sono
na minha frente,... Ai eu fui lá em Carmelita, ela mandou eu fazer! que eu
fizesse o caruru ficava bom. Ai eu comecê fazer, fiz até sete ano, de sete
ano eu parê porque Ovídio morreu, quem era a cabeça era Carlinhos,
morreu também,... a vida miorou, miorou sim!298
Após a realização do caruru a srª Neném diz que realmente as melhoras foram
obtidas, assegurando os bons resultados. Segundo ela bastou somente agradar os santos, que
logo eles puderam interceder em sua vida e promover melhoras. Ainda no depoimento a srª
Neném mencionou a srª Carmelita que para algumas pessoas se tratava de uma médium que
dava orientações espirituais.
297
298
Depoimento da srª. Celininha.
Depoimento da srª. Neném.
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As rezadeiras concebiam a existência de um vínculo eterno entre elas, devotas e o
santo, não podendo haver o rompimento da aliança firmada, pois se caso viesse a acontecer,
as mesmas estariam sujeitas a possíveis cobranças.
Nessa atmosfera de devoção, a rezadeira Merú narrou uma determinada situação
em sua vida que a remeteu a identificar como possível “castigo” do santo, ao ter sido
momentaneamente ignorado:
Eu adoeci, ai o médico Dr. Valdi mandou buscar uma moça em Conceição
de Feira que não sarava a doença de jeito nenhum. Fiquei cega e alejada, ai
a doença não sarava de jeito nenhum, o braço não saia, ficou alejado! Ai
vortou , ai ele mandou buscar essa, essa mandigueira quando ela chegou
passou os banhos. Com esses banhos fiquei boa, ai acorde, ai pronto acordê!
Disso pra cá, eu não queria cuidar peguei sofrendo muito, cuido! Agora só
deixo quando morrer! E digo a minhas irmã se tiver qualquer... vá pro
médico não dá jeito porque tem muito médico de espiritismo que já avisa
logo: procure uma folhinha pra tomar um banho porque sua doença não é
aqui. Pois é peguei a dá o caruru com 17 ano, quando parei adoeci!299
A depoente narrou o fato como nítida expressão das cobranças feitas por São
Cosme e Damião, ao terem sido ignorados por ela, ocasionando a quebra de um vínculo
firmado. Segundo ela, só conseguiu visualizar a situação após a manifestação da doença,
seguida da interferência de outras pessoas “entendidas do assunto”. A fala ainda revela a
curiosa situação em que um médico dá orientações à paciente para que se sirva dos serviços
de uma mandingueira no combate da doença. Tal situação nos remete a pensar que o Dr.
Valdir possui aproximações e crenças com os cultos afro-brasileiros, inclusive reconhecendo
as limitações que a medicina oficial possui em determinadas “doenças”.
Nesse caso, através da manifestação da doença, a senhora pôde visualizar os maus
fluídos que tumultuavam sua vida, ao tempo em que recorreu a explicações que não conseguia
encontrar no plano físico.
A doença desestruturou a vida da srª Merú de tal maneira que a mesma procurou
explicações científicas para dar conta da situação em que vivia, não conseguindo êxito e por
fim recorreu a uma explicação sobrenatural, que a forçou a rememorar os passos que haviam
dado nos últimos tempos acerca de sua displicência para com os santos gêmeos. A srª Merú,
relembrou possíveis falhas em suas condutas enquanto fiel ao não cumprir uma obrigação
firmada entre ela e São Cosme e Damião: a oferta do caruru todos os anos. Assim, o
299
Depoimento da srª. Merú já citado.
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firmamento do vínculo entre os santos gêmeos e a rezadeira e o possível rompimento,
acarretou uma situação catastrófica na qual ela perdeu os movimentos do corpo.
Nesse sentido, acreditando que o Recôncavo apresenta traços das diversas
concepções culturais do mundo africano, é possível entender a situação de instabilidade que
fez parte da vida da srª Merú a partir da visão de mundo de alguns povos africanos. Na África,
acredita-se que a estabilidade da vida é regida por um equilíbrio de forças, seria a ação
constante do indivíduo com o mundo terreno que irá ser fator determinante para manter o
equilíbrio nas relações que executam. (HAMPATÈ BÂ, 1982).
Uma vez violando as forças que regem o universo através das relações de doação e
devoção, haveria a perturbação da organização do indivíduo. Nesse caso, a srª Merú quebrou
o equilíbrio existente entre ela e os santos gêmeos, o qual possuía um vínculo de oferta e
proteção, acarretando a desordem e o desequilíbrio na saúde.
No imaginário das populações afro-brasileiras, Cosme e Damião são entendidos
como santos, cuja impulsividade e vaidade rememoram as crianças, portanto os santos
meninos não gostam de serem contrariados e se caso alguém prometer algo para eles devem
cumprir o mais rápido possível, pois não admite interrupções nas ofertas. Notamos que apesar
de serem enxergados como santos católicos, São Cosme e Damião são agradados e venerados
como os Ibejís do Candomblé.
Ora, Cosme e Damião santos católicos em nada tem a ver com os Ibejís do
Candomblé que gostam de doces, balas e caruru, afinal tratou-se de médicos nascidos na
Arábia, cristãos, portanto seus agrados no mínimo se distanciariam de todos esses adorados
pelos Ibejís. Na verdade, sabe-se que tais práticas de agrado ao Cosme e Damião católico, da
mesma maneira que os orixás do Candomblé, tiveram seu surgimento a partir da
interpenetração cultural advinda do Brasil colonial. (LIMA, 2005).
Assim, os orixás africanos foram associados aos santos católicos havendo a
“correspondência” dos Ibejís ao santos Cosme e Damião. Contudo, os agrados costumeiros
ofertados aos Ibejís eram direcionados da mesma forma aos santos católicos, prática esta que
passou a ser executada pelos diversos grupos sociais e que perdura na atualidade.
Nesse contexto, há quem acredite fielmente que a forma de agradar o Cosme e
Damião seja ofertando doces e o caruru. Mas, se formos tomar como ponto de partida a
distribuição do caruru, por exemplo, de nada mantêm aproximações com a cultura européia,
muito menos é um prato típico da Arábia, onde nasceram os santos católicos. Do mesmo
modo, pensar na simbologia do caruru e os elementos que o compõe, a saber, do azeite-de-
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dendê encontraremos marcas do “mundo africano”, que por hora encontra-se imbricado nos
festejos aos santos gêmeos.a
Ao que parece, ao nos referimos à religiosidade das rezadeiras devemos nos
preocupar em não cometer generalizações, pois o mundo das benzeções é por demais amplo e
complexo, podendo abarcar diversas concepções culturais a depender do indivíduo
participante.
Para Burke (2003), em seus estudos acerca do hibridismo cultural, ao nos
defrontarmos com que possivelmente diz respeito a duas tendências culturais distintas, não
devemos ter a falsa impressão, muito menos devemos tentar entendê-la de forma separada,
pois “não existe uma fronteira cultural nítida ou firme entre grupos, e sim, pelo contrário, um
continuum cultural” (BURKE, 2003, p.16).
Portanto, no contexto das benzeções definir até que ponto o culto aos santos
gêmeos trazem elementos do mundo afro-brasileiro ou do catolicismo popular é uma
empreitada difícil de se resolver, contudo dentro desse universo é possível identificar
elementos presentes nessas duas tendências culturais. Ora a rezadeira tida como católica
recorre a uma médium – denominação mais amena, para muitas depoentes, que curandeira –
ora freqüenta assiduamente as igrejas católicas.
FONTES ORAIS:
Aumerinda Conceição Rodrigues. Apelido D. Merú. 59 anos de idade. Lavradora e charuteira
em exercício da profissão. Rezadeira, nascida no Município de Governador Mangabeira,
atualmente reside nesse mesmo município. Data de nascimento: 20/07/1946. Entrevista em
11/07/2007.
Celina de Jesus Neris. Apelido D. Celininha. 84 anos de idade. Charuteira aposentada.
Rezadeira, nascida na cidade de Bonfim de Feira de Santana. Atualmente reside no Município
de Governador Mangabeira. Data de nascimento: 15/05/1923. Entrevista em 06/12/2006 e
10/07/2007.
Francisca Santos Oliveira. Apelido D. Neném. 73 anos de idade. Lavradora aposentada.
Rezadeira, nascida em Laranjeiras, zona rural do Município de Governador Mangabeira.
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Atualmente reside na cidade de Governador Mangabeira. Data de nascimento: 08/02/1934.
Entrevista em 26/04/2007 e 14/07/2007.
Maria Custódia Cerqueira da Silva. Apelido D. Teka. 73 anos de idade. Lavradora
aposentada. Rezadeira, nascida em Queimadas, zona rural do Município de Governador
Mangabeira. Atualmente reside na cidade de Governador Mangabeira. Data de nascimento:
24/07/1934.Entrevista em 29/04/2007.
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THOMPSON, E. P. Costumes em comum. Tradução: Rosaura Eichemberg. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
TORRES, Cláudia Regina Vaz. Sobre gênero e identidade: Algumas considerações teóricas.
In: CARVALHOS, Tereza Cristina Pereira Fagundes (org.).Ensaios sobre Identidade e
gênero. Salvador: Helvécia, 2003.
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A ESTÉTICA NEGRA EM SALVADOR
Cassi Ladi Reis Coutinho – UNEB
[email protected]
O objetivo deste artigo é investigar o processo de emergência e institucionalização300 de uma
estética301 negra em Salvador, enfocando em especial a moda e penteados associados ao
cabelo. Para entender a relação entre o processo de afirmação étnica negra – em particular –
no que tange a estética – e o mercado (indústria de cosméticos, mídia, etc.). Além das
mudanças que possam ter ocorridos no cotidiano dos sujeitos históricos envolvidos, através da
busca por uma estética própria aceita pela sociedade. Para tal é necessário compreender o
impacto dos movimentos negros mundiais, em especial o movimento negro norte-americano,
na década de 1970, assim como a primeira participação do bloco Ilê Aiyê, no carnaval de
Salvador, em 1975, na formação de uma “consciência estética negra” em Salvador. Analisar a
forma como a estética negra vem tomando espaço no mercado comercial brasileiro e como
contribui para o fortalecimento de uma auto-afirmação dos afro-descendentes. E investigar em
que medida essa estética pode ser considerado um processo de afirmação sociocultural dos
negros ou não e um produto do consumo absorvido pela indústria do comportamento, pela
massificação dos meios de comunicação.
Palavras-chave: comportamento, estética, auto-estima, identidade negra.
Beleza Negra302: Cabelo Duro X Cabelo Crespo
No Brasil, temos assistido, ao longo dos anos, o crescimento de uma estética
negra com uma valorização positiva de aspectos fenótipos “naturais”. Podemos verificar uma
maior aceitação ou menor rejeição pela sociedade em geral de um modelo de pentear/adornar
os cabelos que diferem do baseado no “padrão europeu”.
300
Emprego este termo no sentido de um ato de estabelecimento, criação, instauração.
Entende-se por estética negra, conceitos e juízos de beleza baseados nas características dos negros
302
Termo que define a valorização das características físicas dos negros como belo, contrapondo-se ao padrão de
beleza da sociedade brasileira, que baseia nas características o “ariano”.
301
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Nos Estados Unidos surgiram movimentos que lutaram pelos direitos dos negros
com variadas estratégias, entre outras de modificação do padrão de beleza, baseado numa
estética branca. Por exemplo, na década de 1960: “A Fuller Products Company fatura mais de
10 milhões de dólares com o lançamento de cremes para branquear a pele e alisar o cabelo. A
propaganda promete com isso, o fim da discriminação”
303
. Empresas como esta continuam
faturando com a falsa propaganda de modificação dos fenótipos dos negros.
Na África, as mulheres consomem produtos para branquear a pele. O sucesso
destes produtos é devido à insatisfação da maioria da população negra com as suas
características físicas, gestando uma “necessidade” de mudar e de assumir um padrão de
beleza branca muito grande. Em contraponto com esta situação surgiu o movimento Black
Power304, na década de 1960, caracterizado pelo uso dos cabelos sem intervenção química ou
física para “alisar”, o que foi definido como “natural”, por jovens negros, juntamente com este
movimento surgiu o slogan “Black is beautiful” defendendo a afirmação de que “ser negro é
lindo”.
Foi nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, os dois centros irradiadores
da influência norte-americana, que apareceu o corte black power – cabelo
redondo e cheio, in natura. Por conseguinte, com a crescente valorização da
busca da “consciência racial”, procurou-se uma “naturalização” dos cortes,
traçados e penteados afro, com repúdio do alisamento – “além de decadente
[o alisamento], é prejudicial porque impede o crescimento do cabelo”.
A imagem do cabelo natural passou a ser reverenciada como aquela que se
contrapõe ao cabelo liso que estaria em consonância com uma nova
mentalidade do “ser negro”.305
O Brasil do final dos anos 60 vivia a ditadura militar, com censura, prisões,
exílio e tudo mais por isso, o que chegou à população afro-brasileira do
movimento norte americano foi só a estética Black Power os cabelos, a soul
music, as roupas, boinas e a ginga tornaram-se moda. Artistas com Tim
Maia, Tony Tornado e Trio Ternura reproduziam o que James Brown, a
banda Paliamment, os Jackson Five e tantos outros faziam palcos
americanos, fortalecendo a auto estima dos negros. Gravações mais
explicitas foram feitas por Wilson Simonal, com Tributo a Martin Luther
King e por Elis Regina com Black is Beautiful.306
Quando na década de 70 os movimentos da contracultura instauraram a
onda do ‘black is beautiful’ (preto é bonito), o negro finalmente pôde ter
orgulho de suas características físicas. Os cabelos alisados deram lugar aos
crespos naturais e o corte black-power virou moda. Os traços faciais
303
Oswald Faustino. A década que mudou tudo. Revista Raça. São Paulo, Editora Símbolo, nº. 26, Ano 3, out.
1998, PP. 50 – 52. p. 51
304
Expressão que significa poder negro criada por Stokely Carmichael. Este movimento surgiu, no final dos anos
60 em oposição a direção reformista do movimento pelos direitos civis – no sul dos EUA e em outras partes da
América do norte.
305
Jocélio Teles dos Santos. O negro no espelho: imagens e discursos nos salões de beleza étnicos. In: Estudos
afro-asiáticos. nº. 38; Rio de janeiro: dez/2000. p.55
306
Oswaldo Faustino. Black Power. Revista Raça. São Paulo, Editora Símbolo, nº. 8, Ano 2, abr. 1997, pp. 102 –
107. p. 106
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passaram a ser destacados em maquiagens coloridas e os tecidos étnicos
ganharam as ruas.
O fato de valorizar a beleza dava ao negro um poder de reivindicar
espaço.307
Na década de 1970, segundo Márcio J. de Macedo, outro movimento que
modificou a imagem do negro como “feio” foi o rastafarianismo, que repercutiu na figura de
Bob Marley e da explosão do reggae music.308 O “rastaman” , como é conhecido o adepto da
religião, sustenta seus dreadlocks e tem sua “filosofia de vida baseada na mistura de
elementos da tradição judaico-cristã com a história da África, especificamente a Etiópia” .309
Eles consideram o imperador da Etiópia, Ras Tafari Makonen (este é o título de Haile Selassié
I), a forma humana de Deus (Jah).
Iniciado em 1930, o Movimento Rastafári tem como teoria a volta do povo
negro para a sua terra de origem, ou seja, a África. O imperador etíope
Hailé Selassié I, morto 1974, é considerado pelos membros da seita rastafári
um deus, também chamado de Jah..310
Segundo Macedo, através destes penteados os negros mostravam sua insatisfação
acerca de como eram tratados ao longo dos anos.
As tranças dreadlocks foram tomadas pelo ativismo negro de várias partes
do mundo como uma forma de afirmação da identidade negra e de
posicionamento político, algo que já havia acontecido com o corte “afro” ou
black power na década anterior. Além desse aspecto político, esses fatos
demonstravam que era possível criar um estilo negro próprio, desde que
começássemos a valorizar o nosso corpo de forma sincera e livre de
estereótipos. 311
307
Manuela Barros. “Beleza Negra” A Tarde. Edição especial: Consciência Negra 20 de Novembro. Salvador, 20
nov. 2003, p 5.
308
Gênero musical desenvolvido na Jamaica em 1960
309
“A palavra dread teve origem na Jamaica e significa ameaça ou perigo. (...) Atualmente, a palavra dread é
usada para definir um estilo de cabelo. (...) Dreadlock são cabelos que se enrolam naturalmente e não voltam a
sua forma original, a não ser que sejam cortados.” ISSO é dread, sim! Visual da Raça, São Paulo, Editora
Símbolo, nº. 8, Ano 1, 1997, pp. 36 – 38. p. 37
310
Idem, op. cit. p. 36
311
Márcio José Macedo. “Quero uma nega de cabelo duro”. São Paulo: Disponível em: www.afirma.inf.br,
23/09/2004. Acesso em: 21/11/2005. p. 1
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Esta discussão remete ao cabelo o papel de símbolo de resistência de uma cultura
imposta, que ao invés de assumir a suas características estimula a sua modificação. Vovô,
presidente do Ilê Aiyê, defende, na matéria do “A Tarde”, que a consciência cultural começa
nos cabelos. O seu cabelo rastafari é tido, por ele, como um sinal de luta pela resistência. 312
Em fevereiro de 1975 saiu, pela primeira vez no carnaval de Salvador, o bloco Ilê
Aiyê, em plena ditadura militar. O Ilê trazia em suas músicas a temática da afirmação do
negro, valorizando o cabelo, as vestimentas, a magia do candomblé, a cultura e tradições. A
saída do Ilê representou para uma parcela do povo negro uma expressão da busca pela autoafirmação. A professora Arani Santana, uma das diretoras do bloco, define:
Foi o Ilê Aiyê que fez este trabalho, em seguida os outros blocos também.
Que ajudou a população negra a botar a cara pra fora, se assumir, assumir a
sua estética, assumir a sua fala, a conquistar espaços cada vez mais, foi com
a canção, com a letra da música que deu essa força pra gente caminhar.313
Assim como Risério:
Aliás, foi o pessoal do Ilê Aiyê, que se responsabilizou pela popularização –
através do carnaval – do uso de trancinhas em Salvador. Nos tempos em
que o lance era a soul music e as discotecas, o penteado mais comum, em
meio à juventude negromestiça, era o chamado “cabelo black power”, tipo
“afro”.314
Um dos objetivos do Ilê era justamente o de dar visibilidade ao negro que assumia
um papel secundário no carnaval e dentro da sociedade. A Noite da Beleza Negra foi um dos
projetos do Ilê Aiyê que teve grande repercussão na discussão sobre a auto-afirmação e na
valorização de uma beleza negra.
A concepção de beleza proposta pelo Ilê contrapõe-se aos critérios de
beleza vigentes em diversos concursos de beleza, ao padrão vinculado pela
mídia e principalmente as imagens das mulatas que desfilam nos carros
alegóricos das escolas de samba. A beleza proposta pelo Ilê esconde
exatamente o que todos vêm expostos, os corpos das mulheres negras. 315
312
“Marca registrada que dá trabalho” In: A Tarde. Salvador-Ba: 30/04/2000, A Tarde – Local, p.7.
Arani Santana, Pedagoga, 51 anos. Entrevista realizada em Salvador, Itapuã, 2003. Depoimento citado.
314
Antonio Risério. Carnaval Ijexá. Salvador: Corrupio, 1981. p.42
315
Deusa do Ébano: concurso a Noite da Beleza Negra. Realização Ângela Figueiredo. Salvador, 2003. FilmeDocumentário.
313
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Nesse evento, que ainda acontece, é escolhida a negra mais bonita do Ilê Aiyê, a
Deusa do Ébano, aquela que irá reinar durante um ano, participando das atividades do bloco.
Os pré-requisitos analisados para a escolha da rainha são os penteados, dança, vestimentas.
Além disso, a candidata deve ter consciência da sua negritude e ter participação na sua
sociedade.
A primeira saída do Ilê teve grande repercussão negativa nos meios de
comunicação, como pode ser observado nesta matéria do jornal “A Tarde”, que permite
evidenciar o preconceito diante dos blocos afros.
Bloco Racista, Nota Destoante.
Conduzindo cartazes onde se liam inscrições tais como: "Mundo Negro",
"Black Power", "Negro para Você", etc., o Bloco Ilê Aiyê, apelidado de
"Bloco do Racismo", proporcionou um feio espetáculo neste carnaval. Além
da imprópria exploração do tema e da imitação norte-americana, revelando
uma enorme falta de imaginação, uma vez que em nosso país existe uma
infinidade de motivos a serem explorados, os integrantes do "Ilê Aiyê" todos de cor - chegaram até a gozação dos brancos e das demais pessoas que
os observavam do palanque oficial. Pela própria proibição existente no país
contra o racismo é de esperar que os integrantes do "Ilê" voltem de outra
maneira no próximo ano, e usem de outra forma a natural liberação do
instinto característica do Carnaval.Não temos felizmente problema racial.
Esta é uma das grandes felicidades do povo brasileiro. A harmonia que reina
entre as parcelas provenientes das diferentes etnias, constitui, está claro, um
dos motivos de inconformidade dos agentes de irritação que bem gostariam
de somar aos propósitos da luta de classes o espetáculo da luta de raças.
Mas, isto no Brasil, eles não conseguem. E sempre que põem o rabo de fora
denunciam a origem ideológica a que estão ligados. É muito difícil que
aconteça diferentemente com estes mocinhos do "Ilê Aiyê”.316
Dessa matéria à leitura que realizamos, ilumina um discurso sustentado pela elite
branca da existência de uma democracia racial, e também a discriminação que sofriam os
blocos de negros, assim assumidos, enquanto reivindicatórios, que se “atreviam” a sair no
carnaval. Fica evidente que quando levantadas discussões sobre a questão racial em Salvador,
estas eram massacradas com a afirmação que nesta cidade não existiam problemas raciais,
pois aqui era o “paraíso racial”, onde todas as “cores” viviam harmoniosamente. O protesto
cabia àqueles que estavam insatisfeitos com a sociedade. Insatisfação que era tida como
desnecessária pelas elites baianas.
316
“Bloco racista nota destoante” In: A Tarde. Salvador-Ba: 12/02/1975, p.3.
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Fazendo uma análise de como a beleza negra começa a tomar espaço na sociedade
baiana, acredita-se que seja interessante fazê-lo através de um fator que gera bastante
discussão entre os negros(as) da sociedade: o cabelo. “O elemento em cima do negro, da
estética negra, um dos elementos que mais incomoda tanto ao branco quanto ao próprio negro
é é é a história do cabelo”.317Isto porque este é um ponto importante na vida do negro,
principalmente da mulher, o que não significa dizer que o homem não se preocupe com isto,
porém este fator não faz com que este se sinta tão diminuído por não ter uma das suas
características físicas aceitas pela sociedade. Porém, se formos analisar a concepção defendida
por alguns homens, como Ronaldinho o fenômeno do futebol, que andou afirmando que não
era negro e verificarmos que ele mantém a sua cabeça raspada o tempo todo. Podemos até
chegar a conclusão de que este é um artifício utilizado pelo homem para fugir de uma das
características físicas marcantes que o negro possui.
Hildegardes Viana defende: “O cabelo duro, para o homem de cor, não pesava
tanto, a ponto de se transformar em problema. Bastava cortar o cabelo bem rente ao casco”.318
Porém no mesmo capítulo chama a atenção para relação entre os homens de cabeça raspada e
a marginalidade, como afirma:
Só os mandiguerotes, ladrões, desordeiros, malandréus ou que nome
tivessem, cultivavam uma basta gaforinha, sem complexos de espécie
alguma. O verdadeiro matagal de fios duros emaranhados servia para
acomodar a navalha traiçoeira, surgida em momentos críticos, ou algum
cilindro pequeno com pó venoso destinado a sortilégios. Por isto, a primeira
providência da polícia, quando fisgava o marginal, era tirar os botões da sua
calça para evitar fuga. Em seguida raspar a cabeça para ver o que é que
havia.
Cabeça pelada era cabeça de ladrão.319
Para a mulher era diferente, o cabelo representava um símbolo de beleza que
compunha a sua estética. A partir deste ponto, existe uma série de discussões relacionadas
com o cabelo do negro e a principal dela é o significado que foi criado sobre este. "Cabelo de
bombril, esponja, piaçava, pucumã, cabelo ruim", as mulheres de cabelos crespos crescem
ouvindo frases como essas repetidas vezes na maioria dos ambientes que freqüenta. O cabelo
foi, e continua sendo, um símbolo que demarcava a sua origem “racial”. Para as mulheres
317
Arani Santana, Pedagoga, 51 anos. Entrevista realizada em Salvador, Itapuã, 2003. Depoimento citado.
Hildegardes Vianna. A Bahia já foi assim: crônicas de costumes. 2ª ed. Rio de Janeiro: GRD, 1979. p.138
319
Ibidem
318
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lidar com o cabelo sempre foi extremamente complicado e existia uma insatisfação desta com
seu cabelo independente da forma que ele se apresente. A folclorista baiana Hildegardes
Vianna enumerou apelidos pejorativos, comuns e correntes na sociedade baiana para
classificar o cabelo dos negros, dentre eles: “(...) cabeça seca, cabeça fria, cabeleira xoxô,
cabelo de romper fronha, cabelo de perder missa, cabelo amoroso ao casco, cabeleira de sebo,
cabeleira teimosa, pão de leite, etc”.320 Afrânio Peixoto defendeu em Breviário da Bahia que
o feio da raça não era sua cor, mas sim o seu cabelo. Peixoto afirmou que torços e panos eram
utilizados para esconder a cabeleira dura, conceito que difere do defendido e aceito pelos
africanos, que utilizam seus torços e panos para rituais ou para compor as cabeças das
mulheres, ou homens, como é o caso da religião muçulmana. Raul Lody pertinentemente
adverte que:
Para muitos povos a cabeça é tida como lugar da inteligência, do destino e
da personalidade. Sendo assim, não é de se estranhar que o hábito de cobrila ou ornamentá-la de alguma forma e para determinadas circunstâncias
esteja presente em quase todas as sociedades.
Adornar ou cobrir a cabeça pode significar muitas coisas, de acordo com os
costumes de cada região. Entre os mulçumanos, por exemplo, já foi sinal de
desrespeito ficar com a cabeça descoberta na presença de visitas, ao passo
que as antigas cortes européias desrespeitoso era não cobri-la na presença
de superiores.
Em vários países da África, os turbantes são indumentárias comuns.
Oriundos do universo masculino, eles fazem parte do vestuário árabe e
africano há séculos, tendo como principal função proteger a cabeça do sol
forte.321
O cabelo sempre teve um significado para o africano e seus penteados
demonstravam o resgate da memória, cultura e religião. Segundo Raul Lody, o cabelo é um
indício marcante da procedência étnica e é através dele que o negro hoje assume sua estética
na sociedade. Nilma Lino Gomes relata no seu livro Sem perder a raiz os diversos
significados que o cabelo crespo possuía nas comunidades africanas e as resignificações que
este cabelo vem tomando dentro da sociedade atual. Discorre também sobre as diferenças
dadas as artes e adornos corporais nas diversas etnias e o significado simbólico dos penteados.
320
Ibidem
Ivonne Ferreira e Carla Nascimento. A Magia dos turbantes. Visual da Raça, São Paulo, Editora Símbolo, nº.
12, Ano 2, 1998, pp. 22 - 25.
321
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Tradicionalmente, os penteados dessas africanas cumpriam função
simbólica importante ao classificar as mulheres em diferentes idades, de
acordo com ciclo biológico. Eram, portanto, uma forma de identificação.
(...)
Muitos integrantes dessas sociedades, incluindo os wolof, mende, mandigo e
iorubas, foram escravizados e trazidos para o Novo Mundo. Nessas culturas
o cabelo era parte integrante de um complexo sistema de linguagem. Desde
o surgimento da civilização africana, o estilo do cabelo tem sido usado para
indicar o estado civil, a origem geográfica, a idade, a religião, a identidade
étnica, a riqueza e a posição social das pessoas. Em algumas culturas,
sobrenome de uma pessoa podia ser descoberto simplesmente pelo exame
do cabelo, uma pessoa podia ser descoberto simplesmente pelo exame do
cabelo, uma vez que cada clã tinha o seu próprio e único estilo.
O significado social do cabelo era uma riqueza para o africano. Dessa
forma, os aspectos estéticos assumiam lugar de importância na vida cultural
das diferentes etnias. 322
Até por volta de 1990, na Bahia, era difícil se encontrar mulheres que
desenvolvessem penteados afros, como afirma Risério,“(...) os penteados afro. Eles se
encontram, atualmente, no estágio de arte corporal, ainda não diluída em salões de beleza. E
são tão poucas as cabeleireiras afro, aqui, que acho até que conheço todas elas, de Ura a
Dete”323. Era difícil encontrar salões que tratassem do cabelo afro. Era mais fácil encontrar
mulheres especializadas em passar ferro, “fritar” os cabelos. O uso do cabelo afro estava
muito relacionado com momentos festivos, especificamente com o carnaval, como define
Risério:
Os primeiros crioulos que encararam a de sair à rua, normalmente, becando
batas coloridas, levando búzios ou contas trançadas no cabelo, vestindo
calças leves e folgadas... ouviam invariavelmente a mesma provocação:
qual é, velho, tá pensando que ainda é carnaval?.324
A museóloga Rita Maia, doutouranda em comunicação e estudiosa em beleza, arte
e estética negras define:
Antes o negro não expunha seus traços, pois a características de sua raça
não eram consideradas bonitas”, comenta. Era comum, segundo a
muséologa, as negras tentarem disfarçar seus traços (como nariz e lábios
grossos), cabelo e cor da pele, na tentativa de atingir o padrão branco.
322
Nilma Lino Gomes. Sem perder a raiz: Corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. Belo Horizonte:
Autêntica, 2006. p.351
323
Antonio Risério. Carnaval Ijexá. Salvador: Corrupio, 1981. p.102
324
Idem, Op. cit. p.100
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Um exemplo dado por Rita Maia é o da cantora americana Josephine Baker,
famosa nos anos 20. ‘Ela costumava passar suco de limão na pele para
clareá-la e usava muita maquiagem, sempre para amenizar os traços’, conta.
Rita Maia ainda lembra do costume de se alisarem os cabelos, que era
praticamente uma regra para todas as artistas negras do início do século. 325
Na entrevista que Negra Jhô concede no livro de Raul Lody, ela deixa claro que
cinco anos atrás era difícil uma mulher negra assumir tranças nos seus cabelos, pois era mais
fácil ela alisar (fritar) ou escová-lo. As pessoas que a procuravam eram turistas que tinham
curiosidade e vontade de fazer nos cabelos tranças, amarrar torços, fazer penteados diversos.
326
Negra Jhô é trançadeira do Pelourinho, reconhecida nacional e internacionalmente pelo seu
trabalho com trançados, penteados afro e torços. Em entrevista concedida ao Correio da
Bahia, diz que nasceu com a carapinha sarará e que não crescia, o que fazia com que grande
parte de sua família zombasse dela, chamando-a de John (João), o que gerou o apelido que
usa até hoje. No início do seu trabalho como cabeleireira de penteados afro, botou a cadeira
em pleno largo do Pelourinho para fazer o cabelo dos fregueses, pois o salão só viria mais
tarde. Hoje, ela ocupa o lugar de uma das melhores cabeleireiras de penteados afro com
reconhecimento nacional. Chegou a ser titulada como Baiana Símbolo no carnaval de 2003,
quando o tema foi “Carnaval das Baianas”.327
O sentimento de inferiorização e busca de aproximação de outra imagem esta
muito forte no cotidiano de meninas no período escolar e é discutido por Nilma Lino Gomes,
no artigo em que a mesma aborda que é por meio da educação que a cultura é introjetada,
sendo a escola um dos espaços que interferem na construção da identidade.328 Diante disto,
encontramos na matéria A cor da infância o relato de observações de um professor:
Vi uma menina chorar histericamente ao ouvir, em tom de conciliação, a
afirmação de que ela era mesmo preta, e não branca. Tinha uma menina que
adorava colocar um pano na cabeça, prendê-lo embaixo das orelhas e fazer
aquele movimento característico de quem está jogando os cabelos para trás.
Com isso ela tinha a ilusão de um cabelo em movimento acariciando os seus
ombros, movimentos impossíveis de serem reproduzidos por seu cabelo duro
brincadeira compensatória que atravessa gerações, visto que uma professora
325
“Beleza Negra” A Tarde. Apud. Manuela Barros. Edição especial: Consciência Negra 20 de Novembro.
Salvador, 20 nov. 2003, p 5.
326
Raul Giovanni Lody. Cabelos de axé: identidade e resistência. Rio de Janeiro: Ed. SENAC Nacional, 2004.
p. 119 e 123
327
Regina Bochicchio. “Baiano – símbolo”. Correio da Bahia. Salvador-Ba, 26 dez. 2002. Perfil. p.11
328
Nilma Lino Gomes. Educação, identidade negra e formação de professores/as: um olhar sobre o corpo negro e
o cabelo crespo. In Educação e Pesquisa. São Paulo, v.29, n.1, p.167-182, jan./jun. 2003.
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me contou que também fazia isso em sua infância, na companhia de outras
meninas (negras).329
Aqui se percebe o quanto os fenótipos eram usados como forma de inferiorizar e
desvalorizar os negros(as). Tudo isto porque não era conveniente valorizar “o outro”, o
diferente.
A beleza, a despeito de sua relatividade, é um instrumento de comparação;
um valor fundamental em qualquer cultura. (...) Por isso, desde tempos
remotos, sabe-se que toda dominação de uma raça ou etnia deve trazer, no
meio de seu aparato repressivo, um processo de aviltamento do subjugado
que passe, necessariamente, pela depreciação estética.
Foi da utilidade prática dessa constatação que surgiu, a partir do período dos
grandes descobrimentos, a necessidade de o mundo branco europeu afirmar
ostensivamente a ‘feiúra’ física do negro. Tomado peça fundamental de uma
economia alicerçada no comércio e tráfico de escravos, foi vetada ao negro a
possibilidade de ser considerado belo. Enquanto, por um lado, os
eclesiásticos afirmavam que preto não tinha alma, impedindo-o de alcançar
essa coisa altamente questionável chamada ‘beleza interior’, por outro, a
sociedade laica européia completava o trabalho, desmerecendo a cor da pele
e os traços físicos dos escravos, bem como suas manifestações culturais e
suas artes.
(...) Era o ‘belo’ europeu dominando a ‘fera’ africana.330
Essa discussão emprestou ao cabelo crespo o papel de símbolo de resistência de
uma cultura imposta que favoreceu a tentativa de modificação de suas características. Bell
Hooks faz uma discussão sobre a luta de homens e mulheres contra esteriotipos racistas, que
tem como objetivo combater a imagem pejorativa.331
Acredito que os movimentos gerados ao longo destes anos, estão contribuindo
para a formação de uma discussão sobre uma estética negra, que além de resgatar a cultura
dos negros, cria modificações que contribuem para a sua aceitação na sociedade como tal e
não mais como um indivíduo que se utiliza do padrão europeu para ganhar espaço. Além
disto, verifica-se diante deste crescimento o aproveitamento do mercado para lucrar através da
formação de produtos específicos. Isto não significa dizer que não sejam necessários os
negros buscarem uma identificação com os produtos através da imagem que os definem como
sendo para afro-descendentes, mas sim que este mercado vem se utilizando dessa necessidade
para juntamente com o fetiche, manipular a população negra à compra destes produtos.
329
Marcos Frenette. A cor da infância. Revista Raça, São Paulo, Editora Símbolo, nº. 38, Ano 4, out. 1999, pp.
88 - 92. p. 90
330
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88 - 92. p.88
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Diante disto, verificamos que hoje está na moda ser negro, e se assumir como tal,
principalmente com um mercado que disposto a oferecer uma gama de produtos para esses
consumidores. A questão é que a moda passa. E fica a questão: as pessoas que se relacionam
com essa moda conseguiram construir uma consciência do que é ser negro no Brasil?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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3.2 – SIMPÓSIO 2:
HITÓRIA SOCIAL
Coordenação:
Prof. Dr. Dilton Maynard (ANPUH-SE/UFS)
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“SERGIPE EM TRÂNSITO”: CIRCULAÇÃO DE AUTOMÓVEIS NO
INÍCIO DO SÉCULO XX
Andreza Santos Cruz Maynard - FSLF
[email protected]
Esta pesquisa investiga a normatização do trânsito de automóveis em Sergipe nas primeiras
décadas republicanas. A partir de anúncios publicitários, notícias de jornais e algumas
normas, foi possível encontrar informações sobre as expectativas e os problemas que os
sergipanos enfrentaram no preparo das vias para a circulação veículos automotores. Os
pedestres e veículos a tração animal da capital e do interior precisaram se adaptar ao barulho e
velocidade dos automotores. Os signos da modernidade transformavam cada vez mais o
cotidiano das cidades, imprimindo-lhes um novo ritmo.
Palavras-chave: Sergipe, República, Modernidade.
Ó maravilha dos sentidos!
Planava sobre a novidade
(Tudo ao olhar, nada aos ouvidos)
Um silêncio de eternidade.
Charles Baudelaire
Entre o fim do século XIX e o início do XX o mundo experimentou uma série de
transformações. O desenvolvimento da eletricidade e dos derivados do petróleo, além do
aperfeiçoamento na produção e conservação de alimentos, controle de moléstias e
prolongamento da vida trouxeram mudanças significativas para os habitantes da Europa e,
mais tarde, para todo o mundo. A partir daí o mercado capitalista sofreu um impulso que
possibilitou a consolidação da unidade global.
Era a modernidade que se irradiava a partir da Revolução Científico Tecnológica do
fim do século XIX. Nicolau Sevcenko lembra que nesse período surgem “os veículos
automotores, os transatlânticos, os aviões, o telégrafo, telefone”, e ainda, “a iluminação
elétrica, e a ampla gama de utensílios eletrodomésticos, a fotografia, o cinema, a radiodifusão,
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a televisão, os arranha-céus, e seus elevadores, as escadas rolantes”332 e tantas outras
novidades.
Para a divulgação dessas inovações foram organizadas as exposições universais,
“verdadeiros palácios de sonhos da industrialização e do progresso”333, que atraíam curiosos e
investidores. De acordo com Walter Benjamin as exposições universais eram “centro de
peregrinação ao fetiche mercadoria”334. Na medida do possível, todos procuravam
acompanhar as transformações que eram apresentadas nessas ocasiões.
Edgar de Decca chama atenção para o êxtase produzido pela exposição dos produtos
industriais. Isso era resultado, em parte, da diversidade que se podia vislumbrar, pois “na
mesma exposição tanto se poderia admirar a nova máquina de costura Singer como o mais
moderno canhão da fábrica alemã Krupp”335. Uma das “maravilhas modernas” de maior
destaque, o automóvel, apareceu na década de 1880. E não tardou para que o veículo tomasse
as ruas do lado de cá do Atlântico.
Os veículos causavam frisson àqueles que o observavam pela primeira vez. Os
moradores do sertão alagoano que viram na década de 1910 os carros com “olhos de fogo” de
Delmiro Gouveia que o digam. Dilton Maynard336 estudou as produções da memória em torno
do coronel dos coronéis e ressalta que
Delmiro era dono de carros, objetos rarefeitos nos dias em que viveu nas
Alagoas. Os impactos da circulação dos seus veículos, cruzando as estradas
do sertão, principalmente à noite, surgem noutras quadras “Minha mãe o
que é aquilo/Que vem assombrando a gente?/- É o carro de Delmiro/Com [o]
um fogo aceso na frente”337.
Sem dúvida alguma o sertão habitado por Delmiro Gouveia era uma exceção. De
maneira geral as novidades apareciam primeiro nas grandes cidades. A introdução dos
veículos automotores e dos bondes elétricos imprimiram um novo ritmo às ruas. Isso gerou a
necessidade instituir os direitos e deveres de veículos e pedestres para evitar acidentes.
332
SEVCENKO, Nicolau (org.). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
vol. 3, p. 9.
333
DECCA, Edgard de. O colonialismo como a glória do império. In.: FILHO, Daniel Aarão Reis, FERREIRA,
Jorge, ZENHA, Celeste (orgs.). O século XX. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2000, p. 161.
334
BENJAMIM, Walter. Paris, Capital do século XX. In: Sociologia. 2. ed. São Paulo: Ática, 1991. (Coleção
grandes cientistas sociais; 50), p. 35.
335
DECCA, Edgard de. O colonialismo como a glória do império. In.:FILHO, Daniel Aarão Reis, FERREIRA,
Jorge, ZENHA, Celeste (orgs.). O século XX. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2000, p. 162
336
MAYNARD, Dilton Cândido Santos. O senhor da Pedra: produções e usos das memórias sobre Delmiro
Gouveia (1940 - 1980). Recife, 2008. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História
da Universidade Federal de Pernambuco.
337
Idem, p. 208.
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Levando isto em consideração, este trabalho investiga a normatização do trânsito de
automóveis em Sergipe nas décadas de 1910 e 1920.
Assim como outras capitais, Aracaju crescia e mudava de maneira particular no início
do século XX. Os cinemas começaram a funcionar em 1909, o bonde a tração animal servia à
população desde 1901, o primeiro automóvel surgiu em 1913. Outros serviços foram
disponibilizados como os de água encanada em 1908, luz elétrica em 1913 e esgotos em 1914.
Contudo, as transformações trazidas pela modernidade ganharam destaque durante os anos
vinte338.
Apesar da historiadora sergipana Maria Thétis Nunes afirmar que o primeiro
automóvel surge em 1913 no estado, um ano antes os códigos de posturas já traziam um
tópico específico para tratar do assunto. Entre as obrigações estavam a idade mínima de 18
anos para guiar, o registro dos veículos, particulares ou de aluguel, na Municipalidade339, a
proibição de subir nos passeios, de abandonar o veículo em qualquer lugar, e de parar em
pontes, pontilhões e bueiros. De acordo com as normas vigentes em Aracaju na década de
1910 ninguém poderia “ser condutor de veículo, seja carro ou carroça pública, ou particular,
sem ter feito a devida matrícula e adquirido a placa mencionada no regulamento n.10 para a
arrecadação das rendas do Município”340.
Até a década de 1920 não existiam revendedoras de automóveis em Sergipe. Os
veículos eram comprados fora e trazidos para o estado. Os jornais da época trazem anúncios
para a venda de veículos usados. Quando o proprietário J. Esteves Filho desejou se desfazer
do bem, anunciou num periódico que estava vendendo “quase por metade do seu verdadeiro
valor, um automóvel Studbaker de 7 assentos, de 45 cavalos, 6 cilindros, magnetos Bosh de
alta tensão, partida automática, cor azul-marinho e jogo de capas novo” 341. Os interessados
poderiam encontrá-lo no Cine Rio Branco.
No momento de vender os carros, os proprietários destacavam as qualidades do
veículo e tentavam facilitar a comunicação com os possíveis compradores. O jornal Diário da
Manhã publica a oferta, em dezembro de 1925, de um automóvel “Lanz”, uma marca famosa,
de acordo com o anuncio. O carro era usado “porém em perfeito estado de funcionamento,
338
. Cf. NUNES, Maria Thetis. História da Educação em Sergipe. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Aracaju:
Secretaria de Educação e Cultura do Estado de Sergipe. Universidade Federal de Sergipe, 1984. p. 216
339
Normalmente essa matrícula poderia ser feita em qualquer época do ano e renovada nos meses de Janeiro e
Fevereiro. Cf. Códigos de Postura.
340
CÓDIGO DE POSTURAS DO MUNICÍPIO DE ARACAJU. Aracaju, 1912, Seção 3ª, capítulo II , art. 96, p.
26..
341
MAGNÍFICO! Diário da Manhã, Aracaju, 11 nov. 1924, p. 2.
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completo com todos acessórios de força de 36 a 45 H.P. efetivos. A tratar com o proprietário
n. cidade de Itabaiana ou com R. Wynne Queiroz nesta capital. 9 – 30”.342
No entanto os automóveis ainda precisam conviver durante um bom tempo com os
veículos a tração animal que circulavam pela capital sergipana e, principalmente, nas cidades
do interior. Assim não é incomum aparecer anúncios de venda dos “Carros de praça”. Em
1924 José Freire Barreto estava vendendo “uma Charrete, tipo francês, com sete assentos,
com ou sem animal, e devidamente arreada”343.
A disputa pelos espaços nas ruas aumentava. Os pedestres precisavam competir com
carroças, bicicletas e bondes. Mas o veículo mais perigoso parecia ser mesmo o automóvel.
Daí porque a necessidade de regulamentar o comportamento dos veículos e, principalmente
dos condutores, pelas ruas das cidades. O código de posturas de Aracaju de 1926 determinava
no segundo capítulo como deveria ocorrer o trânsito de veículos. Conforme o regulamento:
Art. 106º – Ninguém poderá conduzir veículo, seja automóvel, caminhão,
carro ou carroça pública ou particular sem matrícula e sem possuir a placa
mencionada em regulamento. Aos infratores será aplicada a multa de 20$000
ou prisão por 4 dias.
Art. 107º - Verificada a infração, proceder-se-á à apreensão do veículo que
ficará no Depósito Municipal até o pagamento da multa e do imposto
respectivo.
# Único – É vedada a direção de todo e qualquer veículo aos menores de 18
anos. Em caso de infração, será aplicada, multa de 30$000 ou prisão por 6
dias à pessoa responsável pelo menor 344 .
Qualquer agente da municipalidade ou mesmo da polícia estava autorizado a abordar
os condutores de veículos que se portassem de maneira irregular nas ruas. A desobediência às
normas, com a conseqüente perturbação da ordem pública ou mesmo o ocasionamento de
acidentes deveriam ser punidos com multas ou prisões. Mas não era apenas na capital que os
automóveis precisavam de freios. Algumas cidades do interior também formularam um
roteiro que deveria ser seguido pelos condutores de veículos automotores. Eis algumas das
indicações que não poderiam ser deixadas de lado:
Art. 44. Na zona urbana os automóveis não poderão desenvolver velocidade
superior à equivalente a 10 quilômetros por hora.
# 1º Nos cruzamentos e curvas das ruas bem como nos becos e travessas, a
velocidade será reduzida ao mínimo.
342
LOCOMOVEL LANZ. Diário da Manhã. Aracaju, 1 dez. 1925, p. 2.
CARRO DE PRAÇA. Diário da Manhã. Aracaju, 11 nov. 1924, p. 3.
344
CÓDIGO DE POSTURAS DO MUNICÍPIO DE ARACAJU. Aracaju, 1926, p. 24.
343
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# 2º Quando, por qualquer motivo, houver aglomeração nas ruas, a
velocidade dos automóveis e outros veículos será igualmente reduzida ao
mínimo.
# 3º As infrações das disposições deste artigo serão punidas com multa de
10$000.
# 4º . Todo veículo em marcha deverá tomar a direita sempre que o outro
vier em sentido contrário e, quando seguindo a mesma direção pretender
tomar a direita, deverá fazê-lo passando pela esquerda do que vai na frente.
Os infratores incorrerão na multa de 10$000.
Art. 45. Nenhum veículo poderá passar por cima das calçadas e passeios
públicos, salvo em caso de força maior, para evitar acidente, sob pena de
incorrer na multa de 10$000.
Art. 46. Nenhum veículo poderá conservar abertas as suas válvulas nas ruas
e praças para escapamento de vapor ou gás de modo a incomodar o público,
sob pena de incorrer na multa de 10$000 o condutor.
Art. 47. Todos os automóveis que transitarem à noite, deverão ser providos
de faróis iluminando a placa com o número de ordem, sob pena de 10$000
de multa.
Art. 48. Todo automóvel deve ser provido de uma buzina para avisar aos
transeuntes a sua aproximação.
Art. 49. É obrigatório o toque da buzina dos automóveis nas curvas,
cruzamentos de ruas e passagens nos becos e travessas345.
Usualmente os códigos de posturas das cidades obrigavam os proprietários de veículos
a realizarem a matrícula municipal, e isso já implicava no pagamento de um imposto. Além
disso, era preciso que o condutor estivesse habilitado e que o veículo dispusesse de itens
básicos de segurança, como os freios, faróis e buzina. Na década de 1920 aparecem
orientações sobre a velocidade máxima e mínima a serem desenvolvidas em locais e situações
específicas. Dessa maneira não bastava ter a posse do veículo para sair com ele às ruas. Era
preciso saber guiá-lo e conhecer as normas para as situações em que elas fossem aplicadas.
Entretanto, o trânsito em Sergipe não se limitava aos veículos automotores. Por isso
mesmo os códigos de posturas determinavam também sobre os animais que serviriam como
meios de transporte e tração para alguns veículos. O ritmo dos animais também precisava ser
controlado. E para evitar acidentes “todos os veículos de tração animal serão conduzidos
dentro da cidade a passo de trote curto sob pena de 5$000 de multa”346. Em Aracaju era
expressamente proibido
a) Correr a cavalo pelas ruas, avenidas, e praças da cidade.
b) Andar a cavalo, guiar ou demorar animais sobre passeios e em jardins.
c) Atar animais as portadas, postes de iluminação ou de bondes, de linhas
telegráficas ou telefônicas347.
345
CÓDIGO DE POSTURAS DO MUNICÍPIO DE ANNÁPOLIS. Annápolis, 1927, capítulo III, p. 9 – 10.
CÓDIGO DE POSTURAS DO MUNICÍPIO DE ANNÁPOLIS. Annápolis, 1927, capítulo III, art. 43, p. 9.
347
CÓDIGO DE POSTURAS DO MUNICÍPIO DE ARACAJU. Aracaju, 1926, art. 103º p. 23.
346
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Os animais que eram encontrados soltos pelas ruas poderiam ser apreendidos. E caso o
dono não pagasse a multa estipulada, o bicho era vendido publicamente. Isso não estava
limitado apenas aos cavalos ou mulas. Qualquer bovino ou caprino que fosse encontrado
largado pelas cidades apresentando risco ao trânsito era imediatamente retido por funcionários
da prefeitura, policiais, ou mesmo cidadãos comuns. E, se por um lado havia preocupação
quanto à velocidade dos automóveis e dos animais, por outro, a lentidão e desconforto dos
bondes puxados por burros eram motivo de vergonha para muitos moradores de Aracaju.
A eletricidade fora introduzida no estado em 1913, mas era usufruída por poucos. Em
comparação com outras capitais, Aracaju demorou a se desfazer dos candeeiros e lampiões.
Nicolau Sevcenko descreve as impressões de Oswald de Andrade, ainda criança, sobre a
mágica dos bondes movimentados sem impulso externo em São Paulo desde 1900348.
Entretanto, nos anos vinte, Aracaju ainda contava com bondes puxados por burros.
Voluntariosos, os animais precisavam ser chicoteados durante os trajetos. Isso ocorria porque
“subitamente os burros empacavam, deitavam-se nos trilhos, faziam greve pacífica e não
havia chicote que o arredasse dali”. Os passageiros eram obrigados a descer e assistir a luta do
condutor “para ‘convencer’ os animais de sua obrigação”349.
Finalmente, em 1924, a Empresa Tração Elétrica de Aracaju cumpriu a promessa de
melhorar os bondes. Estes “já deixaram o passo de cágado para correrem nas linhas, e sem o
barulho, pelo fato de lhes haverem sido aplicadas novas rodas”350. Nem todas as substituições
haviam sido feitas, mas esperava-se que isso acontecesse em breve. Além disto, os pedestres
esperavam que os novos bondes, prestassem melhores serviços. Os condutores deveriam zelar
pela apresentação pessoal e a lotação do meio de transporte deveria ser respeitada, deixando
assim de causar inconvenientes para os pedestres que precisassem utilizar o serviço, uma vez
que
Não se pode admitir por gosto que numa capital já modernizada como
Aracaju haja calhambeques desarticulados e escandalosos acudindo pelo
título pomposo de bondes.
Estamos de pleno acordo com a providência tomada quanto ao
chicoteamento dos animais, porquanto se eles não puxam certos carrões de
assalto, não é por preguiça, mas por impossibilidade.
Uma coisa que os senhores da E.T.E.A. devem fazer quanto antes: vestir os
condutores e caixeiros, que andam semi-nus e sujos.
348
SEVCENKO, Nicolau. A capital irradiante: técnicas, ritmos e ritos do Rio. In: NOVAIS, Fernando A.
(coord. geral). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, v. 3, p. 546.
349
CABRAL, Mário. 3 ed. Roteiro de Aracaju. Aracaju: Banese, 2002. p. 113.
350
OS BONDES. Correio de Aracaju. Aracaju, 20 jul.1924, p. 4.
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Não devem também permitir que os bondes, com a lotação completa, ainda
leve passageiros de pé na plataforma. Estando cheios, os bondes só devem
parar para descida351.
Os bondes puxados por dois burros tinham cinco bancos, e a lotação máxima de vinte
passageiros. Isto explica porque andavam sempre lotados e não ofereciam conforto. O balanço
do bonde provocava até mal estar. Certo dia o mestre de padaria 2 de Julho José dos Santos
almoçou à tarde e subiu no bonde que passava às 15h. Quando estava em frente a padaria
União na rua de Laranjeiras, centro da cidade, não suportou “o jogo do veículo, caiu sem
sentidos no calçamento acometido por um forte ataque de congestão cerebral. Resultou da
queda sofrer um enorme talho na cabeça. Socorrido por um soldado do 28 e guardas civis”352.
Levado à farmácia Central, recebeu os primeiros curativos e foi removido para a Assistência.
A indisposição do padeiro José dos santos até poderia ter tido outra causa como um ataque
epitético. No entanto, o jornal aproveitou o fato para atribuir o “ataque de congestão cerebral”
ao inconveniente de ter bondes puxados por burros nas linhas do centro da cidade. Um
incidente como esse remetia ao atraso em que Aracaju estava em comparação a outras
capitais. Enquanto os jornais das grandes cidades reclamavam da velocidade dos bondes, em
Aracaju se noticiava o quanto o transporte maltratava os usuários.
No Rio de Janeiro, por exemplo, havia disputas entre pedestres e veículos. Para
atravessar uma rua era preciso estar atento ao movimento dos automóveis e dos bondes. Em
muitas de suas crônicas Machado de Assis comentava “o subido número de atropelamentos,
sobretudo de pessoas mais idosas, não adaptadas ainda ao novo ritmo de deslocamento dos
veículos elétricos”353. E se os bondes não conferiam grandes emoções aos usuários em
Aracaju, os automóveis se encarregavam de trazer os tão sonhados problemas das grandes
metrópoles para as ruas da capital sergipana. No dia 27 de julho de 1924 um garoto foi
atropelado por um automóvel. O Correio de Aracaju fez questão de noticiar o fato na primeira
página
Ontem às 18 horas na rua da Frente, esquina de Maroim, o automóvel n.11
guiado pelo chofer Oyntho Correia na ocasião em que desviava do bonde da
Fundição que nesta hora vinha rumo ao Bairro Industrial, atropelou um
menor de nome Cícero, morador à rua do Lagarto, que viajando, clandestino
no veículo da Viação, quis fugir ao buzinar do auto sendo, porém, pegado
por uma das rodas, atirando-o no calçamento. Socorrido por passageiros do
351
OS BONDES. Correio de Aracaju. Aracaju, 20 jul.1924, p. 4.
CAIU DO BONDE ATACADO DE CONGESTÃO. Correio de Aracaju. Aracaju, 28 jul. 1924, p.1.
353
SEVCENKO, Nicolau. A capital irradiante: técnicas, ritmos e ritos do Rio. In: NOVAIS, Fernando A.
(coord. geral). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, v. 3, p. 549.
352
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bonde, verificaram não ter o menor sofrido coisa alguma, salvando deste
modo a responsabilidade do chofer354.
Assim, pode-se perceber apesar das transformações que pareciam devorar o mundo,
Aracaju demorou a exibir as benesses e os problemas de uma capital moderna. Apesar de
querer regulamentar o trânsito de pedestres e veículos para evitar acidentes, as cidades
contavam ainda com um grande número de veículos a tração animal, ou mesmo eqüinos e
muares que eram usados como meio de transporte.
Os automóveis não tinham preços acessíveis. E para dificultar ainda mais o acesso aos
carros, Sergipe passava por uma das maiores crises de carestia nos anos vinte. Assim como a
eletricidade ou o telefone, o automóvel chegou a Sergipe, mas nem todos puderam desfrutar
da novidade.
E enquanto os códigos de postura limitavam a velocidade máxima a 10 km por hora,
os usuários do bonde a tração animal reclamavam da vagareza do transporte. Esses indícios
levam a crer que os sergipanos desejavam desfrutar dos mesmos benefícios, e em alguns casos
até dos mesmos problemas, encarados pelos moradores de cidades como São Paulo ou Rio de
Janeiro. Assim, o que contava era a possibilidade de identificar traços da modernidade nas
cidades sergipanas, e, principalmente, na capital.
As tão almejadas novidades ganharam espaço, mas precisaram conviver com costumes
e tradições. Não se pode falar em mudanças bruscas, ou assimilação imediata das inovações.
A regulamentação do trânsito em Sergipe entre as décadas de 1910 e 1920 apresenta algumas
das contradições em torno da modernidade. Nesse sentido cabe a definição de Willi Bolle de
que “a modernidade é a expressão artística e intelectual de um projeto histórico chamado
‘modernização’ – contraditório, inacabado e mal resolvido”355.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BAUDELAIRE. Charles. Sobre a modernidade: o pintor da vida moderna. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1996. p.11
354
MENOR ATROPELADO, MAS O CHAUFFER NÃO TEVE CULPA. Correio de Aracaju. Aracaju, 28 jul.
1924, p.1.
355
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CAPRICHOS E TRAPICHES: CONCEPÇÕES EM
256
TORNO DO
TRABALHO FEMININO, EVIDENCIADO A PARTIR DE UM OLHAR
SOBRE A ATIVIDADE FUMAGEIRA EM CONCEIÇÃO DO ALMEIDABA. 1960-1980.
Margarete Nunes Santos Gomes – UNEB
[email protected]
No Recôncavo Baiano, especificamente em Conceição do Almeida-Ba, entre as décadas de
1960 a 1980, muitas mulheres firmaram suas histórias vinculadas à atividade fumageira nos
armazéns e no cultivo agrícola do fumo. Partindo das condições desse trabalho, do cotidiano e
das memórias, buscou-se analisar os múltiplos aspectos dessa vivência. Para traçar o perfil
das mulheres trabalhadoras da atividade fumageira, dedicou-se uma maior atenção às
memórias e as relações formadas no trabalho, na família, os laços de solidariedade, além das
estratégias de resistência e as relações de poder travadas neste âmbito. Se referindo ao
contexto dos papéis que essas mulheres desempenharam, há uma especial atenção às histórias
de vida das trabalhadoras, vinculadas à história oral numa dimensão comparativa de suas
histórias, visando entender como essas mulheres trilharam esse cotidiano. A intenção é revelar
a diversidade de experiências que se ocultaram na vivência dessas trabalhadoras, as quais
atingiram diretamente a formação de suas identidades, buscando assim, entender as condições
históricas de vida e de trabalho do seguimento social ao qual pertenciam.
Palavras-chave: Mulheres, fumo, trabalho, memórias.
História e Trabalho
O trabalho e seus significados
A vontade de superar o discurso miserabilista da opressão, de submeter o
ponto de vista da dominação, procurando mostrar a presença, a ação das
mulheres na plenitude de seus papéis, e mesmo a coerência de sua “cultura”
e a existência dos seus poderes. Caminho que é preciso reencontrar. Uma
história outra. Uma outra história. 356
356
PERROT, Michelle. Os excluídos da História: Operários, mulheres e prisioneiros. Tradução Denise
Bottmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. Pp.169-170.
Aracaju, 08 a de 10 de outubro de 2008
ISBN - 978-85-7822-067-9
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Historicamente as mulheres sempre necessitaram lutar para fazerem valer os seus
direitos, no entanto a participação da mulher ainda é vista de forma secundária, há grandes
desigualdades nas condições de trabalho entre homens e mulheres, principalmente no que se
refere à valorização profissional. ”Economicamente, homens e mulheres constituem como
duas castas, em igualdade de condições, os primeiros têm situações mais vantajosas, salários
mais altos e melhores possibilidades de êxito.” 357 Este fato é percebido também nos armazéns
de fumo onde algumas entrevistadas afirmam “os homens sempre ganhava mais do que nós e
sempre era eles que mandava.”
358
. “Em geral, na divisão do trabalho, as mulheres ficavam
com as tarefas menos especializadas e mal remuneradas, os cargos de direção e de concepção
como os de mestre, contra mestre e assistente, cabiam aos homens.” 359
Nos armazéns de fumo a presença feminina era subordinada ao mestre e ao
administrador. Nos depoimentos não há especificada nenhuma forma de comando direto
feminino, com exceção de algumas esposas dos donos de armazém que na ausência deste,
assumia o cargo de supervisão. Estas eram chamadas de trapicheiras e algumas secretárias que
faziam os trabalhos burocráticos e os pagamentos, mas a maior parte do trabalho de comando
tinha sempre a presença masculina no poder.
O trabalho é uma atividade do ser humano que visa transformar o meio em que se
vive segundo as suas necessidades. A palavra trabalho vem do latim tripalium que significa
instrumento utilizado para manter animais como bois e cavalos presos, sendo possível ferrálos. Vulgarmente significa servidão do homem a natureza, esforço para sobrevivência,
reveste-se de múltiplos significados, observa-se na língua portuguesa a que a palavra trabalho
“é a aplicação das forças físicas e das faculdades mentais na execução de alguma obra”360 .
As mulheres das camadas sociais mais pobres nunca foram alheias ao trabalho,
em todas as épocas sempre trabalharam, contribuíram sensivelmente para a manutenção do
lar, o problema é que este trabalho não era conhecido muito menos valorizado.
Historicamente o trabalho passou por diversas definições. Os filósofos gregos e
romanos consideravam que o trabalho manual era atividade destinada aos escravos, às
utilizações das mãos eram consideradas faltas de criatividade, desprezando-o. Os filósofos da
357
BEAUVOIR. Simone de. O Segundo Sexo: Tradução: Sérgio Milliet. Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira. 1949. P.14
358
Mª Nilza de Jesus (D. Nita), 70 anos. , Ex-trabalhadora dos armazéns de fumo. Conceição do Almeida, Ba.
Entrevistada em 02/12/2005 Duração: 80 minutos.
359
RAGO, Margareth. Trabalho Feminino e Sexualidade. In: DEL PRIORE, Mary (Org.). História das
Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2001. P.584.
360
XIMENES, Sérgio. Minidicionário da Língua Portuguesa. São Paulo: Ediouro, 2000. P.917.
Aracaju, 08 a de 10 de outubro de 2008
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Idade Média viam o trabalho como uma forma de suprir as necessidades humanas, cabendo,
no entanto esta função aos pobres que não tinham como se sustentar, aos ignorantes. O
trabalho intelectual é separado do trabalho manual, algo que se perpetua até os dias atuais.
As trabalhadoras pobres eram vistas na sociedade como pessoas ignorantes, “sem
cultura”. O trabalho braçal, historicamente, sempre foi associado à escravidão, a incapacidade
de desenvolver habilidades intelectuais. Esta idéia explicita os privilégios sociais nos quais os
dominantes justificam seu poder formando uma gama de valores contraditórios, modernos e
arcaicos.
As vivências e experiências dos agentes sociais se estabelecem através das
relações muitas vezes difundida pelos interesses da classe dominante, que fazem questão de
preservar seus valores, criando uma totalidade cultural, desvalorizando os movimentos sociais
e as lutas dos grupos pobres, é o que nos afirma E. P. Thompson, ao escrever contra “o peso
das ortoxias dominantes, em que apenas os vitoriosos são lembrados”361. O cotidiano do
trabalho forma e estabelece um lugar onde o tempo se transforma, na qual a oposição entre a
classe dominante e a classe dominada se opõe numa relação de mudança ou de continuidade.
Com o crescimento das cidades, a expansão da economia capitalista estimulou a
criação de um novo modelo econômico e de produção com o surgimento das fábricas, a
mercantilização de matérias-primas e de mão-de-obra, exigiu a adaptação de homens e
mulheres a um novo ritmo de trabalho passando ao compasso da alta produtividade.
A mão-de-obra passou a ser assalariada, houve diversos movimentos
reivindicatórios e de reconhecimento dos direitos dos trabalhadores, ocorreram lutas por
melhores condições de trabalho e por salários mais justos e por uma verdadeira justiça social.
No Brasil a partir de 1930, ocorreu a expansão dos direitos trabalhistas, com a
criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio através do decreto lei de 19.433 que
institui a Carteira Profissional e disciplinou a duração da jornada de trabalho. Neste período
também surgiram os Sindicatos Únicos, que contribuíram para a regularização das
convenções do trabalho, estendendo o direito á férias, direito à estabilidade no trabalho, a
licença maternidade, entre outros.
Em 1º de maio de 1940 o Decreto-Lei nº. 2162 instituiu o primeiro salário mínimo
que deveria suprir as necessidades básicas do trabalhador. Sobre este fato há uma crítica
constante no que tange as relações econômicas do trabalho, na qual, a maior parte dos
361
THOMPSON, E. P. A Formação da Classe Operária: A Árvore da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1987. 12-13.
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trabalhadores nunca é remunerada dignamente, quem produz a riqueza é quem menos a
possui.
A história das mulheres no contexto produtivo possui ainda uma luta maior:
Primeiro como trabalhadora e segundo como “mulher”, negra e pobre. Nos primórdios da
história as mulheres “apenas” trabalhavam na agricultura, nas oficinas artesanais e nas tarefas
domésticas, enquanto os homens saíam para caçar e garantir a subsistência da família, estas
possuíam tarefas especificas, assim como os homens, porém vivenciava uma sociedade mais
igualitária.
Quando se estabeleceu a sociedade paternalista, foi necessário legitimar o poder
masculino, excluindo a mulher de várias funções, estipulando que cabia às mulheres o espaço
privado do lar, a criação dos filhos, sendo estas afastadas dos espaços públicos.
A maioria das mulheres trabalhadoras exercia as chamadas ocupações femininas:
costurar, cozinhar, cuidar das crianças e ser prendada. Os únicos trabalhos abertos às
mulheres que não se resumiam ao próprio lar era o magistério (educação infantil) enfermagem
e serviços domésticos (empregada doméstica), sendo estes feitos para melhoria da renda
familiar. Porém estavam quase sempre às margens do processo de desenvolvimento social.
O trabalho propiciou uma forma de emancipação das mulheres, apesar de toda
desigualdade estabelecida entre os sexos. Mas foi através do trabalho assalariado que estas
repensaram sua condição de mulher, redefinindo seus papéis neste cotidiano. Fato este que
pode ser comprovado na maioria das falas de diversas entrevistadas, aspecto este significativo
por Dona Margarida (ex-trabalhadora de armazém de fumo), que diz respeito às dificuldades
vivenciadas ao decidir trabalhar fora do lar, principalmente em relação ao marido que
comenta da incapacidade de aprender.
Meu marido não queria que eu trabalhasse, dizia que eu não sabia fazer nada,
mas fui trabalhar e aprendi com as companheiras, comecei a ganhar meu
dinheirinho e até o que é meu, comprar coisa pra dentro de casa e pra meus
filhos, trabalhar é uma honra.362
No entanto há mulheres que afirmaram o inverso, que os seus maridos não as
impediam de trabalhar. “Meu marido nunca me empatou de trabalhar, nunca se importou, a
362
Maria Margarida Nunes, 74 anos aposentada, Ex-trabalhadora dos armazéns de fumo.
Almeida, Ba. Entrevistada em 16/12/2005 Duração: 60 minutos
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Conceição do
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gente era pobre um ajudava o outro.”363. “A memória é um processo individual, que ocorre
em um meio social dinâmico, valendo-se de instrumentos socialmente criados e
compartilhados. Em vista disso, as recordações podem ser semelhantes, contraditórias ou
sobrepostas”364. Discorre Portelli.
O companheirismo e a ajuda mútua também faziam parte do cotidiano das
famílias, o sofrimento e as dificuldades eram também compartilhados e muitos homens já
tratavam as mulheres de forma mais condizentes, não se sabe se por sentimento de igualdade
ou uma forma de dividir despesas.
O trabalho não significava apenas o recebimento do salário. Era uma conquista,
supria as necessidades materiais, mas ofereceu as essas trabalhadoras uma ascensão social e
econômica. As mulheres passaram a se sentir ‘sujeito do seu próprio destino’. O trabalho
proporcionou a estas mulheres certo domínio. Sobreviver às custas do marido era algo que
deveria ser superado, neste sentido trabalhar tinha um significado de orgulho e de ter a própria
dignidade, e um sentimento de realização.
A elevação da participação econômica das mulheres, mesmo que em ocupações de
postos de trabalhos de “menor qualificação” é responsável pela mudança de vida destas
mulheres. “Meu marido não queria que eu trabalhasse, aí eu perguntei a ele, se ele tinha
condição de me dá uma casa. A gente morava de favor no fundo das casas dos outros, aí eu fui
trabalhar, fui ganhar o ‘meu’ dinheiro.” 365 desabafa Dona Clemilda.
Para a mulher ter um emprego significa embora isto nem sempre se eleve em
nível de consciência muito mais do que receber um salário. Ter um emprego
significa participar de uma vida comum, ser capaz de construí-la. Sentir-se
menos insegura na vida.366
Trabalhar significava uma auto-afirmação de liberdade, de independência, ter sua
própria casa, possibilitar uma vida melhor para os filhos e para si mesma, o que permitiu a
estas mulheres o sentimento de se ser útil, produtiva, tendo condições de prover o seu
363
Crispiniana Santos Maia, 77 anos, ex-trabalhadora dos armazéns de fumo – residente em
Conceição do Almeida – Ba. Entrevistada em 14/12/05. Duração: 60 minutos.
364
PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho. Algumas reflexões sobre ética e história
oral. Ética e História Oral. Projeto História no. 15 Revistas do Programa de Estudos Pós-Graduados em
História e do Departamento de História-PUC/SP. São Paulo: Educ, abril de 1997, p.16.
365
Clemilda do Amor Divino, 65 anos, aposentada. Conceição do Almeida Ba. Entrevistada em 14/12/2006.
Duração: 70 minutos
366
SAFFIOTI, Helleieth Iara Bongiovani. A Mulher na Sociedade de Classe. Mito e Realidade. São Paulo.
Quatro Artes. 1969. P. 63
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sustento, vencendo o medo, a dominação masculina, a discriminação que historicamente se
perpetuou. O trabalho proporcionou uma forma de superação, de “independência”.
A compra da casa própria representava um esforço extraordinário para estas
mulheres. A posse de uma casa ganhava um significado maior, como símbolo de vitória, por
mais simples que a casa seja ela forma uma rede de ralações e sentidos que se entrelaçam, há
um sentimento na propriedade de ‘ter seu próprio canto’ remete a idéia de ter ‘seu lugar no
mundo’, um lugar que envolve a idéia de proteção, de intimidade. A casa é um abrigo de
significados, de repouso e de história. “Meu sonho era trabalhar para ter uma casa, ter onde
botar a cabeça sem pagar aluguel.”367. A casa não é só um lugar de repouso, é um pouso, é o
“meu lugar” é a idéia de pertencimento.
No entanto, ao se introduzirem no mercado de trabalho estas mulheres
acumularam funções, eram mães, esposas, dona-de-casa e trabalhadoras dos armazéns. Esta
situação impôs um novo ritmo ao cotidiano destas mulheres. “Sair para trabalhar fora é
vivenciado como algo ambíguo, pois se é também uma ampliação da sociabilidade, não deixa
de ser experimentado como uma perda em comparação com a situação vivenciada em casa,”
368
fato este abordado na obra de Marilena Chauí, o trabalho feminino fora do lar transformou
as relações familiares.
Mudaram-se as relações produtivas, mas as mulheres continuaram presas ao lar, às
funções domésticas. No modelo patriarcal de família, cabe ao homem, marido ou pai a
posição, de chefe da família, sendo responsável pelo seu sustento, sendo considerado uma
autoridade. A mulher, esposa e mãe é responsável pelas atividades domésticas além da
educação dos filhos, sendo subordinada ao homem. Este modelo de convivência se sustenta
mesmo depois que a mulher foi inserida no mercado de trabalho, o fato de “trabalhar fora”,
não dispensa as mulheres de suas atividades domésticas.
Alguns estudos feitos no início do século XX, afirmavam que a saída da mulher
para o trabalho fora do âmbito familiar, poderia causar sérios problemas à formação familiar,
sendo a mulher figura importante na formação dos “filhos da pátria”, sendo provedora ou
culpada da formação do caráter dos jovens, essas mulheres eram denominadas” mães cívicas”
(aquela que prepara moralmente e intelectualmente o futuro cidadãos para servir à pátria,
engrandecendo a nação).
367
Mª Nilza de Jesus (Dona Nita), 70 anos. Ex-trabalhadora dos armazéns de fumo. Conceição do Almeida Ba.
Entrevistada em 02/12/2005. Duração 80 minutos
368
CHAUÍ, Marilena. Conformismo e Resistência: Aspectos da Cultura Popular no Brasil. São Paulo:
Brasiliense. P.148
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Para muitos médicos e higienistas o trabalho fora do lar levaria à
desagregação da família. De que modo às mulheres que passavam a trabalhar
durante o dia, ou mesmo parcialmente, poderiam se preocupar com o
marido, cuidar da casa e educar os filhos? O que seria de nossas crianças,
futuros cidadãos da pátria, abandonados nos anos mais importantes de
formação do seu caráter?
Tais observações levavam, portanto, à delimitação de rígidos códigos de
moralidade para mulheres de toda classe social. 369
Este moralismo dominante foi vivenciado com maior força sobre as mulheres de
décadas anteriores ao período deste estudo, no qual, o fato de terem uma profissão, estas eram
estigmatizadas e “associadas à imagem da perdição moral, de degradação e de prostituição”.
Porém, historicamente a participação social das mulheres foi sendo modificada. Ao longo dos
tempos passaram a ter uma participação mais direta nos espaços sociais, políticos e culturais,
“as relações entre homens e mulheres deveriam ser, portanto, radicalmente transformadas em
todos os espaços de sociabilidade (...) A condição feminina, o trabalho da mulher fora do lar,
o casamento, a família e a educação seriam pensados e praticados de uma outra maneira.”370.
Há em muitas mulheres um conflito entre os diversos papéis a que foram
tradicionalmente atribuídas, não é fácil conviver com estas mudanças e diferenças, pois fazem
parte de um conjunto de valores que foram internalizados na sua formação enquanto
mulheres, padrões e regras arbritarias estabelecidas historicamente. “Mulheres tem sido
levadas nos últimos anos, assim a buscar um novo entendimento do seu papel.” 371
Mesmo com estas mudanças no ritmo de trabalho das mulheres, suas
responsabilidades não diminuíram. Passaram a vivenciar um enorme desgaste físico e
emocional, na medida em que assumiam efetivamente esta realidade, trabalhar durante o dia
no armazém e a noite em casa, cuidar de todos os afazeres domésticos, não ter folga nem nos
finais de semana. “No domingo ia lavar roupa na fonte, trançar os cabelos das meninas,
arrumar tudo pra segunda-feira, não tinha tempo pra nada,”
372
reforça a idéia do trabalho
contínuo Dona Laura de Jesus, 66 anos, ex-trabalhadora de armazém de fumo. Discurso que é
repetido pelas trabalhadoras dos armazéns, o que sinaliza a fala de Dona Raimunda.
369
RAGO, Margareth. Trabalho Feminino e Sexualidade. In: DEL PRIORE, Mary (Org.). História das
Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2001. P.582.
370
Idem. 14. P.579
371
ROCHA COUTINHO, Maria Lúcia. Tecendo por trás dos panos: A mulher brasileira nas relações
familiares. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. P.62
372
Laura Pereira de Jesus, 66 anos. Ex-trabalhadora dos armazéns de fumo. Conceição do Almeida Ba.
Entrevistada em 20/08/06. Duração 40 minutos.
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O trabalho era todo dia, começava no armazém e continuava em casa. No
domingo a gente ia arrumar a casa, cuidar dos meninos, adiantar as coisas...
A vida era difícil eu cozinhava de carvão, puxava água na cisterna, antes de
ir trabalhar. Deus é quem sabe do meu sofrimento e da minha luta. Se
trabalho matasse eu já tinha morrido! 373
Percebe-se que a rotina de trabalho destas mulheres não tinha fim, quando não
estavam nos armazéns, trabalhavam nos lares, as responsabilidades domésticas lhes
pertenciam, ficando os homens eximidos destes deveres. As mulheres trabalhavam nos
armazéns e ainda tinha o dever de cuidar dos filhos e da casa, cozinhando, limpando,
‘cuidando bem do marido’, um trabalho sem fim. Os homens geralmente trabalhavam e
chegavam a casa para descansar, quando realizavam algum trabalho era visto como uma
“mera ajuda” e não uma obrigação a ser compartilhada, já com as mulheres ocorria o inverso.
Esta situação tem suas raízes nos aspectos culturais que naturalizam e
transformam deveres às diferenças biológicas em fatos sociais, construindo com isso uma
desigualdade social que afeta principalmente as mulheres, consolidando comportamentos no
seu cotidiano, se estipulado os “trabalhos próprios de mulheres”, que são afirmados e
reafirmados pela educação formal ou não formal.
O direito ao lazer e ao descanso é algo quase imperceptível nas falas destas
mulheres. O lazer é um direito assegurado a todo trabalhador e trabalhadora como uma forma
de repor energias, quando trabalhando ininterruptamente poderá desenvolver uma estafa física
e mental. “O corpo está às vezes esgotado, à saída da fábrica, mas o pensamento está sempre
esgotado, mais ainda do que o corpo.”374
A dupla jornada de trabalho impõe limitação de tempo, e legitima uma forma de
exploração que inclui a falta de lazer, do direito ao descanso sendo explicita a exploração
duplamente da mulher.
De fato, parte importante do processo de desqualificação a que é submetido
o trabalho feminino emana da invisibilidade. A começar pelo trabalho
realizado por mulheres no âmbito doméstico enquanto mães e donas de casa.
Mesmo envolvendo uma diversidade de tarefas essenciais para a
sobrevivência da família e para a reprodução da força de trabalho, mesmo
implicando numa longa jornada de trabalho diária, essas atividades só são
consideradas trabalho quando remuneradas... 375
373
Raimunda Ribeiro Cunha, 73 anos Ex-trabalhadora do armazém de fumo. Conceição do Almeida Ba.
Entrevistada em 03 /12/06 Duração: 50 minutos
374
WEIL, S. A condição operária e outros estudos sobre opressão. Seleção e organização de Ecléia Bosi. Rio
de Janeiro: Paz e Terra. P.61
375
SARDENBERG. Cecília Maria Bacellar (Org.) A face feminina do complexo metal-mecânico: mulheres
metalúrgicas no Norte/Nordeste. Salvador: UFBA/FFCH/NEIM; REDOR: São Paulo; CNM/CUT, 2004.p.32.
Aracaju, 08 a de 10 de outubro de 2008
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Enquanto trabalhadoras estas mulheres vivenciaram uma exploração muitas vezes
ofuscada por uma violência invisível. Esta invisibilidade repousa no sentimento de satisfação
que aos se confrontar com estas experiências vividas lhe ofusca os pontos negativos desta
convivência. Heller afirma que “Sentir-se Satisfeito numa sociedade insatisfeita... a exaltação
ao trabalho é tão forte que, para muitos, o ócio e o lazer vem sempre acompanhados de um
sentimento de culpa”.376
Realisticamente, as mulheres que se tornam assalariadas consideram “sair de
casa para trabalhar fora” uma carga, (A dupla jornada de trabalho, o longo
tempo gasto no percurso, a preocupação com os filhos deixados em casa) e
uma servidão, pois acrescenta-se à submissão ao pai ou ao marido
(Submissão reconhecida) a subordinação a feitores, contra-mestre, fiscais,
gerentes e patrões ( subordinação indesejada) 377
Marilena Chauí aborda que foi neste processo histórico que estas mulheres foram
se libertando das diversas instâncias de poder que ocorriam entre pai, marido e patrão, mesmo
se sujeitando as leis de dominação de mestres e fiscais, construíram estratégias de resistência
e superação, desmistificando o imaginário criado em torno destas mulheres que eram vistas
como figuras vitimizadas, passivas, coitadas, sem expressão.
Sobre as dificuldades do trabalho há uma observação bastante pertinente no
depoimento da Dona Nair Bispo dos Santos.
O trabalho era cansativo, forçado, sofria muito mesmo, trabalhando de
manhã até à tardinha, chegava em casa era aquele bucado de filho. Eu tive
dez filhos, tinha que trabalhar, e os filhos maiores eram que cuidava dos
menores. Tinha dia que não dava tempo nem pra comer. Ficava tudo na mão
de Deus, era Deus que cuidava deles pra gente, a vida era tão difícil. Mais
hoje eu me sinto bem e por ter passado por isto me ensinou a me valorizar.
Hoje me sinto uma vitoriosa. 378
Nesta fala verificam-se significativas lembranças que marcaram o período de
trabalho vivenciado pelas trabalhadoras dos armazéns de fumo. Sinalizando as dificuldades
376
HELLER, Agnes. Para mudar a vida. São Paulo: Brasiliense, 1982. P.162
CHAUÍ, Marilena. Conformismo e Resistência: Aspectos da Cultura Popular no Brasil. P. 148.
378
Nair Bispo dos Santos, 70 anos. Ex-trabalhadora de armazéns de fumo, residente em Conceição de Almeida.
Entrevistada em 23-01-06. Duração: 90 minutos
377
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em relação à dupla jornada de trabalho, a preocupação na criação dos filhos, o tempo escasso
até para as necessidades básicas como à alimentação.
O processo de dominação é visivelmente observado no início do diálogo quando a
entrevistada fala do sofrimento, do cansaço, a experiência vivida que denuncia como as
condições de trabalho eram precárias, mas a necessidade de sobrevivência era maior, quando
direciona a idéia de um trabalho “forçado” quase escravo, sem uma remuneração justa. As
palavras deixam marcas na forte expressão e de emoção ao falar dos filhos, buscando uma
evocação religiosa e de fé, como uma força maior que estariam com eles no momento de sua
ausência. “A história das mulheres não é só delas, é também aquela da família, da criança, do
trabalho, da mídia, da literatura. É a história do seu corpo, (...) dos seus sentimentos”. 379
Esta narrativa entrelaça diversas lembranças e várias dimensões da memória que
estão presas a recordações que são pedaços de um cotidiano, na qual se estabeleceram
relações concretas, com o trabalho, com os filhos e com as crenças.
O relato de Dona Nair marca o cotidiano que não pode ser visto particularmente,
mas uma realidade comum a muitas mulheres. No seu depoimento a sua expressão, seus
gestos, mostrava marcas de um cotidiano difícil, sofrido, mas também visto como um esforço
recompensado quando afirma “ser vitoriosa”, apesar de toda difícil experiência vivenciada.
Sobre este tema há um artigo de Edinélia Mª Oliveira Souza que considera relevante á
explicação detalhadas dos gestos e das expressões, na qual é possível entende o cotidiano que
compõe a memória:
Fala e corpos são elementos indissociáveis das narrativas de memória dos
trabalhadores (...) Por vezes, a valorização das experiências vividas é
reforçada por gestos e sinais da corporalidade que se integram ao discurso
emitido surgindo dimensões de linguagem que compõem uma cultura, uma
maneira de viver e de ser. 380
Ao historiador os gestos, os silêncios, o brilho no olhar, as pausas, dizem muito,
expressam idéias que muitas vezes não foram explicitadas nas falas, devendo estar atento a
estes detalhes.
379
PRIORE, Mary Del (org). História das mulheres no Brasil. São Paulo, Contexto, 2001. P. 07
Projeto História, São Paulo (18), maio 1995. Cruzando Memórias e espaços de culturas. Dom Macedo
Costa-Bahia (1930-1960). Por: Edinélia Mª Souza. P. 372-373
380
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As representações destas vivências apontam para um passado entrelaçado de
significados, que traz o corpo como lugar da experiência. Denuncia um cotidiano tenso e
contraditório, que se manifesta de várias maneiras, quando em alguns momentos as
trabalhadoras aceitavam as regras impostas, num processo de “conformismo” que pode
significar uma tática de permanência no trabalho e até de sobrevivência, já que o desemprego
era uma situação pior. “Em outros momentos conseguiram criar brechas de resistências,
provocando embates diretos:” Quando eu tinha minha razão ninguém tirava, eu sou da paz
mais não venha me fazer de besta não!”381 Com forte entonação pronuncia Dona Mundinha.
Havia o poder moderador, das relações, daquelas que lutavam mesmo que
silenciosamente, as mulheres não são desprovidas de poder, pois ele também existe até na
capacidade de resistir, de se libertar mesmo que lentamente, com os “caprichos” da vida. A
fragilidade ganha força e coragem, as queixas e dificuldades são superadas com a autovalorização, com o sentimento de ter vencido mesmo diante das adversidades. “Reivindicar a
importância das mulheres na história significa necessariamente ir contra as definições de
histórias e seus agentes já estabelecidos como “verdadeiros”, ou pelo menos, como reflexões
acuradas sobre o que aconteceu ou teve importância no passado”. 382
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Clemilda do Amor Divino
Eunice Coelho Epifânio
Francisca do Carmo de Jesus
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Laura Pereira de Jesus
Luzia Lima Caldas
Maria Nilza de Jesus
Maria Margarida Nunes Santos
Nair Bispo dos Santos
Raimunda Ribeiro Cunha
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A MULHER OPERÁRIA EM SERGIPE (1910-1932): TRABALHO E CONDIÇÕES
DE VIDA
Sharlene Souza Prata - UFS
[email protected]
Esse trabalho tem por intuito analisar o processo de inserção das mulheres nas primeiras
fábricas têxteis em Sergipe entre 1910-1932 demonstrando que o pensamento de que a
libertação feminina viria após a sua admissão no mercado de trabalho mostra-se insuficiente
para entendermos as raízes da opressão da mulher. Não obstante ao fato de que as mulheres
adentraram no âmbito do trabalho produtivo (esfera pública), elas ainda tinham sob sua
responsabilidade todas as tarefas do trabalho reprodutivo (esfera privada). Ou seja, o papel
desigual que a mulher assumiu no espaço público tem origem na esfera privada, haja vista as
condições desiguais de trabalho e a situação de vida que estavam inseridas a qual
explanaremos.
Palavras - chaves: Mulher, trabalho.
1. INTRODUÇÂO
O presente artigo pretende abordar como se deu o processo de ocupação feminina
nas duas primeiras formações sociais capitalistas de Aracaju, tentando apreender as relações
de produção e a conseqüente condição de vida das mulheres.
Para tanto, faz-se necessário identificarmos aqui que o subjugamento da mulher é
fruto de um processo histórico gerado através da divisão sexual do trabalho o que nos faz
perceber porque mesmo com a inserção da mulher no mundo do trabalho, continuou sendo
relegada a ela uma posição inferior.
Tentaremos não incorrer no erro destacado por Hobsbawn que a muito vem sendo
cometido pelos pesquisadores da História do operariado de “dentro do movimento” ou
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mesmo “de fora” dele (nas universidades) que é a tendência de confundir “classe operária”
com “movimento operário” ou até mesmo com organizações, ideologias e partidos
específicos383.
Partindo dessa premissa pretendemos resgatar aqui o ofício e a difícil vida das
primeiras operárias em Sergipe, sendo estas sindicalizadas ou não, nas fábricas: Sergipe
Industrial, fundada no ano de 1882, a Fábrica Confiança criada no ano de 1891 (ambas de
Aracaju).
A escolha dessas fábricas e o recorte temporal feito tem haver com os altos
índices de produtividade alcançados no período entre 1910-1930 e noticiado nos jornais da
época, conquistados certamente por causa do número de operários e da super-exploração dos
que nelas trabalhavam.
No que diz respeito à metodologia e a utilização das fontes confrontaremos neste
algumas fontes primárias e orais, tais como: relatórios de presidentes da Província do
referido período, jornais operários (levantamento da Imprensa operária feito pela Profª.
Maria das Graças); entrevistas com duas operárias da fábrica Sergipe Industrial cujos nomes
eram Maria Antônia de Oliveira e Alice Sousa Barros, realizadas no ano de 1990 pelo
Professor Dr. Antônio Lindvado Souza. Além dessas entrevistas, iremos nos valer dos relatos
feitos por Maria Ligia Pina sobre algumas operárias em seu livro: “A mulher na História”.
Ainda reconhecemos neste a importância da literatura como forma de nos trazer algumas
discussões acerca dos fatos da época, por isso usaremos o romance realista de Amando
Fontes, “Os Corumbas”.
Objetivamos por meio deste, contribuirmos para os estudos sobre História Social
do trabalho e aumentarmos a discussão acerca da divisão social e sexual do trabalho
revelando as diferenças existentes dentro da própria classe operária, ao mesmo tempo em que
buscamos fazer através desse estudo uma denuncia as condições de exploração que sofriam
as primeiras operárias, mostrando que o resultado de séculos de opressão, ainda se fazem
presentes nas relações de trabalho atuais. Sendo assim, entendemos a classe operária:
Não como... uma estrutura, nem mesmo como uma categoria, mas como
algo que ocorre efetivamente (e cuja ocorrência pode ser demonstradas nas
relações humanas)...a classe acontece quando alguns homens, como
resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e
articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra os outros homens
383
HOBSBAWN, Eric. Mundos do trabalho. Rio de janeiro: Paz e terra, 2000
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cujos interesses diferem ( e geralmente se opõem) dos seus. A experiência
de classe é determinada, em grande medida, pelas relações de produção em
que os homens nasceram - ou entraram involuntariamente.” (THOMPSON
1978: p.9,10).
A abordagem que será travada tentará fugir do paradoxo que só revela a história
da mulher implícita a do homem não precisando mencioná-la, ou, ao contrário, de forma
fragmentada não percebendo que a História desta, faz parte de um todo.
2. SOBRE A HISTORICIDADE DAS RELAÇÕES SOCIAIS E DE PRODUÇÃO: A
ORIGEM DA OPRESSÃO FEMININA
Para compreendermos a situação precária a qual as primeiras operárias estavam
inseridas é importante trazer à baila a constatação de Engels no que diz respeito ao fato de
que a família é um fenômeno social que possuí uma História. A Família monogâmica patriarcal era apenas uma delas.
384
Tal argumento torna-se relevante à medida que
demonstra a transitoriedade das relações sociais, ou seja, a História de submissão feminina é
uma condição que pode ser superada.
Com base na concepção materialista da História que demonstra a origem da
sociedade patriarcal e das desigualdades entre os sexos, faremos uso de duas categorias: a do
Trabalho produtivo e a do trabalho reprodutivo:
“De acordo com a concepção materialista, o fator decisivo na História é, em
última instância, a produção e a reprodução da vida imediata... a produção
dos meios de existência, de produtos alimentícios, roupa, habitação e
instrumentos necessários para tudo isso; de outro lado, a produção do
homem mesmo, a continuação da espécie.” (Engels, 1977:2).
Deste modo, para comprovação de tal argumento, o autor supracitado divulga a
tendência que nas sociedades primitivas não se podia contar com outra linhagem senão a
feminina. Essa situação primitiva das mães como os únicos genitores certos de seus filhos,
lhes assegurou (...) a posição social mais elevada que tiveram. Um exemplo disso era que a
384
Friedrich.A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Trad. José Silveira Paes; Apresentação Antonio
Roberto Bertelli.-São Paulo: Global, 1984.
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mulher poderia relacionar-se com quem quisesse e da mesma forma os homens porque não
havia necessidade de comprovar a paternidade, as crianças eram criadas pelos clãs e estes
tratavam todas as mulheres do clã de “mães” (gens materna). Se morresse um proprietário de
rebanhos estes teriam de passar primeiramente para seus irmãos e irmãs e aos filhos destes
últimos, ou aos descendentes das irmãs de sua mãe. Quanto aos seus próprios filhos, eram
deserdados. 385
Com o surgimento da propriedade privada e a divisão do trabalho entre os sexos o
homem acabou acumulando mais riquezas que a mulher, fazendo com que ele adquirisse
assim uma posição mais importante na família e consequentemente nascendo nele a idéia de
utilização dessa situação a fim de que revertesse em benefício dos filhos a ordem de sucessão
tradicional. Para tanto era necessário romper a linhagem materna e estabelecer agora uma
linhagem
paterna
e
foi
assim
que
foi
estabelecido
o
Patriarcado.
Destarte, com a reversão do direito materno o homem passou a governar também
na casa, fazendo com que a mulher se tornasse sua escrava, um simples instrumento de
reprodução. Tal divisão sexual do trabalho se manteve a longo do processo histórico e foi a
apropriado pelo modo de produção capitalista para hierarquização do modo de produção e
reprodução do capital e o arraigamento da exploração da mais-valia feminina.
É por isso que durante muito tempo, com base em tal visão, vários pensadores e
movimentos feministas consideravam que o processo de emancipação feminina passaria
necessariamente pela sua inserção no mundo do trabalho produtivo.
No entanto, ao contrário do que se pensava de forma limitada, quando Engels
afirmava que na família o homem é o burguês e a mulher o proletário, ele fazia mais que uma
simples analogia. Ele apontava para o fato de que a exploração da mulher não se esgotaria
com a sua inserção nas relações de produção, mas que tem um condicionamento básico no
seu papel dentro da família. 386
3. AS CONDIÇÕES DE TRABALHO E DE VIDA DA OPERÁRIA
Com o advento da Revolução Industrial houve a inclusão da mulher no mundo do
trabalho, mas isso não ocorreu de modo a livrá-la do trabalho reprodutivo. A despeito da
crença que se tinha a mulher ainda se encontrava majoritariamente na esfera privada, pois
385
IDEM, ibdem
ALVES, Branca Moreira. Ideologia IN: Ideologia e feminismo: a luta da mulher pelo voto no Brasil. Ed.Vozes, RJ,
1980, p. 25-63.
386
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não havia condições de conciliação das duas esferas. Comumente as mulheres ficavam
trabalhando na fábrica até se casarem, depois retornavam aos seus lares, a não ser que seus
maridos não tivessem condições de provê seu sustento.
Podemos perceber também que as tarefas domésticas continuaram sendo
incumbências da mulher e foi dessa forma que se estabeleceu a família operária patriarcal:
marido provedor e esposa provedora complementar e dona-de-casa ratificando a injusta
divisão sexual, pois as mulheres acabavam sofrendo uma dupla jornada de trabalho.
Nos dias de “folga” a mulher acabava trabalhando ainda mais em seus lares, não
lhe restando tempo algum, seja para o lazer ou para organização política. Vejamos o relato de
D. Antonia (ex-operária da Sergipe Industrial):
“ (Quando voltava para casa) Trabalhava no meu trabalho doméstico dentro
de casa, trabalhava com minha mãe, minhas irmãs, Nosso Senhor levou
minha mãe e minhas irmãs. Quando estava casada não trabalhei, (só) depois
de viúva trabalhei. Quando me casei já trabalhava na fábrica. Depois que
me casei, saí de fábrica.”
Desde o início da industrialização brasileira, a mulher e a criança já se faziam
presentes em um bom número, não obstante, a sua inserção de forma mais numerosa também
confirmasse a divisão sexual do trabalho, conforme nos mostra HARDMAN e LEONARDI
(1991: p.40) “O trabalho feminino tinha um peso significativo na composição da força de
trabalho da época, embora se concentrasse em sua quase totalidade nos setores têxtil, de
vestuário e tocador”.
Tudo isso demonstra que o processo de feminização do operariado se deu em
tarefas tidas como “função da mulher”, aquelas que representavam à extensão das atividades
domésticas e em função disso, já que atividade doméstica não era considerada trabalho, no
espaço público elas vão ser consideradas inferior, recebendo, portanto, as piores
remunerações. As operárias, inclusive, eram maiorias nesses setores. Em Sergipe a estatística
era ainda um pouco maior que a média nacional
“O pessoal constante nos diversos trabalhos, compõe-se de 220 mulheres de 16 a
40 anos, 110 meninas entre 8 e 15 anos de idade, 75 homens de 16 a 60 e 25 meninos entre 8
e 15 anos de idade”. 387
387
Mensagem a Assembléia Legislativa do presidente do Estado Mons. Olímpio Campos em 07 de setembro de 1900.
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“Quanto ao número de operários: mulheres adultas 657, mulheres menores 31,
homens adultos 156 e homens menores 16”.388
Havia uma prioridade no emprego de mão-de-obra de mulheres e crianças por
causa de seus salários rebaixados. Em razão disso, os setores têxteis eram os que
apresentavam as piores remunerações. Em Sergipe o número de mulheres nas fábricas
têxteis eram superiores a média nacional explicando dessa forma porque o estipêndio dos
operários sergipanos era inferior ao resto do país (Sergipe possuía 54% de mulheres nas
fábricas, sendo que a média nacional era de 30%). 389
O Capitalismo usava, então, essa divisão sexual do trabalho para rebaixar valor
do trabalho masculino em decorrência do ingresso da força de trabalho feminina, incorporada
à classe trabalhadora e percebendo salários ainda mais reduzidos. A própria necessidade de
exploração do capital acabou gerando outras contradições. Logo, negamos aqui a dicotomia
entre classe e gênero, afirmando a necessidade de relacioná-los.
No tocante a questão que envolve a estrutura da fábrica, cabe ressaltar que os
operários e operárias estavam expostos a condições deploráveis, já que as fábricas
normalmente eram ambientes muito quentes quase sem ventilação, os deixando vulneráveis a
problemas de saúde, tendo em vista que eles trabalhavam até 12 h por dia suados e com a
poeira que saía do algodão grudando em seus corpos.
Associado a tudo isso, estava à questão da ausência de bebedouros e banheiros
dentro das fábricas, e se os tinham, eram controlados por mestres e contra-mestres. O
trabalhador ou trabalhadora que precisasse utilizar esses locais teria que informar tudo que
iria fazer para que obtivesse o consentimento. Sendo assim seriam dados alguns poucos
minutos sobre a ameaça de ser trazido de volta à força. Tal regra desrespeitava até as
condições físicas da mulher, pois era indiferente ao fato de existirem mulheres grávidas. . O
jornal a “Voz do operário” de junho de 1921 denuncia um fato ocorrido na Sergipe Industrial
onde uma operária foi demitida pelo simples fato de fazer uma necessidade fisiológica em
“local não apropriado” visto que o “próprio” estava ocupado.
O desrespeito às condições físicas da mulher também iam além, pois elas eram
submetidas ao ritmo desenfreado das máquinas manuseando várias ao mesmo tempo e
388
Mensagem apresentada em 07 de setembro de 1919 ao instalar-se a 3ª sessão ordinária pelo Cel. Dr. José Joaquim
Pereira Lobo, presidente do Estado.
389
SUBRINHO, Josué Modesto dos Passos. A indústria têxtil em Sergipe: Gênese, crescimento e limites de uma
indústria periférica IN: Economia regional e outros ensaios, org. Nilton Pedro. São Cristóvão: UFS, 2001.
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somente em casos raros o patrão dispensava uma operária de tal obrigação, até porque em
muitas fábricas ganhava-se por produção o que acabava estimulando a competição, sem falar
que isso se fazia necessário para garantir a sua sobrevivência.
Esse rígido controle imposto pelos capitalistas era uma tentativa de disciplinar os
operários, por isso a exigência no cumprimento de uma série de horários, para almoçar, para
chegar à fábrica etc. e quem chegasse um pouco atrasado não poderia entrar na fábrica.
“Quem não desse produção não ganhava nada”.390
(Sobre possíveis atrasos)
“Não tinha esse negócio de explicar o motivo de demorar, porque morava
longe e não pode vim logo, perdia o horário e voltava para casa”. 391
O ritmo frenético e o peso das máquinas contribuíam para que ocorressem
acidentes que normalmente resultava em óbito ou causava danos físicos gravíssimos. Quando
não ocorria de ocorrer uma lesão física momentânea, com o passar dos anos, o trabalho
repetitivo da fábrica acabava afetando a saúde das operárias. Essa conjuntura não implicava
necessariamente que a fábrica providenciasse algum tipo de assistência ou indenização.
Irinéia e seu acidente. Vítima de um acidente de trabalho na fábrica têxtil
Confiança, essa pobre camarada que é menor e orphã, ainda não recebeu a
sua indenização legal. O acidente verificou-se aos 07 de novembro de
1931. 392
Se quebrasse um fio com ela trabalhando a lançadeira voava, quem tivesse
na frente era olho, era cabeça, era perna. Era como uma canoinha, sabe, era
mais pesada com uma madeira especial, e a lançadeira de ferro bem
afiadinha de forma que qualquer coisinha que ela encontrasse na frente...
era preciso que estivesse bem atenta, quando soltasse o fio parasse a
alavanca, porque se não parasse ela ia soltar. Era muito perigoso, até para a
gente mesmo quando ele soltasse podia voltar e bater num braço, no ombro,
na barriga e feria... ela vinha com todo açoito. 393
A senhora não pode trabalhar porque esse trabalho da fábrica não dá mais
para a senhora. 394
Não obstante a todos esses fatores que prejudicavam a integridade física dos
operários estavam às condições de moradia bastante desumanas a que eram submetidos,
390
Entrevista realizada com a ex-operária Alice Souza Barros (1990).
IDEM
392
Voz do Operário. Aracaju, n, 28 de fevereiro de 1932, BPED,Sergipe, extraído de ROMÃO, Frederico.
393
Depoimento de Dona joaninha, ex-operária da Sergipe Industrial, extraído de ROMÃO, Frederico. Na trama da
História: o movimento operário em Sergipe, 2000.
394
Entrevista realizada com a ex-operária Maria Antonia Oliveira (1990), sobre a doença que a proibiu de trabalhar.
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somente a minoria tinha condições de se estabelecer nos bairros próximos das fábricas, a
maioria do operariado precisava ir para locais distantes mais condizentes com a sua realidade
financeira. Como as residências não se situavam perto das fábricas, para se chegar a ela no
horário estabelecido era necessário acordar ainda pela madrugada e andar quilômetros,
apontando para a ocorrência de que não sobrava tempo algum para as operárias, pois
retornavam a noite para fazer algumas atividades domésticas e descansar (muito pouco) para
o outro dia de trabalho.
Numa entrevista realizada com uma operária de nome Maria Antonia de Oliveira
que trabalhou em média trinta anos na Fábrica Sergipe Industrial, podemos constatar a
precariedade das condições de moradia:
Morava em casa de palha. Essa casa daqui caiu. Era de vara. Naquele tempo
tinha aqueles invernos fortes, a chuva vinha e derrubava tudo. (Dentro da
casa) Cada qual tinha seus banquinhos para se sentar. Quando o inverno era
muito forte entrava água até os quintais. Eu, por exemplo, e todas as
operárias para dormir tinham que colocar os chinelos em cima... senão a
água tomava conta. 395
A alimentação dessas operárias era bastante deficiente quanto aos nutrientes
necessários ao bem-estar físico, sendo que a maioria delas se alimentava de farinha e carne
seca. Em detrimento de todos esses fatores, as operárias costumavam ter uma saúde bastante
debilitada, resultando não raras vezes em morte, ou desmaios no trabalho. Quando não
ocorriam de morrerem de fome elas se tornavam alvos fáceis de epidemias, como foi o
episódio em que a gripe espanhola assolou as fábricas, resultando em várias mortes, visto
como a Fábrica Confiança apresentou 382 casos da doença e a Sergipe Industrial, 763.
que, no dia corrente, na fábrica Confiança, tinha sofrido um syncope
de fome a operária de nome Saphira... e de facto elle apurou ser
verdade a informação, pois a operária Saphira há dias vinha
sustentando-se em pirão de café, por que o que ganha atualmente os
que ali mourejam não dá para comprar mantimentos.396
395
396
Entrevista realizada com a ex-operária Maria Antonia Oliveira (1990)
Voz do operário. Aracaju, maio de 1921.PDPH,UFS,SE, levantamento da Imprensa operária.
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Entretanto a expressão mais peculiar da opressão contra as operárias nas fábricas
consistia no assédio por parte de mestres e contramestres. Tal fato era extremamente comum
em todas as fábricas: quando as operárias não cediam às cantadas dos patrões eram
deverasmente punida, provavelmente demitidas. A ficção de Amando Fontes demonstra esse
abuso de forma bastante elucidativa:
Foi Misael, o contramestre da minha seção... safado! Uma vez me deu uma
palmada nas cadeiras. Mas eu desgracei logo com ele. Gritei-lhe: atrevido,
moleque!... Hoje só porque eu cheguei um pouquinho mais tarde - ainda
não tinha fechado o ponto – o infame disse que eu não entrava mais nesse
quarto. E veio logo com enxerimentos: Se eu quisesse esperar por ele de
noite,... Nem deixei que ele acabasse... xinguei tudo e vim m’embora... com
toda certeza o miserável vai dar parte de mim... Não houve explicações...
que tivessem força para manter o seu emprego (dela) na Sergipana
(fábrica). (FONTES 1933:25, 28-29)
Mas não foi só na literatura que essas práticas sórdidas se fizeram presentes.
Ocorrera aqui o caso da operária Pureza Farias, que trabalhava na fábrica Sergipe Industrial e
era associada ao Centro Operário Sergipano. Ela foi reclamar ao centro operário contra as
investidas e o tratamento agressivo do contramestre Odilon Torres, que também era
associado ao COS. Por isso os associados como forma de fazer justiça e apresentando-se
como “defensores da moral das mulheres trabalhadoras” acabaram se unindo para agredir
Odilon. A ação acabou tendo uma repercussão horrível para o Centro Operário Sergipano,
fazendo com que o presidente do Estado interviesse e boicotasse o centro.
Como demonstração mais nítida desse triste episódio, expressaremos uma outra
denúncia feita pelo jornal operário: O contramestre da fábrica Confiança tentou seduzir,
ameaçar e agredir a tecelã daquela fábrica, Maria Silva. A operária fora reclamar ao gerente
Sr. João Silveira e este não tomou providência alguma.
Vale ressaltar que toda essa trajetória de exploração que envolve a classe operária
e em especial a mulher em sua formação perdurou por muitos anos. Apesar da anunciação de
vários avanços no sentido de conquistas de direitos, como por exemplo: a licença
maternidade, construção de creches, salas de amamentação próximas à fábrica dentre outros
decretos acordados entre os industriais e o presidente estadual, esses avanços não foram
colocadas em voga devido à intransigência de alguns patrões.
5. CONCLUSÕES
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Conforme a pesquisa apresentada, identificamos que a inclusão da mulher no
mundo do trabalho não representou a sua emancipação, ou a libertação de uma cultura de
submissão secular, uma vez que se acentuaram as condições de exploração e de
desigualdades no trabalho, com efeito, dos baixos salários, o assédio sexual que sofriam dos
patrões, a dupla jornada de trabalho, a desvalorização do seu trabalho, o desrespeito dos
industriais diante das suas condições físicas, a cadência apressada das máquinas dentre
outras.
A divisão do trabalho entre as esferas produtivas e reprodutivas destinando a
mulher ao trabalho reprodutivo, acabou contribuindo para a precarização e a superexploração do seu trabalho no sistema capitalista, porquanto a mulher mesmo adentrando na
esfera pública, continuou responsável pelo trabalho doméstico. Vale ressaltar que o trabalho
desenvolvido na esfera reprodutiva, é também uma forma evidente de trabalho.
Surge então um paradoxo: se por um lado, o ingresso do trabalho feminino no
espaço produtivo foi uma conquista da mulher, por outro lado, permitiu que o capitalismo
ampliasse a exploração do trabalho feminino.
Mesmo com toda opressão sofrida, não podemos deixar de reconhecer que a
inclusão da mulher no mercado de trabalho é essencial para suavizar a dominação patriarcal
na esfera privada. Não obstante, é insuficiente para emancipá-la. Esta só vai se dá, quando
houver uma mudança da estrutura hierárquica familiar e uma distribuição mais justa do
trabalho doméstico, livrando a mulher da dupla jornada de trabalho.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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7. FONTES
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07 de setembro de 1900.
-Mensagem apresentada em 07 de setembro de 1919 ao instalar-se a 3ª sessão ordinária pelo
Cel. Dr. José Joaquim Pereira Lobo, presidente do Estado.
-Mensagem apresentada em 07 de setembro de 1921 ao instalar-se a 2ª sessão ordinária da
14ª legislatura, pelo Cel. Dr. José Joaquim Pereira Lobo, presidente do Estado, Imprensa
oficial,1921.
Jornais: Levantamento da Imprensa operária (PDPH)
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-Voz do operário (1920-1930)
-O Operário (1915-1916)
Orais (entrevistas):
-Alice Souza Barros (1990)
-Maria Antonia de Oliveira (1990)
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VIVER EM RIO FUNDO: COTIDIANO, REPRESENTAÇÕES E
MEMÓRIAS DE UMA VILA NO RECÔNCAVO BAIANO (1930-1960)
Simone Cristina Figueiredo de Jesus – UNEB
[email protected]
Rio Fundo, uma vila emancipada em 1962 como o nome de Muniz Ferreira, possuía um
comércio ativo e uma feira livre movimentada em sua praça principal, além de uma estação da
Estrada de Ferro de Nazaré, a Train-Road. Contudo, em um intervalo de treze anos, a vila foi
arrasada por três enchentes do rio Jaguaripe que corta a cidade. Essas enchentes foram a “gota
d’água” que faltava ao processo de estagnação e posterior decadência do comércio e da feira
livre da vila. As casas comerciais foram derrubadas pelo Jaguaripe e os moradores já não
tinham mais condições de reconstruí-las, pois também a Train-Road, principal responsável
pela exportação dos produtos da vila, entrara em decadência. Esta pesquisa, em andamento,
pretende analisar a vida cotidiana em Rio Fundo, seu processo de decadência e como as
transformações ocorridas afetaram o modo de viver dos munizferreirenses e contribuíram para
a construção de uma memória de exaltação da referida vila e ao mesmo tempo de desprezo
pela cidade atual, a qual consideram “atrasada”. É intenção compreender por que as
dificuldades e precariedades da vida em Rio Fundo são “esquecidas” pelos munizferreirenses
que viveram tal período e somente a “fartura” do comércio e da feira livre é lembrada,
construindo representações de uma Rio Fundo digna de orgulho e saudade.
Palavras-chave: Cotidiano, Representações, Memórias.
O povoado de Rio Fundo397 já era conhecido no século XVIII, pois foi citado
como trecho de estradas administrativas da Freguesia de Jaguaripe em documento datado de
1796 até 1799.398 Então, pode-se afirmar que Rio Fundo surgiu em torno de uma estrada
397
Rio Fundo foi o nome do povoado até este ser elevado à categoria de vila em 30 de novembro de 1938 já com
a denominação de Muniz Ferreira, em homenagem ao filho da terra Dr. Manoel Muniz Ferreira, médico e
provedor nos anos 1919/1920 da Santa Casa de Misericórdia de Nazaré. No entanto, até hoje, alguns moradores
se referem à cidade como Rio Fundo. Por isso, este trabalho adotará esta denominação para a vila, em
consonância com a memória de seus habitantes e só se referirá a Muniz Ferreira após a emancipação política da
cidade.
398
Maço Freguesia de Jaguaripe. Arquivo Público da Bahia.
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vicinal, a qual passava por dentro da fazenda de Antonio Francisco Tinta, o Barão de
Taitinga. Embora não fosse a única fazenda existente naquela região, a Fazenda Paracoara
destacava-se dentre as demais por, além de ser propriedade de um Barão do Império, era
grande produtora de cana-de-açúcar, mandioca, café e fumo na região. Além disso, o trecho
da estrada administrativa passava por dentro de suas terras e, quando da chegada da tão
esperada ferrovia nazarena, a Train-Road, recebeu seus trilhos a poucos metros de sua sede, e
ainda foi presenteada com uma estação. O trem trazia consigo um adjetivo de progresso para
aquela época e, por isso, o povoado de Rio Fundo foi crescendo também embarcado no
transporte do desenvolvimento.
O pequeno povoado possuía, já na década de 1930, muitos comerciantes que
estabeleceram suas casas comerciais seguindo o curso do rio Jaguaripe que corta a localidade,
na qual, nesta época, já existia uma praça principal, local de compra e venda de mercadorias
na tão relembrada feira livre.
Rio Fundo pertencia à cidade de Nazaré, à qual estava atrelada econômica e
politicamente. Os diversos comerciantes eram cadastrados no governo municipal de Nazaré.
A ele pagavam os impostos, mas dele não recebia os serviços dos quais necessitavam. Embora
este comércio abastecesse os povoados e fazendas circunvizinhas, além de exportar produtos
para outras localidades do estado da Bahia pela estação ferroviária existente na vila, os
recursos municipais não eram aplicados ali para garantir melhorias. Por causa disso, vários
comerciantes começaram a protestar contra a cobrança de impostos pela prefeitura de Nazaré.
O Sr. Pedro Antonio, proprietário de um prédio à Rua Siqueira Campos em Rio
Fundo, a 29 de abril de 1939, vem solicitar ao então prefeito de Nazaré, “a exclusão do
mesmo do imposto predial urbano visto como a referida rua não tem calçamento nem
iluminação e assim preceitua estar isento de referido imposto”399 . Este foi apenas um dos
inúmeros proprietários que solicitaram ao prefeito de Nazaré a exclusão de seus nomes do
imposto predial urbano, todos pelos mesmos motivos, em ruas diferentes. Contudo, todos
estes pedidos foram negados e nenhuma melhoria foi feita na vila em decorrência disto.
Quanto à feira livre localizada na praça central, hoje Praça Barão de Taitinga, os
feirantes para ela acorriam não só da própria localidade, mas das fazendas circunvizinhas e
dos povoados próximos para venderem seus produtos e também comprarem aqueles dos quais
necessitavam. Embora houvesse um projeto para a construção de um mercado municipal por
parte do governo de Nazaré (projeto que ficou apenas no papel), não havia estabelecimento
399
Livro de Expediente Geral, Governo do Município, 1938-1940, p. 81. Arquivo Público de Nazaré.
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público destinado ao trabalho dos feirantes. No entanto, tudo seguia a uma lógica própria
destes trabalhadores que, em sua prática diária, demarcavam os locais para a venda de acordo
com o tipo de produto: verduras, frutas e hortaliças, por exemplo, eram expostas em esteiras
em frente à Igreja Católica.
Os vendedores que vinham de outras localidades não tinham como trazer barracas,
posto que as mesmas precisavam ser removidas da praça após a feira. Esta ocorria aos
sábados até o entardecer, pois os feirantes e fregueses precisavam voltar para as suas casas,
muitas em regiões afastadas, e era necessária a luz do sol para clarear o caminho, já que não
havia eletricidade, nem automóveis com seus faróis. As pessoas se deslocavam a pé ou,
quando muito, montados nos lombos dos seus animais.
Os feirantes que moravam em Rio Fundo poderiam se considerar “privilegiados”,
pois tinham suas barracas para protegê-los e a seus produtos do sol e da chuva. Em seu
cotidiano, acordavam cedo para armar suas barracas, cada um já tinha o seu local estabelecido
que conquistara no seu viver diário de trabalho na feira livre. Suas barracas, cobertas de lonas,
eram, após as horas de labor, retiradas da praça e transportadas para as residências onde
ficavam guardadas até o próximo sábado de feira.
Além desses feirantes, existiam os ambulantes que vendiam suas mercadorias
andando pelas ruas e, principalmente, na estação ferroviária para os passageiros que ali
chegavam ou paravam, que estavam apenas de passagem. A Train-Road, cujo trem
movimentava ainda mais o comércio e a feira, visto que ele trazia mercadorias para Rio
Fundo e levava para outras localidades os produtos dali, trazia pessoas que se tornavam
fregueses desses vendedores ambulantes que trabalhavam nas imediações da estação,
principalmente, à hora da parada do trem, para venderem seus produtos, tais como camarões
torrados e água.
Homens, mulheres e crianças, passageiros do tão famoso trem, estendiam suas
mãos para esses vendedores ambulantes, comprando seus produtos, contribuindo para a
manutenção de um comércio típico de locais movimentados. Essa atividade perdurou até o
fechamento da estação ferroviária com a desativação da Estrada de Ferro de Nazaré. É certo
que, quando a Train-Road entrou em decadência, essa atividade também começou a declinar.
A década de 1930 e até final de 1940 passaram para Rio Fundo como anos de
fartura e abundância. Novas casas comerciais surgiam, as exportações via Train-Road e via
porto de Nazaré continuavam. Mas, a partir de 1945, “aparecem nitidamente os sintomas que
marcavam a sua (Train-Road) decadência.” (CARLETTO, 1979, p.79). Segundo Carletto,
um dos fatores responsáveis pela crise ferroviária que se manifestava claramente no Brasil
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após 1945, era a concorrência do transporte rodoviário que começou a absorver grande parte
dos transportes, diminuindo as toneladas transportadas pelas Estradas de Ferro, reduzindo, por
conseguinte a sua renda bruta (p.204). Toda esta crise no setor ferroviário em âmbito nacional
chegou à tão pequena e próspera vila de Rio Fundo. O seu principal meio exportador, a
locomotiva, começa a entrar em decadência em virtude da preferência crescente pelo
transporte rodoviário que, ao poucos, passou a realizar o trabalho característico das vias
férreas: “o carregamento de grandes massas a grandes distâncias.” (CARLETTO, 1979,
p.206).
Além de tudo isso, como já foi dito anteriormente, Rio Fundo estava atrelada
econômica e politicamente à Nazaré. Portanto, juntando-se aos fatores nacionais, existiam os
fatores locais que desencadeavam a decadência da sede e, por conseguinte, da vila. Entre estes
fatores locais, o mais importante foi a redução da produção agrícola da região. A diminuição
das safras, ao lado da concorrência rodoviária. (CARLETTO, 1979, p. 207)
Desta forma, a partir do final da década de 1940, Rio Fundo começa a declinar
economicamente. As exportações diminuem e cessam a abertura de novos estabelecimentos
comerciais. No entanto, os comerciantes e feirantes continuam sua vida cotidiana, enfrentando
as transformações históricas que estavam ocorrendo em sua vila. Contudo, a crise teria um
agravante, a enchente do rio Jaguaripe no ano de 1947. Esta foi a primeira das três grandes
enchentes que transformaram Rio Fundo, desde a sua economia até a vida cotidiana dos
habitantes, permanecendo na memória de quem as vivenciou.
Carletto aponta a enchente de 1947 também como um fator de agravamento da
crise da Train-Road. Esta cheia atingiu “ toda a zona servida pela ferrovia, abrindo aterros,
(...) deslocando a linha, (...) desorganizando tudo, enquanto, de parceria, chuvas copiosas
desabaram, destruindo culturas impedindo o rápido escoamento das águas.” (p. 214). Além
de todo este estrago feito à ferrovia, principal elo do comércio de Rio Fundo às zonas
receptoras de seus produtos, as águas do Jaguaripe inundaram a vila deixando muitos estragos
para os comerciantes e moradores.
Cinco anos se passaram em meio às mudanças que estavam ocorrendo, mas a vila
continuava com a sua “rotina”: sua feira livre na praça e seu comércio. Até que, em novembro
de 1952, uma nova e mais impetuosa cheia do rio Jaguaripe inundou repentinamente a vila,
levando em suas águas grande parte das casas comerciais, as quais se estabeleciam à margem
do rio. Levou também muitas residências, deixando para trás um rastro de destruição e dor.
Esta cheia de 1952 é a mais lembrada pelos moradores da então cidade de Muniz
Ferreira. Ela faz parte do imaginário de quem a vivenciou e, para estes, foi o grande fator que
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contribuiu para a decadência do comércio e feira da vila. O Sr Valdomiro escreve sobre ela
em seu livro de memórias:
Em 1952, é que tivemos a maior cheia dos dois rios. (...)Dentro da vila de
Muniz Ferreira, as ruas mais baixas estavam sendo invadidas (...). Ao meio
dia já havia derrubado todas as casas da Rua Nova Nazaré, as da
comunidade do Pedrão e chegado à cumeeira das casas de palha da Rua da
Linha e do Sapo, e chegado a lateral da estação ferroviária. (...) Na Rua
Nova Nazaré, a altura da água chegou a seis metros aproximadamente do seu
nível normal. O maior estrago foi o do empresário Olavo de Souza Barreto,
por haver perdido a sua bela casa residencial localizada no início da Rua
Nova Nazaré, a destilaria, depósito, três casas geminadas anexo, toda a
matéria-prima e produto estocados, localizados junto a ponte do riacho Rio
Fundo. 400
Esta enchente também atingiu a sede, Nazaré, danificando as Oficinas da Estrada
de Ferro, destruindo pontes, casas residenciais e comerciais, causando enormes e graves
prejuízos. Nazaré não tinha mais recursos suficientes para reconstruir a cidade e tampouco
Rio Fundo, visto que a enchente de 1952 afetou ainda mais o seu comércio já em declínio. A
sede do município precisava também de verbas extras para ajudar as vítimas da enchente.
Parece que essa verba não chegou à Nazaré e sem verba extra para os nazarenos, a sede foi
diminuindo o orçamento para Rio Fundo. Os seus moradores não tinham mais condições
financeiras de reerguer a vila como outrora ela fora. Sem recursos extras, alguns comerciantes
levantaram novas casas comerciais, mais modestas. Mas nem todos conseguiram se reerguer.
Aos poucos, a vida cotidiana foi tomando seu curso “normal” e a feira novamente se
estabeleceu, contudo não foram todos os feirantes que voltaram para lá, pois a vila já não era
mais a mesma. Desta forma, muitos feirantes preferiram vender seus produtos na feira de
Santo Antonio de Jesus, na medida em que esta cidade está em pleno desenvolvimento e já se
anunciava como centro comercial da região.
Porém, em 1960, uma nova cheia do rio Jaguaripe tornaria ainda mais difícil a
situação de Rio Fundo. As águas atingiram o mesmo nível que as da enchente de 1952 e,
conseqüentemente, os prejuízos não foram pequenos. E como da outra vez, causaram estragos
em Nazaré e danos materiais à ferrovia. Essa enchente de 1960 foi, praticamente, a “gota
d’água” que faltava ao processo de decadência do comércio de Rio Fundo. Como em 1952, as
400
Manuscrito do livro de memórias do Sr. Valdomiro Figueiredo, morador da cidade de Muniz Ferreira.
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águas levaram as casas residenciais e comerciais que estavam instaladas na praça e ruas que
margeavam o Jaguaripe. Os comerciantes que viveram a enchente de 1952 novamente tiveram
seu patrimônio destruído pelo rio e agora estavam em situação pior, pois não tinham de onde
tirar recursos para se reerguerem. Sem a ajuda extra de Nazaré, também arrasada pelas cheias,
os comerciantes e feirantes amargaram a nova tragédia que se abateu sobre a vila e, aos
poucos, foram tentando reconstruir dos destroços as suas casas. Mas o comércio nunca mais
se ergueu como antes.
Mais do que as marcas materiais deixadas pelas águas do Jaguaripe na vila, esses
episódios deixaram marcas na memória de seus habitantes que começaram a construir a
imagem de que ali, onde eles moravam, nada mais “vai para frente”. Talvez a partir daí, uma
representação de Rio Fundo começou a ser elaborada pelos seus moradores, até porque,
passando por essas inúmeras dificuldades, a vila foi emancipada com o nome de Muniz
Ferreira a 30 de julho de 1962. Começou um novo tempo, de cidade, imbuída em problemas
econômicos e sociais. Assim, “cristalizou-se” na memória dos agora munizferreirenses a
representação de Rio Fundo enquanto vila próspera, lugar bom para viver, digno de orgulho e
saudade, pois se deparavam com uma recente cidade na qual faltava a “fartura” do comércio e
da feira livre. Os munizferreirenses tiveram que construir novos modos de vida em uma
cidade que “depende” economicamente da vizinha Santo Antonio de Jesus.
Não obstante, Rio Fundo, embora com um comércio ativo e feira livre (atualmente
inexistente), era um lugar de ruas sem calçamento, com iluminação deficiente, sem hospital
ou qualquer médico. Fora as ruas do centro, as ruas periféricas eram constituídas de casas de
taipa e a água para consumo, carregada em baldes, era de riachos e do rio, pois o sistema de
abastecimento de água só veio a ser implantado em 1973. Ou seja, a “fartura” não era para
todos.
Por que, então, as dificuldades e precariedades da vida em Rio Fundo são
“esquecidas” pelos munizferreirenses que viveram tal período e somente a “fartura” do
comércio e da feira livre é lembrada? Por que os munizferreirenses construíram
representações de Rio Fundo como lugar digno de orgulho e saudade?
Tendo em vista que a história não é fechada em si, mas passível de várias
interpretações, não há como reconstruir o passado como ele foi de fato. Assim, segundo
Darnton (1998), a história não está presa a um passado estático no tempo. É mediante o
contato com o passado, algo que só se consegue através das fontes, que o historiador altera o
sentido do que possa vir a ser conhecido. O historiador, portanto, não deve ser categórico em
suas conclusões, pois, de acordo com a reflexão de Darnton (1998, p.37), o que vemos hoje no
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material que nos chega às mãos enquanto fonte histórica de determinado fato, pode não ser a
mesma visão que os contemporâneos deste fato possuíam a seu respeito. Uma mesma fonte
pode ser utilizada por historiadores diferentes e estes darem-lhe interpretações diversas, ora
divergentes, porque cada um a olhará de uma maneira (GINZBURG, 1991, p.204).
Assim, como perceber as representações elaboradas pelos munizferreirenses a
respeito da vila de Rio Fundo? Como compreender porque somente as “coisas boas” dessa
vila são recordadas pela imensa maioria de seus moradores? No entanto, a recordação
somente de coisas boas não assegura que somente elas foram registradas na memória.
Segundo Jacques Le Goff, a memória é a propriedade de conservar informações e
remete-nos, num primeiro momento, a um conjunto de funções psíquicas que capacitam os
indivíduos atualizar impressões ou informações passadas ou que se julguem passadas. A
memória, para Le Goff, é mais ainda: é o objeto e a própria matéria-prima da história. A
memória é a matéria-prima e a história é a interpretação dessa matéria prima. (LE GOFF,
2003). Como elaboração a partir de variados estímulos, a memória é sempre vista em diversos
estudos enquanto uma construção feita no presente a partir de vivências/experiências
ocorridas no passado.
Para Maurice Halbwachs (2006) a memória aparentemente mais particular que se
conheça remete a um grupo. O indivíduo traz em si a lembrança, mas ele está sempre
interagindo com a sociedade, seus grupos e suas instituições. É no contexto destas relações
que os indivíduos constroem as lembranças, sendo que a rememoração individual se faz na
contextura das memórias dos diferentes grupos com os quais estes indivíduos se relacionam.
Assim, Halbwachs diz que existem dois conceitos de memória: a individual e a coletiva e,
fazendo uma análise dos aspectos que envolvem esses dois tipos de memória, afirma que são
indissociáveis e que o individual está estritamente ligado ao coletivo.
A perspectiva de Halbwachs é a de que a formação dessa memória comum se dá
mais por afinidades afetivas, por trajetórias comuns. Esses aspectos são apresentados pela
História Oral na medida em que privilegia grupos sociais minoritários, excluídos,
marginalizados, e se utiliza das suas narrativas para propor “outra história”, outra visão, ou
visões, de determinada realidade.
Poderíamos dizer, de maneira geral, que a memória constituída por grupos
formados a partir desses conceitos e procedimentos operacionais específicos seja uma
memória “não-oficial”. Não somente porque se preocupa com os excluídos, mas,
principalmente, por se interessar por questões desprezadas pelo conhecimento formal como,
por exemplo, os silêncios, as mentiras, as múltiplas versões, as hipérboles da lembrança, os
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segredos. No entanto, a memória constituída pela História Oral deve estar preocupada não em
reforçar os vínculos comuns, as fronteiras sociais, mas permitir que as contradições e
subjetividades das pessoas, que virtualmente compõem a razão inicial do projeto de pesquisa.
Dessa maneira, poder-se-ia verificar os confrontos entre a memória individual e a memória
coletiva, na medida em que a constituição da memória está, segundo Halbwachs (2006),
relacionada com o convívio entre pessoas que vivenciaram algo em comum e com o presente
que irá estimular a lembrança.
Para Ecléia Bosi é necessário que o pesquisador sofra de maneira irreversível o
destino dos sujeitos observados, criando “um vínculo de amizade e confiança com os
recordadores” (1998, p. 37). A partir de uma postura de entrega, expressa prática e
teoricamente pelos sujeitos envolvidos (pesquisador e recordadores), formam uma
“comunidade de destino”, criando as condições para que “se alcance a compreensão plena de
uma dada condição humana” (1998, p. 38). Esta pesquisa seguiu o ponto de vista que Ecléa
Bosi deixou claro em seu trabalho:
A veracidade do narrador não nos preocupou: com certeza seus erros e
lapsos são menos graves em suas conseqüências que as omissões da história
oficial. Nosso interesse está no que foi lembrado, no que foi escolhido para
perpetuar-se na história de sua vida. Recolhi aquela “evocação em
disciplina” que chamei memória-trabalho. (BOSI, 1998, p.37)
Desta forma, a fartura da feira livre e do comércio da vila de Rio Fundo foi o tema
que primeiro se apresentou na fala dos entrevistados. Todos relembraram esse período com
muito orgulho como se esses anos “áureos” do comércio na praça compensassem o tempo
presente em que não há feira na cidade de Muniz Ferreira:
Tinha feira, tinha feira no meio da rua, açougue, era meio mundo de gente,
era dois só? Só dois matano boi? Teu avô João Figueiredo, o pai de Galo
Moreira matava boi, Cravinho, Augusto Preto, o pai de finada Lina, era
Alencar, tudo era, num dia de sábado matava esse boi tudo e vendia tudo.
Era meio mundo de gente porque tinha feira. Era feira... esses pessoal da
roça vinha tudo pra feira aí. Era feirona! Feirona mesmo! A feira era o dia
todo. 401
É interessante observar que as lembranças acerca da feira em Rio Fundo estão
recheadas de sentimentos de um certo descontentamento com a inexistência de feira
401
Entrevista com Maria Antônia Campos, ex-trabalhadora rural, aposentada, moradora da cidade de Muniz
Ferreira.
Aracaju, 08 a de 10 de outubro de 2008
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atualmente no município. Os açougues são bastante enfatizados como símbolos da abundância
e fartura de Rio Fundo. Dona Maria Antonia, ao me falar da feira, parecia que eu não saberia
compreender e visualizar o que ela me relatava; enfatizava a palavra “feirona”, aumentando o
tom da voz, numa clara demonstração de querer me “convencer” da veracidade de suas
palavras, como se fosse difícil de acreditar que na cidade de Muniz Ferreira era possível ter
uma feira das proporções da que ela me descrevia. E continua sua narração fazendo
comparações entre o passado e o presente, entrelaçando os tempos nos fios de suas
lembranças e, novamente, refere-se à falta que faz a fartura de “antigamente”:
Pessoal daí das roça tudo vinha fazer feira aqui. Eu vendia farinha, vendia
farinha, vendia batata. Era! Era feirona! Agora que não, que quando dá dez
hora acabou a carne, não tem mais nem carne. Naquele tempo não tinha
supermercado não. Só era feira, os negócio era no meio da feira e na rua.402
Segundo Halbwachs, rememorar é um ato que acontece no presente e é provocado
pelo presente: do passado retornam a nós os acontecimentos que correspondem às nossas
preocupações atuais. É do presente que se parte. É o que acontece com a rememoração de
Dona Antonia. Os fatos, acontecimentos, personagens, sensações depositados na memória se
reorganizam não só na presença de algo que se acrescenta a eles, mas também segundo uma
pergunta presente que se faz à memória. A memória é, assim, seletiva.
Dona Nicilda também guarda em sua memória imagens da antiga feira de Rio
Fundo:
O comércio não era como hoje. Agora, tinha até feira no meio da rua! (...)
Tinha açougue no meio da rua, era bem divertido. Tinha barraca... meu pai
mesmo tinha barraca no meio da rua de carne de sol, feijão, ele vendia feijão,
milho, requeijão, amendoim, farinha... toda semana tinha farinha... era assim
no meio da rua sem cobertura sem nada. Verdura era mesmo no passeio, na
igreja, ali na Comac. Era as verduras ali, eles forravam e colocavam as
verduras tudo ali, qualquer coisa, fruta, galinha... ali, todo mundo passava
ali. A gente escolhia as coisas ali pra comprar, fruta, verdura... verdura tudo
fresca, era tudo verdura de roça, não é como hoje tudo verdura encaixotada,
verdura melhor que a de hoje porque não tinha agrotóxico; era verdura boa
mesmo, tomate bom, quiabo, tudo fresquinho, bom... Tinha de tudo na feira
para quem quisesse comprar.403
402
403
Idem.
Entrevista com Nicilda Campos Santos da Silva, professora aposentada, moradora de Muniz Ferreira.
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Nesta entrevista, sobressai-se um sentimento de certa nostalgia. Dona Nicilda afirma
com um ar de admiração de suas próprias recordações que “tinha até feira na rua”. Afirma
isto numa determinada entonação de voz de quem ainda se surpreende com as transformações
ocorridas na cidade, dentre elas a ausência de feira livre atualmente. É de se notar que os
açougues recordados por Dona Antonia também figuraram na entrevista de Dona Nicilda e de
todos os outros habitantes com os quais tive a oportunidade de compartilhar suas
experiências. Talvez isto se deva ao fato de que, atualmente, vários munizferreirenses terem
de se deslocar para Santo Antonio de Jesus ou Nazaré a fim de comprar carne, pois como
salientou Dona Antonia, “quando dá dez hora acabou a carne, não tem mais nem carne.”
Os pequenos produtores rurais traziam seus produtos para vender na feira da vila.
Alguns transportavam suas cargas no trem para outras localidades. Porém, um aspecto
interessante é que os entrevistados recordaram não as exportações, mas o trabalho das pessoas
que vendiam seus produtos na Estação Ferroviária para os que estavam à espera da máquina
de ferro e para aquelas que desembarcavam rapidamente na estação para um ligeiro
“lanchinho”. A entrevista com Dona Maria Conceição é esclarecedora a este respeito:
Essas pessoas que traziam da roça as coisas vendiam pr’aqui, pra feira.
Também no tempo do trem eles vendiam na hora que chegava o trem, aí
saíam: “Olha o não sei que lá!” Aí saíam assim, como o povo vende assim,
como tem em Bom Despacho aqueles meninos que saem vendendo assim.
Florzinha vendia água, Camarão vendia camarão, Marinalva, todo mundo. 404
Desta forma, o trem é relembrado como um dos principais meios de sobrevivência
para os moradores de Rio Fundo. Percebe-se nesta fala que o trabalho dos vendedores
ambulantes estava atrelado ao tempo do trem. O que nos mostra que a crise da ferrovia
interferiu significativamente neste setor do comércio. Pode-se perceber como o trabalho de
vender “na hora que o trem chegava” era essencial na vida de quem o realizava. O significado
de tal trabalho era tanto que chegava a conferir identidade a quem o exercia, como o caso de
José Antonio de Jesus que deixara de ser José Antonio de Jesus para ser simplesmente
Camarão.
Em Halbwachs está presente a ligação entre memória e construção da identidade,
em especial pelo sentimento de continuidade e de coerência conferidos pela memória à
404
Entrevista com Maria Conceição Santos, professora aposentada, moradora de Muniz Ferreira.
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identidade, mesmo que as lembranças sejam continuamente reconstruídas. A contínua
reconstrução da memória vai corresponder à reconstrução do sentimento de identidade.
Esse sentimento de identidade é percebido nas entrevistas, na medida em que os
entrevistados têm um sentimento de pertencimento a Rio Fundo, motivo de orgulho, e não
apresenta este mesmo sentimento em relação à cidade de Muniz Ferreira, na qual vivem
atualmente, devido às transformações sofridas nas relações sociais e nos lugares vividos.
Sendo o rememorar estimulado também pelos lugares, testemunhos atuais de fatos e
acontecimentos passados, de personagens e de relações sociais, aos lugares se atribuem
significados sociais, pois os grupos aos quais pertencemos e os lugares aos quais nos
vinculamos têm neles uma memória inscrita da qual participamos. Os lugares são importante
referência na memória dos indivíduos, de onde se segue que as mudanças empreendidas
nesses lugares acarretam mudanças importantes na vida e na memória dos grupos.
A feira livre na praça continua a figurar nas recordações daqueles que tiveram a
oportunidade de conhecê-la e dela participar, assim como as diversas casas comerciais são
relembradas enquanto marco de uma época de abundância e fartura, de “tempo bom”405 em
que o trabalho de “vender”, tanto na feira quanto “na hora em que o trem chegava”, fazia
parte da vida cotidiana dos habitantes de Rio Fundo. Destarte, as memórias do trabalho diário
nesta Muniz Ferreira do tempo da máquina de ferro brotam como água de uma fonte nas
narrativas dos entrevistados.
Não obstante, a memória é seletiva e se certas lembranças não reaparecem é
porque estavam enquadradas em um sistema de noções que não se encontram mais no
presente. Por isso, o passado é reconstruído pela memória: ele é sempre uma reconstrução, por
mais detalhes que contenha. E é uma reconstrução feita no presente.
E nestas reconstruções feitas pelos entrevistados desta pesquisa percebemos o
entrelaçamento entre a memória coletiva e a memória individual. E esta memória coletiva
tem, assim, uma importante função para os entrevistados: contribuir para o sentimento de
pertinência a um grupo de passado comum, que compartilha memórias. Ela garante o
sentimento de identidade do indivíduo calcado numa memória compartilhada não só no
campo histórico, do real, mas, sobretudo, no campo do simbólico. A memória se modifica e
se rearticula conforme posição que o indivíduo ocupa e as relações que ele estabelece nos
diferentes grupos dos quais participa. Memória individual e coletiva se alimentam e têm
pontos de contato com a memória histórica e, tal como ela, são socialmente negociadas.
405
Expressão muito utilizada por Antonia Campos Santos.
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Guardam informações relevantes para os sujeitos e têm, por função primordial, garantir a
coesão do grupo e o sentimento de pertinência entre seus membros.
Assim, analisando as memórias dos entrevistados sobre o viver em Rio Fundo,
podemos perceber que essa memória foi reelaborada e que ela é seletiva, construindo
representações desta vila mediante o olhar das próprias pessoas que vivenciaram tal período.
Isto é muito relevante para a história, pois “aquilo que as pessoas imaginam que aconteceu
(...) pode ser tão fundamental quanto aquilo que de fato aconteceu”. (THOMPSON, 2002,
p.184). É um olhar sobre o viver em Rio Fundo sob a perspectiva da memória dos
entrevistados.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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In: História. v. 14., São Paulo: Editora Unesp, 1995.
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nacional de viação férrea. Salvador, Dissertação de Mestrado, UFBA, 1979.
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THOMPSON, Paul. A Voz do Passado: história oral. 3 ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2002.
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VELLOSO, Mônica Pimenta. Modernismo no Rio de Janeiro: turunas e quixotes. Rio de
Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1996
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LIMA BARRETO E A DISPUTA PELA IMAGEM DE UMA CIDADE
MODERNA
Carlos Alberto Machado Noronha – FAPESB/UEFS
[email protected]
Esta comunicação tem como tema a análise de lutas de representação travadas em torno da
imagem de nação moderna para o Brasil através da perspectiva do literato Lima Barreto
acerca das transformações ocorridas na cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. A
partir da análise dos romances, contos, crônicas e correspondências desse autor, objetivamos
discutir a sua percepção da apropriação pelas elites cariocas das representações de
modernidade forjadas na Europa e a forma como expressa a relação das camadas populares
com aquele espaço urbano modernizado. Diante disso, concluimos que as imagens textuais
produzidas por Lima Barreto salientam os diferentes usos do espaço urbano carioca, discutem
as contradições da modernização imposta pelas elites e sugerem alternativas a esta.
Palavras-chave: Lima Barreto, Modernidade, Representação.
Afonso Henriques de Lima Barreto foi um escritor que viveu entre 1881 a 1922 na
cidade do Rio de Janeiro, produzindo seus textos entre os anos de 1902 a 1922. Mulato, de
origem pobre, conseguiu com muita dificuldade concluir seus primeiros estudos com certa
desenvoltura. No nível superior, deparou-se com problemas relacionados às condições de
sobrevivência de sua família e outros decorrentes de suas relações na Escola Politécnica do
Rio de Janeiro.
Diante disso, não concluiu o curso de Engenharia e teve que trabalhar como
amanuense na Secretaria de Guerra para garantir o seu sustento e de sua família. Contudo,
isso não o impediu de se dedicar também a sua grande paixão: a literatura. 406
A sua trajetória nesta atividade, marcada por discriminações e dificuldades
financeiras, foi sendo traçada a partir da leitura de autores internacionalmente reconhecidos
como Balzac e Dostoiévski e dos contatos com outros intelectuais brasileiros, através dos
406
BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. 5 ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olímpio, 1975
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quais estabeleceu relações de amizade e\ou colaborou na publicação de periódicos. Além
disso, apresentava uma sensível e indignada observação do cotidiano a sua volta.
407
Isso o
levou a desenvolver uma escrita diferenciada em relação aos demais literatos de sua época, a
qual se revelava extremamente preocupada com as transformações pelas quais passava a
cidade do Rio de Janeiro.
Na conferência proferida em Rio Preto (Estado de São Paulo) por ocasião de sua
estada em Mirassol em 1921 e publicada, originalmente, no mesmo ano na Revista Sousa
Cruz no Rio, Lima expõe claramente sua perspectiva utilitarista de Literatura. Ancorado em
autores como Taine, Tolstoi, Brunetière, Dostoievski, afirma:
[...] a Literatura reforça o nosso natural sentimento de solidariedade com os
nossos semelhantes, explicando-lhes os defeitos, realçando-lhes as
qualidades e zombando dos fúteis motivos que nos separam uns dos outros.
Ela tende a obrigar a todos nós a nos tolerarmos e nos compreendermos; e,
por aí, nós nos chegaremos a amar mais perfeitamente na superfície do
planeta que rola pelos espaços sem fim. [...]
Atualmente, [...], não devemos deixar de pregar, seja como for, o ideal de
fraternidade, e de justiça entre os homens e um sincero entendimento entre
eles.
E o destino da Literatura é tornar sensível, assimilável, vulgar esse grande
ideal de poucos a todos para que ela cumpra ainda uma vez a sua missão
quase divina. 408
Essa concepção de literatura se contrapunha à predominante naquele momento
que estava preocupada com questões gramaticais e estilísticas. Além disso, exigia do escritor
visão crítica da realidade social, ou seja, uma produção literária militante.
Desse modo, Lima Barreto utilizou uma linguagem simples, despojada e com
grande capacidade de síntese, o que revela sua apropriação do “fenômeno cultural que dividia
com a ciência a hegemonia das convicções” no início do século XX: o jornalismo.
409
Com
essa linguagem, ele escreveu romances, contos e atuou na imprensa com artigos e crônicas,
voltando-se para questões relacionadas ao uso do espaço urbano, discriminação racial,
construção da identidade nacional e papel do literato na sociedade.
407
BARRETO, Lima. Diário Íntimo: memórias. 2 ed.São Paulo: Brasiliense. 1961. BARRETO, Lima.
Correspondência. 2 ed.São Paulo: Brasiliense. 1961 (tomos I e II)
408
BARRETO, Lima. Impressões de Leitura. 2 ed.São Paulo: Brasiliense. 1961. p. 67-68.
409
SEVCENKO, Nicolau. Lima Barreto e a “República das Bruzundangas”. In: SEVCENKO, Nicolau.
Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 2 ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 2003. p. 198.
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Essas questões estavam, por sua vez, relacionadas ao projeto do regime
republicano em transformar o Brasil num país moderno. As condições para que esse projeto
fosse levado à frente se apresentaram logo após o saneamento das finanças do país ocorrido
no governo de Campos Salles (1898-1902). O seu sucessor, Rodrigues Alves, pôde, então,
promover as mudanças destacadas no seu Manifesto à Nação divulgado em 15 de novembro
de 1902. 410
Nessa declaração, o saneamento da capital federal foi considerado a prioridade
para a transformação do país numa auspiciosa economia capitalista. Desse modo, a cidade do
Rio de Janeiro passou por um intenso processo de modernização cujos principais
melhoramentos foram as remodelações de seu porto (isso facilitaria o comércio do café e
imigração de mão-obra necessária ao desenvolvimento econômico) e do seu centro, este a
partir da construção de uma avenida central, que possibilitaria a transformação da cidade
colonial numa metrópole parecida com Paris.
Com o auxílio do engenheiro Pereira Passos, designado por Rodrigues Alves para
a prefeitura da capital, são iniciadas várias obras: a destruição de casarões e outras edificações
antigas do centro da cidade411; a construção de grandes avenidas, novo porto e edifícios
monumentais; o alargamento, alinhamento e pavimentação de ruas e a expansão do serviço de
bondes. Essas mudanças provocam o deslocamento das camadas pobres e trabalhadoras para
os subúrbios e encostas dos morros e são acompanhadas de medidas higienizadoras que
proibiam a criação de animais e a circulação de vendedores ambulantes e mendigos no centro
da cidade. 412
Diante disso, percebemos que essa modernização objetivava a destruição de
vestígios do passado colonial da cidade, esconder seus sinais de pobreza, satisfazer os
interesses financeiros de suas elites e construir uma imagem de nação moderna para o Brasil.
Como Lima Barreto via na literatura a função de reforçar a solidariedade entre os
homens, explicando-lhes seus defeitos e zombando dos motivos fúteis que os separavam, essa
remodelação da cidade do Rio de Janeiro se apresentou como um terreno profícuo para o
desenvolvimento dos objetivos de sua escrita. Isso se deve ao fato de que ela promoveu uma
410
BENCHIMOL, Jaime. Reforma urbana e Revolta da Vacina na cidade do Rio de Janeiro. In: FERREIRA,
Jorge & DELGADO, Lucílio. O Brasil Republicano: o tempo do liberalismo excludente: da proclamação da
república à revolução de 1930. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 233–286.
411
O Bota-abaixo, como ficou conhecida esse momento inicial da reforma urbana no Rio, iniciou-se em 1903.
412
PINHEIRO, Eloísa Petti. Europa, França e Bahia: difusão e adaptação de modelos urbanos (Paris, Rio e
Salvador). Salvador: EDUFBA, 2002.
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maior segregação social, refletindo na organização do espaço urbano a ordem pretendida pelo
regime republicano.
A partir das suas personagens e das suas opiniões expressas em crônicas, artigos
de jornais e anotações íntimas, Lima Barreto constrói imagens textuais que nos fazem
percorrer esse Rio modernizado. A partir delas, tece uma discussão sobre a constituição da tão
proclamada chegada da civilização no Brasil que era defendida por boa parte dos literatos de
sua época bem como pelas elites política e econômica do país.
O grande veículo que possibilitava o diálogo entre a produção fortemente
contestadora de Lima Barreto e dos demais literatos era a imprensa. A imprensa foi
responsável pela publicação de muitas obras literárias e meio de sobrevivência para autores
que lhe prestavam serviços com a produção de reportagens, críticas literárias, crônicas e
contos. Além disso, nesse início de século XX, teve papel importante na divulgação de novos
hábitos de consumo, novas práticas de diversão bem como veículo de apoio ou oposição
política.413
E é justamente em seu trabalho na imprensa que encontramos Lima Barreto em
março de 1921, em uma crônica publicada na revista Careta. Nesta crônica, intitulada
“Leitura de Jornais”
414
, Barreto tece comentários sobre o embelezamento da cidade a partir
de notícias veiculadas por dois jornais da época, afirmando, logo de início, que esse
embelezamento ia além das “questões de higiene e de assistência que elas também
reclamam”.
A fim de comprovar sua afirmação de que, depois da proclamação da República,
passamos a obedecer à regra seguida “no mundo inteiro” de erguer monumentos, porém “com
o caráter cenográfico, que nos é próprio”, Lima Barreto destaca a notícia do O Jornal que
lamentava que o governo não tivesse realizado a construção de um “stadium” no Leblon
(bairro da zona sul do Rio e um dos locais de residência das famílias abastadas). Depois,
discute outra publicada no jornal O Dia que relatava a condição deplorável de habitações
populares no Rio e a solução encontrada pelo governo de Buenos Aires (exemplo de cidade
moderna, civilizada na América Latina naquele momento) que ofereceu casas com ótimas
condições para seus moradores.
Com boa dose de ironia, Barreto denuncia o descaso do governo pelos menos
favorecidos, o caráter elitista e autoritário da modernização da cidade, evocando os
413
Ver BROCCA, Brito. A vida literária no Brasil. 5 ed. Rio de Janeiro: José Olímpio, 2005. MARTINS, Ana
Luiza & LUCA, Tânia Regina de.Imprensa e Cidade. São Paulo: UNESP, 2006.
414
BARRETO, Lima. Feiras e Mafuás. 2 ed.São Paulo: Brasiliense. 1961. p. 103 – 106.
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acontecimentos da Revolta da Vacina de 1904 e, com isso, fornecendo ao leitor uma versão
diferente em relação à divulgada pelo poder estatal no início do século para justificar a
vacinação obrigatória415. Além disso, deixa explícita a tensão presente na sociedade carioca
quanto aos “melhoramentos” na cidade.
A preocupação com o caráter cenográfico da modernização da cidade que aparece
nessa crônica “Leitura de Jornais” é algo presente no autor desde o início da reforma do
prefeito Pereira Passos. Em suas anotações pessoais de janeiro de 1905416, Lima Barreto
registra a sua passagem, no dia 26 de janeiro, pelo centro da cidade e identifica algumas
modificações nas ruas.
Ele reconhece que as modificações tornarão o ambiente belo, porém acredita “que
o Rio, o meu tolerante, bom e relaxado, belo e sujo, esquisito e harmônico, [...] vai perder, se
não lhe vier em troca um grande surto industrial e comercial; com suas ruas largas e sem ele,
será uma aldeia pretensiosa de galante e distinta, [...]”.
A perspectiva apresentada pela imprensa através da manchete “As festas da
República” do jornal A Tribuna (16/11/1905)
417
e da crônica assinada por Bilac intitulada
“Inauguração da Avenida”418 e publicada na Gazeta de Notícias (19/11/1905), ambas
referentes à inauguração da Avenida Central ocorrida no dia 15/11/1905, é bem otimista
quanto à modernização da cidade, se comparada com a impressão de Lima Barreto meses
antes, acima demonstrada, na qual imperava a dúvida.
O jornal A Tribuna aponta a inauguração da “monumental Avenida” como algo
que bem caracteriza o aniversário da República e “a aurora luminosa de um futuro grandioso”,
lamentando apenas que o entusiasmo popular não pôde corresponder às expectativas devido à
forte chuva que caiu no dia da inauguração.
Já Bilac narra, em sua crônica, a admiração do povo pela avenida e explica que,
se até aquele momento não houve aclamações, isso devia ao choque que aquele ambiente
moderno provocara, salientado que esperava uma “revolução moral e intelectual” da
população “em virtude da reforma material da cidade”.
Lima Barreto, no entanto, aprofunda mais a sua visão crítica com o passar dos
anos e procura discutir os referenciais que eram tomados como representativos de uma nação
415
Essa evocação também está presente em BARRETO, Lima. Recordação do Escrivão Isaias Caminha.
Erichim: EDELBRA, s/d. Para maiores detalhes e esclarecimentos, ver GRUNER, Clovis. De uma revolta a
outra: memória, história e ressentimento em Lima Barreto. Revista Artcultura, Uberlândia. V. 8, N. 13, p. 85-95,
jul.-Dez.. 2006.
416
BARRETO, Lima. Diário Íntimo: memórias. 2 ed.São Paulo: Brasileinse. 1961. p.91–92.
417
A Tribuna, 16.11.1905. Disponível em: http://www.uol.com.br/rionosjornais. Acesso em: 08 ago. 2008.
418
BILAC, Olavo. Vossa insolência. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 260-267.
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moderna. O diálogo presente no capítulo XII do romance Recordações do Escrivão Isaías
Caminha de 1909 é um dos momentos em que Barreto realiza esse tipo de discussão.
Como aparece no texto do romance, em plena redação do jornal O Globo
(referência ao grande jornal da época Correio da Manhã do advogado Edmundo Bittencourt),
estabelece-se uma discussão entre os jornalistas a respeito da “lei dos sapatos obrigatórios”.
Floc, um dos jornalistas, defende-a: “[...] a cousa é necessária... Causa má impressão ver essa
gente descalça... Isso só nos países atrasados! Eu nunca vi isso na Europa...”419. Gregoróvich,
outro jornalista, contra-argumenta de forma contundente:
- Ora, deixa-te disso, Floc! Observou Gregoróvich que entrava. No norte, é
justo, o clima, o gelo, mas no sul, em Nápoles, na Grécia, vê-se muito...
- Isso não é Europa
- Engraçado! Com que liberdade modificas a geografia... E em Londres?
- Que tem Londres?
- Que tem! Não há cidade do mundo em que a multidão seja mais andrajosa,
mais repugnante...
- Andam de casaco e sapatos! Gritou triunfantemente Floc.
- Que casaco! Que sapatos! Naturalmente que hão de procurar coberturas
para o frio, mas onde vão buscá-las? Ao lixo é um disparate! Se queres uma
multidão catita, arranja meios de serem todos remediados. Vocês querem
fazer disto uma Paris em que se chegue sem gastar a importância da
passagem ao mesmo tempo ganhando dinheiro, e esquecer de que o deserto
cerca a cidade, não há lavoura, não há trabalho enfim... 420
Esse diálogo evidencia a percepção de Lima Barreto da apropriação das elites
brasileiras (simbolizada pelo discurso de Floc) de fragmentos da realidade européia – uma
verdadeira seleção realizada daquela realidade – a fim de utilizá-la como referencial para a
construção da imagem de país moderno para o Brasil.
Outro momento no qual Barreto reflete sobre essas questões é no artigo “O nosso
ianquismo”, publicado originalmente na Revista Contemporânea (22/03/1919)
421
. Nesse
artigo, ele tece comentários acerca da imitação da arquitetura norte-americana na cidade do
Rio de Janeiro. Para tanto, analisa o artigo de Breno Ferraz do Amaral que apresenta “um
estudo algo apaixonado, entre os Estados Unidos e o Brasil”.
Nesses comentários, Lima Barreto explicita que, se seguirem com as construções
no estilo norte-americano, a cidade do Rio de Janeiro perderá suas características, igualandose a qualquer outra cidade e enfeando-se, pois aquele estilo de construção era apropriado à
419
BARRETO, Lima. Recordações do Escrivão Isaias Caminha. Erichim: EDELBRA, s/d. p. 181.
Id., Idid., loc.cit.
421
BARRETO, Lima. Um longo sonho de futuro: diários, cartas, entrevistas e discussões dispersas. Rio de
Janeiro: Graphia Editorial, 1993. p. 378-382.
420
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topografia da cidade de Nova York e não à do Rio. Nas linhas seguintes, considera “o fundo
do espírito americano” como sendo “a brutalidade, o monstruoso, o arquigigantesco” e
inspirador de um sentimento de “esmagamento e de opressão”, apontando que a “fascinação
do modelo estrangeiro [...] entra sempre em algum grau na formação de qualquer sociedade,
mas, para ser útil e progressiva, não deve substituir inteiramente o modelo próprio e
ancestral”. 422
Lima Barreto, com essas considerações, demonstra sua capacidade de
contextualização e como determinada forma de se apropriar de modelos de civilização pode
acarretar a descaracterização da capital federal, apresentado uma postura que sugere diálogo
entre idéias vindas do estrangeiro e nossas “raízes culturais”. Como o próprio autor afirma
nesse artigo “O nosso ianquismo”, “[...] o mundo não é sempre o mesmo [...]; e os homens,
portanto, não o podem ser e devem variar com ele”.
Outra postura tomada por Lima Barreto no sentido de evitar a descaracterização
de sua cidade foi destacar outros espaços do Rio de Janeiro que foram “ofuscados” com a
modernização do seu centro. Para isso, ele promove caminhadas pela cidade através de seus
personagens como, por exemplo, no romance Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919)
com os personagens Augusto Machado e Gonzaga de Sá.
Num dos momentos dessa obra, encontramos aqueles dois personagens
caminhando pelo subúrbio de Engenho da Penha, localizado à margem de um canal que
separa a Ilha do Governador da terra firme. Após percorrer determinado trecho, eles
desembocavam diante do mar e Augusto questiona Gonzaga acerca de um sobrado em ruínas
que avistou num ilhote no meio do canal423.
Diante daquela paisagem, Gonzaga explica que “as comunicações com o interior
se faziam pelo fundo da baía” através de faluas que passavam por aquele local, sustentando a
venda que havia no andar térreo daquele sobrado em ruínas. Nas linhas seguintes, Gonzaga,
aproveitando-se de outra observação de Augusto, inicia uma exposição sobre a formação da
cidade do Rio de Janeiro, selecionando dois elementos espaciais da cidade com o intuito de
mostrar a complexidade da paisagem urbana e a maneira como Augusto (ou os leitores)
deveria orientar seu olhar para compreendê-la. Vejamos o primeiro:
Vamos às casas e aos bairros. Um observador perspicaz não precisa ler, ao
alto, entre os ornatos de estoque, para saber quando uma delas foi edificada.
422
423
Id., Ibid., p. 379
BARRETO, Lima. Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. 2 ed.São Paulo: Brasiliense. 1961. p. 61
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Esse casarão que contemplamos a custo na Rua da Alfândega ou General
Câmara, é dos primeiros anos da nossa vida independente.
Vêde-lhe a segurança ostensiva, como quer parecer mais seguro que uma
catedral gótica; a força demasiada das paredes, a espessura das portas...
quem a fez, saía das lutas da Independência, do Primeiro Reinado e vinha
seguro de possuir uma terra sua para viver a vida eterna da descendência. 424
E ao segundo:
O tráfico de escravos imprimiu ao Valongo e aos morros da Saúde alguma
coisa de aringa africana; e a melancolia dos cais dos Mineiros é saudade das
ricas faluas, jejadas de mercadorias, que não lhe chegam mais de Inhomirim
e da Estrela.425
Por esse diálogo, percebemos a proposta de Lima Barreto de “educar” os leitores
para a observação das várias cidades com suas diversas temporalidades existentes na cidade
do Rio de Janeiro, contrapondo-se ao imaginário dominante que buscava imprimir a
identidade nacional, naquele momento, a partir do cenário modernizado do centro da cidade,
ao mesmo tempo em que minimizava a participação de outros segmentos sociais na sua
constituição.
Apesar disso, Lima Barreto, ao encontrar-se distante do Rio de Janeiro e de seus
problemas que tanto o atormentavam, parece que vislumbrava aquele aspecto monumental
tomado pela cidade após a reforma urbana de uma forma positiva. Em carta ao seu grande
amigo Noronha Santos (24/09/1910)
426
, Barreto relata sua passagem por Juiz de Fora em
companhia do teatro ambulante de seu tio e, ao se referir a essa cidade, afirma que “sem ser
feia, não é bonita, e falta-lhe completamente aspectos, monumentos e edifícios [...], poucas
lojas de confecções e fantasias e ainda não vi, na rua, uma senhora de chapéu.[...]”.
Talvez fosse o cenário cosmopolita do centro do Rio que ele buscavasse quando
pousou seu olhar sobre uma outra paisagem urbana ou apenas estranhasse que aquele cenário,
após tanta divulgação e defesa, ainda não tivesse chegado até aquela cidade mineira. Contudo,
o ambiente urbano para Lima Barreto era um local onde havia “sempre uma ebulição de
idéias, de sentimentos – cousa muito favorável ao desenvolvimento humano [...]; a cidade”
era “evolução”. 427
Diante dessas considerações, percebemos que Lima Barreto não era contrário à
modernização da cidade em si, mas a forma como esta foi realizada, provocando o aumento
424
Id., Ibid., p. 67.
BARRETO, Lima. Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. 2 ed. São Paulo: Brasiliense. 1961. p. 67
426
BARRETO, Lima. Correspondência. 2 ed.São Paulo: Brasiliense. 1961 (tomo I). p. 90-91
427
BARRETO, Lima. Impressões de Leitura. 2 ed.São Paulo: Brasiliense. 1961. p. 105
425
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das desigualdades sociais e o apagamento dos registros de sua história. Esse autor procurava
representar em seus textos uma cidade com uma grande diversidade sócio-cultural, a qual não
deveria ser negada, pois isso acarretaria uma perda de referencial muito drástica e a
constituição de um verdadeiro “cemitério de vivos”.
Quando Lima Barreto pensava na sua cidade, não lhe vinha à mente “o palacete”,
“o patrão ou criado”, “o teatro ou o cemitério”, “o capitalista ou o mendigo” e sim “a soma do
trabalho, de riqueza, de miséria, de dores, de crimes de quase quatro séculos contados”. 428 A
cidade que ele almejava era contrária à concepção burguesa de cidade marcada pelo
fracionamento de seu espaço e por um presentismo avassalador que negligenciava as
diferenças culturais e temporais.
A cidade almejada por Lima deveria apresentar sua diversidade cultural como
bandeira a ser defendida e permitir um contato maior entre seus habitantes a fim de promover
a compreensão e solidariedade entre eles. Ao que parece, esse foi o principal argumento
apresentado por Lima Barreto na disputa pela constituição da imagem de país moderno para o
Brasil nos princípios do século XX, a servir de reflexão para os dias atuais, em que nossas
cidades estão se transformando em verdadeiros barris de pólvora prontos para explodir a
qualquer momento.
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428
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AS “LOJAS DAS ROÇAS”: SUAS MÚLTIPLAS
SIGNIFICADOS PARA O HOMEM DO CAMPO.
306
FUNÇÕES
E
Josiane Thethê Andrade – UNEB
[email protected]
As relações econômicas, sociais e culturais estabelecidas entre a população local e os
indivíduos que freqüentavam as vendas, estabelecimentos comerciais, do povoado do
Tabuleiro, localizado no município de Mutuípe, Bahia, são o principal objeto de estudo desta
pesquisa. Entre os anos de 1960 e 1985 as vendas exerceram uma grande influência sobre a
vida cotidiana dos indivíduos que conviviam nestas espacialidades, sobrepondo suas funções
essencialmente comerciais para assumir múltiplos papéis. Com destaque para função
sociabilizadora, um verdadeiro “observatório popular” como as definiu o historiador Sidney
Chaulhoub. Contudo, as vendas e conseqüentemente o próprio povoado sofreram ao longo do
tempo uma série de mudanças que acabaram resultando na decadência das mesmas. Dentre
elas, o aumento da migração, a desativação da estrada de Ferro de Nazaré, a abertura de
estradas ligando o povoado à sede do município, entre outras. Para realização da pesquisa
foram utilizadas, sobretudo, narrativas de moradores locais, pessoas ditas comuns, cujas
memórias expressas através da oralidade abriram perspectivas variadas não só para reconstruir
uma história do povoado e de suas vendas como também para refletir sobre o processo de
ressignificação da memória, em diferentes situações e temporalidades.
Palavras-chave: História, História Oral, Comércio.
O Tabuleiro como povoado rural, localizado num ambiente marcado pela vida
campestre não foge a sua dinâmica cotidiana. As práticas sociais do lugar estavam,
diretamente, associadas ao trabalho na roça, a lida com os animais, a convivência com a
natureza, aos costumes e tradições do campo, expressas nas relações de solidariedade entre os
moradores, nas festas, nas rezas, nos conflitos, nas relações de trabalho e exploração presentes
nas práticas e vivências da população local.
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Todavia é preciso destacar o papel sociabilizador de suas vendas, pois esta
pequena localidade rural sempre esteve estreitamente ligada às essas “lojas das roças” como
as definiu Guimarães Rosa. Espaços de circulação de pessoas, abertos da manhã à noite, todos
os dias da semana, sem fechar para o almoço significavam para os seus freqüentadores um
momento de lazer e diversão. Lá contavam os “causos”, bebiam cachaça e discutiam os mais
diversos temas “possíveis do universo cultural das roças” (SANTANA, 1998, p.82-83) e fora
delas. As notícias que ouviam no rádio ou viam na televisão, posteriormente, como
acontecimentos políticos nacionais e regionais, esportivos, sociais etc. Contavam piadas,
faziam adivinhações, falavam sobre a vida pessoal e alheia, criando “significados, valores e
práticas” (SANTANA, 1998, p.82.) para suas vidas. Situações traduzidas por Sra. Aurineide
Thethê, 43 anos, mais de vinte e cinco anos dedicados ao trabalho na venda da seguinte
forma:
Aí, de tarde, como não tinha a violência que tem hoje, de tarde o povo vinha
tudo pra porta da venda, que chovesse ou que fizesse sol. A boca da noite a
venda era cheia de gente, uns vinha comprar, outros fazer a feira. Trabalhava
o dia inteiro, aí quando era de noite, às vezes, tinha alguma coisa pra vender
ou farinha ou cacau, trazia pra vender, outros vinha fazia a feira, outros
vinha comprar alguma coisa que tava faltando em casa, outros vinha mesmo
beber, tomar uma cachacinha e contar piada. Outros vinha bestando mesmo,
pra vê o povo, pra ver todo mundo que tava e conversar a boca da noite. E,
às vezes, de dia, quando chegava assim... Antigamente vinha os
cavaiadeiros429 pra aqui. Na época de 60, 70 e 80 ainda vinha cavaiadeiros
aqui. Ai o povo passava aqui, chegava por aqui pra vender animal,
barganhar, trocava, fazia barganha, um animal pelo outro, por burro, por
cavalo, por boi. Outra ora vendia por dinheiro, fazia esse tipo de negócio,
barganha. E, ai de noite os meninos mais novo ia jogar sinuca, outros vinha
jogar.430
As lembranças da Sra. Aurineide Thethê trazem à tona outros dois aspectos
inerentes ao cotidiano das vendas. Primeiro, sua função social, pois como ponto de encontro
privilegiado, muitos se dirigiam para lá especificamente para fechar um contrato como de
meação, por exemplo, recrutar trabalhadores para capinar um terreno, podar uma roça de
cacau, consertar uma cerca, ou procurar o trabalho de um pedreiro. Outros iam permutar
animais e objetos, tratar da compra e venda de terras, ou até mesmo deixar um recado. As
vendas acabavam se tornando um ponto de referência de qualquer vilarejo, não só do
Tabuleiro.
429
430
Negociantes de gado bovino, eqüino e asinino.
Aurineide Thethê Andrade depoimento citado.
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Outro ponto seria a presença do jogo nas vendas, fosse do bicho ou de cartas, a
maior parte delas oferecia esse tipo de divertimento, mesmo proibido o jogo de azar em
algumas épocas. No decreto lei no. 9 215 de 30 de abril de 1946, o presidente Eurico Gaspar
Dutra proibiu a prática e a exploração de jogos de azar em todo o território nacional
reafirmando a lei de Contraversões Penais de 1941, que já proibia os jogos de azar431. O fato é
que estas leis nunca foram plenamente respeitadas, os jogos de bicho e de cartas eram
constantes no Brasil. Vários depoentes narraram episódios envolvendo as tentativas da policia
de coibir o jogo, quase sempre sem sucesso, já que muitos fugiam às batidas policiais ou
jogavam escondido para evitar possíveis multas e prisões:
O povo jogava por dentro da vagem, cendendo vela, cendendo vela,
enfrentando o diabo, mas jogava. No Tabuleiro a gente jogava por baixo das
bananeira, mas jogava! Enquanto tiver um baralho não tem jeito, a fábrica
não fecha.432
Os jogos a dinheiro nas vendas podiam resultar em certos casos em brigas. Havia
jogadores que não suportavam perder, surgiam acusações de trapaças ou estas aconteciam
por existir antecedentes que levassem ao ajuste violento da rixa433. O Sr. Pedro Andrade,
como bom narrador, trazendo em suas falas sempre um ensinamento moral434, no trecho de
seu depoimento transcrito abaixo, expõe suas impressões a respeito das brigas nas vendas:
Botava bebida, cachaça, era jogo, coisas que não prestava. Mas nunca
registrou uma briga, pois quando começava uma briga, uma confusão, eu
falava:
- Isso aqui nem começa nem termina. Aqui não começa briga nem termina,
porque quem tiver sua rixa é onde começou, não é na minha casa, por isso
aqui é um ponto de prosa não de briga435.
A historiadora Maria Izilda de Carvalho Matos nos seus estudos sobre alcoolismo
e masculinidade na sociedade paulista na segunda metade do século XX. Aponta para as
associações que se faziam entre alcoolismo, jogo, fumo, vagabundagem, boemia e violência,
constituindo hábitos incompatíveis com as idéias higienistas da época, fugindo ao ideal de
sociedade moderna almejado para o Brasil na época. Para os homens do campo o discurso
431
Dados retirados do site oficial do Senado Federal: http://www.senado.gov.br. Consulta feita em Julho de
2003.
432
Manoel Amado da Silva depoimento citado.
433
A ação violenta de muitos sujeitos nos jogos que ocorreram em bares ou em outros locais públicos,
geralmente tinha antecedentes de conflitos anteriores como aponta: CHALHOUB. Op. Cit. p. 214.
434
Walter Benjamin, destaca que bons narradores sempre trazem um ensinamento moral em suas narrações.Ver:
BENJAMIN, Walter. O narrador - considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia, técnica, arte e
política. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 200.
435
Pedro Andrade de Souza depoimento citado.
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médico da época afirmava que o vício do álcool se “sobrepunha às verminoses e degenerava
o caráter do trabalhador rural, gerando nele preguiça, indolência e improdução” (MATOS,
2001,34). Daí a imagem de que estas práticas ‘são coisas que não prestavam’ como afirmou o
Sr. Pedro, reproduzindo velhos discursos que sempre atrelaram o consumo de álcool e a
prática de jogos à violência e vícios degenerativos. Todavia, estas representações parecem não
afastar os freqüentadores das vendas.
“Ponto de prosa”, assim definiu o Sr. Pedro Andrade às vendas, mostrando outro
aspecto inerente a elas. A imagem que as vendas passam de um espaço de sociabilidade e
diversão, que foi apreendida também pelo olhar do fotógrafo anônimo desta fotografia (figura
3) tirada na venda do senhor José Gonçalves, (no centro da fotografia tocando violão) no
início dos anos 80. Ela retrata a visita do então prefeito de Mutuípe, na época, Pedro Alves (a
sétima pessoa da direita para a esquerda) onde foi recebido por alguns moradores com uma
cantoria”, prática freqüente nas vendas do povoado.
Figura 3 – A fotografia da venda do Sr. José Gonçalves.
Fonte: autor desconhecido
Na foto tirada em primeiro plano, o fotografo usou uma distância capaz de
capturar a imagem daqueles que tocavam, assim como o ambiente da venda. No entanto, a
ação do tempo estragou algumas partes da fotografia, sobretudo as que mostravam detalhes do
balcão e das prateleiras da venda. Além do que, foi preciso retirar as bordas danificadas da
fotografia para possibilitar salvar o máximo possível da parte legível, o centro; mesmo assim,
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a manipulação comprometeu o sentido da foto, já que ocultou elementos importantes da
imagem. De qualquer forma, ela conservou como “um fragmento do real” (MIGUEL, 1993,
p.126) um momento no qual a venda congregava moradores e fregueses no povoado do
Tabuleiro, reafirmando sua função sociabilizadora, proporcionando além de trocas
econômicas divertimentos para a população local.
A venda também poderia exercer outras funções. Muitas delas funcionavam
também como armazéns, por absorverem boa parte da produção agrícola da região. Além de
muitos vendeiros terem apontado para o fato deles mesmos exercerem as funções de
açougueiros. Como observa se no depoimento do ex-vendeiro José Gonçalves:
Eu matava o porco ali mesmo, comprava o porco, matava e vendia o
toucinho ali. Outra hora fritava, fazia banha pra vender aqui na rua e... Eu
vim primeiro do que Zé Bailão, aí eu vendia o toucinho, vendia a carne, a
carne vendia despostada, tirava o toucinho e vendia a carne. Tinha os freguês
de comprar nas mãos da gente. 436
Mas como o vendeiro é um “comerciante, numa situação de pequeno capitalista,
vive entre os que lhe devem dinheiro e aqueles a quem ele deve. É um equilíbrio precário,
sempre à beira da derrocada” (BRAUDEL, 1998, p.57), obrigando-o a cobrar as dívidas,
uma tarefa difícil, dado os costumes que envolviam as relações entre ele e seus fregueses.
Muitos comerciantes ficavam constrangidos em cobrar, outros temiam que os fregueses
ficassem ofendidos e abandonassem seus estabelecimentos comerciais, até mesmo sem pagar
a conta, como deixou claro os vendeiros, se referindo as cobranças como “uma tarefa muito
difícil”, “tinha gente que queria até bater na gente,” “eu tinha vergonha de cobrar”. Situações
expressas nos depoimentos e que é perceptível no trecho abaixo:
Cobrava, uns dava pra valente, queria até bater na gente, mas a gente ia
atravessando. Teve um dia que aquele Paulo Correia, me, [...] escorou na
porta da venda porque eu fui cobrar uma conta, ele escorou com uma
espingarda veia, que se eu saísse fora tinha ele me atirado.437
Os vendeiros se sentiam constrangidos muitas vezes em cobrar as dívidas, já que
poderiam estar ferindo com a tradição. O que ajuda a entender a reação violenta do cliente na
última fala do senhor José Gonçalves, ao se sentir ofendido com a cobrança. Isto lembra as
relações comerciais permeadas por antigos costumes na Inglaterra do século XVIII, definida
436
437
José Gonçalves depoimento citado.
Idem
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por E. P. Thompson (1998, p.13-25) como “economia moral da plebe” ao se referir às
rebeliões ou ações violentas dos camponeses, na defesa de suas tradições contra as influências
externas em relação aos novos controles impostos pelos “governos patrícios” e pelas
transformações do mundo industrial moderno.
A venda como um espaço público é praticado por todos, homens, mulheres,
crianças, moços e velhos. E, como não poderia ser diferente, as relações entre os indivíduos é
orientada por uma série de limites que a conveniência de viver em sociedade lhes impõe. No
caso das mulheres, o fato das vendas serem um espaço público e de predominância masculina
não as impediam de freqüentá-lo, e como observa a historiadora Michelle Perrot, (1992,
p.167) “a fronteira entre o masculino e privado é variável, sinuosa...”. Nem todo espaço
público é político e masculino, e por outro lado nem todo privado é feminino.
Nos trechos dos depoimentos abaixo se percebe como as mulheres do lugar
praticavam o espaço das vendas de maneiras diferenciadas, trazendo consigo uma forte
ligação entre a necessidade de consumo, as relações afetivas e morais que mantinham com
elas:
A freqüência das mulheres na venda era comum sim. Elas iam, assim,
quando ia fazer a feira, que um dos marido adoecia, que não podia ir a feira.
Aí elas iam na venda fazer a feira. Aquelas que não tinham marido, que elas
tomavam conta da suas próprias vida e elas mesma era quem ia fazer a feira,
vender os produtos da roça. Vendiam cacau, vendia farinha. Às vezes
adoecia alguém e elas precisava ir para a cidade, ai passava na venda,
comprava o que precisava. Se precisava de algum dinheiro prá depois pagar,
elas ia tomava o dinheiro... Mas as mulher não participava, assim, tanto da
venda não, quem ia mais pra venda era os homens. As mulher ia, mais, só ia
assim, quando tinha grandes precisão. Que os homens ia por precisão e,
também ia assim nos dias de domingo de tarde pra conversar, pro bate-papo,
ia passeando, mas as mulheres não ia passear ia por necessidade, por
precisão mesmo. 438
-A senhora tinha vergonha de freqüentar as vendas?
-Às vezes na dos outro, mas na casa de Zé Gajilo eu não tinha vergonha, na
casa de Jovená não tinha vergonha, na casa de Arthur não tinha vergonha. Eu
chegava bebia, fumava, prosava, pilheriava, tirava meus caminho e ia
embora... Lá era tudo conhecido, era mesmo de ser meus irmão. Ochê! Ia ter
vergonha de que?!439
No primeiro depoimento nota-se que a Sra. Aurineide vivencia a venda como um
lugar de trocas comerciais para as mulheres, onde elas não devem demorar mais do que o
tempo necessário para fazer as compras e pagá-las. O lazer nestas lojas rurais seria uma
438
439
Aurineide Thethê Andrade depoimento citado.
Laura de Jesus Andrade depoimento citado.
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exclusividade masculina. Já no depoimento da Sra. Laura ir às vendas era um momento de
fazer compras e de lazer também, no qual ela conversava com os freqüentadores e donos das
vendas sem a preocupação de ser uma mulher num espaço majoritariamente masculino.
Porém, ela justifica sua desinibição ao fato de estar entre amigos. A Sra. Laura trata as vendas
como “casa”, refere-se aos vendeiros como irmãos, demonstrando que mantinha uma relação
próxima não só com os moradores do lugar como com os donos das vendas. Era mais que
uma simples freguesa, assim ela se considerava.
Os laços de familiaridade que marcavam as relações entre os vendeiros e
fregueses caracterizam um costume proporcionado por práticas anteriores de convívio naquele
espaço. Ou seja, os freqüentadores das vendas em sua interação com lugar criaram práticas
que identificaram o espaço da venda como um ambiente propício as relações de solidariedade
entre os indivíduos que o freqüentam. Segundo Michel de Certeau (1994, p.202) “o espaço é
um lugar praticado” e são estas práticas cotidianas que dão a um lugar destinado as relações
comerciais o calor da convivência humana.
O vendeiro conhece os gostos de cada um, chama os fregueses pelo primeiro
nome ou por apelidos, conhece as suas famílias e as crianças do lugar. A ele se recorre num
momento de emergência, quando é necessário um remédio para dor de cabeça ou febre a
qualquer hora do dia ou da noite. Na iminência de um problema de saúde ou financeiro
apelava-se a um empréstimo de urgência como apontou Sra. Aurineide. O vendeiro também é
o confidente, àquele a quem se pede um conselho ou um favor. Muitos o chamavam num
canto para pedir dinheiro emprestado ou comprar algo fiado para evitar constrangimentos.
Algumas mulheres pediam para serem atendidas nos fundos da venda quando queriam
comprar uma “meota”440 de cachaça ou algum artigo de higiene pessoal, por exemplo, já que
não se sentiam à vontade para compartilhar o mesmo ambiente dos homens.
No último depoimento, Sra. Aurineide observa que as mulheres geralmente
“faziam a feira” quando os maridos estavam impossibilitados ou aquelas que eram “donas de
sua própria vida” o faziam. No caso do Tabuleiro e muito provavelmente de outras
localidades rurais do Recôncavo Sul da Bahia o costume de fazer a feira semanal da família,
geralmente nos dias de sábado, era uma atividade basicamente masculina. Os homens
acordavam cedo e se dirigiam para o povoado, lá iam primeiramente ao açougue ou a uma das
vendas e compravam as carnes para garanti-las frescas e de boa qualidade. Depois nas vendas
compravam os gêneros alimentícios de que necessitavam, aproveitando o momento para dar
440
O termo meota é usado pelos freqüentadores da venda para designar uma garrafa reaproveitada que serve para
conter cachaça comprada a granel.
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“um dedo de prosa” e tomar uma branquinha. Muitos se empolgavam e acabavam demorando,
para preocupação das mulheres que os esperavam com a feira.
Contudo, havia aquelas mulheres casadas cujos maridos não as impediam ou
talvez não se deixassem impor o limite de ir às vendas fazer as compras. Mas, a grande
presença masculina pode ser justificada por preceitos morais arraigados numa cultura
tradicional, tecida num passado paternalista da sociedade brasileira, no qual os papéis
femininos e masculinos deveriam ser pré-definidos (embora isto não signifique que todos os
assumissem). O homem exercia a função de chefe de família - provedor - trabalhador, já as
mulheres as funções de mãe - donas do lar. E mesmo com o passar do tempo, e as novas
configurações que as relações sociais entre os gêneros masculino e feminino foram
assumindo, como a crescente introdução da mulher no mercado de trabalho e maior
participação na esfera pública. Permanecia, ainda que com características diversas, o
predomínio masculino no gerenciamento da família entre os moradores do Tabuleiro.
O homem, provedor, ia às vendas cuidar daquilo que era necessário ao sustento
material básico da família e as mulheres deveriam ficar em casa cuidando dos filhos e dos
afazeres domésticos. Talvez, por isso elas não tivessem tempo de ir às vendas, sem contar
com a imagem da venda de um lugar que não deveria ser freqüentado, sobretudo, à noite “por
mulheres de respeito”. Visto que lá também era um lugar de jogos de azar, bebidas e
comportamentos masculinos impróprios que “moças de família” não deveriam presenciar para
não desvirtuá-las do caminho da moral e dos bons costumes, como lhes ensinavam seus pais.
A maior presença masculina nas vendas também pode ser atribuída ao próprio
ritmo de vida do homem do campo, que tem maior flexibilidade em relação aos seus horários
de trabalho, como destacou Thompson (1998). Podendo até mesmo escolher os dias e
horários, caso a terra seja de sua propriedade ou variando conforme a época de produção e
colheita. Ao contrário dos trabalhadores urbanos que têm horários pré-definidos e muitas
vezes trabalham aos dias de sábado, ficando impossibilitados de freqüentarem as feiras ou
mercados para fazem as compras, o que acaba se tornando uma tarefa feminina. Todavia, é
preciso ressaltar que esta observação não se estende a todos os grupos de trabalhadores
urbanos e muitos encontram formas alternativas de fazerem suas compras semanais, como
escolhendo outros dias da semana para fazê-lo ou em horários alternativos.
As mulheres do campo, é preciso ressaltar, também tinham uma relação
econômica com as vendas que superava o simples consumo de mercadorias. Muitas vendiam
nas vendas os frutos do trabalho nas ricinhas para suprir suas necessidades pessoais e de seus
filhos sem ter que recorrer ao marido. A historiadora Sylvia Maria dos Reis Maia (1985, p.92Aracaju, 08 a de 10 de outubro de 2008
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94) na sua tese de doutorado sobre as estratégias de vida e cotidiano dos trabalhadores rurais
do município de Sapeaçu-Ba, define as rocinhas como subdivisões da propriedade familiar
que são distribuídos entre os membros da própria família de maneira informal.
Nela o menino ou a menina aprenderia a ter responsabilidade e passava a ganhar
algum dinheiro. Em média com oito anos de idade a criança recebia a rocinha, que no
momento de cultivar e preparar o terreno sempre recebia uma ajuda dos adultos (MAIA,
1985). Para às esposas, elas representavam uma fonte independente de renda, que lhes davam
certa autonomia financeira em relação aos maridos, e até mesmo ajudava-os nas despesas do
lar. A maior parte do dinheiro era gasto com roupas, sapatos, material escolar para os filhos
que estudavam etc. No trecho da entrevista abaixo a Sra. Aurineide deixa clara a importância
das rocinhas:
Tinha pais que o filho e a mulher trabalhava todo mundo junto com ele. E o
que a família precisasse ele dava o dinheiro pra comprar o que precisassem.
Mas tinha pai também que era os dono da terra e que dava um pedaçinho da
terra pra mulher plantar. Pra ela ter uma rocinha, pra ela ter, assim, o
dinheirinho dela. Pra ela comprar as coisas que ela precisava: calcinha, sutiã,
perfume, xampu, creme pra pele... Essas coisa. E também dava pros filho,
também, que era uma maneira... Muitos pensava assim, que dá aos filhos
pros filhos aprender a trabalhar pra também ter seu dinheirinho, quando
fosse numa festa, comprar os perfumes deles... [os produtos] vendia nas
venda ou nos armazéns. 441
Outro aspecto interessante era o fato do dinheiro ganho com as rocinhas ser
gerenciado pelas próprias mulheres e crianças. Havia mulheres que mantinham contas
separadas dos maridos nas vendas para que elas pudessem gerenciar seus ganhos da forma
que achassem mais adequada. Para os homens, supõe-se, era uma forma de lhes livrar de
algumas despesas extras. Muitos consideravam gastos com vestuário, produtos de beleza, etc.
desnecessários e deixavam ao encargo das mulheres o cuidado com estes detalhes da
economia doméstica.
Além do mais, isto demonstra que as mulheres do campo não ficavam confinadas
ao espaço privado do lar, esperando que os maridos ou pais lhes provessem seu sustento. O
trabalho delas na roça era fundamental para manter economicamente a família. Nos núcleos
familiares mais pobres não havia recursos financeiros suficientes para contratar empregados
para cultivar a terra, era preciso que toda a família trabalhasse junto para garantir seu sustento.
E, mesmo que o homem administrasse o dinheiro ganho no trabalho familiar, a mulher tinha
441
Aurineide Thethê Andrade depoimento citado.
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formas alternativas de sobrevivência e conseguia manter sua identidade sem ter que se anular
por viver numa sociedade em determinados aspectos conservadora e que ainda sustenta certos
preceitos sexistas na diferenciação entre homens e mulheres.
Já para as crianças esses espaços de sociabilização descortinavam-se como um
mundo de encanto e diversão. Doces, bombons expostos em frasqueiras giratórias aguçavam
tanto o paladar quanto a vontade de ir às vendas se deliciar com essas gostosuras. Ou mesmo,
quando seus pais iam às vendas entre seus pedidos estavam guloseimas que elas esperavam
ansiosamente. Para os meninos havia as sinucas, os jogos de baralho e dominó, a venda
acabava se tornando um espaço onde o garoto de certa forma desenvolvia padrões de
comportamento e conduta masculinos.
Desta forma, essas “lojas das roças” assumiam múltiplas funções e significados
para os homens, mulheres e crianças do campo. E, são estas pessoas comuns que ao darem
voz a suas experiências, deixando emergir as memórias de um tempo passado que sobrevive
no presente, possibilitaram a reconstrução de uma memória social criada e forjada na vida
campestre, no trabalho árduo na roça, nos conflitos, nas festas, nas vendas, nas conversas e
experiências compartilhadas, permeadas de sociabilidade. O que possibilitou escrever
aspectos históricos não só de um lugar, como de pessoas que imprimiram neste espaço sua
própria história.
Fontes Orais:
3. Aurineide Thethê Andrade, 47 anos de idade, trabalhava na venda Santa Ana. Reside
na sede do município. Entrevistas em 30/07/2003, 20 minutos 14/04/2007, 8 minutos.
4. José Gonçalves de Oliveira, 84 anos de idade, exerceu a função de vendeiro desde a
segunda metade da década de 40 permanecendo até os anos 80 no povoado do
Tabuleiro. Reside na sede do município de Mutuípe. Entrevista em 19/01/2003, 30
minutos.
5. 3. Laura de Jesus Andrade (1944-2006), conhecida como Caboclinha, faleceu poucos meses
após a entrevista. Trabalhadora rural residia na sede do município. Entrevista 24/10/2006, 30
minutos.
6. 4. Manoel Amado da Silva, 72 anos de idade na ocasião da entrevista, exerceu a função de
vendeiro no Tabuleiro nas décadas de 40, 50 e 60. Reside na sede do município de Mutuípe.
Entrevista em 16/07/2003, 15 minutos.
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7. 5. Pedro Andrade de Souza, 72 anos de idade, pequeno proprietário rural, exerceu a atividade
de vendeiro tanto no Tabuleiro, quanto em outros povoados e cidades. Reside no povoado do
Tabuleiro, município de Mutuípe. Entrevista em 06/07/2003, 45 minutos.
Referências Bibliográficas:
BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, Economia e Capitalismo Séculos XV-XVIII: Os
jogos das trocas. São Paulo: Martins Fontes, v. 2, 1998.
CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis- RJ: Vozes, v.1,
1994.
CHALHOUB Sidney. Trabalho, lar e botequim. São Paulo: Brasiliense, 1986.
MAIA, Sylvia Maria dos Reis. Dependency and survival of Sapeaçu small farmers – Bahia,
Brazil, 1985.(Tese de doutorado). Boston University.
MATOS, Maria Izilda Santos de. Meu lar é o botequim: alcoolismo e masculinidade. 2. ed.
São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2001.
MIGUEL, Maria Lúcia Cerutti. A fotografia como documento: Uma investigação à leitura. In:
Revista Acervo. Rio de Janeiro, v. 6, n. 1-2. Jan-dez. 1993.
PERROT, Michelle. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. 2. ed. Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1992, pp. 167-231.
SANTANA, Charles D’Almeida. Fartura e Ventura camponesa: Trabalho, cotidiano e
migrações. Bahia, 1950 – 1960. São Paulo: Annablume, 1998.
THOMPSON, E. P. Costumes em comum: Estudos sobre a cultura popular tradicional. São
Paulo: Cia das Letras, 1998.
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TOMÉ NUNES/BA: UMA RECONSTITUIÇÃO PELA MEMÓRIA.
Leila Maria Prates Teixeira - UNEB
[email protected]
O presente texto trata de aspectos históricos, sociais e culturais da comunidade negra de Tomé
Nunes/BA. A fonte oral é uma das principais metodologias aplicadas à pesquisa para
conhecer o surgimento desta comunidade e a construção de sobrevivência deste povo ao longo
do tempo. A partir destas entrevistas inicia-se uma busca a materiais impressos para que possa
haver um confrontamento entre as fontes. Estas fontes são analisadas sob a perspectiva
teórico-metodológica da história social. No que concerne às questões culturais e à lógica do
auto-reconhecimento como comunidade quilombola, consideram-se as suas influências
externas (agentes da pastoral) para a análise de depoimentos dos moradores dessa antiga
comunidade do Médio São Francisco.
Palavras-chave: Memória, História Social, Comunidade Quilombola.
Introdução
No Município de Malhada/BA, localizado na Microrregião do Médio São
Francisco à margem direita deste rio, localiza-se a Comunidade de Tomé Nunes, reconhecida
como remanescente de quilombo.442 Segundo descrevem os moradores443, esta comunidade
foi formada há mais de cem anos. Esses relatos resultam de transmissão geracional de
memórias, mas, até então, morador algum soube dizer precisamente a data da formação do
povoado.
Hoje em dia, o morador mais velho da comunidade, o Sr. João Pereira dos Santos,
de 94 anos, passa horas contando histórias (verdadeiros causos) de Tomé Nunes, para quem
estiver interessado em ouvir. De acordo com sua filha dona Maria, de 70 anos de idade, e
alguns netos, não é todos os dias em que ele “está para conversa”. Eles afirmam que há dias
em que ele não se lembra de quase nada, há outros em que a lembrança flui.
442
Em julho de 2004 os moradores locais se reuniram e fizeram um ofício solicitando da Fundação Palmares o
reconhecimento da comunidade como remanescente de quilombo. A certidão de quilombola foi recebida em
dezembro do mesmo ano.
443
Estes moradores são: Joanita Dias de Brito, Raimundo Nonato Nery, Sônia, João Pereira dos Santos, Benedita
Pinto de Jesus, dentre outros. Depoimentos prestados entre os meses de abril e maio, do ano de 2008.
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Provavelmente nos dias em que o Sr. João está interessado em conversar, o fato
presente que ele vive naquele momento o chama a lembrar do passado conforme Bérgson
afirma em sua obra Matéria e Memória (2003), mas é importante salientar que lembrar não é
reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do
passado, porque por mais nítida que nos pareça à lembrança de um fato antigo, ela não é a
mesma imagem que experimentamos na infância, porque nós não somos os mesmos de então
e porque nossa percepção alterou-se e com ela, nossas idéias, nosso juízos de realidade e
valor444.
Conforme o depoimento do Sr. João, a comunidade se originou de uma fazenda de
um único dono que se chamava Tomé Nunes, e foi em sua homenagem que a localidade
recebeu a denominação que se estende até o presente:
Tomé Nunes era o dono desse lugar aqui, pruque essa família de gente não
morava aqui não, morava pra baixo de onde hoje é Guanambi (...). Ali era
no terreiro dele, veio uma enchente (...). Com aquilo ele ficou enjoado e
resorveu vender e agora meu avô soube, veio pra comprar e comprou445.
Este relato da formação da comunidade de Tomé Nunes vem sendo passada de pai
para filho há anos. O Sr. João diz que ouviu esta história de seu avô e que depois foram
confirmadas por seus pais. Portanto a História da comunidade hoje está ligada também ao que
Halbwachs446 chama de memória coletiva, visto que ele não presenciou estes acontecimentos,
estas informações lhe foram anexadas àquele espaço antigo que ele viveu através da memória
dos mais velhos.
Dona Benedita Pinto de Jesus447 confirma esta formação da comunidade, mas ela
apresenta maiores detalhes, ao dizer que a família que veio para esta região estava, segundo
ouviu contar, fugindo de conflitos com fazendeiros na região onde habitavam, sendo esta
localizada nas proximidades do que hoje é reconhecida como Quilombo da Parateca e que a
compra destas terras não teria sido tão simples como relatado pelo Sr. João. Assim, seu relato
aponta que:
444
Veja-se Ecléa Bosi, Memória e Sociedade: lembranças de velhos, 2007, p 53-68
A transcrição da entrevista está feita conforme dita pelo depoente.
446
Maurice Halbwachs. A memória Coletiva, 1990.
447
Antiga moradora da comunidade que foi entrevistada pelo Padre José Evangelista de Souza. Esta entrevista
pode ser encontrada no livro: Mucambo do Rio das Rãs: Um Modelo de Resistência Negra. Distrito Federal:
Documentário, Arte e Movimento, 1994. (Mimeografado) de autorias do Padre Evangelista de Souza e João
Carlos Deschamps de Almeida.
445
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[...] Os pretos para não matar, nem morrer, foram obrigados a mudar do
lugar. (...) Vieram então cinco irmãos: três homens, duas mulheres. Quando
vieram ver o terreno do Tomé Nunes: João, Clara e Reginaldo; pai, filha e
genro. O João morreu afogado, na volta. Sofreu um passamento, dentro do
barco, caiu n´água. Quando ouvimos a pancada, ele já tinha afundado. Só
ficou o chapéu. Os cinco irmãos: Joaquim, José Mendes, Paulo Mendes,
Isabel Dias e Teodora Dias da Conceição. Teve notícias de que esse homem
estava vendendo este lugar; vieram e compraram. 448
Ambos os depoimentos dizem que não houve dificuldades com a compra da terra,
mas o relato de dona Benedita é mais rico em detalhes quando a mesma expõe a dificuldade
que os compradores tiveram quando vieram visitar a terra a ser comprada, certamente
dificuldades estas encontradas devido à precariedade de transportes e o alto volume de água
do Rio São Francisco, isto há mais de cem anos atrás.
Certamente, os fatos lembrados por dona Benedita e omitidos pelo Sr. João não
são considerados tão importantes para ele ou para a pessoa que o contou, “[...] a memória só
retém o especial: nunca o total” (PORTELLA, 1958, p. 186). Considerando essa afirmativa,
recriar um acontecimento passado pode representar uma experiência purificadora ou, até
mesmo, bastante traumatizante, visto que diversas vezes alguns acontecimentos remetem o
indivíduo ou grupo a situações, locais ou sentimentos desagradáveis, e assim, ao invés de
abrir aquela ferida ele prefere-se omitir ou pouco aprofundar determinados fatos, o que
possibilita a constituição de duas ou mais versões do mesmo episódio.
O trabalho de rememoração é um ato de intervenção na desordem das imagens
guardadas. E é também uma tentativa de organizar um tempo sentido e vivido do passado, e
finalmente reencontrado através de uma vontade de lembrar. A elaboração da narrativa sobre
a formação da comunidade, tanto feita pelo Sr. João como por dona Benedita, é realizada de
uma maneira não linear, sem pontos fixos de tempo e espaço, compostas por fragmentos de
memória, e isto fica presente na análise do trecho anteriormente citado, em que dona Benedita
inicia contando o fato da compra, sendo interrompido pelo falecimento de um dos possíveis
compradores, seguido pelo retorno à narrativa inicial. O que caracteriza o ato de comunicar o
lembrado sem organizar previamente e temporalmente as idéias, permitindo encaminhar a
finalização do relato, e possibilitando retornar quando desejado.
448
Relato de Dona Benedita ao Padre Evangelista. A transcrição está feita como no livro: Mucambo do Rio das
Rãs: Um Modelo de Resistência Negra. 1994.
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A memória como alicerce do reconhecimento
A comunidade de Tomé Nunes, atualmente é reconhecida como remanescente de
quilombo pela Fundação Cultural Palmares449. No entanto, ainda aguarda a demarcação e
escrituração da terra.
Durante o processo de auto-reconhecimento da comunidade foram de suma
importância para a aquisição da certidão de quilombolas, a memória dos mais velhos e o
manifestar de suas culturas, supostamente, trazidas desde muito tempo atrás. Ações essas
fundamentadas na afirmativa de que “a história oral pode certamente ser um meio de
transformar tanto o conteúdo quanto a finalidade da história” (THOMPSON, 2002, p. 22),
visto que o depoimento de alguém que vivenciou pode reforçar ou modificar aquilo que já se
sabe.
Para alguns moradores de Tomé Nunes, foi justamente a memória dos mais velhos
e a prática de culturas dos antepassados que ajudaram para que a comunidade se mobilizasse e
solicitasse o reconhecimento. Esse processo de conscientização é apresentado em
depoimentos, como o seguinte:
Eu lembro assim, nessa época chegou o padre lá de Carinhanha, era o Padre
Vanderley, ele já faleceu, e ele chegou falando que aqui na comunidade
tinha esse negócio pra reconhecer, porque a assinatura era tudo igual, a
assinatura. Chegou o ponto de todos saí nas casas perguntando o nome, o
sobrenome e foi aí que eles descobriu que nós era uma raça só e foi através
da cultura que nós era quilombola (...) vários tipos de cultura como o
reisado, o boi-girá450, dança de roda, muitas coisas, muitas culturas, até hoje
ainda tem aquele negócio do pilão e tudo isso foi que o povo usava naquele
tempo e a gente continuou sustentando, faz de conta que eles plantaram,
cresceu e aí veio os fruto, que no caso tamo sendo nós e eles a raíz, esse
povo antigo que muitos já morreram. 451
449
A Fundação Cultural Palmares é uma entidade pública vinculada ao Ministério da Cultura, instituída pela Lei
Federal nº 7.668, de 22.08.88. Sua finalidade esta definida no artigo 1º, da Lei que a instituiu, que diz:
"promover a preservação dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na
formação da sociedade brasileira".
450
Segundo D. Maria, uma das pioneiras das danças na comunidade, o boi girá é uma cantiga de roda cantada
pelos antigos. De acordo com ela hoje em dia ela quase não é mais cantada pelas crianças do lugar.
451
Entrevista feita com a ex-presidenta da Associação dos Moradores de Tomé Nunes, dona Sônia de 30 anos de
idade. A transcrição está feita de acordo a fala da mesma.
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É importante salientar que para o recebimento da certidão de reconhecimento da
comunidade não é necessária muita burocracia, ou um profundo estudo memorialístico,
porque de acordo com a Instrução Normativa nº. 16 de 24 de março de 2004, art. 3º452.
Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, os grupos
étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica
própria, dotados de relações territoriais específicas com presunção de
ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica
sofrida.
Portanto, a comunidade negra que se auto declarar remanescente recebe a certidão
da Fundação Palmares. Mas, no momento da demarcação da terra, que deverá ser feita pelo
INCRA453, em definitivo, o uso da memória será de fundamental importância, porque será a
partir das lembranças das localizações das casas, das oficinas de farinha, dos pastos, dos
pilões, das áreas designadas para culturas agrícolas e práticas folclóricas desenvolvidas pelos
antigos, que predominam até hoje ou que apresentam vestígios, que a população poderá
reivindicar que sua terra seja demarcada corretamente, com o objetivo que seja reduzido as
injustiças e também as disputas ocorridas nas regiões entre quilombolas e fazendeiros,
pretensos proprietários.
Este último fato, das lutas pela terra, pode ser presenciado em trabalhos de
diversos pesquisadores que estudam a região do Médio São Francisco454, como por exemplo,
na dissertação defendida por DUTRA (2007. p. 21) onde ele diz que.
A década de 1980 marcou profundamente a região do Vale do São
Francisco: trabalhadores rurais envolveram-se em vários conflitos contra
ricos fazendeiros que queriam se apossar das terras habitadas por antigos
moradores para a implantação de projetos agropecuários em terras povoadas
ancestralmente. Essas localidades se transformaram em alvos de disputas
entre antigos moradores e ricos fazendeiros. No processo de legalização
dessas áreas estudos, laudos e outros documentos foram sendo elaborados e
usados como argumentos em torno das questões em disputa.
452
Aprovada pela Resolução/CD nº 6/2004 – D.O.U nº 78, de 26.04.2004, seção 1, p-64.
O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) é uma autarquia federal criada pelo Decreto
n. 1.110, de 9 de julho de 1970 com a missão prioritária de realizar a reforma agrária, manter o cadastro nacional
de imóveis rurais e administrar as terras públicas da União. Está implantado em todo o território nacional por
meio de 30 Superintendências Regionais.
454
A Região do Médio São Francisco compreende os territórios de Pirapora (MG) até Remanso (BA), incluindo
as sub-bacias dos afluentes Pilão Arcado a oeste, e do Jacaré a leste e, além dessas, as sub-bacias dos rios
Paracatu, Urucuia, Carinhanha, Corrente, Grande, Verde Grande e Paramirim, situando-se nos estados de Minas
Gerais e Bahia.
Disponível em: <http://www.codevasf.gov.br/osvales/vale-do-sao-francisco/recus/medio-sao-francisco>. Acesso
em: 10/07/2008.
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Assim sendo, a reconstrução da memória, a valorização e a preservação da
identidade das populações tradicionais é algo fundamental no processo de construção da
história de um povo. “A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar
identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos
indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia” (LE GOFF, 1990, p 477). No
caso das comunidades negras, esta busca da construção de uma identidade coletiva tornou-se
mais intensa nos últimos anos, evidenciando o crescente interesse pela auto-afirmação e pela
reconstituição das origens enquanto comunidades remanescentes de quilombos. Seguindo esta
idéia MATTOS (2006, p. 106) nos diz que
A aprovação do artigo sobre os direitos territoriais das comunidades dos
quilombos culminou, assim, em todo um processo de revisão histórica e
mobilização política, que conjugava a afirmação de uma identidade negra
no Brasil à difusão de uma memória da luta dos escravos contra a
escravidão.
Muitos historiadores hoje já reconheceram que a memória fornece importantes
elementos para a composição da identidade, entendendo esta como mais uma conseqüência
das lembranças455. Dentro deste contexto, as experiências vivenciadas, os valores, a forma de
pensar própria das populações tradicionais deve ser valorizada, a fim de que as raízes
identitárias destas comunidades não se percam. Assim, podemos afirmar que a cultura, as
formas de vida, os costumes, transmitidos com o passar do tempo destas comunidades têm
fundamental importância para a formação da identidade. Mesmo que um grupo tenha que
passar por diversas configurações, em diferentes momentos da história, deve haver sempre o
cuidado de não deixar que se percam os traços originais de sua identidade.
As manifestações culturais como afirmação da identidade quilombola
Segundo dona Sônia, ex-presidenta da associação dos moradores, os vários tipos
de cultura ajudaram para a descoberta da identidade quilombola. Dentre as culturas citadas
está a comemoração da festa dos Santos Reis, que de acordo com dona Sônia e outros
moradores de Tomé Nunes, dona Maria456 foi a pioneira desta comemoração no povoado,
iniciando a “folia do Reis”457 segundo depoimento a seguir
455
Alistair Thomson. Os debates sobre memória e história: alguns aspectos internacionais. 2005, p.69.
Dona Maria é filha do Sr. João Pereira dos Santos e hoje está com 70 anos de idade.
457
Folia é como é chamado pela própria moradora, quando esta se refere à Festa de Santo Reis.
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Ó no meu tempo eu era menina, nós saía pra brincar assim isso aqui era
tudo limpo, tudo, tudo, tudo, tudo. Aí nós ia cantar roda, nós ia pular boi
girá, nós ia, nós inventava Reis, não tinha tempo marcado, não tinha dia
marcado da semana, qualquer dia pra nós era dia, só queria ficar assim nas
casa batendo caixa, agora ó a caixa: um prato que nós batia, tum, tum, nesse
prato. Aí nós era na base de 8 ou 9, aí nós começava brincar e falava: ‘bora
cantar Reis?’ ‘bora!’ Aí nós saía com esse prato tan, tan, tan, cantando tudo
errado, toada de Reis nós num tinha, nem nada e nós na roda mesmo nós
fingia que era Reis.458
Dona Maria conta também que sua mãe e seu pai não gostavam que ela ficasse de
porta em porta cantando “Reis”, mas que depois sua família acabou aceitando, visto que nada
mais podia fazer para mudar a situação.
Finada Antônia, ela morava bem ali assim nesse pezão de Juazeiro que era
pequenininho ficava de junto da casa dela. Aí finada Antônia chamou nós e
falou: “Oia ocês tem boa vontade eu vou ajudar ocês. Cantar Reis num é
assim não, eu vou ensinar” Eu tinha 7 anos459.
A mesma dona Maria também confirma que, com o passar dos anos, até a sua mãe
passou a cantar Reis com ela e a lhe ensinar as novas toadas e que hoje em dia todo 1º de
janeiro eles iniciam a jornada festiva de porta em porta. E mais, a mesma senhora ainda
afirma que as pessoas que lhe acompanham na atualidade são praticamente novatas e novatos,
tendo aprendido a “folia” com ela, visto que praticamente todos os de sua geração, que
cantavam com ela antigamente, já faleceram.
A dança de Reis da comunidade de Tomé Nunes hoje já é conhecida
nacionalmente, isso devido a equipe da TV Brasil ter filmado a festa e exibido por diversas
vezes em sua programação. Além disso, os membros da comunidade sempre recebem
convites para se apresentar nas festas regionais, como na sede dos municípios de Malhada e
cidades circunvizinhas. É sabido também que este interesse “externo” pelas manifestações
culturais de Tomé Nunes passou a fortalecer-se após o reconhecimento oficial do povoado
como quilombolas
Retomando a análise da memória como objeto de estudo, nas entrevistas feitas
com moradores de Tomé Nunes é possível perceber a importância que o espaço tem para o
processo de rememoração, e isso ficou claro nos relatos de D Maria, expostos acima. Situação
esta apresentada por MALUF (1995) ao comenta que o espaço deve ser sempre
problematizado pelo historiador, visto que ele continuamente é lembrado pelo entrevistado.
458
459
Entrevista feita com Dona Maria no dia 18 de abril de 2008.
Idem.
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Idéia reforçada por BOSI (2007) ao disponibilizar um importante segmento explicando a
necessidade que o entrevistado tem de comparar os espaços para a memória se refazer,
reconhecido pela autora que “[...] a história que ouvimos, refere-se do início ao fim, a velhos
lugares, inseparáveis dos eventos neles ocorridos”. (BOSI, 2007, p. 447)
Considerações Preliminares
A população de Tomé Nunes aguarda ansiosamente a vinda dos técnicos do
INCRA para que a demarcação das terras aconteça. Segundo dona Joanita460 em março deste
ano houve um encontro das mulheres líderes negras, em Salvador, e que ficou acertado que
este ano ainda Tomé Nunes teria sua terra definida. Mas sabe-se da demora do INCRA para
cumprir com as suas obrigações. Este órgão alega, em geral, escassez de funcionários.
Decerto por algum sentimento de impotência, moradores locais revelam relativo consenso de
que não lhes restam outra alternativa senão aguardar.
Quanto as questões referentes à memória é possível perceber certa conformidade
entre os relatos obtidos a partir das entrevistas, tanto dos mais velhos quanto dos mais jovens
moradores, apenas modificando-se o grau de riqueza na opção do detalhamento dos
acontecimentos, como também ao tratarem das manifestações culturais.
A partir das visitas realizadas à comunidade e das entrevistas coletadas com alguns
de seus moradores, é possível caracterizar um discurso uníssono e uma união entre eles.
Representado e demonstrado pelo interesse na resolução dos impasses para a demarcação das
terras e pelo reconhecimento cultural, desde os mais antigos moradores até os mais jovens.
Referências
BERGSON, Henri. Matéria e Memória. 2a ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
BOSI, Eclea. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. 3ª ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 2007.
DUTRA, Nivaldo Osvaldo. Liberdade é reconhecer que estamos no que é nosso:
comunidades negras do Rio das Rãs e da Brasileira – BA (1982-2004). São Paulo: PUC,
2007.
460
Moradora e agente de saúde municipal que atende as famílias da comunidade de Tomé Nunes
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HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Vértice, 1990
LE GOFF. História e Memória. 7ª ed. São Paulo: Editora da Unicamp, 2003.
MALUF, Marina. Ruídos da Memória. São Paulo: Siciliano, 1995
PORTELLA, Eduardo. Problemática do Memorialismo. in Dimensões I. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1958.
SOUZA, Padre Evangelista de e ALMEIDA, João Carlos Deschamps de. Mucambo do Rio
das Rãs: um modelo de resistência Negra. Distrito Federal: Documentário, Arte e
Movimento. 1994. (Mimeografado)
THOMPSON, Paul. A Voz do Passado. 3ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
THOMSON, Alistair. FRISCH, Michael. HAMILTON, Paula. Os debates sobre memória e
história: alguns aspectos internacionais. IN: Usos e Abusos da História Oral. 7ª ed. Rio de
Janeiro: Editora FVG, 2005.
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O CANGACEIRO E SUAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS NO CINEMA
BRASILEIRO: (1950 -1970)
Caroline Lima Santos - UNEB
[email protected]
A proposta do artigo é discutir as possibilidades da relação cinema e história, pensando o
filme como documento. O trabalho foi resultado do projeto de pesquisa sobre as
representações sociais do cangaço, fenômeno social ocorrido entre os fins do século XIX e
1940 no sertão nordestino, embutidos nas obras cinematográficas de Lima Barreto “O
Cangaceiro” de 1953 e na de Glauber Rocha “Deus e o Diabo na Terra do Sol” de 1964.
Numa perspectiva histórica avaliaremos essas obras, o contexto em que foram produzidas e as
formas de representações dadas ao cangaço por estes cineastas.
Palavras-chave: Cangaço, Representações, Cinema, História.
Introdução:
Considerando que desde 1895, com os primeiros passos dados pelo cinema e das
primeiras filmagens feitas por Louis e Auguste Lumiére461, verificou-se uma aproximação
cada vez maior do cinema e história, entretanto o filme enquanto documento foi inserido na
produção historiográfica apenas em meados do século XX. Tendo em vista que a sétima arte
ganhou certo valor mercadológico e de entretenimento, percebeu-se também que este poderia
refletir aspectos de uma sociedade, transformações políticas econômicas e, até mesmo,
ideológicas e filosóficas.
A apreciação do cinema como difusor das representações sociais, possibilitará a
compreensão da infra-estrutura deste meio de comunicação e através das quais ele atendia às
ideologias de um determinado contexto, nesse caso as concepções de mundo de uma classe
dirigente, a qual se propõe difundir-se por toda a sociedade,462 revelando um imaginário
urbano e seus vínculos a determinados grupos sociais.
461
Cf. NOVA, Cristiane. “O cinema e o conhecimento da História”. In: O olho da História, Salvador: UFBA,
2000. nª 03.
462
Conceito de ideologia usado por Antonio Gramsci. Cf.: PORTELLI, Hugues. Gramsci e o bloco Histórico;
tradução de Angelina Peralva. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
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Nesse sentido nosso objeto de estudo são as representações sociais463 do cangaço
reproduzidos no cinema brasileiro, entre as décadas de 1950 a 1970. A proposta seria abordar
como uma sociedade urbana, posterior ao cangaço, o enxergou e as representações atribuídas
a ele a partir do imaginário urbano,464 tendo como fontes principais às películas “O
Cangaceiro” (1953) e “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964). Essa filmografia somada às
outras fontes documentais, pretende apontar as formas de representações imputadas ao
cangaço nesse período.
Temos como objetivo compreender as representações sociais atribuídas aos
cangaceiros do Nordeste brasileiro, num contexto de desenvolvimento do universo cultural do
país, precisamente nas décadas de 1950 a 1970. Diante disso, possivelmente, teremos como
resultado a identificação de possíveis estereótipos dado ao Cangaço nesses filmes, observando
o contexto que o tema -Cangaço- foi inserido pelos cineastas da Vera Cruz e do Cinema
Novo, analisando as faces desse fenômeno social através do olhar cinematográfico.
No cinema o cangaço foi reproduzido, em sua maioria, a partir do conceito de
banditismo social. Nesse sentido a pesquisa se propõe observar as obras cinematográficas
sobre o esse tema, a partir do que se entende por banditismo social a partir de autores como
Hobsbawm465 apud Dória466. Segundo os autores o movimento banditismo social oscila entre
um fenômeno, o universal e forma de reação popular a um determinado sistema político e
econômico:
O banditismo social em geral, membro de uma sociedade rural, e por razões
várias, encarado como proscrito ou criminoso pelo Estado e pelos grandes
proprietários. Apesar disso, continua a fazer parte da sociedade camponesa
de que é originário e é considerado como herói por sua gente, seja ele um
‘justiceiro’, um ‘vingador’, ou alguém que ‘rouba aos ricos’467.
Entretanto o conceito de cangaço usado para pensarmos este e suas representações
nas películas não pauta-se apenas na perspectiva do banditismo social. Estudaremos aqui um
fenômeno social, que ocorreu nos fins do século XIX a 1940, segundo a socióloga Maria
463
[...] tem como objeto principal identificar a forma como em diferentes lugares e momentos uma realidade
social é construída, pensada, dada a ler. Conceito de representações sociais usada na pesquisa é a definida por
Roger Chartier. In: CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre praticas e representações. Trad. Maria
Manuela Galhardo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.
464
Ilusório, fantástico; fazer idéia sobre algo que não conhece. In: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda.
Novo Aurélio Século XXI: O dicionário da língua portuguesa. 3ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
Pp. 1077. No caso do urbano como a sociedade da cidade e de cotidiano urbano imagina, fantasiam o mundo
rural e como pode representá-lo.
465
HOBSBAWM, Eric J. Bandidos. São Paulo: Forence, 1972.
466
DÓRIA, Carlos Alberto. O cangaço. 2ª, São Paulo: Brasiliense, 1981.
467
Idem. Ibdem.
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Isaura P. de Queiroz,
468
homens que viviam fortemente armados na região da caatinga do
sertão nordestino.
Nesse sentido iremos observar como essas relações e as ações do cangaço foram
cinematografas, analisando os possíveis estereótipos e as representações de sertão que nos
foram apresentados. Estudos como esses nos a compreensão da relação cinema e história e de
como um grupo intelectual urbano se apropriou de temas pertencentes ao mundo rural para
reproduzi-los cinematograficamente.
Um Cinema Nacional com enfoque no regional
A década de 1950 foi um período marcado por um conturbado jogo de interesses
políticos, reflexo de anteriores golpes e contragolpes e pela morte de Vargas.469 Esse
momento histórico para o Brasil, foi sinônimo de modernização e industrialização. Com o fim
da Segunda Guerra Mundial, em 1945, alterou-se significativamente o cenário internacional,
com a divisão do mundo em dois blocos político-militares liderados pelas duas superpotências
emergentes: Estados Unidos (EUA) e a União Soviética (URSS).
No Brasil, essas transformações foram se consolidando ao longo da década de
1950, e alteraram o consumo e o comportamento de parte da população que habitava os
grandes centros urbanos. A paisagem urbana também se modernizava, com a construção de
edifícios e casas de formas mais livres, mais funcionais e menos adornadas, acompanhadas
por uma decoração de interiores mais despojada, segundo os princípios da arquitetura e do
mobiliário moderno.
Através da propaganda veiculada pela imprensa escrita, é possível avaliar a
mudança nos hábitos de uma sociedade em processo de modernização: produtos fabricados
com materiais plásticos e/ou fibras sintéticas tornavam-se mais práticos e mais acessíveis.
Consolidava-se a chamada sociedade urbano-industrial, sustentada por uma política
desenvolvimentista que se aprofundaria ao longo da década, e com ela um novo estilo de vida,
difundido pelas revistas, pelo cinema, sobretudo norte-americano, e pela televisão introduzida
no país em 1950.
Essa bipolaridade mundial também representou uma disputa ideológica entre
Soviéticos e Norte-americanos, no qual o cinema transpareceu o melhor veiculo de
468
QUEIROZ, Maria Isaura P. de. História do Cangaço. São Paulo: Global, 1986, p.15.
CARONE, Edgard. A Quarta República (1945 – 1964). São Paulo: DIFEL, 1980, pp. 03 – 33. (corpo e alma
do Brasil)
469
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comunicação. Entre 1950 e 1970 houve grande inserção do cinema norte-americano no Brasil,
tornado-se um modelo a ser copiado, tanto na estética quanto o modelo de vida, moda,
político e de modernização, fazer cinema significava industrialização e desenvolvimento para
o país e um bom negocio para os investidores.
Nesse contexto pós-guerra o país seguia a tendência da “boa vida americana”,
inspirada no cinema hollywoodiano470, não tardando o cinema paulistano apareceu no cenário
cinematográfico nacional e algumas companhias de peso foram fundadas no Estado. A
Companhia Vera Cruz, a Maristela e a Multifilmes surgem num momento em que o cinema
brasileiro estava voltado para as chanchadas cariocas, o que conferiu ao cinema paulista um
tom de renascimento.
Nesse período foram criadas outras instituições culturais, como o Museu de Arte
Moderna, o Teatro Brasileiro de Comédia e depois fundaram a Cia. Cinematográfica Vera
Cruz em 4 de Novembro de 1949. Nos vinte primeiros anos do cinema falado, a produção
paulista foi quase inexistente, enquanto que a carioca se consolidou e prosperou as famosas
chanchadas da Atlântida.
Iniciou-se o processo de grandes produções cinematográficas no Brasil, a primeira
delas da Vera Cruz “O Cangaceiro” de Lima Barreto abriu as portas para um novo estilo de
filmes brasileiros, o estilo Nordestern.471 Essas produções demonstraram que também
tínhamos o nosso bang bang, filmes que seguiram a tendência dessa modalidade, a do
vaqueiro norte americano, defensor da lei e da ordem. Segundo Tolentino472 esta foi à forma
que retrataram o cangaço no filme de Lima Barreto (1953).
O nosso Nordestern inseriu o Brasil nas produções cinematográficas do bang
bang, além de aventura, romance e ação os filmes sobre o cangaço trouxeram, certamente,
tipos e estereótipos, ou seja, o sertanejo que tendia a ser um bandido social era mestiço e
selvagem, o brasileiro original. Nosso “vaqueiro” estereotipado atendendo aos interesses de
uma burguesia paulista e propagava um modelo de cinema que refletia hegemonicamente os
interesses dos EUA.
Avaliando os filmes do ciclo do cangaço como “O Cangaceiro” teremos diversas
interpretações sobre esse sujeito histórico, considerando que a transformação de personagens
470
Hollywood centro industrial cinematográfico Norte Americano.
Criação do pesquisador potiguar-carioca Salvyano Cavalcanti de Paiva (1923 – 2000), tal neologismo fora
utilizado para identificar filmes com a temática rural e principalmente sobre o Cangaço feitos no Brasil. A
película O Cangaceiro (1953), certamente, atende a esse estilo.
472
TOLENTINO, Célia Aparecida Ferreira . O Rural no cinema brasileiro. 1ª ed. São Paulo: Editora da UNESP,
2001.
471
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como Lampião e Corisco em heróis ou bandidos no imaginário urbano e rural, possivelmente,
corresponde à coragem destes no enfrentamento com a polícia.
O filme narra a história de um bando de cangaceiros que semeia o terror pelo
sertão nordestino. Em seu comando está o temido Capitão Galdino Ferreira (Milton Ribeiro) e
sua companheira Maria Clódia (Vanja Orico). Eis uma nítida referência ao famoso casal de
cangaceiros Virgulino Ferreira e Maria Bonita. O filme mostra o conflito entre dois
cangaceiros por conta de uma professora raptada a quem um deles pretende libertar por amor,
tornou-se um clássico. 473
Cineastas como Barreto levaram os personagens do sertão nordestino ate o
imaginário urbano, o nosso bang bang ganhou o mundo e o Brasil produziu inúmeros filmes
do estilo nordestern, contudo isso foi contraposto na Obra de Glauber Rocha em 1963 com o
seu “Deus e o Diabo na Terra do Sol”.
A película de Glauber Rocha, e o seu Cinema Novo, nos trazem uma linguagem
cinematográfica diferente e complexa. Aqui o cangaço foi apresentado como dois caminhos, o
do bem e o do mal, no qual o cangaço, possivelmente, apareceu como uma opção àquela
realidade e uma reação. Os personagens centrais do filme trabalham com o Messianismo e
com o cangaço numa perspectiva de banditismo social, os sertanejos que optaram pelo
cangaço e pelo messianismo serão perseguidos pela igreja e pelos latifundiários, já que ambos
ameaçaram a hegemonia474 dos coronéis e da igreja no sertão nordestino.
O argumento de “Deus e o Diabo na Terra do Sol” é uma síntese de fatos e
personagens históricos concretos como: o cangaço e o mandonismo local dos coronéis no
Nordeste; perpassando o beatismo ou misticismo de base milenarista; a literatura de Cordel; e
personagens que representaram Lampião e Corisco, Euclides da Cunha e Guimarães Rosa,
Antônio Conselheiro e Antônio das Mortes (jagunço ou assassino de encomenda de Vitória da
Conquista).
O Cinema novista de Rocha e a tendência nordestern de Barreto inseriu um
mundo regional no cinema brasileiro, temáticas rurais invadiram as telas brasileiras levando
personagens como Lampião, Corisco e Antonio das Mortes ao imaginário popular.
Diante
desses personagens que falam de um mundo arcaico e abandonado pelo Estado, caracterizado
pela seca e miséria podemos identificar algumas representações sociais atribuídas ao cangaço
no cinema brasileiro, analisando as produções da Vera Cruz e do Cinema Novo. Além disso,
473
Fonte: Diário do Grande ABC (www.dgabc.com.br)
Relativo à hegemonia; para maiores informações: PORTELLI, Hugues. Gramsci e o bloco Histórico; tradução
de Angelina Peralva. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
474
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observamos características do bang bang americanizado, do sertanejo como sumo da
brasilidade, uma raça mestiça menos evoluída. Esses filmes, certamente, representam o
cangaceiro como um produto autêntico brasileiro, o qual trás como possibilidade, a discussão
de temas como a identidade nacional fundamentada no regionalismo.
As duas faces do Cangaço
O Cangaço representou nosso bang bang em Cannes e uma nova estética de
nordeste no Cinema Novo, contudo alguns autores (as) da área de História e Comunicação
contribuíram nesse debate, a exemplo da professora Célia Tolentino. Segundo a autora
Tolentino475 a obra do cineasta Lima Barreto em sua essência dialoga de forma maniqueísta
através de uma luta entre o bem e o mal. Valores como o progresso, as leis, a ordem são vistos
como algo bom e civilizado, enquanto a violência é caracterizada como a desordem considerada característica do mundo rural, que deve ser superada.
Já o autor Ismael Xavier faz a seguinte proposição sobre a película:
Letra branca em tela preta, a legenda situa no passado, e definitivamente no
passado, o universo de Teodoro e Galdino, personagens principais da
aventura. Antes de tudo, o cangaceiro é definido como personagem arcaico e
a estória já se anuncia como evocação de algo distante do qual estamos
irremediavelmente separados. Para se introduzir, o filme prefere à fórmula
‘era uma vez...’, mais confessadamente comprometida com a fantasia, a
fórmula do ‘quando havia’, onde o cuidado de confessar a ‘imprecisão’ da
época sela a preocupação em acentuar que um dado de realidade inspira o
filme. Produto da invenção, ele busca autenticar-se através dessa referência,
assumindo-se enquanto retrato de um tipo real humano, o cangaceiro, tal
como sugere o título. (...) O filme instala-se no nível do verossímil e não no
da veracidade histórica.476
Possivelmente Barreto não tinha compromisso com a história do Cangaço, o
objetivo do cineasta seria contar a história desse movimento com o intuito desta aguçar nosso
imaginário e enxergar nesses homens e mulheres bandidos/as ou heróis/ heroínas. Contudo,
devemos observar as formas de construção da obra e quem a construiu para compreendermos
as representações sociais atribuídas aos cangaceiros do Nordeste brasileiro, num contexto de
desenvolvimento do universo cultural brasileiro, precisamente na década de 1950.
475
476
TOLENTINO, 2001.
XAVIER, Ismail. Sertão mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo: Editora Brasiliense. 1983.
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Além dessas exposições sobre a obra de Barreto (1953), outro fator preponderante
foi a película de Rocha (1963), este explica sua criação da seguinte forma: “o que quis fazer
foi uma fábula com uma lição de moral. Dentro da fábula, tudo é permitido, porque aquilo
está dentro do Nordeste. A cultura do Nordeste é aquilo, enrolado”.477
A película de Glauber Rocha, que pertenceu ao movimento do Cinema Novo478,
contrapõe o filme de Barreto (1953), nele o cangaço foi representado como alternativa para o
sertanejo. De acordo com o cineasta o homem rural do sertão não tinha direito e a justiça
funcionava apenas a favor dos coronéis. Cada personagem do filme trás um tipo de
representação e neles se reflete a visão de uma sociedade sob um mundo tido como selvagem,
bárbaro e miserável. Esse ponto de vista também tinha um cunho ideológico segundo Silva
Jr.,
Além de ser um movimento artístico/cultural, o Cinema Novo era a
expressão de militância de um grupo de intelectuais interessados em atuar
politicamente. Nesse sentido, a câmera torna-se um instrumento que serve
para perscrutar a realidade social e para propor soluções e que, em última
instância, tinha como meta estimular um processo revolucionário. 479
Analisando o artigo do autor Silva Jr. entendemos que, ao contrário do cinema
produzido pela Vera Cruz, a película “Deus e o Diabo na Terra do Sol” trouxe uma discussão
mais politizada, reflexo da conjuntura sócio – política da década de 1960/70. O filme
representaria no ciclo do cangaço um diferencial, pois evidenciaria os problemas do sertão, a
seca e o banditismo social como uma contraposição à República Oligárquica da época
contemporânea ao Cangaço, demonstrando traços militantes dos produtores e cineastas
pertencentes ao Movimento do Cinema Novo.
Tendo em vista que as relações entre a historiografia e o cinema sejam recentes,
alcançando seu espaço na discussão historiográfica efetivamente a partir do movimento dos
Annales, o uso da imagem e do audiovisual tornou-se uma das principais referências de
conhecimento histórico no mundo contemporâneo. De acordo com Nova480, desde o
surgimento do cinema, em 1895, ele está ligado à história da humanidade, porém, por falta de
477
LEAL, Wills. O Nordeste no Cinema. João Pessoa: Ed. Universitária/ FUNAPE/UFPb, 1982, p. 39.
Movimento de jovens frustrados com a falência das grandes companhias cinematográficas paulistas
resolveram lutar por um cinema com mais realidade, mais conteúdo e menor custo. Na primeira fase desse
movimento, trabalharam com temas voltados ao nordeste e os problemas que a região abrigava.
479
SILVA Jr. Humberto Alves. Glauber Rocha: arte, cultura e política. In: O olho da História, Revista n° 09.
Bahia, dezembro de 2006.
480
NOVA, Cristiane. “O cinema e o conhecimento da História”. In: O olho da História, Salvador: UFBA, 2000.
nª 03.
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embasamento teórico, não foi devidamente explorado.
Contudo para entendermos as formas que foram reproduzidas o cangaço, torna-se
importante atentarmos para as possibilidades do filme como documento histórico, e a relação
cinema – história. Nessa perspectiva consideramos inicialmente o que foi a criação da Vera
Cruz para a década de 1950/60.
Segundo Leite as obras reproduzidas e exibidas pela Vera Cruz, não respondia
apenas a intensidade de atividades culturais na cidade de São Paulo, a empresa tinha como
meta satisfazer a elite paulistana que a dirigia, o cinema brasileiro não poderia mais
cinematografar um país mulato, festivo e atrasado, essa estética não correspondia as
aspirações dessa elite, estaria na hora de inovar. A Vera Cruz de acordo com o autor seria um
contraponto as produções cinematográficas da época.
Essas análises colocadas pelos autores e autoras citados (as) nos mostram o
cinema tanto como instrumento de ideologias, tanto como documento, e o cangaço tanto como
reação ao sistema excludente, como uma criação das classes dominantes para alimentar a
mentalidade regionalista conservadora. Borges481 nos faz refletir sobre o uso do cinema como
documento, porém nos adverte que, para isso ser possível, o (a) historiador (a) deve ter
domínio das representações que caracterizam a linguagem cinematográfica.
Diante disso observemos uma pesquisa recente, da historiadora francesa da arte,
Élise Jasmim482, faz uma avaliação do cangaço e de seus líderes Lampião e Corisco tendo
como fontes a literatura de Cordel e o Cinema Novo, que os transformaram em heróis.
Jasmim percebe na imagem uma arma utilizada pelos bandidos sociais. Segundo a autora,
Lampião com os registros fotográficos e filmados mostra coesão do grupo e lança ao mundo,
principalmente aos seus perseguidores, imagens de dignidade e uma postura de desafio.
Neste parâmetro de ‘clandestinidade exibida’483 dos cangaceiros, podemos
observar uma espécie de gênese da manipulação da imagem, por parte dos grupos –
considerados criminosos. Da mesma forma que eles usavam este meio de comunicação para
desafiar seus adversários - e mostrar que a vida levada por eles e elas tinha um sentido na qual
o cangaço seria uma alternativa - as fotos das cabeças cortadas dos cangaceiros, na ótica desta
iconografia, representavam uma resposta violenta às provocações de Lampião.
481
BORGES, Eduardo José Santos. Vida e Obra do Ciclo baiano de Cinema (1959-1965). Dissertação de
mestrado em História UFBA. Pp. 11.
482
JASMIM, Elise; Le nordeste du brésil, une région malade du cangaço -Lampião: entrave a un projet de nation
unie et civilisée; Francês; Português; Editora Universitária UFPE; Recife.BRASIL; 1; 28.
483
Idem ibdem.
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Acompanhando os raciocínios de Jasmim e de Nova484 todo o filme é um
documento. Logo, as imagens feitas nos filmes “O Cangaceiro” e “Deus e o Diabo na Terra
do Sol” podem explanar um mesmo tema, porém evidencia representações sociais diferentes,
possivelmente, as que correspondiam ao do seu tempo. Temos então a fotografia e o cinema
como instrumento de intermediação entre o cangaço e seus inimigos, de acordo com Jasmim
tal mecanismo nos faz ver uma singularidade em Lampião, pois cuidava da sua aparência e a
do grupo, fazendo encenação em torno de sua pessoa e atividade. Neste sentido, sua análise
através da imagem e do cinema, numa perspectiva histórica, é possível.
Referências Bibliográficas:
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ALBUQUERQUE Jr. Durval Muniz de. A Invenção do Nordeste e Outras artes. 3a. ed. São
Paulo\Recife: Cortez\Massangana, 2006.
CARDOSO, Ciro Flamarion, Mauad, Ana Maria. “História e Imagem: os Exemplos da
Fotografia e do Cinema”. In: CARDOSO, Ciro Flamarion, VAINFAS, Ronaldo (org.).
Domínios da História. Ensaios de teoria e Metodologia. Rio de Janeiro: Elsevier, 1997 –
15ª impressão.
CARONE, Edgard. A Quarta República (1945 – 1964). São Paulo: DIFEL, 1980, pp. 03 –
33. (corpo e alma do Brasil)
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produtora(s):
Companhia
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Cinematográfica
Vera
Cruz
S.A.;
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Financiamento/Patrocínio: Banespa - Banco do Estado de São Paulo S.A.;Gerente de
produção: Silva, Cid Leite da; Companhia(s) distribuidora(s): Columbia Pictures; Roteirista:
Barreto, Lima; Direção: Barreto, Lima.
Deus e o Diabo na Terra do Sol
Ficção, longa-metragem, 35mm, preto e branco. Rio de Janeiro, 1964, 3.400 metros,125
minutos; Companhia produtora: Copacabana Filmes; Distribuição: Copacabana Filmes;
Lançamento: 10 de julho de 1964, Rio de Janeiro (Caruso, Bruni-Flamengo e Ópera);
Produtor: Luiz Augusto Mendes; Produtores associados: Jarbas Barbosa, Glauber Rocha;
Diretor de produção: Agnaldo Azevedo; Diretor: Glauber Rocha; Assistentes de direção:
Paulo Gil Soares, Walter Lima.Jr.; Argumentista: Glauber Rocha; Roteiristas: Glauber Rocha,
Walter Lima Jr.; Diálogos: Glauber Rocha, Paulo Gil Soares.
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HISTÓRIA SOCIAL DO USO DA INTERNET: REFLEXÕES SOBRE A
FORMAÇÃO
SOCIOCULTURAL
DE
JOVENS
EM
FASE
DE
ESCOLARIZAÇÃO
Vinícius Silva Santos
Universidade do Estado da Bahia
[email protected]
Antônio Vital Menezes de Souza
Universidade Federal de Sergipe
[email protected]
O uso da internet como dispositivo sociotécnico capaz de imprimir nas novas gerações,
maneiras diferenciadas de convivência, relacionamento, pertencimento social e aprendizagem
cultural vem constituindo novos espaços de debates sobre a história social das mídias
contemporâneas. O surgimento de uma nova cultura juvenil baseada nas interações sociais,
mediadas pelas infovias, tem gerado inquietações a respeito do registro historiográfico na
investigação em ciências sociais a respeito de elementos do cotidiano. Esta pesquisa tem
como objetivo identificar os processos de apropriação e uso da Internet como dispositivo de
formação cultural, utilizados por jovens sergipanos com idade entre 12 e 22 anos, em fase de
escolarização, de modo a documentar e analisar interesses comuns, concepções, conceitos e
idéias partilhadas pelo grupo a respeito do uso da internet como dispositivo de formação
sociocultural. Trata-se de uma pesquisa de base exploratória, ligada às abordagens qualitativas
da pesquisa. Briggs e Burke (2006), Mcluhan (1999), Castells (2002), Costa (2002), Cardoso
(2007), Lèvy (1998; 1999), De Certeau (1996), são os principais referências utilizadas. Por
fim, essa pesquisa explora a produção da história social da mídia no estado de Sergipe.
Palavras-chave: História Social da Mídia, Internet, Cultura Juvenil
INTRODUÇÃO
A invenção da internet tornou-se um grande marco na construção cultural da vida
humana. O surgimento da rede mundial de computadores é visto como um fenômeno
importante para compreender as mudanças ocorridas na formação sócio-cultural dos atores
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sociais na contemporaneidade. Desde então, as interações sociais cotidianas vêm despertando
o interesse de cientistas sociais, educadores e filósofos de modo a tornar urgente a produção
de pesquisas cada vez mais direcionadas aos aspectos menores da vida social.
Nessa perspectiva, a produção de análises microssociológicas das interações
partilhadas entre diferentes atores sociais permite a aproximação progressiva de pesquisadores
às novas formas de sociabilidade, agora, demarcadas por uma esfera tipicamente virtual. A
troca simbólica e os diferentes feixes de sentidos de agrupamentos sociais dão à formação
antropológica uma adjetivação específica: formação antropológica midiática. Tais processos
se instauram como resultado de um acabamento sociotécnico vivido no cotidiano das pessoas
que influencia a explosão de formas de ser, habitar, conviver, e, sobretudo, formas de
relacionamentos sociais na cena pública das instituições. Porquanto, faz-se necessário situar
as origens da construção desse aparato tecnológico, através da discussão sobre o uso social da
internet, avaliado por muitos pesquisadores como o grande acontecimento ocorrido nos
últimos cinqüenta anos do século XX (BURKE, 2006).
O uso da internet como dispositivo sociotécnico capaz de imprimir nas novas
gerações, maneiras diferenciadas de convivência, relacionamento, pertencimento social e
aprendizagem cultural, vem constituindo novos espaços de debates sobre a história social das
mídias. Nesse cenário, o surgimento de uma nova cultura juvenil, baseada nas interações
sociais mediadas pelas infovias, tem gerado inquietações a respeito do registro historiográfico
na investigação em ciências sociais a respeito de elementos do cotidiano.
Este artigo tem como objetivo apresentar elementos conceituais e metodológicos,
relacionados a uma pesquisa em fase de desenvolvimento, intitulada História Social do Uso
da Internet na Microrregião de Itabaiana que tem como objetivo identificar os processos de
apropriação e uso da Internet como dispositivo de formação cultural, utilizados por jovens
sergipanos com idade entre 12 e 22 anos, de modo a documentar e analisar interesses comuns,
concepções, conceitos e idéias partilhadas pelo grupo a respeito do uso da internet como
dispositivo de formação sociocultural. Trata-se de uma pesquisa de base exploratória, ligada
às abordagens qualitativas da pesquisa, que será mais bem descrita posteriormente.
Uso Social da Internet e Cultura Midiática
A internet foi desenvolvida entre 1968 e 1969 pela ARPA – Administração dos
Projetos de Pesquisa Avançada do Departamento de Defesa dos Estados Unidos. Durante a
Guerra Fria através dos militares surge a primeira rede de transmissão de dados entre
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computadores, denominada de ARPANET - Advanced Research Projects Agency. Criada pela
ARPA, a ARPANET permitia a circulação de informações de forma segura. Nesse contexto, a
criação da internet teve sua origem através do desenvolvimento da fisica nos espaços da
produção científco-acadêmica e, sobretudo, pela necessidade do governo americano em
assegurar políticas de defesa e segurança de informações durante o período de guerra. Assim
sendo, a internet surge como rede limitada de compartilhamento de informações entre o
governo e as universidades visando a segurança nacional. Entretanto, encontramos nessa
relação o aparecimento de sistemas cada vez mais complexos que permitiam o
compartilhamento de informações entre pesquisadores de universidades. Cabe destacar que o
envio de informações codificadas, denominado mais tarde de transferencias de pacotes, já
fazia parte da construção do projeto de internet antes mesmo da sua utilização pelas
universidades.
Todavia, o crescimento exponencial da internet fora das universidades dependia
do reconhecimento de sua importancia comercial e valor social que previa mudanças no
campo da comunicação. Burke (2006) destaca que o crescimento acelerado da rede mundial
de computadores acaba por mascarar alguns acontencimentos que são importantes para
compreender a construção histórica desse aparato tecnológico. Segundo Burke (idem: p. 303)
um dos principais acontecimentos ocorreu no ano de 1996 quando se reuniram o presidente
dos Estados Unidos, na época Bill Clinton e o vice-presidente Al Gore, além de outras
autoridades, para inaugurar a ligação de telefones fixos das salas de aula da Califórnia, através
da internet. Na oportunidade o presidente da Estados Unidos denominou a internet como o
quadro negro do futuro. Com efeito, somente na década de 90, mais precisamente entre 1993
e 1994, a internet deixa de ser um aparato utilizado para pesquisas nas universidades e passa a
ser utilizada por usuários de diferentes matizes sociais. Esse modelo de comunição é tido
como marco inicial para o maior fenômeno midático do século. É a partir de uma maior
divulgação pública que a rede coletiva ganhou adesão de usuários, empresas e intelectuais,
chamada desde então de Word Wide Web.
Esse modelo de troca de informações fez surgir novas formas de interação entre o
homem e a máquina(CASTELLS, 2002). Emerge, a partir dessa tendência, a necessidade de
pensar um cotidiano demarcado pela cultura tecnológica, mediante a qual a relação homemmáquina deve ser pautada no movimento de criação e transformação, extrapolando, assim, o
caráter meramente técnico atribuído à internet. Costa (2003) estabelece algumas análises
sobre essa nova forma de interação social. Trata-se da apresentação de mudanças ocorridas no
campo da comunicação, na qual o ambiente virtual e o processo de interatividade, ocorridos
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através da internet, devem ser seriamente analisados. De pronto, ao se tratar dessa nova
cultura digital, faz-se necessário observar as mudanças de comportamento humano,
caracterizadas pela interação com os meios tecnológicos, ou em outras palavras, aquilo que
podemos denominar de tecnocultura.
A tecnocultura pode ser definida como fenômeno mediador entre o homem e o
mundo social. Essa mediação dá-se através dos artefatos sociotécnicos de forte expressão
cultural que altera características fundamentais das interações sociais humanas em relação
ao tempo, ao espaço e, conseqüentemente, afeta a produção da subjetividade e a percepção
da experiência cultural vivida em tais espaços (COSTA 2003).
Essa nova cultura tecnológica é denominada por Lévy (2000) de cibercultura e
tem como pressuposto uma mudança do modo de vida humano, caracterizada, sobretudo, pela
influência da cultura digital. É importante destacar que o termo cibercultura é relacionado ao
conceito de ciberespaço. Em A inteligência coletiva (1998), Lèvy define o ciberespaço como
espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial dos computadores, onde transitam
informações provenientes de
fontes digitais, ou seja, um ambiente virtual de
compartilhamento de informações entre pessoas interconectadas.
Costa (2003) faz uma abordagem historiográfica dos elementos da tecnocultura e
sua influência na vida cotidiana das pessoas. Este autor discute as mudanças ocorridas no
campo da comunicação e a crescente interação de diferentes indivíduos em ambientes virtuais,
destacando o processo de interatividade ocorrido através da internet, quer seja na inserção
e/ou participação de usuários em comunidades virtuais, na portabilidade de telefonia móvel
digital, no consumo de programação de TV digital e, inclusive, nos vários formatos WEB dos
veículos de comunicação de massa (WebTv, Webjornalismo, Webrádio etc). Assim sendo, a
cultura digital é eminentemente resultado de uma sociedade em acelerado desenvolvimento
tecnológico. Nesse caso, a tecnologia ganha lugar de destaque em discursos relacionados à
educação, à sociabilidade e à formação cultural de sujeitos sociais.
Nesse sentido, Lima Jr (2006) chama atenção para o emprego do termo tecnologia
como processo humano, ratificando a desmistificação de um ideal mecânico, tecnicista,
instrumental do desenvolvimento tecnológico. Então, faz-se necessário entender os processos
de constituição do desenvolvimento humano através das transformações exercidas pelo
homem na sua relação com as tecnologias. Segundo o autor “trata-se de uma relação onde o
ser humano transforma a realidade da qual participa e, ao mesmo tempo transforma a si
mesmo” (LIMA JR. 2005, p.15). Para nós, é imprescindível destacar a articulação entre o
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conceito de tecnologia e de interação social mediada pelos aparatos sociotécnicos da internet
na qual a perspectiva intercultural das micropráticas reconhece o caráter complexo presente
nas relações estabelecidas entre os sujeitos.
Desde a primeira metade do século XXI, o surgimento da internet fez surgir
possibilidades do ator social estabelecer modos de convivência e relacionamentos sociais cada
vez mais variados em sentido e intensidade. Chamamos de modos de convivência o conjunto
de performances desenvolvidas pelos atores sociais para constituir, fundar e desenvolver suas
relações com membros de diferentes nichos sociais485. Nesse caso, os relacionamentos sociais
vão delineando redes de interatuações nas quais a intersubjetividade se torna elemento central
que tipifica, delineia e institui a existência de modos de convivência variados em sentido e
intensidade. A produção de sentido torna-se, então, uma produção intensiva, que se exprime
como elemento de forte tensão, dentro do qual os significados atribuídos às redes de
relacionamento social, vão constituindo um estilo próprio em cada usuário, quanto aos
processos de inserção, trânsito, absenteísmo 486 e abandono do grupo social originário487.
Por conseguinte, o pertencimento social negociado na sociabilidade dos atores
através do uso da internet ultrapassa os limites geográficos do nativismo (língua, berço,
cultura e experiência de grupo originário). São nas atividades cotidianas de interação,
mediadas pelas vias da rede mundial de computadores, que os atores sociais vão produzindo
novas lógicas de sentido quanto ao que costumeiramente se denomina familiar. Trata-se de
trazer à tona o defrontamento do ator social com as questões do insólito. O estranho acaba
seduzindo o familiar e nele se engendrando como política de sentido, operacionalizando
flutuações de processos de identificação, reconhecimento e pertença. A noção de nativismo
amplia-se através das experiências de significação dos atores sociais. Em detrimento ao
aspecto estrutural, a linguagem se torna evidente, através das trocas simbólicas efetuadas nos
espaços da interação midiática, particularmente na internet. Para nós, a linguagem é
constituída pelos atores sociais no cotidiano de suas experiências práticas, mas é por eles
também constituída. Em outras palavras, a natividade resulta na travessia dos atores sociais
dentro do universo da produção da linguagem que é instituída por eles e neles se manifesta
como experiência instituinte.
485
O que corresponde à idéia de agrupamento, lugares sociais demarcados pela legitimação de culturas
específicas.
486
A idéia segundo a qual os atores sociais se ausentam das redes de relacionamento social, mas não as
abandonam definitivamente.
487
Essa idéia é válida, também, para as questões das redes sociais de relacionamento oriundas da Internet.
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Então, a aprendizagem cultural torna-se importante prática social a ser mais bem
investigada pelas ciências humanas. Não é verdade que a aprendizagem cultural resulte
apenas da influência de fatos sociais, externos, coercitivos e generalizáveis, ao critério
funcionalista. A exterioridade das práticas sociais delineia não apenas os aspectos
supracitados, mas, também, o uso, a inserção e a apropriação direta de atores sociais sobre os
objetos sociotécnicos de determinada cultura, numa dinâmica mais ativa, na qual a
reflexividade dos atores sociais se manifesta, exprimindo a natureza complexa das
interatuações negociadas entre os mesmos. A aprendizagem cultural, então, resulta de um
intrincado processo de interação com objetos, símbolos, comportamentos, crenças e sentidos
de diferentes atores sociais em circunstâncias sociais historicamente vividas através da
experiência(STEPHENS, 1993). Trata-se de um processo de vivência não superficial onde os
elementos da cultura são partilhados, utilizados e manipulados mediante as trocas sociais,
sendo que, nesse processo, não apenas se multiplicam os sentidos partilhados, como também,
muitos deles são abandonados, ressignificados e/ou articulados uns aos outros a tal ponto que
se apresentam como novos, inéditos, singulares. Para nós, o olhar das ciências humanas deve
se voltar para essa natureza multiforme, inédita, construtiva e constituinte das interações
vividas no tempo presente.
O surgimento de uma nova cultura juvenil tem gerado inquietações a respeito do
registro historiográfico de elementos do cotidiano. Na cultura digital, interações sociais
cotidianas são exercitadas de modo intenso por jovens através da utilização, exploração e
desenvolvimento de instrumentos tecnológicos de informação e de comunicação cada vez
mais sofisticados. No cenário social, encontra-se um crescimento vertiginoso de acesso às
tecnologias da informação e da comunicação por parte de populações juvenis. Em pouco
tempo, ocorreram fenômenos como as Lans Houses, centros de entretenimento, espaços de
interação digital (bancos, empresas, televisão, rádio) que se propagam com uma velocidade
impressionante (CARSOSO, 2007).
O uso e a exploração de variados instrumentos sociotécnicos tornam públicos
interpretações de cenários que exigem novos conceitos, novas maneiras de interpretar,
analisar e conceber as realidades sociais. A perspectiva construcionista, firmando a
importância de se voltar mais aos processos de produção da realidade social do que aos
produtos de tal fenômeno, imprime ao legado das ciências humanas, uma enorme
contribuição: a vida social é produzida e reinventada cotidianamente. A estática social sofre
influências das ações, crenças, comportamentos e sentidos atribuídos pelos atores sociais
sobre seu cotidiano (DE CERTAU, 1996). Sobremaneira, o processo de apropriação de
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artefatos sociais ligados às tecnologias da informação e da comunicação caracteriza o tempo
presente.
Segundo o Ibope/NetRatings o número de usuários da internet, no Brasil, chega a
41,5 milhões de internautas ou 59 milhões segundo o DataFolha. Ambos os institutos
consideram apenas os internautas maiores de 16 anos. Nas áreas urbanas, 44% da população e
97% das empresas brasileiras estão conectadas à internet . Os internautas residenciais ativos
chegam a 23,7 milhões de pessoas que acessam regularmente a Internet de casa,
correspondendo a um aumento de 28% de julho de 2007 a julho de 2008. Segundo a Pesquisa
Nacional de Amostra por Domicílios (PNAD do IBGE) que apresenta indicadores referentes
às características gerais da população, migração, educação, trabalho, famílias, domicílios e
rendimento, 20% das residências brasileiras têm acesso à internet. Nesse sentido, vale
destacar que o ritmo de crescimento da internet brasileira é intenso. A entrada da classe C
para o clube dos internautas deve continuar a manter esse mesmo compasso forte de aumento
no número de usuários residenciais.
Outro dado curioso é o tempo de navegação divulgado pelo CETIC488. Desde que
esta métrica foi criada, o Brasil sempre obteve excelentes marcas, estando constantemente na
liderança mundial. Em julho de 2008, o Brasil quebrou seu próprio recorde, com 24 horas e
54 minutos de tempo de navegação por pessoa. O Brasil está à frente de países como
Alemanha (21h06m), EUA (20h50m), França (20h17m) e Japão (19h21m). Nota-se que no
documento Retratos da Leitura (2008), divulgado pelo instituto pró-livro o tempo dedicado
por semana à leitura tendo a internet como suporte preferido chega a 2 horas e 24 minutos
perfazendo um percentual de 28,9 milhões de usuários. Observe-se:
488
O Centro de Estudos sobre as Tecnologias da Informação e da Comunicação é responsável pela
produção de indicadores e estatísticas sobre a disponibilidade e uso da Internet no Brasil, divulgando análises e
informações periódicas sobre o desenvolvimento da rede no país.
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Portanto, o uso da internet em escala crescente pelas novas gerações imprime
novos rumos à interpretação científica do fenômeno da sociabilidade e das interações sociais
na cultura digital. Podemos destacar três motivos que respaldam essa assertiva. O primeiro
deles concentra-se na necessidade de análise do uso da internet como fenômeno de escala
mundial (ou planetária). O segundo motivo evoca o desenvolvimento das novas gerações
através de fenômenos sociais difusos, constituídos de natureza multiforme, não cíclica e
previsível. O terceiro e último motivo constitui-se em matéria de interesse aberta aos
historiadores,
economistas,
educadores,
cientistas
sociais,
filósofos
etc.,
na
iminência/emergência de um tratamento interdisciplinar.
Horizontes Heurísticos e Metodológicos da Pesquisa
Nessa pesquisa o problema central a ser investigado são os processos de
apropriação e uso da Internet como dispositivo de formação sociocultural. Nesse sentido,
interessa-nos as concepções, conceitos e idéias partilhadas por um grupo de jovens (30
usuários com idade entre 12 a 22 anos) oriundos da classe trabalhadora, em fase de
escolarização, dentro do Estado de Sergipe, a respeito do uso da internet como dispositivo de
formação sociocultural. Questionamo-nos, portanto:
Quais são os processos de apropriação do grupo de adolescentes oriundos da
classe trabalhadora, em fase de escolarização, dentro do Estado de Sergipe, a
respeito do uso da internet como dispositivo de formação sociocultural?
Quais são seus interesses comuns? Quais concepções, crenças e idéias
partilhadas por tais atores sociais?
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Esta pesquisa tem como objetivo identificar os processos de apropriação e uso da
Internet como dispositivo de formação cultural, utilizados por jovens sergipanos com idade
entre 12 e 22 anos, em fase de escolarização, de modo a documentar e analisar interesses
comuns, concepções, conceitos e idéias partilhadas pelo grupo a respeito do uso da internet
como dispositivo de formação sociocultural.
Trata-se de uma pesquisa de base exploratória, ligada às abordagens qualitativas
da pesquisa e ao método etnográfico. O paradigma que norteia essa pesquisa é o
interpretativo. O paradigma interpretativo tem por base a fenomenologia e a hermenêutica.
Diferentemente da corrente paradigmática do positivismo, a construção nascida no seio da
fenomenologia, torna-se um avanço para a compreensão das atividades humanas e sociais.
Uma das manifestações dessa mudança ocorre graças ao espírito inquiridor de Husserl (18581938). A partir de Husserl a ciência da realidade vai ser batizada pela ciência dos fenômenos,
inspirando que "toda consciência é consciência de alguma coisa". Nesse contexto, a produção
do conhecimento e, conseqüentemente, a formulação e o desenvolvimento do método, dá-se a
partir da relação do sujeito com seu objeto, mediante uma interação notável. Assim o é que
Merleau Ponty (1945) acentua que não são as qualidades sensíveis que revelam as coisas, mas
o sentido que as habita na produção do olhar humano sobre o mundo.
A importância da fenomenologia e da hermenêutica como bases de sustentação
dessa pesquisa se justifica por três motivos fundamentais: (1) pela preocupação mais com o
processo que com produtos e pelo respeito à singularidade e subjetividade dos sujeitos nela
envolvidos; (2) por situar o pesquisador diante de fenômenos complexos, próprios aos
sujeitos, carregados de uma produção de linguagem ressignificadas por redes ininterruptas de
produção de sentidos; (3) por levar em conta as situações, as reações e as circunstâncias
particulares e interpessoais, nas quais se dá a experiência. Espósito (1997: 23) esclarece que o
foco não é o indivíduo, mas a própria rede de significação gerada a partir de suas
interatuações.
A natureza dessa pesquisa é qualitativa. A natureza qualitativa em pesquisa tem
incentivado uma produção intensa de estudos que privilegiam mais o processo de construção
do objeto de estudo do que seus resultados ou produtos finais. Chamamos esse tipo de
pesquisa de qualitativa para diferenciá-la da perspectiva quantitativa (de inspiração estatística
e lógico-matemática). A pesquisa quantitativa estabelece correlação e comparação de fatos
durante o processo de investigação, voltando-se à analogia e a estandardização (ou tabulação)
de fenômenos como elementos generalizáveis.
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Optamos, assim, pela escolha do método etnográfico no caminhar dessa pesquisa.
Por desejar imprimir às situações observadas e participadas, uma política de sentido que seja
radicalmente crítica, durante os processos de descritibilidade dos fenômenos e de suas
manifestações constitutivas, defendemos a possibilidade concreta do exercício dessa forma de
se abordar construí e representar o conhecimento e sua produção.
Essa pesquisa será realizada na microrregião de Itabaiana, Estado de Sergipe,
através das ações do SEMINALIS – Grupo de Pesquisa em Tecnologias Intelectuais, Mídias e
Educação Contemporânea da Universidade Federal de Sergipe no Campus Universitário Prof.
Alberto Carvalho. A escolha geográfica foi mobilizada por motivos centrais que em seu
conjunto delimitam a relevância e a pertinência das intenções de pesquisa aqui expostas. O
principal motivo instaura-se pela possibilidade de compreensão das diferentes realidades
geográficas, onde são produzidos e exercitados discursos diversos sobre usos da internet,
como dispositivo sociotécnico de formação cultural. Segundo Andy Hargreaves, o conceito de
geografia social da formação extrapola questões técnico-práticas e lhes insere uma perspectiva
político-social. Este autor vem discutindo as formas de controle que se instalam sobre o
estudo da formação cultural, situando explicitamente o espaço físico onde ela ocorre. Desse
modo, tal perspectiva assume três componentes que caracterizam o espaço sociogeográfico,
para sua análise: a marginalização social, a desinstitucionalização e a encapsulação simbólica
e, para nós, os elementos instituintes de novas realidades, quais sejam: a apropriação de
artefatos sociotécnicos, a inclusão sociodigital e as práticas de interações sociais que
culminam em novos cenários de sociabilidade.
Esse estudo está sendo realizado considerando três etapas distribuídas em
momentos básicos e interdependentes: (1) as produções e análise teóricas ou recensão de
literatura problematizada; (2) as entrevistas semidirigidas (individuais ou grupais) e (3)
registro de memorial escrito, caracterizando-se por momentos previamente organizados entre
o pesquisador e os sujeitos participantes da pesquisa.
O trabalho de campo se especifica pela observação e interação entre pessoas in
situ (Junker, 1960). Isto implica em delimitar onde essas pessoas estão descrevendo os
produtos de sua atividade e o conjunto das significações sociais atribuídas às construções de
sentidos que as dinamizam, sem perder de vista as trocas cotidianas vivenciadas nas
instituições humanas. Esse trabalho de campo é em realidade um trabalho com as
informações.
As informações, para Junker (1960:68) "são dados, sistematicamente traduzidos e
de acesso às raízes do conhecimento nas ciências sociais". A justificativa para se inserir na
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pesquisa a utilização de instrumentos no processo de coleta de informações se dá pela
necessidade do pesquisador de garantir o acesso aos elementos básicos que lhe permitem
exercitar a compreensão sobre o fenômeno de interesse social e científico. Sem os recursos
instrumentais e necessários a esse proceder, torna-se impossível ao pesquisador tornar
estranho, o habitual. Os principais instrumentos a serem utilizados são: a observação
participante ativa, o jornal de bordo, a entrevista intensiva (livre e semidirigida), o grupo
nominal ou focal e, principalmente, o relato (auto) biográfico, condensada no registro escrito
de um memorial. Por fim, essa pesquisa pretende explorar elementos ordinários que tragam à
tona novos significados para a devida documentação de momentos ímpares na produção da
história social da mídia no estado de Sergipe, em particular o uso da internet como dispositivo
de formação sociocultural.
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O SISTEMA ÚNICO E DESCENTRALIZADO DE SAÚDE (SUDS) EM
SERGIPE ATRAVÉS DOS RECORTES DE JORNAIS
José Dias Junior – FSLF
[email protected]
O Sistema Único Descentralizado de Saúde (SUDS) foi criado no ano de 1987 antecedendo o
Sistema Único de Saúde (SUS) este por sua vez está completando vinte anos e foi instituído
legalmente na constituição de 1988. O SUS é fruto de reivindicações anteriores desaguadas na
VIII Conferência Nacional de Saúde no ano de 1986 aglutinando entidades e pessoas com
objetivos e formas de manifestações articuladas no cenário social, econômico e político.
Destarte, o propósito desta comunicação é analisar através das notícias do Jornal da Cidade do
ano de 1987, a forma como se deu a implantação do (SUDS) em Sergipe identificando a
dinâmica utilizada e os atores que fizeram parte deste momento. A escolha do jornal da
Cidade se deu devido à ênfase que o tablóide deu ao processo de implantação do SUDS neste
ano analisado.
Palavras - chave: Saúde, Sergipe, História.
O propósito deste artigo é analisar o processo de implantação do Sistema Único
Descentralizado de Saúde (SUDS) em Sergipe através das notícias do Jornal da Cidade do ano
de 1987. Isto é, qual foi a dinâmica e quem foram os atores que fizeram parte deste momento.
O SUDS antecede o Sistema Único de Saúde (SUS), este por sua vez está completando vinte
anos e foi instituído legalmente pelo o artigo 198 da constituição de 1988. O SUS é fruto de
reivindicações anteriores referendadas na VIII Conferência Nacional de Saúde no ano de
1986, fórum composto por diversas entidades e pessoas com objetivos e formas de
manifestações articuladas no cenário social, econômico e político da década de 1980.
Nas ultimas décadas os Jornais vem se tornando objeto de pesquisa histórica como
forma de entender a política, o social, o econômico, o cultural, etc. O Jornal da Cidade em
1987 tinha 15 anos de existência e pertencia a família dos Francos, uma das mais políticas,
influentes e oligárquicas de Sergipe. A escolha do Jornal como principal fonte de pesquisa se
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deu devido à ênfase que o tablóide deu ao processo de implantação do SUDS neste ano
analisado e também pelo que diz a Maria Helena Capelato e Maria Ligia Prado:
“A escolha de um jornal como objeto de estudo justifica-se por entender-se a
imprensa fundamentalmente como instrumento de manipulação de interesses
e de intervenção na vida social; nega-se, pois, aqui, aquelas perspectivas que
a tomam como mero veículo de informações, transmissor imparcial e neutro
dos acontecimentos, nível isolado da realidade político-social na qual se
insere.” (CAPELATO E PRADO, pg. 19, 1980).
Na década de 1960 o autoritarismo, o clientelismo e outras práticas sócio-políticas
de caráter tradicional que “indiferenciam o que é público do que é privado”, configuram um
obstáculo a constituição de uma sociedade moderna e democrática levando à permanência da
exclusão social e política dos segmentos populares. Setores estes que têm suas demandas
atendidas pela cooptação clientelista e assistencialista favorecendo grupos da elite e
particularistas em detrimento dos princípios do cidadão e da democracia. Entretanto o
alvorecer de novos atores sociais nos fins da década de 1970, marca o inicio de mudanças
significativas na construção da esfera pública brasileira, e em especial no campo saúde.
Dentre os atores e movimentos que contribuíram com a transformação da realidade nas duas
últimas décadas se destacou o da Reforma Sanitária fruto das reivindicações dos profissionais
de saúde articulados com o movimento popular e partidos políticos de oposição ao regime
militar. Este movimento sanitarista resistiu e disputou a conquista de direitos civis e sociais de
forma que vão ganhando força no processo político institucional, transformando “as carências
em práticas reivindicatórias” com êxito (COSTA, pg. 04, 2002).
Nos anos de 1980 com o “... surgimento de um rico tecido social emergente a
partir da aglutinação do novo sindicalismo e dos movimentos reivindicatórios urbanos, da
construção de uma frente partidária da oposição, e da organização de movimentos setoriais
capazes de formular projetos de reorganização institucional, como o Movimento Sanitário”
(Fleury, pg. 4, 2006) delinea-se o SUS inicialmente chamado de SUDS (Programa de
Desenvolvimento dos Sistemas Unificados e Descentralizados de Saúde) através do Decreto
nº 94.657 de 20 de julho de 1987. O SUDS unificaria os institutos já existentes em um só e
iria transferir recursos aos Estados e Municípios que se propusessem a criar conselhos
municipais ou estaduais de saúde reafirmando, mais uma vez, o princípio da participação.
Contudo, o SUDS começa a sofrer forte resistência no cenário nacional em
decorrência de fatores diversos: o fracasso do Governo Sarney em virtude do plano cruzado
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que não dera certo; a oposição dos diretores do Instituto Nacional de Assistência Médica e
previdência Social (INAMPS) que não queriam ter seu poder dirimido com o novo sistema;
oposição do segmento dos médicos empresários e de setores da política como é o caso do
Partido da Frente Liberal (PFL), etc. Assim sendo a implementação do SUDS foi
inviabilizada e com a confecção da Constituição brasileira em 05 de outubro de 1988 a qual
representa uma profunda transformação no padrão de proteção social brasileiro é que se
estabelece um novo modelo de política instituindo e desenhando o SUS como sistema de
saúde pública do Brasil. (COSTA, pg. 03, 2002).
Em Sergipe o Prefeito de Aracaju era Jackson Barreto de Lima do Partido do
Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) que ganhou a eleição no ano de 1985 com 66%
dos votos. O eleito contou com o apoio do Governador João Alves Filho do Partido da Frente
Liberal (PFL) derrotando o candidato Marcelo Déda filiado ao Partido dos Trabalhadores
(PT) que obteve 15,43% dos votos e Gilton Garcia do Partido do Desenvolvimento Social
(PDS) candidato da família Franco que ficou em terceiro lugar com 11,77%. Barreto
substituiu José Carlos Teixeira que tinha administrado de maio a dezembro de 1985, ou seja,
sete meses, pois, Teixeira entrou na Prefeitura Municipal fruto de um acordo entre o PFL e o
PMDB substituindo o interventor Heráclito Rollemberg que há anos administrava a cidade
(DANTAS, pg. 38, 2002).
No ano seguinte, 1986, Antônio Carlos Valadares filiado ao recém criado PFL foi
eleito Governador do Estado obtendo 48,24% dos votos com o apoio do recém saído
Governador João Alves Filho (PFL). Valadares derrotou José Carlos Teixeira (PMDB) que
era o candidato da família Franco e obteve 39,60% dos votos depois de um racha na sua
agremiação partidária na qual o prefeito de Aracaju, que era do mesmo partido de Teixeira,
foi apoiar Valadares (DANTAS, pg. 52, 2002).
Dentro desse contexto o SUDS chega oficialmente ao Estado com a vinda do
Ministro da Saúde Roberto Santos e do Ministro da Previdência e Assistência Social Rafael
de Almeida a Aracaju para assinatura do convênio de implantação do novo sistema de gestão
da saúde entre as três esferas do poder: Federal, Estadual e Municipal. (Jornal da cidade, 07
de agosto de 1987. Local. Pg. 3). Esse convênio institui o sistema de descentralização de
recursos da saúde, participação social e a unificação do Instituo Nacional de Assistência
Médica e Previdência Social (INAMPS), Instituto de Administração Financeira da
Previdência e Assistência Social (IAPAS), Serviço Especial de Saúde Pública (SESP),
Superintendência de Campanhas de Saúde Pública (SUCAM), Secretaria Municipal de Saúde
(SMS) e Secretaria Estadual de Saúde (SES) onde esta ultima passava a coordenar todo o
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processo.
O Prefeito da capital também assina o convênio para a implantação em definitivo
do Sistema Único e Descentralizado de Saúde do município de Aracaju. Com esta medida as
unidades de saúde que pertenciam ao Estado e funcionam na capital sergipana, passam a partir
de agora para a administração da prefeitura de Aracaju. (Jornal da cidade, 08 de agosto de
1987.)
Novas perspectivas surgem devido a implantação do SUDS, pois, com o convênio
as secretarias municipais de saúde passam a desempenhar a função antes exercida pelo
INAMPS e secretarias de Estado. Assim, a capital sergipana passaria a gerir sua própria
política de saúde, recebendo um volume maior de recursos financeiros e físicos aumentando o
seu potencial de atuação e a sua responsabilidade (Jornal da Cidade 20/08/1987, local).
No ano de 1987 a expectativa da chegada do SUDS era grande. A sociedade civil
aguardava o sistema, os funcionários do Inamps fizeram seminários e reuniões para debater e
entender o SUDS e a Reforma Sanitária. O Secretario de Saúde do município de Aracaju,
Gilmário Macedo, implantou os distritos sanitários, capacitou os profissionais de saúde e
criou os conselhos comunitários. O convênio entre a Prefeitura e o Ministério da Saúde e o
Ministério da Previdência Social chegou prometendo mudanças conforme mostra o jornal:
“ O Sistema Único Descentralizado de Saúde, resultado de recente convênio
assinado pelo governo de Sergipe e os Ministério da Saúde e da
Previdência social , deverá entrar , plenamente em atividade, nos próximos
cinco meses. Embora a maioria dos interessados desconheça, plenamente sua
finalidade tem-se como certa a melhoria do sistema de atendimento médico,
odontológico e hospitalar, à comunidade. Modernização e ampliação dos
laboratórios de saúde pública, saneamento básico e isonomia salarial, são
algumas das profundas mudanças que serão adotadas pelo referido sistema.”
(Jornal da cidade , 01/09/1987 sociedade, pg.6)
Essas expectativas foram demonstradas pelo Secretário Municipal de Saúde
Macedo o qual acredita que a unificação dos serviços médicos trará benefícios à população,
pois será feito um amplo trabalho de reforma, ampliação e reequipamento das unidades de
saúde do município, que passarão a terem melhores condições de atendimento. Além disso, o
convênio prevê a contratação de novos profissionais, por concurso público, a depender das
necessidades que o sistema apresentar. (Jornal da cidade, 14 de agosto de 1987. Política, Pg.
2). Já o Secretário de Estado Maia também vê perspectiva na implantação do SUDS, pois,
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para ele com a instalação do Sistema o atendimento será mais facilitado (Jornal da cidade, 10
de setembro de 1987.).
As lideranças sergipanas que tinham afinidade com o tema da saúde pública
parecem que estavam bastante articuladas com a discussão realizada na esfera nacional sobre
democracia, participação, reforma, saúde, etc, é o caso de Maia:
“O que me interessa mais de perto é a reforma sanitária ... há mais de 15
anos vem amadurecendo a idéia dessa reforma, que se fortificou ainda mais
na VIII Conferência Nacional de Saúde, realizada no Rio de Janeiro em
1986... a Reforma Sanitária consiste em um sistema unificado de saúde em
que o Estado vai gerir as ações de saúde, assegurando acesso universal
igualitário e gratuito das ações de serviços de saúde” (Jornal da Cidade
22 de julho de 1987 política, pg. 2)
Macedo segue os mesmos princípios democráticos para Aracaju sobre a reforma
sanitária e diz:
“Com referência à reforma sanitária de Aracaju, Gilmário Macedo
disse que as perspectivas são bastante promissoras desde quando a
idéia é descentralizar o sistema de Saúde do município procurando
oferecer condições adequadas de saúde à comunidade. A partir da
adoção de medidas dessa natureza nos teremos condições de adotar
medidas serias, sempre em consonância com a opinião do povo.”
(Jornal da Cidade, 20/11/1987, política).
Para coordenar a implantação e implementação do SUDS foi instalado o Conselho
Estadual de Saúde. Medida esta que estava de acordo com as propostas discutidas no cenário
nacional, pois o êxito do sistema estaria na descentralização e no controle social tendo o
conselho como um dos mecanismos mais importantes do sistema, conforme opinião do
Secretário Estadual de Saúde veiculada no Jornal da Cidade de 10 de setembro de 1987:
No decorrer da implantação do SUDS ocorreu uma reforma administrativa no
Governo do Estado, na qual o então Secretário Lauro Maia trocou de pasta, assumindo na
saúde Edney Freire Caetano. Com a efetivação da mudança, o novo secretário é visto pela
mídia sergipana como um gestor bastante qualificado para os desafios que estavam postos
para a saúde pública naquele momento já que ele teve marcante atuação quando presidiu a
Fundação Hospitalar (Jornal da Cidade 30 de setembro1987. sociedade pg. 06).
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O Conselho era presidido pelo secretário de Saúde, Edney Freire Caetano que
realizou um estudo preliminar dividido por grupos temáticos durante três meses como forma
de entender melhor a implantação do SUDS.
A chegada do sistema era esperada como solução das ações pontuais. É o que
afirma o novo Secretário de Estado da Saúde Caetano. Pois ele acreditava que com a
execução da Reforma Sanitária instrumentalizada pelo SUDS haveria melhorias no modelo
assistencial, proporcionando grandes benefícios à comunidade, acabando com as dificuldades
de acesso ao tratamento de saúde que a população enfrentava (Jornal da Cidade, 13 e 14 de
dezembro de 1987).
Como vimos nos discursos das autoridades gestoras do novo sistema, a
implantação do SUDS seria o inicio de uma nova era para a saúde no Brasil. Isto nos parece
uma visão idílica frente aos problemas que o país sofria como ingerência, miséria, falta de
habitação, falta de saneamento, etc, merecendo de nosso lado uma análise mais atenciosa.
Assim, ao tentar entender o significado desses discursos temos que perceber qual o contexto
em que eles estão inseridos, o que está nas suas entrelinhas ou como diria Foucault “O novo
não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta” (Foucault, pg. 26, 1996) até por
que continua ele: “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de
dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar”
(Foucault, pg. 10, 1996).
Os atores aqui destacados estão a todo tempo relatando a importância do SUDS, a
sua eficácia, sua intenção social, seus benefícios, etc. Eles estão em sintonia com o que num
dado momento diz Campos: “Há certo consenso entre estudiosos de que o Sistema Único de
Saúde tem representado uma política favorável à construção da justiça social e do bem-estar
entre os brasileiros” (Campos, pg. 2, 2007).
Ao analisar a implantação do SUDS, com o seu mecanismo de unificação dos
sistemas que já existiam e a descentralização das ações, percebemos nos discursos dos
gestores e da opinião do próprio diário que foi criado uma expectativa de o SUDS ser a
grande solução para todos os problemas da saúde publica sergipana. Por exemplo, os
questionamentos sobre a saúde que se indagavam aos gestores, de imediato eles respondiam
que tudo seria resolvido com a implantação do SUDS. Seja a falta de profissionais na rede de
saúde, a falta de medicamentos nos hospitais, as dificuldades de acesso aos serviços ou a
melhoria das instalações e condições de atendimento aos usuários, etc.
A opinião do jornal deixa claro que com a assinatura do convênio iria melhorar
significativamente o perfil da saúde publica no Estado. Fato este curioso já que o Jornal
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pertencia a uma das famílias mais influentes politicamente de Sergipe e que saíram derrotadas
nas urnas para prefeito da capital e para Governador. Qual o interesse do tablóide em defender
e acreditar no SUDS? Será que algum acordo já estava em tela para as próximas eleições? O
diário tinha real independência ao ponto de não manipular nem intervir nas noticias?
É inegável a importância e os avanços do SUS que teve como precursor o SUDS.
Entretanto, apesar do diário pesquisado não demonstrar com clareza a diferença entre o
planejado e o que realmente foi realizado, fica evidente que em um país de dimensões
continentais e graves problemas sociais, conforme citamos, essas dificuldades no campo da
saúde não estariam resolvidas com a inicialização de um novo sistema de tamanha
complexidade. A conjuntura desfavorável da implantação distancia significativamente a
expectativa do garantido na norma do concretizado, ou seja, entre a visão altamente resolutiva
que os atores davam ao SUDS e o que no real pode ser feito. Isso nos leva a concordar com a
indagação que Campos faz:
“Como teria sido possível a constituição de uma política pública de saúde de
caráter universal, fortemente assentada em organizações estatais, e que vem
articulando uma ampla rede de atenção à saúde, em um contexto histórico
desfavorável?” (CAMPOS, pg. 2, 2007).
Frente os problemas de implantação do sistema que acabamos de mencionar o que
os atores nos seus discursos queriam proporcionar? Isso nos leva a indagar se eles, no caso
dos gestores, se utilizavam desses discursos para fugirem das cobranças que a população e os
trabalhadores faziam por melhores condições de serviços e trabalho respectivamente? Um dos
exemplos que nos induz a fazer essas reflexões é a própria previsão de implantação do
sistema, adiada para o ano subseqüente, mostrando as dificuldades de se implantar um sistema
de saúde complexo que tinha na sua proposta a alteração do papel dos entes federados
envolvidos e a forte relação interministerial que o sistema abarca.
Outro ator atuante neste período foi o Sindicato dos Médicos de Sergipe presidido
pelo patologista e líder sindical Nestor Piva que tinha Antônio Samarone como vice
Presidente da categoria. A categoria médica observava a implantação do SUDS com
perspectiva, mas também com receio de que o novo sistema de saúde não tivesse o êxito
esperado e prejudicasse a sociedade. É o que declara o presidente quando convocado pela
Assembléia Legislativa para falar sobre a Reforma Sanitária e sobre o SUDS através de
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requerimento do deputado do PT e médico Marcelo Ribeiro:
“ Se houver, alguma distorção na implantação da reforma sanitária em nosso
Estado a sociedade é quem vai pagar caro ... Está sendo implantado no país a
reforma sanitária em convênio com os ministérios da Previdência, Saúde,
Educação e secretarias de Saúde dos Estados ... esses órgãos estão sendo
responsáveis pela implantação do SUDS, que vai permitir um
redimensionamento à implantação da reforma sanitária, cuja filosofia básica
é a participação da comunidade na definição dos programas de saúde e a
fiscalização da sua implantação” (Jornal da Cidade 13 de novembro de 1987.
Política. Pg. 2)
A preocupação que Nestor Piva leva a Assembléia e pede a ajuda dos deputados
era com o desvio de foco que a implantação poderia tomar ao ponto de inviabilizar a reforma
sanitária ao não descentralizar e não ter a participação social como fiscalizadora do sistema.
(jornal da cidade, pg 02, 13/11/1987). Assim sendo, ficamos a pensar o que o presidente do
sindicato dos médicos quer dizer ao afirmar que se a Reforma Sanitária não for efetivamente
colocada em prática quem pagaria era a sociedade. Será que havia algum tipo de ameaça para
o sistema não ser implantado? Será que as forças políticas que foram contra a implementação
do sistema trabalharam para não ser uma experiência exitosa. Será que a participação e o
controle social no sistema incomodavam os demais atores? Enfim essa fala do Nestor Piva
nos leva a perceber que possivelmente existiam pressões em torno da chegada do SUDS em
Sergipe.
Com essas mudanças no sistema de saúde, as gratificações pagas aos servidores da
rede sofrem alterações e gera reação da categoria que se reúnem em assembléia para discutir o
assunto, apesar do Secretário da Saúde Edney Freire ter anunciado que
concederia
gratificações de Cr$ 11 mil, (jornal da cidade 14 de outubro de 1987, local. Pg. 3). Porém, no
dia 18 de novembro de 1987 o Jornal da Cidade noticia que as gratificações ainda não tinham
sido pagas o que gerou protesto dos funcionários (jornal da Cidade 18 de novembro de 1987,
).
No dia 21 de novembro de 1987 a Prefeitura Municipal de Aracaju paga as duas
parcelas de gratificações referentes a setembro e outubro aumentando a insatisfação dos
servidores estaduais da saúde gerando tensão e a convocação de mais uma assembléia geral,
ganhando a primeira página do Jornal da Cidade: “Profissionais da área de Saúde ameaçam
greve” (Jornal da Cidade, 24 de novembro de 1987, capa).
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No dia 25 do mesmo mês o inevitável acontece “Servidores da Saúde decretam
greve: Servidores da área da Saúde decidiram ontem em assembléia geral decretar greve a
partir de hoje em protesto aos atrasos no pagamento da gratificação do Sistema Único
Descentralizado de Saúde.” (Jornal da Cidade 25 novembro de1987, local. Pg. 3)
No dia 27, apesar de atrasado, o Governo paga as gratificações honrando o
compromisso e efetuando o pagamento das três parcelas de gratificação do Sistema Único e
Descentralizado de Saúde (Jornal da Cidade, 27de novembro de1987, política. Pg. 2). A greve
acabou acontecendo pelo atraso do pagamento da gratificação. Segundo Caetano a demora
foi por causa da necessidade de executar um processo de cruzamento de folhas de pagamentos
da Prefeitura e do Estado, como forma de evitar que uma pessoa recebesse duas gratificações.
Para ele existe um grupo querendo tumultuar o ambiente entre os funcionários, prejudicandoos apenas com o objetivo de conseguir promoção pessoal, pois Caetano já tinha acertado a
data de pagamento das gratificações (Jornal da Cidade, 26 de novembro de 1987). O sindicato
dos médicos por sua vez acusa a Secretaria de Estado da Saúde e Bem Estar Social de
desorganização já que os recursos tinha chegado em Sergipe fazia muito tempo e que o não
pagamento das gratificações era uma manobra do Estado para prorrogar a execução das
demais parcelas.
Esse episódio do pagamento das gratificações que culminou numa greve
relâmpago nos mostra que existiam muitas dúvidas e disputas em torno da discussão do
SUDS. Seja na Assembléia Legislativa, na Câmara Municipal, na sociedade, no Inamps e
entre os demais profissionais de saúde havia falta de informação sobre a eficácia do sistema
que estava chegando. A suspeita reinava quanto ao pagamento das gratificações, mesmo com
recurso em caixa, se temia que o gestor tomasse outra atitude administrativa que não o
pagamento das gratificações mostrando assim a não solidificação do sistema a ponto dos
funcionários ficarem na incerteza. Talvez seja por isso que Nestor Piva temesse a falta de
êxito do sistema sobrando para a população o ônus e, assim sendo, defendesse a participação
social como forma de controlar as ações do Estado.
Nesse primeiro ano da implantação do SUDS, que é o objeto da nossa pesquisa,
tendo como fonte o Jornal da Cidade do ano de 1987 identificamos alguns atores que atuaram
na construção do SUDS, entre eles, os gestores do Governo do Estado e do Município de
Aracaju, os sindicalistas principalmente os do sindicato dos médicos, os servidores da saúde,
porém não constatamos a presença da sociedade civil organizada nesse período. Esses atores
relatavam a sua visão de como estava sendo implantado o sistema e qual a concepção de
SUDS e de Reforma Sanitária e quais os benefícios e dificuldades que estavam ocorrendo.
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Durante o período estudado não conseguimos identificar nas matérias publicadas
do Jornal possíveis resistências à implantação do SUDS, apesar do Governador Antônio
Carlos Valadares e o Secretário de Estado da Saúde Lauro Maia serem do PFL partido o qual
não tinha muita simpatia pelo sistema de saúde em tela, conforme assinalamos. O próprio
tablóide mesmo os seus proprietários sendo oposição aos Governos que estavam implantando
o sistema deu uma ênfase significativa ao SUDS. O sindicato dos médicos quando destacado
nas noticias de jornal se apresentam sendo favoráveis a implantação do SUDS parecendo não
haver muita resistência, porém identificamos os receios dos servidores quanto a mudança no
pagamento das gratificações do SUDS chegando inclusive a ameaças e execução de greve.
A criação do Conselho Estadual de Saúde foi um dos fatos mais importante
ocorridos nessa época, pois era a construção de um instrumento que vinha a inserir a
sociedade na Reforma Sanitária, no SUDS e consequentemente no Estado.
O ano de 1987 termina e o SUDS não foi efetivamente implantado sendo
prorrogado para o ano posterior, o ano em que seria promulgada a Constituição Brasileira.
Isso nos mostra as dificuldades de se colocar um sistema desta proporção em prática tendo
que unificar alguns órgãos já existentes e descentralizar as ações. Destarte ao historiar o
avanço da construção de um processo durante esse curto período percebemos a importância
dos atores históricos na implantação do sistema e dinâmica que acontece no desenrolar dos
fatos.
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em 05 de outubro de 1988.
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Confidencial: Protesto. Jornal da Cidade. 18 de novembro de 1987. Política.
Edney acusa grupo de tumultuar a Saúde. Jornal da Cidade. 26 de novembro de 1987. Local.
Pg. 2.
Funcionários recebem gratificação do Suds. Jornal da Cidade. 21 de novembro de 1987.
Local.
Governo admite deficiências no setor saúde. Jornal da Cidade. 10 de setembro de 1987.
Local, pg 3.
Governo pagará gratificações hoje, a servidores. Jornal da Cidade. 27 de novembro de 1987.
Política. Pg. 2.
Implantado Conselho Estadual de Saúde.Jornal da Cidade. 19 de setembro de 1987. Local pg.
03.
Inamps esclarece sistema unificado. Jornal da Cidade. 26 de agosto de 1987. Local. Pg. 3.
Ministros assinam convênio em Sergipe. Jornal da Cidade. 07 de agosto de 1987. local. Pg 3.
Notas e comentários. Jornal da Cidade. 24 de setembro de 1987. Sociedade pg. 06.
Notas e Comentários. Jornal da Cidade, Aracaju, 01 de setembro 1987. Sociedade, pg 06.
Notas e comentários. Jornal da Cidade. Aracaju, 30 de setembro 1987. Sociedade, pg 06.
Piva pede fiscalização para reforma. Jornal da Cidade. 13 de novembro de 1987. Política. Pg.
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2.
Prefeitura firma convênio para implantar Sistema Único de Saúde. Jornal da Cidade. 08 de
agosto de 1987. Local. Pg. 7.
Profissionais de área de Saúde ameaçam greve. Jornal da Cidade.24 de novembro de 1987.
Capa. Pg 1.
Reforma Sanitária será implanta em Aracaju. Jornal da Cidade. 23 de julho de 1987. Local.
Pg. 7.
Toma posse hoje novo Secretário de Saúde.Jornal da Cidade. 24 de setembro de 1987.
politica pg. 02.
Saúde dá gratificação de Cz$ 11 mil. Jornal da Cidade. 14 de outubro de 1987. Local. Pg. 3.
Secretário de Saúde presta esclarecimento a câmara. Jornal da Cidade. 26 de novembro de
1987. Política. Pg. 2.
Saúde.Jornal da Cidade. 19 de setembro de 1987. Confidencial pg. 05
Secretário destaca unificação dos serviços de saúde. Jornal da Cidade. 14 de agosto de 1987.
política . pg. 2.
Secretário. Jornal da Cidade. Aracaju, 02 de setembro 1987. Sociedade, notas e comentários,
pg 13
Servidores da Saúde decretam greve. Jornal da Cidade. 25 de novembro de 1987. Local. Pg.
3.
Servidores da Saúde ameaçam greve no Estado. Jornal da Cidade. 26 de novembro de 1987.
Local. Pg.3.
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A CAPITANIA DE SERGIPE SOB O RONCO DO TRABUCO DE
BENTO JOSÉ DE OLIVEIRA (1773-1806).
Wanderlei de Oliveira Menezes – UFS
[email protected]
Este breve trabalho constituísse, sobretudo, de relatos acerca da trajetória de vida do famoso
sargento-mor Bento José de Oliveira, obtidos, principalmente, em fontes de época e na
historiografia sergipana. Esse personagem tornou-se célebre pela quantidade de crimes que
cometeu ou mandou praticar entre 1773 e 1806. Apesar de ser um simples soldado, chegou a
controlar e/ou inquietar às altas autoridades de Sergipe, Bahia e Pernambuco. Em 1806
encerrou sua famosa carreira criminosa ao ser enviado a Portugal, onde foi preso e faleceu
numa masmorra, ao que tudo indica. Ao estudar esse personagem pouco conhecido, talvez o
maior criminoso das plagas sergipanas, procuramos identificar indícios sobre violência, poder
e cotidiano durante as últimas décadas do período colonial na capitania de Sergipe.
PALAVRAS-CHAVE: História Social, História de Sergipe Colonial, Violência.
O crescimento do gênero biográfico na historiografia contemporânea é notável.
Nunca os historiadores se lançaram de forma tão intensa no desnudamento de personagens
importantes ou de indivíduos esquecidos do passado recente ou longínquo. Acreditamos que o
crescimento do gênero biográfico na historiografia contemporânea está relacionado com a
crise do paradigma estruturalista que orientou uma porção significativa da historiografia a
partir dos anos 60. De acordo com este paradigma, a história deveria dissolver os indivíduos
nas estruturas (LEVI, 1992). Em contrapartida, os historiadores atuais “quiseram restaurar o
papel dos indivíduos na construção dos laços sociais” (CHARTIER, 1994, p.102). A
aproximação desse gênero com a historiografia é atualmente apoiada por importantes
tendências como a micro-história e a psico-história. Metodologicamente, essa mudança
implica o recuo da história quantitativa e serial e o avanço dos estudos de caso e da microhistória. Academicamente, é importante salientar a aproximação da História com a
Antropologia, na qual o resgate das histórias de vida é de longa data, e com a Literatura,
preocupada com as técnicas narrativas de construção dos personagens e de enredo. A
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tendência biográfica preconizada pela micro-historia é marcada, sobretudo, pelo interesse no
resgate de trajetórias singulares e de suas relações com o contexto e coletividade.
A escolha dos personagens biografados é outro ponto que chama a atenção: não
apenas os “grandes homens” da política, mas também as pessoas comuns e personagens
significativos dentre de um dado contexto social, porém pouco conhecido pela historiografia.
Neste sentido, Carlo Ginzburg ressalta a importância de se estender o conceito histórico de
indivíduo para as classes mais baixas: “alguns estudos biográficos mostraram que um
indivíduo medíocre, destituído de interesse por si mesmo – e justamente por isso
representativo – pode ser pesquisado como se fosse um microcosmo de um estrato social
inteiro num determinado período histórico” 489.
Partindo destas considerações, busco, na presente comunicação, estudar a
trajetória de vida de um célebre criminoso do final do período colonial em Sergipe. Esse
personagem sergipano cometeu uma série de crimes e, apesar de ser um simples sargentomor, chegou a inquietar os governos e as populações de regiões da Bahia, Sergipe e
Pernambuco. Para tanto, dividimos nossa exposição em três partes. Na primeira, examino
como a historiografia sergipana tratou sobre o personagem em estudo; em seguida, usamos às
fontes de época para desvendar indícios de fatos de sua vida; finalmente, destacamos os
crimes cometidos por ele e seus protegidos e as ações que o levou à prisão e esquecimento.
Escolhemos Bento José pelo fato desse personagem ter suas peripécias bem documentadas
nos arquivos de Sergipe, Bahia e Portugal, talvez seja ele o personagem sergipano dos
setecentos mais bem documentado.
É importante salientar que os fatos narrados em seguida, por mais hilários que
pareçam, foram obtidos por meio de criteriosa pesquisa histórica, amparada majoritariamente
em fontes de época. Assim, procuramos desvendar a partir da trajetória de vida de um famoso
sargento-mor da segunda metade do século XVIII indícios sobre as vicissitudes da vida social
e a relação violência e poder no final do período colonial na capitania de Sergipe.
O passado colonial sergipano, apesar dos consideráveis e clássicos estudos de
Felisbelo Freire, Carvalho Lima Júnior e Maria Thétis Nunes, ainda não foi devidamente
estudado. Assim Bento José de Oliveira ainda não recebeu um estudo mais pormenorizado
sobre os significados de suas ações, apesar da grande quantidade de documentos sobre suas
peripécias na Bahia e em Portugal. O nome de Bento José aparece nas páginas da História de
Laranjeiras do padre Filadelfo Jônatas de Oliveira, na História de Sergipe (1575-1930) de J.
489
GINZBURG, Carlo. O Queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição.
São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p.27.
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Pires Wynne e na biografia de Antonio Muniz de Souza de Armindo Guaraná de forma
bastante sumária. A clássica História de Sergipe de Felisbelo Freire pouco nos informa sobre
Bento José490. Grande contribuição à história de Bento José de Oliveira foi dada por Maria
Thétis Nunes. Além de destacar as ações de Bento José dentro de seu contexto sócio-político,
Thétis Nunes aliada a outros pesquisadores trouxeram digitalizadas importantes documentos
manuscritos da capitania de Sergipe Del Rei, um deles é a volumosa representação dos
vereadores da vila de Santo Amaro das Brotas contra Bento José e outros, datada de 1805.
Consta nesse documento uma série de fontes coligidas sobre Bento José da década de 80 do
século XVIII até 1808.
Contudo, o mais amplo estudo sobre a segunda metade do século XVIII em
Sergipe é a tese de mestrado de Afonso Ferreira Junior que cita o famoso sargento-mor. Esse
autor pesquisou importantes documentos sobre Bento José no Arquivo Público do Estado
Bahia (APEB). Recentemente, Clóvis Bomfim, ao escrever sua História de Santo Amaro
destinou um capítulo para Bento José e outros criminosos contemporâneos baseado nos
documentos conseguidos em Portugal. O único trabalho mais extenso e fundamentado em
fontes de época sobre o personagem estudado, mesmo sem fazer referência a fontes, é o do
historiador itabaianense Francisco Antonio de Carvalho Lima Júnior. Esse importante
historiador de nosso passado publicou no Correio de Aracaju em 1920 nove artigos sobre a
biografia de Bento José numa linguagem cativante, clara e bastante eloqüente. Em Capitãesmores de Sergipe, manuscritos publicados em 1985, Lima Júnior esboçou algumas páginas
sobre Bento José.
Nos trabalhos supracitados Bento José de Oliveira é apresentado como
perturbador da ordem, símbolo de autoritarismo e da desordem. Sua imagem é demonizada, o
que exige um reexame dos fatos, a partir de seus traços biográficos, pois Toda a nossa
historiografia, exceto Carvalho Lima Júnior, deixou notas desconexas da vida de nosso
personagem além de só reproduziram as informações contidas nos documentos.
No ano da graça do Nosso Senhor Jesus Cristo de 1748, na cidade de São
Cristóvão de Sergipe Del Rei, nascia do ventre de Ana Maria de Jesus, Bento José de
Oliveira, branco, filho de Manoel Sandes Ribeiro, senhor de engenho e de terras na região do
Vasa Barris. Por motivos desconhecidos a família se transferiu para a próspera vila de Santo
490
Felisbelo Freire (1891, p.200) comete grave erro ao além de incorrer num gravíssimo erro de considerá-lo
sucessor do capitão-mor José Gomes da Cruz em 1776, quando Bento José nunca foi capitão-mor de Sergipe
nem de parte alguma.
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Amaro das Brotas, na região do Vazabarris. O pequenino tinha por irmão o futuro tenentecoronel Francisco Teles de Oliveira491.
A primeira menção de sua existência que conseguimos colher data de 6 de março
de 1773. Nessa data Bento José sofreu processo na Vila de Santo Amaro sob a acusação de
deflorar a menor Isabel Teles, filha do capitão Pedro Muniz Teles. Para fugir das garras da
justiça decidiu fugir para a Bahia. No dia 24 do mesmo mês sentou praça, voluntariamente,
como soldado na Companhia do Antonio Lobo Portugal. Tal era a proteção das altas
autoridades por sua distinta condição social que logo foi promovido ao posto de sargento-mor
de ordenanças da Bahia. Dois anos depois (1775) volta a Sergipe. O irmão Francisco Teles de
Oliveira era, nessa época, nomeado pelo Governador da Bahia Manoel da Cunha Menezes,
para capturar recrutas. Bento foi chamado para a missão e os dois provocam badernas e
desvio de 60 mil cruzados492.
O capitão-mor José Gomes da cruz denuncia o golpe dos irmãos Oliveira ao
governador da Bahia que mandou prender Bento José, em 11 de dezembro de 1775. A ordem
de prisão mais parece um castigo dado a uma criança travessa: “Ordeno a Vmc., (que) o
chame com toda a civillidade a sua presença, e lhe intime que eu mando que elle SargentoMór se recolha logo a hum dos engenhos de seu pai, do qual não sahirá, sem ordem minha”. É
bem provável que tal ordem não tenha sido respeitada, mas mesmo assim a “prisão” foi
suspensa em 9 de março do ano seguinte493.
Solto, Bento resolveu requerer durante os meses seguintes de sua “prisão” cinco
licenças consecutivas. Ameaçou ao Capitão-mor que se não concedesse mais licenças tiraria
de qualquer forma. José Gomes da Cruz resolveu comunicar o ocorrido ao Superior. O vice
rei, então, ordena que o abusado soldado comparecesse a sua presença. Bento foi forçado a
trazer a família e os bens e ficar longe de Sergipe. A ordem foi cumprida e o insolente
sargento-mor viveu os anos posteriores a 1776 em uma das vilas do sul da Bahia servindo a
Theodoro Gonçalves. Em 1776 deve ter casado com Josefa Maria de São José494. Não custou
491
Quando foi preso em Portugal, em 1808, alegou ter 59 anos e ser filho de Manoel Sandes Ribeiro (AHU,
Caixa 08, doc.09). Os livros de notas de São Cristóvão atestam a existência dos genitores de Bento que em 1738
faziam escritura de um sítio de terra no Vasa Barris ( APJES, CX.01, LV.02-FLS.149-155 e CX.02, LV.01FLS.264-266 ).
492
LIMA JÚNIOR, F. A. de Carvalho. Bento José de Oliveira (famoso sargento-mor do século XVIII).
CORREIO DE SERGIPE, Aracaju, 29 de agosto de 1920. p.2. Não conseguimos detectar os documentos
transcritos por Lima Júnior, talvez nem existam mais, visto que a pesquisa desse historiador foi realizada nos
últimos anos do século XIX e inicio do século seguinte.
493
idem.
494
Em 30/01/1776 era passada no cartório de São Cristóvão escritura de mandado feita entre Francisco Marques
da Silva, como administrador de sua filha Josefa Maria de São José, a João Lopez Chaves para contrato de
casamento. (APJES, LIVROS DE NOTAS. CX.02, LV. 01-FLS. 264-266);
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para retornar a terra natal. Nos primeiros anos da década de 80 do século XVIII retornava
Bento José à vila de Santo Amaro sedento por vingança495.
Prontamente, buscou restabelecer seus antigos domínios. Nesse intuito, montou
um quartel-general no engenho Pati. Ciganos, criminosos de morte, ladrões, soldados,
prisioneiros eram seus funcionários. Baltazar Vieira de Melo, Tenente Coronel de Cavalaria
de Sergipe, faz representação ao Governador da Bahia, D. Rodrigo José de Menezes, em 26
de janeiro de 1786. Pedia para que o desobediente soldado fosse retirado da guarnição de
Sergipe. Reforçou com outra representação contra Bento José o Tenente Felipe Luis de Faro.
Prudente, D. Rodrigo, Governador da Bahia, quis ouvir o que tinha a dizer em sua defesa o
acusado. Bento exibiu em sua defesa com uma série de documentos oficiais que abonavam
sua conduta. Os documentos eram forjados por pessoas bem conceituadas. Diante de tais
provas e atestações, Bento não sofreu penalidade alguma. Esse acontecimento mudou o
comportamento do sargento-mor que se tornou mais violento.
A partir de 1786, Bento redobrou a prepotência e perversidade. Seus adversários
ou supostos adversários sofreram. O sargento-mor mandar assassinar na cidade de São
Cristovão a Antonio Teles e espanca com cacetadas a Manoel José Buena por dar queixa dele
ao Marques de Valença, governador da Bahia, por ter Bento roubado-lhe uma mulata. Em
Santo Amaro manda matar ao advogado Julião de Campos Pereira, por servir numa causa
contra o seu cunhado, Manoel Vital de Araujo, e surrar, a chibatadas, a viúva, a parda Ana
Roza. Apesar de a vítima ter dado queixa em Salvador, o crime ficou impune. Por desavenças
familiares, mandou tirar a vida a Manoel Alves, marido de sua sobrinha. O crime foi
executado por um escravo de sua irmã, que ganhou carta de alforria pelo serviço prestado496.
Junto a Jacinta e Antonio Pereira da Silva mandou assassinar ao tenente Francisco
de Faro Leitão. O irmão da vítima, capitão-mor de ordenanças Felipe Luis de Faro Leitão,
sabendo da proteção que contava Bento José em Sergipe, resolveu denunciá-lo na Bahia.
Outro crime impune. Na vila de Itabaiana, ordenou, sem motivo aparente e autoridade para
isso, a prisão efetuada pelos suas capangas, um homem do povo que em seguida foi
misteriosamente assassinado. Mandou matar ao cabra João Pereira e ao cabo Antonio Felix.
Em Laranjeiras, próximo a localidade de Comandaroba, mandou matar a uma mestiça,
escrava de José Alves Quaresma, por ela ter dado queixa na Bahia ao Governador D.
Francisco da Cunha Menezes por ele ter vendido duas filhas menores (uma a Francisco Alves
495
LIMA JÚNIOR, F. A. de Carvalho. Bento José de Oliveira (famoso sargento-mor do século XVIII).
CORREIO DE SERGIPE, Aracaju, 31de agosto de 1920. p.2.
496
ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO. Sergipe, inv. 481, caixa 08, doc. 09;
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Barroso e outra a Manoel Rodrigues de Figueiredo). Ainda em Laranjeiras mandou assassinar
o advogado Manoel Joaquim com dois de seus protegidos por ordem do pardo Francisco497.
Ainda mais: mandou assassinar a um seu guarda costa, assassino de profissão,
dentro da casa de José Gomes, por andar comentando as mortes encomendadas. Não queria
que maculassem seu nome. Ousadia maior cometeu na vizinha Capitania de Pernambuco,
quando em fins da década de 80, enviou uma escolta de seis criminosos, roubar cavalos. O
ataque se deu na vila de Penedo, todavia o coronel de milícias da localidade, Antonio Luiz
Dantas de Barros Leite, defendeu a localidade do assalto. Deu-se lugar a uma grande conflito
entre os homens de Bento e as autoridades penedenses. Do lado dos sicários de Bento três
foram as baixas. Do outro lado o sobrinho do coronel perdeu a vida e alguns habitantes saíram
gravemente feridos e com seqüelas por toda a vida498.
Com o falecimento do coronel José Caetano da Silva Loureiro, senhor do engenho
Ilha, Bento se apossou do escravo Gregório do falecido. Apesar do filho do finado, Manoel
Cardoso, erigi-lo de herança. Revoltado com a atitude de Bento, Manoel Cardoso resolve
fazer justiça com a s aproprias mãos. Invadiu as senzalas de Bento durante sua ausência e quis
arrancar a força o escravo em questão. Os capangas de Bento ofereceram resistência e o
escravo acabou sendo assassinado499.
Inconformado com o revés no caso do escravo Gregório e da malograda
expedição a Penedo, novamente mandou escolta, chefiada por Antonio Pereira da Silva e
Gonçalo Ferreira, para aprisionar mulatos livre da região e vendê-lo em Sergipe como
escravos. A pedido de algumas amigas (amantes ?) mandou outra escolta a Inhambupe, na
Bahia, tomar a força uns escravos de Euzebio Luis para presenteá-las. Ainda na Bahia, agora
em Geremoabo, mandou os “bons” de sua escolta subtrair os bens de Clemente José, que
andava denunciando seus excessos500.
Acabou o século XVIII e Bento era mais poderoso que os governadores da Bahia,
o ouvidor e o capitão-mor de Sergipe. Já era um homem de cinqüenta anos, porém com um
vigor para o crime maior que quando tinha trinta anos.
Em 1805 mandou a Gonçalo Lucas e Manoel Sotero e outros criminosos a casa de
José Vicente de Carvalho furtar quatro escravos pertencentes a uma testamenteira do seu tio e
deu-os a outra parte litigiosa sem nenhuma formalidade judicial. Sofreu na pele a crueldade
dos protegidos de Bento o moço português Antonio dos Santos Travassos. Nos primeiros
497
ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO. Sergipe, inv. 481, caixa 08, doc. 09;
Idem.
499
Idem.
500
Idem.
498
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meses de 1806, mandou surrá-lo em sua própria residência por José Alves Quaresma com
espada, cacete e chicote. Por ter barganhado um cavalo de seu sobrinho501.
O governo Baiano mostrava-se indiferentes a sorte das vitimas das atrocidades do
sargento-mor. Intimado a comparecer em Salvador para responder pelos seus crimes, Bento,
ao que tudo indica, de modo matreiro consegue um atestado do cirurgião Manoel Rodrigues.
Alegou motivos de saúde para empreender tão longa viagem. O estratagema deu certo502.
Bastante ousado era Bento que para confirmar o título de autoridade suprema
mandou construir em sua propriedade um cárcere onde cobrava dos prisioneiros uma pataca
(320 réis) pela estada em seu cárcere privado; tirava mulheres, inclusive as “bem nascidas” de
seus esposos ou pais e dava-as a quem bem entendia, exigia dívidas não contraídas e perdoava
dívidas reclamadas sem ganho de causa para a parte lesada. Era o supremo Juiz da Capitania.
Furtou com ostentação a Santa Casa de Misericórdia – foi nomeado pelo ouvidor provedor e
procurador da dita instituição. Com o cargo de Provedor de ausentes, roubou legalmente os
bens de muitos desvalidos. Aos corruptos ouvidores e juízes corrompeu e os tornou servis a
seus desejos. Engenhoso na prática criminosa e bem protegido pelas autoridades eram as
receitas do sucesso de Bento José503.
Em 1805, Bento se apossou de 6 mil cruzados dos bens dos ausentes e mais 80
mil réis de dois infelizes naufragados de duas embarcações perdidas na barra do rio
Cotinguiba. Contudo maior ousadia cometeu ao receptar a arroba e meia de carne do capitãomor Mesquita Pimentel. O meirinho, temendo as conseqüências, levou as belas postas de
carne que deveria alimentar ao capitão-mor e família, primeiro a casa de Bento que se
apropriou da melhor parte e deixou ao dito capitão-mor apenas meia arroba de pescoço e
costela. Mesquita Pimentel mandou prendê-lo, ordem que nenhum dos oficiais de justiça quis
ousar pôr em prática. Revoltado, Mesquita Pimentel envia suas queixas ao Governador da
Bahia. Na denúncia mencionou os diversos crimes em que Bento era acusado504.
Nos primeiros anos do século XIX formou-se um grupo forte de oposição às
arbitrariedades de Bento José. Fazia parte Antonio Muniz de Souza, autor de Viagens e
observações de um brasileiro, o ouvidor interino Henrique Luis de Araujo Maciel e a Câmara
de Santo Amaro das Brotas. O mais poderoso adversário era Henrique Luis de Araujo Maciel.
501
Idem.
APEB. Secção de Arquivo Colonial e Provincial. Maços 190, 192, 196. Nessas pacotilhas há outros delitos
em que Bento e seus protegidos são acusados de outras atrocidades.
503
Idem.
504
Idem.
502
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Bento tentou eliminá-lo. Enviou, em 1805, 13 bandidos para matar o ouvidor interino que
morava em Santo Amaro. Por sorte, o ouvidor escapou do sinistro plano505.
Cansados de reclamarem ao governo baiano, os camaristas de Santo Amaro e
outras vítimas resolveram denunciar os abusos ao príncipe-regente D. João VI. A
representação mandada pela Câmara. Dom João VI ordena em 24 de maio de 1806 a captura
de Bento. Em 28 de abril o conde de Ponte, governador da Bahia, manda capturar sem êxito o
criminoso.
A execução da ordem régia deu-se pela ação traiçoeira do capitão-mor Felipe Luis
de Faro Menezes e do juiz de ordinários José de Barros Pimentel. O sargento-mor acabou
sendo surpreendido no engenho de seu pai em 22 de novembro de 1806 e remetido à cadeia de
Santo Amaro, vigiado e guardado com toda segurança e cuidado. José Leandro de Almeida,
amigo de Bento e juiz ordinário de Santo Amaro, tentou ainda tirá-lo da cadeia.
No mês seguinte foi remetido à Bahia em diligencia comandada por João
Fernandes Chaves com oito soldados na lancha Triunfo. A 26 de dezembro, o Conde de Ponte
informa ao Príncipe Regente da prisão do famoso criminoso. A 24 de abril, o visconde de
Anadia, por ordem do mesmo príncipe, ordenou que o réu fosse remetido em navio seguro a
terrível prisão do castelo de Lisboa. Bento acabou sendo mantido preso numa masmorra fria o
que debilitou sua saúde. Tentou, em vão, ser liberto para se tratar da enfermidade. É bem
provável que o famoso sargento-mor tenha falecido em alguma prisão lisboeta506.
A fígura de Bento José de Oliveira nos possibilita enxergar os conflitos e cisões
da elite sergipana setecentista, a vida difícil dos homens livres bem como o clima de violência
e insegurança das últimas décadas do século XVIII e início do século XIX atestadas pelas
fontes de época. Bento José, de certa forma, mostra-nos as vicissitudes da ordem social e
política de uma época. Pelo uso da força e de crimes, Bento José foi, indubitavelmente, o
homem mais poderoso da capitania de Sergipe, mesmo sem ser o mais rico.
Fontes e referências bibliográficas
Arquivo Público do Poder Judiciário de Sergipe:
Livro de notas do cartório do 1º Oficio de São Cristóvão (1738-1788), Livros 1e 2.
505
506
Idem.
Idem
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Arquivo Público do Estado da Bahia
Secção de Arquivo Colonial e Provincial. Maços 190, 192, 196;
Arquivo Histórico Ultramarino (Portugal)
Sergipe, inv. 481, caixa 08, doc. 09;
Referencias bibliográficas
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ENTRE A LEI E A DESORDEM: A GUARDA ∗MUNICIPAL E A
URBANIZAÇÃO EM ITABUNA (1930-1947)
Philipe Murillo Santana de Carvalho - UNEB
[email protected]
O objetivo principal deste trabalho é investigar a Guarda Municipal de Itabuna e as
experiências dos membros de sua corporação durante o período em que a cidade passou pela
reformulação urbana de sua área central. A Guarda Municipal foi uma das instituições criadas
pelo poder público municipal com vistas a fiscalizar as atividades profissionais, a higiene dos
imóveis residenciais e comerciais, a segurança pública, e os hábitos urbanos da população
itabunense. A partir desses elementos, a prefeitura municipal considerava a instituição
fundamental na busca pela “harmonia” entre os cidadãos e a ordem estabelecida pelo poder
local. No entanto, ao contrário do que esperavam os segmentos hegemônicos, os guardas não
tiveram vida fácil na aplicação da lei entre as classes populares, resultando em diversos
conflitos na cidade. Por outro lado, os soldados que deveriam zelar pelo estabelecimento dos
“bons costumes”, não demoraram a ser vítimas do seu próprio veneno, passando a ser
coagidos pela prática de hábitos como bebedeiras, jogos e envolvimento com prostitutas.
Utilizando-se do Jornal Oficial do Município de Itabuna, dos periódicos locais A Época e O
Intransigente como fontes de pesquisa, pretendemos discutir como esses sujeitos criaram
estratégias para negociar seus interesses diante das contradições da padronização de hábitos e
de costumes pelos poderes instituídos.
Palavras-chave: Guarda Municipal, Urbanização, Itabuna.
Em 16 de junho de 1933, durante o período de lançamento das Décimas Urbanas,
a guarda municipal de Itabuna resolveu anunciar no Jornal Oficial de Itabuna uma medida de
organização do trânsito no centro da cidade. Como Inspetor da Guarda Municipal, João
Ribeiro de Moraes alertava aos munícipes que
De ordem do Sr. Dr. Prefeito deste município, fica expressamente proibido
depositar carroças e outros veículos, a noite, nas ruas desta cidade,
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marcando-se o prazo de 3 dias a contar desta, para retirada de todos sob
pena de apreensão e multa ao proprietário, de acordo com o Código de
Posturas em vigor. 507
Tratava-se de mais um alerta emitido pelos poderes públicos, por meio de um dos
seus instrumentos de controle – a Guarda Municipal. No entanto, este breve aviso publicado
discretamente na imprensa oficial é um sinal dos propósitos e dos meios utilizados para tentar
criar um padrão de comportamento e de organização na cidade no ano de 1933. A Guarda
Municipal foi inaugurada para se tornar um dos principais elementos dentro do sistema de
fiscalização implantado em Itabuna. A principal referência desta polícia de costumes seria o
Código de Posturas publicado e apresentado aos habitantes no mesmo ano de 1933. São esses
dois elementos que constituíram parte da política urbana adotada para os itabunenses que
poderá nos oferecer a medida com que os trabalhadores se relacionavam com as ações da
ordem estabelecida dominante.
Em 2 de abril de 1933, em inauguração solene que reunia as tradicionais figuras
políticas da cidade por volta das 10 horas da manhã, além da presença de estudantes e de
associações do município, foi apresentada a Guarda Municipal de Itabuna. Acerca dos
motivos que levaram a criação desta instituição, Alpoim justificava a intenção em dotar a
cidade com medidas de segurança que ratificariam o estado de paz da sociedade itabunense.
O Sr. Dr. Claudionor Alpoim, Prefeito Municipal, disse dos motivos que o
levaram criação daquela Guarda, em que todos terão de ver mais um fator
de segurança, ordem e engrandecimento do município.
Esclareceu que esse melhoramento foi organizado, sem maiores ônus para
os cofres públicos e que da ação da profícua da Guarda é de se esperar
grandes resultados, não só no que concerne a ordem pública e respeito à
moral, como na observância das posturas municipais e, finalmente, também
na arrecadação das rendas.508
A Guarda Municipal parecia ser uma instituição há muito desejada pelo poder
político. Encaixando-se como um dos melhoramentos urbanos realizados pela administração
pública, as atribuições dos soldados passavam de uma maneira geral em manter a segurança e
a ordem com vistas ao desenvolvimento da cidade. Do ponto de vista filosófico, reforçava-se
a crença positivista de que somente com o estabelecimento da “ordem” será possível alcançar
o crescimento local. Outra função da nova segurança municipal seria a de preservar a
moralidade no seio da sociedade itabunense, atuando de forma a policiar os costumes de
origem popular. Está claro que essas condições de ordem e os aspectos morais impostos para
507
508
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 16 de junho de 1933, Ano II,nº 112, p.6.
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 8 de abril de 1933, Ano II, n.º 102, p.16.
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a sociedade eram criados pelos segmentos hegemônicos e dispostos aos trabalhadores, ainda
que de forma pouco democrática. O instrumento que sintetizaria todos os itens citados acima
deveria ser o Código de Posturas de Itabuna, o que daria o peso da medida para julgar o
comportamento e as ações dos habitantes.
A estrutura da Guarda Municipal de Itabuna foi montada a partir de hum inspetor
geral, responsável maior pelas atuações dos guardas na cidade; quatro guardas de primeira
classe; e vinte guardas de segunda classe, que foram nomeados através de concurso pela
prefeitura. Sua sede, situada à Rua 23 de novembro, era considerada pequena, mas suficiente
para atender a demanda local, como informava o órgão noticioso do governo. Em nota
reproduzida do jornal ilheense Diário da Tarde, o Jornal Oficial comparava a nova instituição
às das capitais do país, que tinha por objetivo “zelar pelo respeito às leis municipais e auxiliar
a ação da polícia na manutenção da ordem, impedindo a prática de atos que possam ferir o
progresso e a segurança.”509 Isso sugere que, em última instância, aqueles que ferissem “o
progresso e a segurança”, isto é, não concordassem com a política urbana adotada pelas
municipalidades e apresentasse maior resistência, haveria sempre o recurso da contenção mais
efetiva da Guarda Municipal.
As condições para se tornar um guarda municipal eram bastante rígidas.
Consultando o Regimento Interno desta instituição, observa-se que no item relacionado aos
Deveres e Direitos dos membros da corporação é chamada atenção para que os pretendentes
às vagas devessem “primar pela sua disciplina irrepreensível, extrema dedicação ao serviço, a
urbanidade, zelo e solicitude.”510 Para ser mais específico, uma das premissas defendidas no
regimento dizia respeito à proibição da entrada dos soldados em “cabarets” e casa de jogos (a
menos que estivessem a serviço), da prática de agiotagem ou venda de rifas entre os membros
da corporação, ou ser remunerado pelos serviços prestados pela guarda municipal.
Se as recomendações a serem seguidas pelos soldados já eram rígidas, não seria
diferente com relação às competências a serem desenvolvidas pelos membros da corporação
nas ruas da cidade. O regimento deixava claro o que e quem deveria ser detido e
encaminhando à autoridade municipal:
a) Todo aquele que for encontrado praticando algum crime, ou em fuga,
perseguido pelo clamor público, podendo para este fim sair do seu posto;
c)Todo aquele que, mesmo da corporação, for encontrado promovendo
desordem ou em estado de embriaguez;
509
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 29 de abril de 1933, Ano II, n.º 106, p.10.
APMIJD. Regimento da Guarda Municipal de Itabuna. Ato 178 de 30 de Dezembro de 1932. Typografia.
Itabuna: D’A Época, 1933.
510
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d) Todo aquele que ocasionar desastre em via pública;
e) Os transgressores do Código de Posturas que se insubordinarem contra a
sua autoridade;
h) As pessoas que, vestidas de modo ofensivo à moral e aos bons costumes,
transitarem pelas ruas e praças;
i) Os vadios, turbulentos, ébrios;
j) Os que forem encontrados a danificar árvores, jardins, edifícios e obras
públicas ou particulares;511
Diante do exposto acima, a Guarda Municipal aparecia no cenário local para
ajudar a polícia militar a manter a ordem e a segurança de Itabuna, coibindo as práticas que
eram consideradas ofensivas aos novos padrões estipulados pelos setores dominantes para a
cidade. Entre as décadas de 1930 e 1940, a Guarda Municipal foi um dos principais
instrumentos de coerção dos costumes e dos comportamentos da municipalidade na busca por
uma cidade “harmônica” desejada pela administração local. No entanto, a atuação dos guardas
revelava a forma como os trabalhadores pobres urbanos se relacionavam com a experiência de
padronização dos valores e da moral pública instituída pelos setores dominantes.
Partindo da lei como elemento de toque para se classificar o que é moral ou
imoral, acho importante refletir em cima do que George Duby adverte ao historiador que lhe
dá com esse tipo de relação. Segundo Duby, o instrumento jurídico ou moral criado pelos
homens constitui um elemento de uma construção ideológica edificada para justificar certas
ações repressoras e para, numa certa medida, mascará-la, sugerindo que a existência de toda
regra é precedida pela sua transgressão, sendo exatamente nesse intervalo que o historiador
pode buscar a tensão que envolve os diversos setores da sociedade.512
Seguindo as advertências anotadas por Duby, sugiro que tanto o Regimento
Interno da Guarda Municipal como o Código de Posturas Municipais criados para o município
de Itabuna buscavam controlar comportamentos e costumes que já eram presentes dentro da
comunidade local, mas que passaram a ser questionadas pelos poderes municipais em favor da
padronização de condutas criadas sob a justificativa de assegurar a “ordem” e alcançar o
“progresso” moral diante do discurso de urbanização. Em janeiro de 1942, em um discurso
pronunciado para os membros da corporação, o comandante geral João Moraes acentuava as
dificuldades enfrentadas pelo que chamava de “espíritos malignos”. Dizia que
511
Idem, Ibidem.
DUBY, Georges. Idade Média, Idade dos Homens: do amor e outros ensaios. Trad. Jônata Batista Neto. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989. O autor trata dessa questão ao estudar os códigos eclesiásticos que
permearam as relações entre homens e mulheres durante a Idade Média, especialmente acerca do amor cortês
que fundamentava o matrimônio na sociedade medieval. pp.12-13
512
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Não deixa de surgir das trevas, meia dúzia de espíritos maléficos, tentando
implantar entre nós a desunião; mas, felizmente, sempre tem sido cortadas as
suas covardes investidas, pois eles não resistem a luz que clareia o cérebro
dos bem intencionados, assim como a ave agorenta não resiste a luz do dia!513
As queixas de Moraes não eram involuntárias. Pesquisando nos relatório da
Guarda Municipal, freqüentemente publicados no Jornal Oficial, encontramos várias multas e
punições aplicadas em membros da corporação por transgredir o regimento da instituição.
Este foi o caso de Inocêncio Ferreira Almeida que teve seus vencimentos cortados em três
dias pelo Inspetor João Moraes por ter infringido o parágrafo 25 do artigo 45, que versa sobre
o levantamento de falsas acusações. Em relatório do mês de maio, podemos encontrar duas
multas ao guarda Nelvy Amado, sendo ambas relacionadas ao provocamento de discussões
em via pública, que teve seus vencimentos cortados em quatro dias.514 Em 20 de julho de
1933, o guarda de segunda classe Adail Argentino de Alburqueque foi multado em dois dias
de trabalho por ter se ausentado do posto de serviço, tendo sido encontrado na Pensão “Racho
Fundo”. No mesmo relatório, foi suspenso por dez dias da corporação, Antonio Pinheiro
Dantas, por ter se portado de modo inconveniente na Inspetoria por ocasião do pagamento dos
vencimentos.515
Em outra oportunidade, os guardas Adelino Oliveira de Melo e Dado Sinval Lago
levaram uma pesada punição de cinco e oito dias, respectivamente, por ter sido flagrado em
Cabarets, contrariando um dos requisitos da corporação municipal. No mesmo relatório,
encontramos a expulsão do soldado n.º 14, Joaquim José de Souza, do posto de guarda efetivo
em face do seu vício à embriaguez. 516 Essas ultimas punições relacionadas à presença em
bordéis e à embriaguez possui uma diferença das outras anteriores. Quando da publicação, as
primeiras apresentavam o motivo da punição por extenso e o artigo infligido, talvez por se
tratar de causas menos constrangedoras à corporação. Já as últimas, por se tratarem de
comportamentos que eram combatidos com maior força pela guarda municipal, não tiveram as
circunstâncias que levaram a punição escrita por extenso, sendo apresentada apenas o
parágrafo do Regimento Interno da Guarda Municipal que indicava o motivo do castigo. Essa
podia ser uma forma de camuflar perante a população a ocorrência de comportamentos que
eram perseguidos por essa corporação.
Os exemplos citados acima mostram a dinâmica das relações sociais que
envolviam os interesses do poder público e o comportamento da classe trabalhadora. Mostram
513
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 6 de janeiro de 1942, Ano VIII, n. 553. p.2.
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 1 de maio de 1933, Ano II, n.º 108. p.6.
515
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 5 de agosto de 1935, Ano V, n.º229.
516
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 24 de agosto de 1935, Ano V, n.º 231
514
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que antes de se tornarem a polícia de costumes e hábitos de Itabuna, seus membros se
relacionavam com os subalternos. Ao mesmo tempo em que tentariam evitar a ocorrência de
hábitos considerados estranhos e inoportunos pela administração pública, os guardas
municipais necessitaram também afrontar contra seus próprios costumes no interior da
corporação. Isso de alguma forma, já apresenta os antagonismos de interesses que estavam em
jogo na cidade entre as décadas de 1940 e 1930, traduzidos, neste caso, pela tensão existente
entre os preceitos da Guarda Municipal e os hábitos populares de seus membros. A
historiadora Claúdia Mauch destaca que os agentes da segurança deveriam ter em mente a
responsabilidade da sua “missão civilizadora”, sendo cobrados uma postura exemplar de
moralidade e escrupulosa nos seus deveres cívicos e privados.517 No entanto, em algumas
oportunidades, essa expectativa da historiadora era contrariada na experiência dos soldados da
força de Itabuna, apontando que nem sempre a força repressiva se impõe diante das tradições
das pessoas comuns.
Em outras ocasiões, os soldados da força municipal também davam
demonstrações da negação dos requisitos de civilidade defendidos pelo regimento da
instituição. Em julho de 1933, o guarda n.º 17, Edmundo Jorge dos Santos, foi multado em
dois dias de vencimento por ter infringido o artigo 45 ao usar de violência contra um menor
em presença desta inspetoria. Da mesma forma, o guarda de segunda classe Antonio Ramos
de Souza, por tem usado de força excessiva na punição ao menor Antônio dos Santos Lima
que se encontrava dirigindo uma tropa de animais pelas vias urbanas do perímetro central.
Atitudes como essas terminaram por delimitar as ações empreendidas pela guarda mediante o
uso da violência na aplicação da “civilidade” em Itabuna.
518
Os abusos empreendidos pelos
membros da corporação chegavam a incomodar alguns setores do comércio local. Em 17 de
maio de 1933, Benigno Valverde Martins, administrador do Elite Cinema, enviou ofício para
que o prefeito tomasse medidas no sentido de repreender o comandante João Moraes em face
dos excessos cometidos por soldados da Guarda. Naquela oportunidade, o gerente do cinema
pediu que, “para melhor regularidade do serviço e coibir abusos por parte dos guardas, para o
policiamento interno deste estabelecimento [...] foi terminantemente proibida a entrada
gratuita de guardas no Elite Cinema.”519
517
MAUCH, Claúdia. Ordem Pública e Moralidade: imprensa e policiamento urbano em Porto Alegre na
década de 1890. (Dissertação de mestrado). Porto Alegre: UFRGS, 1992. Partindo de uma visão foucaultiana da
ação policial em Porto Alegre do século XIX, a autora busca compreender o olhar vigilante dos policiais através
das condutas e dos comportamentos impostos à estes trabalhadores.
518
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 24 de junho de 1933, Ano II, n.º 114. p.8; Jornal
Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 8 de julho de 1933, Ano II, n.º 116. p.4.
519
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 27 de maio de 1933, Ano II, n.º 114. p.8
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Se internamente a Guarda Municipal já enfrentava a tensão existente entre seus
membros de corporação, já podemos imaginar os conflitos que deveriam aparecer entre os
guardas, enquanto representante dos interesses das municipalidades, no seu relacionamento
com os grupos populares. Um pouco desse clima de disputa é possível de ser sentida em
advertência feita pelo secretário interino de obras públicas, José Muniz Nascimento, publicada
no dia 23 de janeiro de 1938, que tinha o seguinte teor:
Ainda, no intuito de evitar aborrecimentos entre a Fiscalização e o Povo,
chamamos a atenção para as exigências da lei e sobretudo do Código de
Posturas, tendo em vista os avisos de 23 e 28 de dezembro de 1937,
assinado pelo inspetor da Guarda Municipal João Moraes. Esta prefeitura
não quer indispor-se com os seus munícipes, porém não pode tolerar o
relaxamento das leis. 520
Com o objetivo de alertar os munícipes para existência de regras e de normas que
regiam a cidade de Itabuna, o secretário José Muniz de Nascimento deixava escapar as
difíceis relações entre os poderes instituídos e os trabalhadores. Não era incomum os alertas
aos problemas que preocupavam as autoridades municipais a partir do Jornal Oficial e,
quando fosse necessário, do Jornal A Época. Os avisos da fiscalização municipal, que estava
sob responsabilidade da citada guarda, transitavam entre a proibição de andar de bicicletas em
praças da rua até apreensão de animais, principalmente cachorros, que estivessem à solta na
cidade. No entanto, nessa situação de contradição que envolve a Guarda Municipal e os
habitantes de Itabuna, o peso de medida para a resolução dos casos conflituosos era o Código
de Posturas. Como se pode observar na citação acima, a prefeitura não parecia inclinada a
“relaxar as leis” nos casos de contenda com a população.
Se numa parte do cenário de Itabuna a guarda municipal não parecia relaxar diante
das infrações dos munícipes, na outra os trabalhadores também não se demonstravam
conformados e satisfeitos com as novas regras do jogo urbano local. Não há dúvidas quanto
ao fato de que a Guarda e as Posturas municipais se encaixavam na tentativa de criar uma
nova organização jurídica de saneamento das disputas sociais existentes na cidade planejado
pelos setores dominantes. Mas sua aparência de neutralidade e de imparcialidade era
descortinada pelos conflitos registrados nos relatórios da atuação dos soldados nas ruas e
praças de Itabuna. Em 1936, por exemplo, Olegário Alves dos Santos e Francisco Ribeiro da
Silva, ambos carregadores, eram acusados por Manoel Fernandes de Araújo ter desobedecido
às ordens de recolher seus instrumentos de trabalho da calçado e, posteriormente, desacatado
520
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 23 de janeiro de 1938, Ano VII, n.º 231.
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à autoridade pública municipal em via urbana. Em junho de 1938, a guarda municipal
catalogou um número acima da média de desordens e desacatos dos munícipes aos seus
membros. Ao todos foram cinco casos, dentre os quais, o mais representativo das tensões
urbanas foi o de Paulo Fagundes de Oliveira, que além de usar medidas de alumínios
adulteradas na Feira Pública, ainda promoveu desordens e desacato contra o guarda José
Messias Vianna. No mesmo relatório, o guarda Manoel Fernandes de Araújo voltava a
registrar um caso de desacato contra um carregador.521
A experiência de conflito entre a Guarda Municipal e os trabalhadores (incluindo
também os membros da corporação) sugere as diferenças de interesses existentes no campo da
cidade em transformação. Chalhoub sugere que esses choques aconteciam por conta da
consciência dos trabalhadores em relação prática das instituições de segurança. Para ele, havia
uma desconfiança dos grupos populares em relação à polícia e a lei na aplicação da ordem
social. Assim, o autor carioca defende que “esses exemplos microscópicos de insubmissão em
relação à autoridade constituída parecem se inserir numa tradição já relativamente longa de
protesto popular entre os homens livres pobres da cidade”.522 Em posição semelhante,
Thompson sugere que as leis surgem como uma severa medida dos interesses do governo,
cujo interesse responde aos anseios de seus próprios defensores políticos. As normas jurídicas
surgiam por uma nova maneira de controle e de disciplina de classe sintonizado com as
transformações sociais e econômicas do mundo moderno.523
A contribuição destes autores que pensaram realidades tão distintas de Itabuna
serve para que se possa refletir sobre o sentido desses micros demonstrações de rebeldia. Os
enfrentamentos entre a Guarda Municipal e os Trabalhadores são reflexos de que os
habitantes não se submeteram as imposições do poder público. Talvez aqueles que
desacatavam as autoridades públicas locais não enxergassem na prática dos poderes
instituídos uma forma de mediar seus problemas sociais, mas sim, obstáculos aos seus
interesses e aos modos de vida da classe trabalhadora. Assim, partindo desse entendimento, as
estratégias e as táticas elaboradas pelas pessoas pobres e livres de Itabuna fossem no sentido
de burlar essas determinações da ordem estabelecida, procurando caminhos alternativos para
que pudessem preservar suas tradições e seus costumes em comum. No entanto, quase
521
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 17 de outubro de 1936, Ano VI, n.º 290;
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 2 de julho de 1938, Ano VII, n.º 375. p.6.
522
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle
Époque. 2ª Ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2001. p.296.
523
THOMPSON, E.P. Senhores e Caçadores: a origem da lei Negra. Trad. Denise Bottman. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1987. O autor defende que a criação da lei Negra atendeu as necessidades de adequar o código jurídico
britânico ao controle e disciplina estipulados pela classe dominante e que a Lei Negra reverteu a essência da
punição do delito contra o homem para o delito contra a propriedade. p.281 e 282.
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sempre, essas medidas eram entendidas pelas autoridades como condutas desviantes que
deveriam ser punidas e eliminadas numa cidade que buscava um padrão de urbanidade.
Quanto mais esses comportamentos fossem freqüentes, mais forte e intensa seriam
as medidas do poder público. Não é por acaso que diante do elevado número de desordens e
de desacato registrados pelos membros da corporação, João Moraes, comandante da força
pública, publicasse no Jornal Oficial uma série de leis que deveriam ser obedecidas em 1938.
entre vários pontos relativos hábitos, higiene e segurança, destaco aquela que se referia a
importância da moral e da obediências aos princípios de urbanidade de Itabuna, em que dizia:
“Tudo que não é verdadeira moral é imoralidade [...] É expressamente proibido a quem quer
que seja proferir palavras ou atos obscenos ofensivos à moral ou bons costumes, em qualquer
parte. [...] Governar sem a contribuição espontânea do povo não é fácil.”524
Em 1942, o mesmo João Moraes aparecia ainda mais ufanista quanto ao papel da
Guarda Municipal. Talvez influenciado pela entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial, o
comandante oferecia ares patrióticos à função cumprida por seus subordinados. Dizia que os
soldados da guarda deveriam ajudar no policiamento da cidade, ajudando ao delegado local,
devendo agir com serenidade e prudência. Mas não se esquecia de dizer que sua instituição
não toleraria qualquer movimento subversivo em defesa do “povo, e se parte desse povo,
confundir patriotismo com anarquia devemos voluntariamente [...] repelir o inimigo exterior e
manter a ordem interior.” 525
Ao lado da polícia, a Guarda Municipal atuava fortemente na repressão ao jogo do
bicho. Entre abril e maio de 1938, ocorreram diversas apreensões de materiais relacionados a
jogatina. Isso porque o Interventor do Estado Landulfo Alves e o secretário da prefeitura
Nathan Coutinho trocaram telegramas acerca da importância de se combater os jogos ilícitos.
Negando a existência de tal transgressão em Itabuna, a prefeitura prometia se manter vigilante
aos jogadores, afirmando que “Município Itabuna onde jamais entrou malfadado vício confia
esclarecido governo V. Exc.ª manter sua tradição hipotecando inteiro apoio todas as medidas
visem o saneamento de nosso Estado.”526 Firmando esse propósito, possivelmente o executivo
tenha pressionado a Guarda a reforçar sua atuação contra a jogatina. Somente no mês de maio,
foram cinco apreensões. Destaca-se a diligência efetuada Argemiro de Oliveira, que
encontrou sob posse de Adelino Soares da Silva vários talões de jogo do bicho e a quantia de
48$000 (quarenta e oito mil réis) decorrente de seus clientes. Além de oferecer ajuda para a
524
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 30 de julho de 1938, Ano VII, n.º 379.
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 19 de agosto de 1942, Ano XI, s;nº, s/p.
(documento deteriorado)
526
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 23 de abril de 1938, Ano VII, n.º 365. p.6.
525
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Polícia Militar, a guarda municipal também participava efetivamente da fiscalização no
município.527
Eram os soldados da Guarda Municipal os responsáveis pela fiscalização das
obras nas vias urbanas e da distribuição e manutenção das licenças de trabalhos concedidas à
ambulantes de Itabuna. Também atuava junto com a Higiene Pública no controle dos preços,
dos pesos e das medidas nas feiras livres. Em 27 de julho de 1936, Antonio Cordeiro de
Miranda havia determinado ao comandante Moraes que fosse realizada a prisão de cinco
vendedores de leite com sob acusação de falsificação do referido líquido. No dia seguinte, os
soldados apresentavam junto ao delegado de polícia a captura dos ambulantes. Em 27 de
janeiro de 1940, João Ramos Morinho apreendeu sob a ordem da diretoria de higiene nove
quilos de peixe por estarem adulterados de Uziel Neves.528
Como se pode observar, não era fácil construir uma vigilância para Itabuna. A
ação da Guarda Municipal não era garantia de que os trabalhadores se submeteriam
facilmente às regras do poder público. A própria criação de uma força local já indicava que as
instituições de repressão estaduais não conseguiam suprir a necessidade de ordem ensejada
pelos segmentos dominantes da cidade. O código de posturas de Itabuna era a principal base
jurídica que os soldados utilizavam para mediar as relações com os munícipes. No último
capítulo será observado com mais profundidade que as Posturas eram um conjunto de leis
urbanas destinadas a padronizar o comportamento e os costumes existentes na cidade. Apesar
de duas versões do ano de 1908 e 1924, foi o Código de Posturas de 1933 que melhor
delineou os interesses da classe dominante no sentido de criar um novo paradigma de hábitos,
baseados nos ideais de ordem, higiene e progresso.
Apesar de todo esse poder construído pela administração pública para a cidade de
Itabuna, mesmo com a ação dos departamentos de Higiene e da Guarda Municipal, os sujeitos
urbanos e pobres pareciam não se sentirem seguros das intenções dos setores políticos
hegemônicos. Na tentativa de engendrar uma sociedade “ordenada” e “civilizada”, as
municipalidades não conseguiram esconder os objetivos de coibir práticas populares e de
controlar a ação dos habitantes dos trabalhadores. Os alvos das diligências dos instrumentos
políticos era eliminar qualquer atividade que desequilibrassem a ordem estabelecida. Com
isso, construíram o jogo de tensão que colocava no mesmo cenário, mas em pólos opostos, o
poder público e poder popular dos trabalhadores. Dois poderes e uma cidade. Dessas
527
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 7 de maio de 1938, Ano VII, n.º 367. p.6.
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 15 de agosto de 1936, Ano VI, n.º 281; Jornal
Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 10 de fevereiro de 1940, Ano IX, n.º 455. p.10.
528
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descontinuidades históricas evidentes no agir, nos discursos das autoridades municipais e nas
vontades rebeldes, como afirma Certeau, foram se erguendo a sociedade itabunense.529
Apareceram assim os sujeitos históricos “de baixo” para reafirmar suas posições e negar a
força “preponderante” dos coronéis, e descobrir as diferenças e as desigualdades sociais.
529
Apud CHARTIER, Roger. À Beira da Falésia: a história entre certezas e inquietudes. TRad. Patrícia Chittoni
Ramos. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002. p. 161. Para Chartier, Certeau produz uma noção de
história onde a coerência pode ser encontrada nos “desvios”, que na verdade não são desvios, mas sim, formas
elucidar a relação mantida entre o discurso hegemônico e o corpo social que o sustenta e o questiona ao mesmo
tempo.
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NOS
LABIRINTOS
DA
CRIMINALIDADE:
FORMAS
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DE
COMPREENSÃO, VIVÊNCIA E CONSTRUÇÃO DE CRIMINALIDADE
EM SALVADOR (1940-1964).
Wanderson B. de Souza – UNEB
[email protected]
A temática das “formas de compreensão, vivência e construção da criminalidade em Salvador
de 1940-1964, pelos criminosos pertencentes às camadas subalternizadas”, se insere em um
contexto histórico, no qual aspectos da violência eram apresentados com freqüência em nossa
sociedade, seja através das políticas públicas de segurança, seja pelos conflitos entre os
indivíduos em particular. Nosso objetivo é analisar o modo como a criminalidade foi
construída, vivida e pensada na capital baiana, entre os anos de 1940 e 1964, e as formas
como o referido problema social se apresentou no universo social dos indivíduos considerados
criminosos. Temos por hipótese que, de certa forma, a criminalidade acabou transformando e
redefinido as relações sociais antes estabelecidas na Salvador Republicana do citado período.
Isso nos remete a pensar como esses conflitos e tensões ocorridas foram capazes de
influenciar nas práticas cotidianas da época. Assim, a temática proposta indaga sobre o grau
de complexidade daquela sociedade, uma vez que a criminalidade pode nos colocar diante de
conflitos e disputas entre sujeitos dos mais variados níveis sociais que, motivados por uma
diversidade de questões, optam por solucionar seus problemas pela via do conflito.
Palavras-chave: Criminalidade, Cotidiano, Violência.
I – CONSIDERAÇÕES INICIAIS
As transformações ocorridas no campo da pesquisa historiográfica apontam para
uma crescente pluralidade temática e de abordagem, tendo possibilitado ao historiador
melhores condições para o entendimento sobre as sociedades. Entendemos que o estudo sobre
a criminalidade pode ser concebido enquanto possibilidade de compreender o universo
cotidiano dos sujeitos ligados direto ou indiretamente com práticas criminosas na sociedade.
Nessa pesquisa, tomamos como ponto de partida as relações conflituosas estabelecidas no
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âmbito daquilo que identificamos como “criminalidade”, 530 no intuito de, acompanhando as
trajetórias de vida de sujeitos criminosos ou criminalizados, identificar as relações
estabelecidas entre os mesmos e os demais segmentos da cidade de Salvador.
O contato com as fontes nos possibilita afirmar que, entre 1940 e 1964, havia uma
forte incidência de ações consideradas como criminosas, tendo a imprensa, em alguns
momentos, alertado para os altos índices de violência na cidade. Se tomarmos este veículo de
comunicação como ferramenta de representação dos anseios e angústias dos grupos
hegemônicos, podemos, a partir de seu discurso, ter uma idéia de como esses grupos estavam
pensando os problemas oriundos da criminalidade.
Preocupado em analisar o momento da perspectiva das mudanças e permanências
na cidade de Salvador, buscaremos mostrá-las a partir da dinâmica da criminalidade, visando
captar, entre os sujeitos dos mais variados segmentos sociais, as táticas531 cotidianas532 de
sobrevivência face à violência presente nas relações familiares, de trabalho e de lazer. Temos
por hipótese que, de certa forma, a criminalidade acabou transformando e redefinido as
relações sociais antes estabelecidas na Salvador Republicana de 1940-1964. Isso nos remete a
pensar como esses conflitos e tensões ocorridas na cidade foram capazes de influenciar nas
práticas cotidianas da época.
II – APRESENTANDO O LABIRINTO
Esse trabalho visa investigar o cotidiano do universo da criminalidade ocorrida em
Salvador entre as décadas de 1940 e 1964, especialmente as práticas criminosas desenvolvidas
530
Criminalidade e crime serão aqui trabalhados de acordo com a definição de Boris Fausto, em sua obra Crime
e Cotidiano, na qual o mesmo entende as duas expressões como tendo significados específicos. Para ele,
“’criminalidade’ se refere ao fenômeno social na sua dimensão mais ampla, permitindo o estabelecimento de
padrões através de constatações de regularidades, cortes; ‘crime’ diz respeito ao fenômeno na sua singularidade,
cuja riqueza em certos casos não se encerra em si mesma, como caso individual, mas abre caminho para muitas
percepções.” (FAUSTO, 2001, p. 19).
531
Utilizo-me aqui da definição de Michel de Certeau, que o denomina tática, “... um calculo que não pode
contar com um próprio, nem, portanto com uma fronteira que distingue o outro como totalidade visível. A tática
só tem por lugar o do outro (...) Ela não dispõe de base onde capitalizar os seus proveitos, preparar suas
expansões e assegurar uma independência em face das circunstâncias (...) Tem constantemente que jogar os
acontecimentos para os transformar em ‘ocasiões’. Sem cessar, os fracos deve tirar partido de forças que lhe são
estranhas.” (CERTEAU, 1994, pp. 46-7).
532
Sobre a idéia de cotidiano, optamos por trabalhar com os argumentos de Maria Odila Leite da Silva Dias, que
assevera ser este, “sempre legado ao terreno das rotinas obscuras, o quotidiano tem se revelado na história social
como área de improvisação de papeis informais, novos e de potencialidade de conflitos e confrontos, em que se
multiplicam formas peculiares de resistência e luta. Trata-se de reavaliar o político no campo da história social
do dia-a-dia... (DIAS, 1995:14-5)”. Processo que tem como implicação, a reconstrução da organização de
sobrevivência dos grupos historicamente marginalizados do poder.
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por sujeitos pertencentes às camadas subalternas. Os indivíduos aos quais buscamos estudar
serão aqueles que de certa forma ocuparam espaços marginalizados da sociedade
soteropolitana, tanto nos espaços físicos, como pelas posições sociais de pouco prestigio na
mesma.
Concentrar-nos-emos naqueles sujeitos cujo exercício da cidadania, de certa
forma, foi-lhe extirpado pelas elites dominantes locais. Trata-se de pessoas de pouca ou
nenhuma escolaridade, trabalhadores das mais variadas profissões, desempregados, de baixo
poder econômico e em sua maioria, negro. Cabe ressaltar que ao longo dos séculos de história
brasileira, as camadas subalternas têm sido comumente estigmatizadas de diversas maneiras
pelas elites dominantes, as quais impuseram uma imagem às populações negras e pobres,
sempre associada à violência.
A partir de diversas formas de segregação impostas a esses grupos, construiu-se
um discurso da busca pela segurança, cujo objetivo foi assegurar às camadas dominantes o
controle sobre os mesmos, que eram vistos como uma ameaça à sociedade. Para alguns
autores, aqueles que seriam considerados “vitimas” desse violento processo de exclusão que
historicamente se constituiu, tornaram-se os principais alvos do novo projeto de repressão,
formulado na sociedade (CANCELLI, 1994; FRAGA FILHO, 1996;).
No contexto da década de 1940, foram realizadas várias obras na cidade buscando
o “bem estar social” para os habitantes, um período de grandes construções.533 O processo de
urbanização e, a tentativa de industrialização realizada durante a década de 1950 em Salvador,
incluso em um projeto de modernização da cidade, foi capaz de modificar os pensamentos e
hábitos de seus moradores.534 A partir desse processo aumenta-se o perímetro urbano da
mesma, surgindo novos bairros e avenidas, ampliando-se a população local.535 Com isso
passam a surgir graves problemas sociais, resultado desse processo de modernização vivido
pela capital baiana, para os quais as autoridades reservavam pouca atenção.536 Começam
surgir habitações irregulares, em espaços sem saneamento básico, iluminação elétrica, entre
outros serviços necessários para o bem estar dessa população.
A insuficiência do mercado de trabalho na Bahia de 1940, teria contribuído para
ampliação do êxodo de pessoas de alguns municípios para a capital do Estado na busca por
melhores chances profissionais. Segundo Ferreira Filho (2003), neste período o mercado de
533
Precisamos de terra para construir nossas casas. . Jornal da Bahia, Salvador, 28 set. 1958, p. 6
GOMES, Pimentel. A industrialização da Bahia. Jornal da Bahia, Salvador, 28 out. 1958, p. 2; GOMES,
Pimentel. Salvador, cidade culta e dinâmica. Jornal da Bahia, Salvador, 01 out. 1958, p. 2
535
Enquanto novas construções se fazem e a cidade se amplia. A Tarde, Salvador, 22 de mar. 1941, p. 2
536
Ao povo não se engana. Jornal da Bahia, Salvador, 24 set. 1958, p. 2; Salvador, cidade imunda: das 250
toneladas de lixo apenas 120 são coletadas. . Jornal da Bahia, Salvador, 11 ago. 1958, p. 5
534
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trabalho era extremamente restrito, o qual contava com o fraco poder de consumo, fruto do
baixo poder aquisitivo da população. Isso teria contribuído para o surgimento de novas
alternativas de sobrevivência na cidade, coincidindo com os índices assustadores de vadiagem
e violência urbana.
A tentativa de modernização da cidade de Salvador é pensada por Fonseca (2002),
enquanto um projeto amplo de conotações culturais, estéticas, sociais, raciais e políticas. Para
ele, nas primeiras décadas do século XX, o bojo da luz das reformas urbanas vivenciadas pela
cidade,
buscou-se
reformulações
comportamentais,
melhor
dizendo,
normatizações
comportamentais. Desta forma, para se conseguir reformar a cidade foi necessário “...
incorporar modernas práticas de lazer, escolarizar as mulheres, repensar a família, redefinir as
formas de sociabilidade no espaço publico...” (FONSECA, 2002, p.25).
Desde os primeiros anos desse período, o crescimento da criminalidade já era
noticiado pela imprensa baiana que via os problemas de ordem estrutural como elementos que
facilitavam a ação dos criminosos. A falta de policiamento nas ruas da cidade era
constantemente questionada por essa imprensa. Segundo a mesma, a onda de criminalidade
vivida em Salvador não se restringia apenas aos “bairros populares”, incluía também os
centros da cidade, cujas políticas de prevenção exercida pelos policiais tornavam-se uma
prática de pouco efeito.537
As fontes evidenciam uma cidade com altos índices de violência, cuja falta de
segurança, quase sempre denunciada pela imprensa baiana, refletia os descasos das
autoridades frente aos problemas enfrentados por essa sociedade. Nesta última existiam certas
modalidades de crimes mais comuns, os quais refletiam o universo social no qual o criminoso
se inseria. Esse sujeito aparecia envolvido em disputas pessoais que, em alguns casos,
resultavam em morte. Além disso, é possível perceber como o processo de exclusão e
violência, contra alguns grupos sociais, era bastante evidente nas décadas de 1940-1964. Isso
remete à questão de que, historicamente, as políticas adotadas no combate à criminalidade,
pelas autoridades policiais, têm sido resumidas às medidas repressivas.
A violência sempre esteve presente na sociedade brasileira envolvendo sujeitos
das mais diversas esferas sociais, porém, a repressão institucionalizada quase sempre foi
direcionada contra grupos marginalizados por essa sociedade. O Estado se utilizou da
prerrogativa de estar buscando a manutenção da “ordem social”, submetendo toda sociedade
civil organizada ao seu jugo, sob vigilância policial, sendo que certas camadas foram mais
537
A repressão é enérgica mais os infratores não desistem. A Tarde, Salvador, 21 de fev de 1951, p. 8
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perseguidas por essa vigilância, as quais formadas, em sua maioria, por pessoas negras, de
baixa renda e de pouca escolaridade. As representações policiais, quase sempre,
reivindicavam o monopólio do uso da violência no combate à criminalidade, tendo o poder de
definir quais os grupos seriam criminalizados e, por sua vez, perseguidos (CANCELLI, 1994;
FRAGA FILHO, 1996;).
Cancelli (1994), ao estudar a violência durante a “Era Vargas”, vai afirmar que o
Estado, obcecado pelas transformações, apropria-se do uso da violência como instrumento
transformador, outorgando o monopólio da mesma, na tentativa de impor seu poder na
sociedade. Sobre isso, a autora argumenta: “... ao conjunto de instituições o Estado reserva
procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer a forma
específica de poder que é a ‘governamentalidade’ e, cujo alvo é a população...” (CANCELLI,
1994, p. 22-3). A justificativa para sobreposição do Estado à Lei e às garantias dos direitos
dos cidadãos era que o uso da violência ─ entenda-se aquela direcionada aos sujeitos
considerados criminosos ─ seria defendida pelos poderes públicos como necessária para
preservação da “ordem” e do bem estar da população.
A temática das “formas de compreensão, vivência e construção
da
criminalidade538 em Salvador de 1940-1964, pelos criminosos pertencentes às camadas
subalternizadas”, se insere em um contexto histórico, no qual aspectos da violência são
apresentados com freqüência em nossa sociedade, seja através das políticas públicas de
segurança, seja pelos conflitos entre os indivíduos em particular.
III – DIÁLOGO BIBLIOGRÁFICO
Nas últimas décadas, a História Social tem realizado um grande esforço no sentido
de tentar compreender as relações historicamente estabelecidas entre as diferentes camadas
sociais, sobretudo a historiografia que estuda as práticas cotidianas dos sujeitos pertencentes
aos seguimentos ditos subalternos. Neste contexto, para a apreensão dos comportamentos
violentos das camadas sociais que constituía a população soteropolitana, buscamos situá-los
538
Para realização de um estudo sobre a criminalidade é necessário que delimitemos quais os tipos de crimes que
pretendemos pesquisar, pois pensar este problema social é remeter-se a uma série de atos contrários às Leis,
tornando-se algo muito generalizante para uma pesquisa. Diante dessa questão, buscamos delimitar nossas
atenções em estudar, especificamente, duas modalidades de crimes: as formas de Homicídios: Simples,
Qualificado, Culposo e as formas de Lesões Corporais: de Natureza Grave, Seguida de Morte, Culposa, ambas as
modalidades presentes no Código Penal de 1940, na Parte Especial, Título I, Dos Crimes Contra a Pessoa,
especificamente Capítulos I e II, que dispõe de crimes Contra a Vida e das Lesões Corporais, respectivamente.
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em um espaço e tempo transcorrido. Focá-los em uma dimensão histórica constitui-se uma
tarefa necessária para uma possível compreensão da sociedade, na qual a nossa tentativa é
compreender as relações criminosas em sua multiplicidade de formas e configurações
históricas.
Diante dos muitos desafios que a temática escolhida nos impõe, trazemos os
argumentos de Chartier (1990, p. 17), defendendo que a representação do mundo social é
sempre determinada pelos interesses dos grupos que as forjam. Nosso desafio é identificar
como os discursos oficiais apresentavam os criminosos à sociedade, buscando evidenciar
outras possibilidades de entendimento sobre experiências de vida desses indivíduos. Tais
histórias serão trazidas dos autos de processos crimes e das páginas dos jornais e, dessa
perspectiva, pretendemos comparar as representações da criminalidade construídas pelos
indivíduos diretamente envolvidos em crimes com aquelas construídas pelas autoridades e
pela imprensa.
Ao defender que os inquéritos micro-históricos, em muitos casos, têm os temas do
privado, do vivido e do pessoal, como objeto de análise, Ginzburg (1991) traz elementos que
nos ajudam a compreender, em nosso caso particular, a importância dos processos criminais,
os quais nos apresentam os indivíduos enquanto criminosos, autores, vítimas e/ou
testemunhas de um crime. O autor também chama atenção para o risco que corremos em
determinados estudos, quando não atentamos para a complexidade existente nas relações que
ligam os sujeitos a uma determinada sociedade.
No artigo “Textos, Impressão, Leituras”, Chartier (2001), ao discutir uma história
de distintas práticas de leituras, mostra como um texto pode ser entendido de formas tão
diferentes pelos leitores. Ele explica que a experiência mostra que ler não significa estar
submisso aos mecanismos textuais, e sim, uma prática criativa, capaz de inventar significados
e conteúdos singulares, não redutíveis às intenções dos autores, produtores dos textos. O
referido autor destaca que “o historiador deve buscar um meio de determinar os paradigmas
de leituras predominantes em uma comunidade de leitores, num dado período e lugar” (pp.
226-7). Partindo dessa perspectiva de análise, buscamos dialogar com o citado trabalho na
tentativa de entender as formas de compreensão que os habitantes de Salvador tiveram, sobre
o universo da criminalidade.
Acreditamos que os argumentos desenvolvidos na última
obra citada são
significativos para esta pesquisa, na medida em que contribui para entender como foram
possíveis distintas formas de leituras dos habitantes com relação ao presente estudo Na
verdade, nosso desafio é entender e mostrar não só as diferentes formas de compreensão,
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vivência e construção da criminalidade dos sujeitos pertencentes às camadas subalternas,
pretendemos mostrar também como essas diferentes formas de leituras se articulavam e se
integravam num mesma espaço e tempo.
Sabemos que as percepções do mundo social não são discursos neutros. Pelo
contrário, estes últimos indicam a existência de concorrências e competições entre os
indivíduos de uma determinada sociedade, resultando na tentativa de imposição de uma dada
concepção de mundo social de um grupo frente outro (CHARTIER, 2002). O trabalho de
Schwarcz (1987), Retrato em Branco e Negro, constitui uma significativa sugestão para se
pensar essa questão a partir da produção discursiva da imprensa, pois, para a autora, os jornais
podem ser lidos e interpretados de diversas maneiras e é preciso estar atento para o fato de
que, neles são apresentados vários relatos que trazem inúmeras “pistas” e “sinais”, os quais
possibilitam diversas interpretações sobre um mesmo fato.
Segundo ela, “através de uma série de recurso de pontuação, grifos e expressões,
o texto encaminha ironicamente a reflexão contra a aparente verdade que começa a
enunciar” (SCHWARCZ, 1987, p. 13). Com base nesse processo, buscamos captar aspectos
particulares das supostas mudanças e permanências históricas expressas nos discursos da
imprensa soteropolitana do período recortado por nós, bem como compreender o papel
desempenhado pela imprensa baiana no processo de noticiar o problema da criminalidade
local.
O contato com a documentação produzida pela imprensa baiana da época nos
possibilitará identificar como as ações consideradas criminosas eram entendidas pela
população de uma forma em geral. Essa produção discursiva será pensada, em parte, como
um reflexo do pensamento das elites baianas no tocante ao fenômeno da criminalidade. Neste
caso, os jornais serão compreendidos aqui, “primeiramente, enquanto ‘produto social’, isto é,
como resultado de um ofício exercido e socialmente reconhecido, constituindo-se como um
objeto de expectativas, posições e representações específicas” (SCHWARCZ, 1987, p. 15). É
importante destacar também o papel deste veículo de comunicação no que diz respeito aos
embates da sociedade, quando o mesmo agia como produtor e/ou reprodutor desses embates
(MOREL, 2003).
Em sua obra, Crime e Cotidiano, Fausto (2001) estuda a criminalidade na cidade
de São Paulo, entre os anos de 1880 e 1924, abordando esta temática como um fenômeno
social produzido a partir de várias determinações. Para ele, o crime não é fruto do acaso.
Neste trabalho, os homicídios são tomados como caminho que possibilita o autor identificar
valores vigentes naquela sociedade. Em seus argumentos, os instrumentos utilizados na
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prática dos crimes indicam padrões culturais, com os quais o autor acredita refletir o estágio
tecnológico da sociedade na qual o sujeito está inserido.
Para Fausto (2001), a violência pode ser empregada com o objetivo de alcançar
determinados objetos materiais, ou pode ainda ser utilizada para resolução de conflitos
pessoais nos quais os sujeitos acabam se envolvendo. Com base nesse pressuposto tentarei
identificar os motivos mais comuns para as ações criminosas, visando entender de que forma
essas ações foram capazes de deixar suas marcas em alguns espaços da cidade de Salvador.
Em seu trabalho, Sodré (1992) analisa a relação dos indivíduos com o território
ocupado, asseverando que o território está muito ligado à questão da identidade daquele que o
ocupa, pois o mesmo refere-se à demarcação de um espaço na diferença com os outros
sujeitos. Segundo este autor, é no território que as pessoas traçam limites, especificam o lugar
e criam as características de suas ações. Com base nesses argumentos, as práticas criminosas
ocorridas na cidade de Salvador podem ser pensadas enquanto demarcação espacial, por parte
dos sujeitos criminosos, na sociedade ao qual os mesmos estão inseridos, bem como uma
forma encontrada para afirmação de um suposto poder frente aos outros.
A idéia de pertencimento a um mesmo território não impedia que houvesse
conflitos entre as pessoas que nele habitavam, pois, num mesmo espaço urbano se encontrava
presente um conjunto de famílias, cujas experiências de vida eram muito distintas umas das
outras, mas que em certo sentido se respeitavam, firmando uma espécie de “contrato social”.
Para Certeau (1996), esse compromisso só é considerado quando as pessoas renunciam “à
anarquia das pulsões individuais” o que, segundo o ele, contribui para o relacionamento
coletivo da convivência cotidiana, embora algumas vezes esse compromisso pareça não ser
considerado.
Em sua obra, Trabalho Lar e Botequim, Chalhoub (1996) desenvolve argumentos
no sentido de conclui que os conflitos entre os trabalhadores, estudados por ele, surgem da
dinâmica dos grupos como ajuste das tensões no interior das relações sócio-culturais dos
micro-grupos, para os quais o crime é apresentado como representação ou leitura de mundo.
A partir dessa leitura, o autor mostra o crime como uma possibilidade de solucionar as tensões
e conflitos existentes entre eles.
A incorporação da violência enquanto um modelo de conduta socialmente válido,
evidenciado por Chalhoub (1996), constitui-se através de normas próprias que regulam os
conflitos entre os trabalhadores livres do Rio de Janeiro. Segundo o autor, algumas dessas
tensões entre esses micro-grupos eram solucionadas sem a intervenção do Estado, evitada
sempre que possível como forma de resistência à nova ordem social. Recorremos a este
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trabalho na tentativa de entender a ligação entre as ações criminosas de determinados sujeitos
com o contexto social no qual o mesmo se insere.
Chalhoub (1996) traz sugestões que nos possibilitam entender esse universo de
conflitos como reflexo de uma forma de vida, cuja dinâmica cotidiana contribui para o ajuste
das tensões estabelecidas no interior das relações sócio-culturais dos micro-grupos. Desta
forma, buscaremos dialogar com seu trabalho, especificamente com suas metodologias de
análise, referente aos estudos dos comportamentos criminosos dos sujeitos pertencentes às
camadas subalternas. Os argumentos apresentados no referido trabalho nos ajudarão a
perceber a criminalidade enquanto representação das condições destes sujeitos.
A criminalidade pode ser pensada de duas perspectivas de interpretação: às vezes,
permeada nas relações de convivência, aparecendo como algo institucionalizado, sendo
muitas vezes gerada a partir de questões sem antecedentes históricos; outras vezes, como um
prolongamento das tensões já existentes (FRANCO, 1997; CHALHOUB, 1996).
Pretendemos saber em que medida foi possível haver em uma mesma sociedade,
distintos modo de compreensão, vivência e construção da criminalidade na cidade do
Salvador, de 1940 a 1964, na tentativa de mostrar como o referido problema social se
apresentou no universo cotidiano desses indivíduos. Nesta mesma perspectiva, indagamos
como as medidas adotadas no combate a esses comportamentos criminosos, eram
compreendidas pela população soteropolitana, e de que forma esta reagia frente a essas
questões.
Diante dessa realidade conflituosa, interessa-nos pensar como um crime causado
por questões aparentemente pessoais, entre duas ou mais pessoas, pode ser entendido como
um problema da sociedade. Nossa intenção é identificar se existe relação entre o público e o
privado, no intuito de perceber como essas instâncias, próprias das relações estabelecidas nos
meios urbanos, influenciam-se mutuamente, pensado isso a partir das ações criminosas.
Pretendemos saber de que forma, as relações estabelecidas no cotidiano eram capazes de
influenciar nas práticas criminosas e vice-versa.
É possível pensar as práticas criminosas ocorridas nesse contexto, como o
resultado das relações sociais construídas ao longo de um processo histórico específico,
integradas às transformações ocorridas no período, ou até mesmo como reação de
determinadas camadas da população soteropolitana às diversas mudanças ocorridas na
sociedade. Diante das diversas transformações, tentaremos identificar quais as principais
mudanças ocorridas no âmbito da criminalidade e seus possíveis desdobramentos nas relações
cotidianas de convívio entre os sujeitos das camadas subalternas.
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IV – LABIRINTO DOCUMENTAL
Uma das formas de se perceber como essa criminalidade se manifestou no
cotidiano dos segmentos subalternizados é analisando os discursos veiculados nos periódicos
da época, através dos quais nos é possível identificar o papel desempenhado pela imprensa
baiana539 no processo de mediação dos conflitos e tensões dos sujeitos subalternos. Nessas
fontes, buscamos identificar informações sobre os crimes, tais como: envolvidos, local de
ocorrência, conteúdo, motivo e aspectos do cotidiano dos conflitantes.
Além dos impressos, utilizaremos processos criminais que vão nos ajudar a
conhecer melhor os indivíduos envolvidos em conflitos, pois é possível encontrar neles
informações que indicam as motivações e as conseqüências das práticas de crimes, além de
mostrar as justificativas, e os argumentos da defesa e da acusação em torno dos motivos que
ensejaram tais atos. Os detalhes e informações contidas em cada episódio possibilita percorrer
a trajetória dos criminosos, com as quais visamos entender como se processava a intervenção
destes nas relações de conflitos e tensões. Nessa perspectiva, esperamos desvendar possíveis
regularidades que podem, em parte, revelar valores e normas que vigoravam entres os
conflitantes, assim como a dinâmica social na qual estavam inseridos.
Entendemos que as categorias de análise criminalidade e crime não se excluem,
mas impõem procedimentos metodológicos específicos. No primeiro plano, abordaremos os
comportamentos criminosos e sua ligação com a trama social; em segundo plano estaremos
atentos para as particularidades do crime em si, enquanto objeto de análise, neste, seguiremos
a sugestão de Ginzburg (1991) que defende o nome do individuo como um fio condutor para
os estudos dos “estratos subalternos da sociedade”, permitindo ao investigador encontrá-lo
em contextos sociais diversos. Essa investigação micronominal, permite ao historiador, se
deslocar, com êxito, pelo “labirinto documental”, possibilitando-lhe identificar o tecido social
no qual o individuo estava inserido.
Para entendermos como se processaram as ações implementadas pelos poderes
públicos na tentativa de controle da criminalidade em Salvador, recorreremos às publicações
539
Os periódicos que estão sendo utilizadas nesta pesquisa são: A Tarde, Correio da Bahia, Diário Oficial,
Diário da Bahia, Diário de Notícias, Jornal da Bahia.
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dos periódicos baianos, em especial do Diário Oficial do Estado da Bahia, no qual podemos
encontrar ações e atos promovidos pelo governo estadual.
Por fim, recorreremos às obras de memorialistas que escreveram sobre a cidade no
período em que a pesquisa está contextualizada, por entender que estes trabalhos nos
possibilitarão captar vestígios da história da cidade. Assim como as demais fontes aqui
pretendidas, os livros de memórias com suas subjetividades serão entendidos como reflexo do
pensamento de determinados grupos da sociedade baiana, cujas formas de compreensão sobre
a cidade, como as diversas informações sobre a mesma serão significativas para o
desenvolvimento desta pesquisa.
Os inúmeros vestígios contidos nas fontes mencionadas, embora dispersas em
algumas instituições responsáveis em garantir sua preservação,540 visam dar conta da
problemática aqui elaborada. A diversidade dessas fontes contemplará os objetivos almejados
nessa pesquisa, pois esses vestígios contêm muitas informações sobre as trajetórias cotidianas
dos mais variados sujeitos históricos que este trabalho pretende estudar, tanto o criminoso em
sua particularidade, como sua relação com a sociedade.
As fontes que tratam da temática são produzidas por profissionais que se
apropriam do discurso jurídico-policial, refletindo assim, a linha de pensamento desses
setores. Destacamos, porém, que toda documentação possui suas peculiaridades discursivas e,
devido a sua complexidade, os discursos contidos nessas fontes, não podem ser simplesmente
reproduzidos, indiscriminadamente. Para além disso, é preciso submetê-los a uma análise
crítica, fundamentada num conjunto de referências bibliográficas que versem sobre a
temática, tendo como objetivo, entendê-las no contexto em que foram produzidas.
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da Belle Époque. São Paulo: Brasiliense, 1996.
540
Arquivo Público do Estado da Bahia – APEBa; Biblioteca Pública do Estado da Bahia – BPEBa; Instituto
Geográfico e Histórico da Bahia – IGHBa.
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VALIENTES E CAPOEIRAS: CONSTRUÇÃO DE TERRITÓRIOS EM
ITABUNA NA DÉCADA DE 1950.
Gissele Raline da Cunha Fernandes Moura - UESC
[email protected]
O presente trabalho deverá ser apresentado no Simpósio 2: História Social no I Congresso
Sergipano de História. E tem como proposta, a discussão da relação entre os ditos “valientes”
e os capoeiras, na cidade de Itabuna na década de 1950. Esses valentões, ou valientes como
eram denominados pelos periódicos locais da época, assim como os capoeiras, faziam parte e
um grupo social associados a um contexto de violência, e a um processo de disputa de espaços
atrelado ao uso da força. Os indivíduos pertencentes a esse grupo eram também trabalhadores
que tinham suas ocupações nos variados setores da sociedade (desde ambulantes à policiais),
em uma cidade em processo de “modernização” . È nesse emaranhado de relações complexas,
que procuro construir as trajetórias dessas vidas que se encontravam, e que ainda vigoram em
nossos dias.
Palavras-chave: Valientes, Capoeiras, Itabuna.
Em vinte e sete de abril de um mil e novecentos e cinqüenta e quatro o Voz de
Itabuna noticiava:
Pelas reclamações que temos recebido ultimamente, as imediações da
estação da estrada de ferro, tem sido palco de algum tempo para cá, de fatos
abomináveis (...) De ordinário após armarem barulho e sobressaltarem as
famílias, os ‘valientes’ deixam o local sem maiores preocupações, pois as
contendas que travam se realizam sem precalços, uma vez que raramente
aparecem policiais para repararem os acontecimentos541.
A notícia acima é mais um dos vários reclames encontrados acerca dos valientes.
Encontrar tal personagem assim referido: “valientes”, provoca indagações a respeito desta
categorização. Quem seriam os “valientes”? Por que indivíduos eram assim designados nos
541
Arquivo Público Municipal de Itabuna – José Dantas (APMIJD). Voz de Itabuna, 27/04/1954.
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idos dos anos 1950. Quais os elementos que estavam implícitos ao discurso enunciado no
jornal? Quais eram os lugares que freqüentavam?
Os valientes eram sujeitos históricos que permeavam as matérias dos jornais da
década de 1950 como indivíduos de má conduta e promotores de desordens que, quando não
estavam nas páginas policiais, estavam nas crônicas sendo alvo de duras críticas e acusações.
Segundo o Voz de Itabuna, nessa década a violência era algo muito presente no
cotidiano da cidade, sendo alvo de indignação e denúncia expressada nos artigos desse jornal
e por vezes associada aos problemas de ordem estrutural, “... a partir das 18 horas as ruas dos
subúrbios transformam-se em zonas perigosas, onde só os bêbados e os meliantes têm
passagem franca”542 e, “saindo-se do centro, onde nunca falta iluminação, entra-se no restante
da zona urbana onde o silêncio e a treva fazem denotar ameaças de bombardeiro...” 543.
A respeito da matéria que se refere aos subúrbios enquanto zonas perigosas a
partir das dezoito horas, havendo espaço apenas para os “meliantes”544 – essa designação,
meliante chama atenção, posto que é um dos termos da linguagem policial recorrente na
documentação onde é atribuído à pessoas de má conduta, que está em desacordo com a ordem
estabelecida, principalmente àqueles oriundos das camadas sociais mais pobres - que segundo
o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, significa malandro, vagabundo. Isso ocorria
porque esses lugares tinham a iluminação precária o que facilitaria a ação desses indivíduos.
Notícias como estas precisam ser problematizadas.
O Voz de Itabuna, no decorrer dos anos de 1950, pertencia à oposição em relação
aos partidos que estiveram no comando da máquina administrativa . Logo é possível perceber
uma crítica à administração local, que perpassou muito por questões ligadas ao
beneficiamento de determinadas áreas da cidade em detrimento de outras. Centro e o subúrbio
eram pauta cotidiana das páginas desse periódico. E segundo essas notícias havia um
privilegiamento do centro da cidade. Talvez, seja porque o discurso modernizador tenha
chegado à Itabuna, ou pelo menos a seus jornais. Já que a vontade de modernização pela qual
a cidade estava passando naquele momento, respaldava as reivindicações encontradas
naquelas páginas.
Voltando à notícia, fica mais fácil de compreender o teor e o tom, dessa matéria,
quando leva-se em consideração que o Voz de Itabuna, além de ser um jornal da oposição,
542
Voz de Itabuna, 25/05/1951.
Ibidem, 07/10/1950.
544
Etimologicamente encontramos a seguinte origem: cast. maleante (1609) 'burlador', de malear, este der. de
malo 'mau'; ver mal(e)-; f.hist. 1858 miliànte, 1877 meliànte .Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.
Disponível em http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=meliante&stype=k. Acessado em junho de 2007.
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como já referido acima, tinha como proprietário Aziz Maron, deputado federal pelo Partido
Trabalhista do Brasil (PTB), que cedia um espaço privilegiado em seu jornal para as
campanhas eleitorais de Getúlio Vargas. Este, por sua vez, estava empenhado no processo de
industrialização do Brasil, que fazia parte de um projeto maior, o de contemplação do
discurso modernizador iniciado nos primeiros anos do século XX, que posteriormente foi
muito criticado pela historiografia545.
Em meio a esse contexto, Itabuna aparecia nas páginas dos jornais destacando os
problemas com a violência, de forma, inclusive sangrenta. Retomando o início dos anos de
1950, encontra-se um alerta sobre o comércio de armas em Itabuna, que estava acontecendo
sob os auspícios da polícia, os “elementos de farda”.
Está merecendo a atenção do sr. Chefe de polícia (...), vendem-se revolvers,
punhais e ‘peixeiras’ às escancaradas, parecendo que aqui se ai transformar
num num pavoroso ‘far-west’ (...). Consta até que elementos de farda são
grandes negociantes de armas. E com tanta arma perigosa, todo mundo
armado, não é e admirar que matem em praça pública.”546
Marcos Luiz Bretas, em seu livro Ordem na Cidade: o exercício cotidiano da
autoridade policial no Rio de Janeiro (1907-1930), que discute o cotidiano dos policiais na
cidade do Rio de Janeiro no inicio do século XX, identificou naquele contexto, que os
recrutados para compor o quadro do efetivo policial, principalmente os servidores destacados
para a patrulha nas ruas, eram em sua maioria, pertencentes a uma classe social pobre e
possuíam escolaridade mínima, ou nenhuma. Os recrutamentos eram realizados de forma
voluntária, porém os que não se inscrevessem para o destacamento da polícia tinham grandes
chances de servirem ao exército de forma compulsória, onde as condições de trabalho e os
baixos salários eram uma realidade ainda pior que a da polícia. Logo, o que às vezes parecia
um ato voluntário, transformava-se em uma das poucas alternativas para sua sobrevivência,
até porque, às vezes ser policial significava garantir a sobrevivência de famílias inteiras,
mesmo que em condições precárias 547.
Em Itabuna da década de 1950, a situação dos policiais era muito próxima desse
quadro descrito por Marcos Bretas. E talvez explique a possível participação de policiais em
tráfico de armas.
545
FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucila de Almeida Neves. O tempo do liberalismo excludente: da
Proclamação da República à Revolução de 1930. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
546
Ibidem, 25/03/1950.
547
BRETAS, Marcos Luiz. Ordem na Cidade: o exercício cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro:
1907-1930. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
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A impressão era que a cidade, naquele momento, estava prestes a entrar em
guerra. E nesta guerra, diversos grupos foram alvos da pecha de violentos, e quando o cenário
político era o das eleições, as formas dos preparativos para um momento de singular
importância como este, eram descritas em tons de preocupação e revolta e denunciava o
envolvimento das elites nesse processo:
a situação política de Itabuna já começou agitar-se profundamente.
Preparativos de toda especia estão sendo feitas. Até preparativos bélicos.
Consoante certas informações de fontes credenciadas, gente escolhida e
braba está decendo do Pernambuco e Alagoas, para engrossar de
conhecidíssimos capitães do cangaço local ...548
Nessa matéria, o foco é dado à violência praticada em Itabuna, pelos “capitães do
cangaço”. Sendo a alusão aos jagunços ou capangas, trabalhadores dos fazendeiros da região,
cuja função principal seria matar aqueles considerados inimigos ou os desafetos de seus
patrões. Esses personagens são muito recorrente na literatura local, Maria Delile Miranda
Oliveira, memorialista da região, em sua obra Tecendo Lembranças, contribuiu com essa
discussão registrando a ação desses indivíduos, a exemplo das eleições da cidade afirmando
que “(...) quando o chefão necessita de algum ‘serviço’, os ‘capangas’ eram solicitados (...) a
tocaia ainda permeava todas as vinganças”549.
Sob a alcunha de capanga, apresento neste momento Elpídio Santos, vulgarmente
conhecido por Sururu. Segundo Cláudia Viana D'Andrade, em Capoeira: de luta de negro a
exercício de branco(Via Literarum, 2006),Sururu havia sido “capanga”, ele era “querido, foi
empregado da família Barreto. Seus amigos o denominavam de ‘capanga’, já que nessa
década, existiam os coronéis de cacau e, Sururu, era uma espécie de guarda-costas”550.
Sururu também era capoeirista e “viveu intensamente a capoeira”, e ainda hoje “é
o mais lembrado dos angoleiros”. Em depoimento concedido pelo filho de Sururu à autora, ele
revela que o pai nutria “uma verdadeira paixão pela arte da capoeiragem. Muito forte, valente,
desafiava qualquer um para carregar uma saca de cacau com tanta facilidade”. A valentia e o
desafio eram traços característicos de um capoeira. Sururu aprendeu a jogar capoeira com
alguém que se chamava Teodoro Ramos, também conhecido por Paizinho. Era forte e temido,
sua atuação nas ruas de Itabuna teve seu auge nas décadas de 1940 e 1950, era visto com
freqüência no bairro da Conceição, subúrbio da cidade. 551
548
Voz de Itabuna, 25/03/1950.
OLIVEIRA, Maria Delile Miranda. Tecendo Lembranças. Itabuna: 2006.
550
D’ANDRADE, Cláudia Viana Ávila. Capoeira: de luta de negro a exercício de branco. Itabuna, BA: Via
Literatum, 2006, p. 71.
551
Ibidem.
549
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As ruas eram o palco principal da atuação desses valientes, eles precisavam ser
conhecidos e reconhecidos. O espaço público, assim, configurava um ambiente propício para
sua demonstração de poder e por vezes transformou-se em privado por conta da atuação
destes valientes. Eles eram os valentões donos da rua.
A rua tinha uma expressão maior para alguns sujeitos históricos que dela viviam.
Ela se configura enquanto um espaço de sociabilidade. Um local de trabalho, de lazer e de
acertos de contas. As relações sociais advindas desse espaço público têm como característica
fundamental a variedade de uso que se faz dele. O trabalhador do dia é o mesmo do lazer da
noite, o arrimo de família pode ser o mesmo “arruaceiro” bêbado das sombras da cidade após
as dezoito horas. O mendigo ou “vadio”, tem nas ruas um lugar de moradia e sobrevivência,
as prostitutas tem nas esquinas um trabalho que lhe rende o pão de cada dia. Assim, o que
para uns não passa de um lugar comum, para outros são a sua própria casa, o caminho que a
vida lhe oferece.
Para Josivaldo Pires de Oliveira, em sua obra No tempo dos Valentes: os
capoeiras na cidade da Bahia, uma das características dos capoeiras, é a valentia, a
ostentação de seus atributos – principalmente os físicos – por meio da força ou de ameaças,
sempre exaltando seu domínio sobre aquela área e/ou situação. Ainda em sua obra, Oliveira
cita Manuel Querino onde este descreve que o capoeira é, “em geral, pernóstico,
excessivamente loquaz, (...) typo completo e acabado do capadócio”, e Oliveira continua um
“notório tipo de rua, que inclusive determinava regras para a mesma. Era ele um tipo de
‘dono’ das ruas ou pelo menos dos territórios sociais que se constituíam nessas ruas”552.
Em Negregada Instituição, de Carlos Eugênio Líbano Soares, os capoeiras
também aparecem como um típicos valentões, que se envolvem com brigas tanto com a
polícia, quanto entre eles mesmo, e nesse último caso a disputa dos territórios é algo
recorrente, e faz parte das relações entre as maltas de capoeiras. Essas maltas eram grupos que
variavam entre 3 a 20 componentes que brigavam entre si por ocupação e defesa de
territórios, e em outros momentos enquanto rivais políticas da época, transição da monarquia
para república, as mais famosa apoiavam partidos políticos que defendiam a república e a
monarquia, entre ela estavam “gauiamus ” e “nagoas”. Essa rivalidade era percebida nas ruas,
palco de atuação desses capoeiras, ora em grupo, ora individualmente, ora por questões
internas às suas relações, ora por questões políticas partidárias. Esses conflitos tinham
552
OLIVEIRA, Josivaldo Pires de. No Tempo dos Valentes: os capoeiras na cidade da Bahia. Salvador:
Quarteto, 2005. p36.
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ressonância nos jornais e no parlamento, ou vice-versa: “Ao mesmo tempo que capoeiras se
digladiavam nas ruas, no parlamento e nos jornais aliados e inimigos(...) terçavam duelos”553.
Segundo os autores, é possível verificar a proximidade dos valentões com os
capoeiras. E é a partir da análise das fontes que procuro, na medida do possível, perceber a
relação existente entre os valientes e os capoeiras da cidade de Itabuna na década de 1950.
No exemplo da Praça da Estação que foi um lugar de destaque em Itabuna naquele
período, logo freqüentadora assídua das páginas dos jornais, mais especificamente nas páginas
policiais, podemos encontrar indícios dessa relação:
A polícia precisa fiscalizar a zona da estação (...) onde se verifica todas as
noites, (...) contravenções e outras espécies de abusos por parte de indivíduos
irresponsáveis (...) A partir das 9 horas, as imediações do bar que ali
funciona, e das diversas barracas instaladas marginalmente à rodovia que vai
ter a Ilhéus, se enche desses indivíduos, que se engalfinham em lutas
corporais, e até mesmo tendo à mão armas de fogo.554
A esses “indivíduos, que se engalfinham em lutas corporais”, tenho algumas
considerações. Eram recorrentes essas contendas, aconteciam mais ou menos no mesmo
horário, ou seja, fazia parte do cotidiano daquele lugar. Esses traços são peculiares aos dos
capoeiras da época, que de ordinário se reuniam para praticar seu “brinquedo” – termo
utilizado pelos mestres mais antigos de capoeira ao se referir ao jogo555 - daí estes indivíduos
se encaixam ao esteriótipo dos capoeiras, que por hábito freqüentavam bares, bebiam e
“brincavam” à porta de botiquins, como cita Waldeloir Rego em sua obra Capoeira Angola:
Ensaio Sócio-etnográfico:
Havia capoeira, onde havia uma quitanda ou uma venda de cachaça, com um
largo bem em frente, propicio ao jogo. Aí, aos domingos, feriados e dias
santos, ou após o trabalho se reuniam os capoeiras mais famosos, a
tagarelarem, beberem e jogarem capoeira. Contou-me Mestre Bimba, que a
cachaça era animação e os capoeiras, em pleno jogo, pediam-na aos dons das
vendas, através de toque espacial de berimbau, que eles já conheciam. 556
Este autor é reconhecido por todos que escreveram sobre a capoeira depois dele.
Seu trabalho etnográfico é um amplo estudo sobre os costumes dos capoeiras, passando por
553
SOARES, Carlos Eugênio Líbano Soares. A Negregada Instituição: capoeiras na corte do Rio de Janeiro
(1850-1890). Rio de Janeiro: ACCESS, 1999. p 59.
554
Voz de Itabuna, 17/06/1954.
555
PASTINHA. Manuscritos do mestre pastinha.
556
REGO,Waldeloir. Capoeira Angola: Ensaio Sócio-etnográfico. Ed. Itapuã. Coleção Baiana, p. 36.
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discussões sobre identidade, e quebrando tabus acerca de uma homogeneização em torno dos
hábitos, vestimentas e rituais da capoeira. Ele, problematizou as canções que envolveram e
ainda envolvem as rodas de capoeiras, sobre tudo na Bahia. Discorre sobre as variadas formas
de compreensão da capoeira desde quem a pratica a quem escreve sobre ela. Teve a
oportunidade de conversar com mestres de capoeiras que quebraram paradigmas, que é o caso
de Mestre Bimba, Manuel dos Reis Machado, o criador da capoeira regional. Viveu um
momento onde esta arte estava sendo transferida do campo criminal para ser um esporte
nacional. Assim, é um autor que muito contribuiu e continua contribuindo para os estudos
sobre este tema ainda em processo de desvendamento.
A capoeira foi uma prática proibida, que constava no Código Penal de 1890, ela
era tida como uma das práticas mais violentas que assolava o Rio de janeiro desde a
escravidão segundo Carlos Eugênio Líbano Soares em sua obra A Capoeira Escrava: e outras
tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). Ele conta que aquele que fosse pego
exercitando a capoeira era preso e condenado a trezentas chibatadas, ou seja, o mesmo que
condenado a morte557. Essas são as raízes da capoeira, violenta, perseguida e mal vista.
Apesar dela não constar mais no Código Penal de 1940, ela apenas deixa de ser
crime, mas continua sendo marginal. A política nacionalista de Getúlio Vargas, retira do sub
mundo da criminalidade práticas oriundas dos negros escravizados, dentro de um discurso
populista ,ele zela por um Brasil homogêneo, com símbolos próprios, tenta reunir todos as
atributos do país em uma identidade nacional558, com isso procura disciplinarizar, manter
sobre controle os ânimos da maioria da população, que era negra.
Voltando um pouco no tempo, no início do século XX, já se pensava na capoeira
como um esporte. No Rio de Janeiro, um professor de educação física, argentino que morava
no Brasil, sugere que a capoeira poderia ser enquadrada na modalidade de esporte, já que
cuidava do corpo de forma exemplar .559Aquele era o tempo do culto ao corpo, do estímulo à
atividade física. Quem se exercitava não adoecia, estava mais disposto e preparado para o
trabalho, e no caso da capoeira podemos pensar que, sendo esta um esporte, estaria sob
controle ao invés de ser praticada nas ruas de “qualquer forma”. É o que vai acontecer anos
mais tarde, mas não detiveram o controle esperado.
Nos anos de um mil e novecentos e trinta, nas capitais do país, principalmente em
Salvador, a capoeira surge com uma nova roupagem. Os mestres de capoeiras, em especial
557
SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A Capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro
(1808-1850). São Paulo: Unicamp, 2004.
558
FAUSTO, Boris. Getulio Vargas: o poder e o sorriso. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
559
SOARES, A Capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850), op. cit.
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Bimba e Pastinha, versam a capoeira em outra perspectiva, agora a capoeira era cultura e não
pertenciam mais ao mudo dos malandros e vagabundos. Pastinha, em sua obra Manuscritos de
Pastinha, classificou os capoeiras de outrora de violentos e desordeiros.560
Já o Mestre Bimba, enquanto criador de uma modalidade diferente da capoeira, a
Capoeira Regional, apesar de argumentar que criou essa nova versão por entender que a
Capoeira de Angola era fraca e estava desaparecendo, também a seu modo excluiu aqueles
que tinham um comportamento inadequado daquele que julgava correto561. Em sua academia,
a maioria dos seus alunos fazia parte de uma elite econômica, e as regras eram rígidas, entre
elas, a proibição de envolvimento em brigas na rua. A mensalidade excluía os pobres, logo
seus iguais. Bimba sofreu duras críticas por conta dessa nova opção, “ (...) na visão de mestre
Noronha, Bimba teria ido ao meio dos ricos."562
Esse processo de “culturalização” para Antônio Liberac Cardoso Simões Pires
ocorre a partir do momento em que houve uma busca por um “status na hierarquia social”,
houve uma negação do espaço para aqueles que eram malandros, e malandros neste caso tinha
a conotação negativa, tanto para Bimba, quanto para Patinha. A partir daquele momento a
capoeira era para trabalhadores e estudantes, sendo divulgada “enquanto símbolo cultural”.563
A violência, no discurso em prol da capoeira a partir da década de 1940, não tinha
mais espaço, Pastinha chega a declarar a respeito daqueles capoeiristas de alguns anos atrás
classificando-os de arruaceiros e desordeiros que, “tudo isso é mancha suja na história da
capoeira, mas um revólver tem culpa dos crimes que pratica? E a faca? Os canhões? E as
bombas?”564 Mestre Pastinha porém, admite que a violência é algo inerente à própria arte da
capoeira: “ o que serve para defesa também serve para o ataque. A capoeira é tão agressiva
quanto perigosa”565
O próprio Mestre Bimba, de certa maneira preservou o esteriótipo de violência
dentro da prática da capoeira. Em seus treinamentos rigorosos com “perfil militarista, (…)
utilizava os treinamentos de ‘emboscada’, semelhantes aos treinamentos de guerrilhas de
mato, realizados nas forças armadas”566. Apesar da inovação no treinamento tornando-o mais
ostensivo, mestre Bimba manteve outros aspectos, no tocante aos conflitos, uma das suas
recomendações, por exemplo, era:
560
PASTINHA, op. cit.
ABREU, Frederico. Criador da capoeira regional. Revista Memórias da Bahia II. Governo do estado da
Bahia.
562
PIRES. Bimba, Pastinha e Besouro Mangangá. op. cit.
563
Ibidem, p. 39.
564
Ibidem, p. 66.
565
Ibidem, p. 66.
566
Ibidem, p. 48
561
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Meninos não se metam em brigas. Se souberem que numa rua qualquer, está
acontecendo alguma, voltem, passem por outra. Mas se no atalho, também
houver, sem que haja meios de evitá-la, vão em frente, com segurança.
Vocês não podem sair perdendo e voltar para casa pra fazer tratamento na
cara. Iodo e arnica custam caro e o pai de vocês não é ladrão para gastar
dinheiro à toa.567
Essa recomendação, a meu ver, é um incentivo ao despertar do valentão. Primeiro
por que a palavra de um mestre de capoeira para seus discípulos é o equivalente a uma lei
instituída, assim o segundo ponto desse incentivo é a recomendação explícita para resolver
seus problemas exatamente onde eles começaram, ou seja, na rua, e não levar ‘desaforo para
casa’.
Sobre a imagem desses indivíduos, era comumente associada a beberrões e
brigões, assim caracterizados nesta matéria “(...) elementos irresponsáveis, que, além de
beberem a mangas largas, armam brigas e pronunciam imoralidades da pior espécie, em vozes
altas, que podem ser ouvidas pelas famílias daquela zona”568. Logo seu comportamento era
incompatível e inapropriado para o convívio com as famílias ali residentes, que ao contrário
destes, viviam de acordo com a moral e os bons costumes, pelo menos para elas.
Mas esses valientes eram destemidos, corajosos, defensores de seus territórios, e
ao que parece, gostavam, ou pelo menos não se incomodavam, em serem reconhecidos como
arruaceiros, brigões, valentões, donos das ruas. E são nas ruas que encontro com eles. É no
espaço público, que se dá o desfecho de suas atuações ante uma sociedade dividida entre as
riquezas do cacau e os infortúnios dos trabalhadores ou desempregados.
Diante destes acontecimentos, o jornal argumentou outros problemas que
corroboravam para a ação indesejável desses indivíduos. Era a precária infra-estrutura que
constantemente foi acusada com uma das colaboradoras dos desatinos ocorridos na cidade,
entre eles, assaltos e agressões de várias naturezas, principalmente nos subúrbios, que “... a
partir das 18 horas as ruas dos subúrbios transformam-se em zonas perigosas, onde só os
bêbados e os meliantes têm passagem franca”569. Deve- se questionar para quem essas zonas
eram perigosas, de que forma esse perigo se apresentava, e por quê? Para Michel de Certeau,
“o bairro constitui para o usuário uma parcela conhecida do espaço urbano na qual, positiva
ou negativamente, ele se sente reconhecido”
570
, sendo assim classificar de violento um
indivíduo ou uma situação, perpassa antes de tudo, pelo lugar de onde se está falando. A
567
Ibidem, p. 50.
Voz de Itabuna, 27/04/1954.
569
Ibidem, 25/05/1951 p.04
570
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 2. morar, cozinhar. Michel de Certeau, Luce Giard, Pierre
Maiol. Petrópolis, RJ: Vozes, 1966. p. 26.
568
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violência tem várias faces, aparecendo a que convém para quem a denuncia, a questão é
analisar a versão que se apresenta considerando o fato de haver outro viés que não pode ser
menosprezado.
Sendo assim, voltemos à Sururu. Além de capanga e capoeirista, também “era
auxiliar de polícia”571, neste tocante, além da obra de Viana, ele encontra-se nas páginas do
jornal Voz de Itabuna, onde aparece sendo criticado por conta de sua omissão diante de uma
atitude criminosa que acontece em um cabaré:
o criminoso, após praticar os crimes acima mencionados, desapareceu,
apesar de se encontrarem no cabaré sinistro quatro policiais: os guardas
noturnos conhecidos por Borracha e Cornélio, o inspetor de polícia
apelidado Sururu e o soldado Julinho.572
A trajetória de Sururu continua na obra de Manuel Coelho Brandão, O Capoeira,
um romance que trata da vida de capoeira de Itabuna. Uma autobiografia, onde o autor adota
nomes fictícios para contar sua experiência com a capoeira, e revela que,
na sua maior parte, os fatos são reais, baseados em acontecimentos de que
fui testemunhas em minha juventude e mesmo quando criança, cujos
personagens, apenas com os nomes substituídos, existem ainda em quase sua
totalidade. 573
Sobre Sururu, ele aparece no romance, como um mestre da capoeira angola que
coordenava rodas de capoeira ordinariamente na Praça Adami, centro da cidade. Era um
capoeirista respeitado na cidade, isso já foi confirmado por Claudia Viana acima, onde
convida o Zeca (personagem que representa o Manuel Brandão, ou Maneca, como também é
conhecido) para um jogo de capoeira, esse convite é atribuído pela fama de valentão que já
corria na cidade a respeito de Zeca capoeira.574
A trajetória desse personagem é permeada por um comportamento que se
assemelha aos valientes da cidade de Itabuna divulgado pelos jornais da época. A freqüência
na zona do meretrício, as recorrentes brigas, o excesso da bebida alcoólica, e demonstração de
força e exibicionismo. Este último sendo confirmado por Cláudia Viana quando ela comenta
sobre um outro capoeirista de Itabuna, de nome Alberto Ascênio Fernandes (Alemão), amigo
de Maneca Brandão, onde a autora coloca:
571
D'ANDRADE, op. cit., p. 71.
Voz de Itabuna, 06/07/1954.
573
BRANDÃO, Manuel Coelho. O Capoeira. Itabuna. 1979. s/e. p. 4.
574
Ibidem.
572
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Se envolvia com brigas e chegou a ficar preso quinze dias, fato que não se
esquece, pois junto com Maneca, sempre se metia em confusão (...). Muito
alegre, conta-nos que o que mais gostava no esporte era o fato de poder se
exibirem. 575
No texto de Manuel Brandão também fica claro essa questão do exibicionismo:
Para o Zeca, acostumados a confusões dessa natureza, o ambiente era
propicio à demonstração de sua arte, da qual era tido como um [il]. A briga
veio a calhar, pois precisava mostra a Itabuna quem ele era. E assim foi. Os
seus atacantes eram repelidos brutalmente por pernadas violentas e
certeiras.576
Essa confluência de informações é suficiente para confirmar que a capoeiragem
em Itabuna estava ligada a algo pernicioso e em detrimento aos bons modos de pessoa
trabalhadora e honesta, isso fica retratado na passagem do livro O Capoeira, quando o
personagem principal, após seus desencontros da vida, arruma um emprego “digno” de um
filho de um “respeitável” advogado e coronel, em uma empresa ligada à agricultura:
Na verdade, o rapaz passara de uma fase negativa em seu destino para uma
outra que muito lhe prometia em termo de dignidade e respeitabilidade.
Deixara de ser um elemento pernicioso à sociedade, para tornar-se uma
célula viva do mecanismo de um trabalho honesto e honrado. 577
Essa tendência à valentia como forma de ocupação e defesa de espaços, esse apelo
à briga como demonstração de força e poder, e o papel da capoeira em meio a este contexto
ocupando um lugar pejorativo submetido a um julgamento tendencioso, permite uma brecha
para uma avaliação mais cuidadosa sobre quais parâmetros é adotado para o julgamento de
atitudes oriundas de indivíduos com esse perfil. Pois, apesar de ter a mesmas características
de qualquer um dos valientes da cidade, Maneca foi poupado das linhas, não menos
agressivas, dos jornais. O fato de pertencer a uma elite econômica permitiu que suas ações
estivessem livres dos combates emitidos pelos jornais da época, lhe poupou constrangimentos
e execração pública que a outros foram impostos.
Apesar do reconhecimento do autor no que diz respeito à imagem da capoeira –
pernóstica – ele permite a interpretação de que converge com esse pensamento, onde a
capoeira só tornou-se algo menos danos a partir do momento que foi instituída pelo Major Da
575
D’ANDRADE, op. cit., p 76.
BRANDÃO. op. cit.
577
BRANDÃO, op. cit.
576
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Hora – Major Dórea, dono da primeira academia de capoeira de Itabuna, inaugurada para
atender os filhos de coronéis que voltavam de Salvador já conhecedores da arte, talvez até
pelo exemplo que tiveram de Maneca, ou seja, já que não posso impedi-los, ao menos tento
vigia-los – que o colocou com instrutor de capoeira para seus iguais, socialmente falando.
Esse parâmetro de comportamento, tanto dos jornais, quanto dos valientes, ricos
ou pobres, deixa claro que Itabuna passava por um momento de remodelação também dos
valores, já que bem ou mal a capoeira e alguns de seus valentões passam a ser um pouco mais
tolerados com o advento da academia. A academia de capoeira tentou domesticar o furor dos
jovens ricos e mantê-los longe dos “antros” dos bairros pobres que só ofereciam brigas,
bebidas e prostitutas, mas nunca o contrário, esses rapazes no auge do seu vigor físico, não
colaboravam de jeito algum com suas presenças nestes locais, já que o problema era o lugar e
não quem o freqüentavam.
Os valientes e capoeiras de Itabuna compartilharam e disputaram espaços e
méritos, morreram e sobreviveram a contentas e armadilhas, cercaram-se e eram cercados de
mitos e estereótipos que os colocaram na condição de principais fomentadores da violência,
mas também foram os responsáveis pela manutenção da ordem da cidade, da sua cidade
inclusive fazendo vigorar suas própria leis.
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“NÃO GOSTO DE VIVER SEM 'LIBERDADE'” – OS MENDIGOS E O
USOS DA AUTORIDADE CULTURAL EM ITABUNA (BA) NA DÉCADA
DE 1950
Erahsto Felício de Sousa - UFBA
[email protected]
Itabuna, cidade ao sul da Bahia, teve seu desenvolvimento urbano marcado pela sua influência
como entreposto comercial da economia cacaueira deste estado. A história desta cidade na
primeira metade do século XX é marcada por um grande fluxo de pessoas que a buscaram na
tentativa de terem melhores condições de vida. Com este fluxo migratório a paisagem urbana
modifica e as vivências de rua também. Na década de 1950 o grande número de mendigos – e
de outros agentes que viviam das ruas da cidade – se tornou uma pauta dos poderes públicos e
das preocupações das classes hegemônicas (cacauicultores e comerciantes, em geral). A
presença e a agencia destes grupos subalternos organizavam territórios simbólicos que
estiveram em tensão com os projetos urbanos de modernização para a cidade. Foi esta a
tensão que levou as classes hegemônicas a construírem a Casa dos Mendigos com a proposta
de recolhimento desses sujeitos das ruas da cidade. Neste trabalho eu analiso a insubordinação
dos mendigos ao não aceitarem o projeto de higienização da cidade a partir desta instituição,
analisando como estes usaram da própria autoridade cultural das classes hegemônicas para
construir seus domínios e territórios nesta cidade. O movimento de emancipação dos grupos
subalternos, assim, passar pelo uso não autorizado dos próprio mecanismos de subordinação
das classes hegemônicas.
Palavras-chave: Itabuna-BA; mendigos; subalternidade; cidade; insubordinação.
Itabuna é uma cidade localizada no sul da Bahia. Se desenvolveu tendo como pivô
a produção cacaueira. No início da década de 1950 era a terceira maior cidade do Estado.
Suas classes hegemônicas a representavam com símbolos de progresso e civilidade. Mas a
história que vou contar aqui está imersa nas experiências de agentes subalternos
negligenciados pelas representações hegemônicas sobre a cidade. Trata-se da recusa dos
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mendigos em se recolherem à uma política higienizadora e do uso que estes fizeram da
autoridade cultural para suas lutas.
Em 19 de março de 1954, com muita felicidade o editor do Voz de Itabuna
noticiou a inauguração, naquele dia, da “anciosamente esperada 'Casa dos Mendigos'”.
Tratava-se de uma obra “beneficente”578, na qual o objetivo seria retirar os mendigos das ruas
itabunenses. Esta instituição foi idealizada e tocada inicialmente pela Sociedade São
Francisco de Assis, ainda na década de 1940. Contudo, por falta de recursos para implantar tal
projeto, os franciscanos o passaram as Senhoras de Caridade. Passando “livros-de-ouro” no
comércio, angariando donativos de populares e recebendo doações de fazendeiros, as
Senhoras de Caridade conseguiram construir o prédio desta instituição e dotá-lo de móveis e
utensílios necessários579. A notícia da inauguração foi acompanhada por congratulações para
as beneméritas, que conseguiram concluir esta instituição, mas também por convite à
sociedade para que continuasse cooperando com esta iniciativa, com fins de manutenção.
Na edição posterior à inauguração, em 23 de março do mesmo ano, o mesmo
periódico reforça a importância da instituição, agora ressaltando sua trajetória que tal
instituição seria “um velho sonho de Itabuna”. Tal sonho parece indicar que a tensão da
racionalização e do controle da cidade com a existência dos mendigos em meio aos locais
públicos de Itabuna não era algo recente. Se na década de 1940 os franciscanos já estavam
imbuídos desta tarefa de retirar os mendigos das ruas itabunenses, é porque já naquele
momento o número de mendigos nas ruas incomodava alguns setores da localidade. Em parte,
o trabalho benemérito dos franciscanos estava envolto em uma demanda religiosa e moral,
contudo é possível imaginar que aqueles que investiram e doaram recursos para esta obra
poderiam ter o interesse claro de higienizar a cidade. A mudança da coordenação deste projeto
dos franciscanos às Senhoras de Caridade esteve marcada pela necessidade que grupos
hegemônicos locais tinham de construir tal instituição em mão menos autônomas que os
franciscanos (há indícios de que as senhoras de caridade poderiam ser, em geral, esposas de
integrantes destes clubes das classes hegemônicas, como Rotary Club e do Lions Club 580).
Porém, o importante nesta questão é que o trabalho de primícias meritórias das
Senhoras da Caridade, como afirmava o periódico, parecia não ser um consenso para todos. A
578
Voz de Itabuna, 19.03.1954, p. 01.
Ibidem, 29.01.1954, p. 01.
580
Em 1957 as Senhoras de Caridade fizeram festas intimas nas casas de suas associadas no sentido de angariar
fundos para a Casa dos Mendigos. Estes eventos ficaram conhecidos como chá social. Uma destas festas foi na
casa de Milton Viterbo, vereador e membro do Rotary Club. Diário de Itabuna 26.10.1957, p. 01 e Jornal
Oficial do Município, 12.07.1958, p. 07. Agradeço a Danilo Ornelas Ribeiro por informações cedidas de sua
pesquisa sobre as elites locais em Itabuna.
579
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relevância da Casa do Mendigo não era, assim, um entimema, algo que não precisava ser
enunciado, baseado “num menor número de premissas (porque conhecidas e, como tal, não
declaradas)”581. Esta necessidade de enunciar a importância já começa pelo título desta
matéria do dia 23 de março: “Significação social da inauguração da Casa do Mendigo”. E
qual seria esta?
A significação da inauguraão da importante casa de caridade, está à vista de
todos: proporcionar aos esmoleres desta cidade, uma vida mais condizente
com a evolução dos nossos tempos, livrando-os de dormirem ao relento e
vegetarem pelas ruas semi-nús, famintos, num atestado pouco recomendável
para uma população que se ufana de encontrar-se integrada os sentimentos
cristãos. (grifo meu)
Se realmente estivesse “à vista de todos”, tal significação, não seria necessário enunciá-la de
modo pormenorizado. Ao mesmo tempo que ressaltava a preocupação cristã de assistir os
“esmoleres desta cidade”, o editor mostrava uma real preocupação: livrar os mendigos de
“vegetarem pelas ruas semi-nús”. Não poucas vezes os periódicos locais queixaram-se dos
atentados à estética urbana, à moral e à sociabilidade pública que os mendigos causavam na
cidade, e recolhê-los à Casa dos Mendigos era uma forma de evitar tais atentados. É o que
denuncia claramente o editor na continuação desta matéria: “por outro lado há de se etinguir a
malta de pedintes que perambula pelas ruas, muitos do quais apenas exploram ao comércio e
às famílias itabunenses, uma vez que ainda podem fazer alguma coisa para a sua
subsistência”. Colocados como exploradores, os mendigos ainda são denunciados como
preguiçosos por não quererem trabalhar, e é esta denuncia que justifica, então, a proposta de
racionalização da caridade:
Isto não quer dizer, entretanto, que vamos deixar de dar esmolas. Esta
teremos que fazer de então em diante, através das Senhoras de Caridade, que
não pode dispensar o concurso dos itabunenses para a manutenção da
meritória casa pia. Será uma esmola muito mais racional e que atingirá
melhormente os seus objetivos. Se foi necessário o auxilio de todos para o
acabamento da Casa do Mendigo, mais imprescindível torna-se ainda esse
auxílio para a sua manutenção. Vamos todos ajudar as Senhoras de Caridade
na sua árdua missão.582
Tornar a esmola racional era então instaurar um monopólio da esmola, agora
destinada tão somente à Casa dos Mendigos. Esta proposta, aparentemente ingênua, nada mais
é do que um rastro do projeto higienizador da cidade. Se até então a “casa pia” parecia estar
581
GINZBURG, Carlo. Relações de força: história, retórica, prova. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p.
50.
582
Voz de Itabuna, 23.03.1954, p. 01.
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marcada por um sentimento nobre (e nobres exploraram os plebeus), agora poderemos
problematizar o seu sentido higienizador. Para tanto recuemos um pouco no tempo.
Em janeiro do mesmo ano, em sua edição do dia 29, o Voz de Itabuna dá, para a
sociedade itabunense, o que seria uma importante notícia (bem posicionada em sua primeira
página). Era a notícia sobre a inauguração da Casa dos Mendigos, que se realizaria em 19 de
março daquele ano. Ao lado de todo clamor para a continuação das contribuições para as
Senhoras de Caridade, estava uma ótima notícia dirigida aos não mendigos, à todos que
detinham uma vontade de ausência destes na paisagem urbana: “esta notícia é das mais
agradáveis para esta cidade, pois, de uma vez por todas veremos nossas ruas livres desses
infelizes que ainda agora as infestam”583. Infestar se liga às noções de invadir, assolar,
devastar, causar estragos...584 De modo que a Casa dos Mendigos significaria a esperança do
fim desses estragos e danos na paisagem urbana, causada pelos mendigos. Se por um lado
parece que esta notícia surtiu um bom efeito em seu público alvo (comerciantes, fazendeiros,
profissionais liberais e etc), por outro, parece que um outro efeito inesperado ocorreu,
desagradando, consideravelmente, este mesmo público.
Trata-se de uma reação por parte dos mendigos. Um primeiro indício seria uma
matéria escrita por Ottoni no periódico local O Intransigente do dia 03 de fevereiro de 1954.
Segundo tal matéria os mendigos não estavam nada satisfeitos com a idéia de se mudarem das
ruas para a Casa dos Mendigos. Tratando os mendigos como “restos sociais”, Ottoni
apontavam que eles não teriam escolha e poder, não poderiam se recusar a um projeto maior
do que eles. Porém estes não estavam dispostos a deixarem a rua pela Casa dos Mendigos,
mesmo que esta última pudesse trazer-lhes algum conforto material. Nesta matéria a família
era a principal motivação para tal recusa. Um mendigo, a exemplo, afirmou à Ottoni que não
iria se recolher por conta da família. Sugerido a se separar de sua família, o mendigo teria
afirmado que toda ela seria doente (ele, assim, a sustentava). Então o cronista afirma: “pois
vamos internar todos êles. Nada mais fácil. Uma sorte até para o mendigo todos os seus
estarem em condições de serem internados, julgamos nós”. Contudo o mendigo teria afirmado
que “a família dele não se submeteria a isso! A solução era a mudança”. Ou seja, mudar de
cidade, migrar, seria a últimas alternativa ao recolhimento à casa.
Os mendigos, diferente de tomar os trabalhadores da Casa dos Mendigos como
beneméritos, os tomavam como exploradores que queriam prendê-los. Ottoni roga a Deus,
583
Ibidem, 29.01.1954, p. 01.
HOLANDA FERREIRA, Aurélio Buraque. Novo dicionário Aurélio eletrônico – século XXI. Software,
versão 3.0. 1999.
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então, assustado com a “ingratidão” dos mendigos. De alguma forma estava em jogo a
dominação paternal das classes hegemônicas sobre os subalternos (por isso tomar os
mendigos como ingratos), como se a “medição institucional das relações sociais” entre ambos
tivesse se quebrado, nos temos thompsonianos585.
Esta mesma matéria foi comentada por Eduardo Medeiros, colaborador do Voz de
Itabuna: “lemos no 'O Intransigente', de 03 do corrente o 'Bom dia' intitulado 'Chegou sua
vez'. Pela litura daquela nota vemos que mendigos não estão animados a se recolherem á casa
para eles destinada”. O texto de Ottoni em O Intransigente seria o primeiro a mostrar os
mendigos aparecem como sujeitos políticos que possuem opções e se manifestam no mundo
público (se bem que na matéria que afirma que os mendigos exploram o comércio e as
famílias, eles também apareçam como agentes, ainda que com uma imagem depreciada) e isto
chocava inclusive o periódico opositor. Eduardo Medeiros afirmou sobre esse desânimo dos
mendigos: “achei absurda a atitude desta classe sofredora, recusando essa dadiva e procurei
ouvir os que ás sexta-feiras percorrem as ruas J. J. Seabra e 7 de Setembro, fazendo o catado
semanal”. O colaborador da folha buscou entrevistar os mendigos para confirmar, ou não, o
que dizia a nota de O Intransigente. E eis o que nos reporta: “alguns confirmaram o que
disseram ao redor da nota acima, mas outros disseram não confiar na sinceridade dos que
viessem a dirigir aquela instituição e daí preferirem continuar pedindo ou mudarem-se daqui
caso fossem proibidos de esmolar”.586 Como na matéria de Ottoni, aqui os mendigos também
tomaram a migração como última alternativa ante o recolhimento.
É exatamente esta agência dos mendigos que aquela medida da racionalização da
caridade (monopolização do destino da esmola) visava combater. Os mendigos tinham
manifestado não apenas em um periódico, mas em dois, uma opinião contrária à idéia de que
a Casa dos Mendigos era a melhor saída para eles. Mais do que isso, os mendigos chegaram
mesmo a questionar “sinceridade dos que viessem a dirigir aquela instituição”, e se para o
mundo das classes hegemônicas havia um consenso sobre o mérito de tal empreitada, no
mundo
subalterno
este
consenso
foi
questionado,
foi
quebrado,
interditado
momentaneamente. Michel Foucualt afirma que “por mais que o discurso seja aparente em
bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o
desejo e com o poder”587. Assim, a interdição que os mendigos realizaram no discurso de
beneficência pura da Casa dos Mendigos acabou por denunciar a ligação deste discurso com a
585
THOMPSON, Edward P.. Costumes em Comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 32.
Voz de Itabuna, 26.02.1954, p. 02.
587
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso – Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de
dezembro de 1970. São Paulo: Edições Loyola, 1996, p. 10.
586
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vontade de controle e, de algum modo, essa interdição se instaurou no seio da própria classe
hegemônica, pois se tornou pauta dos dois periódicos locais. O Voz de Itabuna, então, com
aquela matéria sobre a “significação social da Casa do Mendigo”, estava tentando rearticular a
coerência discursiva após esse corte instaurado por aqueles que seriam os “beneficiados” do
dito trabalho “benemérito”. Tanto o é que nesta matéria o periódico ameniza o tom (não
utilizando, por exemplo, o verbo “infestar”, o substituindo por “perambular”) e conclama para
tomar este projeto como um dever cristão. De modo que destinar a esmola tão somente à Casa
dos Mendigos seria uma forma de obrigar os mendigos a não permanecerem nas ruas,
destinando-se à dita instituição.
O senso de dever cristão se mostrou presente na solenidade de inauguração –
mostrando a preocupação daqueles que coordenavam o projeto em se fazer uníssono ao
periódico. A solenidade foi realizada às 15 horas da sexta-feira, dia 19 de março, segundo o
Voz de Itabuna, “perante o que Itabuna possui de mais representativo”. Se encontravam ali
representantes das camadas médias e altas de Itabuna. Estavam ali para fortalecer a campanha
por aquela instituição, para se mostrarem enquanto colaboradoras e para conferir o produto de
seus investimentos.
É possível, então, afirmar que simbolicamente a solenidade de inauguração
tentava fazer jus ao discurso do Voz de Itabuna no quesito senso de dever cristão e consenso
social. Assim tentava rearticular uma coerência quebrada, uma vez que se tornara pública a
opinião dos mendigos. Contudo, é necessário perguntar por que tanta preocupação com os
mendigos, já que vimos anteriormente que tantos grupos subalternos preocupavam os poderes
públicos e as classes hegemônicas da cidade. Por outro lado é preciso questionar por que os
mendigos se negavam a se recolherem a uma instituição que os assistiria.
Com tantos problemas causados por distintos grupos subalternos, aprofundar o
questionamento sobre o por que das classes hegemônicas em Itabuna na década de 1950 se
preocuparem tanto com os mendigos. O que eu quero ressaltar é que talvez (e para os valores
de hoje) a mendicância na cidade não fosse o maior dos problemas a ser resolvido, contudo
emergiu como uma pauta a partir da inauguração da dita “casa pia”. Daí será necessário
pensar um pouco no cotidiano dos mendigos. Os mendigos construíram territórios simbólicos
– híbridos e efêmeros – que tocavam os limiares da dominação dos espaços pelo capitalismo:
o centro de Itabuna era assaltado por práticas não autorizadas pelas estratégias de controle da
cidade. O centro em Itabuna, na primeira metade da década de 1950, pode bem ser
reconhecido pela zona da cidade iluminada durante a noite. Podemos fazer também um
recorte espacial dele, uma vez que os acidentes naturais o definiram: “estava circunscrito pelo
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Rio Cachoeira ao sul, à leste e a norte pelo canal do Lava Pés, e à oeste pelo fim da cidade”.
Mas politicamente o centro se demarcava pelos prédios ocupados pelas elites locais: “a
Prefeitura Municipal, a Câmara de Vereadores, o prédio da Associação Comercial de Itabuna
(ACI), o da Associação Rural de Itabuna (ARI), os bancos”. Ou seja, as “várias edificações
não negavam que este era o lugar de poder na cidade”.588
E era justamente neste lugar do capital, na cidade, onde os mendigos construíram
sua arquitetura territorial – é no mesmo espaço de poder e de ostentação que também se
encontram marginais, policiais, mendigos, etc, afirma o antropólogo urbano Antônio Augusto
Arantes Neto589. Preferiam as ruas de maior fluxo de pessoas, mercadorias e dinheiro, a saber:
J.J. Seabra e 7 de Setembro. Precisar uma cartografia para os mendigos, entretanto, não é
fácil. Em parte, porque seus territórios eram tomados como algo “natural”, de modo a não ser
necessário enunciar. Edward P. Thompson afirma que estes aspectos da sociedade tomados
como “naturais” por seus contemporâneos, “acabam deixando registros históricos
imperfeitos”, assim “um modo de descobrir normas surdas é examinar um episódio ou uma
situação atípicos”590. De modo que é possível localizar parte desta cartografia, quanto mais
ostensivas forem, as ações destes mendigos e as queixas dos periódicos. Estavam em diversas
ruas, praças e nos limites do centro de Itabuna.
Papai Noel, por exemplo, tinha também um cotidiano imerso nos símbolos de
poder da cidade. Segundo afirma a memorialista local Adriana Dantas Andrade-Breust, ele
“escolheu um lugar estratégico para instalar-se: a porta do Cine Itabuna”591, até então o único
cinema e teatro da cidade, localizado na rua Benjamin Constant, centro. Gostava de andar pela
região central de Itabuna carregando seu saco e seu porrete. Ou seja, qualquer transeunte, na
década de 1950, que visitasse o famoso teatro com alguma regularidade ou mesmo que
transitasse pelo centro, saberia reconhecer Papai Noel. De modo que os mendigos e Papai
Noel se faziam presentes ao lado de símbolos do poder e da ostentação econômica da região,
disputando o espaço político e desviando os valores da paisagem urbana.
Fora das dimensões do controle, a cidade oferecia certa possibilidade de uma vida
de subsistência. O Rio Cachoeira, muito utilizado pelos mendigos (até nos dias de hoje, em
meio à tamanha poluição de suas águas, há aqueles que pescam e se alimentam do pescado),
588
Ibidem, p. 14.
ARANTES NETO, Antônio Augusto. Paisagens paulistanas: transformações do espaço público. Campinas,
SP: Editora da Unicamp; São Paulo: Imprensa Oficial, 2000, p. 112.
590
THOMPSON, Edward P.. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Organizadores: Antonio Luigi
Negro e Sergio Silva. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001, p. 235.
591
ANDRADE-BREUST, Adriana Dantas. Itabuna: histórias e estórias. Ilhéus, Ba: Editus, 2003, p.205.
589
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era um lugar onde se poderia pescar, lavar, tomar banho, beber água, apreciar a paisagem,
brincar.
O que talvez seja necessário ressaltar aqui é que o centro de Itabuna – mas
também o Rio Cachoeira – dava uma condição de sobrevivência aos mendigos. O ato de
caridade era rotineiro e por vezes um ritual, muito próximos dos descritos por Walter Fraga
Filho em seu livro sobre a pobreza em Salvador no século XIX. Segundo este, quanto mais
fiel ao ritual o mendigo fosse, mais era tratado com conivência, porém “o mendigo podia
deixar de ser tolerado desde que seu comportamento não se adequasse à imagem de
humildade e resignação dele esperada”592. Muito embora o quadro descrito por Fraga Filho se
refira à Salvador do século XIX, há muita permanência neste sentido, sendo inclusive o termo
“Deus lhe favoreça” algo ainda recorrente para a negação de um pedido de esmola. O fato é
que teatralizando humildade, cumprindo com os rituais, passando nos dias corretos para
receber esmola, por exemplo, às sextas-feiras (algumas casas podiam separar uma caixinha
com moedas para distribuir em determinado dia da semana), se posicionando nos locais
adequados nas ruas do centro, era possível aos mendigos sobreviverem em meio às ruas.
Ressalta-se, aqui, por hora, a habilidade, a astúcia, dos mendigos em tirarem
proveito da supremacia e autoridade cultural dos agentes das classes hegemônicas. Aqueles
que davam qualquer trocado ou que assistiam em alguma necessidade aos viventes de rua, em
geral se consideravam, numa hierarquia social e reconhecida no mundo público, superiores
aos mendigos. Nos termos de Arantes Neto, significa que aqueles que doavam tinham uma
referência no mundo público, que eles se situavam no mapa social, pois “pertencer a uma
classe, grupo, categoria ou nação é possuir uma localização no mapa social, ou seja, ter uma
posição social reconhecida como legítima e situar-se num espaço físico compartilhado”593. O
contrário seria uma ausência de referência, de presença no mapa social – ou algo tão móvel,
incapaz de ser capturado –, que tornaria o sujeito não reconhecido na coletividade (contudo
nós veremos que os mendigos podem construir tal reconhecimento, ainda que sempre em uma
condição hierárquica no mundo público inferior e depreciada). Se uma referência de prestígio,
os mendigos usavam desta posição para, ao teatralizar humildade, fortalecer a referência
daqueles que os davam algo. Era uma troca: os mendigos ganhavam recursos materiais e os
doadores ganhavam um prestígio público pela ação benevolente.
592
Walter. Mendigos, moleques e vadios na Bahia do século XIX. São Paulo: Hucitec; Salvador: EDUFBA,
1996, p. 39 e 40.
593
ARANTES NETO, Antônio Augusto. Paisagens paulistanas: transformações do espaço público. Campinas,
SP: Editora da Unicamp; São Paulo: Imprensa Oficial, 2000, p. 133.
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Um elemento essencial que também precisa ser ressaltado sobre diversos
mendigos é a experiência migratória. Em um texto clássico sobre a região cacaueira, Antônio
Guerreiro de Freitas afirma que o poder desta construiu “um lugar onde, para baianos de todos
os outros lugares, se poderia ficar rico com rapidez”594. Tomarei esta idéia muito mais como
imagem disseminada pela riqueza material gerada pela economia cacaueira. Ela é um
elemento para perceber como a lavoura cacaueira poderia ser um atrativo para
desempregados, pobres, trabalhadores rurais com péssimas condições de trabalho e etc – não
por fazê-los ricos, mas por iludí-los com o mito de riqueza fácil. Por outro lado é possível que
a disseminação de tal mito (um El Dorado do início do século XX) poderia ser uma estratégia
das próprias elites cacaueiras, no intuito de afrouxar os laços de dependência que estas tinham
com os trabalhadores da região (se aportando no uso do “exército reserva de mão-de-obra”). É
o próprio Guerreiro de Freitas que nos informa que os produtores viviam a se queixar (ainda
na década de 1920) da carência de mão-de-obra: “os riscos de não realizar a colheita colocava
em pânico os produtores que pediam 'braços cearenses, flagelados pelas secas' ou sugeriam
que o governo baiano 'deveria colocar na lavoura a grande massa da população que a nada se
dedica porque assim estaria reprimindo a vagabundagem'”595 (obviamente na região já existia
mendigos e desempregados). Essa ação dos produtores em pedir ao governo que enviasse
trabalhadores necessitados de trabalho poderia, muito bem, ser uma forma de explorar ainda
mais estes, uma vez que não conhecendo a região e carentes por emprego, estes migrantes
poderiam aceitar as péssimas condições de trabalho oferecidas por estes produtores.
O grande problema nesse quesito é que, segundo Guerreiro de Freitas, “passado o
trabalho da colheita [do cacau], a mão de obra em disponibilidade quedava marginalizada”596,
e daí podemos supor que os trabalhadores que migraram para região pudessem por vezes ter
de viver das ruas das cidades, da caridade e assistência alheia.
Um exemplo dessa experiência migratória dos mendigos pode ser identificada no
trabalho já mencionado de Andrade-Breust. No capítulo que a autora dedica aos mendigos,
“Itabuna e suas loucuras...”, todos os mendigos citados não são oriundos da própria região.
Papai Noel, por seu turno, que teria chegado à região “após lhe ter sido negada uma
indenização justa pelos anos de serviços prestados à família Ferraz em Vitória da
Conquista”.597
594
FREITAS, Antonio Fernando Guerreiro de; PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. Caminhos ao encontro do
mundo: a capitania, os frutos de ouro e a princesa do sul, Ilhéus 1534-1940. Ilhéus: Editus, 2001, p. 100.
595
Ibidem, p. 105.
596
Ibidem.
597
ANDRADE-BREUST, op. cit., p 201-212.
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Esta experiência migratória será fundamental para compreender a recusa dos
mendigos a se recolherem à Casa dos Mendigos. Por sua vez, esta recusa, é fundamental para
pensar ou sugerir a mais sutil – e aqui mais importante – ação dos mendigos: o ato de se
instaurar na fala dos agentes hegemônicos, tirando partido destas no mundo público.
Retomemos, então, a matéria escrita por Eduardo Medeiros que teria entrevistado
mendigos nas ruas de Itabuna, à cata de opiniões por parte destes sobre a Casa dos Mendigos.
Lembremos que o entrevistador estava preocupado com uma matéria veiculada no periódico
local O Intransigente em 03 de fevereiro do referente ano, segundo a qual os mendigos não
estariam animados com a idéia de ter de se recolherem à instituição que estavam construindo
para eles: a Casa dos Mendigos. Medeiros achava “absurda a atitude desta classe sofredora”
em recusar “essa dadiva”, e se pôs a percorrer as avenidas J. J. Seabra e 7 de Setembro para
interrogar sobre o desânimo acusado pelo dito jornal. O resultado deste trabalho investigativo
é que os mendigos disseram “preferirem continuar pedindo ou mudarem-se daqui caso fossem
proibidos de esmolar”.598
Esta atitude chocou o colaborador do jornal, e de certo até muitos leitores. Porém
após saber da experiência individual de um dos entrevistados teve que parcialmente concordar
com tamanha recusa. Observe o que escreveu Medeiros sobre a experiência de um mendigo:
Um deles [um dos mendigos], para ilastrar a razão de sua recusa, citou o que
ocorrera na cidade de Vitória da Conquista com a 'Casa dos Mendigos' dalí.
Afirmou que os dirigentes surrupiavam o dinheiro e as novidades destinadas
áquela casa e os mendigos passavam fome e ficavam nús.
Com essa experiência pessoal, disse-me enfaticamente o mendigo 'não irei
para lá'.599
Havia, assim, até mesmo para Eduardo Medeiros, uma razão plausível para a não
mais “absurda atitude” dos mendigos: eles recusavam tornar-se objetos de exploração de
instituições que com simulacro de beneficência, o que faziam era usar da situação de
mendicância como um mercado para lucrar ao passo que aprisionavam e buscavam controlar
sujeitos que viviam da erraticidade do mundo das ruas. Medeiros não concordou com a recusa
dos mendigos, o que chamou de descrença. Concordou com a causalidade desta atitude ao
afirmar que “a falta de critério e de excrúpulo dos que dirigem as casas de assistência social
(com algumas exceções) é um fato indiscutivel”, mas ao fim lutou contra a “descrença”:
598
599
Voz de Itabuna, 26.02.1954, p.02.
Ibidem.
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Entretanto, creio que não acontecerá com a Casa dos Mendigos de Itabuna, o
que aconteceu com a sua congênere em Vitória da Conquista.
Os mendigos devem confiar no bom êxito de seu abrigo, ainda mais quando
sabemos que o mesmo será dirigido pelas Senhoras de Caridade, e a
disciplina estará a cargo das irmãs de caridade. 600
Foi a experiência migratória de um dos entrevistados que deu coerência ao
discurso dos mendigos. Tomada a priori como uma recusa “absurda” (e por Ottoni, autor da
nota de O Intransigente, por ingratidão), a comprovação, no nível da experiência, que um
mendigo pôde oferecer a Medeiros, chegou mesmo a amenizar as críticas ao posicionamento
dos mendigos, fazendo com que o colaborador adotasse a postura de lutar contra a descrença
dos mendigos e a favor da moralidade e do bom trabalho que seria realizado pelas Senhoras
de Caridade.
O que talvez o repórter não tivesse entendido é que a queixa do mendigo não se
referia, tão somente, à falta de tratamento adequado destas instituições. Talvez fosse a
disciplina, “a cargo das irmãs de caridade”, um dos elementos de tal recusa. Eduardo
Medeiros ignorava que o viver nas ruas, mesmo na miséria material, carrega consigo uma
expressão de liberdade. Segundo Arantes Neto viver na rua é também um modo de vida onde
“cruzar limites é vivenciado como prazer e desafio lúdico”601. E é a constatação empírica
disto que nos remete à experiência de Papai Noel.
Em 1957, um colaborador da folha Diário de Itabuna, Nicolau Midlej, encontra
Papai Noel na rua e pára para uma conversa com este último. Nicolau já tinha estado em prosa
com o velhinho errante, e prometera que em outro dia continuaria aquela conversa (o
colaborador afirma ter escrito outra matéria sobre Papai Noel, ainda não localizada nos
periódicos locais disponíveis para pesquisa). Acontece que a edição desta matéria foi mal
impressa e talvez mal escrita, havendo erros excessivos nas frases, desacordo entre as palavras
e etc (os erros de impressão eram comuns nestes jornais). De modo que permita-me, então,
extrair da fonte uma breve história deste encontro.
Nicolau estava passeando pelas ruas de Itabuna em seu Jeep, de repente viu nas
“imediações do prédio da Cooperativa” Papai Noel caminhando, em sua ronda matinal.
Nicolau chamou por Papai Noel, que ao ouví-lo “estacionou dizendo”: “que queres de mim
moço”? Nicolau, então, encosta “o jipe à beira da calçada” e retoma o diálogo há dias
interrompido: “Papae Noél, que é que há [com] voce por aqui novamente?”. O bom velhinho
600
601
Ibidem.
ARANTES NETO, op. cit., p. 125.
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então responde: “É verdade[,] esta é a vida que eu aprecio, pois não gosto de viver sem
'liberdade'[!]”. (Um pausa nesta história para dar ênfase ao “não gosto de viver sem
'liberdade'” que um homem que vivia nas ruas disse para um homem em seu imponente jipe.)
“Muito bem”, disse Nicolau, “e lá na Casa dos Mendigos voce não tinha direito a passeios ao
ar livre e apreciar o panorama da cidade, roupas limpas[,] bôa cama, boa comida e tudo
enfim?” (observemos aqui a “liberdade” dentro da Casa dos Mendigos e a liberdade para
Nicolau). Papai Noel, então responde:
Tinha moço, mas acontece que lá é casa pra ficar aleijados e doentes e eu
não tenho nada disso, e outra, gosto de tomar vez em quanto minha 'pinga' e
tirar minha soneca, criar minha barbicha, minhas unhas e o melhor de tudo
isto que é meu pau que serve para me amparar nas longas caminhadas pelas
ruas, todo enfeitado de pedaços de panos velhos tiraram-me: e isto significa
a minha maior felicidade. (grifo meu)
(apenas uma informação que ajuda: Papai Noel esteve como interno daquela instituição, mais
do que o próprio Nicolau, sabe o que se passa por dentro.) Nicolau curioso pela vida de Papai
Noel pergunta-lhe se na Casa dos Mendigos, ele tomava banho diariamente. O velhinho
responde que “lá, todos tomavam, porem, eu já havia acostumado no meu velho regime e
dava pra ruim, pois já me havia habituado a tomar banho de 3 em 3 meses e para tomar todo
dia a gente estranha não é mesmo?”. Saciada a curiosidade, o entrevistador volta a se
interessar pela vida de Papai Noel na rua: “Voce saiu da Casa dos Mendigos recentemente por
sua livre vontade ou fugia, conforme dizem por aí?” (observe que as duas possibilidades não
são opositivas para o uso do “ou”). Papai Noel responde seco e duro: “Saí porque quiz e não
voltarei mais, pois a vida que gosto e hei d e acabar meus poucos dias, é esta, adeusinho
moço”. E corta a prosa se retirando (talvez tenha cortado a conversa porque Nicolau tocou em
algo incômodo, o fato de ter fugido). O final desta história fica para depois.602
A lição que tomo, por hora, é que há lógica e indícios de que a recusa a ir para a
Casa dos Mendigos esta associada à liberdade das ruas. Por outro lado, Papai Noel entendia,
como Ottoni na primeira entrevista com mendigos, que a Casa dos Mendigos não era para
quem mendigava, e sim para doentes – o que ele não era. É bem verdade que Papai Noel é um
caso atípico, não servindo como modelo ou exemplo para pensar uma coletividade chamada
mendigos. Ainda assim, o mendigo anônimo consultado por Eduardo Medeiros afirma que
não irá porque teve uma experiência de exploração em outra casa beneficente, num outro
602
Diário de Itabuna, 27.11.1957, p. 04.
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momento de sua vida, em um outro lugar. Papai Noel também não era nascido em Itabuna. O
único rastro de sua origem, como vimos, aponta que ele, também, seria da região de Vitória da
Conquista603. As experiências migratórias desses mendigos talvez marcassem um
conhecimento das continuidades que existiam de um lugar para o outro, como por exemplo, a
tentativa das cidades de controlá-los (este é um fator a ser pesquisado numa pesquisa
posterior).
Pois bem, tanto no caso de Papai Noel como no mendigo entrevistado por
Eduardo Medeiros, os mendigos agiram colocando os seus interlocutores, seus representantes
no mundo público (o próprio Medeiros e o Nicolau), para refletir, indagar, questionar o
mundo a sua volta – e de algum modo, ajudá-los em seus interesses. O mendigo entrevistado
por Medeiros fez este perceber que a oposição ao recolhimento à Casa dos Mendigos não era
uma atitude tão absurda como ele acreditava antes de entrevistar o mendigo. Mais do que isso,
a experiência deste mendigo fez brotar a primeira – e, até este momento da pesquisa, a única –
crítica às casas de beneficência, por, muitas vezes, explorarem os “beneficiados”. De modo
que o Medeiro apenas “crê” “que não acontecerá com a Casa dos Mendigos de Itabuna, o que
aconteceu com a de Vitória da Conquista”604.
Com Papai Noel a situação foi diferente, mas o resultado foi muito próximo.
Aquela história (matéria) terminou com Papai Noel decidindo pelo fim da conversa (ele
decidiu falar e findar a “palestra” com Nicolau, ele é o protagonista da trama). Ao ir
descansar, deixou Nicolau prosseguindo seu caminho e dizendo para seus “botões”: “Oh
Deus, como soubeste tão bem dividir esta humanidade em formas e costumes, e dar
conformação a muitos, enquanto outros, têm tudo nesta vida e ao chegar mais tarde diante de
VOS não merecem nada”605. Nesta matéria intitulada “As pedras se encontram quanto mais as
criaturas!...”, um encontro se realizou: Papai Noel argumentando sobre sua vida aproximou
uma distância e fez o homem que passeava com seu Jeep refletir nas coisas espirituais de que
nos falam Walter Benjamin em sua quarta tese Sobre o conceito de história. Coisas estas
inexistentes sem a as “coisas brutas e materiais”, objeto da luta de classes, contudo que
“questionarão sempre cada vitória dos dominadores”606. Elas são essencialmente importantes,
pois, como afirma Michael Löwy comentando esta tese benjaminiana, “o que está em jogo na
603
ANDRADE-BREUST, op. cit.
Voz de Itabuna, 26.02.1954, p. 02.
605
Diário de Itabuna, 27.11.1957, p. 04.
606
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e
história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 222-232
Disponível na web em http://antivalor.vilabol.uol.com.br/textos/frankfurt/benjamin/benjamin_01.htm. Página 2.
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luta [de classes] é material, mas a motivação dos atores sociais é espiritual”607. E nesta luta
Papai Noel produziu uma agência reveladoramente importante: sensibilizou Nicolau, fazendoo pensar que o apego às coisas materiais de nada vale perante Deus. Noutras palavras, Papai
Noel faz Nicolau refletir que pessoas muitas ricas e materialistas, tendo tudo de material, não
possuem uma moral integra, ética e correta (“não merecem nada” diante de Deus). Nicolau
agora questiona os ricos. E quem sabe se os leitores de Nicolau também não se puseram a
refletir? Quem sabe não respeitaram um pouco mais a forma de viver de Papai Noel (alguém
que merecia algo diante Deus). Se essa luta parece essencialmente abstrata, é preciso dizer
que ela é grandiosa quando se percebe que havia um consenso estabelecido em meio às
classes hegemônicas de que não há nada de político na agência de mendigo, de loucos (eram
tratados como desajuizados, infelizes seres).
Contudo os mendigos em Itabuna, ainda que contingencialmente, asseguraram
uma luta política pelos lugares na cidade. Desta luta emergiu, por alguns instantes, uma
contra-visão em meio aos periódicos locais. Se antes estes estavam acostumados a negativálos, caricaturá-los e denunciá-los à polícia, Eduardo Medeiros e Nicolau, contraditoriamente,
aprendiam, tiravam lições do contato com os mendigos. A insubmissão e a diferenciação
cultural dos mendigos conseguiram, junto com a disposição e a curiosidade dos colaboradores
dos jornais, romper uma barreira simbólica que separava os mendigos dos produtores de suas
representações no mundo público. Aquela representação estereotipada, mascarada e velada,
que os mendigos tinham perante as classes hegemônicas, cedeu lugar a um reconhecimento,
ainda que parcial, do outro, com sua história e experiências. Essa mudança começou a marcar
uma emergência dos mendigos como sujeitos da história, como seres falantes, que decidiam
sobre sua vida, que possuíam opiniões e lutas.
Se ao fim da matéria de Medeiros, ele tenta convencer os mendigos a irem à Casa
dos Mendigos, é preciso que se diga que desde o começo os mendigos convenceram-no a
conhecer suas motivações e suas ações. Por um lado Medeiros se mostrou apreensivo,
chocado de certo modo, por uma atitude não esperada, insubmissa, da parte dos mendigos.
Talvez ele, como muitos, entendessem que os mendigos não tinham direito de escolha, não
tinham liberdade de ação. E no estarrecimento por conta da recusa dos mendigos, Medeiros
acabou por mostrá-los como sujeitos políticos (que escolhem e lutam), como sujeitos com
história e experiência. Onde se via passividade e piedade, agora é possível ver reflexão,
astúcia e ensinamento. Ou seja, os mendigos agiam, mesmo que a superfície que se projetava
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LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”.
São Paulo: Boitempo, 2005,p. 59.
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sobre eles fosse caricaturada como passividade. Ainda mais, os mendigos falavam, mesmo
que a superfície que se projetasse sobre sua fala fosse o texto e a fala de agentes das classes
hegemônicas
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MEMÓRIAS DO SERTÃO: MUCUNÃ E COURO CRU NA DIETA
ALIMENTAR DURANTE A SECA DE 1932
Daiane Dantas Martins - UNEB
[email protected]
Em todos os períodos da história brasileira de que temos registros a seca foi um
acontecimento que marcou freqüentemente as páginas que se referem à região Nordeste. Em
vista disso, buscamos com esse trabalho discutir algumas questões referentes à seca de 1932
na Vila de Uibaí, atual município de mesmo nome, que se localiza no sertão baiano. Sendo
assim, o que propomos com esse trabalho é discutir a seca de 1932, a partir da metodologia da
História Oral, abordando aspectos referentes à adaptação da dieta alimentar experimentada
pelos moradores da vila, que recorreram a folhas, frutos, etc., ou seja, aproveitaram tudo o que
a natureza lhes oferecia naquelas condições. Dessa forma, pretendemos discutir e analisar a
partir da análise de suas memórias, as estratégias de sertanejas e sertanejos observando sua
alimentação como forma de resistir às agruras desse flagelo.
Palavras-chave: Sertão Baiano, Seca, Memórias.
INTRODUÇÃO
A história do Nordeste brasileiro está permeada freqüentemente por estiagens e,
no caso específico do Estado da Bahia esta história não aconteceu de forma diferente.
Buscamos com esse trabalho discutir algumas questões referentes à seca de 1932 na Vila de
Uibaí, atual município de mesmo nome, que se localiza no sertão baiano, dando visibilidade
aos sujeitos que vivenciaram experiências durante essa seca.
Sendo assim, o que propomos com esse trabalho é discutir a seca de 1932, a partir
da análise das memórias de pessoas que conviveram com a referida seca que eram tanto
moradores da vila, quanto de imigrantes que lá chegaram em decorrência dela. Serão
abordados aspectos referentes à adaptação da dieta alimentar experimentada pelos moradores
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Anai
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