TRANSPORTE ALTERNATIVO NO RIO DE JANEIRO, UMA ESTRATÉGIA DE CONTORNAMENTO TERRITORIAL PARA POPULAÇÕES DE ÁREAS SEGREGADAS Leonardo Oliveira Muniz da Silva Escola Politécnica Universidade Federal do Rio de Janeiro Giovani Manso Ávila Escola Politécnica Universidade Federal do Rio de Janeiro RESUMO Este artigo tem como objetivo demonstrar, no caso da cidade do Rio de Janeiro, como o transporte alternativo operado por vans e, especialmente, mototáxis, configura uma estratégia de "contornamento territorial". A metodologia conceitual é pautada na noção de “cidade i-mobilizada”, contenção territorial e contornamento (Haesbaert, 2012) e transporte urbano alternativo e “a onda” de mototáxis no Brasil (Coelho, 1997). A metodologia operacional pauta-se em entrevistas informais com os mototaxistas e seus usuários, além de motoristas do táxi tradicional, de Bangu (Zona Oeste do Rio de Janeiro). Os resultados apontam que os mototáxis são meios de transporte essenciais para a vida cotidiana das cidades devido a suas implicações em termos de integração de serviços e de “proteção sentida” das populações mais vulneráveis à violência urbana. Conclui-se, por fim, que seu monitoramento e regulamentação são necessidades para a otimização da rede de serviços urbanos, planos de mobilidade e garantia de vida urbana. ABSTRACT This paper aims to demonstrate, in the case of Rio de Janeiro City, how alternative transportation operated by vans and especially motorcycle taxis (“mototaxis”) is configured as a strategy of “territorial contourment” (Haesbaert, 2012). The conceptual methodology is guided by a literature review about “territorial containment”, “immobility”, “alternative urban transportation”, “territorial contourment” and “the wave of mototaxis” in Brazil. The operational methodology is based on informal interviews with mototaxis drivers and users and traditional taxi drivers from Bangu (West Zone of Rio de Janeiro). The investigation results that the mototaxis are essential means of transport for the daily life of cities due to their implications in terms of integration of services and “felt protection” of more vulnerable populations to urban violence. Therefore its monitoring and regulation are necessities to optimizing the urban service network, mobility plans and, finally, ensuring urban life. 1. INTRODUÇÃO Na cidade do Rio de Janeiro, como em outras cidades brasileiras e também de outros países do mundo, uma tática ou estratégia adotada pelas polícias para a execução de medidas tidas como de segurança, em repressão à criminalidade violenta, é a chamada contenção, ou fechamento, territorial (Haesbaert, 2012). No caso do Rio, esta é praticada sob diversas formas e tendo como objetivo central imobilizar um determinado recorte espacial, tido como, momentaneamente ou não, da criminalidade, para que haja rendições e apreensões de pessoas e produtos relacionados ao narcotráfico em uma escala microlocal, como será desdobrado. Tratando do crime organizado (em múltiplas escalas), com “microações”, as operações policiais passam a ser rotineiras, buscando um desgaste das quadrilhas, o que, por outro lado, enclausura uma população, normalmente de baixa renda, cotidianamente, através da projeção “temporário-permanente” da imobilização para o controle do território (op. cit.). Trata-se de uma descontinuidade característica do período moderno que implica em questões de mobilidade e segurança em um espaço, como já dito, bem delimitado, configurando um nicho para a pesquisa científica a cerca das iniciativas para contornamento de situações de contenção territorial, imobilidade e risco à morte violenta (op. cit.). Sendo os problemas institucionais de segurança pública atrelados a um modelo de gestão e policiamento eminentemente reativo, criando um “mercado da violência” (Souza, 2008), buscou-se notar e investigar as iniciativas de contornamento territorial das populações mais afetadas para a solução dos problemas de mobilidade para que se alarguem as possibilidades de saída e trânsito transterritoriais que dão vida à cidade a partir dos movimentos pendulares e do aproveitamento de espaços públicos para lazer e consumo. Vale notar que, sem esta integração dos espaços fragmentados pelas questões de insegurança e medo, não há, por exemplo, trabalho, o combustível de uma cidade ainda mecanicista marcada por uma divisão territorial do trabalho (Santos, 2006) e pelo risco (real ou sentido) à morte violenta, como já citado (Souza, 2008; Haesbaert, 2012). Coelho (1997) identifica o uso de mototáxis para solução dos problemas de mobilidade em seu contexto originário (Ceará, Nordeste brasileiro, 1995) também em um nicho específico que dá funcionalidade às cidades de porte médio com necessidades de circulação para garantia de trabalho. Buscou-se, por este fator, investigar o uso de mototáxis, e também vans, nos dias atuais, porém, em uma metrópole, devido à nova “onda” ou “boom” desta modalidade de transporte para o então chamado “contornamento territorial” (Haesbaert, 2012). Coelho (1997) aborda as deficiências do sistema rodoviário de transportes e a eficiência das iniciativas populares para suprimir, por exemplo, engarrafamentos e maiores gastos com circulação. O presente estudo embasar-se-á, assim, em um estudo etnográfico primário para confirmação da seguinte hipótese: o transporte alternativo ou complementar do Rio de Janeiro, nas áreas segregadas e de violência urbana e institucional, configura uma estratégia de contornamento territorial das populações integrando os fragmentos da cidade e dando forma a seu organicismo e sistema-total. Com base nisto, será defendida, ou não, uma regulamentação dos serviços irregulares para que estes sejam considerados e visibilizados nos campos da pesquisa e, por que não, da política urbana, no pensar mobilidade, transportes e redes de serviços e infraestruturas das cidades. 1.1. Contenções temporária, permanente, simbólica e “natural” Como já mencionado, a contenção é uma forma de cerceamento da circulação como tática de controle do território (Haesbaert, 2012). Depois de dois anos de levantamento diário de informações sobre os fechamentos territoriais por parte do grupo de pesquisas coordenado pelo geógrafo Rogério Haesbaert (Prof. Dr. da Universidade Federal Fluminense), foi elaborada uma tipologia de fechamentos devido à diferenciação percebida de intensidades da dialética mobilidade-imobilidade por motivos de violência urbana, coerção ou autoproteção, por exemplo (op. cit.). Isto significa que o espaço urbano de fluxos é moldado por relações diferenciadas de poder e, desta forma, pôde-se constatar três diferentes estratégias de contenção territorial pelo autor no Rio de Janeiro: a temporária, a permanente e a simbólica; e, pelo autor do trabalho que aqui se apresenta, um quarto tipo: a contenção “natural”. “Reconhece-se, por exemplo, que uma das estratégias mais comuns (ou táticas, dependendo da projeção da ação, tanto em termos de concepção quanto de desdobramentos) é a que envolve o fechamento de vias de grande circulação, desde ruas, rodovias, até mesmo, algumas vezes, ferrovias (os ‘trens de subúrbio’, no caso do Rio de Janeiro)” (op. cit.). A imagem abaixo torna clara a discussão teórica até aqui delineada: mostra o laço dado entre mobilidade e segurança pública através das estratégias de fechamento ou contenção territoriais. Tratandose da Avenida Brasil, o caso é ainda mais emblemático por se tratar de uma via de grande circulação casa-trabalho-casa, o dinamismo diário, que alimenta a vida urbana tendo o transporte urbano coletivo como central para o deslocamento de pessoas, trabalho e capital. Figura 1: Militares fecham a Avenida Brasil durante tiroteio (Fonte: UOL, 2014a). Como o título da imagem sugere, trata-se de um fechamento temporário, “durante o tiroteio”. No entanto, é também notável que, “de qualquer forma, a simples verificação da intensidade no número de ocorrências já demonstra que aquilo que poderia ser visto simplesmente como ocasional ou temporário, acaba por se tornar ‘permanente’, no sentido da ‘normalidade’ de sua recorrência” (Haesbaert, 2012). O complexo da Maré, caso da imagem, também exemplifica isto, como se pode ver abaixo. Figura 2: Exército estende ocupação na Maré (Fonte: UOL, 2014b). Bem se exemplifica a partir da imagem anterior o caso da contenção “temporário- permanente”. Há uma ocupação de forças de seguranças em locais fixos para permanência de prazo indeterminado, dependente do estágio de “pacificação” e neutralização do poder de fogo alcançados pelas “forças de segurança” (UOL, 2014b). Em termos de contenção permanente, foram identificadas duas classes pelo autor citado (Haesbaert, 2012): muro-barragem e muro-duto, ambas legitimadas a partir de um discurso ecológico maquiado, evidenciado por uma série de pesquisas, incluindo a op. cit.. Figura 3: O muro da discórdia (Fonte: ANF, 2009). Figura 4: Barreiras acústicas (Fonte: INDAC, s/d). Na figura 3, discursa-se o “ecolimite” para proteção da área ambiental vizinha à favela do Santa Marta (Botafogo, Zona Sul do Rio de Janeiro), enquanto na figura 4, onde é isolada uma via de grande circulação, de acesso ao aeroporto internacional do Rio de Janeiro, de uma favela, a já mencionada favela da Maré, discursa-se sobre a poluição sonora (Haesbaert, 2012). As favelas são os exemplos marcantes, pois, historicamente, consolidaram-se, para grupos específicos, porém hegemônicos, como estigmatizados da criminalidade (Campos, 2010). A terceira estratégia de contenção identificada dialoga com essa invisibilização que é também de informação sobre as áreas segregadas (Haesbaert, 2012). Pela invisibilização, as políticas públicas são direcionadas às áreas já assistidas pelo poder público, ressaltados pelas mídias hegemônicas e, assim, projetos de urbanização coercitiva empurram a periferia mais à periferia (há uma hiperperiferização), como no caso das remoções compulsórias cujas relocações de famílias se dão para espaços de distância superior a 20 km de suas moradias de origem (Souza, no prelo). Isto, segundo Grostein (2001), é padrão da dual e insustentável urbanização brasileira. Deste mesmo padrão, a contenção “natural” que acrescemos àquelas tipologias identificadas e desenvolvidas pelo trabalho de Haesbaert. Voltada à morfologia urbana das favelas e outras áreas informais das cidades, elas são, na maioria das vezes, caracterizadas por uma topografia acidentada, vielas sem pavimentação, autoconstrução de edificações sem apoio técnico, alta densidade urbana, dificultosa acessibilidade (elemento discursivo da desassistência do poder público) e, portanto, baixa mobilidade. Além da vida própria da “comunidade”, que se estabelece como “cidade informal”, de organicismo próprio, associado ao mencionado processo de dualização urbana: “O padrão de urbanização brasileiro imprimiu às metrópoles pelo menos duas fortes características associadas ao modo predominante de "fazer cidade": apresentam componentes de "insustentabilidade" vinculados aos processos de expansão e transformação urbana e proporcionam baixa qualidade de vida a parcelas significativas da população. Esse padrão cria um espaço dual: de um lado, a cidade formal, que concentra os investimentos públicos e, de outro, seu contraponto absoluto, a cidade informal, que cresce exponencialmente na ilegalidade urbana, sem atributos de urbanidade [como o transporte de massa], exacerbando as diferenças socioambientais” (Grostein, 2001). Desenha-se, assim, a necessidade de integrar e não conter. 1.2. Contornamento territorial Para suprir a desassistência do poder público contornando as contenções, constrangimentos e barragens, e, de maneira geral, a imobilização (ou seja, para suprir as necessidades de integração com o tecido sociopolítico-urbano), as populações de espaços segregados “desenvolvem uma habilidade especial em ‘transitar entre fronteiras’ (do legal e do ilegal, do ‘deter-se’ e do ‘avançar’...) [...] ‘contornando’ dois grandes riscos, o da morte violenta e o de ficar subordinado à caridade ou ao assistencialismo alheio (TELLES, 2007) – incluída aí [...] a chamada ‘intervenção humanitária’, tão em voga na sociedade biopolítica de segurança” (Haesbaert, 2012). Assim define-se o que já foi tocado ao longo da explanação do item anterior, a “contraface indissociável da contenção”, o contornamento, “a capacidade de reterritorialização múltipla, ou seja, de construção de uma multi ou mesmo transterritorialidade, referida ao trânsito constante entre territórios – literal ou metaforicamente, o ‘viver no limite’ que caracteriza a vida dos mais precarizados – ao mesmo tempo manifestação de sua fragilidade e de sua força” (op. cit.). Mais objetivamente, o contornamento territorial é o movimento de ultrapassagem das contenções para exercício da cidadania, do direito à mobilidade (ir e vir), através de mecanismos criativos e insurgentes de transportes, como serão demonstrados os mototáxis (no Nordeste brasileiro e no Rio de Janeiro) e as vans (apenas no último, dado o recorte da presente pesquisa). 2. AS ONDAS DAS MOTOTÁXIS NO BRASIL Neste “viver no limite”, importa-se, para as favelas cariocas contidas, e potencializa-se o mercado das mototáxis, um transporte rápido que possibilita a ultrapassagem de barreiras que os automóveis, por exemplo, não alcançam (Coelho, 1997). Ele surge, no caso brasileiro, na Região Nordeste, da precariedade dos sistemas de transporte coletivo sentida pela população que considerava as mototáxis um transporte extremamente econômico, rápido e capaz de superar as dificuldades dos engarrafamentos (op. cit.). 2.1. A primeira onda (Onda Nordestina) Com base no estudioso do fenômeno das mototáxis Modesto Siebra Coelho, a primeira utilização de motocicletas para o transporte urbano no Brasil se iniciou no Estado do Ceará, mais precisamente nas cidades de Cratéus e Sobral, em 1995, a partir da união necessidadepotencial criativo de um microempreendedor ex-funcionário de banco (op. cit.). As cidades mencionadas e todas aquelas que rapidamente seguiram a tendência tem em comum o porte de cidade média e a necessidade de transportes coletivos que, segundo o autor, eram poucos e, em alguns casos, inexistentes. Por este motivo, as ruas eram tomadas de veículos particulares e o congestionamento passou a fazer parte do cotidiano destas cidades (op. cit.). Foram melhorias sentidas pela população com o uso das mototáxis: fluidez de tráfego (descongestionamento e rapidez) e barateamento de custos nos deslocamentos casa-trabalhocasa; geração de empregos (desde os microempreendedores com suas empresas de mototáxis – em busca de regulamentação – até os próprios mototaxistas – saída interessante para a população de baixa renda frente a uma crise econômica que rondava o país); quebra de preconceitos como “uma mocinha de família não devia ‘pegar carona’” e “motociclistas são rabos de burro ou playboys”; algum grau de aventura; e, de modo geral, melhoria das condições de vida e repercussões positivas sobre o ambiente e circulação urbanos (op. cit.). Porém, também havia problemas e conflitos sobre este novo meio. Estes podem ser resumidos ao apelo à regulamentação e ao seu embate (como desfavoráveis ao mercado e uso dos mototáxis havia os taxistas tradicionais e, “jogando pesado”, os empresários do transporte rodoviário) – op. cit.. Os argumentos giravam entorno de um discurso jurídico-legal e de segurança. Como estamos tratando de uma “ciência dos transportes”, porém, este discurso não se pode tomar como referência (Arruda Jr.; Cléve, s/d). Apontar que “a constituição de 88, no artigo 175, diz que incumbe ao poder público [...] a prestação do serviço público” e “o Código Nacional de Trânsito, no artigo 182, proíbe expressamente o transporte remunerado de passageiros em veículos particulares” não atribui à lei caráter científico. Leis, via de regra, são propostas, alteradas, revogadas, etc. a partir de forças políticas que independem de avaliações de rigor acadêmico (op. cit.). Sobre a questão da segurança, argumenta-se o risco que correm os usuários e os próprios mototaxistas, expostos devido à falta de proteção das motocicletas, e a vulnerabilidade destas frente ao trânsito junto a carros e ônibus. Coelho (1997), inclusive, sugere a criação de motovias, pós-regulamentação. Para além da segurança no trânsito, vale notar, em campo mais amplo, a segurança do ponto de vista criminológico, sobre a pirataria. “O controle dentro do próprio sistema Mototáxi é bastante difícil. A informalidade que ainda cerca a nova atividade permite facilmente que piratas se uniformizem à semelhança dos mototaxistas licenciados e passem a prestar um atendimento caracterizado como clandestino” (op. cit.). 2.2. A segunda onda (Sul/Carioca) Adicionalmente às motivações da Onda Nordeste e, mais precisamente, no Rio de Janeiro, as mototáxis surgiram, no Sudeste, da necessidade de ultrapassar barreiras intencionais e/ou características da formação de territórios informais. Similarmente, na primeira onda, foi apenas o caso de Guarabira, localizado no brejo paraibano (op. cit.). “O Mototáxi encontrou condições que podem ser classificadas como ideais para a operacionalização de meios de transporte com o seu perfil. Em razão da topografia acidentada, do grande número de ruas não pavimentadas, do tamanho populacional (60 mil habitantes) e do quadro econômico urbano, fatores que inviabilizam o funcionamento de empresas de ônibus, o transporte de passageiros por motocicleta encontrou aí um nicho ideal” (op. cit.). É exatamente esta a leitura que se pode fazer das favelas cariocas, em sua maioria. Não há permeabilidade e a densidade populacional é altíssima devido à falta de espaços abertos, o que impede a circulação de carros e ônibus. A topografia é, geralmente, acidentada e as ocupações se estendem ao longo de encostas irregulares. O fator econômico fecha a caracterização tendo em vista a precariedade das condições de vida aos quais estão expostos os habitantes, então, baixo-assalariados. E, como já abordado no presente texto, há desassistência do poder público nestas localidades, sendo a exceção pelo “Estado de Polícia” (Batista, 2011). Deve-se compreender, neste momento, para o espaço estigmatizado como sendo espaço da violência, em vista, novamente, de sua baixa permeabilidade ou acessibilidade, o que se faz interessante para a instalação de ilegalidades, que o conceito de contenção territorial promovido por medidas de segurança é complementar à dialética “natural” imobilidademobilidade da insegurança. Mas as favelas detém um potencial criativo de reagir às contenções: sua minoria controladora do território contorna as intervenções policias através das redes regionais e internacionais de narcotráfico (mas também pratica as contenções contra os moradores a partir da violência para manutenção dos negócios) – Haesbaert, 2012 – e, sua maioria, trabalhadora pobre urbana, através das iniciativas como o uso de mototáxis, tendo como aspecto comum com a Primeira Onda o não mencionado uso de motocicletas para pequenas entregas. No Rio de Janeiro, um exemplo deste transporte tem como carga bujões de gás e sacos de areia e cimento para ampliação dos assentamentos precários (observação em campo). As favelas podem ser compreendidas como cidades informais contidas/imobilizadas. A Figura 2 já demonstra isto. Para exemplificar esta tese se utilizando de outra parte da cidade, de um subúrbio mais longínquo em relação ao Centro da cidade, os pontos de mototáxis localizados na Rua Iriguaçu e na Avenida Ministro Ary Franco, ambas no centro comercial do bairro Bangu, na Zona Oeste do Rio, atendem especificamente as comunidades pertencentes ao conjunto de favelas da Vila Aliança, nas quais, segundo relatos extraídos de moradores, quase diariamente há retaliações por parte dos narcotraficantes em relação à circulação da população, a qual tem sido utilizada como “escudo contra as invasões (policiais) da comunidade”. O interessante do exemplo da Vila Aliança é que ela não se encaixa no estereótipo de favela, de topografia acidentada e constituída apenas por vielas de baixa acessibilidade. Ela possui uma praça que funciona de terminal rodoviário legal, com itinerários, inclusive, via Centro. Ainda assim, segundo os moradores, confirmando a tese, hoje, parcialmente, limitada, de Coelho (1997), os mototáxis suprem a insuficiência do transporte público rodoviário, sendo localizados seus pontos nas esquinas da avenida principal com cada viela interiorizante das comunidades (Av. Augusto Figueiredo), sendo fundamental para a integração aos centros e sub-centros de trabalho e aos pontos de acessibilidade como a estação ferroviária de Bangu ou Senador Camará. Sobre os finais de semana (a análise até aqui feita se deu em atividades dos chamados “dias úteis”), o uso dos mototáxis é pouco reduzido. Porém, as motocicletas continuam a suprir os graus de aventura e locomoção para o lazer e consumo e, no caso das vans e Kombis, que também atuam fortemente no deslocamento casa-trabalho-casa, se fazem importantes para as “grandes compras”. A limitação dos mototáxis exposta pela população é a dificuldade de se locomover com grande volume de bolsas ou sacolas de compras, o que pode implicar em algum risco. Um uso grande de mototáxis na região diz respeito à ida e volta ao supermercado Guanabara, localizado na Avenida Ministro Ary Franco, justificando a posição de um dos pontos analisados. Todos estes dados foram coletados em atividade de campo e entrevistas informais aos usuários, nos dois pontos mencionados, localizados no bairro Bangu, onde foi também perguntado aos taxistas tradicionais sobre uma possível disputa de mercado com os mototaxistas, o que havia no Nordeste (op. cit.). Não houve um padrão das respostas, pois os taxistas acabaram abordando a questão da segurança, do ponto de vista da irregularidade, ilegalidade ou pirataria e, ainda, avançando a acusações não confirmadas de envolvimento com o narcotráfico. Restritamente sobre a possível disputa, a partir da insistência do questionamento, a posição foi de que não houve grande influência para o mercado de transporte individual, pois o público que se utiliza dos táxis tradicionais possuem outro perfil, na maioria das vezes, são moradores das ruas residenciais centrais do bairro. Estes táxis não atuam como ponto de partida nas favelas do conjunto (e evitam-na como ponto de chegada). Aponta-se assim uma nova diferença entre as ondas nordeste e sul, alterando aquela tese defendida por Coelho (1997), não por ineficácia de suas análises, mas por tratar-se de outro contexto espaço-temporal, e que indica ao uso do transporte “alternativo” (na verdade, melhor entendido como “transporte complementar”, em vista do funcionamento como linha alimentadora dos transportes de massa) sua função de contornamento territorial a contenções “naturais” e de insegurança (em contorno ao contornamento-contenção do tráfico de drogas), interligando as cidades informal e formal para a “vida líquida” do urbano moderno. ["Vida líquida" é um termo cunhado por Bauman (2005), com base em seu conceito de "liquidez" ou "modernidade líquida" (id., 2000), a qual se refere ao período que atravessa a sociedade já há longas décadas que, entre outras características, é dominada pela incerteza (é fluída, nãosólida e que se pode desmanchar em tempo inferior àquele de sua construção) – (id., 2005). A analogia é aqui feita para a vida dos moradores de favelas, os quais, segundo Haesbaert (2012), como mencionado, buscam o contornamento da morte violenta e do assistencialismo alheio (op. cit.)]. Com base na leitura completa de Coelho (1997), o transporte alternativo pode ser entendido como mecanismo de deslocamento cujas possibilidades de uso suprem necessidades não contempladas pelas modalidades hegemônicas de transporte, seja por insuficiência de atendimento destes ou por preferência do usuário, cabendo aí o termo “alternativo”. A ideia de “transporte complementar” é aqui adotada por conta da dependência desta população imobilizada de ligar-se às redes de circulação mais densas. O uso das aspas em “alternativo” se faz “provocativo” e pode ser deixado de lado por se tratar de uma discussão semântica que não influenciaria nos resultados da presente pesquisa, pois se questiona o termo e não seu conteúdo, que já foi apresentado. Em relação à “provocação”, “alternativo” deixa de receber aspas porque as mototáxis, como já concluído parcialmente, são um transporte complementar alternativo à contenção territorial. 3. NARCOTRÁFICO E IMOBILIZAÇÃO INTRAURBANA: TERRITÓRIOS CONTIDOS Segundo depoimento coletado de uma moradora da Vila Aliança, confirmado por demais entrevistados da mesma localidade, a sucessão de operações policiais ocorridas desde dezembro de 2014 até os dias em que estas linhas são redigidas (08/06/2015), tem feito, mais do que nunca, os traficantes utilizarem da população como escudo em um movimento dialético de contornamento-contenção. A população, em alguns casos, é ordenada de que saia de suas casas para que a Polícia Militar (PM) não entre nas favelas realizando disparos de arma de fogo (DAFs) ou, inclusive, acerte um popular, o que traz implicações como necessidade de prestação de socorro e atenção da mídia às operações e com repercussão negativa para a PM. Mas a medida mais violenta é o uso de mulheres e crianças, em sua maioria, sofrendo DAFs pelos narcotraficantes, nas pernas ou pés, abandonadas nas ruas, ou seja, interrompendo temporariamente a passagem de viaturas e policiais a pé que, novamente, tem o dever de prestar atendimento de socorro às vítimas. Numa leitura objetiva: a polícia é “contida do lado de fora”, a população é contida e o tráfico contornado, ainda que seu território informal seja “naturalmente” contido, no sentido já exposto de baixa acessibilidade devido à alta densidade urbana, vielas não pavimentadas de ordem não planejada e um cinturão de insegurança em defesa dos negócios ilícitos (oposto ao que se tem buscado estabelecer pelas Unidades de Polícia Pacificadora, com sucesso, por exemplo, na favela do Morro Santa Marta, mas esta discussão é ampla e deve ser investigada em outro trabalho). Começam-se as implicações sobre os mototaxistas: às acusações feitas pelos taxistas tradicionais pode-se inferir como motivador o discurso inconsciente do medo generalizado e da estigmatização da favela, que também é origem dos mototaxistas, como espaço da criminalidade (Souza, 2008; Campos, 2010; Ferraz, 2012). Em entrevista aos mototaxistas, sem questionamentos diretos, tratando-se de um levantamento livre, foi apresentado um reconhecimento de papel social sobre a integração do morador favelado com o espaço local de trabalho e, em tom bem humorado, da integração pelo direito do pobre consumir. “Não é só madame que faz compra, não”, brincou um dos mototaxistas. A limitação que se encontra do depoimento dos mototaxistas entrevistados nas ruas centrais de Bangu (Av. Ministro Ary Franco e Rua Iriguaçu, no caso) é o fato de seus itinerários serem apenas de ida às comunidades (não que as voltas sejam feitas sem o transporte de passageiros, mas pelo fato de os moradores que saem das comunidades serem contemplados pelos pontos de mototáxis internos, nas esquinas das vielas com a avenida principal, como já citado). Aqueles que partem de dentro da favela, os quais seriam fundamentais para os objetivos aqui traçados, no entanto, não puderam ainda ser contatados por questões de segurança pessoal do pesquisador. As operações policiais têm sido praticamente diárias na Vila Aliança desde a noite natalina do ano passado (2014), o que fez com que traficantes de drogas de varejo no dia seguinte fechassem vias ateando fogo em pneus e bloqueando os acessos não só às favelas como, desta vez, também ao centro comercial de Bangu via viaduto. Figura 5: Protesto fecha ruas de Bangu com barricadas em chamas (Fonte: O Dia, 2014). Apesar desta limitação, alguns mototaxistas do centro comercial se colocaram em posição de voz ativa por serem colegas daqueles que operam dentro do conjunto de favelas. Todos são moradores das localidades a que servem. Foi relatado que, dado o horário inicial das operações, quando os moradores e mototaxistas ainda veem alguma possibilidade de trânsito para contornamento, a recorrência ao serviço aumenta “exponencialmente”, o que também é aplicado para as vans e Kombis. Alguns moradores preferem uma rápida espera pelas vans e Kombis por serem estes um meio de transporte mais seguro, onde podem se proteger, de maneira limitada, atrás da carroceria, enquanto outros preferem a dupla rapidez do mototáxi: encontram-se à espera em seus pontos para partida imediata e são mais flexíveis, manobrando entre carros e utilizando atalhos de vielas, além de serem fluidos em termos de cerceamento de circulação para controle de situações. Mas a dificuldade é que muitos mototaxistas retornam para casa devido ao risco da violência policial. Baseado nisto, não há qualquer dúvida sobre a hipótese de que os mototáxis, as vans e Kombis, todos vistos como transporte alternativo e/ou complementar, configuram-se como meios de transporte urbano alternativos à contenção territorial de populares. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Dialogando diretamente com o que apresenta Haesbaert (2012), que menciona uma “contenção dialética” (não neste termo) criada por traficantes de drogas de varejo em áreas faveladas ou comunidades carentes, o transporte urbano alternativo, em sua maioria, irregular e informal, se consolida como medida criativa de “saída transterritorial às contenções”, integrando as cidades formal e informal, seja por trabalho e consumo ou por apenas um destes, nutrindo a vida urbana e liquidando, ainda que não nas condições desejáveis, dificuldades de circulação e acessibilidade enfrentadas por áreas de assentamentos precários já caracterizadas. Apesar disto, o trabalho etnográfico deve adentrar as comunidades para maior consolidação dos dados coletados e para ampliação da visão do problema, já que a favela é aqui compreendida como outro espaço em relação ao diretamente explorado pelo pesquisador (na visão dual territorializante apresentada, a “cidade formal”). A caracterização particular das favelas da Vila Aliança, em sua maioria, composta de ruas largas, pavimentadas e em terreno de baixada, possibilita a extrapolação da tese que aqui se defende para os espaços segregados, independentes de sua tipologia de contenção: por forças de segurança ou físico-natural ou antrópica. O transporte por vans e Kombis, assim, mesmo que alternativo urbano, isto é, concorrente a outras linhas de transporte, consolida-se, em especial, como "alternativo às contenções". O caso dos mototáxis, um transporte complementar, ou seja, de conexão a redes mais densas de transporte público urbano, consolida-se também como "alternativo à contenção". Isto significa: o transporte alternativo e/ou complementar público urbano desempenha um papel de contornamento de populares, tanto à morte violenta, quanto ao assistencialismo alheio. Ele contorna a desassistência a partir de iniciativas próprias e rompe barreiras que inibem sua circulação dando rapidez à saída de casa, promovendo uma proteção menos ou mais real e sentida. O possível controle do tráfico sobre os mototaxistas é outro tópico. Não por ter sido colocado pelos taxistas tradicionais, já foi verificado em campo, em período anterior, a presença de homens portando armas de fogo nos pontos mototaxistas localizados no mesmo conjunto de favelas conhecido como Vila Aliança. Como no presente texto esperou-se demonstrar, entrelaçou-se mobilidade x transporte x segurança x violência urbana. Fica como perspectiva futura, como já mencionado, e, por este motivo, a investigação de uma possível desintegração entre as cidades formal e informal devido ao controle coercitivo e violento dos meios de transporte (o que, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, já vem sendo investigado, inclusive judicialmente, sobre o caso de controle miliciano de cooperativas de vans – ver UOL, 2012). Deve-se buscar também a proteção dos mototaxistas deste controle. Apenas com a visão contenção-contornamento, imobilidade-mobilidade, insegurança (ou violência)-segurança, controle territorial, poderão ser analisadas as possibilidades e impossibilidades e desejos e “indesejos” sobre a regulamentação universal dos transportes alternativos urbanos que condicionam o organicismo nas/das cidades. Confirmou-se aqui, neste sentido, por um lado, a relação contenção-mototáxis-contornamento para mobilidade de moradores de áreas segregadas, cujo limite deve ser futuramente investigado complementando este estudo inicial. Agradecimentos Os autores agradecem à comissão organizadora e aos patrocinadores do congresso, bem como ao Programa de Engenharia Urbana da Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde o presente trabalho foi desenvolvido. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANF. (2009) O muro da discórdia. Disponível em: <http://www.anf.org.br/o-muro-da-discordia/>. Publicado em: 31/10/2009. Acesso em: 09/04/2015, às 22:04. Arruda Jr., E. L.; Cleve, C. M. (s/d) O discurso do direito-ciência: sofisticação do discurso ideológico (ou ideologia em 2º grau). Disponível em: <http://biblio.juridicas.unam.mx/libros/1/422/23.pdf>. Acesso em: 16/04/2015, às 23:57. Batista, V. M. (2011) O Alemão é muito mais complexo. 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