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Comunicações Geológicas (2014) 101, Especial III, 1193-1195
IX CNG/2º CoGePLiP, Porto 2014
ISSN: 0873-948X; e-ISSN: 1647-581X
“Coisas maravilhosas e até agora nunca vistas”: relatos
históricos no ensino da Geologia
"Wonderful things never seen until now": historical reports in
the teaching of Geology
F. Amador1
Artigo Curto
Short Article
© 2014 LNEG – Laboratório Nacional de Geologia e Energia IP
Resumo: À regularidade do mundo natural, intuída pelos grandes
filósofos da Antiguidade, contrapõe-se nos séculos XVI e XVII a
descoberta de novas terras, de “coisas maravilhosas e até agora
nunca vistas”, que vão suscitar a curiosidade e o debate. Neste
trabalho, analisa-se uma obra de Frei João dos Santos (?-1622) Etiópia Oriental, centrando-se a atenção num conjunto de temas de
natureza geológica. A expressão “coisas maravilhosas e até agora
nunca vistas” pode de igual modo fazer sentido no âmbito da sala de
aula. Também aqui é necessário acautelar a existência de um
elemento surpresa que desperte a curiosidade do aluno e que se
constitua como um ponto de ancoragem para a construção do
conhecimento. O livro de Frei João dos Santos, assim como outras
obras análogas, fornece relatos entusiasmados que com facilidade
transportam os leitores para os locais descritos.
Palavras-chave: Séculos XVI e XVII, Relatos de missionários,
Nascentes termais, Educação em Geologia.
Abstract: The discovery of new lands in the sixteenth and
seventeenth centuries triggered the curiosity and debate about
"wonderful things never seen until now". In this paper we analyse a
work of Fray João dos Santos (?-1622) - Etiópia Oriental, focusing
our attention on a set of geological themes. The expression
"wonderful things never seen until now" can similarly make sense in
the context of the classroom, because it is necessary be aware that
there is a surprise element that arouses the curiosity of the student
and could be an anchor point for the construction of knowledge. The
book by Frei João dos Santos, as well as other similar works,
provides enthusiastic descriptions of new lands that easily transport
readers to the places described.
Keywords: XVI e XVII centuries, Reports of missionaries, Spring
waters, Geological Education.
1
Universidade Aberta, Rua da Escola Politécnica, nº 147, 1269-001 Lisboa,
Centro de Geologia da Universidade do Porto.
E-mail: [email protected]
1. Introdução
À regularidade do mundo natural, referida pelos filósofos
naturais da Antiguidade Clássica, contrapõe-se nos séculos
XVI e XVII a descoberta de novas terras, de “coisas
maravilhosas e até agora nunca vistas”. Esta expressão foi
usada por um médico alemão Jobst Ruchamer (1488-?)
que traduziu para a sua língua uma antologia de relatos de
viagens, expressando o entusiasmo que lhe suscitavam as
descobertas que estavam a ser realizadas (Lopes, 1998). A
procura de elementos na natureza que permitissem
suportar afirmações religiosas e morais e a identificação do
poder oculto das entidades naturais, perspetivas tão
características da Idade Média, vão perder importância
durante estes séculos perante a imensidão do acervo de
informação que chega à Europa. Porém, ainda continuaram
a ser as obras dos autores clássicos, como a Naturalis
Historia de Plínio o Velho (23-79 d.C.), a Geographia de
Estrabão (63/64 a.C. - 24), a História de Heródoto (485?420 a.C.) ou mesmo o tratado Metereologicos de
Aristóteles (384-322 a.C.), que vão exercer uma forte
influência nos escritos dos viajantes portugueses que em
diversas obras relatam as observações e vivências em
África, na Ásia e na América, onde com frequência
referem perplexidade face a um mundo que dificilmente se
enquadrava nas descrições dos clássicos.
A literatura portuguesa da expansão adquire novas
características a partir dos séculos XVI e XVII, período em
que os relatos de factos heróicos cedem lugar às descrições
dos que vão explorar as novas terras (Cidade, 1964). O
tema do valor que os relatos realizados nesta época
tiveram para a evolução do conhecimento da natureza não
é consensual. Ao colocarmos a questão em termos do que
vimos e do que comunicámos ao mundo somos obrigados
a afirmar que “observámos mais do que congeminámos”
(Cidade, 1964, p. 148), com algumas exceções.
A obra que analisamos, escrita por um missionário,
expressa de forma clara o desejo de comunicar o que de
novo era observado ao mesmo tempo que o interpretava
em função dos referenciais europeus. Os relatos de Frei
João dos Santos (?-1622), religioso da Ordem de São
Domingos, permitem conhecer as preocupações e alguns
dos interesses que orientaram os missionários que se
aventuraram pelo continente africano. O livro (Etiópia
Oriental), publicado inicialmente em Évora, teve depois
grande divulgação na Europa, devido a uma versão latina
editada em 1622. Posteriormente, já no final do século
XIX, foi produzida uma 2ª edição, com objectivos
essencialmente políticos e que visavam demonstrar o
domínio português de algumas regiões do continente
africano. A esta edição seguiram-se outras. Destacamos a
3ª edição portuguesa incluída numa colecção coordenada
pelo historiador Luís de Albuquerque (1917-1992) que
1194
visava tornar acessível esta e outras obras a um público
mais vasto. A última edição surgiu já no âmbito das
comemorações dos descobrimentos portugueses, com
preocupações de contextualização e fixação do próprio
texto (Carvalho, 2012). Neste trabalho, devido ao
objectivo final ser de natureza didática utiliza-se a 3ª
edição por ser a de mais fácil acesso.
A expressão “coisas maravilhosas e até agora nunca
vistas” pode de igual modo fazer sentido no âmbito da sala
de aula. Também aqui é necessário acautelar que deva
existir um elemento surpresa que desperte a curiosidade do
aluno e que se constitua um ponto de ancoragem para a
construção de novos conhecimentos. O livro da autoria de
Frei João dos Santos, assim como outras obras análogas,
fornece relatos entusiasmados que com facilidade poderá
transportar os estudantes para os locais descritos. Aliás,
durante séculos foi considerada uma obra “insubstituível
para o conhecimento da África oriental” (Frei João dos
Santos, p.85).
F. Amador / Comunicações Geológicas (2014) 101, Especial III, 1193-1195
por onde corria a água com um aspecto semelhante ao da
pedra-pomes. Também as ervas e silvas que estão
presentes nas margens destes locais ficavam cobertas por
“pedra”. O missionário ainda refere no reino da Dambia
(Etiópia Oriental), ao longo do rio Nilo e a província de
Belgala onde existiriam muitas minas de “sal em pedra”,
que os mercadores levavam para o interior e trocavam por
ouro.
2. Relatos das viagens de Frei João dos Santos
O interesse dos portugueses pela região oriental de África
esteve durante muito tempo associado à procura do mítico
reino de Prestes João. Porém, cedo foi detetada a
existência de portos onde afluíam grandes quantidades de
ouro que ali era comercializado. Na procura da origem
deste mineral conduziu os portugueses ao extenso império
africano do Monomopata onde se localizavam as referidas
minas de ouro (Fig. 1). O dominicano Frei João dos Santos
chegou a Sofala em 1586, integrando um grupo de
missionários que tinha como objectivo apoiar o processo
de evangelização. Permaneceu na região durante onze
anos, tendo realizado diversas viagens pelo litoral e pelo
vale do Zambeze. Para o autor a Etiópia Oriental abrangia
os territórios que vão do Cabo da Boa Esperança até o Mar
Vermelho.
O missionário atribuiu algum destaque à existência,
longe do mar, de fontes e ribeiras de água salgada,
afirmando que esta observação não o tinha surpreendido
por já ter visto, em Portugal, junto do monumento da
Batalha, um grande olho-d’água salgada do qual é obtido
sal em marinhas. Refere, em particular, que nas terras do
Mocaranga existem muitas lagoas e ribeiras de água
salgada das quais é obtido sal por um processo de
“cozimento”. Para além disso, também é destacada a
existência no interior de Tete, perto do grande rio
Manganja, de uma grande fonte de água salgada na qual se
observava uma “espantosa maravilha”: a transformação em
pedra dura dos troncos que tombavam nesse local,
adquirindo a forma de “pedra ferrenha mui pesada” (p.
100). A este propósito Frei João dos Santos recupera
afirmações de Alberto Magno (? -1280) relativas a uma
fonte de água doce, na Alemanha, onde se registariam
efeitos semelhantes. Mas também a propósito desta
situação socorre-se de um caso análogo observado em
território português, na região de Ervedal (Alentejo) onde
brotariam no verão quatro ou cinco olhos-d’água doce, os
quais desapareceriam nos meses frios, ficando os locais
Fig. 1. “Aethiopia inferior, vel exterior” em “Theatrum orbis terrarum sive
atlas novus”, publicado em Amsterdão (1635), Willem Janszoon Blaeu
(1571-1638).
http://libweb5.princeton.edu/visual_materials/maps/websites/africa/maps
-southern/southern.html.
Fig. 1. “Aethiopia inferior, vel exterior” em “Theatrum orbis terrarum sive
atlas novus”, published in Amsterdam (1635), Willem Janszoon Blaeu
(1571-1638).
http://libweb5.princeton.edu/visual_materials/maps/websites/africa/maps
-southern/southern.html
Na mesma obra Frei João dos Santos também relata
que D. Sebastião (1554-1578) terá enviado uma grande
armada para a costa oriental de África com o objectivo de
ir a Sofala conquistar as minas de ouro do reino de
Mocaranga, em particular as minas de Manica. A
expedição ao interior gerou a oposição das populações do
Quiteve, mas os portugueses acabaram por atingir o reino
de Manica (actual Zimbabué) e as referidas minas. Porém,
as dificuldades com que se depararam foram maiores que
as previstas. Frei João dos Santos refere que o ouro era
explorado de três formas distintas. A primeira e mais
comum, era através de “grandes covas e minas, por baixo
das quais andam cavando a terra pelas veias que já
conhecem, e dali a tiram para fora e a lavam com água em
gamelas” (p. 49), ficando apenas com a fracção relativa ao
ouro. O dominicano chama a atenção para os perigos deste
tipo de explorações, por ser frequente o seu desabamento o
qual deixa soterrados os homens que nelas trabalham.
Outra forma de obter o ouro consistia em esperar que
chovesse para a seguir o procurar nas “regueiras dos
campos e das serras” (p. 50), onde poderia ser encontrado
na forma de lascas e de pedaços. Este relato indicia uma
exploração centrada principalmente em placers, onde o
ouro apareceria na forma de pequenas pepitas e palhetas.
Relatos históricos no ensino da Geologia
Por último, o terceiro processo consistia na extracção do
ouro de “certas pedras que se acham em minas
particulares” (p. 50), as quais no interior possuem veios
auríferos. Estas “pedras” seriam transformadas em pó, que
depois seria lavado em gamelas, ficando a fracção relativa
ao ouro no fundo das mesmas.
Mas as principais referências do dominicano Frei João
dos Santos estão dirigidas para as riquezas minerais que
sabia existirem nas terras do Monomotapa. Também aqui
alude às formas de extração mais comuns, as quais não se
diferenciam muito das que antes foram descritas para o
reino de Quiteve. É particularmente interessante a
descrição que faz das regras de direito consuetudinário,
relacionadas com a posse de minas. Assim, todo aquele
que descobrisse riquezas minerais era obrigado a gritar
para que alguém se aproximasse e servisse de testemunha
de que embora ao cavar tivesse encontrado minério não
tinha levado nada para si e deixava o local como estava
inicialmente, caso não tivesse estes cuidados ficaria sujeito
à pena de morte. A origem do ouro é atribuída à influência
do Sol:
Andando eu nestas terras, me afirmaram alguns
homens que tinham experiência delas que era coisa
mui averiguada fazer o sol nelas tanta impressão,
com as influências dos seus raios, que, além de as
apurar e converter em ouro, fazia brotar o mesmo
ouro fora da terra com tanta força como se fora planta
que quer nascer, e particularmente naqueles lugares
onde se cria na superfície da terra, o que se mostrava
claramente onde havia minas grossas, porque ali se
via a terra gretada em muitas partes e nas aberturas
que fazia se achavam lascas de ouro (p. 113/4).
Curiosa é também a descrição dos tipos de ouro
encontrados:
Este ouro se acha de muitas feições, a saber, em pó
miúdo como areia, em grãos como contas miúdas e
grossas, em lascas, umas tão maciças que parecem
fundidas, outras feitas em raminhos como muitos
esgalhos, outras envoltas e misturadas com a terra, e,
sacundindo-lha ou levando-lha, ficam vãs por dentro
como favo de mel ou coma borra de ferro que sai da
fornalha do ferreiro, cujos vãos e buracos estão
cheios de terra vermelha que ainda não está
convertida em ouro, mas bem mostra na sua cor que
também se há-de converter nele (p. 114).
Na Etiópia Oriental (I), Frei João dos Santos também
faz referência às minas de prata de Chicova e ao muito
cobre e ferro que existe nas terras de Mocaranga, sendo
este último levado pelos portugueses para a Índia, para a
partir dele fabricarem espingardas.
3. Introdução de episódios históricos em contextos
educativos
Num trabalho recente, Matthews (2012) evoca a
necessidade de se proceder a uma reorientação da
investigação no âmbito do que é referido na literatura pela
sigla NOS (Nature of Science) para uma abordagem mais
contextualizada, heterogénea e menos erudita que designa
1195
por FOS (Features of Science), que neste trabalho
traduzimos por características da ciência. A investigação
centrada na NOS centrou-se na natureza do conhecimento
científico, enquanto a investigação na perspetiva FOS para
além da referida perspectiva também deve incluir uma
preocupação com os processos, as instituições e os
contextos culturais e sociais em que o conhecimento é
produzido.
Os objectivos devem ser modestos quando se ensina
sobre FOS, o importante é que os alunos reflictam sobre os
acontecimentos e fenómenos. Por outro lado, como várias
investigações têm testemunhado não é realista acreditar
que os professores tenham ou venham a ter uma formação
consistente nos domínios da Epistemologia ou da História
da Ciência. Assim, o autor advoga que a epistemologia não
deve ser artificialmente importada para as salas de aula.
Em contrapartida, há questões de nível mais básico que
surgem de forma natural em contextos educativos pela
utilização de determinados termos, como lei, teoria,
modelo, explicação, causa, a verdade, conhecimento,
hipótese, confirmação, observação, evidência, idealização
etc.. O mesmo raciocínio se aplica à História da Ciência.
Por outro lado, o maior desafio para o professor de
ciências é capacitar os estudantes para questionar o
conhecimento. Só desse modo seremos capazes de
conduzir os alunos às verdadeiras aprendizagens.
Os exemplos que referimos, ligados à literatura da
expansão portuguesa, podem por um lado suscitar a
curiosidade e o interesse na medida em que são contados
como um relato na forma de história e por outro induzir o
questionamento e a procura de explicações. Destacamos os
aspetos relativos à génese das nascentes termais, à
temperatura e salinidade das respectivas águas, processos
de fossilização por precipitação de carbonato de cálcio,
formação de diapiros salinos, tectónica, formação de
placers, etc.
Em concreto, os episódios históricos apresentados
deverão: (i) estar suportados em fontes históricas
primárias; (ii) suscitar interesse e curiosidade; (iii) induzir
o questionamento com vista à explicação dos fenómenos.
Referências
Carvalho, T.N., 2012. Registo da biodiversidade africana anotados
por Frei João dos Santos em “Etiópia Oriental” (Évora, 1609).
Atas do Congresso Internacional Saber Tropical em Moçambique:
História, Memória e Ciência. IICT – JBT/Jardim Botânico
Tropical. Lisboa, 16 p.
Cidade, H., 1964. A literatura portuguesa e a expansão ultramarina.
Vol. I e II. Arménio Amado Editora, Coimbra, 428 p.
Lopes, M.S., 1998. Coisas maravilhosas e até agora nunca vistas.
Quetzal, Lisboa, 274 p.
Frei João dos Santos, 1989. Etiópia Oriental (I e II). Publicações
Alfa, Lisboa, 472 p.
Matthews, M., 2012. Changing the focus: from Nature of Science to
Features of Science”. In: M.S. Khine, (Ed.). Advances in Nature
of Science Research. Springer, Dordrecht, 3-26.
Santos, M.E.M., 1978. Viagens de exploração terrestre dos
portugueses em África. Lisboa: Centro de Estudos de Cartografia
Antiga, 414 p.
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