3º
ENCONTRO
DA
REGIÃO
NORTE
DA
SOCIEDADE
BRASILEIRA
DE
SOCIOLOGIA: AMAZÔNIA E SOCIOLOGIA: FRONTEIRAS NO SÉCULO XXI.
GT6: DEMOCRACIA, VIOLÊNCIA E CONFLITOS SOCIAIS
SONIA
DA
COSTA
PASSOS
-
UNIVERSIDADE
FEDERAL
[email protected]
A ÉTICA E A DÁDIVA: Algumas reflexões sobre Emmanuel Lévinas
Manaus, 26, 27 e 28 de setembro de 2012.
DO
PARÁ -
A ÉTICA E A DÁDIVA: Algumas reflexões sobre Emmanuel Lévinas 1
Sonia da Costa Passos2
Resumo: O texto traz uma análise sobre a ética e a dádiva, abordando a concepção de
Emmanuel Lévinas sobre os problemas que cercam a humanidade do fazer ético no mundo
permeado pela falta de compaixão e com a preocupação com o outro. O pensamento Levinasiano se
constitui como descrição fenomenológica da resistência de Outrem aos poderes dominadores do
Mesmo. Tal questionamento se dirige à própria razão ocidental, caracterizada como uma forma
astuciosa de dominação e tirania. Neste sentido, é urgente que reflitamos sempre sobre a diferença
entre o que temos a fazer e o que devemos fazer. Examinando constantemente as questões que se
encontram em jogo nas nossas ações quer pessoais, profissionais ou políticas, de preferência em
comum com os mais diversos grupos a que pertençamos, podemos nos tornar profissionais mais
livres e justos e promotores do bem comum. Para evitar a rede da antiética que está por todos os
lados e que pode nos seduzir com facilidades e “jeitinhos” e que nos pode levar à escravidão dos
vícios e à prisão por crimes, longe, portanto, da felicidade pessoal que os fundadores do capitalismo
e da ética profissional sonharam para nossa época. Somente por meio dessa reflexão constante e
profunda é possível favorecer um projeto mais consistente de sociedade e de trabalho condizentes
com a essência humana de busca da felicidade, o que só será possível se houver plenitude da
tolerância e do respeito à dignidade humana.
Palavras- Chave: ética, o outro, Levinás.
No início do século XX, a utopia ocidental era de que nos últimos anos do segundo
milênio a humanidade já teria avançado o suficiente para dar um salto no processo civilizatório
rumo à igualdade entre povos, culturas e sexos. No início do século XXI, temos, por um lado, um
mundo de evolução técnico-científica sem precedentes na imaginação humana e, por outro,
guerras e violências desprovidas de sentido. Jamais se poderia pensar que o mundo estaria tão
integrado por meio de técnicas de mídia e de transporte e tão desintegrado naquilo que se refere à
alma humana. Era impensável um conhecimento científico tão avançado a ponto de manipular os
segredos mais íntimos da vida e ao mesmo tempo incapaz de evitar a morte de milhares pelo
planeta, por doenças, que desde há muito se descobriu como curar. Conhecimentos médicos
capazes de tornar a vida humana mais longa e, ao mesmo tempo, o surgimento de doenças
promotoras da infelicidade do vazio existencial. Ninguém acreditaria que a humanidade pudesse
1
1
Texto apresentado ao 3º Encontro da Região Norte da Sociedade Brasileira de Sociologia.
Aluna do Curso do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais (doutorado), com área de concentração em Sociologia.
Professora do Instituto de Ensino de Segurança Pública do Pará –IESP
em tão pouco tempo dispor de tecnologia automatizada e robotizada que, aplicada nos
agronegócios, retirasse das relações humanas o fator de miséria que é a escassez de alimentos, sem
conseguir resolver o problema da fome. Para Ricoeur, a reciprocidade do reconhecimento é a
exigência ética mais profunda, mas para Levinas o princípio ético absoluto é o cuidado do outro,
de que decorre uma responsabilidade incondicionada e infinita como estrutura fundamental da
subjectividade. Sou ser humano na medida em que consigo sair do meu ser para me tornar humano
na hospitalidade e acolhimento do outro. Por isso, os direitos do homem são “originariamente os
direitos do outro homem”.
Ao contrário, a aplicação da biotecnia na produção agropecuária promoveu um aumento da
parcela de famintos na população mundial, além de gerar sério desequilíbrio ecológico e
desemprego crônico. O pensamento Levinasiano se constitui como descrição fenomenológica da
resistência de outrem aos poderes dominadores do mesmo. Tal questionamento se dirige à própria
razão ocidental, caracterizada como uma forma astuciosa de dominação e tirania. Pois a razão, ao
apelar para uma ordem conceitual, acaba por violentar e desrespeitar a resistência que o outro
apresenta, colocando-o no âmbito do ser em geral. Pelo recurso ao conceito universal, a razão
desrespeita as singularidades e, inevitavelmente, constrói uma totalidade. Neste processo formal,
pelo qual o singular passa ao universal, o outro fica como que suspenso e privado de permanecer
em sua alteridade, e acaba fazendo parte de um sistema total ditando todas as regras, não lhe
restando outra alternativa senão agir de acordo com as normas propostas pelo sistema.
No alvorecer do século XX, a humanidade não poderia prever uma ciência biomédica que
fosse capaz de tocar, engendrar, alterar os mais herméticos segredos da vida vegetal, animal e
humana. E que, ao mesmo tempo, não fosse capaz de evitar tanto o aumento da desnutrição e
morte pela fome para os pobres, quanto o uso de drogas, a contaminação dos alimentos, as
doenças psicossomáticas e a opulência para os abastados. Os paradoxos estão por toda a parte:
enquanto uns morrem de fome, outros morrem de gordura. Enquanto se é capaz de contar os genes
de animais inferiores, não se descobre a cura para as epidemias e as pandemias, uma ameaça
constante para todo o mundo. Enquanto construímos máquinas inteligentes, não somos capazes de
ensinar a ler e escrever a populações inteiras. Levinas ao falar desta relação de responsabilidade
pelo Outrem, o estar frente a frente, é dado pelo fundamento do reunir-se em sociedade, que se
expressa no seu conceito de “rosto”. Nesse sentido, o autor nos diz que esse “estar frente a frente
ou face a face”, é um acesso ao rosto, que em um primeiro momento, é ético. A partir daí, acabo
me tornando responsável pelo outro.
Diante de pessoas e coisas, estamos constantemente fazendo juízos de valor. Esta caneta é
ruim, pois falha muito. Esta moça é atraente. Este vaso pode não ser bonito, mas foi presente de
alguém que estimo bastante, por isso, cuidado para não quebrá-lo! Gosto tanto de dia chuvoso,
quando não preciso sair de casa! Acho que João agiu mal não ajudando você.
Isso significa que fazemos juízos de realidade, dizendo que esta caneta, esta moça, este
vaso existem, mas também emitimos juízos de valor quando o mesmo conteúdo mobiliza nossa
atração ou repulsa. Nos exemplos, referimo-nos, entre outros, a valores que encarnam a utilidade,
a beleza, a bondade. Mas o que são valores? Embora a preocupação com os valores seja tão antiga
como a humanidade, só no século XIX surge uma disciplina específica, a teoria dos valores ou
axiologia (do grego axios, "valor"). A axiologia não se ocupa dos seres, mas das relações que se
estabelecem entre os seres e o sujeito que os aprecia.
Os valores são, num primeiro momento, herdados por nós.O mundo cultural é um sistema
de significados já estabelecidos por outros, de tal modo que aprendemos desde cedo como nos
comportar à mesa, na rua, diante de estranhos, como, quando e quanto falar em determinadas
circunstâncias: como andar, correr, brincar; como cobrir o corpo e quando desnudá-lo; qual o
padrão de beleza; que direitos e deveres temos. Conforme atendemos ou transgredimos os padrões,
os comportamentos são avaliados como bons ou maus.
A partir da valoração, as pessoas nos recriminam por não termos seguido as formas da boa
educação ao não ter cedido lugar à pessoa mais velha; ou nos elogiam por sabermos escolher as
cores mais bonitas para a decoração de um ambiente; ou nos admoestam por termos faltado com a
verdade. Nós próprios nos alegramos ou nos arrependemos ou até sentimos remorsos dependendo
da ação praticada. Isso quer dizer que o resultado de nossos atos está sujeito à sanção, ou seja, ao
elogio ou à reprimenda, à recompensa ou à punição, nas mais diversas intensidades, desde
"aquele" olhar da mãe, a crítica de um amigo, a indignação ou até a coerção física (isto é, a
repressão pelo uso da força).
Desse modo, se o que caracteriza fundamentalmente o agir humano é a capacidade de
antecipação ideal do resultado a ser alcançado, concluímos que é isso que torna o ato moral
propriamente voluntário, ou seja, um ato de vontade que decide pela busca do fim proposto.
Nesse sentido, é importante não confundir desejo e vontade. O desejo surge em nós com toda
a sua força e exige a realização; é algo que se impõe e, portanto, não resulta de escolha. Já a
vontade consiste no poder de parada que exercemos diante do desejo. Seguir o impulso do desejo
sempre que ele se manifesta é a negação da moral e da possibilidade de qualquer vida em
sociedade. Aliás, não é essa a aprendizagem da criança, que, a partir da tirania do desejo, deve
chegar ao controle do desejo? Observe que não estamos dizendo repressão do desejo, pois a
repressão é uma força externa que coage, enquanto o controle supõe a autonomia do sujeito que
escolhe entre os seus desejos, os prioriza e diz: "Este fica para depois"; "Aquele não devo realizar
nunca"; "Este realizo agora com muito gosto"...
A complexidade do ato moral está no fato de que ele provoca efeitos não só na pessoa que
age, mas naqueles que a cercam e na própria sociedade como um todo. Portanto, para que um ato
seja considerado moral, ele deve ser livre, consciente, intencional, mas também é preciso que não
seja um ato solitário e sim solidário. O ato moral supõe a solidariedade, a reciprocidade com
aqueles com os quais nos comprometemos. E o compromisso não deve ser entendido como algo
superficial e exterior, mas como o ato que deriva do ser total do homem, como uma "promessa"
pela qual ele se encontra vinculado à comunidade. Dessa característica decorre a exigência da
responsabilidade. Responsável é aquele que “responde por seus atos”, isto é, o homem consciente
e livre assume a autoridade do seu ato, reconhecendo-o como seu respondendo pelas
consequências dele.
O rosto e o discurso (a fala) estão ligados essencialmente ao sujeito e a relação
interpessoal. Na obra “Ética e Infinito”, lemos que: “o rosto fala”. Fala porque é ele que torna
possível e começa o discurso” (Levinas, 2000b, p.79). Temos que entender que esta linguagem do
rosto não nos dá o conhecimento do Outro, mas sim como escreve Levinas, do tipo de linguagem
onde “o discurso e, mais exatamente, a resposta ou a responsabilidade é que é esta relação
autêntica” (Levinas, 2000b, p.79).
Em Levinas, essa relação que ocorre, o face a face, é uma relação de responsabilidade,
pois ao momento que estou de frente para o outro eu sou responsável por ele. Esta é uma relação
desinteressada. Não me relaciono com o outro porque quero algo em troca, mas sim pelo simples
fato de estar com ele. É essa relação de desinteresse que permite a presença do outro ser. É um ser
para o outro. A relação proposta por Levinas para alcançar a alteridade é dada pela exterioridade,
sendo, não uma preocupação para comigo, mas sim para com o Outro. Já, Martin Buber nos fala
de uma relação através da reciprocidade, onde me relaciono sempre com uma segunda intenção.
Levinas refere-se a dois grandes modelos de referência a ética: a ética da natureza, e a ética
do projeto. O primeiro encontra o seu traço característico numa compreensão da ética como
conformidade das leis profundas da realidade, reconhecidas pelo uso da racionalidade reflexiva, a
ética encontra o seu espaço fundando-se na “metafísica”, que Levinas chamaria de ontologia, que
desenha antecipadamente as estruturas e características, isto é, a natureza do sujeito e da realidade.
Através da conformidade a tal ordem, a vida humana realiza o próprio sentido no mundo. O
segundo modelo, a ética do projeto, baseia-se na liberdade do homem, compreendida como
negação da submissão e sinônimo da emancipação e “autonomia”. A realidade é interpretada
como material a ser transformado conforme as próprias intenções. O homem secularizado, que
vive a liberdade libertária, tendente para o arbítrio, torna-se um homem desprovido de
projetividade. O seu estilo de vida torna-se fragmentário e incerto, um “homem sem qualidades”,
marcado por uma identidade frágil.
A ética ocidental nos impõe um conjunto de valores que norteiam nossa conduta e que
fundamentam as nossas opções entre o bem e o mal, o justo e injusto. Tais opções correspondem à
única forma possível de liberdade. Liberdade que gera a responsabilidade por nossos atos e pelo
“bem viver” dos outros, sobretudo os mais fracos e dependentes. Isso será possível se cumprirmos
bem nosso dever. Agir de acordo com os nossos deveres como cidadãos, profissionais e pessoas
nos levará a gerar laços de solidariedade. Para melhorar o mundo hoje, o viver solidário é o traço
fundamental para recuperarmos o “viver” ético nas relações de trabalho, nas organizações
empresariais públicas ou privadas e na sociedade como um todo.
É na relação face-a-face, entre o eu e o outro, que se estabelece a proximidade, cujo sentido
primordial e último é a responsabilidade do eu pelo outro, sem exigência de reciprocidade, pois se
houvesse tal exigência não se trataria mais de uma relação des-inter-essada. Nesta
responsabilidade constitui-se a subjetividade do sujeito. "Esta fenomenologia da proximidade toca
uma esfera que, na subjetividade, precede a intencionalidade, tendo uma trama espiritual anterior à
consciência, ao saber e ao tempo rememorável" 3 pois o primeiro movimento do homem não é a
significação do mundo, mas o desejo. Se no âmbito da consciência é impossível ao homem sair de
si mesmo, considera Lévinas que o real contato com a alteridade somente é possível a partir do
desejo e da necessidade.
Agimos quase automaticamente dentro daquelas normas de conduta que nos foram
ensinadas pelo nosso entorno social ao longo de nossas vidas. As normas de conduta que dirigem
nossas ações no cotidiano (ética que temos) são pautadas em valores. Tais valores formam as
crenças que foram construídas ao longo de nossas vidas pelas convicções políticas, pelo exemplo
de comportamento de família, pela educação escolar, pelos amigos, pela TV e pelo rádio, pela
religião, pela cultura e pelos companheiros mais velhos de profissão, entre outros.
3
Emmanuel Lévinas, “La ´Proximité”, Archives de Philosophie, nº34, jul- sete 1971, p.373
No Brasil, hoje, há duas éticas distintas e antagônicas: de um lado, a ética do capitalismo
neoliberal (que inverteu a ética protestante original e colocou o poder no lugar do dever)
competitivo, narcisista, individualista e centrado nas leis do mercado e regido pelo lucro; por outro
lado, a ética da solidariedade, do amor ao próximo, da compaixão não só pelos seres humanos,
mas por toda forma de vida, da tolerância com o outro que, sendo diferente, não deixa de ser
fraterno para mim. É a ética pela qual clama a sociedade civil, os movimentos pelos direitos
sociais e as religiões.
No face a face, na relação de proximidade entre o eu e o outro, estabelece-se a curvatura do
espaço intersubjetivo, ou a assimetria: o outro situa-se num plano mais elevado que o eu. Pela sua
palavra o Outro é mestre do Mesmo e o ensina, devendo o eu julgar sua vida a partir da palavra do
outro, com a consciência de que jamais se é justo o bastante. Nesta relação de respeito movida
pelo Desejo Metafísico estabelece-se a morada em que o eu se coloca a serviço do outro numa
relação de proximidade, desde a qual os elementos do mundo, o trabalho e a economia são
colocados como mediação.
A ética enquanto relação com Alteridade é igual à religião, e esta coloca o Outro no centro,
a ética da alteridade vem a ser a religião do outro. A ética é relação com a alteridade e tem o outro
no centro, mas não como referencia teológica, é uma relação assimétrica, ou seja, não resta a
resposta do outro.Como menciona Lévinas que:
A metafísica, a transcendência, o acolhimento do Outro pelo Mesmo, de outrem por mim
produz-se concretamente como impugnação do mesmo pelo Outro, isto é, como ética que
cumpre a essência critica do saber. E tal como critica precede o dogmatismo, a metafísica
precede a ontologia. A filosofia ocidental foi, na maioria das vezes, uma ontologia: uma
redução do Outro ao Mesmo, pela intervenção de um termo médio e neutro que assegura
a inteligência do ser (Levinas, 2000, p.30-31)
Portanto, a própria filosofia levinasiana é fundada nos horizontes da responsabilidade e não
do enquadramento da alteridade nos horizontes da subjetividade. O foco da ética levinasiana é,
sem duvida, a subjetividade, no entanto, como um movimento de acolhida e não de tentativa de
posse, domínio ou eliminação da alteridade. Esta, por sua vez, vai balizar, assinar e garantir o
cumprimento da proposta ética em Levinas.
A responsabilidade pelo outro é tratada como fundamental por Levinas, tendo em vista a
questão da alteridade, que coloca o outro no centro, mas no sentido relacional, não como
referência última. Nesse sentido, a relação ética torna-se a religião do outro, que é fundada na
responsabilidade originária do mesmo pelo outro. A ética, enquanto sendo o testemunho da
revelação, espera uma resposta do homem.
Hoje, nas sociedades modernas, cada vez mais se verifica uma cisão entre indivíduo e
comunidade social, de tal modo que as desgraças e as calamidades que atingem determinadas
camadas sociais ou grupos de indivíduos ficam restritas a esses segmentos. Enquanto isso, os
demais procuram ignorar não só as desgraças, mas até mesmo os próprios indivíduos que foram
atingidos. Nesta direção vai-se delineando uma determinada tendência cultural que propõe
resolver várias situações de dificuldade em que se encontra a sociedade moderna, inclusive as
situações de luta e de conflitos entre raças e culturas diferentes, mediante um projeto de
convivência que visa garantir segurança e bem-estar às pessoas na dimensão terrena.
Desta compreensão entende-se que os grandes problemas da humanidade de hoje, mesmo
sem rejeitar a grande contribuição que a ciência e a tecnologia podem dar para superar as
condições de miséria e deficiências dos diferentes gêneros, só podem ser resolvidos por meio da
reconstrução de valores que possam orientar normas e padrões gerais de conduta. O ser humano
necessita de realidades transcendentes ao indivíduo, o que comporta exigências, imperativos e
valores que não podem ser satisfeitos apenas com a auto-suficiência individual. E não é possível
para as comunidades humanas e grupos sociais transcenderem por si mesmos aos interesses
meramente econômicos. Portanto, mais do que nunca, no mundo em que vivemos é imperativo
retomar os valores que dirijam nossa vontade de agir no sentido de buscar, além da satisfação das
necessidades materiais, a reconstituição das regras de conduta, de normas de convivência que
possam reduzir os antagonismos e os individualismos desenfreados. É a exigência ética de nosso
tempo, é nosso dever.
Hoje, a exigência ética fundamental consiste em recuperar a possibilidade de reconstruir
relacionamentos de comunhão entre pessoas e comunidades. Pretender resolver o problema da paz
e da felicidade das pessoas querendo reduzir a sociedade ao indivíduo é um erro grave, porque a
felicidade humana não é alcançável fora da comunhão com os outros. Tal idéia significa reduzir,
irremediavelmente, o homem às dimensões terrestres, fechando-o em relação a sua dimensão
transcendente, que não pode ser satisfeita no plano material. Essa dimensão só pode ser satisfeita
por meio dos valores que permitiram construir a civilização.
Ao falarmos da ética da Alteridade, em Levinas, queremos contribuir reflexivamente com a
sociedade em que vivemos, pois segundo o que postula Lévinas que:
a fundamentação ética a partir da Alteridade busca tratar, em primeiro lugar, da
valorização do humano. Isso a partir do reconhecimento e da valorização do Outro. O
Outro, o seu Rosto, revela uma transcendência infinitamente além do ser e revela o ser do
Eu como relação originária do Desejo da Alteridade. É sobre estas bases que Levinas
busca e fundamenta o sentido da consciência ética, como filosofia primeira. O escândalo e
provocação do Rosto do Outro mostra que o Eu, subjetivamente falando, tem sentido e
deixa de ser conceito universal na responsabilidade pelo Outro. Na relação face-a-face do
Rosto, realiza-se a acolhida do Outro como realização subjetiva, não como
enquadramento ontológico. A relação ética, oposta à filosofia primeira da identificação da
liberdade e do poder, não é contra a verdade, dirige-se ao ser na sua exterioridade
absoluta e cumpre a própria intenção que anima a caminhada para a verdade (Levinas,
2000a, p. 34).
Por efeitos não desejados, como diria Max Weber, a construção da modernidade terminou
por construir uma mentalidade individualista. O que vemos hoje é o resultado de um longo
processo da tentativa humana de fazer uma ciência extremamente racional, voltada a fins racionais
e desprovida de valores morais, isto é, de valor metafísico. Desde as mais antigas manifestações,
idealistas ou religiosas, da disciplina de bem viver até o estudo racional das formas de conduta,
houve sempre a preocupação em estabelecer razões de consenso entre os seres humanos, de modo
que a virtude pudesse prevalecer sobre o vício. Tais virtudes estruturam tanto o campo político,
quanto o social e o econômico no Ocidente.
O modelo consumista-individualista da convivência favorece a difusão dos males morais
sociais do nosso tempo (a busca das vantagens pessoais em prejuízo dos outros, a redução das
relações sociais a relações de força, a violência, a criminalidade, a corrupção, a ausência de regras
éticas nas relações econômicas, a transgressão juvenil, entre tantos outros males). A vivência ética,
solidificada em valores estruturadores da civilização ocidental, em todas as esferas da vida
humana (familiar, cultural, social, econômica, política) é o mais potente antídoto contra os males
atuais. Isso porque só é possível ser humano ao se reconhecer no outro humano. Apenas no
contato com o outro é possível crescer responsavelmente em relação a si mesmo e à comunidade.
Desenvolvemos, assim, a solidariedade que é a própria essência da humanidade.
Coube aos Estados nacionais o papel de civilizador, de desenvolver os laços de
solidariedade nacionais. Compete ao Estado o papel de inserir as novas gerações no padrão de
conduta ética, ou seja, ensinar às pessoas as linguagens e as crenças simbólicas, valores morais
caros ao capitalismo. Isso se deu por meio das escolas públicas, na Europa, na passagem para a
Modernidade. E, no terceiro mundo, à medida que chegavam as indústrias. Hoje, esses Estados,
tornados mínimos pela ideologia neoliberal, não têm dado conta de instrumentalizar seus cidadãos
nas capacidades necessárias à mundialização, nem de inserir as novas gerações nos valores morais
de conduta exigidos pela racionalidade capitalista. E, menos ainda, de impedir que as mídias,
ansiosas pelo lucro fácil, desenvolvam em jovens e adultos contravalores como o narcisismo, o
hedonismo e o niilismo entre outras mazelas que os dirigem para o desejo do lucro fácil e o prazer
a qualquer custo. Isso porque vivemos em uma sociedade em rede, onde tudo é feito, a despeito
das fronteiras nacionais, por meio das redes de informática e de informação que vão da mídia ao
tráfico de drogas e à corrupção. E os Estados nacionais por sua essência são delimitados por
fronteiras nacionais.
No Estado democrático há uma íntima relação entre Governo, que envolve o executivo nos
três níveis e o judiciário, parlamento e tributação. Todo pacto democrático está estruturado,
economicamente, no consentimento dos cidadãos em entregar uma parcela de seu patrimônio e de
seus rendimentos ao Estado, sob a forma de tributos. Esse consentimento parte do pressuposto de
que essa parcela será gerida em prol do bem comum, da manutenção da coisa pública, e não do
abastecimento de interesses particulares. Assim, o pagamento de impostos é um imperativo ético.
A finalidade nuclear do Estado democrático é gerir por todos e para todos, para garantir a
igualdade de direitos e deveres para todas as pessoas físicas ou jurídicas. É por isso que a
corrupção pública e a sonegação fiscal, além de lesar a capacidade do Estado de promover a
igualdade, pois não terá recursos para a educação e saúde dos mais pobres, ainda tiram a confiança
dos mais ricos em aplicar recursos no país. O Capital não pode se estabelecer e desenvolver-se
fora de padrões éticos.
As organizações capitalistas não podem sobreviver numa sociedade em que os valores
éticos ocidentais não estão estruturados nas consciências individuais. Nessas sociedades, cada
trabalhador, na sua individualidade, e por sua consciência, deve agir em seu trabalho individual e
solitário no sentido de evitar a fuga dos lucros da organização. Assim, as organizações/ou
Instituições, ao se estabelecerem numa sociedade, clamam (a imprensa e o seu canal de
comunicação) por valores éticos e pela educação para esses valores. A conduta ética, desde os
primórdios do capitalismo, sempre foi um fator fundamental para o desenvolvimento das empresas
capitalistas. Hoje, com a globalização da economia, essa necessidade é maior, pois o mercado
global, que dirige a economia e as relações empresariais, exige confiança. E confiança só é
possível entre grupos que possuam os mesmos valores éticos.
O debate sobre a importância de conduta ética é reacendido cada vez que ocorrem novas
denúncias de fraudes e corrupções, como, por exemplo, os recentes escândalos envolvendo as
grandes organizações bem como a coisa pública. Tais escândalos interferem diretamente na
confiança dos investidores e dos consumidores em todo o mercado e concorrem para a sociedade
ensejar uma maior fiscalização em todas as empresas por parte do poder público.
Por toda essa situação de ausência de valores comuns é que as empresas propõem um
retorno à ética, um estudo sistemático dos valores comuns e caros ao Ocidente por parte de todos
os profissionais, de tal maneira que o seu agir seja sempre uma ação que promova o bem comum.
Exigem um retorno à ética pautada em valores que estruturam a confiança, sem a qual o capital e a
sociedade em geral não podem existir.
Um dos objetivos de se estudar ética hoje é encontrar mecanismos que nos permitam
mergulhar dentro de nós mesmos e buscar compreendermos que atitudes moralmente corretas
podem promover o bem comum e que a nossa felicidade só é possível à medida que a sociedade
for justa. O que significa que todos tenham seus direitos garantidos, uma vez que todos cumpriram
com os seus deveres.
Precisamos ter coragem para colocar a ética em primeiro lugar, para não permitir que
nossas mentes se fechem para o sofrimento do outro. Coragem para estar abertos às mudanças e
pensar em novas questões que a princípio possam parecer extremadas; e, acima de tudo,
precisamos ter coragem de agir e de buscar soluções para as nossas preocupações políticas e
sociais. Coragem para tomar decisões éticas que contribuam para o planejamento de nosso futuro
comum, participando ativamente em nossa comunidade. Isso é essencial para todos os
profissionais e cidadãos. Afinal, vivemos numa sociedade em rede cujo valor fundamental é a
tolerância.
Cuidando do outro como de nós mesmos, pode nascer uma revolução, porque esse modo
de agir toca o outro, que se interroga e sente o desejo de começar e experimentar também. Desse
modo, são recuperadas as razões da convivência e as motivações das exigências éticas. Somente
os valores éticos, já que são uma síntese de todo o processo civilizatório, podem fortalecer o
tecido social e melhorar a convivência humana. Na verdade, a ética necessita ser construída e
reconstruída em cada pessoa e em cada geração, no dia-a-dia da vida, a partir das pequenas coisas.
Como diria Renato Russo: “disciplina é liberdade e compaixão é fortaleza”.
A responsabilidade pelo outro é tratada, como disse Lévinas, como uma estrutura
fundamental da subjetividade. Afirma-se que a percepção do rosto não é da ordem da
intencionalidade que ruma para a adequação. Assim, ao emergir o rosto do outro em meu mundo,
desde que o outro me olha, sou por ele responsável. E somente no exercício de tal
responsabilidade é estabelecida a proximidade.
Nas palavras de Mauss: “Qual é a regra de direito e de interesse que, nas sociedades de
tipo atrasado ou arcaico, faz que o presente recebido seja obrigatoriamente retribuído [...].Que
força existe na coisa dada que faz que o donatário a retribua?” (2003, p. 188). Segundo o
autor, as dádivas voltam, são recíprocas e necessariamente devolvidas ou retribuídas. Mas a
obrigação de retribuir parece desmentir a gratuidade das dádivas. Ela seria apenas aparente,
ocultando uma troca interessada. Portanto, no início da explicação, ele mantém a tese da troca
universal, situando a “dádiva troca” como um ponto de passagem entre as prestações totais
das sociedades arcaicas e os intercâmbios modernos.
Compreende-se, que os elementos que compõem a abordagem da reciprocidade
fundamentalmente são caracterizados por três obrigações que se referem ao dá, receber e
restituir. Para Mauss (2003), as razões da obrigação de restituir, retribuir algo recebido têm
uma explicação essencialmente espiritual, têm origem no mundo das crenças, das idéias
ideológicas, pois a coisa dada é acompanhada por um espírito (o hau), que faz com que a
coisa dada seja retribuída, conforme destacado por Godelier (2001, p. 86) ao explicar o
retorno do objeto ao seu doador original.
Primeira razão: a coisa possui em si mesma um espírito, uma alma, e é este espírito
que a leva a voltar para seu proprietário de origem. Segunda razão: aquele que deu
tem poder sobre aquele que recebeu porque a coisa traz com ela alguma coisa dele, a
qual leva quem a recebeu a restituí-la. Esta alguma coisa é a alma, é uma presença
espiritual.
Neste sentido, a formação de grupos sociais de reciprocidade, ligados à educação e ao trabalho
no cárcere, contribui para a diminuição da reincidência criminal dos encarcerados, pelo fato de
oferecerem aos homens aprisionados, reflexões a propósito de sua efetiva reintegração à sociedade,
com um ser humano capaz de se relacionar, vivenciar e assimilar práticas e valores sociais, dotados
inclusive, de consciência coletiva. Isso é um reflexo delineado por Mauss em sua abordagem na teoria
da reciprocidade, quando diz “no fundo, é o “hau” que quer voltar ao lugar de seu nascimento, ao
santuário da floresta e do clã e ao proprietário.” (Mauss, 2003, p.199).
Desse modo, quando o outro reconhece a dádiva, tem-se o início de um processo solidário
de libertação. Mas tal processo somente pode avançar quando o outro assume a atitude de
reciprocidade na dádiva, mesmo que nada tenha que retribuir, mesmo que nada tenha a retribuir,
exceto o reconhecimento de sua própria responsabilidade de colaborar na libertação de si mesmo e
de todos que lhe são solidários. Não se trata de exigir-lhe uma retribuição pela dádiva recebida.
Mas de uma esperança de que venha a colaborar no processo de libertação (de si e de quem lhe é
solidário, pois “os homens se libertam em comunhão”). Não se trata de esperar a reciprocidade da
dádiva, mas de desejar a libertação do outro, libertação que somente pode principiar quando ele
reconhecer que a reciprocidade na dádiva está na base da “comunhão” entre as pessoas e de sua
própria libertação.
Se, de fato, a reciprocidade na dádiva é o que alimenta os mais belos relacionamentos
humanos e está muito mais presente em nossas sociedades do que possa parecer à primeira vista,
todavia, tomá-la como condição ética da libertação é, para mim, ainda um questionamento. As
reflexões apresentadas neste texto carecem ainda de maior problematização, cabendo explorar as
conseqüências dessa suposição tendo em vista confirmá-la ou refutá-la, considerando as diversas
dimensões da consistência humana.
Tenho a impressão que muitos relacionamentos interpessoais na esfera privada, bem como
engajamentos sociais e políticos de esquerda na esfera pública, começam a definhar quando a
reciprocidade inicial alentada pelo acolhimento do outro e pelo desejo de libertação de si e de
todos vai se perdendo. Isto é, quando a utopia coletiva sonhada na realimentação das liberdades do
eu, do outro e de todos, vai dando lugar a realizações históricas em que o projeto coletivo (tanto
nos relacionamentos privados quanto nos engajamentos públicos) é secundarizado em razão de
interesses não manifestos que, progressivamente, vão suprimindo a ética – a reciprocidade na
dádiva em favor do projeto de um (na esfera privada) ou do projeto de um grupo de pessoas (na
esfera pública), que já não realimentam mais as liberdades pessoais e públicas de cada um e de
todos.
No campo da esfera privada, por exemplo, parece ético que um pai ou uma mãe não devam
esperar que seus filhos retribuam as dádivas recebidas na relação interpessoal que viveram até o
presente (mesmo porque isso é impossível: os filhos jamais poderão retribuir aos pais a vida que
deles receberam). Mas parece ético que devam esperar que os filhos progressivamente se libertem
no aprofundamento dessa própria relação interpessoal com os pais, isto é, que reconheçam a
dádiva recebida e passem a agir com eticidade, assumindo desinteressadamente sua
responsabilidade para com todas as pessoas, inclusive para com seus pais, realimentando a
reciprocidade na dádiva, contribuindo com suas atitudes práticas para a expansão das liberdades
públicas e pessoais eticamente exercidas, para o bem-viver de todos. Uma vez mais cabe destacar
que não se trata da reciprocidade pela dádiva recebida (pois, nesse caso, a relação não mais seria
desinteressada e o sentido mesmo da dádiva teria sido perdido), mas sim da reciprocidade na
dádiva, única condição de os filhos se libertarem e de colaborarem com a libertação de seus
próprios pais e das outras pessoas.
No campo da esfera púbica, por exemplo, particularmente no campo da economia
solidária, já há uma considerável literatura sobre a economia da dádiva, economia do dom,
economia de doação ou economia da oferta. Não apenas a comunidade científica reconhece que,
mesmo nas sociedades capitalistas contemporâneas, a economia da dádiva coexiste com outras
formas de práticas econômicas, como também um número crescente de economistas e cientistas
sociais tem investigado suas relações com a expansão da economia solidária nas últimas décadas.
Mas cabe igualmente problematizar essas reflexões e avaliar em que medida práticas
compreendidas como economia da dádiva contribuem efetivamente para a libertação das pessoas e
dos povos ou já não estariam subsumidas em intercâmbios de outra ordem, onde prevaleçam
interesses não-econômicos. Se devermos agir eticamente em relação a todas as pessoas, e se as
relações econômicas são relações entre pessoas, então devemos igualmente agir eticamente no
campo econômico. Contudo, como eticamente decidir o que deve reger-se pela economia da
dádiva e o que deve reger-se pela economia do intercâmbio de valores e como promover a
libertação de todos com ambas às práticas? Como criticar ambas a partir da esperança da
reciprocidade na dádiva e promover a libertação econômica dos indivíduos. Esta afirmação, se
fosse estendida para as diversas situações de trabalho voluntário, poderia levar a resultados
paradoxais (e creio que a autora da frase não proporia tal extensão, limitando-a exclusivamente às
atividades de coordenação compartilhada dos clubes nas redes de trocas). Ocorre, todavia, que
muitas atividades que hoje consideramos justo remunerar, com moeda social ou oficial como, por
exemplo, a obtenção de sementes em uma feira para o plantio, poderia ser compreendida sob a
lógica da dádiva, da responsabilidade de cada um por todos e de todos por cada pessoa como
ocorre, de certo modo, na prática do Trafkinto na tradição Mapuche, onde o recebimento da
semente é apenas um aspecto em relação aos vínculos de responsabilidade muito mais amplos que
se criam ou se confirmam entre as pessoas envolvidas no ato de dar e receber as sementes sendo
importante avaliar, nesse caso, em que medida tais solidariedades eu, do outro e de todos no
compartilhamento desses valores? Isso é necessário, pois, embora seja possível praticar o
intercâmbio de valores de modo ético, a introdução da exigência de intercâmbio econômico pela
ação realizada em favor do outro pode converter o que seria justo em injusto, o que seria ético em
imoral.
Sendo assim, a doação de órgãos, por exemplo, é um ato eticamente defensável e nenhum
valor econômico é intercambiado nessa relação, mas a venda de órgãos é eticamente reprovável e
considerada um crime em quase todas as sociedades. Entretanto, há situações em que a passagem
da dádiva à troca não é tão fácil de avaliar sob o aspecto ético, como a que ocorre entre trabalho
voluntário e trabalho remunerado. Por exemplo: numa parte dos clubes de troca, que se valem de
moedas sociais emitidas pelos próprios participantes, é perceptível uma tendência de monetizar
algumas atividades que antes poderiam ser consideradas como trabalho voluntário e remunerar as
pessoas que as executam: “nós devemos evitar ao máximo todo trabalho voluntário, posto que na
rede este não tem sentido: temos a “moeda social” de que necessitamos...” grupais também não
levariam a níveis diferenciados de satisfação de necessidades no seio de uma mesma comunidade.
E por fim, como a aplicação de interpretantes semióticos sobre relacionamentos que envolvem
bens de valor econômico é modelizada pelos sentidos da cultura em que estamos situados, não é
raro que ao final das “festinhas de Natal”, no Brasil, na forma de “Amigo Secreto”, algumas
pessoas saiam pensando que deram um presente mais caro enquanto receberam outro de menor
valor posto que a lógica hegemônica de mercado, do intercâmbio econômico de valores no
horizonte da escassez, acaba suplantando a lógica da dádiva, da própria celebração da festa.
Vemos, pois, que, eticamente, uma parte das mediações materiais do exercício da liberdade
como um órgão a ser transplantado, por exemplo não pode ser objeto de intercâmbio econômico e
que outra parte delas, tanto pode ser oferecida como dádiva ou como elemento de intercâmbio em
que se pratique preços justos. Mas todas essas ações somente serão eticamente exercidas se forem
expressão do desejo de promover-se as liberdades públicas e privadas de todos em sua melhor
composição possível, considerando que cada qual é responsável por todos e todos por cada qual,
posto como menciona Freire ( 1987) que “ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho”,
que as pessoas se libertam juntas, quando praticam a reciprocidade na dádiva, elemento fundante
de toda práxis de libertação.
Neste sentido, é preciso problematizar melhor em que medida essa posição permitiria
efetivamente enfrentar a atitude do cínico que se apresenta como solidário em processos
colaborativos ao passo que atua em favor de seus interesses estratégicos. Bem como resolver o
problema dos critérios a adotar para melhor compreender quando a necessidade de um tem
prioridade frente à necessidade de muitos ou vice-versa, nos marcos dessa reciprocidade na
dádiva. E ainda resolver o problema da relação entre amor e eticidade, particularmente na figura
hipotética em que uma pessoa que se move pela reciprocidade na dádiva vai descobrindo que a
pessoa a quem ama (um amigo, filho, marido, esposa, pai, mãe, irmão entre tantas outras) e a
quem oferece o melhor de si, está se tornando, a cada dia, mais cínica. Todavia, imagino que o
aprofundamento do paradoxo apresentado poderá contribuir na melhor compreensão e no
aprimoramento das práxis de libertação.
Enfim é urgente que reflitamos sempre sobre a diferença entre o que temos a fazer e o que
devemos fazer. Examinando constantemente as questões que se encontram em jogo nas nossas
ações quer pessoais, profissionais ou políticas, de preferência em comum com os mais diversos
grupos a que pertençamos, podemos nos tornar profissionais mais livres e justos e promotores do
bem comum. Para evitar a rede da antiética que está por todos os lados e que pode nos seduzir
com facilidades e “jeitinhos” e que nos pode levar à escravidão dos vícios e à prisão por crimes,
longe, portanto, da felicidade pessoal que os fundadores do capitalismo e da ética profissional
sonharam para nossa época. Somente por meio dessa reflexão constante e profunda é possível
favorecer um projeto mais consistente de sociedade e de trabalho condizentes com a essência
humana de busca da felicidade, o que só será possível se houver plenitude da tolerância e do
respeito à dignidade humana.
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MAUSS, Marcel, Ensaio sobre a dádiva in Sociologia e Antropologia. edição brasileira,São
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