SérieAnis ISSN 1518-1324 Bioética y Ética y Feminismo y Gênero y Direitos Humanos y Justiça y Desenvolvimento Social Severina Torturada 1 Debora Diniz O aborto no Brasil é crime. Isso significa que as mulheres devem se manter grávidas, não importando se planejaram ou desejaram a gestação. A gestação é um dever imposto pelo Estado às mulheres, sob a alegação de ser este um ditame da natureza que, quando violado, acarretaria a interrupção de uma vida. A proibição das mulheres de interromperem a gestação está inscrita na lei penal como um crime contra a pessoa. A pessoa ameaçada pelo aborto seria o feto. O argumento é que o aborto interrompe a gestação e, por isso, agride os interesses do feto em se manter em desenvolvimento até o nascimento. Neste raciocínio moral, as mulheres ameaçadas por um Estado que sobrepõe o dever ao desejo da gestação são ignoradas. A lei penal do aborto foi redigida em finais dos anos 1930. Já naquele momento, a implacabilidade da lei foi atenuada por alguns excludentes penais. Há duas situações extremas em que o Código Penal considera que as mulheres possam sobrepor seus interesses ao dever da gestação imposto pelo Estado: quando estiverem em risco de morte ou quando a gravidez for resultante de um estupro. Nenhuma mulher é obrigada a interromper a gestação nestes dois casos. O Estado apenas retira de cena o imperativo do dever e reconhece a soberania da vontade nestas situações dramáticas. O dever da gestação é subordinado ao direito a estar livre da morte e ao direito à dignidade. Afirmar que a gestação é um ato de dever imposto pelo Estado pode ser interpretado de várias maneiras. Uma delas é reconhecer a legitimidade do Estado para o uso legítimo da força para coibir as mulheres infratoras. Uma mulher que aborte, que afirme a supremacia da vontade ao dever da gestação, pode ser presa sob a acusação de homicida. E não é um homicídio qualquer o qualificado pela lei penal do aborto: seria o assassinato de um futuro filho. A lei penal é algo que deve estar inscrito não apenas nos corpos das mulheres, forçando-as a manutenção da gestação, mas também em seus valores morais. É preciso que as mulheres convençam-se da supremacia do dever ao desejo. É preciso fazer as mulheres crerem que abortar é assassinar futuros filhos. Nem que para isso seja preciso utilizar o pode intimidatório do Estado. Nem todas as mulheres estão convencidas desta supremacia da lei à liberdade. Milhares de mulheres, cotidianamente, interrompem gestações não desejadas ou não planejadas. Mulheres de todas as classes sociais, raças, etnias e idades. A grande maioria delas aborta em situações inseguras e de extremo risco à SérieAnis 43, Brasília, LetrasLivres, 1-6, abril, 2006 saúde. Algumas abortam protegidas por médicos que entendem o aborto como um ato médico semelhante a tantos outros, portanto, passível de ser comercializado. A tal ponto o aborto inseguro expõe o corpo e a integridade das mulheres que há inúmeros casos de mulheres que morrem ao tentar abortar. Há estados no Brasil em que as seqüelas do aborto inseguro são a terceira causa de morte materna. O medo da força do Estado as obriga a procurar alternativas solitárias e desesperadoras. Há quem considere que a morte dessas mulheres é menos importante que o risco moral que significaria retirar o caráter penal do aborto. Se, por um lado, o argumento que o aborto deve ser irrestritamente penalizado cresce entre alguns segmentos religiosos e fundamentalistas, por outro lado, a defesa da supremacia da autonomia da vontade é um princípio cada vez mais sólido em países democráticos e laicos como é o Brasil. O fato é que o aborto é um tema de pouquíssimo consenso moral e os acordos são lentos. Entre nós, a história política e social do aborto é uma história de negociações mínimas.. Na esfera legislativa, por exemplo, ora valores liberais estão em voga, ora valores conservadores são hegemônicos. O curioso do tema do aborto é que as premissas morais que sustentam diferentes posições legislativas são independentes de outras posições políticas ou sociais de seus defensores.. O aborto se encontra emaranhado em uma rede de crenças e dogmas que desafia o debate político democrático e laico. Mas, desde meados dos anos 1990, outra situação dramática entrou no cenário das possíveis exceções penais: o aborto não seria crime quando o feto apresentasse máformações que tornassem a vida extra-uterina inviável. Há diferentes patologias, síndromes ou má-formações que provocam a inviabilidade fetal, mas o caso mais comum é da anencefalia. A estimativa é que mais de 3.000 mulheres em todo o país já interromperam legalmente a gestação em casos de inviabilidade do feto, muito embora este não seja um permissivo inscrito na lei. As decisões são caso-a-caso: cada mulher apresenta e submete sua história de sofrimento a um juiz ou a um promotor que, por sua vez, decide se a situação é ou não legítima para qualificar o pedido de aborto como legítimo. Acredita-se que o primeiro caso tenha sido autorizado, em 1989, no estado de Rondônia. Este número não corresponde ao total de mulheres que interromperam a gestação por má-formação incompatível com a vida no feto. Milhares de mulheres sequer procuraram a Justiça e, ao contrário de outras situações de aborto, estas não necessitaram se submeter a situações indignas ou de risco: contaram com a solidariedade privada de médicos capazes de se aproximar da tragédia 1 SérieAnis ISSN 1518-1324 Bioética y Ética y Feminismo y Gênero y Direitos Humanos y Justiça y Desenvolvimento Social que é a experiência de gestar um feto que não sobreviverá à gestação ou ao parto. Na verdade, a Justiça é a condição de possibilidade para o aborto de fetos inviáveis apenas para as mulheres usuárias do Sistema Público de Saúde, as chamadas SUSdependentes. Do total de processos autorizados pela Justiça brasileira nestes 16 anos desde a primeira autorização, quase não há casos de mulheres usuárias do sistema privado de saúde. mulheres na mesma situação, foram "meu filho, meu filho está morto". A tentativa de suavizar a imagem do feto com a parte do crânio decepado pondo-lhe uma touca não foi um atenuante para Severina: ela quis tocar seu filho sem a touca para poder, pela primeira e última vez, encarnar o diagnóstico da anencefalia. Rosivaldo conheceu seu filho já com a touca em um caixão no necrotério próximo à sala de parto onde Severina estava internada. Além da certeza do diagnóstico de má-formação incompatível com a vida extrauterina atestado por laudos médicos e peritos médicos da Justiça, é preciso que a mulher se disponha a expor seu sofrimento publicamente. O caráter público da peregrinação judicial se dá não apenas por retirar a gravidez dos limites médicos do prénatal e transferi-la para um tribunal, mas pela necessidade de expor a fatalidade da situação e seu caráter incontornável. Antes de chegar a um juiz ou a um promotor disposto a escutar sua história de sofrimento, muitas mulheres peregrinam por defensores públicos, advogados voluntários, estudantes de Direito, ou mesmo jornalistas, assistentes sociais ou organizações não-governamentais de mulheres. Neste processo, além de responder às mesmas perguntas, muitas mulheres enfrentam o espírito missionário de entidades religiosas dispostas a demovê-las da decisão de interromper a gestação. A história de Severina resume o drama que é a gestação de um feto que não irá sobreviver ao parto. A possibilidade de diagnóstico da inviabilidade fetal é uma novidade biomédica que passou a ser rotina do pré-natal a partir de meados dos anos 1990. A Medicina Fetal é uma especialidade médica que cresce rapidamente no mundo e as possibilidades de diagnóstico e, inclusive, de tratamento do feto ainda no período intraútero são também crescentes. A anencefalia é facilmente identificada por volta da décima ou décima segunda semana de gestação por meio de uma ecografia simples. A imagem do achatamento craniano e da ausência dos hemisférios cerebrais é nítida, mesmo para pessoas leigas na leitura do diagnóstico por imagem. Não é preciso ser um especialista em Medicina Fetal para visualizar o perfil de um feto com anencefalia, semelhante a um de sapo ou de uma coruja. A imagem é inconfundível: não há possibilidade de erro no diagnóstico. Severina é uma dessas mulheres. Como tantas outras, é uma nordestina pobre e analfabeta. Jamais havia ouvido falar em anencefalia, mas foi totalmente capaz de entender e ler uma imagem ecográfica que atestava a anencefalia em seu feto. Era já mãe de um filho, uma mulher que se considerava preparada e desejosa da segunda maternidade. Trabalhadora rural, jamais entendeu, e nem pode entender, a gravidez como uma experiência que suspende a identidade das mulheres. Severina não experimentava um momento mágico da existência feminina com a gravidez: mantevese ativa e presa à plantação de brócolis durante todo os meses da gestação. A gravidez era uma experiência ordinária da existência como outra qualquer. O extraordinário era gestar um feto que não resistiria ao parto. "Mas é pela gestação que se aumenta a família" - esse era o objetivo de Severina ao engravidar. Foi uma gravidez planejada por ela e seu marido, Rosivaldo. O que foi inesperado foi o diagnóstico de anencefalia no feto, uma má-formação gravíssima e letal que faz com que, na maior parte dos casos, o feto sequer alcance o parto. No restante dos casos, o feto resiste apenas algumas horas ou dias fora do útero.. Severina jamais havia visto um feto com anencefalia até o momento do parto quando lhe apresentaram seu filho já morto. Suas palavras, assim como as de inúmeras outras SérieAnis 43, Brasília, LetrasLivres, 1-6, abril, 2006 O recurso tecnológico que permitiu Severina diagnosticar a anencefalia em seu feto não é nenhuma extravagância médica, é parte da rotina de qualquer pré-natal decente no país. Isso significa que, potencialmente, todas as mulheres grávidas em pré-natal terão acesso ao diagnóstico precoce de anencefalia no feto. Basta realizar uma ecografia de rotina. E sobre o diagnóstico não há qualquer dúvida: não há graus ou intensidades na anencefalia. Em todos os casos, é uma máformação incurável, letal e não há qualquer possibilidade de sobrevida prolongada. Não existem crianças anencéfalas no mundo, simplesmente porque não é possível qualquer forma de sobrevida além das horas ou dos poucos dias de pós-parto no hospital. A absoluta maioria das mulheres solicita a interrupção da gestação, independente de crenças religiosas ou filosóficas particulares. A implacabilidade do diagnóstico de anencefalia distancia a interrupção da gestação do fantasma da eugenia. Durante um tempo, houve um intenso debate se o aborto em casos de anencefalia seria uma expressão de valores eugênicos ou de desrespeito às pessoas deficientes. Não há qualquer forma de comparação entre anencefalia e deficiência. A deficiência é parte natural de nossas vidas e com o crescente envelhecimento populacional a experiência da deficiência será algo comum às pessoas que aproveitarem os anos conquistados pelo avanço da Medicina. O novo 2 SérieAnis ISSN 1518-1324 Bioética y Ética y Feminismo y Gênero y Direitos Humanos y Justiça y Desenvolvimento Social Censo brasileiro aponta que 14,5% da população apresenta alguma forma de restrição de funcionalidade, mas que neste grupo não há ninguém com anencefalia. A luta dos movimentos de deficientes é pela garantia do direito de estar no mundo, algo impossível de ser imputado a um feto com anencefalia. A anencefalia incapacita um feto de viver a vida, um pressuposto necessário para qualquer pleito por direitos. O argumento que o aborto em casos de anencefalia seria a expressão de um clamor eugênico não deve ser entendido apenas como uma confusão política ou desinformação sobre o diagnóstico da incompatibilidade com a vida. Qualquer pessoa razoavelmente interessada no significado médico da anencefalia compreende o caráter limite do diagnóstico: basta seguir a etimologia da palavra anencefalia. E, para quem a etimologia for pouco esclarecedora, a definição dicionarizada não deixa dúvidas: "monstruosidade em que não há abóbada craniana e os hemisférios cerebrais ou não existem, ou se apresentam como pequenas formações aderidas à base do crânio". Na verdade, aproximar o tema da interrupção da gestação por anencefalia do campo da eugenia ou dos interesses dos deficientes é parte de uma estratégia bélica de tornar o debate nebuloso. Acusar uma mulher que interrompe a gestação por anencefalia no feto de ter realizado um aborto eugênico é imputar-lhe um duplo crime: o de haver assassinado o feto e por motivos torpes e discriminatórios. Mas o interessante da história de Severina é que a ausência de educação formal não a impediu de compreender a gravidade do diagnóstico e de diferenciar sua decisão de qualquer ato discriminatório contra os deficientes. Em vários momentos, Severina e Rosivaldo contaram sua história familiar, de primos ou sobrinhos deficientes e do quanto esta era uma experiência feliz para todos. A decisão do casal pela interrupção da gestação foi resultado de um ato informado e esclarecido, a despeito de toda a distância social que separa Severina, Rosivaldo e seus médicos. A linguagem médica não faz parte do vocabulário cotidiano do mundo rural de Severina: probabilidades e estatísticas de risco são traduzidas em termos simples de chances ou não de sobrevida. O feto de Severina não sobreviveria ao parto e esta era a informação suficiente para a tomada de decisão sobre a manutenção ou não da gestação. Para quem considera o aborto contra um crime contra a vida - um argumento pouco consensual mesmo um país de maioria cristã como é o Brasil - a anencefalia impõe uma série de desafios. O primeiro deles é o reconhecimento de que não se precisa sair à procura de um consenso sobre quando e como se inicia a vida humana. Para aqueles que defendem que a vida simbólica teria início com a fecundação e que, portanto, seria possível reconhecer no feto direitos e conquistas SérieAnis 43, Brasília, LetrasLivres, 1-6, abril, 2006 sociais por sua potencialidade de vida futura independente do corpo da mulher, a anencefalia aponta para a importância de enfrentarmos o tema dos direitos reprodutivos para além de atos de fé sobre o início da vida. Afirmar o sentido simbólico e jurídico do início da vida humana na fecundação, na nidação ou no parto é um ato moral como inúmeros outros comuns à nossa vida social. No entanto, diferentemente de outros valores morais, a tese do início da vida humana na fecundação alçou um estatuto moral particular a meio caminho da ciência e da religião. Quando se afirma que a vida humana tem início na fecundação não é simplesmente uma tese biológica que se pretende sustentar. A evidência científica é um recurso para suportar um discurso sobre o natural que se pretende absoluto e indiscutível pela simples enunciação. A idéia de que haveria uma ordem natural no mundo e que o aborto ao interromper a seqüência fecundação-nascimento seria um fator de rompimento desta ordem é comum a diversos saberes, entre eles a Medicina, a Religião ou o Senso Comum. Pressupõe-se, ingenuamente, uma supremacia da biologia sobre o simbólico, ignorando-se que o discurso biológico é, por si mesmo, uma narrativa moral. Não há descrição sobre a natureza isenta de intencionalidade e a explicação sobre a origem simbólica da vida humana na fecundação é, talvez, dentre todos os discursos sobre o natural um dos mais entranhados em nosso ordenamento moral. E é exatamente essa confusão entre discurso moral e fato natural que torna o debate sobre o aborto tão intenso. A pretensão daqueles que se opõem à tese do direito ao aborto como uma expressão de direitos reprodutivos é garantir que lei e moral se sobreponham, tal como previsto pela lei penal. O dissenso moral em torno do aborto é simplesmente uma expressão do quanto este é um tema relativo a diferentes concepções de bem, portanto, algo que não deveria ser legislado por um Estado laico e plural. Afirmar ou contestar a sobreposição entre biologia e moralidade no feto é replicar diferentes atos de fé. Aqueles que sustentam a moralidade no feto e seu interesse inalienável em se transformar em pessoa fora do útero da mulher defendem um ato de fé, ao passo que aqueles que sustentam a amoralidade do feto e a supremacia da autonomia da vontade das mulheres pautam-se em outro ato de fé. A principal diferença entre estes dois extremos é que numa dessas teses não há espaço para a pluralidade moral, ao passo que na outra este é o fundamento. Um Estado que garanta a supremacia das liberdades individuais em matéria de aborto é aquele que reconheça ser este um tema da esfera privada das mulheres e algo que não necessita – ou mesmo não pode – ser regulamentado de forma absoluta. Severina, ao decidir pela interrupção da gestação e se definir como uma mulher 3 SérieAnis ISSN 1518-1324 Bioética y Ética y Feminismo y Gênero y Direitos Humanos y Justiça y Desenvolvimento Social católica, é um exemplo de como é possível desnaturalizar as crenças morais, especialmente em situações trágicas. A certeza da morte precoce do futuro filho e da impossibilidade médica de oferecer qualquer alternativa à inviabilidade do feto fez com que Severina redescrevesse sua própria história. Severina jamais descreveu a decisão por interromper a gestação como um ato de homicídio do feto ou mesmo como um aborto. Essa re-categorização dos atos não deve ser entendida apenas como um movimento autojustificatório de Severina. Milhares de mulheres grávidas de fetos com anencefalia que interromperam a gestação antes de Severina, mesmo sem se conhecer, também não descreveram suas decisões como aborto. Esta capacidade humana de rever o real é particularmente libertadora quando os códigos morais vigentes não são capazes de explicar o vazio deixado pela ausência de sentido. Não há explicação que atenue o sofrimento de uma mulher grávida de um feto que não irá sobreviver ao parto. O dilema moral da escolha de Severina – a tensão entre o berço e o caixão - a aproxima do espaço além-dohumano do sem sentido. Uma das formas de dar sentido ao sem sentido - como é a morte precoce do futuro filho - é redescrever um ato socialmente qualificado como imoral como legítimo. A proposta de conceituar a interrupção da gestação de um feto com anencefalia como antecipação terapêutica do parto e não mais como aborto, tal como definido pela lei penal, não foi um ato solitário de elucubração de cientistas. Na verdade, mesmo para aqueles que sustentam a imoralidade do aborto na presunção do homicídio, o conceito de antecipação de parto é desafiante. Na definição de aborto como um crime contra a vida em potencial se pressupõe a potencialidade ou a possibilidade do feto em viver a vida fora do útero. Ora, não há qualquer sobrevida no feto com anencefalia, não sendo possível pressupor seu interesse em viver a vida fora do útero. A ausência do cérebro torna sua vida inviável. Este, sim, parece ser um fato da biologia resistente a todas as formas de sentido que ignorem o caráter irreversível do diagnóstico. Das centenas de mulheres que entrevistei nos últimos anos grávidas de fetos com anencefalia, jamais conheci uma que descrevesse sua decisão de interromper a gestação como um aborto. Após a certeza do diagnóstico da inviabilidade fetal, as mulheres vivenciavam a permanência do luto pelo futuro filho. O fato de o diagnóstico ser realizado em um momento da gestação em que as mulheres já experimentam o futuro papel de mães torna a decisão pela interrupção ainda mais intensa. Ao contrário de outras situações de aborto, em que o segredo sobre a gestação é um prérequisito para a realização da interrupção, no caso da anencefalia não há como se manter em segredo o término da gestação. Em geral, SérieAnis 43, Brasília, LetrasLivres, 1-6, abril, 2006 o diagnóstico da anencefalia é dado na ecografia em que as mulheres procuram identificar o sexo do bebê, um momento quase-mágico da gestação em que se tomam decisões familiares e afetivas, como escolha do nome, enxoval ou arquitetura do quarto. Isto faz com que o diagnóstico da anencefalia no feto ocorra em um momento da gestação em que as mulheres já são mães em potencial, não mais importando se a gestação fora originalmente planejada ou não. Essa particularidade do momento do diagnóstico não pode ser ignorada, pois a configuração do sofrimento é ainda mais intensa. Assim como o tempo de espera pela decisão judicial. Do momento do diagnóstico à autorização da Justiça, pode-se passar meses. Já houve casos, da gestação terminar, o feto morrer e ser enterrado e o juiz, intencionalmente, não ter se pronunciado. O primeiro caso que alcançou o Supremo Tribunal Federal - Gabriela e Maria Vida - é um exemplo deste descompasso entre o sistema judicial e a iminência da morte. Gabriela era uma jovem mulher, grávida de um feto com anencefalia, que tentou em todas as instâncias jurídicas do país garantir o direito à interrupção. Da Comarca de Teresópolis ao Supremo Tribunal Federal, Gabriela recebeu decisões desencontradas: ora seu pedido era autorizado, ora era contestado por juízes e representantes da moralidade católica. Quando finalmente o caso chegou à Suprema Corte, em março de 2004, Maria Vida já havia nascido, sobrevivido sete minutos e seu atestado de óbito foi a contra-prova de que não havia mais nada a ser decidido pelos onze ministros. Em termos jurídicos, não havia mais objeto no processo. A estimativa nacional é que uma solicitação dure, em média, de três semanas a três meses. No caso de Severina, foram três meses, desde a primeira internação por ocasião da cassação da liminar até a autorização judicial. Severina e Rosivaldo apresentaram-se à Justiça inúmeras vezes, apresentaram listas de documentos, entre eles a declaração de pobreza para se livrarem das custas processuais. Foi preciso sair à procura de um advogado, um personagem raro entre as plantações de brócolis do sítio em que moram. Cada viagem ao Recife para diagnósticos e ecografias exigia um rearranjo entre vizinhos e parentes para garantir o transporte do sítio à cidade. Dentre as idas e vindas, houve recessos, erros na apresentação de documentos, pois o Estado é pouco sensível a outras formas de linguagem e expressão senão a escrita. Rosivaldo e Severina são analfabetos, o que exigiu deles a presença permanente de intermediários entre o mundo rural e o mundo da Justiça. As mulheres descrevem este período de espera como de um sofrimento inigualável. Talvez ainda mais intenso que o do recebimento do diagnóstico. Não há quarto para arrumar, o enxoval se resume à roupa do 4 SérieAnis ISSN 1518-1324 Bioética y Ética y Feminismo y Gênero y Direitos Humanos y Justiça y Desenvolvimento Social enterro, não há como nominar um feto que não irá sobreviver. A metáfora vulgar, porém recorrente, que compara estas mulheres a "caixões ambulantes" é por elas mesmas utilizada para descrever a experiência a que foram reduzidas. O dilema berço-caixão é compartilhado por todas elas que, ironicamente, sequer acompanharão o enterro, pois dada a brevidade da sobrevida do feto, elas ainda se encontram internadas no hospital. Na maior parte dos casos, a angústia da espera pela legalidade não é capaz de oferecer um sentido à crueldade da loteria da natureza que sentencia a morte precoce do futuro filho. Esta tensão entre sentido e ausência de sentido é o cerne do drama vivido por mulheres grávidas de fetos com anencefalia. Severina foi apenas uma dessas protagonistas. A opção pela interrupção da gestação é feita pela maioria absoluta das mulheres. Foram mulheres muito diferentes de Severina que, como ela, optaram pela interrupção da gestação. Como ela, muitas expuseram publicamente suas histórias de sofrimento, lutaram na Justiça para garantir que a decisão pelo aborto não era um crime, mas a única maneira de se verem livres da tortura de gestar um feto potencialmente morto. Durante os quatro meses em que a liminar do Supremo Tribunal Federal esteve em vigor, foram 52 mulheres SUS-dependentes, em oito estados, que interromperam a gestação por anencefalia no feto. Neste contexto, o Estado ao reconhecer como legítimo o pedido de uma mulher para interromper a gestação está também protegendo esta mesma mulher da tortura moral de ser descrita como uma assassina. E protegê-la é o único ato que resta diante da incapacidade médica de reverter ou remediar o quadro de letalidade do feto. O Supremo Tribunal Federal irá enfrentar nos próximos meses uma Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental sobre anencefalia. A tese apresentada foi que a antecipação terapêutica do parto em casos de anencefalia não se configura aborto e, por isso, seria uma infração de preceitos constitucionais obrigar uma mulher ir à Justiça para obter uma autorização ou simplesmente proibi-la de interromper a gravidez nestes casos. A argüição foi proposta por uma entidade sindical, a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Saúde, em parceria com uma organização não-governamental feminista, a Anis: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero. A proposta da ação é regulamentar definitivamente este assunto no Brasil, considerando a interrupção da gestação em caso de anencefalia no feto uma matéria privada relativa ao direito à saúde, à dignidade e à autonomia. A tal ponto este vem sendo um tema intensamente discutido no país que pela primeira vez na história do Supremo será realizada uma audiência pública antes do julgamento definitivo. A pressão de entidades católicas SérieAnis 43, Brasília, LetrasLivres, 1-6, abril, 2006 vem sendo imensa para garantir que os ministros votem contrariamente à interpretação proposta pela argüição. Como grande parte da população brasileira, Severina é católica, um vínculo espiritual que não a impediu de tomar a decisão pela interrupção da gestação e de lutar durante três meses na Justiça para garanti-la. O Brasil é o quarto país do mundo em partos de fetos com anencefalia e, ao contrário do que se poderia imaginar, este índice não se justifica por questões de saúde pública, como maior propensão genética de nossas mulheres a gestar fetos com anencefalia. Com índices tão alarmantes quanto o Brasil, estão países como México, Chile e Paraguai. O índice brasileiro é de partos de fetos com anencefalia e não de gestação de fetos com anencefalia, uma diferença importante que aponta antes para a lei que para a saúde pública como explicação para o fenômeno. Ou seja, a razão é simplesmente nosso ordenamento jurídicopenal que proíbe o aborto e entende a antecipação do parto por anencefalia como um ato de homicídio do feto. Esta sobreposição infeliz entre homicídio e aborto incapacita nossos legisladores de se aproximarem de um dos sofrimentos mais dilacerantes da existência de uma mulher – a tragédia que é a gravidez de um feto fadado à morte imediata. Por isso, ao mesmo tempo em a história de Severina é única pela tragédia de seu sofrimento, é também banal por resumir o desamparo feminino frente a um Estado implacável na exigência do dever da gestação mesmo diante do fracasso de se garantir que o feto sobreviverá. O Estado não é capaz de reverter a loteria da natureza e substituir o feto inviável de Severina por um feto capaz de viver a vida. A biologia do feto de Severina, assim como a de todos os fetos anencefálicos, é ainda incontrolável para a sabedoria humana. E este será o desafio do julgamento do Supremo Tribunal Federal nos próximos meses. A Suprema Corte é o espaço legítimo para se enfrentar temas como este, onde questões relacionadas à justiça e às liberdades individuais estão em jogo. Mas para que este enfrentamento seja justo, é preciso reconhecer a soberania do acaso, pois só assim seremos capazes de atenuar o sofrimento imposto pelo azar a mulheres como Severina. E uma das formas de atenuar este sofrimento é retirando a gestação do campo do dever e devolvendo-a para o campo dos direitos. 5 SérieAnis ISSN 1518-1324 Bioética y Ética y Feminismo y Gênero y Direitos Humanos y Justiça y Desenvolvimento Social 1 Debora Diniz é antropóloga, doutora em Antropologia e pós-doutora em Bioética. É professora da Universidade de Brasília e diretora da organização não-governamental Anis: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero. <[email protected]>. Bibliotecária Responsável: Kátia Soares Braga (CRB/DF 1522) Editores Responsáveis: Cristiano Guedes Fabiana Paranhos Tiragem: 50 exemplares Serviço Editorial: Editora LetrasLivres Caixa Postal 8011 CEP 70.673-970 Brasília-DF Brasil +55 61 3343 1731 [email protected] SérieAnis 43, Brasília, LetrasLivres, 1-6, abril, 2006 6