SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(2): 3-12, 2003 SEGURANÇA E SAÚDE NO TRABALHO: UMA QUESTÃO MAL COMPREENDIDA SEGURANÇA E SAÚDE NO TRABALHO uma questão mal compreendida JOÃO CÂNDIDO DE OLIVEIRA Resumo: O presente artigo analisa alguns traços da cultura ainda predominante na maioria das empresas brasileiras em relação à segurança e saúde no trabalho, que funciona ora promovendo, ora inibindo ou mesmo impedindo a implementação de ações destinadas à melhoria dos ambientes e das condições de trabalho voltadas para a promoção da segurança e saúde dos trabalhadores. Palavras-chave: trabalho; segurança; saúde; acidentes; gestão; prevenção. Abstract: This article analyses some features of the culture that still prevails in most Brazilian companies with respect to safety and health in the workplace. This culture alternately promotes and inhibits, or even impedes, the implementation of measures aimed at improving working environments and conditions that would enhance the safety and health of workers. Key words: work; safety; health; accidents; management; prevention. A companhando, há quase 30 anos, a trajetória dos programas de Segurança do Trabalho concebidos e implementados no Brasil, observou-se a falta de consistência e desenvoltura encontradas nos demais segmentos das gestões empresariais, sobretudo, no que se refere à organização da produção. Essa impressão é fruto de vivências técnico-pedagógicas estabelecidas não só com operários em quase todos os ramos de atividades econômicas, mas também com profissionais dos serviços Especializados de Segurança e Medicina do Trabalho – SESMT, e que passam pelas médias gerências até os mais elevados escalões de empresas, em diversas regiões do País. Na Fundacentro, teve-se a oportunidade de acompanhar e, na maioria das vezes, de participar, direta ou indiretamente, de grande parte das tentativas de concepção e desenvolvimento de um sistema de gestão de segurança que garantisse o trato da questão da saúde/segurança do trabalhador nas empresas, com a importância que o tema merece. Desde a experiência frustrante com o Mapa de Riscos – que não produziu os resultados esperados –, resolveuse reunir informações, entrevistar pessoas, estudar progra- mas de segurança e saúde do trabalhador de empresas, realizando coleta sistemática de informações que se levasse a entender melhor as razões do insucesso das diversas iniciativas de criação de um sistema eficaz de gestão de segurança do trabalho, já que as existentes nunca se apresentaram como ideais. A consistência desses dados permitiu aventar algumas idéias, opiniões e conclusões, exportar a seguir. Tentar-se-á elucidar que dificuldades interferem no sucesso dessas iniciativas, impedindo-as de romper as barreiras que as situam em segundo plano nas organizações. O ponto de partida para essa empreitada é a definição de alguns elementos que compõem os programas de gestão de Segurança e Saúde no Trabalho – SST, nas empresas brasileiras, que constituirão o objeto dessa observação. Em função da importância, em especial para a implementação dos referidos programas, irá se tratar de três elementos que, no entender, são decisivos para o sucesso ou insucesso desses programas. Daí a necessidade de compreendê-los melhor. Trata-se, entre outros, dos três elementos básicos de qualquer programa de gestão – no caso específico, da segurança e saúde no trabalho –, que 3 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(2) 2003 formam os pilares nos quais se sustentam as ações dos programas, quais sejam: - aspectos culturais ou a forma como as partes interessadas – trabalhadores, empregadores, profissionais do ramo e governo – vislumbram e abordam a questão; mo inviabilizam a implementação dos programas de SST, segundo o que se pode levantar, são: - conteúdos técnicos ou ferramentas utilizadas na identificação e controle dos riscos do trabalho; Não é praxe, no Brasil, o envolvimento direto da alta direção das empresas com as questões da segurança e saúde no trabalho, salvo quando da ocorrência de acidentes graves, que, além de danos materiais, provocam ranhuras na imagem de suas empresas, atingindo-os de forma direta. De maneira não muito diferente, seus prepostos, gerentes de todos os escalões, por não se considerarem ou não terem sido considerados pelo empregador como responsáveis diretos pela promoção da segurança e saúde no trabalho, esquivam-se, de todas as formas possíveis, de assumir o papel de gestores e responsáveis pelos programas de SST – diga-se de passagem, caros – propostos, às vezes, pelo próprio empregador. É certo que essa postura vem declinando, sobretudo nas grandes empresas, nos últimos anos, mas não a ponto de já ter amadurecido uma nova experiência em que as questões da segurança e saúde no trabalho sejam consideradas como parte integrante do sistema produtivo, recebendo dos dirigentes das empresas o mesmo valor conferido aos itens de produção, por exemplo, e administradas por quem dispõe de poderes para intervir nos processos produtivos – o corpo gerencial da empresa. Envolvimento da Alta Direção da Empresa - aspectos ligados aos resultados. Em função do que se pretende debater no presente artigo, abordar-se-á os aspectos culturais. ASPECTOS CULTURAIS: VIESES E ACERTOS O que se segue objetiva levantar e analisar algumas questões, consideradas críticas, sobre o jeito de SER e de AGIR da maioria das empresas brasileiras quando o assunto é segurança e saúde no trabalho. O texto procura ainda indagar: onde se está e para aonde provavelmente se irá? Dos diversos elementos que compõem um programa de gestão de Segurança e Saúde no Trabalho – SST, os três aqui apontados – cultura, ferramentas e objetivos –, se avaliados conforme a importância, sem dúvida, os aspectos culturais representam, de longe, o que há de mais significativo, facilitando, inibindo ou inviabilizando seu sucesso. Por mais elaborado que seja um programa de SST e por melhores que sejam as ferramentas por ele disponibilizadas para o diagnóstico e a solução dos riscos do trabalho, se não houver disposição e participação compromissada de todos os envolvidos em suas ações, especialmente do corpo gerencial da empresa, os resultados por ele produzidos serão limitados, tanto do ponto de vista quantitativo, quanto qualitativo. Pior do que os parcos resultados na correção dos riscos do trabalho é o baixo desempenho na manutenção das medidas corretivas porventura implementadas. No entanto, em função dos traços da cultura de SST ainda predominante na maioria das empresas brasileiras, mesmo nas de grande porte, a questão da segurança e saúde no trabalho não é tratada como deveria ser, tanto por parte da empresa – na pessoa de seus prepostos – , como por parte dos trabalhadores. Esse mesmo ponto de vista pode ser observado pelas falas de trabalhadores e de prepostos dos empregadores, colhidas nas empresas por meio de questionários aplicados com essa finalidade. Os principais problemas ainda existentes na maioria das empresas, que dificultam e, em certas circunstâncias, até mes- Programas de SST Orientados para o Atendimento à Legislação Os programas de segurança e saúde no trabalho, em função da cultura dominante na maioria das empresas, são concebidos e orientados normalmente para o atendimento à legislação que dispõe sobre a matéria. Programas fundamentados nesse princípio são, em geral, pobres e de baixo desempenho, por várias razões, mas, principalmente, porque privilegiam as situações de risco que se apresentam em franco desacordo com a Lei e que podem transformar-se em objeto de fiscalização pelo Ministério do Trabalho e Emprego ou gerar algum tipo de passivo, de natureza trabalhista ou reparatória, em detrimento de outras que podem ser muito mais nocivas à saúde do trabalhador, mas não facilmente perceptíveis. Outro aspecto negativo dos denominados programas “legalistas”, 1 que combinados com a abordagem reducionista ou “minimizadora” dos riscos do trabalho reforçam seu lado negativo, é o fato de que não há cober- 4 SEGURANÇA E SAÚDE NO TRABALHO: UMA QUESTÃO MAL COMPREENDIDA possa lesá-las ou matá-las. Afora os equívocos ou as intenções que os orientam, a alteração do comportamento do trabalhador em relação ao que se qualifica como o corretamente esperado não deixa de ser um sério agravante na exposição aos riscos ocupacionais, sobretudo, quando eles não são tão conhecidos, qualificados e avaliados corretamente. E, pior, controlados de modo inadequado ou nem mesmo controlados. A incidência de acidentes relacionados ao cometimento de erros no trabalho não é pequena no universo dos acidentes registrados e estudados. Milhares de trabalhadores morrem ou mutilam-se todos os anos no Brasil e em outras partes do mundo, em decorrência de acidentes do trabalho cujas causas vão desde a precariedade das condições físicas do ambiente onde o trabalho se realiza, às diversas formas de distorções em sua forma de organização até os comportamentos inadequados dos trabalhadores, traduzidos em erros comprometedores na execução de suas tarefas. A inclusão do comportamento dos trabalhadores no conjunto dos fatores causais de acidentes do trabalho, quando cabível, de forma alguma significa debitar aos trabalhadores acidentados a culpa pelos acidentes e, conseqüentemente, pelos danos deles decorrentes, incluindo invalidez e morte. Na arte de prevenir acidentes, o comportamento do trabalhador, como foi expresso na ação do acidente, ainda que tenha sido a causa preponderante, é de importância secundária, às vezes até irrelevante. O que deve ser levado em conta – e, por todos os meios possíveis, valorizados e cuidadosamente estudados – são os determinantes do comportamento, ou seja, o que o motivou: o que havia de errado no ambiente, nas relações de trabalho e ainda na vida do trabalhador que interferiam, direta ou indiretamente, no relacionamento dele com o todo de seu trabalho, definindo posturas traduzidas em atitudes corretas ou equivocadas. A figura do “Ato Inseguro” – que tanto serviu e continua, em alguns ambientes, servindo para responsabilizar e até mesmo para culpar trabalhadores pelos acidentes sofridos – não serviu para outra coisa senão para ocultar e/ou mascarar, em algumas empresas, sinais de agravos à saúde do trabalhador e, da mesma forma, distorções na organização do trabalho do que propriamente às finalidades para as quais se propunha, que era estabelecer nexo entre os acidentes ocorridos e suas reais causas. O questionamento em relação à figura do “Ato Inseguro” não se refere ao comportamento do trabalhador, expresso no cometimento de erros no trabalho, mas à parcialidade com que foi utilizado na definição causal dos tura total de fiscalização pelo Ministério do Trabalho e Emprego em razão do reduzido número de auditores fiscais para cobrir o universo de empresas onde existem trabalhadores expostos, cotidianamente, aos riscos de acidentes e/ou de doenças do trabalho. Sem contar, o que é pior, a postura assumida por muitos gerentes de empresas, que acreditam ser o cumprimento das notificações do Ministério do Trabalho e Emprego a forma de restabelecer a conformidade legal da empresa em relação aos instrumentos legais regulamentadores da segurança e saúde do trabalhador, postura que restringe ainda mais as ações de segurança do trabalho na empresa. Essa estreiteza de visão, além de comprometer a segurança dos trabalhadores, é extremamente nociva a todos os envolvidos com os processos de trabalho na empresa por ser absolutamente equivocada. Para ser isso verdade, seria necessário ao auditor fiscal avaliar, na empresa fiscalizada, todos os itens de SST em desacordo com as normas legais vigentes e transfomá-los em notificações. A inviabilidade desse princípio não esbarra apenas em questões de natureza técnica, mas, principalmente, na missão da fiscalização. O “Ato Inseguro” como Causa Preponderante dos Acidentes do Trabalho Ainda em relação aos traços da cultura de SST predominante na maioria das empresas brasileiras, outro aspecto relevante que contribui negativamente para o baixo desempenho da maioria dos atuais programas de SST é o estabelecimento do nexo causal dos acidentes, tomandose como base o comportamento dos trabalhadores. Relacionar o comportamento do trabalhador com a prevenção ou a ocorrência de acidentes no trabalho – não importando se o impacto for uma intoxicação aguda ou uma fratura óssea ou coisa do mesmo gênero – não é tarefa difícil nem mesmo para os leigos no assunto, quanto mais para quem milita no ramo da promoção da segurança e saúde do trabalhador. Tal fato, todavia, não ocorre quando se pretende elucidar os determinantes do comportamento dos indivíduos, o que, em última instância, é o que interessa a quem lida com a gestão da segurança no trabalho. É sabido que quantidade apreciável dos acidentes do trabalho ocorridos, no Brasil ou em qualquer parte do mundo, origina-se no comportamento das vítimas. Quanto a isso, não há nenhuma dúvida; o que é mal interpretado ou às vezes compreendido erroneamente, de propósito, é por que as pessoas se expõem, de maneira passiva, sem os devidos cuidados, a uma condição de risco que 5 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(2) 2003 ser correto supor que o comportamento do trabalhador, decorrente ou não das circunstâncias já mencionadas, não contribui para a ocorrência dos acidentes no trabalho – isso entendendo que o que se pretende com a investigação não é culpar o trabalhador pelo acidente, mas, pura e simplesmente, estabelecer nexo entre o acidente e seus determinantes causais. Um modelo de gestão de segurança do trabalho que permite relacionar a ocorrência de acidentes do trabalho ao comportamento do trabalhador, definindo-o como displicente, imperito, negligente e/ou imprudente, na definição causal dos acidentes, sem considerar as condições físicas do ambiente laboral e, principalmente, seus elementos determinantes na organização formal ou informal, certamente, estará tratando a questão da SST de forma superficial, parcial e, o que é pior, às vezes, inconseqüente. Embora, por essa via, a análise pode privilegiar o comportamento da vítima, desvinculado dos fatores que o tenham determinado, em detrimento da investigação científica que procura, isenta de parcialidade, desvendar e correlacionar os determinantes causais dos acidentes. A definição da causa dos acidentes do trabalho pela via do “Ato Inseguro” não peca apenas por privilegiar o comportamento do trabalhador como causa preponderante dos acidentes do trabalho, em detrimento da qualidade dos ambientes e de sua organização, mas, sobretudo, por supor que os erros cometidos pelo trabalhador na execução de suas tarefas derivam-se, pura e simplesmente, de suas próprias limitações, não guardando, por isso, qualquer relação com a forma de ser e de agir da empresa. Essa estreiteza de imaginação ou imaginação intencional, combinada com o extremo de supor que o comportamento do trabalhador, não importando as razões que o determinem, não deve ser abordado como causa de acidente – porque ele, em todos os sentidos, deve ser visto e tratado como vítima – não apenas empobrece qualquer iniciativa na área de gestão de SST, mas concorre para reforçar as teses que sustentam não ser a segurança do trabalho problema de gestão da produção, mas problema relacionado à qualidade da mão-de-obra da empresa. Daí a preocupação em se reforçarem as práticas de treinamento em prevenção de acidentes, desvinculadas dos processos produtivos, acreditando que a capacitação do trabalhador para fazer segurança seja a solução mais produtiva na prevenção de acidentes, o que nem sempre ocorre. O treinamento em prevenção de acidentes produz excelentes resultados, não há dúvidas, quando associado à melhoria contínua dos ambientes e da organização do trabalho. acidentes. O erro na execução do trabalho, embora indesejável, é passível de ocorrer, e todos, indistintamente, nele podem incorrer. Não é, por conseguinte, o erro, como erro, que interessa a quem lida, com espírito construtivo, com a prevenção de acidentes, mas as causas do erro, não importando sua clarividência – se visíveis ou ocultas, se imediatas ou remotas. A abordagem da segurança do trabalho valendo-se do raciocínio de que o trabalhador erra ao executar suas tarefas porque é displicente, indisciplinado, negligente, imperito ou simplesmente imprudente – princípios nos quais se fundamentam as teses do “Ato Inseguro” – é tão nociva à gestão da segurança no trabalho quanto o é a crença de que o trabalhador, por sua conta e risco, nunca erra. E, quando erra, é porque foi induzido ao erro por motivos totalmente alheios não apenas a sua condição de trabalhador, mas também de humano. Ambas as linhas de raciocínio falham e em nada contribuem para a segurança no trabalho porque, de um lado, constrói-se a idéia de um trabalhador anárquico, irresponsável e indisciplinado em relação ao cumprimento de normas de trabalho – normas, na maioria das vezes, elaboradas por quem não está diretamente envolvido com os processos de trabalho e, por desconhecimento, não define o que deve ser rígido ou flexibilizado nas normas. Daí a explicação da “desobediência”, parcial ou total, do trabalhador a seu cumprimento. De outro lado, retrata-se um trabalhador, em todos os sentidos, duplamente vitimado. Vitimado em relação aos impactos do acidente ou da doença, o que é absolutamente verdadeiro, e vitimado em relação a suas causas, nas quais, ele, na condição de cidadão e de sujeito, com sua cultura e seu jeito de ser em todas as relações de trabalho, parece não existir. E, se existe, é desprovido de autodeterminação quanto a seus atos, ainda que na defesa da saúde e da vida. Não há dúvida que qualquer julgamento, premeditado ou não, acerca da causalidade acidentária, que tome como base os extremos dos dois pontos de vista aqui mencionados, é suscetível de falhas, uma vez que desvia o ponto de atenção e de análise das condições ambientais nas quais o trabalho realiza-se e dos elementos fundamentais de sua organização. Comportamento do Trabalhador e sua Relação com a Organização do Trabalho É certo que o trabalhador age, de um lado, orientado pelos ditames da empresa; de outro, em função das condições de trabalho, mas também, e principalmente, pela consciência da realidade na qual ele está inserido. Daí não 6 SEGURANÇA E SAÚDE NO TRABALHO: UMA QUESTÃO MAL COMPREENDIDA quanto na organização do trabalho, é exacerbar o estado de angústia que caracteriza a exposição, consciente, a riscos potencialmente capazes de gerar danos à saúde. Isso porque, uma coisa é expor-se a uma situação de risco à saúde e/ou à integridade física, sem saber o que isso significa; outra, bem diferente, é ter consciência do problema e ter que a ele expor-se sem condições para agir. Nesse caso, o dano não se restringe apenas àquele provocado pelo risco em questão, mas, também, pelo sofrimento de natureza mental de não poder proteger-se. Oferecer essa condição ao trabalhador, na expectativa de que ela seja um caminho alternativo para a solução do problema acidentário, além de não representar solução alguma, aprofunda ainda mais o fosso que separa os propósitos da empresa em relação ao tema do engajamento voluntarioso e compromissado dos trabalhadores. Nada mais danoso a qualquer programa de gestão de SST do que o constrangimento sofrido por trabalhador submetido a treinamento específico de segurança promovido pela própria empresa, mas que, ao tentar praticar as lições aprendidas, é impedido de fazê-lo, ora por decisão de suas chefias imediatas, sem justificativas convincentes para tal, ora por impedimento das próprias condições de trabalho. No caso da segunda hipótese, o conflito está intimamente relacionado ao fato de o conteúdo do treinamento não ter considerado as peculiaridades do ambiente e do trabalho. Em todos os sentidos, a ocorrência desse fato pode ser debitada à desvinculação da SST dos processos produtivos e da própria organização do trabalho. Iguais a isso, ou pior, são determinadas posturas assumidas, de forma contundente, por alguns gerentes ao reivindicarem direitos legalmente instituídos para proteger trabalhadores, habitual e permanentemente, expostos a agentes nocivos à saúde, como os adicionais de insalubridade e periculosidade. E, da mesma forma, a aposentadoria especial. Outro aspecto negativo na abordagem do acidente do trabalho com base no comportamento do trabalhador, na visão do “Ato Inseguro”, reside no equívoco de se supor que o trabalhador comete erros no trabalho simplesmente porque, em determinado momento, decide, por conta própria, como se comportar no trabalho, improvisando condições alternativas para a realização das tarefas, ignorando procedimentos normativos previamente definidos para o mesmo – procedimento ou prática padrão. Afirmar que o trabalhador decide por conta própria como se comportar em relação às normas que orientam o trabalho, sem considerar as variáveis que o envolve, revela não apenas uma inversão de papéis, mas, sobretudo, uma demonstração clara da forma como o trabalho é organizado naquele ambiente, bem como as incongruências de seus sistemas de controle. A organização da produção e o que dela decorre: fazer o quê, por quê, como, onde e especialmente por quem, sempre foi tarefa indelegável da empresa e não dos trabalhadores. Não se concebe que o trabalhador, em nenhuma empresa brasileira, em face da cultura do trabalho ainda predominante no Brasil, disponha de poderes para decidir, individualmente, como deve comportar-se no trabalho, independentemente das determinações normativas impostas pela empresa. O que se afigura como mais provável, nesse particular, são as falhas de controle que a empresa exerce sobre o trabalho em decorrência de deficiências em seu sistema de organização, em especial em relação à organização formal do trabalho. Inserção dos Trabalhadores nos Programas: Treinamento Ainda em relação aos aspectos culturais vinculados à segurança e saúde do trabalhador, ao longo dos anos em que se lidou com essa questão, constatou-se algo, de certa forma, paradoxal, porém verdadeiro e importante: tão nefastas quanto as doenças e os acidentes do trabalho são as formas escolhidas por algumas empresas para com eles lidar. O enfrentamento dessa questão, por sua complexidade e multicausalidade, não passa apenas pelo treinamento específico de trabalhadores para fazer segurança, independentemente das condições físicas onde o trabalho se realiza. Acredita-se até que treinar trabalhadores para o estrito cumprimento de normas – em ambientes agressivos, desfavoráveis à vida, onde a organização do trabalho em nada favorece o seu exercício correto – sem lhes oferecer as condições necessárias e abertura para discutir, ponderar e propor medidas de melhorias, tanto no ambiente Paradoxos da SST: Adicionais de Insalubridade e Aposentadoria Especial Quanto à última afirmativa, não nos parece que o gerente não deva reivindicar, por razões éticas, direitos decorrentes da exposição a riscos do trabalho ou a redução do tempo para aposentadoria, quando cabíveis, mesmo porque a concessão desses “benefícios” depende da aplicação da legislação pertinente. A questão é que essa postura, principalmente advinda dos gerentes, reforça, ainda mais, as teses que vinculam a segurança do trabalho à 7 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(2) 2003 monetarização da saúde dos trabalhadores por meio de pagamento de adicionais de insalubridade, em detrimento da melhoria das condições de trabalho. Quanto a essa afirmação, testemunhou-se diversas iniciativas, por parte de algumas empresas, cujo propósito era a eliminação de determinadas condições insalubres passíveis disso, seguidas da supressão do adicional de insalubridade constante da folha de pagamento dos trabalhadores e por eles terminantemente rejeitadas. É imprescindível para quem deseja, de modo imparcial, aprofundar no assunto, questionar os motivos que ainda direcionam uma parcela considerável de trabalhadores a tal posicionamento. O que foi possível observar, por meio de pesquisas realizadas em diversas empresas de ramos de atividades diferentes, é que, nas categorias de trabalhadores em que o salário é por demais reduzido, os trabalhadores não abrem mão do referido adicional, por ser ele parte considerável de seus ganhos – como o são, da mesma forma, as horas extras. Já nas categorias em que os salários são mais elevados, o pleito pelo adicional de insalubridade associa-se à idéia de que por meio dele se assegura, na Previdência Social, a obtenção da aposentadoria especial. Quanto ao primeiro posicionamento, a despeito da desumanidade que o caracteriza, embora inaceitável, é perfeitamente compreensível; já o segundo trata-se de desinformação, uma vez que a aposentadoria especial, hoje, depende da efetiva comprovação técnica de que a condição de trabalho é prejudicial à saúde do trabalhador, seguida do pagamento de seu respectivo custeio. De qualquer forma, independentemente das razões alegadas, a monetarização da saúde não deveria, em hipótese alguma, por razões humanas e morais, ser objeto de negociações que não objetivassem sua supressão. Evidentemente, essa supressão não se restringe à figura jurídica da insalubridade, mas, sobretudo, às condições de trabalho que a ensejam. Todavia, a opinião é que, entre se expor a uma condição agressiva à saúde sem nada receber e tendo como única alternativa a ela se expor, o melhor será fazê-lo; no entanto, por isso recebendo. Entre os diversos aspectos negativos da cultura brasileira relacionada à segurança do trabalho, a monetarização da saúde – pelo nefasto adicional de insalubridade – e a redução do tempo de serviço para a aposentadoria, sem o devido custeio feito pelas empresas, 2 representam o que há de pior. Convencer os trabalhadores de que melhor do que quaisquer ganhos monetários decorrentes da exposi- ção aos riscos no trabalho são as medidas saneadoras desses riscos é tarefa difícil, por vários motivos, mas, principalmente pelo fato de os trabalhadores, ao longo do tempo, terem associado, de forma errônea, a concessão da aposentadoria especial à percepção do adicional de insalubridade. Ordenamento Formal do Trabalho e os Conflitos de Poder Outro aspecto importante, fruto dos traços da cultura ainda predominante nas empresas, que interfere, de maneira negativa, no desempenho da gestão da segurança e saúde do trabalhador, é o dualismo vivenciado cotidianamente pelos trabalhadores no cumprimento do ordenamento formal do trabalho. O fosso que ainda separa o discurso formal do trabalho (normas escritas) da diversidade de formas práticas – nem sempre conforme o que está escrito – de realização das tarefas, por parte dos trabalhadores, relaciona-se, possivelmente, a três fatores distintos: - condições de trabalho nem sempre compatíveis com as exigências contidas nos procedimentos escritos; - deficiência na capacitação técnica dos trabalhadores para a correta execução das tarefas conforme prescrições normativas; - duplicidade de orientação sobre como realizar as tarefas. Dos três fatores enumerados, sem nenhuma dúvida, a duplicidade de orientação é a que mais confunde os trabalhadores no exercício de seu trabalho. A maioria dos trabalhadores brasileiros aprendeu a trabalhar seguindo orientações orais – ordens – de suas chefias imediatas. Poucas eram as ordens escritas passadas aos trabalhadores, o que difere da atualidade, em que praticamente todas as atividades são normalizadas, seguem prescrições sobretudo contidas nos programas de qualidade. No dia-a-dia das empresas, o que se verifica, na prática, porém, é uma espécie de rito de passagem das formas antigas de comando, orientadas por meio da fala imperativa, dos encarregados para uma comunicação formal, conformada por normas de procedimentos escritos. Com isso, o gerente que exercia um papel caracteristicamente de mando transforma-se, aos poucos, numa espécie de facilitador. O problema é que essa experiência é recente demais e tanto os gerentes quanto os trabalhadores ainda não se adaptaram suficientemente a ela a ponto de fazê-la funcionar sem conflitos, em especial, nas relações de comando. 8 SEGURANÇA E SAÚDE NO TRABALHO: UMA QUESTÃO MAL COMPREENDIDA Outro fator relevante que não pode ser desprezado na compreensão do fenômeno (teoria e prática), em razão de sua importância, é a dificuldade de estabelecerem parâmetros entre a realização de uma atividade prática, por um ou mais trabalhadores, reproduzindo experiências acumuladas ao longo do tempo, sem orientação formal, e a realização da mesma atividade conforme prescrições formalizadas. Isso porque, uma coisa é a realização de uma atividade de maneira informal, em que a aprendizagem dáse por experimentações, ou seja, por tentativas que envolvem erros e acertos; outra coisa, muito diferente, é a realização da mesma atividade segundo prescrições formais. Em decorrência disso, verificam-se ainda, e com razoável freqüência, conflitos entre trabalhadores e supervisores no ordenamento dos trabalhos. Há momentos em que trabalhadores defrontam-se, sem saber como agir, com conflitos surgidos entre eles e suas chefias imediatas em relação a que ou a quem obedecer, seguir os procedimentos escritos determinados pela própria empresa, ou acatar as ordens de suas respectivas chefias – ordens que, muitas vezes, passam ao largo das determinações formais. As origens desses conflitos estão nas dificuldades de transformarem, em curto prazo, as experiências construídas e vivenciadas ao longo de gerações em relações formalizadas, em que prevalece não o que se verbaliza oralmente, mas o que está escrito. RESUMO DA FALA DOS GERENTES: O QUE PENSAM E O QUE FAZEM Postura das Chefias em Relação à SST - A situação de risco é mantida porque sua existência não atrapalha; se atrapalha, não impede a realização do trabalho. Como ilustração das dificuldades de lidar com questões de segurança e saúde dos trabalhadores nas empresas, com base na visão de seus gestores, aqui são retratadas algumas falas recolhidas por intermédio de pesquisas em seis grandes empresas mineiras, dos ramos de metalurgia, siderurgia, mineração e serviços, realizadas nos anos de 1995 e 1996. Ressalte-se que os mesmos itens abordados na época foram objeto de estudos no ano de 2001 e os resultados obtidos, comparados à primeira pesquisa, não sofreram alterações substanciais, como se imaginava que acontecesse em face da movimentação, ocorrida no mesmo período, em decorrência da implantação dos programas de qualidade e meio ambiente apoiados nas séries ISO 9000 e 14000. Tanto a primeira quanto a segunda pesquisa foram elaboradas com 30 perguntas, seguidas de seis alternativas de respostas que afirmaram ou negavam o que estava sendo perguntado, e o entrevistado pôde escolher até três alternativas de respostas, com ordem crescente de afirmação ou de negação. - A exposição, por longo tempo, a determinada condição de risco, sem o controle devido, termina induzindo as pessoas a enxergá-la como normal e aceitável. Entre os trinta itens abordados nas duas pesquisas, elegeu-se dez para apoiar os comentários que serão feitos a seguir. Foi tomado como referência apenas os itens que obtiveram mais de 60% de respostas afirmativas entre os 312 gerentes entrevistados. Denominou-se gerentes todos os ocupantes de cargo que tivessem, direta ou indiretamente, a função de mando e/ou de facilitador do trabalho de outrem, como: gerente técnico, supervisor, encarregado e líder de equipes. Os itens são os seguintes: - Os gerentes que trabalham de forma direta com riscos potencialmente capazes de gerar danos à saúde dos trabalhadores não dispõem do conhecimento necessário para com eles lidar de modo adequado. - Os gerentes que convivem com riscos, mesmo sabendo de sua existência, não assumem o compromisso de corrigi-los pelo simples fato de ser essa uma tarefa de competência do SESMT. - Os gerentes que lidam com os riscos podem saber de sua existência, mas não se esforçam para corrigi-los porque suas chefias superiores não lhes dão apoio para as ações necessárias. - A situação de risco é mantida porque ninguém toma qualquer providência para corrigi-la. - A situação de risco é mantida porque todas as preocupações e recursos são voltados prioritariamente para o atendimento às finalidades do negócio. - A situação de risco é mantida porque as gerências das áreas alegam não dispor de recursos (orçamentários e de mão-de-obra) para sua solução. - A situação de risco é mantida em razão da descrença das pessoas com ela envolvidas, por falta de respostas às inúmeras solicitações de correção. - A situação de risco é mantida e, às vezes, agrava-se em função da indefinição do trabalhador em relação a quê ou a quem obedecer – se aos procedimentos escritos ou às ordens dos supervisores. 9 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(2) 2003 Como contribuição ao tema e em contrapartida às impressões colhidas dos gerentes, foram enumeradas – conforme a seguir – 20 considerações extraídas da fala de 1.372 trabalhadores, de cinco ramos de atividades econômicas diferentes, por ocasião da última pesquisa. Ressalte-se que todas as afirmações aqui resumidas foram recolhidas do conjunto de respostas que obtiveram mais de 50% de afirmação. As constatações são as que se seguem: - A segurança no trabalho é mais importante no discurso da direção da empresa do que propriamente nas áreas onde ela deveria, de fato, ser realizada. - Supervisão ambígua. O supervisor é cônscio do trabalho a ser desenvolvido (consta nos procedimentos). Sabe operacionalizar conforme prescrito; no entanto, facultalhe fazer com base nas experiências consolidadas ao longo do tempo, porque compreende que o mais importante para a empresa não é como fazer, mas fazer (a produção é prioridade). - A Segurança do Trabalho, na prática, só adquire importância nos momentos de crise (quando ocorre acidente grave que pode comprometer principalmente a imagem da empresa). - O trabalhador, às vezes, prefere, de forma silenciosa, correr o risco oferecido pela atividade a correr o risco de ser mal-entendido, taxado de medroso e frouxo pelos colegas ou mesmo pela chefia em caso de reclamação ou de recusa ao trabalho. - Ambigüidade entre o que se determina e o que é executável. O trabalhador encontra dificuldade enorme em definir ao que ou a quem obedecer – se a prescrição das tarefas ou a fala do supervisor. - O fosso que separa o discurso (SST como valor) da prática (o que efetivamente é feito) constitui o mais importante obstáculo no desenvolvimento das ações de SST na empresa. - É consenso entre trabalhadores e supervisores que, se o risco de determinada tarefa é considerado leve ou moderado, é preferível a ele expor-se para agilizar a execução da tarefa do que executar conforme o prescrito, gastandose mais tempo em sua execução. - A forma errada como sempre se trabalhou, acreditando que se trabalhava correto, dificulta e/ou inviabiliza, a curto prazo, a prática de procedimentos corretos. - O trabalhador, embora sabendo (consta nos procedimentos) que pode recusar-se a executar tarefa perigosa sem a prevenção devida, prefere executá-la em desobediência à norma pelo fato de desconhecer qual seria a reação da empresa (sua chefia) em face de sua recusa. - As tarefas são descritas (Tarefa Padrão – TP ou Procedimento Operacional Padrão – POP) com base no que é desejável, no que às vezes é necessário. Não são consideradas, porém, pelo menos como deveria, as dificuldades que os trabalhadores encontram na execução das tarefas conforme prescritas. - A avaliação inadequada do risco (minimizar ou exagerar) dificulta a tomada de decisões corretas em relação a seu controle, especialmente por parte das chefias. - O treinamento para o cumprimento das TPs é, em geral, inadequado, porque não leva – ou pouco leva – em conta a realidade do ambiente de trabalho e as dificuldades vivenciadas pelos trabalhadores para o pronto atendimento aos padrões estabelecidos. - Por não ser a segurança parte integrante das atividades produtivas, quem cria ou mantém a situação de risco (chefias das áreas operacionais) não se sente responsável por sua correção. - A empresa expressa por meio das TPs o que ela deseja. Na prática, as condições de trabalho oferecidas ao trabalhador dificultam ou não lhe permitem o cumprimento do que está prescrito na tarefa. - Por ser a produção prioritária, seus responsáveis sempre alegam não dispor de recursos para a correção de situações de risco, ainda que o recurso seja apenas o comprometimento. - O trabalhador sabe que o que é mais importante para a empresa não é como o trabalho está sendo executado – embora o correto fosse o desejável, ou seja, o que está escrito nos procedimentos – mas o resultado dele advindo (a produção). - A segurança do trabalho é exigida pelas chefias, desde que não interfira nos cronogramas de produção. - O trabalhador não é cobrado pela forma como desenvolve seu trabalho, mas pelos resultados. Disso resulta o fato de os supervisores não verem ou fingirem que não vêem o cometimento de “erros” na execução da tarefa. - Uma dificuldade importante do trabalhador no enfrentamento dos riscos do trabalho reside nas freqüentes alterações de funções para atendimento às demandas de trabalho, por causa do reduzido número de trabalhadores. - Grande parte das situações de riscos poderia ser resolvida se houvesse interesse e comprometimento da chefias em resolvê-las. 10 SEGURANÇA E SAÚDE NO TRABALHO: UMA QUESTÃO MAL COMPREENDIDA ção dos riscos. Contudo, a pesquisa de Hale e Glendon (1997) não define de quem é a falta de poder para intervir nas condições de trabalho, se dos trabalhadores ou dos gerentes das áreas de riscos. Outro fator importante não elucidado pelos autores é o que se refere aos aspectos de gerenciamento da segurança do trabalho. Como esse gerenciamento é conduzido, se separado dos processos produtivos, como é o caso brasileiro, ou se integrado a todo o complexo produtivo e de responsabilidade das chefias das áreas. De acordo com o que foi visto até aqui, pode-se afirmar, sem receio de cometer injustiças, que o juízo que os trabalhadores fazem dos aspectos de sua segurança e saúde no trabalho relaciona-se, intimamente, aos conteúdos e à maturidade dos programas de segurança e saúde desenvolvidos nas empresas nas quais trabalham. Nas empresas em que os programas de SST são concebidos e implementados para o estrito cumprimento das exigências legais sobre a matéria, a representatividade dos trabalhadores em relação a eles certamente se limitará ao que lhes é exigido por parte da empresa. É pouco provável que os trabalhadores de uma empresa que não vislumbra a segurança do trabalho como valor agregado a seu negócio, que não apresentam seus programas de SST alinhados ao sistema produtivo – promovendo a melhoria contínua das condições e procedimentos de trabalho e investindo pesadamente na educação dos trabalhadores e de seu corpo gerencial para o correto exercício do trabalho – possam enxergar a segurança do trabalho como valor que se equipara a outros itens relacionados diretamente ao negócio, como produção, por exemplo. As experiências demonstram que a participação dos trabalhadores nos programas de SST vincula-se intimamente à cultura da empresa relacionada com o tema e sobretudo ao conjunto de ações que ela desenvolve, em especial na área de educação, para incorporá-los aos seus programas. Nas empresas em que os programas de segurança desvinculam-se das atividades produtivas, organizados e implementados pelas equipes de segurança (o SESMT), é comum trabalhadores associarem as ações de segurança do trabalho com o vivenciado no cotidiano – como, por exemplo, uso de equipamentos de proteção individual (EPI) e realização de exames médicos, principalmente os periódicos. Fora isso, restam as atividades da Comissão Interna de Prevenção de Acidentes – CIPA, que também são de seu conhecimento. Num ambiente dessa natureza, dificilmente os trabalhadores associam as ações A definição de fatores culturais como obstáculos ao avanço das questões da saúde e segurança no trabalho nas empresas constitui problema não apenas nos países onde as relações entre capital e trabalho ainda se encontram em estágios atrasados. Mesmo nas economias altamente desenvolvidas, o problema existe e manifesta-se, em alguns pontos, tal como ocorre no Brasil e em outros países em vias de desenvolvimento. Como exemplo, vale apresentar uma relação de 15 itens, elaborada por Hale e Glendon (1997), com a qual o leitor poderá fazer uma comparação e elaborar suas conclusões: - limitação de recursos para remoção do perigo; - ultrapassagem dos limites das tarefas ou atribuições dos profissionais; - aceitação dos perigos como inevitáveis; - influência do clima social; - tradição na indústria; - falta de competência técnica para remoção do perigo; - incompatibilidade de demandas (produção, custos, qualidade versus segurança); - dependência do trabalhador; - falta de autoridade para fazer alguma coisa; - situações contingentes; - gestão ou gerenciamento de fatores do sistema de segurança; - sobrecarga de tarefa; - práticas, políticas e regras das empresas; - falta de informação (quebra de comunicação); - inexistência de obrigação legal. Comparando os itens aqui apresentados e os dos pesquisadores holandeses, Hale e Glendon, verificou-se que há enorme semelhança entre eles. A justificativa da escassez de recursos para solucionar problemas pertinentes à segurança do trabalho não relaciona-se propriamente à sua falta, mas à importância que se dá ao emprego. Hale e Glendon (1997) verificaram que tal alegação para corrigir situações de risco no trabalho não procedia apenas das médias e pequenas empresas holandesas, mas também das grandes, com inclusão das estatais. E mais, que o fenômeno não se verificava apenas na Holanda, mas em todos os países da União Européia por eles visitados. Outro item da listagem holandesa que despertou atenção foi o que se refere à falta de autoridade para decidir sobre a intervenção no ambiente de trabalho, isto é, na corre- 11 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(2) 2003 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS de segurança à promoção da qualidade de vida ou algo que possa melhorar o seu relacionamento com o próprio trabalho, diferentemente das empresas em que os programas de segurança do trabalho são abordados como parte integrante dos processos produtivos, e as ações de segurança são concebidas e implementadas como parte integrante do próprio negócio da empresa. A importância da adoção de programas dessa natureza, entre outras vantagens, está no ganho de não ser preciso desenvolver ações em duplicidade para abordar o mesmo conteúdo, que são os aspectos produtivos. Isso sem contar com uma vantagem maior: a possibilidade de convencer os trabalhadores de que para fazer segurança não é necessário desenvolver ações específicas para tal, basta incluir essa preocupação nos procedimentos de trabalho e transformá-la em ações concretas que possam ser avaliadas e medidas. DUARTE, E.F. Programa cinco minutos diários de segurança, saúde ocupacional e meio ambiente. Belo Horizonte: Ergo, 1999. GRIMALDI, J.V.; SIMONDS, R.H. Safety management. Homewood. Richard D. Irwin, 1975. 694 p. HALE, A.R.; GLENDON, A.I. Individual behaviour in the control of danger. Amsterdam: Elesevier, 1997. In: ALMEIDA, I.M. Construindo a culpa e evitando a prevenção. Tese Doutorado (versão preliminar). São Paulo, USP, 2000. MBR. Aperfeiçoamento estratégico dos programas e sistemas de segurança. Belo Horizonte: Athur D. Litle, 1993. OLEA, M.A. Introdução ao direito do trabalho. 4. ed. São Paulo: LTR, 1974. 294 p. OLIVEIRA, J.C. Gestão de riscos no trabalho: uma proposta alternativa. 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Paradoxalmente, por essa via, gastam mais do que se controlassem efetivamente seus ambientes de trabalho. Por esse expediente, a empresa continua não protegendo seus trabalhadores e abrindo espaços ao acúmulo de passivos. OLIVEIRA, S.G. Proteção jurídica à saúde do trabalhador. São Paulo. 3. ed. São Paulo: LTr, 2002. SARTORI, G. A política. Distrito Federal: UnB, 1997. 257 p. STELMAM, G. Trabalho e saúde na indústria. São Paulo: Edusp, 1978. 3v. 2. A partir de dezembro de 1999, a Previdência Social passou a exigir das empresas pagamento adicional, por redução de tempo de trabalho, para concessão da aposentadoria especial. JOÃO CÂNDIDO DE OLIVEIRA: Tecnologista da Fundacentro – MG e Professor da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais. 12 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2): 13-22, 2003 T RABALHO E S AÚDE NA INDÚSTRIA T ÊXTIL DE AMIANTO TRABALHO E SAÚDE NA INDÚSTRIA TÊXTIL DE AMIANTO VANDA D’ACRI Resumo: A morbidade e a mortalidade dos trabalhadores da indústria têxtil de amianto no Rio de Janeiro revelam o grande dano causado por esta matéria-prima, proibida em diversos países e utilizada em outros, como no Brasil, por interesse econômico e político. Quanto ao significado do trabalho, a proposta de uma vida cheia de sentido implica uma outra organização societária, em que o ato de trabalhar não seja de adoecimento e morte, mas sim uma ação saudável, um espaço de criação e liberdade para os trabalhadores. Palavras-chave: saúde; amianto e significado do trabalho. Abstract: The morbidity and mortality rates of workers at an asbestos plant in Rio de Janeiro reveal the great harm caused by this raw material, which is prohibited in many countries but used in others, such as Brazil, due to economic and political interests. The definition of a full life implies a reality in which the act of working does not lead to sickness and death. Ideally, working should be a healthy activity, and the workplace should provide a space for workers’ creativity and freedom. Key words: health; asbestos; the meaning of work. O significado do trabalho e a saúde dos trabalhadores de uma indústria têxtil de amianto no Rio de Janeiro são os pontos centrais deste estudo. A relevância do tema saúde é decorrência da alta patogenicidade da matéria-prima amianto, também denominado asbesto, utilizada no processo produtivo. À importância da questão soma-se a inexistência de dados oficiais sobre diagnóstico dos trabalhadores deste ramo da indústria no Rio de Janeiro e o desconhecimento dos danos que atingem o ambiente e a população em geral. O antigo interesse em conhecer o significado que o trabalho tem para aqueles que trabalham, aliado ao atual desejo de conhecer a vivência dos trabalhadores na sua condição operária, levou a identificar que a subjetividade no trabalho é um dos fatores fundamentais na vida dos trabalhadores da fábrica em questão. A pesquisa que forneceu os dados relativos à saúde e às condições sociais dos trabalhadores da indústria têxtil de amianto foi desenvolvida entre 1998 e início de 1999 e resultou em um relatório epidemiológico e social. O diagnóstico de asbestose e as condições de trabalho a que estavam expostos os trabalhadores, identificados no presente estudo, fazem emergir uma realidade de saúde até então desconhecida para as autoridades sanitárias do Rio de Janeiro. O estudo epidemiológico e social deixa claro a lógica de gerenciamento utilizada pela empresa, em que a demissão já está prevista no próprio processo de admissão dos trabalhadores, como decorrência do adoecimento desse processo produtivo e utilização da matéria-prima amianto. A comprovação desses fatos, através das inter-relações dos dados, revela um problema político e econômico, tanto nacional como internacional, uma vez que envolve o debate sobre o uso controlado ou extermínio da fibra de amianto e, conseqüentemente, a utilização de tecnologias alternativas. Tal discussão levou muitos países a banirem o amianto do seu processo produtivo, como também proibirem o uso dos produtos que contenham amianto. O estudo do significado do trabalho e as condições de trabalho e saúde dos trabalhadores desta indústria deram uma dimensão humana do trabalho que não fazia parte da hipótese levantada na formulação da pesquisa. Ao procurar entender o processo de adoecimento e suas causas, na manipulação da matéria-prima amianto, procurou-se apreender como era vivida, experimentada e traduzida a forma objetiva e subjetiva do ato de trabalhar. 13 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 O ato de trabalhar, que não era opcional, mas sim condição primeira de sobrevivência, exigia um aprofundamento dos sentimentos dos trabalhadores sobre suas vidas e seu trabalho, o que foi se revelando como um dado novo que contradizia a hipótese levantada de que o significado do trabalho, nestas condições tão penosas, só era possível como resultado da necessidade econômica. A doença contraída pelos trabalhadores em decorrência do processo produtivo, como a asbestose que atingiu um grande número de pessoas e o sofrimento psíquico levaram os trabalhadores à indignação, o que resultou numa atitude concreta de reivindicação de seus direitos e organização, através da fundação da Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto (Abrea-Rio), a exemplo de Osasco, que reúne um grande número de trabalhadores que estiveram expostos ao amianto. Contudo, esse quadro de morbidade e exploração capitalista deixa ainda antever o caráter ontológico do trabalho: a maioria dos trabalhadores vê sentido no seu trabalho, com o sentimento de construção e realização do seu atuar no mundo. Tal perspectiva levou à indagação de como é possível, num quadro tão negativo, existirem um sentido, um significado e uma valorização do trabalho. É na tentativa de responder esta questão que se desenvolve um dos aspectos dessa pesquisa. No início da pesquisa não se esperava que o surgimento das questões relativas ao significado do trabalho levasse à perspectiva ontológica do trabalho, suscitada pelas falas dos trabalhadores, na expressão de sua subjetividade em relação à saúde comprometida por precárias condições de trabalho, ressaltando a importância do seu trabalho para além da sobrevivência, no dizer de Ricardo Antunes (1999). Ao se lidar com a realidade do adoecimento dos trabalhadores, com a recusa do empresariado em reconhecer suas causas e com a omissão política e social das instâncias públicas responsáveis pelo setor econômico e aqueles voltados para a saúde da população, fica evidente o conseqüente privilegiamento do setor econômico em detrimento dos trabalhadores, revelando-se a importância dada ao capital em detrimento do trabalho. A pesquisa partiu da demanda de uma trabalhadora ao serviço de atenção médica do Centro de Estudos em Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (Cesteh), em decorrência de sua saúde ter sido afetada por 14 anos de exposição a essa fibra mineral na indústria têxtil. O encaminhamento foi feito por uma médica da rede municipal de saúde, que levantou a hipótese diagnóstica da doença ocupacional relacionada à exposição ao amianto. Diante do diagnóstico de asbestose, a equipe de pesquisadores solicitou a esta trabalhadora que entrasse em contato com outros operários que trabalharam na fábrica. Através de sua rede de relações, foram contatados diversos trabalhadores e encaminhados ao Cesteh. A partir dessa consulta inicial, o Cesteh, da Escola Nacional de Saúde Pública, atendeu a 119 trabalhadores da referida fábrica, até setembro de 2001, que tinham sido demitidos em sua maioria. Destes, foram identificados 30 trabalhadores com o diagnóstico de asbestose, comprovado por exames clínicos, radiológicos e prova de função respiratória, além de tomografia computadorizada para melhores esclarecimentos, quando necessário. As análises e interpretações desse estudo são um recorte desse universo de trabalhadores, envolvendo 41 funcionários da referida fábrica, sendo 23 mulheres (57%) e 18 homens (43%), durante 1998 e janeiro de 1999. Dos 41 trabalhadores entrevistados, 15 têm o diagnóstico de asbestose (nove mulheres e seis homens) e 26 não o possuem. A concentração por tempo de serviço de sete trabalhadores com o diagnóstico de asbestose – entre 9 e 15 anos de serviço – revela a intensa exposição a que estavam submetidos. A média de permanência na atividade laborativa gira em torno de 15 anos. Este é o tempo em que os sintomas da doença começam a aparecer – cansaço, dificuldades respiratórias com conseqüente redução da produtividade –, a partir dos quais os trabalhadores são demitidos (Castro et al., 1999). A fiação é o setor considerado pelos trabalhadores como um dos mais poluídos devido à excessiva poeira de amianto no ambiente. É o setor da produção que aloca o maior número de trabalhadores, o que mais adoece e é predominantemente feminino. Observa-se que entre os 15 trabalhadores com diagnóstico de asbestose, dez exerceram suas atividades na fiação, sendo sete mulheres e três homens; estes últimos exerceram suas atividades de trabalho também na calandra e gaxeta. Os outros trabalhadores eram duas tecelãs, dois trabalhadores do papelão hidráulico e um eletricista de máquinas. Nestes setores produtivos, a distribuição por sexo segue a racionalidade da divisão sexual do trabalho nas empresas, em que os postos de trabalho femininos, como a fiação, exigem uma atividade repetitiva e intensa, com habilidade manual, além de força e atenção, enquanto nos masculinos, como o PH (papelão hidráulico), a insalubridade e o perigo são predominantes. 14 T RABALHO E S AÚDE NA INDÚSTRIA T ÊXTIL DE AMIANTO A empresa não presta informações completas sobre os danos causados pelo amianto, não fornece nenhum diagnóstico aos trabalhadores e nega-se a reconhecer o nexo causal da asbestose relacionada à atividade na indústria, mesmo após a comprovação do diagnóstico feito pelo Cesteh. De maio de 1999 a setembro de 2000, novos dados foram acrescentados aos resultados obtidos pela pesquisa. A ocorrência de óbitos dos trabalhadores tornou-se uma realidade nova e concreta. Foram registradas cinco mortes entre os trabalhadores atendidos pelo Cesteh, sendo quatro casos de asbestose e um de câncer de pulmão, segundo diagnóstico dos hospitais da rede pública de saúde. O amianto ou asbesto é uma fibra mineral, composta por diversos minerais, como silicatos de magnésio, ferro, cálcio e sódio, e classifica-se em dois grupos: as serpentinas, ou crisotila, também denominadas de amianto branco, e os anfibólios, que compreendem uma grande variedade de tipos de fibras – a amosita (amianto marrom), a crocidolita (amianto azul), a antofilita, a actnolita e a tremolita (Castro; Lemle, 1995; Mendes, 2001). Atualmente, a quase totalidade da produção mundial é de crisotila, pois os anfibólios, devido à sua comprovada nocividade à saúde humana, foram proibidos em quase todo mundo. O valor comercial do amianto está relacionado às suas propriedades físicas: é incombustível, isolante de calor em temperaturas moderadas, tem alta resistência mecânica e baixa condutibilidade elétrica, alta resistência a substâncias químicas agressivas, capacidade de filtrar os microorganismos e outras substâncias nocivas, alta durabilidade e baixo custo para sua extração, pois são encontrados em rochas a céu aberto (Castro; Gomes, 1998). Tais características tornam o amianto de grande utilização industrial e comercial. No Brasil, o amianto tem sido empregado em muitos produtos, principalmente na indústria de fibrocimento (caixas d’água, telhas de amianto, tubos de água e vasos), na indústria têxtil de amianto (tecidos em geral, para confecção de luvas industriais, roupas para bombeiros e gaxetas), na produção de papéis (papéis isolantes, papelão hidráulico, papelão industrial e filtros), na indústria automobilística (pastilhas e lonas de freios para automóveis, materiais de fricção, sapatas de trens, juntas de vedação), na produção de pisos vinílicos e outros produtos (Giannasi; Scavone; Mony, 1999; Castro et al., 2001). As patologias causadas pelo amianto são: asbestose pulmonar (doença crônica que causa a fibrose no pulmão); câncer de pulmão e outros; mesoteliomas, que compreendem câncer de pleura e de peritônio (membranas que envolvem o pulmão e abdômen, respectivamente), e doenças pleurais benignas, como placas pleurais e limitação crônica do fluxo aéreo (Castro; Gomes, 1998). Baseado na realidade concreta dos trabalhadores, organizou-se a Rede Mundial do Banimento do Amianto, composta por organizações dos trabalhadores, da sociedade civil e de pesquisadores de todo o mundo, no sentido de lutarem pelo banimento dessas fibras, reconhecimento dos direitos dos trabalhadores e esclarecimento da opinião pública sobre os males causados à saúde e ao meio ambiente. No Brasil, o limite para o asbesto crisotila é de 2,0 fibras por cm³ de ar. O SIGNIFICADO DO TRABALHO PARA OS OPERÁRIOS Esta análise tem como finalidade compreender o significado do trabalho para aqueles que trabalham; no caso específico, os trabalhadores de uma indústria têxtil de amianto no Rio de Janeiro. Para o entendimento do sentido do trabalho, torna-se necessária uma abordagem sobre o trabalho, na tentativa de apreensão do seu caráter ontológico. Esta análise será feita através dos conceitos de trabalho, alienação, trabalho abstrato, trabalho concreto e reino da necessidade e liberdade, possibilitando uma reflexão que esclareça o significado do trabalho em sua fundamentação filosófica. Algumas questões se impõem: a análise da relação entre o sentido econômico e o filosófico do trabalho; seu sentido ontológico; e a alienação do trabalho e sua superação. Para Marx (1980), a análise do trabalho como atividade econômica é direcionada a um fim que, através do objeto de trabalho (matéria-prima) e dos meios de trabalho (seus instrumentos), cria valores de uso e de troca, por meio das mercadorias. O valor de qualquer mercadoria é determinado pela quantidade de trabalho materializado em seu valor de uso e pelo tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção (Marx, 1980). A reflexão sobre o sentido do trabalho só pode ser realizada a partir de uma discussão filosófica da fundamentação do conceito geral de trabalho, sua posição e sentido no âmbito da existência humana (Marcuse, 1998). Marx elaborou o conceito de trabalho a partir de Hegel, para o qual trata-se de um conceito central no sistema de análise da sociedade; o autor apreendeu a natureza do trabalho; o 15 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 homem é resultado do seu trabalho, é o ato de auto-elaboração, de auto-objetivação do homem (Marcuse, 1998). ficado do trabalho para os seres humanos e o conceito de alienação ligado ao próprio trabalho remetem ao conceito de liberdade. A análise de Marcuse (1969:100) sobre a fenomenologia do espírito de Hegel destaca que “a natureza do homem exige a liberdade e a liberdade é uma forma de razão, baseando este princípio na própria história do homem”. Em A ideologia alemã , enfatizando a condição histórica dos homens, Marx e Engels (1999) afirmam que os homens devem estar em condições de viver para poder fazer história e, para viver, devem trabalhar e ter os meios que permitam a produção da própria vida material, condição fundamental de toda a história . Baseando-se em Marx e Hegel, Marcuse reflete sobre o lugar do trabalho na existência humana como o modo de ser do homem como ser histórico, que, através de sua história, sua práxis, faz acontecer sua própria existência, por meio da produção e reprodução material e espiritual, que se dá num determinado tempo e lugar e, portanto, condicionada pela realidade social e econômica desenvolvida pelo processo histórico dos homens, objetivando a continuidade da vida humana, sua permanência e plenitude. A distinção entre o reino da necessidade e o reino da liberdade é fundamental para a discussão desenvolvida a seguir e constitui o ponto central da reflexão, uma vez que o significado que o trabalho tem para homens e mulheres, numa dada organização social, estará comprometido com a racionalidade econômica que os direciona. Marx divide o conceito geral de trabalho em dois planos. O primeiro é chamado de reino da necessidade: compreende o que é necessário para a sobrevivência dos homens e corresponde à produção e reprodução material. O segundo, chamado por Marx do reino da liberdade, é a práxis existencial que vai além da produção e reprodução material, expressando, ao mesmo tempo, a necessidade de integração desses dois planos. “O reino da liberdade só começa, de fato, onde cessa o trabalho que é determinado pela necessidade e por objetivos externos; por conseqüência, em virtude da sua natureza, encontra-se fora da esfera da produção material propriamente dita (...) A liberdade neste campo só pode consistir no fato de a humanidade socializada, os produtores associados, regularem racionalmente o intercâmbio com a natureza, submetendo-a ao seu comum controle, em vez de serem governados por ela como por um poder cego, e cumprindo a sua tarefa com o menor dispêndio de energia possível e em condições tais que sejam próprias e dignas de seres humanos. (...) o desenvolvimento da poten- O Conceito de Trabalho Para Marx (1980:202), o trabalho é a relação do homem com a natureza. “É um processo de que participam o homem e natureza, processo em que o ser humano com sua própria ação impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza”. A necessidade de idealizar em sua mente a forma que terá o seu trabalho – a concepção de sua intenção – resulta em ato criativo, através da definição de seus objetivos na materialidade dos objetos, que atende a suas necessidades e desejos. Para Marx, o processo de trabalho é a atividade dirigida com o fim de criar valores de uso, cuja finalidade é o atendimento às necessidades humanas úteis e necessárias; é condição natural e eterna da vida humana, sendo comum a todas as formas de vida social (Marx, 1980). Em Os manuscritos econômicos e filosóficos, Marx identifica a verdadeira dimensão que o trabalho assumiu para os homens, em sua maioria, na sociedade capitalista. Tomou a forma do trabalho alienado, constatando que o trabalho “não constitui a satisfação de uma necessidade, mas apenas um meio de satisfazer outras necessidades” (Marx, 1993:162). O trabalho tornou-se apenas um meio de sobrevivência, de manutenção da existência humana, e a não realização do reino da liberdade. A alienação do trabalho se dá em dois aspectos: na relação do trabalhador com o produto do seu trabalho e também no próprio processo produtivo. Na análise do trabalho alienado, Marx, a partir dos dois aspectos mencionados, refere-se também a um terceiro fator: a universalidade do homem, que é um ser genérico e, portanto, livre. Para o autor, o trabalho alienado transforma a vida genérica – vida universal – em vida individual. “A vida produtiva, porém, é a vida genérica. É a vida criando vida. No tipo de atividade vital reside todo o caráter de uma espécie, o seu caráter genérico; e a atividade livre, consciente constitui o caráter genérico do homem” (Marx, 1993:163). Marx afirma que a alienação do trabalhador em sua vida produtiva se reflete nas suas relações sociais com os outros homens e com a sociedade em geral. O conceito fundamental para a compreensão do homem em sua relação concreta de vida é a liberdade. O entendimento do signi- 16 T RABALHO E S AÚDE NA INDÚSTRIA T ÊXTIL DE AMIANTO cialidade humana com fim em si mesma, o verdadeiro reino da liberdade que, no entanto, só pode florescer tendo como base o reino da necessidade. A redução do dia de trabalho é a sua condição prévia fundamental” (Marx, 1993:12). O reino da liberdade acontece quando o homem está livre da necessidade imediata da existência, podendo se tornar livre para suas possibilidades, suas potencialidades. Além do urgente e das necessidades, há, também, práxis, trabalho a desenvolver; seu caráter se transforma. Para Marx, a divisão da sociedade em classes e a apropriação dos meios de produção pela classe dominante reduzem o fazer acontecer da existência apenas para a dimensão da necessidade, para a maioria dos homens. A separação da produção e reprodução, ou seja do reino da necessidade, ao reino da liberdade, que confere plenitude à existência, faz com que a dimensão econômica, ou a racionalidade econômica, absorva o todo existencial em seu interior e objetifica a práxis livre da existência. A superação dessa divisão entre produção e reprodução do todo existencial, através da possibilidade de descobrir a plenitude do ser na existência dos homens, constitui a condição para que seja devolvida à existência seu trabalho próprio e para que o trabalho libertado da alienação e coisificação se torne novamente aquilo que é em sua essência: a realização efetiva, plena e livre do homem em seu mundo histórico (Marcuse, 1998:44). A definição do trabalho abstrato também é fundamental como categoria de análise do estudo em questão. Em Hegel, o trabalho é considerado uma atividade universal, por sua própria natureza; por isso, o trabalhador torna-se universal e os produtos resultantes do trabalho são permutáveis entre todos os indivíduos. É este universal do trabalho que o torna abstrato e é através do trabalho que o indivíduo satisfaz suas necessidades. O objeto do trabalho passa a ser universal, transformando-se em mercadoria. Assim, o trabalho torna-se o trabalho abstrato universal, o trabalho só tem valor como atividade universal: seu valor é determinado pelo que o trabalho representa para todos e não apenas para o indivíduo. Este trabalho abstrato universal liga-se às necessidades concretas individuais pelas “relações de troca” do mercado. Em virtude da troca, os produtos do trabalho são distribuídos entre os indivíduos segundo o valor do trabalho abstrato. Marcuse acentua dois pontos: a subordinação do homem ao trabalho abstrato; e o caráter cego de uma sociedade perpetuada pelas relações de troca. “O tra- balho abstrato não pode desenvolver as verdadeiras faculdades do indivíduo” (Marcuse, 1969:81). Ao contrário, o trabalho concreto é o caráter útil do trabalho, aquele que produz o valor de uso das mercadorias e cria coisas úteis e necessárias. A definição dos conceitos centrais do trabalho apontados anteriormente é a base para uma reflexão sobre o significado do trabalho para os homens em sua realidade concreta. Na tentativa de apreensão do conceito de ontologia do ser social, procurou-se elucidar o caráter ontológico do trabalho, para se ter maior clareza do que acontece com o homem no ato produtivo. O Caráter Ontológico do Trabalho Procurando desvendar os fundamentos ontológicos do trabalho, serão citados autores cujas obras tratam do trabalho numa perspectiva ontológica do ser social. O entendimento do conceito de ontologia é fundamental para a reflexão sobre o significado do trabalho. “A ontologia é termo de origem recente na filosofia, data do século XVII, (...) designando o estudo da questão mais geral da metafísica, a do ‘ser enquanto ser’, isto é, do ser considerado independente das suas determinações particulares e naquilo que constitui sua inteligibilidade própria” (Japiassu, 1993:184). A fundamentação filosófica do conceito de trabalho se sustenta na dimensão ontológica do ser, possibilitando uma visão ampliada da existência humana e situando o trabalho além da esfera econômica. Para Marcuse (1998:10), baseado em Hegel, o trabalho é um conceito ontológico que apreende o ser da própria existência social. Para Hegel, o caráter ontológico do trabalho aparece como acontecimento fundamental da existência humana, que domina permanente e continuamente todo o ser do homem e, concomitante a isso, algo acontece com o ser do homem, ele se transforma. Antunes (1995:123), citando Luckács, aponta “o trabalho como momento fundante da realização do ser social, condição para sua existência; é o ponto de partida para a humanização do ser social e o motor decisivo do processo de humanização do homem”. Através do trabalho ocorre uma dupla transformação: ele atua sobre a natureza, desenvolve as potências nela ocultas e o homem é transformado pelo trabalho. O trabalho permite, num processo dialético, o crescimento e o desenvolvimento da pessoa como um ser criativo, possibilitando tornar-se sujeito, na realização de sua potência, ao longo de uma vida. 17 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 Porém, também na maioria das vezes, a realidade econômica da sociedade capitalista viabiliza situações de espoliações, alienação e sofrimento. Sobre este aspecto, Antunes (1995) cita Marx, para quem o trabalho é o elemento-chave da humanização do ser social, no entanto, na sociedade capitalista, ele é degradado, estranhado e, em vez de ser meio de realização de homens e mulheres, se transforma em meio de subsistência. Antunes (1995:123), citando Luckács, afirma que o conceito de trabalho “na ontologia do ser social é uma categoria qualitativamente nova”. O ato teleológico é seu elemento constitutivo central. A consciência humana deixa de ser mera adaptação ao meio ambiente e torna-se uma atividade autogovernada. Em sua origem, o trabalho, ontologicamente, conduz o processo de humanização do homem em seu sentido amplo. Segundo Luckács, a transformação interior do homem consiste em atingir um controle sobre si mesmo. A proposta de uma vida cheia de sentido está fundamentada, para Antunes, no caráter ontológico do trabalho, na possibilidade que ele tem em si, de favorecer ao homem, o seu desenvolvimento como ser criativo e desenvolver sua potência. Este autor inicia a discussão sobre a busca de uma “vida cheia de sentido”, situando tal questão na relação existente entre trabalho alienado e trabalho concreto, entre reino da necessidade e reino da liberdade e referindo a “vida cheia de sentido” ao trabalho concreto, ao reino da liberdade. Antunes refere-se a uma vida cheia de sentido, que encontra, no plano do trabalho, seu primeiro momento de realização, afirmando, ao mesmo tempo, que uma vida cheia de sentido não acontece exclusivamente no trabalho. A arte, a poesia, a pintura, a literatura, a música, o momento de criação e o tempo de liberdade têm um significado muito especial. São por esses meios que o ser social poderá se humanizar e emancipar em seu sentido mais profundo. Para Luckács, o conteúdo da liberdade é essencialmente distinto nas formas mais avançadas. O ato teleológico, expresso por meio da colocação de finalidades, é, portanto, uma manifestação intrínseca de liberdade, no interior do processo de trabalho. É um momento efetivo de interação entre subjetividade e objetividade, causalidade e teleologia, necessidade e liberdade. O autor coloca ainda que, na interação entre o trabalho e as formas mais complexificadas da práxis social interativa, existe uma relação de prolongamento, de distanciamento e não de separação e disjunção porque: “Pelo trabalho o ser social produz-se a si mesmo como gênero humano; pelo processo de auto-atividade e autocontrole o ser social salta da sua origem natural baseada nos instintos para uma produção e reprodução de si como gênero humano, dotado de autocontrole consciente, caminho imprescindível para a realização da liberdade” (Antunes, 1999:145). Refletindo sobre a crise do trabalho na sociedade atual, em que muitos autores colocam em discussão a questão da centralidade do trabalho, Antunes localiza a referida crise como a crise do trabalho abstrato, aquele que não pode desenvolver as várias faculdades do ser social. Entende o trabalho abstrato como dispêndio da força humana de trabalho, que cria o valor das mercadorias, e o trabalho concreto como dispêndio da força humana dirigida para um determinado fim e, nessa qualidade de trabalho útil e concreto, produz o valor de uso das mercadorias. Assim, o trabalho concreto é o caráter útil do trabalho, o trabalho criado, que cria coisas realmente úteis e necessárias. O trabalho abstrato é o sentido genérico do trabalho, enquanto dispêndio da força produtiva, física ou intelectual, socialmente determinada, perdendo as formas de trabalho concreto, já citados, no que concerne ao sentido do trabalho e sua visão ontológica. Mais uma vez, a discussão que se coloca, então, diz respeito à distinção entre o reino da necessidade e o reino da liberdade, entre trabalho abstrato e trabalho concreto. Assim, pergunta-se: existe o trabalho não alienado? A humanidade é capaz de produzir uma sociedade onde o trabalho é a realização do ser social? Na busca de caminhos, pode-se retornar a Antunes (1995:80), para quem “a superação da sociedade do trabalho abstrato se dá no reconhecimento do papel central do trabalho assalariado, da classe que vive do trabalho, como sujeito, potencialmente capaz de caminhar, objetiva e subjetivamente, além do capital”. “O salto para além do capital será aquele que incorpore as reivindicações presentes na cotidianidade do mundo do trabalho como a redução radical do tempo livre sob o capitalismo, desde que esteja articulada com o fim da sociedade do trabalho abstrato e sua conversão em uma sociedade produtora de coisas úteis, na construção de uma organização societária que caminhe para a realização do reino da liberdade, momento de identidade entre o indivíduo e o gênero humano” (Antunes, 1995:81). O autor ressalta que o trabalho não é o único e totalizante momento da construção da vida do ser social, mas, através do trabalho concreto, se dará o ponto de partida, a base de sustentação para instauração de uma nova sociedade. 18 T RABALHO E S AÚDE NA INDÚSTRIA T ÊXTIL DE AMIANTO A nova proposta societal de uma vida cheia de sentido baseia-se em dois princípios básicos para Antunes: primeiro, o atendimento às necessidades humanas societais, o que é considerado, pelo autor, o mais profundo desafio da humanidade, pois o capital instaurou um sistema de autovalorização que independe das reais necessidades autoreprodutivas da humanidade, as quais devem ser recuperadas; e segundo, a conversão do trabalho em atividade livre, auto-atividade com base no tempo disponível, significando a recusa à dicotomia existente entre tempo de trabalho necessário para a reprodução social e para a reprodução do capital. “E esse mesmo trabalho autodeterminado que tornou sem sentido o capital gerará as condições sociais para o florescimento de uma subjetividade autêntica e emancipada, dando um novo sentido ao trabalho” (Antunes, 1999:182). O autor compreende a classe trabalhadora de hoje como o “conjunto heterogêneo e complexificado do trabalho, incorporando tanto os segmentos minoritários e mais qualificados, como também os segmentos assalariados, os trabalhadores temporários, os terceirizados, os subcontratados, etc. que compõem a totalidade do trabalho social” (Antunes, 1999:183). Dejours (1994:143) coloca que o trabalho aparece definitivamente como operador fundamental na própria construção do sujeito. O trabalho não é apenas “um teatro aberto ao investimento subjetivo”, ele é também um espaço de construção do sentido, portanto, da conquista da identidade, continuidade e da historicização do sujeito. Diante da realidade concreta dos trabalhadores em questão e da reflexão colocada por Ricardo Antunes sobre a possibilidade de uma “vida cheia de sentido” tanto dentro como fora do trabalho e a realização do trabalho concreto, útil, na realização do reino da liberdade para além da necessidade, pergunta-se: é possível, numa sociedade capitalista, o trabalho alienado ser um espaço de realização pessoal, de autotransformação do homem, do preenchimento do seu vazio, a expressão de seu ser no mundo? A seguir, apresentam-se alguns pontos de reflexão a essas indagações, a partir da pesquisa desenvolvida junto aos trabalhadores. Ao serem indagados sobre o significado do trabalho para suas vidas, os trabalhadores apontam como primeira motivação a necessidade econômica de sobrevivência. No entanto, é ressaltada a importância do trabalho: “O trabalho é tudo” (trabalhador da indústria têxtil de amianto). A maioria dos trabalhadores – homens e mulheres – gostava do seu trabalho. Pode-se observar o aspecto ontológico do trabalho, como auto-realização humana, na busca de uma vida com sentido. “Todo trabalho que a gente gosta é importante. Gostava do trabalho e do salário” (...) “Fazer o que se gosta preenche uma satisfação, conseguir realizar o que se gosta, preenche uma satisfação” (trabalhadores da indústria têxtil de amianto). Para Simoni, o trabalho, no saber tradicional, é um meio de transcendência, não apenas a relação entre homem e natureza; mas a busca, a realização de cada pessoa com sua origem divina. O trabalho passa então a suprir necessidades não só desse mundo, mas do mundo originário da espécie humana (Simoni, 1996:43). O aspecto ontológico do trabalho e seu significado são expressos pelos trabalhadores através de suas falas. “Só saí porque me mandaram embora. Eu gostava do meu serviço. Eu fazia um serviço que era muito útil a certas áreas. Fazia sapata de freio de trem, gaxeta para navio, etc. Eu era mais empresa do que eu. Vê os bombeiros, tão importantes” (trabalhadora da indústria têxtil de amianto). A interpretação da trabalhadora sobre sua atividade revela a importância que o trabalho adquire para ela, com repercussões úteis e positivas para outras pessoas. Tal proposição “transcende o sentido meramente instrumental da atividade produtiva,” além de servir o outro no caminho de sua busca pessoal (Simoni, 1996:14-21). “O trabalho é você ganhar o pão de cada dia, ocupar o seu espaço. Quando fico sem fazer nada não me sinto bem, trabalho desde os treze anos. Chego em casa e faço a obra da casa” (trabalhador da indústria têxtil de amianto). Os trabalhadores se sentem muito importantes como pessoas e, principalmente, por ajudar a família. Muitos trabalhadores fazem referência ao trabalho apenas pelo aspecto econômico. Para outros, existe de forma acentuada uma preocupação com a autonomia econômica e a autonomia psíquica que influencia seu entendimento enquanto sujeitos atuan tes na construção de sua própria vida e da família. “Quando comecei a trabalhar tinha o significado de sacrifício meu. Minha mãe não deixava a gente trabalhar só quem trabalhava era ela.(...) Ali tinha um significado. Era para ajudar as prestações da casa. Ali tinha prazer eu gostava!” (trabalhadora da indústria têxtil de amianto). O Sentido do Trabalho na Experiência Concreta dos Trabalhadores Procurou-se situar a realidade concreta dos trabalhadores da indústria têxtil de amianto, objeto dessa pesquisa, e a partir desta realidade fazer a reflexão do sentido do trabalho. 19 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 As relações de amizade são vivenciadas como muito importantes no ambiente de trabalho e se apresentam como ampliação ao mundo do trabalhador. Simoni reconhece o local de trabalho como espaço a compartilhar com os companheiros, o que implica assumir o caráter pessoal e coletivo do trabalho. “Aí ocorrem as verdadeiras relações humanas perpassadas pela responsabilidade, respeito e solidariedade” (Simoni, 1996:24). No que diz respeito às condições de saúde, após o conhecimento do diagnóstico, os depoimentos das trabalhadoras expressam decepção e tristeza. “Se eu soubesse que trabalhando naquela firma ia acontecer o que aconteceu, se eu tivesse conhecimento eu não teria trabalhado lá não! (...) Não sabia que ia chegar ao ponto que cheguei. Podendo trabalhar mais doze anos, talvez até mais. Talvez até me aposentar por tempo de serviço. Não tive essa oportunidade” (trabalhadora da indústria têxtil de amianto). O fato de não poder trabalhar mais por problemas de saúde traz um sentimento de tristeza e de utilização como objeto. Junto à questão da saúde, a demissão é outro motivo de sofrimento. A partir da experiência dos trabalhadores, constatamos que, mesmo em condições tão opressivas de trabalho, as pessoas encontram pequenos espaços para situar o sentido para o seu trabalho. No início da pesquisa, levou-se a hipótese de que, no trabalho estranhado e com alto nível de exploração, os trabalhadores dariam importância apenas à questão da sobrevivência. Entretanto, verificou-se, pela fala dos trabalhadores, que mesmo sob más condições de trabalho, que não excluem sofrimento, esforço e dor, existe a alegria da realização, da criação de um fazer humano e do sentimento de participação no mundo. No entanto, deve-se ressaltar que este é um espaço, apenas uma brecha encontrada na organização opressiva do trabalho, que demonstra a relevância do trabalho como esfera de criação, relação com os outros, reconhecimento e transcendência. Entretanto, estes fins que o trabalho contempla são negados como proposta coletiva para toda a sociedade. É esta finalidade que se sugere para todas as pessoas numa organização societária, diferente da que existe, que contemple uma “vida cheia de sentido” (D’Acri, 2002). uma realidade desconhecida pelas autoridades sanitárias no Rio de Janeiro. As relações e inter-relações entre diagnóstico, posto de trabalho, tempo de serviço, atividades desenvolvidas, exposição à poeira do amianto e a distribuição por sexo dos setores produtivos e dos diagnósticos de saúde foram variáveis que contribuíram de forma significativa para a efetivação da análise da realidade e da compreensão do objeto. A fonte principal dessa pesquisa foi a realidade dos trabalhadores, através do diagnóstico de saúde e da vivência da condição opressiva de trabalho, direcionada por uma organização rígida, cujo ritmo e cadência das máquinas exigem um grande esforço e sofrimento dos trabalhadores, intensificando o trabalho relacionado com o diagnóstico médico elaborado pela equipe médica do Cesteh. Quanto às condições de saúde, diante da morbidade e mortalidade dos trabalhadores atendidos no Cesteh, fica mais uma vez comprovada a nocividade do amianto. Pelos dados revelados por este estudo e pelas pesquisas desenvolvidas pela equipe de saúde, sobre os trabalhadores da indústria em questão, considera-se inaceitável a proposta do uso seguro do amianto crisotila, estudado por pesquisadores internacionais que revelam seus efeitos patológicos e cancerígenos. Portanto, não existe uso seguro do amianto e a recomendação deve ser de banimento total de toda e qualquer fibra de amianto. A partir dos dados concretos referentes à saúde e às condições de trabalho, indagou-se sobre o sentido do trabalho para esses trabalhadores. A questão colocada na pesquisa está relacionada à importância que os trabalhadores dão ao seu trabalho não apenas como meio de vida, de sobrevivência, mas sobretudo como sentido para suas vidas. E como se dá, no desenvolvimento do trabalho alienado, abstrato e estranhado, o trabalho com significação, com sentido para os trabalhadores. No que diz respeito ao significado do trabalho, os trabalhadores da indústria têxtil do amianto relatavam, durante as entrevistas, sua experiência com o real do trabalho; as formas como era solucionado o insucesso com as tarefas prescritas, a inovação e a criatividade para atender o real do trabalho e, principalmente, o sentimento agradável, ou não, do reconhecimento de seu trabalho pelas chefias e direção da empresa. Observaram-se o aspecto estruturante que o trabalho tem em suas vidas e, concomitantemente, a característica contraditória do fazer laborativo: más condições de trabalho – calor e ruído excessivo –; intensificação do trabalho; formas de controle CONCLUSÕES O estudo da indústria têxtil de amianto que diagnosticou diversos casos de asbestose traz uma contribuição significativa para a área de saúde, uma vez que trata-se de 20 T RABALHO E S AÚDE NA INDÚSTRIA T ÊXTIL DE AMIANTO pela gerência; risco à saúde dos trabalhadores; e conseqüente adoecimento. Ao desenvolver o estudo, percebeu-se que mesmo o trabalho estranhado tem a marca do trabalhador: ele se coloca no trabalho, considera-o parte de sua vida, dá sentido a mesma. O trabalhador desenvolve o caráter ontológico do trabalho a partir dos fundamentos teleológicos de sua ação e, embora limitado pela organização do trabalho, ele tem um mínimo de liberdade. Quando este mínimo de liberdade não existe começam o sofrimento e a luta contra o ele. Ao lado da efetivação da atividade de trabalho como uma “necessidade para satisfazer outras necessidades”, como afirma Marx, o trabalhador busca sua realização e valorização pessoal, se sente útil. Ricardo Antunes, na proposta de construção de uma nova sociedade, vê a realização da “vida cheia de sentido” tanto dentro quanto fora da esfera do trabalho, através de uma nova organização societária que responda às necessidades humanas, no lugar da valorização constante do capital, uma sociedade que dê o salto para além do capital, por meio da transformação do trabalho em atividade livre, e que, em contraposição ao trabalho fetichizado, estranhado e abstrato, se realize a sociedade do trabalho concreto, com a produção de coisas úteis, mudando o reino da necessidade, em que se encontram os trabalhadores, para o reino da liberdade. Todos esses autores vêem o trabalho como realização, como fonte de criação para o homem. Proposta distinta de uma sociedade voltada para uma economia de mercado e de consumo que não hesita em prejudicar a vida de milhares de pessoas. Entretanto, a própria valorização que os trabalhadores dão ao seu trabalho e o sentido que encontram na sua vida de trabalho, mesmo em condições adversas, apontam para a superação desta realidade e a construção de um outro modo de sociedade e de uma “vida cheia de sentido.” Na experiência concreta dos trabalhadores, constatouse o valor atribuído por eles ao seu trabalho. Observou-se que, através do trabalho, os trabalhadores encontram espaços para realizar o seu modo de ser no mundo; encontram sentido para sua vida. O reconhecimento de sua atuação profissional é muito valorizada pelos trabalhadores. Paralelamente, as relações de amizade e as afetivas são consideradas muito importantes em suas vidas de trabalho, ampliando seu mundo e colocando-os num universo coletivo. Ao mesmo tempo, o aspecto contraditório do trabalho é vivenciado de forma acentuada. O caráter opressivo – o sofrimento do trabalho – é uma das característi- cas mais marcantes na sociedade capitalista, no trabalho alienado. Dejours localiza na organização do trabalho a responsabilidade de todas as pressões sofridas pelos trabalhadores. Tal sofrimento é relatado na velocidade da máquina, no ritmo intenso de trabalho, nas temperaturas elevadas, no excesso de ruído, nas condições precárias da matériaprima (o barbante que arrebenta, exigindo mais atenção, mais interrupção, num fazer laborativo que tem uma produtividade a ser alcançada, exigindo a intensificação dos gestos e movimentos) e também nas relações de gênero, em que as mulheres têm tratamento diferenciado. O sofrimento é relatado também através da demissão. Muitos trabalhadores foram demitidos após muitos anos de serviço e dedicação à empresa. Sentem não terem sido levados em consideração e serem tratados como um número, um objeto, e não como pessoa. A lógica da demissão já está dada, no próprio momento da contratação. Assim que os trabalhadores começam a sentir os primeiros sinais de cansaço, indicando o início de problemas de saúde, são demitidos sem nenhuma informação sobre suas condições de saúde. O cansaço do corpo, a opressão e o diagnóstico das doenças causadas pelo amianto, reduzindo sua capacidade respiratória, modificando suas vidas e, algumas vezes, incapacitando-os para o desenvolvimento de qualquer atividade laborativa, limitam a vida desses trabalhadores e trazem sofrimento pelo não reconhecimento do trabalho desenvolvido anos a fio na empresa e, mais recentemente, pelo conhecimento da patogenicidade do amianto e da morte de vários trabalhadores com diagnóstico de asbestose. Portanto, coloca-se a pergunta: se, em condições tão adversas de trabalho, é possível encontrar um sentido para o trabalho, embora este sentido se dê em pequenas brechas, pode-se imaginar o quanto de possibilidade existe numa outra organização social voltada para o sentido da vida, do trabalho, das pessoas? Assim, diante do que foi exposto, é bastante possível a proposta colocada por Ricardo Antunes de uma vida cheia de sentido, em outra organização societária com base no trabalho livre, concreto, em que a racionalidade não estará dirigida para o mercado, para o capital, mas sim para atender às necessidades humanas e à realização do trabalhador. Nestas condições, a atividade criativa será bastante ampliada, trazendo maior alegria para homens e mulheres; e o trabalho será um espaço fundamental de criação e realização. 21 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS testo – uma abordagem interdisciplinar em saúde do trabalho, meio ambiente e gênero. 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NEGOCIAÇÃO COLETIVA EM SAÚDE DO TRABALHADOR segurança em máquinas injetoras de plástico LEONARDO MELLO E S ILVA Resumo: O texto aborda a convenção coletiva sobre segurança em máquinas injetoras de plástico, centrando o foco no processo de negociação entre os representantes classistas. Esse processo é situado como uma inovação na relação entre capital e trabalho no Brasil, devido ao seu caráter de entendimento direto, bipartite, entre as partes. Por fim, apontam-se os itens concretos da convenção que podem ter desdobramentos críticos em termos da cultura corporativa nas relações de trabalho. Palavras-chave: negociação coletiva em saúde do trabalho; relações de trabalho; relações industriais. Abstract: This essay considers collective bargaining with respect to the safety of plastic- injecting machinery, focusing on the negotiating process between the traditional parties. This process emerges as an innovative approach to management-employee relations in Brazil, due to the direct, bipartite dialogue between representatives of both sides. Lastly, specific aspects of the bargaining process are highlighted for their potential to bring about significant developments in terms of corporate culture and labor relations. Key words: collective bargaining for occupational health; labor relations; industrial relations. O s anos 90 significaram um influxo no movimento sindical no que se refere à maneira de encarar a negociação coletiva. A sua parte mais combativa, associada ao “novo sindicalismo” e representada pela Central Única dos Trabalhadores (CUT), passou a incorporar uma postura mais propositiva nos conflitos com o seu oponente de classe, e isso em vários âmbitos da pauta da relação capital-trabalho, incluindo aí a saúde do trabalhador. Historicamente, o momento que marcou a passagem de um sindicalismo de confronto para aquele chamado ativopropositivo foi a experiência das câmaras setoriais,1 quando ficou demonstrado, para a opinião pública, os analistas e sobretudo os negociadores empresariais, que os trabalhadores tinham propostas consistentes e razoáveis dentro da ordem social vigente, capazes de gerar uma política industrial e de desenvolvimento, começando pelo setor de atividade e estendendo-se para o conjunto da economia. A capacidade de definir uma agenda de questões que iam do particular ao geral, dos problemas do chão-de-fábrica a estratégias de investimento de grandes grupos econômicos, passando pelos salários, infundiu uma percepção entre os atores do mundo do trabalho de que uma modalidade finalmente nova de relacionamento entre as classes sociais modernas tinha-se estabelecido na sociedade brasileira, sepultando o corporativismo que havia por tanto tempo contaminado as nossas relações profissionais. O traço mais característico que permitia um tal diagnóstico era sem dúvida o fato de que os atores coletivos tinham chegado a acordos importantes através de negociação direta, sem a interferência controladora e inibidora do Estado. A negociação tripartite tomava a presença estatal, nas câmaras setoriais, muito mais como um contratante, de peso equivalente aos demais, como capital e trabalho, do que como “árbitro” ou fonte de legitimidade (Oliveira et al., 1993). É nesse pano de fundo que se precisa compreender os movimentos de negociação coletiva na área de saúde do trabalhador, do qual o Acordo (posteriormente convertido em Convenção) sobre Prevenção de Acidentes em Máquinas Injetoras de Plástico é um caso bem típico. O presente artigo terá o propósito de expor uma tal idéia a partir do acompanhamento do referido Acordo (depois Convenção), extraindo dessa narrativa os elementos teoricamente mais interessantes do ponto de vista das relações de trabalho no Brasil. 23 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 O FOCO DO PROBLEMA a riqueza do processo de negociação vem principalmente do protagonismo assumido pela representação dos trabalhadores, até então um ator coletivo considerado subalternamente entre os ditos principais “agentes”. É importante ressaltar esse procedimento pioneiro que situa historicamente a predisposição à negociação e ao diálogo por parte dos sindicatos – mesmo aqueles considerados de tendência mais aguerrida e confrontacionista com o capital –, como uma corrente que não se dilui na cultura gerencial da “parceria” e do “ganha-ganha”, muito espalhada também, nessa época, no interior das empresas. Os acidentes com máquinas injetoras de plástico constituem um problema sério de saúde pública. As informações disponíveis são eloqüentes a esse respeito: no município de São Paulo, o setor plástico é um dos que mais contribuem para a triste estatística dos acidentes graves com mutilações dos membros superiores. Segundo dados do Centro de Reabilitação Profissional do INSS de São Paulo, para 1992, coletados pela Secretaria de Saúde e Meio Ambiente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Químicas, Farmacêuticas, Plásticas e Similares de São Paulo, cerca de 78% dos casos de doenças e acidentes graves no setor são provocados por máquinas, sendo que, desse total, a metade deve-se a prensas injetoras. A listagem dos agravos recolhidos pelos diagnósticos do CRP/INSS de São Paulo mostra que a mutilação da mão direita e a da mão esquerda respondem, juntas, por 70% daqueles agravos. Em seguida, vêm seqüela-fratura de membro superior e seqüela-fratura de membro inferior, elevando o percentual para 75% do total dos diagnósticos. Outra característica importante revelada pela mesma fonte é que os acidentes ocorrem principalmente entre os jovens, na faixa de 18 a 25 anos (41%), e em quase 40% dos casos no período imediatamente após a contratação do trabalhador, na fase dita de “experiência”, isto é, até três meses. O nível de escolaridade entre a população acidentada situa-se majoritariamente na faixa entre a 1a e a 4a séries do ensino fundamental e as funções atingidas dividem-se entre aquelas de baixa qualificação (ajudante geral) e operadores de máquina, conformando ambos 86% de todas as ocupações dos acidentados (Coelho, Vilela e Tsunabi, 1996:169-173). Essas indicações já seriam suficientes para justificar uma intervenção pública orientada especificamente para esse tipo de realidade. A novidade é que tal intervenção foi tentada e levada a cabo não pelos organismos estatais funcionalmente implicados, mas pelos próprios representantes classistas, o que configura um fato sociologicamente relevante, como se verá a seguir. Histórico do Acordo – O canal de negociação foi construído aos poucos. Em 1993 ocorreu, no Sindicato dos Plásticos de São Paulo,2 o Seminário “Plásticos do Futuro”, em que apresentado um balanço da situação dos acidentes e dos acidentados. No primeiro semestre de 1994, aconteceu, no Sindicato dos Trabalhadores em Indústrias Químicas, Farmacêuticas e Similares de São Paulo, o I Seminário sobre Máquinas Injetoras. Já nessa época houve os encontros do Grupo de Trabalho (GT) n o 8 da câmara setorial do complexo químico, sobre saúde e meio ambiente. Os atores eram, em boa parte, os mesmos. Como se verá a seguir, o fórum representado pelo GT da câmara setorial de certa forma amplificou o espaço já existente de discussão sobre as máquinas injetoras. O sindicato dos trabalhadores químicos e farmacêuticos de São Paulo possuía, por essa época, uma assessoria na área de saúde e meio ambiente bastante ativa, com um acúmulo de conhecimento razoável sobre o problema não só das máquinas injetoras, mas também do benzeno, amianto e mercúrio, por exemplo. Foi essa especialização que permitiu, entre outras coisas, o reconhecimento por parte do contendor, no caso, a associação patronal (Sindiplast e Abiplast3), pois mostrava que o perfil da negociação tinha se modificado em relação aos tempos do padrão chamado “porta-de-fábrica”, em que os sindicatos postavam o carro de som diante das empresas e gritavam palavras-de-ordem, porém não tinham conhecimento do que se passava verdadeiramente em seu interior. Essa radicalidade de fora, associada à fragilidade de dentro, expunha, na verdade, a grande dificuldade do sindicalismo brasileiro em interferir no processo de trabalho, e se traduz organizativamente na pouca implantação das chamadas “organizações por local de trabalho” (OLTs). As próprias Cipas, enquanto instrumentos de prevenção de acidentes e de controle das situações de risco no trabalho, deveriam funcionar como uma OLT, o O ACORDO Antecedentes Desde 1992 vem-se tentando chegar a um acordo entre os principais agentes da indústria usuários de máquinas injetoras de plástico. A preocupação portanto é longeva e 24 NEGOCIAÇÃO C OLETIVA EM S AÚDE DO T RABALHADOR: SEGURANÇA EM... que é inclusive incorporado pela Convenção em sua cláusula 5a (Fundacentro, 2001:9). A redação final do primeiro acordo é de março de 1995. Em setembro do mesmo ano, o então Acordo sobre Máquinas Injetoras de Plástico converteu-se em uma Convenção Coletiva. Essa primeira convenção estabeleceu as bases para uma transição na substituição do maquinário obsoleto ou na adaptação de dispositivos de segurança. Tais bases diziam respeito sobretudo aos prazos para aquela substituição, bem como aos critérios de cobertura, incidindo primeiro sobre as grandes empresas, em tese com maior margem para arcar com os custos do investimento, e em seguida sobre as médias e pequenas. A cláusula 2a da Convenção estabelece que as máquinas usadas não poderão ser postas à venda sem os dispositivos de segurança previstos na mesma Convenção. Ela tem o propósito de evitar a comercialização em um tipo de mercado secundário de máquinas injetoras que poderiam alimentar determinadas empresas a tentar uma economia de custos “suja”. Como a existência de micro e pequenas empresas no setor plástico não é incomum, esse item termina por funcionar como uma rede protetora à tentação de estender a precarização sempre para o elo mais fraco na relação interfirmas. Fica evidente que o acordo não pode ficar circunscrito a uma interpretação estritamente técnica, seja em termos do desenho e da engenharia concernidos, seja em termos de prevenção e do projeto ergonômico: ele envolve necessariamente conseqüências sociais e econômicas. Nesse sentido, houve a necessidade de mobilizar novos atores, como o BNDES e o Sindimaq (Sindicato Nacional das Indústrias de Máquinas); o primeiro regulando a concessão de benefícios fiscais para empresas que estejam respeitando a Convenção; o segundo administrando a aplicação da norma entre os seus representados, sendo que o setor plástico é apenas uma parcela dessa população. O BNDES entrou como instituição interveniente/anuente (cláusula 17a , Fundacentro, 2001) na Convenção não só como um reconhecimento da implicação técnico-econômica da questão, mas também como uma demonstração prática de indução, ainda que limitada, das escolhas de investimento associadas a objetivos sociais definidos pelos atores interessados. Entre um e outro formato – Acordo e Convenção – há mais do que uma filigrana terminológica: embora o conteúdo não tenha basicamente se modificado em sua definição quanto aos requisitos de segurança, a Convenção expressa o reconhecimento político do seu caráter de contratação coletiva, deslocando-se de uma inspiração tripar- tite para outra, bipartite. De fato, na Convenção operouse uma espécie de hierarquização dos agentes, definindose as figuras dos signatários principais, dos demais signatários e, por fim, dos intervenientes/anuentes. No primeiro bloco estavam, do lado do trabalho, a Confederação Nacional dos Químicos (CNQ-CUT) e a Federação Estadual dos Trabalhadores nas Indústrias Químicas e Farmacêuticas (àquela altura, sem filiação a nenhuma central sindical); e, do lado do capital, o Sindiplast. O segundo bloco contemplava 35 entidades, todas sindicatos de trabalhadores do Estado de São Paulo ligados ao complexo químico. No terceiro bloco, os intervenientes/anuentes eram a Delegacia Regional do Trabalho de São Paulo (DRTSP), a Fundacentro, o Diesat (Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisas de Saúde e dos Ambientes de Trabalho), o Ministério Público, a Secretaria de Estado de Relações de Trabalho, o Centro de Referência em Saúde do Trabalhador, ligado à Secretaria de Saúde, associações patronais tais como a Abiplast e a Abimaq (Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos), além das centrais sindicais – sempre lembrando que a abrangência do acordo é estadual. Hoje, em sua versão proposta para o biênio 2002-04, a figura dos intervenientes/ anuentes cai da Convenção. A diferença entre o Acordo e a Convenção é que, ao definir os interlocutores como representantes classistas em primeiro plano, o efeito produzido foi o de uma verticalização setorial, isto é, capital e trabalho postos frente a frente e levando em conta seus interesses conflitantes na matéria deveriam responsabilizar-se por uma saída consensual para os seus problemas, sem o guarda-chuva do poder público. No fundo, eles estariam produzindo uma norma. Conquanto um exemplo bastante pontual saído do campo da saúde do trabalhador, o acordo sobre máquinas injetoras de plástico é indicação de um procedimento que se situa no diapasão das lutas dos movimentos sociais pela democratização da sociedade brasileira e é, nesse sentido, uma inovação, produto de uma seqüência de interações consecutivas entre atores organizados. A Convenção como Modalidade de Contratação Coletiva Um dos temas recorrentes no debate sobre modernização das relações de trabalho é a contratação coletiva. Bandeira histórica do sindicalismo nascido da crítica ao modelo estatal-corporativo, a contratação coletiva de trabalho obedece a variações que seguem as tradições na- 25 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 cionais de relações industriais: de um padrão descentralizado e baseado nas profissões até um padrão vertical e articulado. É esse último que fornece a inspiração para o sindicalismo brasileiro atual. Uma das funções da contratação coletiva nacional e articulada é a de operar um balanceamento entre regras de abrangência geral e aquelas que se referem a uma realidade particular de ramo, de atividade ou de situação geográfica, tendo sempre como orientação de base a irredutibilidade de direitos e vantagens. Dessa forma ela pode preservar o âmbito local, quando esse último significar um acréscimo ao patamar geral, e ao mesmo tempo evitar a desregulação completa, instituindo o princípio do “cada caso um caso”. Sudeste, onde o piso salarial da categoria é superior em pouco mais de 1/3 entre São Paulo e Bahia, por exemplo, além da ocorrência de distribuição de Participação nos Lucros e Resultados (PLR), o perigo de estabelecer um mínimo negocial muito baixo estaria na possibilidade de rebaixamento de direitos e vantagens. Mais uma vez, essas diferenças só atestam, primeiro, a realidade de que o que se negocia na Região Sudeste não é o mesmo que se negocia na Região Nordeste e, segundo, que a flexibilidade da letra da Convenção obedece à lógica do contrato coletivo articulado. O Significado da Contratação e o Papel do Estado – O papel do poder público no Acordo entra, no primeiro momento, de maneira mais ativa e, no segundo, de forma um pouco mais subsidiária, quando se torna Convenção. Uma parcela de técnicos da DRT-SP foi incitadora e facilitadora basicamente por conta de uma relação histórica de aproximação de alguns de seus quadros com os sindicatos de trabalhadores. Esse aspecto só se torna relevante dentro de uma perspectiva não-formalista na apreciação das posições dos atores sociais diante do acordo. Assim, o Estado não aparece como uma entidade monolítica, mas sim como um campo de forças em que são possíveis, em determinados momentos, alianças com parcelas da burocracia pública, marginalizando aqueles nichos menos simpáticos às demandas do lado do trabalho. É bom lembrar que, na mesma época (1993), como já foi mencionado, os encontros da câmara setorial do complexo químico (Mello e Silva, 1999) foram palco de movimentações convergentes entre membros tanto do Ministério da Saúde (então sob a administração de Jamil Haddad) quanto do próprio Ministério do Trabalho (então sob a administração de Walter Barelli) e lideranças do CNQ-CUT, a central sindical que naquele momento suportava os referidos encontros. Pode-se adiantar, inclusive, a interpretação de que a câmara setorial potenciou o acordo das máquinas injetoras (Coelho, Vilela, e Tsunabi, 1996:173-174) porque recolheu uma iniciativa que já existia, mas que tinha dificuldade em encontrar um canal e uma oportunidade de explicitação e de implementação, mobilizando os recursos políticos liberados com o conhecimento recíproco e a distensão dos ânimos, para infundir nova vida às tentativas de se chegar a um terreno comum na matéria. Afirmar que o acordo tem uma feição contratualista por causa de seu formato bipartite não quer dizer, além disso, que o Estado deva estar ausente. Ao contrário, ele comparece em uma função reguladora, diferentemente do pa- O Geral e o Particular – A convenção, nesse sentido, preenche uma função análoga à da contratação coletiva. Ela é, aliás, uma modalidade dessa contratação. Inicialmente concebida como uma convenção de âmbito estadual, ela se expande para o setor plástico em outras praças, acarretando com isso o mesmo tipo de problema posto pela contratação coletiva: a compatibilização de um parâmetro negocial saído de uma realidade em que os representantes classistas estão em um estágio bem adiantado de interação e conflito (São Paulo) para outro em que carece qualquer prática argumentativa nesse âmbito e vigora o velho estilo truculento do patronato. Ao conduzir o estoque de relações sociais que suportam capital e trabalho do ponto mais desenvolvido para o menos desenvolvido, os sujeitos coletivos acabam encarnando, inadvertidamente, um papel civilizatório, pois contribuem para a disseminação da modernização das relações de trabalho em um ambiente originalmente avesso a mudanças. As modificações normativas operadas pela Convenção atestam essa trajetória, embora aparentemente possam soar como um recuo. Na Convenção inicial, as chamadas cláusulas sociais (estabilidade, recusa da culpabilidade do acidentado) estavam inseridas em seu interior; hoje elas se encontram anexas, na forma de um “Termo Aditivo”. Esse expediente permite tornar o acordo palatável para os interlocutores patronais de Estados da federação onde as cláusulas sociais causam o temor da incorporação de benefícios e direitos que eles não poderiam bancar. O “anexo” passa a ser objeto de negociação se e quando a correlação de forças em uma região assim o permitir, enquanto a questão central era impedir que as cláusulas sociais funcionassem como “amarras” para a expansão do acordo para outros Estados. Do ponto de vista dos trabalhadores do 26 NEGOCIAÇÃO C OLETIVA EM S AÚDE DO T RABALHADOR: SEGURANÇA EM... pel impositivo e tutelar das relações de trabalho, associado ao corporativismo (Paoli, 1994). O caso particular das máquinas injetoras de plástico é um bom exemplo do desenrolar bem-sucedido de uma nova cultura negocial, não estando com isso eximido de problemas, conforme será visto mais adiante. Porém, é uma indicação alentadora das mudanças, o que é reconhecido em primeiro lugar pelos próprios agentes coletivos envolvidos: as associações patronais do setor e os sindicatos, se bem que com nuances. Enquanto o segmento patronal enxerga aí uma “flexibilização do processo de negociação coletiva, com a supervisão mas sem a imposição do Estado”,4 os sindicatos identificam a própria negociação coletiva, concebida nos termos do contrato coletivo. O fato, em primeiro lugar, de sua coordenação e administração ficarem a cargo dos contratantes é um indício de poder deliberativo efetivo. Em segundo lugar, devese frisar a instituição de uma Comissão Permanente de Negociação (CPN), considerada o “ponto alto” da Convenção, a qual prevê reuniões regulares todo o mês com o fim de avaliar a sua aplicação e zelar pelo seu cumprimento, inclusive com mecanismos de sanção e de regulamentação, como nos casos previstos da proposição de mediação e arbitragem (parágrafos 2o, 3o e 4o da cláusula 10a , Fundacentro, 2001:10). Assim, a instância estatal comparece não mais como definidora da agenda das partes litigantes, nem como recurso último para o qual são transferidos os impasses, isto é, os tribunais. Isso é tanto mais adequado ainda na área de saúde, uma vez que a juridificação se refere sempre a um ato já consumado, o qual pode em tese ser bem definido e caracterizado, enquanto o acidente e o risco devem ser sempre evitados por meio da prevenção. Mas, de todo o modo, seria incorreto afirmar que o Estado simplesmente saiu de cena: a Fundacentro, órgão vinculado ao Ministério do Trabalho, participa como aplicador do curso de multiplicação ou de capacitação concebido pela CPN. O curso terminou se convertendo em um instrumento original, uma vez que aborda até o detalhamento dos problemas envolvidos nas prensas injetoras, cobrindo uma área em que a legislação é insuficiente porque inespecífica. O curso possibilita o credenciamento de profissionais técnicos da própria empresa (que podem ser engenheiros, médicos, cipeiros, operários, etc.), o que a desobriga de contratar auditorias ou arbitragens externas, resultando em economia de custos. Os cursos são rápidos, de três dias no máximo (18hs), mas constam de apostilas e avaliação. Eles acabam gerando, por outro lado, um efeito inespera- do: a autonomia da CPN de certa maneira abala o orgulho profissional dos engenheiros de segurança do trabalho, que encaram o treinamento fornecido pela Comissão, v i a Fundacentro, como uma espécie de “afronta” à sua formação.5 Desde o início, aliás, o acordo subordinou o aspecto técnico ao político e esse é um elemento não negligenciável porque expressa a vontade de se chegar à resolução efetiva do problema em questão – a redução dos acidentes –, mesmo tendo em conta o passado conflitivo dos atores. Demonstra portanto que, quando essa vontade prevalece, os argumentos técnicos aparentemente imperativos deixam de ser determinantes para o deslanchar do processo negocial. Foi o que se observou quando sindicalistas e representantes patronais acordaram acerca dos princípios gerais necessários e somente depois incorporaram os engenheiros e mobilizaram a ABNT.6 Na verdade, de certa forma os contratantes tomaram para si a responsabilidade de encontrar respostas para itens práticos que se interpunham ao desenvolvimento do processo no momento em que se viram diante da fatalidade de que não havia, na documentação disponível, uma norma técnica que definisse categoricamente o que seria “mecanismo de proteção”. Essa carência acabou ensejando uma pesquisa sobre precedentes em outros países como França, Itália e EUA.7 Não foi utilizado aqui o velho expediente de delegar o assunto para um órgão burocraticamente circunscrito; ao contrário, os atores foram, autonomamente, até onde foi possível ir na matéria. Um Caminho para a “Flexibilização de Direitos”? – De fato, o elemento contratualista do acordo reside aqui na medida em que pressupõe o caráter autônomo das decisões. Por outro lado, desloca a visão jurisdicista que geralmente prevalece nos assuntos de saúde do trabalhador, como se viu acima, quando os impasses são encaminhados para o DRT e o Ministério Público, no que tange tanto à fiscalização quanto à punição, com abertura de processo, etc. Ao enfatizar a responsabilidade dos atores, o acordo contribui para uma resignificação das próprias entidades públicas. Aqui é preciso estar atento muito mais às disposições do que aos resultados, pois são as primeiras que dão sustentabilidade à prática negocial das lideranças e àquilo que aparece na superfície como postura “ativa-propositiva” ou, ainda, em certas leituras, como social-democratização do movimento sindical. A Convenção sobre Máquinas Injetoras de Plástico talvez seja um grão de inovação em meio a um deserto de permanência 27 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 corporativa. Mas ganha coerência junto a outras iniciativas, como as câmaras setoriais, a que se fez referência anteriormente. A formatação de uma mesma linguagem8 entre patrões e empregados identifica a possibilidade de um entendimento, isto é, do estabelecimento de regras, e não necessariamente de consenso. Há uma diferença grande entre a busca de um terreno comum e a renúncia das diferenças e do conflito. Nas palavras de um negociador importante do acordo, da Abiplast: “na negociação não se esconde o conflito mas se procura dar uma solução ao conflito”.9 É um tal tipo de disposição que confere ao acordo sobre máquinas injetoras um significado importante para a apreciação mais ampla das relações de trabalho no Brasil. Com respeito ao treinamento, é importante ressaltar que a Convenção não assegura exclusividade de prestação de serviço à Fundacentro; ao contrário, o modelo procura ser pluralístico, de tal maneira que outras instituições estão habilitadas a ministrar o curso de multiplicação de especialistas em segurança de máquinas injetoras. Tais instituições variam do Sesi/Senai até a Federação de Trabalhadores em Indústrias Químicas do Estado de São Paulo (hoje associado à Força Sindical mas no momento do Acordo, sem filiação a nenhuma central sindical), passando pelo Diesat, escolas privadas e o próprio Sindicato dos Trabalhadores em Indústrias Químicas, Plásticas e Farmacêuticas de São Paulo (vinculado à CUT), onde o Acordo foi originalmente gestado. Assim, se a Convenção, por um lado, avança no sentido da descentralização e contratualização das relações de trabalho, por outro, corre o ris co de fato de converter o âmbito de intervenção dos atores institucionais em um “negócio”, tal como exemplificado no caso da habilitação de multiplicadores. O mesmo raciocínio se aplica à arbitragem, prevista na CPN em pelo menos duas ocasiões: em caso de acidente, para o levantamento das causas de (in)segurança, as quais podem variar entre a falta de dispositivos bloqueadores nas máquinas até a carência de treinamento por parte dos operadores, e em caso de indenizações (cláusula 10a ). Com respeito ao primeiro caso, a CPN tem o poder inclusive de negociar a situação do trabalhador acidentado no chamado “Fórum da CPN”, ao invés de remetê-lo à Justiça do Trabalho, ganhando celeridade (em duas ou em até uma semana o caso pode ser resolvido). Ali é possível, em tese, questionar determinadas aquisições estatutárias, tais como a garantia de estabilidade, em troca de outras vantagens. Nos exemplos concretos registrados até aqui foi possível observar um caso de negociação de direitos adquiridos e um outro de manutenção da cláusula da estabilidade para trabalhadores acidentados. É evidente que essas alternativas correm o risco de engrossar o rol de dispositivos flexibilizadores nas relações de trabalho, especialmente em uma conjuntura em que as correntes desregulamentadoras na economia e na sociedade enfatizam a necessidade de sobrepor o negociado ao legislado (Santos, 2001). Com relação a essas objeções, o que se pode dizer é que o dado da modernização não carrega um destino preestabelecido: depende do sentido que lhe é conferido pelos atores coletivos e as classes sociais, isto é, se a linha-de-força predominante vai ser reforçadora do mercado ou, ao contrário, dos direitos sociais como parâmetro regulatório. É importante ressaltar que a CPN detém o monopólio de emissão do “selo” capaz de habilitar as máquinas injetoras. Isso reforça mais ainda o seu poder institucional. O selo funciona como uma espécie de certificação da segurança das máquinas e é uma exigência após o treinamento efetuado por uma instituição privada, como aquelas citadas anteriormente. Nesse sentido, a CPN, ao avalizar o treinamento efetuado, se responsabiliza diante das empresas que contrataram o treinamento, das instituições e escolas que o praticaram e da opinião pública em geral. Esse papel desempenhado pela CPN não deixa de ser eminentemente público, embora não estatal. Também não se trata de substituir o Estado, mas sim de infundir um conteúdo participativo e, portanto, de democratizá-lo a partir da iniciativa cidadã, sendo que nesse caso tal iniciativa é a expressão de interesses coletivos, de classe. O DRT, por exemplo, não dispõe de estrutura e pessoal suficiente para fazer o treinamento de multiplicadores, mas possui cadeira cativa no interior da CPN. Nesse caso, o técnico tem de conhecer a norma específica para as máquinas injetoras de plástico, saída da Convenção, além do conhecimento sobre a legislação ordinária aplicável de forma geral. A idéia de aproveitar um operador ou um profissional de segurança (médico, engenheiro ou técnico, por exemplo) da própria empresa como multiplicador obedece, além das razões econômicas, ao propósito de uma política de segurança do trabalho, na medida em que essa última pressupõe um diálogo permanente. Uma visão estritamente mercantil, ao contrário, não privilegia a construção de uma relação de confiança entre as partes, atendo-se aos resultados de curto prazo: é o que acontece com os treinamentos rápidos mas de qualidade duvidosa, comum nos cursos para cipeiros. É importante, portanto, que o multiplicador seja alguém que esteja pre- 28 NEGOCIAÇÃO C OLETIVA EM S AÚDE DO T RABALHADOR: SEGURANÇA EM... sente constantemente no chão-de-fábrica. O mesmo princípio vale para o pessoal de manutenção: também ele deve ser comprometido com o treinamento e a segurança das máquinas, embora possa não ter uma relação direta com ela. O caso de um acidente com um eletricista, ocorrido há cerca de seis anos, é exemplar: ao tentar desentupir o bico de uma injetora com o alicate, o trabalhador sofreu queimaduras que o desfiguraram seriamente. De forma análoga, os trabalhadores terceirizados não podem ser excluídos do processo: enfim, a idéia é que todos aqueles que tenham uma relação com a máquina injetora de plástico, mesmo não sendo operadores, devem estar contemplados pelo treinamento. As várias versões da Convenção (bianuais) são objeto de negociação permanente, o que faz com que algumas cláusulas sejam acrescentadas ou suprimidas de acordo com a correlação de forças e as trocas recíprocas. A chamada “teoria do ato inseguro” para explicar os acidentes de trabalho estava contida na versão anterior da Convenção (cláusula 6a , Fundacentro, 2001) embora esteja ausente da proposta de redação para a versão mais atualizada, prevista para vigorar entre setembro de 2002 e setembro de 2004. Em compensação, a cláusula 12a da versão anterior, que incluía a estabilidade para os acidentados, desaparece na última versão. A responsabilização do operador pelo acidente é motivo de uma batalha histórica movida contra essa concepção por parte da bancada sindical e pelos médicos do trabalho ligados à saúde do trabalhador, os quais a consideram como uma explicação inadequada e superada internacionalmente. Já os empresários relutam em aceitar a cláusula da estabilidade; tanto é verdade que os seus quatro parágrafos subseqüentes na Convenção de 1999 (Fundacentro, 2001:11) praticamente dissolviam a incondicionalidade do benefício, pois era criada uma série de brechas em que ele poderia ser suspenso. As cláusulas “polêmicas” foram assim transferidas para um “Termo Aditivo” à Convenção, a fim de serem negociadas separadamente, segundo as diversas realidades geográficas e regionais, conforme se fez referência anteriormente. Novamente, esse é sem dúvida um aspecto ambíguo da contratação social, uma vez que concretamente ela pode estar negociando os chamados “direitos adquiridos” que foram incorporados na memória coletiva da classe trabalhadora. Sua forma “bipartite” passa a ser motivo de crítica, em que outros autores enxergam a virtude da autonomia e da liberdade de negociação. No entanto, ele expõe a capacidade de pressão política e de poder argumentativo tanto de um lado quanto de outro; força a alianças com a sociedade civil e mobiliza, enfim, a opinião pública a fim de fazer valer as idéias e interesses de cada um. A Importância de um Enfoque Preventivo Existe uma correlação positiva entre a interferência dos sindicatos na inclusão de cláusulas preventivas nos acordos coletivos de categoria – mesmo aqueles previstos pela legislação trabalhista – e a diminuição do número de acidentes de trabalho e doenças ocupacionais notificadas via CATs,10 pois, enquanto no setor industrial essas notificações acusam um decréscimo de 19,4% entre 1997 e 1999, no mesmo período os setores de agricultura e serviços registraram um decréscimo de apenas 1,9% e 2,6%, respectivamente. No setor industrial é possível encontrar a inclusão de cláusulas preventivas de saúde e segurança do trabalho em acordos coletivos de categoria, enquanto o mesmo não ocorre nos setores de agricultura e serviços (Dieese apud Cacciamali; Sandoval, 2000:39-40). Um dos aspectos relevantes da Convenção é que ela expressa um acordo coletivo em saúde e segurança do trabalho com enfoque preventivo e não compensatório, isto é, aquele que visa agir apenas após consumado o acidente. Dessa forma, toda a processualística ligada ao ato do acidente, como multas, fiscalização e processos reparatórios de indenização ficaria minimizada em favor de ações que buscariam agir sobre as causas e não sobre os efeitos. Ao fazê-lo, os contratantes sociais vão descobrindo, através de um processo de aprendizagem recíproco, que as raízes da insegurança e sua fonte repousam na maior parte dos casos na própria organização do trabalho. Enquanto o setor patronal enfatiza a desburocratização e a flexibilização da legislação, considerada uma “camisa-de-força” à livre negociação, o processo negocial na verdade transfere o marco regulatório para o campo da produção, ao invés de simplesmente eliminá-lo ou “enxugá-lo”, pois, vistas as coisas de mais perto, a Convenção representa muito mais um movimento de criação normativa, dada a minúcia e o detalhamento a que ela se presta, do que de minimalismo e desregulação. Isso acaba expondo, inadvertidamente ou não, uma faceta estrutural do sistema corporativista de relações de trabalho ainda vigente (Consolidação das Leis do Trabalho): o de que, a despeito da grande quantidade de produção legislativa e de normatização estatutária, assim como da amplitude de sua cobertura, a base jurídica define um sujeito individual e não um sujeito coletivo como unidade dos contratos. Essa concepção fica seriamente abalroada 29 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 com a consideração de itens de saúde coletiva e meio ambiente, pois as responsabilidades passam a ser tomadas necessariamente de uma perspectiva social: as condições de trabalho e a organização do processo produtivo. Assim, o expediente bastante comum no ambiente da indústria de transformadores plásticos de fazer “gambiarras” para desativar dispositivos de segurança nas máquinas, a fim de alcançar maior produtividade (Coelho; Vilela; Tsunabi, 1996:169), passa a ser considerado uma questão ligada à saúde coletiva do ambiente de trabalho em seu conjunto, e não um problema associado à “decisão pessoal” do trabalhador, uma vez que reconhece os constrangimentos (relação desigual de poder entre empregador e empregado) que pesam sobre aquela decisão individual. A contratação representada pela Convenção sobre Máquinas Injetoras de Plástico, ao mesmo tempo em que desregulamenta os preceitos da CLT, re-regulamenta segundo um novo patamar de direitos. - a constituição de subcomissões por áreas geográficas ou por empresas, o que permite combinar um padrão geral ou “horizontal” com outro “vertical”, sensível às especificidades regionais ou até mesmo ao nível mais desagregado e particularizado das empresas (parágrafo 1o d a cláusula 4a da Convenção, Fundacentro, 2001:8); - recorrênca à “mediação” ou “arbitragem” nos casos de “impasses que venham a ocorrer” (Fundacentro, 2001:8); - a Cipa, concebida como elo de ligação entre a CPN e o local de trabalho (cláusula 5a , Fundacentro, 2001:9) passa a ter acesso ao livro de Registro das Máquinas Injetoras, assim como aos manuais, laudos, avaliações e demais documentos referentes à máquina, além da possibilidade de checagem periódica delas. As Cipas passam a ter o direito de paralisar as máquinas quando for observada a existência de risco grave ou de máquinas sem dispositivo de segurança. Elas também passam a poder solicitar assessoria técnica ao sindicato, a entidades a ele vinculadas (por ex., Diesat e INST12) ou a instituições públicas (DRT, SUS, etc.), caso necessário. Aumenta o poder da Cipa, dando-lhe um caráter menos “oficialista” e permitindo que ela exerça o direito democrático à informação, tão importante para consolidar a capacidade de influência do movimento sindical nos assuntos referentes a mudanças e rearranjos no processo de trabalho (Bresciani, 1994). Caminha, portanto, no sentido de maior transparência na relação entre as partes, condição necessária para a construção de uma relação de confiança a médio e longo prazos, que busque perdurar para além de situações ad hoc. Ressalte-se que um tal nível de confiabilidade em uma contratação setorial é coerente com a busca de co-responsabilidade nas estratégias de gestão no interior das empresas. Como afirmou caracteristicamente o representante patronal: “todos têm responsabilidade em um trabalho participativo”;1 3 BALANÇO E RESULTADOS A Convenção já tem sete anos de vigência. Nesse tempo foram treinados no setor plástico, até 2001, 5.159 trabalhadores. Foram expedidos 3.350 selos, o que significa dizer que esse é o número de máquinas com os dispositivos de segurança adequados, no mesmo período. As novidades formais da Convenção estão situadas exatamente em contraponto à CLT. Muitas já foram discutidas com algum pormenor acima. São elas: - a não exigência de data-base. A “cultura da data-base” tem como corolário que a negociação só se dá uma vez por ano: “só negocia em novembro”;1 1 - como conseqüência do que precede, o estímulo a uma “negociação permanente”, por oposição à prática de acumular e protelar as pendências até a data-base, quando então seriam resolvidos, supostamente, todos os problemas; - o estabelecimento de regras para garantir o cumprimento do acordo estipulado entre as partes envolvidas, o que dificulta o descumprimento da legislação, como acontece freqüentemente com a CLT; - a CPN pode substituir a Justiça Comum no caso de indenização por acidente com injetoras de plástico. Ela tem o atributo de definir responsabilidade civil nesses casos e fixar indenização em primeira instância. Em outros casos, quando não houver acordo entre as partes, a CPN pode jogar o problema para a mediação (cláusula 10a ), ao invés de remeter para a Justiça do Trabalho. Além desse papel de criação normativa, é ela quem credencia os cursos de capacitação e multiplicação em segurança de máquinas injetoras, oferecidos na Fundacentro; - a solução dos conflitos é pela via da negociação direta, criando uma “cultura negocial”, ao invés da remissão da solução de conflitos para a Justiça do Trabalho; - a obrigação de validação das decisões pelos dois lados – isto é, as cláusulas da Convenção – tem de valer para as duas partes, caso contrário leva ao descrédito: são as cha- - prazo de vigência do acordo supera o previsto em lei: enquanto as negociações coletivas têm a duração de um ano, a convenção possui vigência de dois anos, podendose prorrogar por mais um ano; 30 NEGOCIAÇÃO C OLETIVA EM S AÚDE DO T RABALHADOR: SEGURANÇA EM... 7. Exposição do representante da Abiplast por ocasião do III Curso de Capacitação sobre Prevenção de Acidentes com Máquinas Injetoras de Plástico na Fundacentro em 15/03/1996. madas “cláusulas quanto ao compromisso” – o que reforça a contratualidade da experiência. 8. Esse discurso é muito comum entre profissionais de Recursos Humanos de grandes empresas, o que demonstra que o mesmo princípio válido para a negociação de atores coletivos na arena institucional é válido também para a relação entre gerência e trabalhadores no processo de trabalho. PERSPECTIVAS Neste texto foi exposto apenas o caso da Convenção Coletiva sobre Prevenção de Acidentes em Máquinas Injetoras de Plástico. Foi dada ênfase ao processo de negociação direta entre as partes, inserindo-o dentro de uma nova postura negocial, chamada “ativa-propositiva”, acompanhando-se para isso a trajetória do Acordo até a Convenção. Ressaltou-se também a preocupação preventiva contida na Convenção, o que desloca o modelo vigente de fiscalização de acidentes, distante da realidade e atuando apenas após e raramente antes do ocorrido. Outras iniciativas em outros setores e ramos de atividade certamente serão uma tendência daqui para a frente, mesmo com a ameaça de flexibilidade e desregulação pairando sobre a cabeça dos trabalhadores e suas entidades de representação. A marcha para o contrato coletivo de trabalho alimenta-se de iniciativas como essa: madura e circunstanciada, passando ao largo tanto do assistencialismo dos sindicatos quanto do intervencionismo estatal, dois lados de uma mesma moeda. 9. Exposição do representante da Abiplast por ocasião do III Curso de Capacitação sobre Prevenção de Acidentes com Máquinas Injetoras de Plástico na Fundacentro em 15/03/1996. 10. Comunicação de Acidentes do Trabalho, centralizada no INSS. 11. Novembro é a data-base da categoria dos químicos. Fala da Dra. Elaine D’Avila Coelho, advogada representante da CNQ no III Curso de Capacitação sobre Prevenção de Acidentes em Máquinas Injetoras de Plástico, na Fundacentro, em 15/03/1996 (Mello e Silva, 1999:211). 12. Instituto Nacional de Saúde do Trabalhador. 13. Exposição do representante da Abiplast por ocasião do III Curso de Capacitação sobre Prevenção de Acidentes com Máquinas Injetoras de Plástico, na Fundacentro, em 15/03/1996. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRESCIANI, L.P. Da resistência à contratação: tecnologia, trabalho e ação sindical no Brasil. São Paulo: CNI/Sesi, Série Indústria e Trabalho, 1994. CACCIAMALI, M.C.; SANDOVAL, S. Mediação e negociação em segurança e saúde do trabalho. São Paulo: Fipe/MTE, dez. 2000. COELHO, E.D.; VILELA, R.A.G.; TSUNABI, W. Injeção de segurança no setor plástico. Convenção sobre segurança em máquinas injetoras. In: BONCIANI, M. (Org.). Saúde, ambiente e contrato coletivo de trabalho. Experiências em negociação coletiva. São Paulo: LTr, 1996. p.155-199. NOTAS FUNDACENTRO/ MTE. Convenção coletiva sobre prevenção de acidentes em máquinas injetoras de plástico. 2. ed. São Paulo, 2001. Agradeço a Oswaldo da Silva Bezerra, diretor do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Químicas, Plásticas, Farmacêuticas e Similares de São Paulo e do Diesat a disponibilização das informações fornecidas para a consecução deste trabalho, e à Fapesp pelo apoio. MELLO E SILVA, L. A generalização difícil: a vida breve da câmara setorial do complexo químico seguida do estudo de seus impactos em duas grandes empresas do ramo. São Paulo: Annablume/Fapesp, 1999. 1. As câmaras setoriais foram encontros organizados entre sindicatos de patrões e de empregados de cada setor de atividade econômica, tendo o Estado como parceiro e não como poder tutelar. Tiveram vigência entre 1992 e 1994 e possibilitaram, onde isso foi possível, estabelecer uma “agenda” dos principais problemas de cada setor, tendo como novidade a participação dos trabalhadores e a inserção de elementos de sua pauta, tais como emprego, salário, fim das terceirizações, qualificação da mão-de-obra, etc. OLIVEIRA, F. de. O acordo das montadoras: quanto melhor, melhor. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n.36, p.3-7, jul. 1993. PAOLI, M.C. Os direitos do trabalho e sua justiça: em busca das referências democráticas. Revista USP, São Paulo, n.21, p.101-115, mar./maio 1994. SANTOS, R.C.B. dos. Empresários e a modernização das relações de trabalho. 2001. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, São Paulo, 2001. 2. Posteriormente esse sindicato fundiu-se ao Sindicato dos Trabalhadores em Indústrias Químicas e Farmacêuticas e Similares de São Paulo. 3. Respectivamente, Sindicato da Indústria de Material Plástico do Estado de São Paulo; Associação Nacional da Indústria de Material Plástico. VILELA, R.A.G. Negociação coletiva e participação na prevenção de acidentes de trabalho. 1998. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) – Faculdade de Ciências Médicas, Unicamp, Campinas, 1998. 4. Exposição do representante da Abiplast por ocasião do III Curso de Capacitação sobre Prevenção de Acidentes com Máquinas Injetoras de Plástico, na Fundacentro, em 15/03/1996. 5. Entrevista com membro da CPN, agosto de 2002. LEONARDO MELLO E S ILVA: Professor do Departamento de Sociologia da FFLCH-USP ([email protected]). 6. Associação Brasileira de Normas Técnicas. 31 SSÃO ÃO P PAULO AULO EM EM P PERSPECTIVA ERSPECTIVA,, 17(2): 17(2) 2003 32-41, 2003 O TRABALHO E A SAÚDE DO TRABALHADOR NA INDÚSTRIA DE CALÇADOS VERA LUCIA NAVARRO Resumo: O texto debate a forma como as mudanças verificadas no processo e na organização do trabalho na indústria de calçados de Franca (SP) – que se intensificaram a partir dos anos 90, e resultaram no aumento do trabalho terceirizado, no trabalho em domicílio e na maior intensificação das atividades no interior das fábricas – repercutem na saúde dos trabalhadores daquele ramo industrial. Palavras-chave: saúde do trabalhador; reestruturação produtiva; indústria de calçados. Abstract: This article discusses how changes in the process and organization of the footwear industry in Franca, São Paulo State, have affected the health of this sector’s workers. These changes came into force in 1990 and resulted in an increase in sub-contracting, home-based employment and the intensification of activity inside the factory. Key words: workers’ health; productive restructuring; footwear industry. U ma das principais características do novo padrão de acumulação do capital tem sido a intensificação da exploração da força de trabalho, quer por meio da adoção de novas tecnologias, quer pela utilização de novas formas de organização da produção e do trabalho ou de mudanças nas próprias relações de trabalho que implicam contratos precários, na subcontratação, no trabalho a domicílio, no aumento desmedido da jornada de trabalho e, até mesmo, na exploração criminosa do trabalho infantil. A intensificação do trabalho, que cada vez mais se faz presente na contemporaneidade, tem ocasionado o aumento das doenças relacionadas ao trabalho e criado condições que conduzem ao incremento da probabilidade de acidentes causadores de incapacidade temporária permanente ou mesmo de mortes de trabalhadores, o que evidencia o vínculo causal entre saúde e trabalho. Para que se possa apreender quais são as implicações para a saúde dos trabalhadores derivadas dessas mudanças, deve-se compreender a lógica que rege a intensificação do trabalho na contemporaneidade, que está associada às mudanças tecnológicas e organizacionais e ao processo de reestruturação produtiva que ocorre em escala global e que se intensifica, no Brasil, a partir da década de 90. Diante da complexidade do processo de reestruturação produtiva em curso no país, são necessários estudos empíricos que possam contribuir para sua elucidação, apesar da existência de uma significativa literatura já produzida. É necessário, ainda, ouvir dos próprios trabalhadores como essas mudanças afetam suas condições de trabalho e sua saúde. Este artigo baseia-se em estudos que se vêm realizando desde meados da década passada com trabalhadores da indústria de calçados de Franca (SP),1 que buscam fornecer elementos para compreensão de como vem-se dando a exploração da força de trabalho no país, no contexto da reestruturação produtiva, e quais as repercussões sobre a saúde dos trabalhadores, particularmente dos empregados na produção calçadista francana. O debate acerca da superexploração da força de trabalho remete ao debate de algumas particularidades na forma de objetivação do capitalismo no Brasil. O processo de produção capitalista visa a valorização do capital. A condição histórica necessária para essa forma particular de produção social é a existência de indivíduos totalmente livres, até dos meios de produção – de proletários, em condições de vender sua força de trabalho em troca de um 32 O T RABALHO E A S AÚDE DO T RABALHADOR NA INDÚSTRIA... salário, única alternativa que lhes resta, para manter e reproduzir sua própria existência. Na sociedade capitalista, tão diferente de outras formas sociais historicamente conhecidas, a valorização do capital tem como condição e premissa a produção social da mercadoria numa sociedade cujos membros competem e se opõem como pessoas, que só se contrapõem em sua qualidade de possuidores de mercadorias, e que apenas enquanto tais entram em contato umas com as outras (Marx, 1978:8). O objetivo específico do capital é, então, a produção de trabalho excedente, a apropriação, no curso do processo de produção real – de trabalho não pago, que se objetiva como mais-valia. Nas palavras de Marx (1978:22-32), a mais-valia é o produto específico do processo de produção capitalista: “[...] O produto do processo de produção capitalista não é simplesmente produto (valor de uso), nem simples mercadoria, isto é, produto que tem valor de troca; seu produto específico é a mais-valia. [...] o processo de trabalho não é mais que um meio do processo de valorização, processo que por sua vez é essencialmente produção de mais-valia, isto é processo de objetivação de trabalho não pago”. No Brasil, em razão do caráter caudatário e subordinado da produção capitalista às economias centrais, a produção capitalista não objetiva a incorporação do excedente obtido apenas ao capital constituído nos limites das fronteiras nacionais, mas também, e talvez em montante mais significativo, ao capital internacionalmente constituído. A voracidade com que o capital consome a força de trabalho no Brasil evidencia a intensidade desse processo de acumulação ou o grau de superexploração a que essa força de trabalho está submetida. 2 O arrocho salarial, meio de ampliar a mais-valia – uma vez que reduz o montante equivalente ao tempo de trabalho socialmente necessário, ampliando o excedente –, sem a necessidade de alterar a jornada de trabalho ou incorporar qualquer inovação tecnológica à produção, vem coexistindo há décadas com outros meios de ampliação de trabalho excedente ou trabalho não pago. No Brasil, tanto na produção industrial quanto na rural, ocorre a combinação das duas formas de extração de mais-valia, a absoluta e a relativa (Costa, 1981:106). Igualmente, coexistem a subordinação real com a subordinação formal do trabalho ao capital (Ianni, 1984:83-84 e Santos, 1984:125-133). Essa situação, que poderia parecer paradoxal em uma sociedade capitalista industrializada – a redução real dos salários, a combinação de estratégias, meios, técnicas e relações de produção arcaicas com modernas –, a coexistência de relações de trabalho assalariado com a parceria, a meação, o trabalho domiciliar, etc., torna-se extremamente funcional, do ponto de vista das necessidades do processo de acumulação, de remunerar o capital tanto no país quanto no exterior. Esses meios de ampliação de maisvalia são imanentes à forma particular de desenvolvimento do capitalismo no país (Braverman, 1987:244). As mudanças em curso no mercado de trabalho no Brasil apontam para a continuidade desses meios que o capital se vale para reproduzir-se ampliadamente, aumentando o grau de exploração da força de trabalho, já tão intenso no país. Como boa parte das pesquisas tem apontado, a terceirização do trabalho, que é parte do processo de reestruturação produtiva e que se intensificou a partir dos anos de 1990, é sinônimo, na maioria das vezes, de superexploração da força de trabalho. Pesquisadores da questão da terceirização no Brasil têm destacado dois padrões distintos e contrastantes de adoção da terceirização. O primeiro considerado como um padrão ‘reestruturante’, ‘autêntico’, tem sido apontado como o que busca a redução de custos valendo-se de determinantes tecnológicos e organizacionais. Segundo Faria (1994:43-44), essa modalidade de terceirização objetiva “alcançar tanto elementos de produtividade quanto condições novas de competitividade. É a imposição das tecnologias gerenciais de qualidade. É o outsourcing (a busca de suprimentos) total. A palavra de ordem é paternship (parceria) em todo o fluxo produtivo, nas relações para frente, com o mercado, para trás com os fornecedores e também com os empregados”. A adoção desse padrão de terceirização do ponto de vista empresarial “[...] significa focalizar a sua atividade naquilo que ela considera estratégico, sua atividade de excelência. Focalizar onde ela detém o domínio tecnológico e a capacidade de produzir com mais qualidade e custos menores. Assim, a empresa fragmenta a sua cadeia produtiva interna, transferindo para terceiros atividades de produção [...]. [...] A adoção da terceirização, dentro de uma estratégia reestruturante, possibilita que a empresa reduza a diversidade das formas de produção e dos processos de trabalho envolvidos, aumentando o controle sobre o processo de produção. A focalização, decorrente da terceirização, permite ganhos de racionalização, eficiência e produtividade. Por outro lado, alguns riscos, relacionados à instabilidade do mercado e à ausência de um crescimento sustentado na demanda, são transferidos para 33 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 terceiros. Esses aspectos que caracterizam o padrão reestruturante de terceirização são todos relacionados com a questão da qualidade e produtividade, sendo, portanto, elementos constitutivos da atual mudança de paradigma tecnológico” (Dieese, 1994:34-35). No entanto, o que predomina no país é um segundo padrão de terceirização, referenciado como “fraudulento”, “espúrio” ou “predatório”, que busca a redução de custos mediante exploração de relações precárias de trabalho e que, para tanto, recorre à utilização de subcontratação de mãode-obra, aos contratos temporários de trabalho, ao trabalho em domicílio, ao trabalho em tempo parcial e ao trabalho sem registro em carteira. Essas táticas podem e vêm sendo empregadas tanto isoladas como conjuntamente e, o que se observa, “[...] é uma flexibilização de direitos trabalhistas, um mecanismo de tentar neutralizar a regulação estatal e a regulação sindical” (Dieese, 1994:34-35). Alves (1996:144145) afirma que, no Brasil “[...] a terceirização se dá à custa da intensidade maior do trabalho e da manutenção da estrutura de poder, com poucas mudanças na hierarquia (mantendo, portanto, o padrão fordista-taylorista). O seu verdadeiro significado para o capital é a precarização do mercado e das condições de trabalho. Vista sob as cores do capitalismo hipertardio, a terceirização no Brasil só pode assumir, em seus contornos gerais, uma manifestação perversa. O tipo espúrio de terceirização passa, então, a ser a norma (e não a exceção)”. Deve-se lembrar de que “[...] apesar da extorsão da mais-valia relativa ter-se tornado o modo predominante de acumulação de capital no país, principalmente nas indústrias de ponta, a mais-valia absoluta não deixa de ser um importante componente histórico na produção capitalista no Brasil” (Alves, 1996:152). O processo de terceirização em curso no país, em sua variante ‘espúria’ intensifica a extorsão de mais-valia absoluta e o comportamento da indústria calçadista francana diante dessa nova lógica do mercado, serve de exemplo pois, no ramo industrial, a subcontratação ou terceirização, como tem sido referenciada nos últimos tempos, é velha conhecida e convive com formas não especificamente capitalistas de exploração do trabalho como o trabalho em domicílio que pode, ou não, assumir características de trabalho familiar. Analisar o processo de reestruturação produtiva no Brasil não é uma tarefa fácil bem como não é simples uma análise do que já foi produzido sobre o assunto. Tumolo (2001:3) que realizou uma revisão da bibliografia a esse respeito, abrangendo aproximadamente duas centenas de títulos de diferentes áreas do conhecimento, destaca que o que se constata é uma grande heterogeneidade nesse processo: “[...] Os resultados das pesquisas apontam que, sob diversos aspectos, o único consenso é o ‘dissenso’. Em outras palavras, não é possível encontrar, pelo menos dentro dos parâmetros teóricos-metodológicos dos referidos estudiosos, nenhuma homogeneidade e nenhum padrão único ou mesmo determinante no que se refere a vários aspectos dos processos de trabalho: introdução de novas tecnologias, organização e gestão do trabalho, qualificação/desqualificação da força de trabalho etc. Tendo como base as pesquisas realizadas, é possível afirmar que a marca distinta do chamado processo de reestruturação produtiva no Brasil é a ‘heterogeneidade generalizada’, que ocorre não só entre as empresas, mas também no interior delas. Por esta razão parece difícil estabelecer comparações e conexões entre as diversas partes díspares desse mosaico”. Por uma lado, se há consenso entre os autores por ele pesquisados de que o que distingue o processo de reestruturação produtiva em curso no país é a heterogeneidade em relação ao padrão tecnológico adotado, à organização e gestão do trabalho, não apenas entre setores da produção, empresas e no interior das próprias empresas, por outro lado, quanto aos trabalhadores, congruências são verificadas: “[...] No que diz respeito às relações de trabalho e às relações com as organizações sindicais, constata-se, ao contrário, uma ‘congruência’. Praticamente todas as pesquisas que as tinham como objeto de investigação apontam a ocorrência da intensificação do ritmo de trabalho e da diminuição dos postos de trabalho e, ao mesmo tempo, um empenho das empresas no sentido de afastar e neutralizar a ação sindical, valendo-se de diversos mecanismos, desde a proposta de participação controlada dos trabalhadores até a perseguição e mesmo demissão sumária dos ativistas sindicais. Algumas pesquisas indicam, também, uma tendência de diminuição do preço do salário (Tumolo, 2001:3). O processo de reestruturação produtiva em curso na indústria de calçados em Franca – SP enquadra-se nessas considerações. REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E TERCEIRIZAÇÃO: SINÔNIMOS DE INTENSIFICAÇÃO E PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO Uma das características da indústria de calçados masculinos de couro em Franca é o emprego intensivo de trabalho vivo. Esse ramo da indústria de calçados apresenta 34 O T RABALHO E A S AÚDE DO T RABALHADOR NA INDÚSTRIA... baixo índice de concentração de capital e adota processos de produção que, de modo geral, não fazem uso de tecnologias sofisticadas. Essa indústria absorve uma quantidade significativa de força de trabalho barata e, em boa medida, especializada, ou seja, detentora de conhecimentos, habilidades e destrezas manuais ainda imprescindíveis à produção do produto. Sua produção destina-se tanto ao mercado interno quanto ao externo e é realizada em parte nas indústrias, nas bancas 3 e parte a domicílio, e que envolve diferentes formas de relações de trabalho. O processo de produção do calçado de couro envolve inúmeras operações que estão organizadas em torno de cinco etapas: modelagem, corte, costura – que pode ser manual ou à máquina (pesponto) –, montagem e acabamento. O número de operações realizadas em cada uma dessas etapas varia de acordo com o modelo de calçado a ser produzido, com o tipo de organização de trabalho adotada, com a tecnologia empregada e com o porte da empresa. Nas indústrias de calçados em Franca estão empregados diretamente cerca de 17 mil operários. Grande número de trabalhadores presta serviço para essas indústrias e realizam parte da confecção do calçado fora de seus limites físicos. No entanto, dimensionar esse número não é tarefa fácil. Dados do Sindicato da Indústria de Calçados de Franca4 indicam a existência, na atualidade, de aproximadamente 2 mil prestadores de serviços (ou banqueiros) que realizam, sobretudo, serviços de pesponto e de costura manual. Em torno desses banqueiros orbita um número não quantificado de trabalhadores contratados para realizar o trabalho. Entre os banqueiros, há diversidade de formas de relacionamento com as indústrias contratantes, no número de empregados contratados e nas instalações onde o trabalho é realizado: existe desde aquele pequeno banqueiro que realiza o trabalho de pesponto em sua casa com uma ou mais pessoas de sua família até o grande banqueiro que dispõe de instalações onde trabalham de 20 a 50 funcionários subcontratados. Todavia, a despeito da precariedade dos dados disponíveis, essa realidade pode ser facilmente constatada com uma simples visita a bairros habitacionais periféricos de Franca, onde se pode observar, a amiúde, sua transformação em bairros industriais sem indústrias... Esse processo de terceirização da produção, que se amplia em Franca a partir dos anos de 1990, já era prática difundida no setor. De forma geral, as empresas calçadistas francanas há muito terceirizavam sua produção quando o volume de encomendas ultrapassava sua capacidade produtiva. A partir de meados da década de 80, essa prática deixa de ser exceção para tornar-se regra com o premente objetivo de reduzir custos. Esse fato explica em parte a grande redução de postos de trabalho nas indústrias de calçados de Franca. Na década compreendida entre os anos de 1986 a 1996 foram extintos 16 mil postos de trabalho no ramo industrial. A redução contínua no contingente da força de trabalho empregada pelo setor naquele período não foi conseqüência de uma redução significativa do volume da produção, que se manteve na média histórica de 27 milhões de pares/ano, à exceção dos anos de 1995 e 1996, quando o volume produzido foi de 22 e 24,8 milhões de pares/ano, respectivamente. A redução no número de postos de trabalho nas indústrias foi acompanhada pelo crescimento do trabalho informal, precarizado, ‘subcontratado’, ‘terceirizado’ e do valor agregado ao produto. Além do incremento das práticas de subcontratação por meio das bancas e do trabalho em domicílio, que desde esse período passa a ser ampliado crescentemente como forma de redução de custos nas empresas de grande porte e em parte das que se instalaram em Franca desde então, aumentou a preocupação do empresariado com a maior racionalização da produção no interior das unidades fabris. É, pois, no período compreendido entre os anos finais da década de 80 e início da década de 90, que um número maior de indústrias de calçados de Franca aderiu ao movimento de reestruturação produtiva e passou a realizar experiências de novas maneiras de se organizar a produção e o processo de trabalho, em boa medida inspiradas no “modelo japonês”. Ressalte-se, aqui, que as modificações no planejamento e na organização da produção implementadas pelas indústrias de calçados de Franca vão-se dar sem grandes investimentos em máquinas e equipamentos que incorporam tecnologias baseadas na microeletrônica, com exceção de uma ou duas empresas que adquiriram equipamentos CAD/CAM utilizados apenas na seção de modelagem. Em algumas empresas francanas, as novas técnicas de gerenciamento da força de trabalho adotadas pressupunham o envolvimento dos trabalhadores no processo de reestruturação da produção mediante formação de grupos de discussão, em que o trabalhador era convidado a opinar, a dar sugestões a respeito da melhor forma de organizar a produção. Com isso, buscava-se contar com sua participação para diminuir o tempo de giro das mercadorias em produção, tornar mais ágil o 35 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 processo de trabalho, melhorar a qualidade dos produtos e, conseqüentemente, obter aumentos de produtividade. Para tanto, além dos treinamentos, o envolvimento dos trabalhadores na implantação dessas mudanças passa a ser estimulado com a implantação de políticas de premiações individuais. Ocorre que a difusão dessas mudanças organizacionais entre as indústrias de calçados de Franca tem-se dado de forma lenta e não uniforme e, muitas das vezes, caem em desuso nas empresas que as adotam. Apesar de boa parte do empresariado do setor calçadista estar ‘sintonizada’ com o discurso modernizante, apregoando a imprescindibilidade da renovação das ‘velhas’ práticas de produção, administração e gerenciamento da força de trabalho – mudanças que garantiriam a permanência e a ampliação da competitividade de suas plantas industriais –, observase que a adoção desse discurso, na maioria dos casos, encontra-se em profundo contraste com a prática adotada pelas empresas, sobretudo no que se refere às condições e às relações de trabalho.5 forma como eles arrumaram o maquinário um trabalhador trabalha mais só que ganha a mesma coisa”.6 Tal processo não se restringiu ao interior das fábricas e, como se ligado por vasos comunicantes, permeou para o conjunto das atividades realizadas fora de seus domínios, como as bancas que a elas prestam serviços e o trabalho realizado a domicílio. L.B. confirma: “[...] no trabalho terceirizado a gente vê mais ainda a hora extra. Nas bancas, as pessoas chegam a trabalhar 18 horas por dia, porque se não consegue acabar a ficha (cota de trabalho a ser realizada no dia) ele tem que completar com a noite”.6 M.S., 28 anos, costureira manual, afirmou: “[...] eu trabalho costurando sapatos há mais de dez anos. Não é todo dia que tem serviço. Quando tem serviço eu pego nele às seis da manhã. Só paro para fazer o almoço e trabalho até as cinco da tarde. Costuro até 45 pares por dia. Quando eu não consigo durante o dia, trabalho à noite, até terminar a ficha. Nos fins de semana, meus filhos e meu marido me ajudam costurar”.6 Por um lado, no interior das unidades fabris, as principais mudanças observadas foram a redução de postos de trabalho, sobretudo daqueles relacionados às tarefas auxiliares nas diversas seções das fábricas; a utilização do trabalho em grupo ou células de produção que, pelo reagrupamento de tarefas antes realizadas individualmente, representou para o trabalhador apenas uma sobrecarga, uma superposição de tarefas, que passam a coexistir com a maior intensificação e controle do trabalho. Por outro lado, o aumento da transferência de partes da produção para ser realizada fora das indústrias, nas bancas ou em domicílio, contribuiu para o agravamento das condições de trabalho em que a confecção do calçado é realizada, muitas vezes, em locais improvisados e inadequados e com jornadas de trabalho superiores a dez horas, sem folgas semanais. Quando as bancas são instaladas no domicílio do trabalhador, suas atividades invadem e perturbam o espaço destinado à família, quadro que é agravado pela quase impossibilidade da fiscalização desses ambientes de trabalho pelos organismos responsáveis pela higiene e segurança no trabalho. O aumento do trabalho nas bancas e em domicílio puni ainda o trabalhador à medida que sobre ele recaem os efeitos da flutuação do mercado, visto que a necessidade desse tipo de trabalho pelas empresas é marcada pela sazonalidade. TABELA 1 Número de Trabalhadores Empregados na Indústria Calçadista e Produção Média por Trabalhador Franca – 1984-1999 Ano Número de Trabalhadores 1984 1994 1997 1999 36.000 25.000 17.000 17.000 Produção Média Trabalhador/Ano (em pares) 888 1.240 1.705 1.941 Fonte: Sindicato da Indústria de Calçados de Franca. Se se levar em consideração que a indústria calçadista francana, em boa medida, não realizou investimentos de monta na adoção de maquinaria moderna e na ampliação e modernização de sua estrutura física, pode-se inferir que o aumento da produção média por trabalhador ao ano verificado no período de 1984 a 1999 (Tabela 1) deu-se mediante intensificação do trabalho nas fábricas ou nas bancas que a elas prestam serviços. L.B., 43 anos, sapateiro, em seu depoimento confirma a tese anteriormente exposta: “[...] o que a gente vê hoje nas fábricas é que tem menos trabalhador e um maior número de pares produzidos, caiu o número de trabalhadores e aumentou o número de pares. Aquele trabalhador que permaneceu na fábrica ficou com mais trabalho. Da 36 O T RABALHO E A S AÚDE DO T RABALHADOR NA INDÚSTRIA... CONSEQÜÊNCIAS DESSE PROCESSO PARA A SAÚDE DOS TRABALHADORES local uma banca de pesponto, onde trabalha com a família até nos finais de semana. As novas estratégias de planejamento da produção adotadas por parte das empresas do setor, que resultaram nas alterações das formas de divisão e organização do trabalho no interior das fábricas, impulsionaram a transferência de partes da produção para serem realizadas externamente e provocaram um quadro de agravamento e maior precarização das condições e das relações de trabalho. No interior das fábricas, as principais mudanças observadas foram a redução de postos de trabalho, em especial daqueles relacionados a tarefas auxiliares nas diversas seções das fábricas; a utilização do trabalho em grupo ou células de produção, que, por meio do reagrupamento de tarefas antes realizadas individualmente originou o trabalhador polivalente ou multifuncional, à rotação de tarefas, mudanças essas que são apresentadas como estratégias modernas de se ajustar a produção à nova lógica capitalista, mas que, para o trabalhador representa, apenas, uma sobrecarga, uma superposição de tarefas, que passam a coexistir com maior intensificação e controle do trabalho. O trabalho em grupo que, na maioria das vezes, pressupõe o pagamento pela produtividade do grupo, transferiu para os próprios trabalhadores a tarefa de controlar a si próprio e aos demais membros do próprio grupo. De forma geral, pode-se afirmar que essas mudanças provocaram maior controle e maior intensidade do trabalho, o que repercute na saúde física e mental dos trabalhadores. Não se pode deixar de observar que o desemprego, também, traz impactos na saúde do trabalhador, no entanto, essa é uma discussão que merece maior aprofundamento. A repercussão das novas estratégias de planejamento da produção na saúde dos trabalhadores da indústria de calçados de Franca pode ser avaliada pelas recentes modificações tecnológicas adotadas pela Calçados Samello, empresa pioneira da reestruturação (desestruturação) produtiva do município. Esta empresa, recentemente, realizou mudanças que implicaram substituição de postos de trabalho que eram realizados sentados, para postos de trabalho onde trabalha-se em pé.9 Há cerca de um ano iniciou-se a substituição das tradicionais máquinas de pesponto, em que o trabalhador realizava suas atividades sentado por outras em que o trabalho é realizado em pé. Na realidade, não houve investimento em maquinários novos, mais modernos, como se poderia supor. A empresa, na realidade, ape- É líquido e certo que as condições de trabalho têm-se agravado tanto para os que permanecem formalmente empregados nas indústrias quanto para os que são empregados nas bancas e para os que realizam o trabalho em domicílio. Ao transferirem para fora de seus muros o trabalho, as empresas também o fazem de forma eficiente, com os problemas, – desresponsabilizando-se de todo e qualquer direito social, além de transferir para o trabalhador a incumbência e a responsabilidade de zelar pelas próprias condições de higiene e segurança do trabalho, bem como dos que consigo vivem e trabalham. 7 Nas visitas realizadas em domicílios de trabalhadores, pode-se observar que a invasão do espaço doméstico pelo trabalho assalariado (que pressupõe em muitos casos também a invasão de máquinas e equipamentos) além de subtrair do trabalhador e de sua família a privacidade do lar, coloca em risco a saúde de todos. O cheiro da cola, o pó do couro, equipamentos improvisados para o desenvolvimento de suas atividades, o ruído das máquinas que permanecem em funcionamento até mesmo em período noturno e em finais de semana são indicadores suficientes para afirmar que o aumento da informalização do setor, além de precarizar as relações de trabalho, agrava também as condições de trabalho, saúde e qualidade de vida dos trabalhadores e de seus familiares (é bom lembrar que as famílias são compostas também por idosos, pessoas doentes, neonatos e crianças de idades variadas). Como se não bastasse, a invasão fabril do lar é também compartilhada pela vizinhança do trabalhador. Há inúmeros relatos, em Franca, de relações de amizade ou de vizinhança rompidas ou abaladas pela instalação de máquinas e equipamentos em espaços destinados à moradia. A instalação de balancins de corte8 no interior de residências, além de colocar em risco a saúde, tem provocado também irritação nos vizinhos, que compartilham o ruído provocado por esse equipamento. Há casos relatados, também, de rachaduras em paredes tanto do dono do equipamento quanto de seu vizinho. A instalação de espaços destinados ao desenvolvimento de atividades fabris em locais inadequados chegou a tal ponto que, recentemente, o sindicado dos trabalhadores recebeu denúncia de uma moradora da cidade pedindo providências, pois, seu vizinho que mora no andar de cima de um apartamento do CDHU instalou no 37 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 nas adaptou suas antigas máquinas de costura de forma que seus empregados trabalhassem em pé. 1 0 E.C., 51 anos, pespontador, declarou: “[...] Hoje na fábrica é só máquina em pé. Tiraram todas as máquinas que a gente trabalhava sentado”.11 O trabalho em pé também foi estendido aos auxiliares de pesponto, que realizam os “trabalhos de mesa”, ou seja, a preparação das peças que comporão o cabedal que, posteriormente receberão a costura. E continuou: “[...] As meninas que ajudam que faz os serviços de mesa é tudo em pé também”.11 Em entrevistas realizadas com trabalhadores daquela indústria, verificou-se que a adoção desse novo “modelo” de trabalho não foi precedido de qualquer consulta prévia aos trabalhadores. É interessante notar que os depoimentos dos trabalhadores são coincidentes quando afirmam que não ocorreu um aumento na produtividade média e que a modificação efetuada trouxe somente sofrimento aos que ali trabalham. T.D., 49 anos, pespontador, comenta: “[...] A máquina está colocada numa coluna para a gente trabalhar em pé. Embaixo tem uma espécie de um pedal alto com um pedalzinho no meio. Então o peso do corpo fica só numa perna e a outra a fica no pedal funcionando a máquina, controlando a máquina. Cansa dos dois jeitos, tanto a perna que fica para apoiar o corpo, como a outra que você usa no pedal... Você fica moído o dia inteiro, de baixo acima.1 1 E.C., 51 anos, pespontador, completa: “[...] Eles falam [a chefia] que é pra gente trabalhar em pé que fica melhor para a coluna, mas eu acho que a coluna está piorando mais ainda, porque esforça mais trabalhar com uma perna só, o dia inteiro. O peso do corpo fica todinho em cima de uma perna só. Vamos supor, o cortador também trabalha em pé, mas eles ficam apoiados nas duas pernas, e eles têm mais movimento. Nós não, a gente se apóia em uma só perna o dia inteiro, e tem que ficar parado no mesmo lugar, aí não tem quem suporta. Tem um monte de amigo meu que saiu por causa disso daí, porque não estavam suportando essa vida. [...]”.1 1 E ainda segundo seus relatos, quanto à má adaptação do maquinário, fez com que uma parcela dos trabalhadores fosse ainda mais punida: “[...] A máquina tem a regulagem. Mas eu tenho um amigo que tem uma altura mais avançada. Ele não tá tendo como trabalhar. Ele me disse hoje que se mandassem ele embora para ele era a salvação. Porque ele não está tendo como trabalhar naquelas máquinas não. Igual eu que sou baixinho ... dá regulagem, igual você que tem uma altura média [1,60 m] também dá regulagem, mas os mais altos trabalham embodocados [com o tronco curvado]. Aí nesse caso é pior que trabalhar sentado, muito pior”.1 1 P.M., 36 anos, pespontadeira, declarou: “Logo que eles colocaram estas máquinas em pé eu comecei a sentir dor. Eu não agüentava mais de dor nas pernas. Quando chegava em casa eu só queria cama. Então primeiro eu procurei o ambulatório da fábrica e o médico falou que era circulação. Aí eu fui no médico de circulação, não era. A dor vinha dos quadris e corria pras pernas aí ela [a médica] falou que era rins. Fiz exame e não deu nada. Aí ela falou: vou te encaminhar para o ortopedista. Aí eu fui, tirei chapa, eu não tenho nada na coluna, mas o nervo está inflamado. Inflamou o nervo ciático. Fiquei afastada quinze dias tomando remédios e voltei mesmo sem ter sarado, porque se eu ficasse afastada mais que quinze dias eu ia pro INSS, aí só Deus sabe quando eu ia receber meu salário”.1 1 Os depoimentos desses trabalhadores, com apenas uma única questão que afeta seu cotidiano, trazem à luz elementos que elucidam a forma como o empresariado local trata a questão da saúde relacionada ao trabalho nesse ramo industrial. É inegável que qualquer trabalho realizado em pé, em uma mesma postura, durante toda a jornada, trará problemas de saúde. No caso dos pespontadores dessa indústria, existe o agravante do trabalhador ter de ficar durante horas em uma mesma posição com o peso do corpo distribuído em apenas uma das pernas, pois a outra deve ficar livre para acionar os mecanismos que ativam a máquina. Minayo-Gomez e Thedim-Costa (1997:24) em uma análise do trabalho realizado em condições inadequadas afirmam que “[...] a evidência dos efeitos do trabalho em condições adversas é de tal ordem que extrapola os limites do conhecimento legitimado como científico e ganha espaço no âmbito do senso comum. É uma relação dada e inquestionável. Faz parte da vivência de trabalhadores, vítimas de doenças e acidentes, mesmo quando não obtêm êxito em comprovar sua origem na atividade exercida. Reconhecem-na suas famílias, onde tais situações repercutem, em alguns casos, de forma drástica, e os compa- 38 O T RABALHO E A S AÚDE DO T RABALHADOR NA INDÚSTRIA... nheiros que com eles compartilham esse quadro de desrespeito e omissão [...]”. O depoimento de P.M. traduz, de forma simples, o exposto: “Tem uma pespontadeira lá que trabalhava do meu lado. Durante todo o tempo do teste [período de experiência] ela trabalhou rezando. Ela me falou que não agüentava de dor nas pernas, mas ela precisava do emprego. Então tinha que se apegar na oração para não lembrar da dor”.1 1 Um outro aspecto importante, revelado pela trabalhadora, é o da dificuldade de diagnóstico e o não-estabelecimento, pelo médico do ambulatório da empresa, do nexo causal existente entre a queixa relatada pelo trabalhador e o trabalho realizado por ele. À ineficiência do atendimento médico oferecido pelo empresariado superpõemse às deficiências dos serviços prestados pela previdência social que, por não apresentarem um viés investigativo, com certeza deixarão sem causa e, por conseguinte, sem punição a dor e o sofrimento dos trabalhadores que, de uma forma ou de outra, pagam por esses serviços. Essa “simples” mudança no processo produtivo implantada na indústria francana foi drástica o suficiente para que um número crescente de trabalhadores tenha pedido sua demissão em uma época de crise de emprego, por serem incapazes de suportar as dores provocadas pela jornada de trabalho. E.C., 51 anos, em seu depoimento, disse: “[...] Depois que eles instalaram [as máquinas de pespontar em pé], saiu muita gente. Teve mulher que pediu demissão: não conseguia mais ficar lá em pé. E isto tanto faz pessoa de idade quanto pessoa mais nova. Ficou pesado pra todo mundo. Eu tenho uma amiga minha que estes dias mesmo ela ficou afastada por causa disto”. 1 1 Alguns depoimentos faz supor, entretanto, que os pedidos de demissão sejam acompanhados de pressão, por parte de gerentes ou seus prepostos, sobre os que ousaram reclamar das desumanas condições de trabalho. Veja o que disse A.E., 35 anos, pespontadeira: “[...] teve gente que saiu. Um colega meu pediu para ser mandado embora porque ele não se adaptou em ficar [trabalhar] em pé, ele estava sentindo muitas dores nas pernas então preferiu sair. Ele foi falar para eles [para a gerência] que não agüentava trabalhar em pé e eles falaram: ‘a norma da empresa é essa aí, se você não se adapta tem que ser mandado embora’. Aí ele mandou embora. Agora ele está trabalhando sentado, em casa. Ele e a mulher dele”.1 1 Ocorrem casos também de punições aplicadas em trabalhadores que “ousam” buscar tratamento médico e afastamentos para cuidar da saúde, conforme continuou A.E. em seu relato: “[...] E ainda tem aquele negócio... Se você fica afastado aí, no outro dia que você volta você vai ter que ir lá na sala – a gente fala: vai lá na salinha [onde fica o gerente]. Você tem que ir falar porque foi ao médico, porque ficou afastado. Você tem que ir lá para dar explicação para ele [o gerente]. Então, além de você ter que ir ao médico, você tem que escutar, leva pito! Eu acho que eles fazem isto pra pessoa não ir ao médico, pra ficar com medo: Ah! Se eu for ao médico depois vou ter que ir à salinha [...]”.1 1 É marcante o contraste entre a diversificação das formas de superexploração e dilapidação da força de trabalho e o discurso da empresa sobre o processo de reestruturação produtiva por ela implantada, que pressupunha o envolvimento participativo de seus funcionários: “Estamos tratando a área humana com o mesmo carinho com que se lapida um diamante” (Samello, 1990). CONSIDERAÇÕES FINAIS O debate hoje acerca da saúde do trabalhador remete ao quadro das transformações que estão em curso no mundo do trabalho, o que possibilita compreender como estão configurando as novas formas de intensificação da exploração da força de trabalho, que é uma das principais características do novo padrão de acumulação do capital. Sua objetivação tem-se dado, quer por meio da adoção de novas tecnologias, da utilização de novas formas de organização da produção e do trabalho ou de mudanças nas próprias relações de trabalho que implicam contratos precários, na subcontratação, no trabalho em domicílio, no aumento desmedido da jornada de trabalho e, até mesmo, na exploração criminosa do trabalho infantil. Gerando um quadro de violência no trabalho, que “[...] em nossa sociedade vem assumindo contornos epidêmicos [...]” (Navarro et al., 2001), como bem demonstra a realidade dos trabalhadores da indústria de calçados de Franca, objeto de minhas pesquisas. O enfrentamento dessa questão não pode ser pensado apenas no plano da fiscalização dos ambientes de trabalho, de políticas voltadas para a saúde do trabalhador, ainda 39 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 como o corte, o pesponto, etc. A grande parte dessas oficinas de trabalho são instaladas em locais improvisados e/ou adaptados da moradia do trabalhador, como uma garagem, alpendre, quintal ou varanda da casa ou ainda em salas e galpões alugados. É comum tanto às pequenas “bancas” montadas nas moradias, como às maiores, que possuem prédio próprio, a precariedade do ambiente de trabalho, que pode ser auferida pela pouca iluminação, pela falta de ventilação, pelo não uso de equipamentos de segurança, pela exposição a solventes e pelo ruído ensurdecedor provocado pelas máquinas. que não se possa prescindir delas, e há muito ainda a ser feito nessas instâncias que pode contribuir para a melhoria dos ambientes de trabalho e saúde dos trabalhadores. Devese salientar que, de maneira mais ampla, o tratamento das questões que envolvem os destinos da classe trabalhadora não pode se dar sem que, tanto na teoria quanto na prática social, se reafirme a centralidade do trabalho. Antunes (1999:204-205), contrapondo-se aos que afirmam o fim da centralidade do trabalho, afirma que “[...] o que se vê [hoje] não é o fim do trabalho e sim a retomada de níveis explosivos de exploração do trabalho, de intensificação do tempo e do ritmo de trabalho [...] e é exatamente isso que vem ocorrendo em praticamente todas as partes: uma maior intensidade, uma maior exploração de força humana que trabalha”. Ainda segundo Antunes (1999:244), o grande desafio hoje é “[...] olhar para uma sociedade que vá além do capital, mas que tem que dar respostas imediatas para a barbárie que assola a vida cotidiana do ser social que trabalha”. Toda essa complexidade deve ser compreendida para que se possa evidenciar, cada vez mais, o vínculo entre a saúde e o trabalho nesse momento de substanciais mutações no mundo do trabalho para, valendo-se dessa compreensão, possa-se reafirmar o compromisso com uma sociedade na qual os homens sejam tratados como homens, como seres humanos que são. 4. Informação obtida no site “Fiesp/Ciesp on line”. A mesma fonte ainda informa que em Franca existem “360 fabricantes de calçados, 70% micro e pequenos; 20% de médio porte; e 10% correspondem a empresas de grande porte [...]. Juntam-se a esse universo cerca de 200 fornecedores de insumos especializados; 20 fabricantes de equipamentos; oito agentes exportadores; e 2000 prestadores de serviços”. Disponível em: <www.fiesp.org.br>. Acesso em: 17 set. 2002. 5. “O setor calçadista é um ramo industrial relativamente resistente à mudança. Os empresários, de modo geral, assumem postura conservadora que os faz hesitar e postergar a implementação de alterações significativas em suas fábricas” (Costa, 1995:96). 6. Entrevista concedida em 27/04/2001. 7. “Como freqüentemente as doenças originadas no trabalho são percebidas em estágios avançados até porque muitas delas, em suas fases iniciais, apresentam sintomas comuns a outras patologias, torna-se difícil, sob essa ótica, identificar os processos que as geraram, bem mais amplos que a mera exposição a um agente exclusivo. A rotatividade da mão-de-obra, sobretudo quando se intensifica a terceirização, representa um obstáculo a mais nesse sentido” (Minayo-Gomez; ThedimCosta, 1997). 8. Os balancins de corte são equipamentos hidráulicos pesados que necessitam, para seu correto funcionamento, de instalações adequadas, como contrapisos de concreto reforçado, que são caras para um trabalhador terceirizado. 9. De acordo com depoimentos de técnicos do Ministério do Trabalho reunidos em 18/09/2002, em Birigui (SP) – principal pólo produtor de calçados infantis do país –, para discutir questões referentes à saúde dos trabalhadores com as entidades sindicais e empresários das indústrias de calçados, tal prática é recente nos pólos calçadistas do Estado de São Paulo. Nessa reunião, Paulo Antonio Barros Oliveira, coordenador do setor de ergonomia do Ministério do Trabalho, afirmou que trabalho em pé no pesponto e nos trabalhos de mesa tiveram início a cerca de cinco anos nas indústrias de calçados do pólo calçadista do Rio Grande do Sul, onde a prática é bastante disseminada. Em Birigui, a prática de manter os funcionários trabalhando em pé data de 1999 e se originou na visita de empresários locais a indústrias de calçados instaladas no Rio Grande do Sul, de onde “importaram” a idéia: “[...] de um dia para o outro [os trabalhadores] foram surpreendidos com a retirada de seus assentos dos postos de trabalho e, ao adentrarem às fábricas, verificaram que as mesas nas quais executavam suas atividades haviam sido erguidas e que, daquele momento em diante, teriam que realizar suas funções em pé.” (Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Calçados de Birigui, s.d.p., mimeo.). Ainda segundo os técnicos do Ministério do Trabalho, a prática de obrigar os trabalhadores da seção de pesponto e dos trabalhos de mesa a exercerem suas atividades em pé, está também disseminada nas indústrias calçadistas instaladas no nordeste do país. NOTAS 1. Franca, localizada na região nordeste do Estado de São Paulo, dista aproximadamente 400 km da capital do Estado e é o maior pólo produtor e exportador de calçados masculinos de couro do Brasil. Este segmento industrial consolidou-se em Franca na década de 70 quando à demanda crescente do mercado interno, estimulada pelo processo de industrialização e urbanização vivido no país, somou-se a expansão da produção destinada à exportação. 2. O elevado número de acidentes e doenças provocados pelo trabalho no país é a prova mais emblemática desse fato. “O número de acidentes de trabalho declarados por trabalhadores segurados da Previdência Social situa-se hoje, no Brasil, entre 400 e 500 mil ao ano. Aproximadamente 15 pessoas em cada 1.000 segurados sofrem acidentes no exercício de suas atividades laborais anuais. É uma proporção enorme. Um tributo muito forte pesa sobre os corpos dos trabalhadores. Não se trata apenas do cansaço cotidiano, resultante da atividade física. É a laceração da carne, o ofuscar das mentes e a perturbação dos espíritos de homens e mulheres que são pagos como tributo pela sobrevivência” (Dal Rosso et. al., 2001:95). 10. Essas informações foram prestadas pelo Sindicato dos Sapateiros que vem recebendo constantes denúncias de trabalhadores. Essas denúncias são coincidentes com os depoimentos de trabalhadores dessa empresa por mim entrevistados. O trabalho em pé, na forma como proposto pelas empresas calçadistas francanas, fere a norma regulamentadora NR 17 – Ergonomia (117.0007) do Ministério do Trabalho e do Emprego que afirma, textualmente, em seu item 17.3.1. “Sempre que o trabalho puder ser executado na posição sentada, o posto de trabalho deve ser planejado ou adaptado para esta posição (117.006-6 / I1).” 3. As bancas são unidades produtivas (oficinas de trabalho) que prestam serviços à indústria. No que se refere ao seu porte, há as que contam com apenas dois ou três trabalhadores de uma mesma família, as de porte médio que empregam cerca de 15 ou 20 trabalhadores e as grandes bancas, que podem recrutar uma centena de trabalhadores. De forma geral, as bancas são especializadas em realizar determinadas tarefas que fazem parte do núcleo principal da confecção do calçado, 40 O T RABALHO E A S AÚDE DO T RABALHADOR NA INDÚSTRIA... IANNI, O. Origens agrárias do Estado brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1984. 11. Entrevista concedida pelo funcionário da Calçados Samello em 16/09/2002. MARX, K. O capital. São Paulo: Ciências Humanas, 1978, livro I, cap.VI (inédito). MINAYO-GOMEZ, C.; THEDIM-COSTA, S.M.da F. A construção do campo da saúde do trabalhador: percurso e dilemas. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.13 (supl. 2), p.21-32, 1997. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVES, G. 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Palavras-chave: acidentes do trabalho; mortalidade; população trabalhadora; fontes de dados. Abstract: This article proposes the linkage of two sources of administrative records with the purpose of creating an alternative methodology for a more broadly based data bank on fatal work-related accidents. Key words: work-related accidents; mortality; workforce; data sources. E mbora a conseqüência mais grave dos acidentes do trabalho seja a morte do trabalhador, nem todos os casos fatais chegam ao conhecimento das autoridades competentes. Isso ocorre ou pela falta de tradição dos profissionais da saúde em notificar as ocorrências associadas às atividades laborais, ou pela omissão das empresas em notificar esses eventos, apesar de serem de notificação obrigatória. Assim, a grande dificuldade nos estudos relativos à mortalidade por acidentes do trabalho é a inexistência de uma base de dados completa e detalhada sobre os casos fatais. O objetivo deste trabalho é analisar os casos fatais de acidentes do trabalho ocorridos no Estado de São Paulo, entre 1997 e 1999, por meio de uma caracterização demográfica e epidemiológica dos diferentes perfis da população trabalhadora acidentada, conforme a condição de ser ou não coberta pelo Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS). Os dados ora apresentados são resultado de uma parceria, realizada em 2000, entre a Fundação Seade e a Fundacentro, para estudar a mortalidade por acidentes do trabalho no Estado de São Paulo. Este projeto identificou e quantificou os casos fatais com base na vinculação de duas fontes de registros administrativos – Declaração de Óbito e Processo de Acidente do Trabalho – que contêm informações sobre os acidentes do trabalho, procurando reduzir a subnotificação desses eventos. A legislação brasileira considera acidente do trabalho os eventos ocorridos pelo exercício do trabalho, que causem lesão corporal ou perturbação funcional, morte e perda ou redução da capacidade para o trabalho. Também são identificados como acidentes do trabalho as doenças profissionais, os acidentes vinculados ao trabalho, embora este não seja a única causa, os acidentes ocorridos no local do trabalho decorrentes de atos intencionais ou não de terceiros ou de companheiros do trabalho, os casos fortuitos ou decorrentes de força maior, as doenças provenientes de contaminação acidental no exercício da atividade, os acidentes ocorridos no percurso residência/local de trabalho/residência e nos horários das refeições (Lei Acidentária no 8.213, de 1991). A legislação acidentária adota a seguinte classificação para os acidentes do trabalho: acidente-tipo – é aquele que ocorre a serviço da empresa; acidente de trajeto – é aquele que ocorre no momento em que o trabalhador desloca-se para o local de trabalho e nos horários das refei- 42 A P OPULAÇÃO T RABALHADORA P AULISTA E OS ACIDENTES DO... ções; doença do trabalho – é aquela em que a atividade exercida atua na produção da incapacidade, da doença ou da morte. Neste artigo, foram contemplados os acidentes do trabalho tipo e de trajeto. As doenças do trabalho recebem outro tratamento para serem identificadas não tendo sido levantadas no referido projeto e não fazendo parte do contexto da presente análise. dor estava ou não a serviço da empresa no momento do acidente. Outro fator limitante na Declaração de Óbito diz respeito às regras de codificação do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, que considera o homicídio um tipo de violência incompatível com acidente do trabalho, embora na legislação acidentária essa causa de morte seja identificada como tal. Esse fato aumenta, ainda mais, a subnumeração dos casos fatais de acidentes do trabalho. A partir do processamento dos eventos de 2003 e com base no trabalho de Waldvogel (1999a), o Ministério da Saúde modificou as regras de codificação, passando a aceitar o homicídio como acidente do trabalho. Já o processo de acidente do trabalho é aberto e liquidado pelo INSS mediante o encaminhamento, feito pelos dependentes do segurado, da documentação relativa à ocorrência de uma morte por acidente do trabalho. Valendo-se da Comunicação de Acidente do Trabalho (CAT), expedida pelo INSS e preenchida pela empresa, são abertos processos tanto para os casos fatais como para aqueles em que se constate a necessidade de indenização judicial. Essa fonte contém informações pessoais do acidentado e sobre as circunstâncias do acidente, como local da ocorrência, se o acidentado estava ou não a serviço da empresa, data e horário do acidente, etc. Existem também dados sobre a empresa onde o trabalhador exercia sua atividade, o que permite caracterizar o risco de morte associado ao tipo de empresa, utilizando-se, para esse fim, os códigos da Classificação Nacional de Atividade Econômica (CNAE). Entretanto, os dados dos processos de acidentes do trabalho referem-se apenas à parcela da força de trabalho contribuinte do INSS, ficando excluídos os funcionários públicos, os trabalhadores contribuintes cujos dependentes desconhecem se a morte foi devida a um acidente do trabalho e, principalmente, os do setor informal, que, como ressalta Wünch Filho (1995), “ainda constituem uma população à margem das estatísticas oficiais, embora representem hoje praticamente a metade da força de trabalho ocupada no país”. O sistema de informação do INSS objetiva, sobretudo, o processamento dos benefícios aos acidentados, aos dependentes e àqueles acometidos por doenças do trabalho. Sua utilização para as análises da mortalidade é limitada, pois apresenta tão-somente os totais dos casos fatais de acidentes do trabalho, sem caracterização desses eventos. Isso faz com que a construção de um banco de dados detalhados sobre os casos fatais só seja A QUESTÃO DAS FONTES DE DADOS As duas principais fontes para este estudo são a Declaração de Óbito e o Processo de Acidente do Trabalho. As vantagens e as desvantagens dessas fontes de registros administrativos, nos estudos da mortalidade por acidentes do trabalho, já foram analisadas por Waldvogel (1999a) e agora são apresentadas resumidamente a seguir. A Declaração de Óbito – instrumento formal para registrar todas as mortes ocorridas no Brasil – é um documento expedido pelo Ministério da Saúde e segue o mesmo padrão para todo o território nacional. E com essa declaração assinada por um médico, que atesta a causa da morte, o óbito é registrado em cartório. No Estado de São Paulo, os cartórios de registro civil de cada município enviam mensalmente uma cópia das declarações de óbito à Fundação Seade, que processa e organiza essa informação em seu sistema de estatísticas vitais. Uma das principais vantagens da Declaração de Óbito, como fonte de dados para os estudos da mortalidade por acidentes do trabalho, consiste na diversidade de informações sobre o trabalhador falecido, como sexo, idade, estado civil, ocupação, município de residência e outras. Este documento contém informações sobre o tipo de causa externa de morte, além de um campo específico para notificar se o óbito ocorreu ou não em razão de um acidente do trabalho, ou se este fato é ignorado. Outra vantagem é que abrange todos os trabalhadores, independentemente de seu vínculo empregatício ser formal ou informal, ou de sua condição de contribuinte ou não do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS). Quanto às desvantagens da utilização da Declaração de Óbito como fonte de dados para esses estudos, a principal consiste no inadequado preenchimento do campo que indica se a morte resultou de um acidente do trabalho, o que interfere na identificação e na quantificação dos casos fatais desse tipo de acidente. Além disso, não há registro de informações mais específicas sobre o acidente do trabalho, como local, agente causador e se o trabalha- 43 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 possível por intermédio de levantamento específico nas agências e nos postos do INSS espalhados pelo território nacional, realizando uma análise exploratória das informações adicionais que compõem cada processo de acidente do trabalho. A segunda fase de aplicação da técnica de vinculação entre fontes de dados consiste no levantamento, realizado no acervo da Fundação Seade, das declarações de óbito em que foi notificado o acidente do trabalho. A seguir, localizam-se tais casos nos processos de acidentes do trabalho coletados no INSS, formando-se assim novos pares. Os casos fatais, que apesar de apresentarem declarações de óbito relativas a um acidente do trabalho devidamente notificado, não corresponderem a um processo no INSS, referem-se, de modo geral, à população trabalhadora não coberta pelo INSS, àqueles trabalhadores contribuintes que não têm dependentes aptos a requererem benefício nesse órgão, ou àqueles cujos dependentes residam fora do Estado de São Paulo. Após a vinculação das duas fontes, são realizados os trabalhos de codificação, digitação e processamento das informações, gerando-se um banco de dados. A construção desse banco permite estimar o grau de cobertura tanto das declarações de óbito quanto do sistema do INSS. O banco de dados de casos fatais de acidentes do trabalho mais completo aumenta as perspectivas de análise de diversos aspectos da questão acidentária. METODOLOGIA DE CONSTRUÇÃO DO BANCO DE DADOS Procurando aproveitar a riqueza de informações sobre os casos fatais de acidentes do trabalho contidas nas duas fontes de registro administrativo – Declaração de Óbito e Processo de Acidente do Trabalho – e buscando superar as limitações específicas de cada uma delas, propôs-se a metodologia de vinculação de fontes de dados para identificar e quantificar os casos fatais de acidentes do trabalho ocorridos no Estado de São Paulo, entre 1997 e 1999. Esse tema e a metodologia adotada já haviam sido desenvolvidos e testados em um projeto realizado pela Fundacentro e Fundação Seade, em 1994, e no estudo detalhado de Waldvogel (1999a). Foram novamente aplicadas na parceria firmada no ano 2000, pelas duas Instituições aqui mencionadas. A técnica de vinculação de fontes de dados pressupõe a existência de informações individualizadas e uma busca ativa de todos os casos fatais existentes em cada fonte, formando pares com os casos coincidentes. Esse procedimento procura maximizar a utilização de registros administrativos já existentes, permitindo compatibilizar as informações disponíveis em cada fonte, enriquecendo o detalhamento dos dados coletados e ampliando o universo de casos fatais. Torna possível também identificar os casos que, embora tenham sido notificados pelo médico como acidentes do trabalho na declaração de óbito, não resultam em um processo aberto no INSS, o que possibilita detectar os acidentes fatais relativos aos trabalhadores não cobertos pelo INSS. Na primeira etapa de desenvolvimento dessa técnica, foi realizado levantamento dos casos fatais nos autos dos processos liquidados de acidentes do trabalho, por intermédio de um rastreamento em todos os processos de acidentes do trabalho existentes nas agências do INSS dos municípios paulistas. Com base nesses casos, localizaramse as respectivas declarações de óbito no acervo de documentos demográficos existentes na Fundação Seade. Os pares resultantes desse levantamento correspondem à população trabalhadora coberta pelo INSS. QUANTIFICAÇÃO DOS CASOS FATAIS A pesquisa realizada nos processos de acidentes do trabalho do INSS e nas declarações de óbito do acervo da Fundação Seade identificou 1.999 casos fatais na primeira fonte e 2.177 casos na segunda. Apesar da forte semelhança quanto à capacidade de quantificação das duas fontes de registros administrativos, existe sensível diferença na população trabalhadora revelada com base em cada uma delas. A distribuição da população acidentada, por sexo, é idêntica para as duas fontes de registros: população masculina acidentada responde por 95,6% nos registros do INSS e 95,5% nas declarações de óbito. Quanto à distribuição etária, observam-se maiores diferenças entre os casos fatais correspondentes a cada fonte de registro de acidentes do trabalho. No Gráfico 1 é possível observar que a população acidentada correspondente aos casos fatais do INSS apresenta um pico nas idades entre 30 e 39 anos, enquanto a população revelada pelos dados da declaração de óbito é mais jovem, com o pico entre 20 e 34 anos, também apresentando uma participação do contingente de acidentados com mais de 55 anos superior ao da primeira fonte de registros. 44 A P OPULAÇÃO T RABALHADORA P AULISTA E OS ACIDENTES DO... GRÁFICO 1 Distribuição dos Trabalhadores Envolvidos em Acidentes do Trabalho Fatais, segundo Fontes de Dados Considerados Estado de São Paulo – 1997/1999 Fonte: Fundação Seade; INSS; Fundacentro/MTE. Outra variável interessante para descrever as diferenças demográficas detectadas pelas fontes de registros administrativos é o estado civil. Enquanto a população acidentada relativa aos dados do INSS apresenta maior participação dos casados, 61,5% contra 28,4% de solteiros, a composição da população acidentada com base nos dados das declarações de óbito é: 51,9% casada e 36,7% solteira. Os primeiros resultados, baseados na análise isolada das duas fontes de registros administrativos, indicam importantes diferenças nos perfis da população acidentada no Estado de São Paulo. Essa constatação realça a necessidade de se realizar uma análise conjunta das duas fontes consideradas, aplicando-se a metodologia de vinculação de fontes de dados, que permite maximizar as informações contidas em cada uma delas e reduzir a subnotificação dos casos fatais de acidentes do trabalho. Aplicando-se a metodologia de vinculação de registros administrativos aos dados levantados na pesquisa realizada nos processos de acidentes do trabalho do INSS e nas declarações de óbito da Fundação Seade, identificaram-se 3.646 casos fatais de acidentes do trabalho, no Estado de São Paulo, indicando que, entre 1997 e 1999, ocorreram, em média, 3,3 mortes associadas ao trabalho a cada dia. O banco de dados construído é formado, então, pela união dos 1.999 casos fatais de acidentes do trabalho le- vantados no INSS e dos 2.177 casos originados das Declarações de Óbito existentes na Fundação Seade. Considerando-se que apenas parte desses acidentes é comum às duas fontes de registros administrativos, o banco resultante ficou composto de 3.646 casos fatais de acidentes do trabalho ocorridos com trabalhadores residentes no Estado de São Paulo. O primeiro resultado da metodologia de vinculação é a estimativa do grau de cobertura dos acidentes do trabalho fatais, em cada uma das fontes. Para as declarações de óbito, esse grau foi maior (59,7%) do que para os processos do INSS (54,8%). Pode-se concluir, tendo por base o grau de cobertura estimado, que as duas fontes de dados existentes apresentaram-se insatisfatórias e insuficientes para identificar e dimensionar adequadamente os acidentes do trabalho fatais, quando utilizadas de forma isolada. O estudo conjunto amplia o universo de casos fatais e permite análise mais abrangente da questão acidentária. Vale dizer que o total de casos fatais identificados no INSS corresponde a um universo distinto do apresentado nos Anuários Estatísticos da Previdência Social. Nessas estatísticas, o volume de óbitos por acidentes do trabalho refere-se aos casos comunicados e liquidados pelo INSS em determinado ano. O processo é considerado liquidado quando sua avaliação encerra-se administrativa e tecnicamente no INSS, e definido um nexo causal entre o aciden- 45 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 te e o trabalho. Outro fator de diferenciação decorre do fato de o volume apresentado nos Anuários referir-se ao total de benefícios gerados pelos acidentes do trabalho, e pode ocorrer que um único caso gere mais do que um benefício. Além disso, o município/Estado adotado é o de entrada do processo e não o da ocorrência do acidente ou da residência do segurado. De acordo com o Anuário Estatístico da Previdência Social de 1999, foram liquidados, no Estado de São Paulo, 2.935 casos de acidentes do trabalho fatais entre 1997 e 1999. Comparando-se com os dados da pesquisa realizada em 2000, em parceria entre a Fundação Seade e a Fundacentro, verifica-se que o total desse levantamento representa 68,1% do publicado no referido Anuário. Esse percentual é semelhante ao estimado por Gawryszewski et al. (1998), em seu estudo sobre os acidentes do trabalho fatais no Estado de São Paulo, em 1995. Analisando a distribuição dos óbitos, conforme o ano de ocorrência do acidente, os autores detectaram que apenas 66,8% dos casos ocorreram e foram liquidados em 1995. Os autores ressaltam que os problemas verificados no banco de dados construído pela Previdência Social comprometem o conteúdo e sua utilização para as análises epidemiológicas e de segurança do trabalho. dos com as respectivas declarações de óbito. Nesses casos, algum dependente do segurado abriu um processo de acidente do trabalho no INSS para a concessão de benefícios. O segundo subconjunto de dados refere-se às ocorrências de morte que, apesar de apresentarem declarações de óbito correspondentes a causas externas e a acidentes do trabalho notificados, não estão incluídas nos processos do INSS. De modo geral, são eventos de trabalhadores não contribuintes do INSS, de funcionários públicos, de trabalhadores contribuintes sem dependentes aptos para requererem o benefício, ou com dependentes aptos mas residentes em outro Estado brasileiro, podendo o benefício ter sido solicitado em agências localizadas fora do território paulista. O esquema a seguir resume a composição do banco de dados de acidentes do trabalho fatais, construído com base nos levantamentos realizados nos processos de acidentes do trabalho do INSS e nas declarações de óbitos processadas na Fundação Seade. 1.999 casos no primeiro subconjunto sendo: • 530 notificados nas Declarações de Óbitos • 1.469 não notificados nas Declarações de Óbitos. 3.646 casos 1.647 casos no segundo subconjunto, sendo todos os acidentes do trabalho notificados nas Declarações de Óbitos. COMPOSIÇÃO DO BANCO DE DADOS O segundo resultado da metodologia de vinculação de fontes de dados corresponde à possibilidade de identificar duas parcelas da população trabalhadora acidentada que compõem o banco de dados: o segmento coberto e o não coberto pelo INSS. O Quadro 1 descreve a composição do banco de dados de casos fatais de acidentes do trabalho, que pode ser aberto em dois subconjuntos. O primeiro subconjunto corresponde às mortes identificadas com os processos liquidados de acidentes do trabalho existentes nas agências do INSS, confronta- Na elaboração do primeiro subconjunto de dados foram localizadas, no acervo de documentos demográficos administrado pela Fundação Seade, as declarações de óbito correspondentes aos casos identificados no INSS. Nesse subconjunto, apenas 26,5% das declarações estavam devidamente notificadas. Esta reduzida proporção é indi cativo do desconhecimento, por parte do médico que atesta o óbito, da relação entre causa de morte e atividade profissional desenvolvida pelo acidentado ou, o que é mais grave, da omissão deliberada desse fato. QUADRO 1 Composição do Banco de Dados de Casos Fatais de Acidentes do Trabalho Indicadores Primeiro Subconjunto Segundo Subconjunto Registro Administrativo Processo de Acidente do Trabalho com Declaração de Óbito Declaração de Óbito sem Processo de Acidente do Trabalho População Coberta Contribuinte do INSS Não Contribuinte do INSS Abrangência Geográfica Municípios de São Paulo Municípios de São Paulo 46 A P OPULAÇÃO T RABALHADORA P AULISTA E OS ACIDENTES DO... PERFIL DEMOGRÁFICO DOS TRABALHADORES ACIDENTADOS No que se refere à idade do acidentado, verifica-se que os trabalhadores não cobertos pelo INSS, envolvidos em casos fatais, são mais jovens do que a parcela de trabalhadores coberta pelo INSS, com uma diferença de três anos na idade mediana e um ano na idade média, e essas diferenças são estatisticamente significantes (Tabela 2). As mortes por acidentes do trabalho atingem majoritariamente os homens, que respondem por 95,3% do total de casos. Foram identificados 3.476 casos fatais para a população masculina e 170 para a feminina, com uma razão de sexo resultante de 20,4 homens para cada mulher. Para as duas parcelas da população trabalhadora acidentada, a razão entre os sexos é menor para a não coberta (18,8h/m) do que para a coberta pelo INSS (22,0h/m), indicando maior participação de casos femininos na população não coberta. Quanto ao estado civil, aproximadamente 56% da população trabalhadora acidentada correspondente a casados e 33,6% a solteiros. Vale dizer que tal distribuição é semelhante à da população total, o que sugere não haver um risco diferencial de acidentes fatais para os trabalhadores segundo o estado civil. Contudo, observa-se um diferencial importante nas duas parcelas da população acidentada, segundo o estado civil. No segmento coberto pelo INSS, os trabalhadores casados têm uma participação 2,2 vezes maior do que os solteiros, enquanto na população não coberta, ambas participações estão mais próximas. Esse fato sugere maior parcela de solteiros na composição da população trabalhadora não coberta pelo INSS, como informam os dados da Tabela 1. TABELA 1 Estado Civil dos Trabalhadores Envolvidos em Acidentes do Trabalho Fatais, segundo Parcelas da População Estado de São Paulo – 1997/1999 Em porcentagem Parcelas da População Casados Solteiros População Total Coberta pelo INSS Não Coberta pelo INSS 55,7 61,7 48,4 33,6 28,4 39,9 Fonte: Fundação Seade; INSS; Fundacentro/MTE. TABELA 2 Idade dos Trabalhadores Envolvidos em Acidentes do Trabalho Fatais, segundo Parcelas da População Estado de São Paulo – 1997/1999 Parcelas da População Coberta pelo INSS Não Coberta pelo INSS Idade (em Anos) Média Mediana 36 35 34,5 31,4 Fonte: Fundação SEADE; INSS; Fundacentro/MTE. GRÁFICO 2 Distribuiçao dos Trabalhadores Envolvidos em Acidentes do Trabalho Fatais, segundo Parcelas da População Estado de São Paulo – 1997/1999 Fonte: Fundação Seade; INSS; Fundacentro/MTE. 47 Número de Casos <15 Anos >=70 Anos 0 9 2 24 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 Outro dado que distingue as duas parcelas da população trabalhadora acidentada é que, para a parcela não coberta pelo INSS, aparecem mais casos fatais nas idades extremas: nove casos para menores de 15 anos e 24 para os maiores de 70 anos. O Gráfico 2 demonstra as diferenças observadas nas duas parcelas populacionais, indicando o grupo etário entre 30 e 40 anos como o de maior concentração de casos, na parcela coberta pelo INSS, e o de 20 a 30 anos, para a parcela não coberta. A variável referente à ocupação do trabalhador é bastante importante para avaliar as atividades com maior risco de ocorrência de um acidente do trabalho fatal. A dis- tribuição dos grupos ocupacionais segundo as duas parcelas da população trabalhadora (coberta e não coberta pelo INSS) também é distinta, como exibem a Tabela 3 e o Gráfico 3. Considerando-se o total de mortes por acidentes do trabalho, o grupo de ocupações vinculadas às atividades de serviço e comércio ocupou a primeira posição e mantémse assim quando se analisam as duas parcelas de trabalhadores separadamente, correspondendo a 32,7% dos casos fatais no Estado de São Paulo, entre 1997 e 1999. Na seqüência, vêm os grupos de transporte e comunicação (21,1%), indústria (19,0%), construção civil (10,5%) e agricultura (6,9%). TABELA 3 Distribuição dos Trabalhadores Envolvidos em Acidentes do Trabalho Fatais, segundo Grupos Ocupacionais Estado de São Paulo – 1977/1999 1 o Subconjunto Grupos Ocupacionais Casos Total Serviços e Comércio Transporte e Comunicação Indústria Construção Civil Agricultura Administrativo, Técnico, Científico e Artístico Extração Mineral Autônomos, Estudantes e Aposentados Ignorado % 1.999 681 497 387 163 149 117 2 3 – 100,0 34,1 24,9 19,4 8,1 7,4 5,8 0,1 0,1 – 2 o Subconjunto Casos 1.647 510 273 305 221 104 51 3 177 3 Total % Casos % 100,0 31,0 16,6 18,5 13,4 6,3 3,1 0,2 10,7 0,2 3.646 1.191 770 692 384 253 168 5 180 3 100,0 32,7 21,1 19,0 10,5 6,9 4,6 0,1 4,9 0,1 Fonte: Fundação Seade; INSS; Fundacentro/MTE; Denatran/MJ. GRÁFICO 3 Distribuição dos Trabalhadores Envolvidos em Acidentes do Trabalho Fatais, segundo Grupos Ocupacionais Estado de São Paulo – 1997/1999 Fonte: Fundação Seade; INSS; Fundacentro/MTE. (1) Exclui extração mineral e casos ignorados. 48 A P OPULAÇÃO T RABALHADORA P AULISTA E OS ACIDENTES DO... Para os dois subconjuntos de dados, a distribuição dos casos fatais de acordo com os grupos ocupacionais é distinto, alterando o peso relativo de cada grupo ocupacional. Para a população coberta pelo INSS, a seqüência e a participação de cada grupo é muito semelhante à distribuição apresentada pelo total de trabalhadores acidentados. Já para a população não coberta, a indústria aparece em segundo lugar, seguida de transporte e comunicação e construção civil, sendo que não há grandes diferenciações na participação dessas três categorias ocupacionais. Nesse contingente de trabalhadores aparece o grupo composto por aposentados e autônomos, com 10,7% dos casos fatais, sinalizando um perfil específico dos trabalhadores pertencentes à parcela não coberta pelo INSS. A ordenação resultante dos grupos de ocupação, segundo os dois subconjuntos de dados, pode estar refletindo não apenas uma escala de riscos, mas também um perfil ocupacional distinto, relativo às duas parcelas populacionais levantadas: a população coberta e a não coberta pelo INSS. Quando os dados completos do Censo Demográfico de 2000 estiverem disponíveis, será possível calcular coeficientes de mortalidade específicos por categoria ocupacional e determinar adequadamente a escala de riscos de acidentes do trabalho. Analisando as categorias profissionais, observa-se que os motoristas apresentam a maior participação no total de acidentes do trabalho fatais (um a cada cinco acidentes). Essa categoria é a líder nos dois subconjuntos de dados, sendo que, no primeiro, composto pelos casos identificados no INSS, esses profissionais respondem por 23,9% dos casos, enquanto, no segundo, formado pelos casos que, apesar da existência de declarações de óbito notificadas como acidente do trabalho, não apresentaram correspondente processo no INSS, esta participação foi de 15,9%. Os altos percentuais, comparados aos das demais ocupa- ções, é um forte indicativo da gravidade e do risco de acidentes do trabalho que atingem a categoria profissional dos motoristas, em especial. Em segundo lugar, no que se refere à maior incidência de acidentes do trabalho fatais, encontra-se a categoria de ajudante geral, nos dois subconjuntos de dados. Três outras profissões – pedreiro, vigia e trabalhador rural – aparecem na seqüência, conforme aparece na Tabela 4. CARACTERÍSTICAS DO ACIDENTE DO TRABALHO A informação sobre o momento do acidente, que permite classificar os casos fatais de acidentes do trabalho em tipo e de trajeto, só está disponível no primeiro subconjunto de dados, relativo aos processos de acidentes do trabalho do INSS. Observa-se que 66,2% dos casos fatais, no período 1997-1999, referem-se a acidentestipo, ou seja, característicos da atividade desempenhada pelo trabalhador acidentado. Comparando-se essa distribuição com a verificada, no início da década de 90 (Waldvogel, 1999a), observa-se pequena redução da participação dos acidentes-tipo ocorridos no Estado de São Paulo, que, neste período, representavam 70,1% dos acidentes do trabalho fatais. Entre os acidentes-tipo, 48,5% ocorreram na via pública e 41,3% em estabelecimentos da própria empresa (26,5%) ou onde a empregadora presta serviço (14,8%). Foram registrados 5,3% dos casos fatais ocorridos em áreas rurais. A constatação empírica de que praticamente metade das mortes decorrentes de acidentes do trabalho tipo ocorreu em via pública é indicativo da transferência do local de trabalho para o espaço da rua. Esse fato acrescenta a violência urbana aos riscos intrínsecos aos processos produtivos particulares a cada atividade profissional. TABELA 4 Distribuição dos Óbitos por Acidentes do Trabalho, segundo Principais Ocupações Estado de São Paulo – 1997/1999 Principais Ocupações Total Motorista Ajudante Geral Pedreiro Vigia Trabalhador Rural TABELA 5 Distribuição dos Óbitos por Acidentes do Trabalho da População Coberta pelo INSS, segundo Classificação Estado de São Paulo – 1997/1999 Óbitos por Acidentes do Trabalho Números Absolutos % 3.646 739 327 188 158 91 100,0 20,3 9,0 5,2 4,3 2,5 Classificação População Coberta pelo INSS Total Acidente-Tipo Acidente de Trajeto Ignorado Fonte: Fundação Seade; INSS; Fundacentro/MTE. Fonte: Fundação Seade; INSS; Fundacentro/MTE. 49 Casos % 1.999 1.324 539 136 100,0 66,2 27,0 6,8 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 É importante, porém, a participação dos acidentes fatais ocorridos dentro da empresa, com efeitos negativos para a organização empresarial atingida, os colegas de trabalho e a família do acidentado. Os homicídios representam o tipo de acidente mais freqüente entre os acidentes-tipo ocorridos na empresa, respondendo por cerca de 20% dessas ocorrências. Destaca-se o latrocínio, com metade desses casos. Mais uma vez, a crescente violência urbana atinge o trabalhador no exercício da profissão, retirando-o precocemente da vida ativa. Maia (1999) ressalta a tendência de aumento das taxas de mortalidade por homicídios, no Estado de São Paulo, na década de 90, vitimando principalmente os jovens adultos do sexo masculino. Na segunda posição aparecem as quedas de andaimes, com 12,6% dos casos de acidentes-tipo ocorridos dentro das empresas, seguidas pelos acidentes com objetos e instrumentos de trabalho (11,7%), esmagamentos e amputação de membros por maquinário industrial e agrícola (10,0%), eletroplessão (9,1%) e queimaduras (7,4%). Quanto à atividade econômica desenvolvida nas empresas com base na Classificação Nacional de Atividade Econômica (CNAE), observa-se maior participação de acidentes fatais naquelas de transporte rodoviário de cargas (8,4%), seguidas pelas empresas de edificações (5,6%), transporte rodoviário de passageiros (2,9%), seleção, agenciamento e locação de mão-de-obra para serviços temporários (2,6%) e atividades de investigação, vigilância e segurança (2,5%). idade ativa, sendo 4,7% para os homens e 1,8% para as mulheres. É interessante observar que esses percentuais mantiveram-se estáveis em relação ao início da década, quando a participação dos acidentes do trabalho nas causas externas de morte da população em idade ativa eram de 4,8% para a população total, 5,3% para os homens e 1,9% para as mulheres (Waldvogel, 1999a). Outra informação relevante e essencial, para os estados da mortalidade por acidente do trabalho, refere-se ao tipo de acidente que ocasionou a morte do trabalhador. Observa-se, pelos dados da Tabela 6, que os acidentes de transporte são os principais causadores de morte de trabalhadores, concentrando 45,3% dos casos ocorridos no Estado de São Paulo. Em seguida, vêm os homicídios (18,8%), os choques, explosões e esmagamentos (18,7%) e as quedas (10,9%). Os demais tipos de acidentes apresentam pequeno peso relativo. Quanto às duas parcelas da população trabalhadora acidentada, verifica-se um diferencial importante. Enquanto, para a população coberta pelo INSS, a maior participação corresponde aos acidentes de transporte (58,1%), seguidos dos choques, esmagamentos e explosões (14,0%), dos homicídios (12,9%) e das quedas (8,9%), para a população não coberta, a distribuição foi mais uniforme, tendo sido registrado 29,6% dos casos relativos aos acidentes de transporte, 26,1% aos homicídios, 24,5% aos choques, esmagamentos e explosões e 13,4% às quedas. O Gráfico 4 apresenta a distribuição dos principais tipos de acidente para as duas parcelas da população trabalhadora acidentada. PERFIL EPIDEMIOLÓGICO DOS ACIDENTES DO TRABALHO FATAIS TABELA 6 Os acidentes do trabalho tipo e de trajeto fazem parte do grupo de causas externas de morte, que consistem em eventos ambientais, circunstanciais e condições consideradas como causa da lesão, envenenamento ou outros efeitos adversos que levam um indivíduo à morte. Esse grupo de causas de morte representa 22,2% do total de óbitos ocorridos na população paulista com idades entre 15 e 69 anos, no período 1997-1999. A participação das causas externas no total de óbitos de ambos os sexos foi bem distinta. Enquanto para a população feminina essas causas representaram apenas 7,8% do total de óbitos, para os homens essa participação alcançou 28,9%. No Estado de São Paulo, no período analisado, os acidentes do trabalho corresponderam a 4,3% do total de óbitos por causas externas na população em Distribuição dos Casos Fatais de Acidente do Trabalho, segundo Tipos de Acidente Estado de São Paulo – 1997/1999 Tipos de Acidente Total Acidente de Transporte Homicídio Demais Acidentes Queda Queimadura Afogamento Outro Ignorado Óbitos por Acidentes do Trabalho Números Absolutos % 3.646 1.650 686 683 398 51 31 64 83 100,0 45,3 18,8 18,7 10,9 1,4 0,9 1,8 2,2 Fonte: Fundação Seade; INSS; Fundacentro/MTE. 50 A P OPULAÇÃO T RABALHADORA P AULISTA E OS ACIDENTES DO... GRÁFICO 4 Distribuição dos Casos Fatais de Acidente do Trabalho, segundo Tipos Estado de São Paulo – 1997/1999 Fonte: Fundação Seade; INSS; Fundacentro/MTE. GRÁFICO 5 Distribuição dos Casos Fatais de Acidente-Tipo e Acidente de Trajeto, segundo Tipo Estado de São Paulo – 1997/1999 Fonte: Fundação Seade; INSS; Fundacentro/MTE. A elevada participação dos acidentes fatais de transporte e dos homicídios sinaliza a transferência ou a expansão do local de trabalho, restrito ao ambiente das empresas, para o espaço da rua, acrescentando os riscos mais gerais que atingem toda a população àqueles inerentes aos processos de trabalho. Para os acidentes do trabalho relativos à população coberta pelo INSS, é possível identificar os tipos de acidentes ocorridos com mais freqüência. Por intermédio do Gráfico 5, verifica-se que praticamente 80% dos casos de acidentes de trajeto são decorrentes de colisões e capotamentos – agrupados em demais 51 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 acidentes de transporte – e dos atropelamentos. Já para os acidentes-tipo, 38,8% referem-se aos demais acidentes de transporte, 20,2% aos choques, esmagamentos e explosões, 13,3% aos homicídios, 12,9% às quedas e 8,4% aos atropelamentos. zamentos tradicionalmente mais esperados entre ocupação e tipos de acidente do trabalho. A concentração dos cruzamentos entre ocupação e tipo de acidente (Tabela 8) foi mais uniforme na parcela não coberta pelo INSS. Sobressai o cruzamento entre os trabalhadores vinculados ao serviço e comércio e os homicídios, com 9,8% dos casos fatais. Na seqüência aparecem o grupo de transporte e comunicação e o de serviço e comércio com os acidentes de transporte (8,4% e 8,2%, respectivamente) e os de serviço e comércio e indústria com choques, esmagamentos e explosões (6,9% e 6,7%, respectivamente). Também para a parcela não coberta pelo INSS, metade dos oito principais cruzamentos está associada aos riscos mais gerais da população: acidentes de transporte e homicídios. Esse fato reforça, novamente, que os riscos mais esperados para os acidentes do trabalho já não são mais os correspondentes às atividades exercidas dentro do ambiente das empresas, mas sim os associados à violência e ao crescimento urbano. PRINCIPAIS CRUZAMENTOS ENTRE OS GRUPOS OCUPACIONAIS E OS TIPOS DE ACIDENTES Outra informação importante, que pode ser extraída do banco de dados construído sobre os acidentes do trabalho fatais, é o cruzamento entre as variáveis ocupação e tipo de acidente, permitindo melhor avaliação das ocorrências predominantes. Para os acidentes do trabalho tipo, ocorridos com a população trabalhadora coberta pelo INSS, o cruzamento mais freqüente foi entre o grupo de atividades de transporte e comunicação e os acidentes de transporte, concentrando 22,5% dos casos fatais. Na seqüência, aparece o grupo de serviço e comércio associado aos homicídios, com 8,3% dos casos, e aos acidentes de transporte, com 7,5%. Em quarto lugar fica a indústria relacionada a choques, esmagamentos e explosões, com 7,2%. Destaca-se, na Tabela 7, que dos oito principais cruzamentos selecionados entre grupo ocupacional e tipos de acidente, metade corresponde a acidentes de transporte e homicídios, respondendo por cerca de 41% do total de casos fatais. Apenas a outra metade, que corresponde a aproximadamente 21% dos acidentes fatais, refere-se aos cru- CONSIDERAÇÕES FINAIS A análise conjunta das duas fontes de registros administrativos, aqui consideradas – Declaração de Óbito e Processo de Acidente do Trabalho – amplia o universo de casos fatais de acidentes do trabalho e permite um estudo mais completo e detalhado da mortalidade por acidentes do trabalho no Estado de São Paulo. É verdade que ainda ficam fora desse universo os casos fatais que, embora sejam um acidente do trabalho, não foram corretamente notificados nas declarações de óbito TABELA 7 TABELA 8 Principais Cruzamentos dos Acidentes do Trabalho Fatais entre os Grupos Ocupacionais e os Tipos de Acidentes da População Coberta pelo INSS Estado de São Paulo – 1997/1999 Principais Cruzamentos dos Acidentes do Trabalho Fatais entre os Grupos Ocupacionais e os Tipos de Acidentes da População Não Coberta pelo INSS Estado de São Paulo – 1997/1999 Grupos Ocupacionais Transporte e Comunicação População Coberta pelo INSS Tipos de Acidente % Grupos Ocupacionais População Não Coberta pelo INSS Tipos de Acidente % Demais Acidentes de Transporte 22,5 Homicídio 9,8 Serviço e Comércio Homicídio 8,3 Transporte e Comunicação Acidente Transporte 8,4 Serviço e Comércio Demais Acidentes de Transporte 7,5 Serviço e Comércio Acidente Transporte 8,2 Indústria Choque/Esmagamento/Explosão 7,2 Serviço e Comércio Choque/Esmagamento/Explosão 6,9 Serviço e Comércio Choque/Esmagamento/Explosão 4,9 Indústria Choque/Esmagamento/Explosão 6,7 Construção Civil Queda 4,5 Transporte e Comunicação Homicídio 4,7 Indústria Queda 4,5 Construção Civil Queda 4,6 Homicídio 2,6 Construção Civil Choque/Esmagamento/Explosão 4,5 Transporte e Comunicação Serviço e Comércio Fonte: Fundação Seade; INSS; Fundacentro/MTE. Fonte: Fundação Seade; INSS; Fundacentro/MTE. 52 A P OPULAÇÃO T RABALHADORA P AULISTA E OS ACIDENTES DO... BRASIL. Ministério da Previdência e Assistência Social. Instituto Nacional do Seguro Social. Anuário Estatístico da Previdência Social. Brasília: 1999. 850 p. ou não deram entrada no INSS e, neste conjunto, inseremse, por exemplo, os funcionários públicos. A metodologia de vinculação de fontes de dados permite, também, avaliar os diferenciais para as duas parcelas da população acidentada: coberta e não coberta pelo INSS. Os resultados aqui apresentados indicam que os dois segmentos possuem perfis demográficos e epidemiológicos bastante distintos. Uma constatação importante detectada neste estudo é a de que os acidentes do trabalho fatais não estão mais associados apenas às atividades realizadas no ambiente de trabalho restrito às empresas, como indica a grande concentração de acidentes do trabalho fatais na categoria profissional de motoristas, com aproximadamente 20% do total das ocorrências. Da mesma forma, os tipos de acidentes mais freqüentes não são mais os relacionados apenas com os processos intrínsecos ao trabalho. A elevada participação dos acidentes de transporte e dos homicídios sinaliza a expansão do local de trabalho para o espaço da rua. Esse fato aumenta os riscos potenciais de acidente do trabalho, com o acréscimo dos riscos mais gerais associados ao total da população, independentemente de sua condição de trabalho. A grande freqüência de homicídios como tipo de acidente do trabalho revelada neste estudo reforça ainda mais as modificações nas regras de codificação do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, que recentemente passaram a considerar o homicídio um tipo de violência compatível com acidente do trabalho. Tal alteração possibilita o delineamento do perfil epidemiológico mais próximo do real além de reduzir o grau de subnumeração das declarações de óbito como fonte de informação para os estudos de mortalidade por acidentes do trabalho. O banco de dados construído sobre os casos fatais de acidentes do trabalho representa valioso material de análise para a questão acidentária no Estado de São Paulo e os resultados aqui apresentados inserem essa questão em um contexto social mais complexo, em que as medidas mais tradicionais de segurança e saúde no trabalho não são suficientes para previnir ou reduzir a conseqüência mais grave na saúde do trabalhador, que é a perda de sua vida. CAMARGO, A.B.M. A mortalidade por acidentes de transporte em São Paulo. Informe Demográfico GEPOP, São Paulo, Fundação Seade, n.2, p.1-9, 1992. CASTILHO, D.N.; JENKINS E.L. Industries and occupations at high for work – related homicides. Journal Occupa. Med., v.36, n.2, p.125-132, fev. 1994. FERREIRA C.E.C.; CASTIÑEIRAS L.L. O rápido aumento da mortalidade dos jovens adultos em São Paulo: uma trágica tendência. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, Fundação Seade, v.10, n.2, p.36-41, 1996. FUNDAÇÃO SEADE. 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C OSTA MITTI AYAKO H ARA KOYAMA ELAINE G ARCIA MINUCI FRIDA MARINA FISCHER Resumo: Neste artigo se apresentam os principais resultados de levantamentos feitos em São Paulo e Belo Horizonte sobre as condições de trabalho e de saúde dos motoristas do transporte de passageiros. Constataram-se condições de trabalho bastante desfavoráveis e estabeleceram-se associações estatísticas entre essas condições e sérios sintomas de morbidade declarados pelos motoristas. Sugere-se a necessidade de políticas públicas para o setor. Palavras-chave: condições de trabalho; sintomas declarados; motoristas. Abstract: This article presents the main results of research carried out in São Paulo and Belo Horizonte into the working conditions and health of mass transit drivers. Rather unfavorable conditions were observed and statistical links were established between these conditions and symptoms of grave morbidity reported by the drivers. Some public policies for this sector are recommended. Key words: working conditions; reported symptoms; drivers. É amplamente conhecido o caráter essencial dos transportes, e transportes de qualidade, não só como infra-estrutura para os processos de produção, mas também como pré-requisito para uma boa qualidade de vida dos cidadãos. Segundo Siqueira (1996:18), “[...] merecem destaque as políticas urbanas para os transportes. Estes possuem elevada essencialidade e responsabilidade social, já que o consumo de vários bens intimamente ligados às condições de vida e aos direitos dos cidadãos depende dos transportes. Habitação, trabalho, saúde, educação e convívio social pressupõem condições de locomoção para sua satisfação. Os transportes interferem na carga total de trabalho, afetando o chamado ‘tempo de indisponibilidade’, ou seja, o tempo que o trabalhador gasta para se locomover da residência para o trabalho e vice-versa e que se agrega ao tempo gasto no trabalho propriamente dito. Muitos trabalhadores aceitam más condições de trabalho e de salário para ter trajetos mais curtos e menos ‘tempo de indisponibilidade’. Por estas razões, as políticas urbanas para os transportes têm de estar em condições de realçar sua capacidade de integrar-se à melhoria das condições básicas de vida de todas as classes sociais.” A implementação de um sistema de transportes geralmente se assenta no tripé iniciativa privada, como agente provedor dos recursos financeiros e gerenciais; trabalhadores, como mão-de-obra para operação do sistema; e governo, como agente fiscalizador do bom desempenho, tendo em vista, de um lado, os interesses do cidadão e, de outro, as condições de trabalho da mão-de-obra envolvida. Em tal esquema, a figura do motorista é um elemento fundamental. Pesquisas anteriores (Faculdade de Medicina da USP, Fundacentro e Sindicato dos Trabalhadores nos Transportes de São Paulo, 1990) têm demonstrado que, no nosso meio, o motorista está sujeito a um trabalho extenuante, que compromete não só a sua saúde, mas também a segurança de passageiros e pedestres. Não é por menos que a Fundacentro, entidade ligada ao Ministério do Trabalho e Emprego, se mobilizou para conhecer mais os motoristas de ônibus dos grandes centros brasileiros, com a finalidade de obter subsídios para o planejamento de ações estratégicas que pudessem reduzir os aspectos penosos da profissão e da qualidade de vida desse grupo de trabalhadores. Assim, ela encomendou à Fundação Seade uma pesquisa sobre as condições de saúde e segurança dos motoristas do transporte coleti- 54 MORBIDADE DECLARADA E C ONDIÇÕES DE T RABALHO: O CASO... vo urbano, nas Regiões Metropolitanas de São Paulo e Belo Horizonte. Atendendo a essa solicitação, foram planejadas e executadas duas pesquisas de campo. Em dezembro de 2000, foram entrevistados, nos terminais das linhas de ônibus, 1.762 motoristas de linhas operadas na Região Metropolitana de São Paulo, integrando uma amostra aleatória que permite expandir os resultados para o conjunto desses trabalhadores, que somam cerca de 22 mil pessoas. Foram realizadas entrevistas por meio de um questionário, cuja aplicação durava aproximadamente 12 minutos, com cada motorista. Na Região Metropolitana de Belo Horizonte, foram entrevistados, em janeiro de 2002, 984 motoristas das linhas operadas na região. Trata-se também de uma amostra aleatória e representativa do conjunto desses profissionais, que congrega 15 mil pessoas. O questionário usado, muito semelhante ao da pesquisa em São Paulo, levava 18 minutos para ser aplicado. Nesses levantamentos foram abordados cinco temas: características pessoais dos motoristas e alguma informação sobre sua família; condições de trabalho dos motoristas, incluindo características dos veículos dirigidos por eles; contexto social em que se desenrola o trabalho, considerando também a violência urbana; condições de saúde dos motoristas, segundo os sintomas por eles declarados; e a questão dos acidentes, suas conseqüências e possíveis causas. Dentro do escopo da pesquisa, nas duas regiões foram realizadas entrevistas qualitativas com empresários do transporte de passageiros, com representantes dos órgãos governamentais que têm jurisdição sobre os serviços, com sindicatos patronais e de trabalhadores. Todos eles abriram suas portas para os pesquisadores do Seade, facilitando também a seleção de amostras representativas de motoristas e autorizando a realização de entrevistas com motoristas e fiscais, nos finais de linha. Este artigo se fundamenta nos resultados dessa pesquisa e pretende não apenas divulgar alguns dos achados mais importantes, como também testar as possíveis associações existentes entre os principais aspectos das condições de trabalho e hábitos pessoais desses motoristas e os sintomas de morbidade por eles declarados. O artigo se articula em várias partes. Discute-se, inicialmente, a validade de inferências sobre a saúde do indivíduo a partir de sintomas referidos por ele mesmo, sem nenhuma comprovação médica. Na seqüência, são traçadas algumas considerações sobre o transporte de passageiros por ônibus nas duas regiões, suas similaridades e diferenças. São apresentadas a seguir as informações sobre as condições de trabalho e saúde dos motoristas, levantadas nas pesquisas de campo. Passa-se então ao ajustamento de modelos estatísticos que permitem testar e quantificar as associações existentes entre sintomas de morbidade, de um lado, e condições de trabalho e hábitos de vida, de outro. Por fim, as conclusões e sugestões julgadas pertinentes. MORBIDADE DECLARADA NA LITERATURA São freqüentes na literatura especializada os estudos empíricos sobre a relação entre a sintomatologia relatada pelos sujeitos e a evolução futura de sua condição de saúde, medida pela incidência da incapacitação física ou da morte nos anos subseqüentes. A idéia que se depreende desses estudos é que o próprio indivíduo tem capacidade para perceber e relatar razoavelmente bem, como se verá logo abaixo, as suas condições de saúde. Ferraro e Ya-ping Su (2000) analisaram a validade da auto-avaliação da saúde na previsão da incapacitação física nos anos subsequëntes, em comparação com a avaliação médica dos mesmos sujeitos, usando para isso dados da National Health and Nutrition Examination Survey e do Epidemiologic Follow-Up Study, por um período de 15 anos. Foram entrevistados e examinados inicialmente 5.955 brancos e 878 negros, de 25 a 74 anos de idade. O viés introduzido pelas perdas por morte, mudança de endereço ou recusa de participar foi controlado estatisticamente no modelo usado. “Os resultados mostraram que as medidas tanto da morbidade avaliada por médicos como da morbidade referida tinham uma relação estatisticamente significante com o surgimento de incapacidade física dez anos depois do primeiro levantamento, mas a relação mais forte provinha da morbidade referida, especialmente quando consideradas as doenças crônicas não sérias”. Além do mais, a relação entre a morbidade avaliada por médicos, com base na Classificação Internacional de Doenças, e a incidência de incapacidade, 15 anos depois, não apresentou significância estatística. Assim, as conclusões se referem especificamente a medidas de saúde tomadas em levantamentos de saúde e podem não ser válidas quando a morbidade é avaliada a partir das fichas clínicas dos pacientes. Um outro estudo (Benyamini et al., 2000) focaliza as diferenças de gênero na auto-avaliação da saúde e o impacto dessas diferenças na predição da mortalidade. Tal 55 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 pesquisa contou com a participação de 851 idosos. Depois de um período de cinco anos, 830 pessoas da amostra original (497 mulheres e 333 homens) foram localizadas vivas ou mortas, perdendo-se 21 casos. As pessoas que, no início da pesquisa, consideraram sua saúde regular ou má apresentaram uma probabilidade 4,8 vezes maior de morrer do que as que disseram ter saúde muito boa ou excelente. A associação entre saúde regular ou má e mortalidade foi mais fraca para as mulheres do que para os homens. Várias explicações são adiantadas pelos autores, entre elas a relação com a saúde e a doença, que é diferente para homens e mulheres, sendo que estas tendem a levar em conta também as doenças leves, não fatais, que são desconsideradas pelos homens. Outro fator das diferenças pode ser que as mulheres, mais freqüentemente que os homens, são “cuidadoras” de um companheiro idoso, deixando-se envolver pelos problemas desse companheiro, com reflexos não fatais sobre sua saúde. Segundo os autores, os resultados obtidos não podem ser generalizados, pois a amostra não era representativa, tendo sido formada por voluntários. No já clássico livro, As classes sociais e o corpo , Boltanski (1989) estudou as diferenças existentes entre as distintas classes sociais, na França dos anos 60, na postura diante do corpo e das doenças, assim como no acesso ao médico e a explicações médicas sobre saúde e tratamento. Ele mostra como, devido à menor exposição ao médico, as classes subalternas assimilaram mal as categorias médicas de compreensão da doença e, por isso, usam um vocabulário muito mais restrito e têm uma percepção mais limitada da doença. Enquanto as pessoas mais bem situadas são alertadas pelos primeiros sintomas de uma doença, nas classes menos favorecidas a doença tende a ser levada em consideração apenas quando interfere no uso pleno do corpo, normalmente para o trabalho. E então, muitas vezes, a doença já vai avançada. Essas colocações mostram a dificuldade de se compararem auto-avaliações feitas por diferentes grupos sociais. Estudando especificamente auto-avaliações feitas por trabalhadores, diz Fischer (1990): “A respeito desta forma de coleta de dados pronunciam-se vários autores: ‘O conhecimento operário a respeito de seu trabalho e de seu impacto sobre a saúde é, sem dúvida, muito rico, e oferece uma compreensão da problemática em grande medida resgatável unicamente a partir da ótica operária’ (Laurell e Noriega, 1989). Estes autores, apontam ainda que entre as vantagens de obter informações a respeito das condições de trabalho e seus efeitos na saúde ‘a experiência dos trabalhadores permite alcançar um conhecimento preciso do processo de trabalho, suas cargas, e dimensões distintas do desgaste...’. Similar opinião é compartilhada por Smith, Colligan e Tasto (1979), em trabalho onde avaliam os méritos relativos da aplicação de questionários e outros métodos de coleta de dados: ‘um levantamento realizado com questionários ainda que menos objetivo que os registros de saúde e segurança ou um estudo médico, é uma maneira eficiente e rápida de levantar uma quantidade grande e detalhada coleção de dados acerca das conseqüências psicológicas, sociais e de saúde do trabalho...’ Estes dados geralmente não constam de registros mantidos nas empresas”. O TRANSPORTE DE PASSAGEIROS EM SÃO PAULO E BELO HORIZONTE Existem similaridades e diferenças entre as duas metrópoles e seus sistemas de transporte de passageiros por ônibus. A Região Metropolitana de São Paulo – que agrega 39 municípios – contava, em 2000, com uma população de aproximadamente 20 milhões de pessoas, sendo 10,4 só no Município de São Paulo (censo de 2000). É, reconhecidamente, o centro financeiro e de negócios do país. Não obstante o crescimento de outros pólos industriais, São Paulo mantém sua posição de maior parque industrial da América Latina. Ao mesmo tempo, está conectado a outros pólos, como São José dos Campos, Rio de Janeiro, Baixada Santista, Campinas e interior paulista, Minas Gerais e sul do país. A Região Metropolitana de Belo Horizonte, com cerca de um quarto da população de São Paulo (4,8 milhões), é um conjunto de 34 municípios, agrupados quase que circularmente em torno do município que lhe dá o nome. Segundo o Censo de 2000, Belo Horizonte é uma das maiores cidades do país, com 2,2 milhões de habitantes. Sua importância econômica, política e social advém tanto de suas próprias atividades, como de sua localização estratégica, pois constitui ligação obrigatória entre várias regiões do país. Para atender a essa vocação, a RMBH é servida por amplo sistema viário, uma vez que 15% das rodovias federais pavimentadas do país, além de 16% da malha ferroviária nacional, estão no Estado de Minas Gerais (Cançado et al., 1999:288). Seus sistemas de transporte de passageiros sobre pneus guardam correspondência com o tamanho relativo das duas regiões. São Paulo contava, por ocasião da pesquisa de campo, com 10.700 ônibus no município e 3.600 na re- 56 MORBIDADE DECLARADA E C ONDIÇÕES DE T RABALHO: O CASO... gião, ao passo que, em Belo Horizonte, os ônibus municipais eram 2.900 e os metropolitanos, cerca de 2.000. Percorrendo trajetórias diferentes, nas duas regiões os sistemas são administrados de forma semelhante. Em ambas, o serviço é produzido por empresas privadas, sob jurisdição do poder público: o SPTrans e a EMTU, respectivamente, no município e na metrópole paulista; a BHTrans e o DER/MG, no município e na Região Metropolitana de Belo Horizonte. A BHTrans tem sob sua tutela as operadoras que servem exclusivamente o município de Belo Horizonte, já o DER responde não só pelo sistema nas demais cidades da RMBH que ainda não assumiram responsabilidade pelo seu transporte, mas também por todo o sistema rodoviário do Estado. As poucas empresas que operam em ambos os sistemas são fiscalizadas pelo DER. Em São Paulo, o transporte coletivo foi instituído primeiro pelo capital estrangeiro (Light & Power), cujo monopólio foi sendo aos poucos contestado por pequenas transportadoras particulares, depois o poder público assumiu a prestação direta do serviço, instalando para isso, em 1947, a Companhia Municipal de Transportes Coletivos (CMTC). Nos anos 50, registrou-se uma proliferação de empresas de transporte, ao lado da CMTC, que foi passando ao papel de reguladora e sustentadora do mercado, ao mesmo tempo que se encarregava das linhas menos rentáveis, pela ótica da função social do transporte de passageiros (Henry; Zioni, 1999). Com a extinção da CMTC, em 1994, a situação ficou claramente definida: gestor público, operadoras privadas. Uma característica do mercado de serviços de ônibus de passageiros, em São Paulo, é o alto nível de concentração de capital. Grande parte desse capital não vem de outros setores, nem de outras regiões do país, com exceção de uns poucos empresários mineiros que conseguiram furar um mercado extremamente fechado. Vem da própria operação do serviço e tem sua origem lá atrás, quando particulares começaram a prestar esse serviço, depois formaram suas pequenas empresas e cresceram. Em 1999, apenas 46 empresas operavam na capital e 51, na Região Metropolitana. Mas trata-se de empresas de grande porte, que detêm grandes fatias do mercado. Do total de viações, 40% possuem 64% da frota, cada qual com mais de 230 veículos, meia dúzia delas com quase 500 ônibus (Henry; Zioni, 1999:166-167). A situação de São Paulo, que se poderia chamar de oligopolista, dá ao empresariado um enorme poder de negociação com os órgãos gestores, como se vê nos em- bates entre a prefeitura e o sindicato patronal. Sobretudo porque esse empresariado conseguiu cooptar o movimento sindical, convencendo-o que “o inimigo” é o poder público, uma vez que é ele quem projeta a rede de operações, definindo linhas, paradas, horários, frota e, principalmente, sistema de remuneração dos serviços. O sistema de transporte coletivo de Belo Horizonte é bastante diferenciado. Em primeiro lugar, a operação do sistema sempre esteve em poder da iniciativa empresarial privada, responsabilizando-se o poder público apenas pelo planejamento e pela fiscalização. Além disso, Belo Horizonte manteve uma baixa concentração de capital e uma grande heterogeneidade de empresas de ônibus. Mesmo depois de sucessivos esforços de racionalização e modernização, por parte dos órgãos gestores, que resultaram em maior concentração nas outras capitais brasileiras, o município de Belo Horizonte apresentava o maior número de empresas, 54, maior mesmo que o Município de São Paulo, e uma frota média de 47,6 veículos por empresa, menor que nas outras capitais. Existe, pois, uma grande heterogeneidade entre empresas, que se expressa também no fato de algumas viações operarem uma só linha, outras, mais de 20 (Cançado et al., 1999). Isso não impede que tais empresas se aliem para fazer frente às exigências do poder público, devido à convergência de interesses entre grandes e pequenas. Apesar de seu caráter essencial, os transportes coletivos estão em crise em todos os grandes centros urbanos do país. Isso se manifesta em altos níveis de congestionamento, poluição atmosférica, insegurança viária, longas esperas nas filas, viagens desconfortáveis. Além disso, com o aumento de carros particulares e de “peruas” em circulação, a deterioração das vias públicas e o crescimento do número de lombadas, registraram-se redução da velocidade média dos veículos de transporte coletivo,1 ampliação do tempo de percurso e aumento do desconforto imposto a usuários e motoristas. As estatísticas também são reveladoras: se, no início dos anos 90, os ônibus municipais de São Paulo transportavam 150 milhões de passageiros ao mês, no final da década transportavam apenas 90 milhões. O transporte de passageiros por ônibus, que representava em 1977 44% de todos os deslocamentos, em 1997 caiu para 25,1% desse total, perdendo para as viagens por motos, carros particulares, táxis e lotações, que representavam, na mesma data, 31,7% do total de deslocamentos. O mais impressionante é o percentual de deslocamentos que são feitos a pé 57 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 (34,4%), numa cidade das dimensões de São Paulo (Cançado et al., 1999:179). E, no dizer dos autores, esse dualismo entre mobilidade individual e coletiva mostra uma face perversa da cidade, em que a classe média se beneficia de ilhas de excelência de primeiro mundo, ao passo que as camadas populares são excluídas até mesmo do transporte coletivo. A Região Metropolitana de Belo Horizonte contava, em janeiro de 2002, com uma frota bem menor que São Paulo (um total de 5 mil ônibus, aproximadamente). Naquela data, mês de férias, foram transportados 34,3 milhões de passageiros. Porém, diferentemente de São Paulo, o transporte alternativo não parece constituir grande problema, pois foi equacionado pela BHTrans, que licenciou um certo número de pequenas operadoras e exerce vigilância rigorosa nas ruas. O problema persiste em outros municípios da região, porém atenuado, pelo fato de os “perueiros” dos municípios vizinhos não poderem entrar em Belo Horizonte, o que coíbe um pouco sua atividade. Cada viação organiza o trabalho de seus cobradores e motoristas, a fim de atender a especificações de linhas, itinerários, número de carros, horários, etc., feitas pelos órgãos gestores. O planejamento do serviço feito externamente à empresa facilita, de certo modo, o encaminhamento das insatisfações dos trabalhadores aos gestores externos, de tal modo que, em São Paulo, o empresariado e os trabalhadores se apresentam unidos em suas reivindicações. Isso parece ocorrer em menor medida em Belo Horizonte, onde o Sindicato dos Trabalhadores consegue manter clara a distinção entre patronato e poder público e vem atuando diligentemente em prol de conquistas para os trabalhadores. Por outro lado, a predominância de empresas pequenas e médias torna possível um relacionamento mais próximo entre patrões e empregados, mantendose práticas de gestão paternalista da mão-de-obra, concomitantemente com gestões mais profissionais, em outras companhias. tas das Regiões Metropolitanas de Belo Horizonte e São Paulo, colocados lado a lado. Existem muitas similaridades entre os motoristas de Belo Horizonte e os de São Paulo, tanto nas características pessoais como nos aspectos profissionais. Os profissionais de Belo Horizonte são, em média, um pouco mais novos que os paulistas (39,8 anos contra 42), têm um ano a menos de profissão e cerca de um ano a menos na mesma empresa. O nível de instrução dos dois grupos é igualmente baixo: 36,3% dos motoristas de Belo Horizonte e 37,4% dos paulistas cursaram no máximo até a 4a série do ensino fundamental. Nas duas regiões, o número de pessoas no domicílio é bastante próximo, e registrou-se um percentual semelhante de domicílios sustentados basicamente pelo rendimento do motorista (60%, em Belo Horizonte e 64%, em São Paulo). Por outro lado, é mais freqüente as famílias belo-horizontinas contarem com menores de 16 anos (82,6%) do que as paulistas (73,3%) no orçamento familiar. Essas informações são apresentadas na Tabela 1. Quanto às características da ocupação e da organização do trabalho, as vantagens são maiores ora para uma região, ora para outra, sendo difícil afirmar que a situação do motorista de Belo Horizonte seja melhor ou pior que a de São Paulo. Os profissionais de Belo Horizonte praticam jornadas mais curtas que os de São Paulo e percorrem trajetos menores; porém é menor a parcela dos que cumprem horário fixo e turno único (57,9%, em BH, e 93,3%, em SP) e significativamente mais elevada a proporção daqueles que fazem dois turnos de trabalho, a chamada “dupla pegada” (19,7%), e horários irregulares TABELA 1 Características Pessoais e Familiares dos Motoristas de Ônibus Regiões Metropolitanas de Belo Horizonte e São Paulo – Dez. 2000-Jan. 2002 Características Idade Média dos Motoristas (em anos) Tempo de Profissão (em anos) Tempo na Mesma Empresa (em anos) Escolaridade Média CONDIÇÕES DE TRABALHO DOS MOTORISTAS De 1 a 4 Anos Cursados (em %) Número de Pessoas na Família Domicílios com Menores de 16 Anos (em %) Só o Motorista Trabalha na Família (em %) Rendimento Familiar Médio (em reais) (1) Embora o contexto social e urbano do trabalho desses motoristas tenha diferenças entre as duas metrópoles, inclusive por causa do enorme diferencial de tamanho entre elas, foram tomadas precauções para permitir a comparabilidade dos resultados. Assim, apresentam-se a seguir alguns indicadores das condições de trabalho dos motoris- Belo Horizonte (Jan. 2002) 39,8 10,9 5,6 Fundamental Incompleto 36,3 4,1 82,6 60,0 919,00 São Paulo (Dez. 2000) 42 11,9 6,3 Fundamental Incompleto 37,4 4,2 73,3 64,0 1.568,00 Fonte: Fundação Seade; Fundacentro. Pesquisa de Condições de Saúde e Segurança dos Motoristas. (1) Valores correntes. 58 MORBIDADE DECLARADA E C ONDIÇÕES DE T RABALHO: O CASO... (22,4%). Em São Paulo, esses dois percentuais ficam em torno de 3,0%. Também é muito mais alto em Belo Horizonte o percentual de motoristas sem pausa para a refeição (73,9%, em BH, e 7,8%, em SP). Esse diferencial não pode ser inteiramente explicado pela prática da “dupla pegada”, que permitiria ao motorista almoçar em casa, uma vez que é muito maior a proporção de motoristas sem pausa (73,9%) do que a daqueles que fazem dois turnos de trabalho (19,7%) (Tabela 2). Os ônibus dirigidos em Belo Horizonte parecem ter mais dispositivos que facilitam o trabalho do motorista do que os de São Paulo, notando-se especialmente a presença mais freqüente de direção ajustável, apoio anatômico para as costas, ajuste vertical do assento e cinto de segurança de três pontos. Quanto à posição do motor, que é fundamental para o conforto do motorista, em 77,3% dos ônibus dirigidos em Belo Horizonte, ele localiza-se na parte central ou traseira do veículo. Esse aspecto não foi pesquisado em São Paulo, porque a maioria dos ônibus já não tem motor dianteiro. Uma situação, em que estão em vantagem os motoristas de São Paulo, refere-se à possibilidade de trabalharem sempre com o mesmo carro (Tabela 3). Quanto às condições do ambiente interno do veículo, a situação parece melhor em Belo Horizonte, pois os ônibus de São Paulo apresentam com mais freqüência trepi- dação, muito ruído, presença de gases tóxicos, ventilação inadequada (Tabela 3). Assim, pode-se dizer, de um modo geral, que o equipamento dos motoristas é melhor em Belo Horizonte do que em São Paulo. As condições desfavoráveis de trabalho somam-se certos hábitos pessoais, que só fazem agravar as condições de saúde dos motoristas nas duas regiões (Tabela 4). Na questão da saúde, os motoristas de Belo Horizonte apresentam menos queixas que os paulistanos. O dobro dos profissionais belo-horizontinos declarou-se livre de sintomas, em comparação com os paulistas (14,0% e 7,2%, respectivamente). Além disso, todos os sintomas pesquisados se revelaram mais freqüentes em São Paulo do que em Belo Horizonte. Não obstante, não pode ser menosprezada a presença em Belo Horizonte de percentuais expressivos de motoristas com problemas de obesidade, dores musculares, distúrbios gastrointestinais e vista irritada, além de outros problemas. Chama a atenção espeTABELA 3 Condições dos Veículos Dirigidos pelos Motoristas de Ônibus Regiões Metropolitanas de Belo Horizonte e São Paulo – Dez. 2000-Jan. 2002 Em porcentagem Condição dos Ônibus Motor Central ou Traseiro Direção Ajustável Direção Hidráulica Cinto de Segurança com Três Pontos Apoio Anatômico nas Costas Ajuste Vertical do Assento Ajuste para Alcance dos Pedais Dirige Sempre o Mesmo Ônibus Muita Trepidação Muito Ruído Emanação de Gases Tóxicos Ventilação Inadequada TABELA 2 Características da Ocupação e da Organização do Trabalho dos Motoristas de Ônibus Regiões Metropolitanas de Belo Horizonte e São Paulo – Dez. 2000-Jan. 2002 Características da Ocupação e Organização do Trabalho Assalariado com Carteira de Trabalho Assinada (em %) Belo Horizonte São Paulo (Jan. 2002) (Dez. 2000) 100,0 95,1 689,00 1.036,00 Jornada Média Diária (horas) 7:52 10:20 Duração Média dos Percursos (horas) Proporção dos que Trabalham com Horário Fixo e Turno Único (em %) 1:47 2:22 57,9 93,9 Proporção dos que Trabalham com Horário Fixo e Turno Duplo (em %) 19,7 3,7 Proporção dos que Trabalham em Turnos Irregulares (em %) 22,4 3,0 Motoristas sem Pausas de 5 Minutos ou Mais 4,6 5,1 Número Médio de Pausas de 5 Minutos ou Mais Proporção dos que Não Fazem Pausa para Refeições (em %) 3,0 2,9 73,9 7,8 Rendimento Médio (em reais) (1) Belo Horizonte (Jan. 2002) São Paulo (Dez. 2000) 77,3 62,7 98,6 50,8 82,7 91,4 98,2 56,6 25,5 32,0 5,6 24,9 (1) 29,8 95,3 45,5 68,5 87,8 96,2 73,3 45,4 63,8 17,7 37,1 Fonte: Fundação Seade; Fundacentro. Pesquisa de Condições de Saúde e Segurança dos Motoristas. (1) Não foi pesquisado. TABELA 4 Hábitos Pessoais dos Motoristas Regiões Metropolitanas de Belo Horizonte e São Paulo – Dez. 2000-Jan. 2002 Em porcentagem Hábitos Pessoais Fuma Ingere Bebida Alcoólica Não Pratica Esporte Fonte: Fundação Seade; Fundacentro. Pesquisa de Condições de Saúde e Segurança dos Motoristas. (1) Valores correntes. Belo Horizonte (Jan. 2002) 23,5 38,4 57,0 São Paulo (Dez. 2000) 31,4 39,1 71,9 Fonte: Fundação Seade; Fundacentro. Pesquisa de Condições de Saúde e Segurança dos Motoristas. 59 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 TABELA 5 cialmente a questão da obesidade, que aflige metade dos motoristas belo-horizontinos e 61,2% dos paulistas. A tensão e o estresse, sintoma que não foi pesquisado em São Paulo, atinge 38,5% dos motoristas de Belo Horizonte (Tabela 5). Verificou-se, nas respectivas pesquisas de campo, uma alta incidência de violência dentro dos ônibus, maior em Belo Horizonte do que em São Paulo, especialmente assaltos à mão armada e agressões verbais. Em 2000 e 2002, respectivamente, 38,5% dos profissionais paulistas e 43,4% dos belo-horizontinos indicaram a ocorrência de um assalto à mão armada no ônibus em que trabalharam nos 12 meses anteriores (Tabela 6). Toda essa violência urbana tem várias implicações. Sua conseqüência direta reside no fato de 81,8% dos motoristas de Belo Horizonte e 78,0% dos paulistas trabalharem com medo de serem assaltados. Também são indicados pelos profissionais de Belo Horizonte outros medos declarados pelos paulistas, embora com freqüência menor, ainda que em patamares elevados, pois 51,5% declarou ter medo de ser demitido e 58,9%, de ficar doente (Tabela 7). Tanto em uma como em outra região, a freqüência dos diversos medos com que convivem esses profissionais só pode ter conseqüências nefastas sobre sua saúde, como se verá a seguir. Motoristas de Ônibus, segundo Sintomas Relativos à Saúde Regiões Metropolitanas de Belo Horizonte e São Paulo – Dez. 2000-Jan. 2002 Em porcentagem Sintomas Relativos à Saúde Obesidade e Pré-Obesidade (1) Dores nos Ombros, Braços, Pernas Problemas de Coluna Varizes Vista Irritada Problemas Gastrointestinais Problemas Auditivos Problemas do Sono Problemas Respiratórios Estresse Hipertensão Arterial Belo Horizonte (Jan. 2002) São Paulo (Dez. 2000) 50,1 33,0 29,4 10,8 33,1 23,8 12,9 13,2 11,7 38,5 8,2 61,2 54,3 41,2 17,7 54,7 29,4 18,8 17,9 15,7 (2) 15,9 Fonte: Fundação Seade; Fundacentro. Pesquisa de Condições de Saúde e Segurança dos Motoristas. (1) São consideradas obesas e pré-obesas as pessoas com IMC maior ou igual a 25. O IMC – Índice de Massa Corporal é obtido dividindo-se o peso pelo quadrado da altura do indivíduo. (2) Não foi pesquisado. TABELA 6 Motoristas de Ônibus que Sofreram Ocorrência de Violência dentro do Ônibus, segundo Tipo de Ocorrência Regiões Metropolitanas de Belo Horizonte e São Paulo – Dez. 2000-Jan. 2002 Em porcentagem Tipo de Ocorrência COMO AS CONDIÇÕES DE TRABALHO AFETAM A SAÚDE DOS MOTORISTAS Assalto à Mão Armada Assalto sem Arma Agressão Física Agressão Verbal Para testar a relação de sintomas de saúde com as condições de trabalho e hábitos de vida dos motoristas, afastando assim a hipótese de que esta relação seja aleatória, podendo acometer qualquer indivíduo da população, os resultados foram submetidos a análise estatística. A técnica escolhida foi a regressão logística, aconselhável quando a variável a ser analisada (variável dependente) tem natureza dicotômica. Essa técnica permite quantificar o grau de associação entre cada variável dependente, no caso os diversos sintomas de morbidade, com a presença ou ausência de certas condições de trabalho e hábitos de vida. A medida de associação resultante chama-se o dds ratio, que vem a ser a chance de ocorrência de um sintoma em função de uma dada variável explicativa, em presença das outras variáveis introduzidas no modelo (Ferreira; Watanabe, 1996). O conceito de chance – termo técnico em estatística – pode ser entendido como a razão entre a proporção de motoristas com um dado sintoma e a proporção dos que Belo Horizonte (Jan. 2002) São Paulo (Dez. 2000) 43,4 7,4 6,8 40,1 38,5 13,8 6,9 26,6 Fonte: Fundação Seade; Fundacentro. Pesquisa de Condições de Saúde e Segurança dos Motoristas. TABELA 7 Motoristas de Ônibus, segundo Medos Declarados Regiões Metropolitanas de Belo Horizonte e São Paulo – Dez. 2000-Jan. 2002 Em porcentagem Medos Declarados Ser Assaltado Sofrer Acidente Morrer Ficar Doente Ser Demitido Belo Horizonte (Jan. 2002) São Paulo (Dez. 2000) 81,8 69,9 59,5 58,9 51,5 78,0 70,9 67,6 63,2 56,8 Fonte: Fundação Seade; Fundacentro. Pesquisa de Condições de Saúde e Segurança dos Motoristas. não referiram esse sintoma. A razão de chances representa a mudança na chance de o motorista apresentar um determinado sintoma, quando passa de uma categoria de 60 MORBIDADE DECLARADA E C ONDIÇÕES DE T RABALHO: O CASO... condição de trabalho para outra, mantendo inalteradas as demais condições. Desse modo, uma razão de chance igual a 1 indica que a mudança de categoria não afeta o aparecimento do sintoma. Os sintomas de morbidade submetidos a análise foram obesidade, dores osteomusculares, problemas gastrointestinais, vista irritada, problemas respiratórios, problemas auditivos, problemas do sono e estresse. A cada um desses sintomas foram relacionadas as condições de trabalho e os hábitos pessoais considerados pertinentes, segundo o saber da medicina ocupacional. A idade foi levada em consideração em todas as análises de associação dos sintomas com as condições de trabalho. Para obtenção dos modelos finais, foi adotado um nível de significância de 10% na maioria dos casos. As variáveis explicativas aparecem, em diferentes combinações, nos vários modelos. Para não citar repetidamente qual é o grupo de referência em cada um deles, apresentase a seguir uma listagem dos grupos de referência de todas as variáveis: - sobre as características pessoais e hábitos, foram tomados como base de comparação os motoristas com idade de 22 anos, pressão arterial normal, que não bebem, que praticam esporte e não fumam; São Paulo. Esse problema foi examinado em função da idade, extensão da jornada, existência e duração das pausas de descanso, número de pausas de descanso, existência ou não de pausa para refeição, prática de esporte e hipertensão arterial. Nos modelos ajustados, a idade apresentou a maior importância para explicar a chance de um indivíduo ser obeso ou pré-obeso. Essa chance aumenta geometricamente à razão de 1,04 a cada ano adicional de idade em São Paulo e 1,03% em Belo Horizonte. Aos 40 anos, é 89% maior na primeira região e 60,4% maior na segunda, com relação à idade de referência. A extensão da jornada também se revelou importante. Em São Paulo, a chance de motoristas que trabalham 8:40 horas ou mais serem obesos ou pré-obesos é 31,5% maior do que a de motoristas com jornadas menos extensas; o fazer ou não esporte não mostrou significância estatística. Por outro lado, em Belo Horizonte, a ausência de esportes aumenta em 27,6% esse risco para todos os motoristas, independentemente da jornada. O número de pausas para descanso durante o trabalho mostrou-se importante em Belo Horizonte, porém não obteve significância estatística em São Paulo. Na primeira metrópole, a introdução de uma pausa na jornada reduz em 8,7% a chance de o motorista se tornar obeso; com três pausas haveria redução de 23,8%. A hipertensão arterial pode desenvolver-se devido a vários fatores de risco, agindo conjuntamente (Cordeiro et al., 1993). Entre eles, fatores genéticos e ocupacionais, como o estresse, associados a obesidade, sedentarismo, ingestão de álcool, hábito de fumar. Por esse motivo foi introduzida nos modelos de obesidade como variável de controle. - com relação à organização do trabalho, motoristas que exercem suas atividades em turno fixo, com jornada de até 8:39 e nenhuma pausa de 5 minutos ou mais (grupo de referência para duas variáveis: tem pausa e número de pausas); - quanto às características dos veículos, motoristas que dirigem ônibus com direção ajustável, apoio para as costas, ajuste vertical do banco, sem trepidação, sem ruído, sem emanação de gases tóxicos e com ventilação adequada; - finalmente, quanto aos medos, os motoristas sem medo de assalto, de acidente e de demissão. Dores Osteomusculares A seguir, são apresentados e discutidos os resultados das regressões logísticas referentes a cada um dos sintomas acima relacionados. Essa análise estatística faz sentido dentro do que ficou exposto, isto é, que uma sintomatologia referida pelas próprias pessoas representa razoavelmente bem seu estado de saúde. As variáveis dores nos ombros, braços, pernas e problemas de coluna, e também varizes,3 foram pesquisadas conjuntamente, num único sintoma denominado dores osteomusculares. Buscou-se verificar a associação desse sintoma com certas condições dos ônibus (apoio para as costas, banco com ajuste vertical, direção ajustável, trepidação, muito ruído), da organização do trabalho (extensão da jornada, presença ou não de pausas de descanso, número dessas pausas ) ou de hábitos pessoais do motorista (prática de esporte). Essas dores constituem o maior problema de saúde dos motoristas, depois da obesidade, como pode ser conferido na Tabela 5. Obesidade A obesidade e a pré-obesidade, medidas pelo Índice de Massa Corporal,2 constituem um grave problema de saúde dos motoristas, tanto em Belo Horizonte como em 61 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 Problemas Gastrointestinais Em São Paulo, quase todas as variáveis consideradas apresentaram significância estatística, dentro do modelo ajustado. Assim, a chance de o motorista sofrer dores, quando dirige ônibus com trepidação, é 2,5 vezes maior do que quando não há trepidação; quando o banco não tem ajuste vertical, a chance é 1,5 vez maior ou, mais precisamente, 53% maior; quando não existe apoio anatômico para as costas, a chance é 38% maior; quando o motorista não pratica esporte, ele tem 28% a mais de chance de apresentar dores; e quando tem pelo menos uma pausa de 5 minutos ou mais para descanso em sua jornada de trabalho, a chance diminui cerca de 5%; com quatro pausas, a redução é de 17%. A idade, introduzida no modelo para controle, apresentou em São Paulo certa importância explicativa: a chance de o motorista apresentar dores cresce geometricamente a uma razão de 1,01 a cada ano adicional de idade, de tal maneira que, aos 40 anos, é 30% maior que aos 22 anos, idade de referência. O papel da idade, que assume importância neste e em outros sintomas, está completamente em desacordo com o que seria de se esperar, dada a relativa juventude dos motoristas, todos em plena idade ativa. Sabe-se que o envelhecimento funcional precoce não está necessariamente associado à idade cronológica. Estudos conduzidos na Europa e também no Brasil (Ilmarinen, 1999; Bellusci; Fischer, 1999; Fischer, 2002) indicam que boas condições de trabalho e estilo de vida saudável permitem a manutenção da saúde e da capacidade de trabalho até idades avançadas. Em Belo Horizonte, um menor número de variáveis está associado ao aparecimento de dores osteomusculares. A existência de trepidação dentro do ônibus foi a variável decisiva, pois ela aumenta 2,1 vezes a chance de desenvolver dores, com relação aos que não estão sujeitos a ela, com alta significância estatística. A extensão da jornada mostrou-se importante no modelo ajustado para Belo Horizonte: os motoristas que trabalham 8:40 horas ou mais têm chance 41% maior de apresentar dores do que os que trabalham até 8:39 horas diárias. Assim, a trepidação dentro do ônibus é de longe a condição de trabalho que mais sofrimento causa aos motoristas das duas metrópoles. Provavelmente ela tem a ver com o modelo de ônibus usado e seu estado de conservação e também com a qualidade das vias públicas. A eliminação da trepidação deveria ser objeto de políticas voltadas tanto para a melhoria das vias públicas, como da garantia de um equipamento mais adequado para o trabalho dos motoristas. Foram consideradas, na análise deste sintoma, a extensão da jornada, a existência ou não de pausas de descanso e seu número, se o motorista tem ou não pausa para refeição, o medo de assalto, medo de demissão, e consumo de bebida alcoólica. Em Belo Horizonte, o medo de assalto dentro do ônibus é a variável mais importante para explicar o comportamento dos distúrbios gastrointestinais, aumentando em 72,6% a chance de seu aparecimento, com relação aos motoristas que não expressaram essa preocupação. Também o consumo de bebida alcoólica aumenta essa chance em 43,4%. A associação dos problemas gastrointestinais com a variável Tem pausa de 5 minutos ou mais, que se apresentou positiva, merece mais investigação, pois pode haver outras variáveis que estejam interferindo no resultado. Por outro lado, o número de pausas durante o trabalho atua no sentido inverso: a chance de distúrbios gastrointestinais diminui 9,4% a cada nova pausa acrescentada à jornada do motorista. Assim, com três pausas, tal chance sofreria uma redução de 25,7%. Em São Paulo, apenas o medo de assalto mostrou-se importante, aumentando em 43,8% a chance desses problemas. É interessante notar que a associação entre o medo de assalto e a chance de problemas gástricos é maior em Belo Horizonte do que em São Paulo, correspondendo a uma incidência maior de violência dentro dos veículos na primeira região (Tabela 6). Mas esse medo afeta a saúde dos motoristas das duas metrópoles de modo alarmante, o que constitui uma razão a mais para que sejam implementadas políticas públicas de redução da violência. Vista Irritada Quanto a este problema, foram considerados a emanação de gases tóxicos dentro do ônibus, a existência ou não de ventilação adequada e o hábito de fumar. Em São Paulo, as condições de trabalho mais importantes para explicar o comportamento da chance de vista irritada, depois de controlada a idade, são a emanação de gases tóxicos, que dobra essa chance, e a ventilação inadequada, que a aumenta em 67%. Em Belo Horizonte, mostraram-se importantes a ventilação inadequada e a emanação de gases tóxicos, que incrementam, respectivamente, em 87% e 69% a chance do aparecimento desse problema. A idade, variável de controle, também tem um papel a desempenhar nas duas regiões. Em São Paulo, a chance desse problema aumenta a uma razão geométrica de 1,02 a cada 62 MORBIDADE DECLARADA E C ONDIÇÕES DE T RABALHO: O CASO... ano adicional de idade, o que resulta em um aumento de 47% aos 40 anos de idade. Em Belo Horizonte, a taxa de aumento é 1,03% ao ano, de tal maneira que, aos 40 anos, essa chance assume um valor 84% vezes maior. Horizonte, não foi possível ajustar um modelo ao nível de 10% para esse sintoma. Problemas Respiratórios Surgiram entre os motoristas das duas metrópoles queixas de perda de audição. Analisou-se, portanto, se haveria associação entre essa perda e a presença de muito ruído dentro dos veículos. Nas duas metrópoles essa relação mostrou-se altamente significante e de magnitude considerável, mesmo depois de controlada a variável idade. Tanto em São Paulo como em Belo Horizonte, a chance do surgimento de problemas de audição em motoristas de ônibus com muito ruído é mais que duas vezes maior, em Problemas Auditivos Para este sintoma, foram consideradas as mesmas variáveis que no caso da vista irritada. Em São Paulo, o modelo acusou associações significativas entre esses problemas e emanação de gases tóxicos e ventilação: a emanação de gases tóxicos e a ventilação inadequada aumentam em 75% e 48%, respectivamente, a chance de o motorista desenvolver problemas respiratórios. Já em Belo TABELA 8 Modelo Logístico Ajustado para Sintomas de Morbidade dos Motoristas de Ônibus Região Metropolitana de São Paulo – Dez. 2000 Sintomas Variável Coeficiente Erro-Padrão Significância Razão de Chances Intervalo de Confiança (95%) Limite Inferior Limite Superior Obesidade Idade Hipertensão Arterial Extensão de 8:40 ou Mais Constante 0,0353 0,4627 0,2737 -0,4396 0,0062 0,1541 0,1122 0,1528 <0,0001 0,0027 0,0147 0,0040 1,0359 1,5884 1,3148 1,0234 1,1743 1,0553 1,0486 2,1485 1,6381 Dores Osteomusculares Trepidação Número de Pausas Sem Apoio para Costas Idade Banco sem Ajuste Vertical Não Pratica Esportes Constante 0,9035 -0,0475 0,3211 0,0147 0,4268 0,2465 -0,4575 0,1123 0,0177 0,1250 0,0060 0,1890 0,1155 0,2165 <0,0001 0,0075 0,0102 0,0152 0,0240 0,0329 0,0346 2,4681 0,9536 1,3787 1,0148 1,5324 1,2796 1,9804 0,9210 1,0792 1,0028 1,0579 1,0203 3,0759 0,9874 1,7613 1,0269 2,2197 1,6047 Vista Irritada Gases Tóxicos Ventilação Inadequada Idade Fumante Constante 0,6741 0,5114 0,0214 0,2018 -0,6665 0,1485 0,1028 0,0056 0,1052 0,1289 <0,0001 <0,0001 0,0001 0,0551 <0,0001 1,9623 1,6676 1,0216 1,2236 1,4667 1,3634 1,0105 0,9956 2,6255 2,0398 1,0328 1,5038 Problemas Gastrointestinais Medo de Assalto Constante 0,3633 -1,2075 0,1374 0,1244 0,0082 <0,0001 1,4381 1,0986 1,8824 Problemas Auditivos Ruído Idade Constante 0,7959 0,0228 -2,5276 0,1408 0,0072 0,1856 <0,0001 0,0014 <0,0001 2,2165 1,0231 1,6820 1,0088 2,9209 1,0375 Problemas do Sono Medo de Acidente Extensão de 8:40 ou Mais Constante 0,3794 0,1125 -1,9589 0,1526 0,1441 0,1679 0,0129 0,4350 <0,0001 1,4614 1,1191 1,0837 0,8437 1,9708 1,4843 Problemas Respiratórios Gases Tóxicos Ventilação Inadequada Constante 0,5624 0,3931 -1,9560 0,1693 0,1361 0,0920 0,0009 0,0039 <0,0001 1,7549 1,4815 1,2595 1,1346 2,4452 1,9346 Fonte: Fundação Seade; Fundacentro. Pesquisa de Condições de Saúde e Segurança dos Motoristas. 63 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 Problemas do Sono comparação com a dos motoristas que não registraram a existência de ruído dentro do ônibus. Por outro lado, a idade acrescenta perda auditiva (presbiacusia). No modelo ajustado para São Paulo, a chance desse problema aumenta geometricamente 1,02 a cada ano adicional de idade, o que resulta em uma chance 51% maior aos 40 anos de idade. Para Belo Horizonte, o incremento anual é 1,04, levando, aos 40 anos, a uma perda cerca de 100% maior, com relação à idade de referência. Foram considerados, com relação ao sono, a extensão da jornada, a “dupla pegada” em Belo Horizonte, o horário alternante ou irregular, a prática do turno noturno, os medos de acidente, assalto e demissão e a ingestão de bebida alcoólica. Em São Paulo, a única variável que se revelou significante foi o medo de acidente, que aumenta em 46% a chance de os motoristas terem problemas de TABELA 9 Modelo Logístico Ajustado para Sintomas de Morbidade dos Motoristas de Ônibus Região Metropolitana de Belo Horizonte – Jan. 2002 Sintomas Obesidade Variável Intervalo de Confiança (95%) Coeficiente Erro-Padrão Significância Razão de Chances Limite Inferior Limite Superior Idade Extensão de 8:40 ou Mais e Não Pratica Esportes (Interação) Número de Pausas Hipertensão Arterial Não Pratica Esporte Extensão de 8:40 ou Mais Constante 0,0262 0,0081 0,0013 1,0266 1,0103 1,0431 -0,8204 -0,0908 0,4626 0,2437 0,3337 -0,9490 0,3601 0,0424 0,2562 0,1466 0,2812 0,3526 0,0227 0,0320 0,0709 0,0965 0,2354 0,0071 0,4403 0,9132 1,5883 1,2760 1,3961 0,2174 0,8404 0,9613 0,9573 0,8045 0,8917 0,9922 2,6241 1,7007 2,4227 Dores Osteomusculares Trepidação Extensão de 8:40 ou mais Direção Ajustável Idade Constante 0,7325 0,3436 0,2466 0,0121 -0,4051 0,1523 0,1754 0,1366 0,0078 0,1800 <0,0001 0,0501 0,0709 0,1192 0,0244 2,0803 1,4100 0,7814 1,0122 1,5433 0,9998 0,5979 0,9969 2,8041 1,9883 1,0213 1,0278 Vista Irritada Ventilação Inadequada Idade Gases Tóxicos Constante 0,6278 0,0338 0,5236 -1,5243 0,1544 0,0082 0,2863 0,1751 <0,0001 <0,0001 0,0675 <0,0001 1,8734 1,0344 1,6881 1,3842 1,0179 0,9631 2,5355 1,0512 2,9589 Problemas Gastrointestinais Medo de Assalto Bebida Tem Pausa de 5 Minutos ou Mais Número de Pausas Constante 0,5456 0,3606 0,8319 -0,0988 -2,2972 0,2204 0,1539 0,4494 0,0552 0,4577 0,0133 0,0192 0,0642 0,0733 <0,0001 1,7256 1,4342 2,2977 0,9059 1,1203 1,0606 0,9523 0,813 2,6578 1,9392 5,5441 1,0094 Problemas Auditivos Ruído Idade Constante 0,8396 0,0410 -3,0093 0,1944 0,0114 0,2655 <0,0001 0,0003 <0,0001 2,3155 1,0419 1,5819 1,0189 3,3892 1,0654 Problemas do Sono Medo de Acidente Extensão de 8:40 ou Mais Constante 0,5979 0,4671 -2,4063 0,229 0,2297 0,2082 0,0090 0,0420 <0,0001 1,8182 1,5954 1,1607 1,0170 2,8481 2,5026 Estresse Medo de Acidente Turno Alternante ou Irregular Medo de Assalto Extensão de 8:40 ou Mais Constante 0,5382 -0,4593 0,4979 0,4302 -0,9756 0,1545 0,1587 0,1907 0,1767 0,2245 0,0005 0,0038 0,0090 0,0149 0,0000 1,7129 0,6317 1,6453 1,5376 1,2653 0,4629 1,1321 1,0876 2,3189 0,8621 2,3911 2,1738 Fonte: Fundação Seade; Fundacentro. Pesquisa de Condições de Saúde e Segurança dos Motoristas. 64 MORBIDADE DECLARADA E C ONDIÇÕES DE T RABALHO: O CASO... sono, com relação aos que não têm esse medo. A extensão da jornada, mesmo que não significante, foi mantida no modelo como variável de controle, com a finalidade de tornar mais clara a associação entre as outras variáveis e o sintoma. Também em Belo Horizonte, a variável mais importante para explicar o comportamento da chance de o motorista ter problemas do sono foi o medo de acidente. De fato, os motoristas que apontaram esse medo têm uma chance 82% maior do que os que não o declararam. Além disso, o efeito da extensão da jornada também é considerável, pois aumenta em 59,5% a chance do problema, com relação a motoristas com jornadas mais curtas. A presença do estresse foi investigada em Belo Horizonte, porém não em São Paulo. As variáveis consideradas foram: medo de acidente, medo de assalto, medo de ser demitido, extensão da jornada, turno alternante ou irregular, turno noturno e “dupla pegada”. Mostraram-se significantes o medo de acidente, o medo de assalto, a extensão da jornada e o horário alternante ou irregular, todos com alto poder explicativo. Porém a variável mais importante foi o medo de acidente, que aumenta em 71% a chance de estresse, com relação aos motoristas que não têm essa preocupação. O medo de assalto e a extensão da jornada aumentam a chance de estresse, respectivamente, em 65% e 54%. O horário alternante ou irregular mostrou um efeito curioso: a hipótese era de que ele aumentaria a chance de estresse; porém, no modelo ajustado, ele a reduz em 37%. É possível que as mudanças de horário de trabalho tenham um efeito protetor, por alternarem horários desfavoráveis, com entrada muito cedo ou saída muito tarde da noite, quando é maior a possibilidade de assaltos. Os modelos ajustados finais, com especificação de algumas estatísticas que podem interessar aos leitores, são apresentados nas Tabelas 8 e 9. trajetos menores a percorrer. Entretanto, são mais baixos os percentuais dos que cumprem horário fixo e turno único e significativamente mais elevadas as proporções daqueles que fazem dois turnos de trabalho, a chamada “dupla pegada”, e dos que cumprem horários irregulares. Além disso, é muito mais alto em Belo Horizonte o percentual de motoristas sem pausa para a refeição. Por outro lado, o equipamento usado em Belo Horizonte parece ser de melhor qualidade que o de São Paulo. É mais freqüente em Belo Horizonte a presença de dispositivos que oferecem mais conforto ao motorista (direção ajustável, direção hidráulica, cinto de segurança de três pontos, apoio anatômico para as costas, ajuste vertical do assento, ajuste para alcance dos pedais), e menos comuns as queixas de trepidação, ruído e gases dentro dos ônibus. Mesmo assim, os dois grupos de profissionais enfrentam condições de trabalho muito duras e apresentam sérios problemas de saúde. Dentro do conceito, hoje consensual na literatura especializada, da validade de sintomas referidos para diagnosticar condições de morbidade, é perfeitamente cabível proceder-se à busca de explicações para os problemas de saúde dos motoristas nas condições em que vivem e trabalham. De fato, a análise estatística efetivada revelou a existência de relações muito importantes entre algumas das condições de trabalho e a sintomatologia de morbidade declarada pelos motoristas, nas duas regiões. Essa análise foi realizada, de um lado, da ótica do instrumento de trabalho do motorista – o ônibus. Verificouse que várias características dos ônibus – a trepidação, o ajuste vertical do banco, apoio anatômico para as costas, a emanação de gases tóxicos, ventilação inadequada e muito ruído – estão associados a diversos problemas de saúde, como dores osteomusculares, vista irritada, problemas respiratórios e auditivos. A trepidação, causada não só pelas condições dos ônibus mas também pela qualidade das vias públicas, mais do que dobra a chance de dores osteomusculares, acrescentando um sofrimento inútil aos motoristas das duas regiões. Uma política pública que realmente valorize o transporte coletivo há que enfrentar não só o tipo de ônibus e sua conservação, como também o estado das vias públicas. Outros aspectos analisados dizem respeito à organização do trabalho dos motoristas, como a extensão da jornada e a existência e freqüência de pausas para descanso durante a jornada. A extensão da jornada mostrou-se associada, nos modelos ajustados, à obesidade, ao aparecimento de dores osteomusculares, problemas do sono e CONSIDERAÇÕES FINAIS Verificou-se a existência de muitas similaridades entre os motoristas de ônibus de Belo Horizonte e os de São Paulo, tanto nas características pessoais como nos aspectos referentes à ocupação. Quanto às características da ocupação e da organização do trabalho, verificaram-se vantagens ora para uma região, ora para outra, sendo difícil afirmar em que local a situação está melhor. Os motoristas de Belo Horizonte praticam jornadas mais curtas que os de São Paulo e têm 65 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 estresse. Ora, existem estudos que mostram que uma pessoa muito cansada e sonolenta oferece o mesmo risco, ao volante, que uma pessoa alcoolizada (Rajaratnam; Arendt, 2001). Não é à toa que um dos grandes medos dos motoristas é serem envolvidos em acidentes. Ao lado da redução da jornada diária, principalmente em São Paulo, onde se praticam jornadas extremamente longas (10 horas e 20 minutos, em média), essa situação poderia ser amenizada pela introdução de mais pausas de descanso. Por exemplo, com um melhor planejamento do trabalho, os longos percursos poderiam ser quebrados por pausas mais freqüentes, que permitiriam ao motorista movimentar-se e fazer alguns exercícios bem orientados para braços e pernas, além de relaxar a atenção continuada que o trânsito exige dele ao volante, reduzindo o cansaço e o estresse. Em alguns dos modelos ajustados, um número maior de pausas, controladas as outras variáveis, mostrou-se associado a menor incidência de obesidade, dores musculares e problemas gastrointestinais. Há problemas de âmbito mais geral, que incidem em toda a sociedade e cuja solução requer medidas sociais e políticas mais amplas. Deles resulta que cada motorista é acompanhado, na sua labuta diária, por uma coleção de medos (ser assaltado, sofrer acidente, morrer, ficar doente, ser demitido) que repercutem sobre sua saúde, gerando estresse, problemas do sono e outros sintomas. Nos modelos ajustados no presente estudo, ficou constatada a associação entre o medo de assalto e problemas gastrointestinais, e o medo de acidente e problemas do sono e estresse. A incidência de episódios de violência dentro dos ônibus é tão alta, que se tornou corriqueira, quando deveria mobilizar a sociedade e os poderes públicos a tomarem providências enérgicas, pois coloca em risco não só a saúde do motorista, como também sua vida e a dos passageiros. Uma iniciativa nesse sentido é a experiência, em curso em Belo Horizonte, de instalação de câmeras de TV nos ônibus. Em princípio, a possibilidade de identificação de agressores tenderia a dissuadir a prática da violência dentro dos veículos. As associações observadas entre idade e vários dos sintomas de morbidade não podem ser atribuídas simplesmente à idade cronológica, pois sabe-se que os motoristas sofrem um desgaste incompatível com sua idade cronológica, devido às más condições de trabalho. Medidas que venham a amenizar essas condições também enfraquecerão os efeitos da idade sobre a saúde dos motoristas. Pelo que foi visto, pode-se concluir que, nas duas metrópoles, os motoristas do transporte de passageiros estão sendo submetidos a condições de trabalho muito penosas, que afetam sua saúde e segurança, como também a segurança dos passageiros. Isso indica a necessidade de implementação de medidas preventivas de múltiplo alcance, que busquem, simultaneamente, melhorar a qualidade dos veículos em circulação, fiscalizar de forma mais eficiente o cumprimento dos acordos coletivos e da legislação trabalhista, em especial quanto à extensão da jornada e suas pausas, e estabelecer um monitoramento epidemiológico da saúde física e mental dos profissionais da categoria. Quando mais não fosse, pela importância do transporte coletivo para o bem-estar de toda a comunidade. NOTAS Nossos agradecimentos à Fundacentro, que disponibilizou as bases de dados decorrentes da realização das pesquisas para a análise que constitui objeto deste artigo. Agradecemos, também, a Paula Montagner, que criou condições para a produção deste artigo e por suas valiosas sugestões e a Edna Yukiko Taira, por sua colaboração no preparo dos dados para a análise estatística. 1. Segundo representantes da Transurb, a velocidade média dos ônibus diminuiu de cerca de 20 a 24 km/h para 12 km/h entre o início dos anos 90 e 2000. 2. O IMC – Índice de Massa Corporal – é obtido dividindo-se o peso pelo quadrado da altura do indivíduo. São consideradas obesas e préobesas as pessoas com IMC maior ou igual a 25. 3. As varizes foram agrupadas com as dores osteomusculares porque usualmente quem tem varizes também sente dores nas pernas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BELLUSCI, S.M.; FISCHER, F.M. Envelhecimento funcional e condições de trabalho em servidores forenses. Revista de Saúde Pública, São Paulo, Faculdade de Saúde Pública, v.33, n.6, p.602609, jun. 1999. BENYAMINI, Y.; LEVENTHAL, E.A.; LEVENTHAL, H. Gender differences in processing information for making self-assessments of health. Psychosomatic Medicine, Philadelphia, Lippincott Williams & Wilkins, v.62, n.3, p.354-364, May/June 2000. BOLTANSKI, L. As classes sociais e o corpo. 3. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1989. 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COSTA : Demógrafa, Consultora da Fundação Seade ([email protected]). MITTI AYAKO HARA KOYAMA : Estatística, Analista da Fundação Seade. ELAINE GARCIA MINUCI: Estatística, Analista da Fundação Seade. FRIDA MARINA FISCHER : Bióloga, Professora do Departamento de Saúde Ambiental da Faculdade de Saúde Pública da USP ([email protected]). 67 SÃO 68-80, 2003 ÃO PAULO AULO EM EM PERSPECTIVA ERSPECTIVA, 17(2): 17(2) 2003 ACIDENTES COM MOTORISTAS NO TRANSPORTE RODOVIÁRIO DE PRODUTOS PERIGOSOS CARLOS EUGENIO DE CARVALHO FERREIRA Resumo: Pesquisa recente da Fundação Seade analisou as informações dos boletins de ocorrência de 1.622 acidentes de transporte com produtos perigosos, registrados entre 1997 e 1999. Os registros de acidentes envolvendo o transporte rodoviário de produtos perigosos foram localizados no espaço geográfico, em uma base georreferenciada, com a finalidade de se identificar as principais concentrações espaciais desses acidentes. Palavras-chave: produtos perigosos; acidentes rodoviários; acidentes com motoristas. Abstract: A recent study by the Fundação Seade analyzed 1,622 accident reports involving the highway transport of dangerous products between 1997 and 1999. These records were sorted geographically in order to identify where most of these accidents were concentrated. Key words: dangerous products; highway accidents; accidents with drivers. O s acidentes no transporte rodoviário de produtos perigosos adquirem uma importância especial, uma vez que a intensidade de risco está associada à periculosidade do produto transportado. Considera-se produto perigoso aquele que representa risco para as pessoas, para a segurança pública ou para o meio ambiente, ou seja, produtos inflamáveis, explosivos, corrosivos, tóxicos, radioativos e outros produtos químicos que, embora não apresentem risco iminente, podem, em caso de acidentes, representar uma grave ameaça à população e ao meio ambiente. Os acidentes no transporte desses produtos podem ter conseqüências catastróficas, sobretudo diante da proximidade de cidades e de populações lindeiras às principais rodovias. Além das perdas humanas de valor social incalculável, os custos decorrentes da contaminação ambiental atingem cifras muito elevadas. Pesquisa recente da Fundação Seade, em parceria com a Fundacentro/Ministério do Trabalho e Emprego e o Denatran/Ministério da Justiça, analisou as informações dos boletins de ocorrência de 1.622 acidentes de transporte com produtos perigosos, registrados pe- las Polícias Rodoviárias Estadual e Federal do Estado de São Paulo, entre 1997 e 1999. Os registros de acidentes envolvendo o transporte rodoviário de produtos perigosos foram localizados no espaço geográfico, em uma base georreferenciada, com a finalidade de se identificar as principais concentrações espaciais desses acidentes. Também foram evidenciadas algumas características relacionadas com as ocorrências, destacando-se os acidentes graves e fatais dos condutores de veículos. Foram pesquisadas também outras fontes de dados como a Relação Anual de Informações Sociais – Rais, do Ministério do Trabalho e Emprego, e as Comunicações de Acidentes do Trabalho – CATs do Instituto Nacional de Seguridade Social – INSS (Pesquisa de Acidentes do Trabalho de Motoristas e Cobradores, através das Informações Detalhadas das CATs, desenvolvida pela Fundação Seade em parceria com a Fundacentro/Ministério do Trabalho e Emprego e o Denatran/ Ministério da Justiça). Trata-se de uma análise descritiva que traz à tona elementos que podem contribuir para prevenção desses acidentes. 68 ACIDENTES COM MOTORISTAS NO TRANSPORTE RODOVIÁRIO DE... lado, a intensidade do tráfego de veículos transportando produtos perigosos e, por outro, os fatores de risco de acidentes atuando na rodovia. A malha rodoviária do Estado considera que, na rodovia codificada com número ímpar, um veículo estará circundando a capital a uma distância aproximada, em quilômetros, igual ao próprio número da rodovia. Na rodovia com o número par, o veículo estará se afastando ou se aproximando da capital. A maior ocorrência de acidentes foi verificada nesses grandes eixos com numeração par, que se destacam pela extensão e por constituírem as grandes rotas de transporte dos produtos perigosos para o interior paulista ou mesmo para além das fronteiras do Estado. A Via Anhangüera destaca-se pela elevada freqüência de acidentes, com média anual de 81 acidentes no período 1997-99, representando, assim, quase sete acidentes por mês. As rodovias Milton Tavares de Souza e Washington Luiz apresentaram média anual de acidentes de 46 e INCIDÊNCIA DE ACIDENTES NAS RODOVIAS PAULISTAS Conforme verificado nos registros de ocorrências da Polícia Rodoviária Estadual, houve um total de 1.563 acidentes durante o transporte de produtos perigosos nas rodovias do Estado de São Paulo, no período de 1997 a 1999, sendo 487 em 1997, 510 em 1998 e 566 em 1999. Nas rodovias federais foram registrados 23 acidentes em 1998 e 36 em 1999. Essas cifras revelam uma tendência crescente dos acidentes rodoviários no transporte de produtos perigosos. Nas rodovias estaduais, cerca de 60% dos acidentes foram registrados em dez rodovias e 32% em somente três – SP 330 (Via Anhangüera), SP 332 (General Milton Tavares de Souza) e SP 310 (Washington Luiz). Os acidentes nas rodovias federais que cruzam o Estado concentraram-se nas três principais: BR 381 (Fernão Dias), BR 116 (Via Dutra e Régis Bittencourt) e BR 153 (Transbrasiliana). A média anual de acidentes por rodovia, representada no Gráfico 1, permite uma comparação mais adequada entre as rodovias estaduais e federais, considerando-se que os períodos de referência são distintos. Ficam evidentes as grandes diferenças das médias anuais de acidentes por rodovia estadual e federal. Tais diferenças refletem, por um GRÁFICO 1 Média Anual de Acidentes no Transporte de Produtos Perigosos nas Principais Rodovias Estaduais e Federais Estado de São Paulo – 1997/1999 TABELA 1 Acidentes no Transporte de Produtos Perigosos, segundo as Principais Rodovias Estaduais e Federais Estado de São Paulo – 1997-1999 Principais Rodovias Rodovias Estaduais (1997-99) SP 330 (Via Anhangüera) % 100,00 15,55 SP 332 (Gen. Milton Tavares de Souza) 8,83 SP 310 (Washington Luiz) 8,00 SP 270 (Raposo Tavares) 4,54 SP 150 (Via Anchieta) 4,29 SP 300 (Via Rondon) 4,29 SP 304 (Luiz de Queiroz) 4,09 SP 225 (Eng. Paulo Nilo Coelho) 3,45 SP 280 (Pres. Castello Branco) 3,45 SP 348 (Rod. Bandeirantes) 3,33 Demais Rodovias Federais (1998-99) 40,18 100,00 BR 381 (Fernão Dias) 45,76 BR 116 (Via Dutra, Régis Bittencourt) 40,68 BR 153 (Transbrasiliana) 13,56 Fonte: Polícias Rodoviárias Estadual e Federal; Fundação Seade. Fonte: Polícias Rodoviárias Estadual e Federal. 69 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(2) 2003 o acidente. Essa informação começou a ser coletada pela Polícia Rodoviária a partir de 1998 e procurou-se analisála para o biênio 1998-99. Foram construídos gráficos para as principais rodovias, assinalando-se o número de acidentes ocorridos em cada dez quilômetros, tornando-se mais visíveis as concentrações de acidentes ao longo da rodovia (Gráfico 2). A análise dos gráficos demonstra que os acidentes se distribuem de forma muito diferenciada no interior de cada rodovia, com concentrações que variam significativamente em intensidade. A SP 332 (General Milton Tavares de Souza) apresenta o maior pico de concentração de acidentes, localizado entre os quilômetros 130 e 140, com mais de 35 acidentes em dois anos de observação. A freqüência de acidentes começa a aumentar a partir do quilômetro 110 e se reduz sensivelmente depois do quilômetro 150. Do início da rodovia até o quilômetro 100, praticamente não foram registrados acidentes no transporte de produtos perigosos, no período analisado. Nos 50 quilômetros seguintes verificam-se as maiores incidências de acidentes do Estado para, em seguida, cair a níveis baixos, até o fim da rodovia. Esse trecho de 50 quilômetros situa-se, aproximadamente, entre o trevo de cruzamento com a Rodovia Dom Pedro I, em Campinas, e a cidade de Cosmópolis. Trata-se do principal acesso à maior refinaria do país, a Replan (Refinaria de Paulínia). A Rodovia General Milton Tavares de Souza (SP 332) apresenta um volume médio diário de veículos muito intenso, em grande parte constituído pelo transporte de produtos perigosos, representando uma das maiores concentrações de tráfego comercial da malha rodoviária do Estado. O elevado número de acidentes nessa estrada suscitou intervenções para melhorar as condições do tráfego, incluindo obras de recuperação, recapeamento, conexões, sinalização, etc. e projetos de duplicação de trechos mais críticos. Cabe destacar a construção de um estacionamento, no final da década de 90, para os veículos de transporte que se destinam à refinaria, o que contribuiu para racionalizar o fluxo de entrada e saída de veículos nas instalações industriais e evitar o estacionamento irregular nos acostamentos. Os resultados dessas iniciativas deverão se refletir nas estatísticas de acidentes mais recentes (após 1999). A localização de refinarias e outras instalações industriais químicas e petroquímicas nas Regiões Metropolitanas de Campinas, da Baixada Santista e de São Paulo, que representam a maior concentração populacional do país, alimenta o intenso fluxo de veículos transportando produtos perigosos que disputam, com outros veículos de 42 ocorrências respectivamente, significando quase quatro acidentes por mês nessas rodovias. Constata-se também uma grande diferença na distribuição dos acidentes no interior de cada rodovia isoladamente. Essas diferenças podem ser observadas nos trechos rodoviários delimitados pelas fronteiras dos municípios. As maiores médias anuais de ocorrências de acidentes foram constatadas nos trechos rodoviários da SP 332 (General Milton Tavares de Souza), município de Paulínia (23,67 acidentes anuais) e Cosmópolis (10,67); da SP 330 (Via Anhangüera), município de Limeira (17,67); e da SP 150 (Via Anchieta), município de São Bernardo do Campo (10,67) e Cubatão (9,67). Em seguida, destaca-se o trecho rodoviário da BR 381 (Fernão Dias), município de Mairiporã (7,50), de jurisdição federal. A média de acidentes nesses municípios, somente dos trechos rodoviários mencionados, representa cerca de 15% do valor correspondente a todo o Estado de São Paulo. Esses resultados são decisivos no número total de acidentes registrados nos municípios. Assim, analisando-se a distribuição dos acidentes por município, verificou-se que os municípios do Estado de São Paulo que concentraram o maior número de acidentes foram: Paulínia (72 acidentes), Limeira (72), Campinas (71), São Bernardo do Campo (53), Cubatão (46) e Cosmópolis (36). A localização de uma refinaria de grande porte, em Paulínia, é decisiva na explicação do intenso movimento de transporte de produtos químicos na região, da mesma forma que o complexo químico do município de Cubatão justifica o intenso movimento de transporte desses produtos neste município e em São Bernardo do Campo. A concentração de acidentes em tais regiões está diretamente associada ao intenso fluxo de veículos de carga somado ao fluxo, não menos intenso, de automóveis e outros veículos. Outros fatores de risco que agravam esse quadro estão relacionados com as condições das rodovias, a segurança dos veículos de carga e o perfil profissional do condutor. PONTOS DE CONCENTRAÇÃO DOS ACIDENTES COM PRODUTOS PERIGOSOS A análise anterior demonstrou a existência de grandes concentrações de acidentes segundo as rodovias e os trechos de rodovias delimitados pelas fronteiras dos municípios. Trata-se, agora, de refinar a identificação desses acidentes recorrendo-se a um procedimento metodológico que leve em conta o quilômetro da rodovia onde ocorreu 70 ACIDENTES COM MOTORISTAS NO TRANSPORTE RODOVIÁRIO DE... TABELA 2 carga, de passageiros, de passeio, etc., o espaço rodoviário que se torna relativamente escasso nas principais vias de acesso aos centros urbanos. Além disso, somam-se os fatores de risco agravantes, relacionados às condições das estradas, às condições da frota de veículos, ao preparo dos condutores, etc. Considerando que o sistema de transporte no Brasil é principalmente rodoviário, as questões de adequação da malha rodoviária e o estudo de rotas alternativas para o transporte de produtos perigosos são cruciais em regiões densamente povoadas. Várias concentrações de acidentes também foram observadas em outras rodovias, tais como na Via Anchieta, quilômetros 40 a 49; na Via Anhangüera, com vários picos importantes; na Fernão Dias, quilômetros 60 a 69; etc. Outras rodovias, entretanto, apresentam um comportamento mais homogêneo na distribuição dos acidentes, como a SP 280 (Pres. Castello Branco) que registra casos ao longo de toda a sua extensão, porém com freqüência relativamente baixa. Em síntese, as curvas construídas com as informações dos acidentes, segundo o local da ocorrência em quilômetros, dão uma idéia clara dos padrões diferenciados de concentração dos acidentes e constituem um ponto de referência valioso para pesquisas mais aprofundadas sobre os fatores determinantes envolvidos com o problema (Gráfico 2). Acidentes no Transporte de Produtos Perigosos Ocorridos nas Rodovias Estaduais, segundo Classes do Produto Transportado Estado de São Paulo – 1997-1999 Classes do Produto Transportado % Total 100,00 Gases inflamáveis 8,32 Gases comprimidos não tóxicos e não inflamáveis 1,66 Gases tóxicos por inalação 1,92 Líquidos inflamáveis 57,01 Sólidos inflamáveis 0,64 Substâncias passíveis de combustão espontânea 0,13 Substâncias que, em contato com a água, emitem gases inflamáveis 0,13 Substâncias oxidantes 0,58 Substâncias tóxicas 1,15 Substâncias corrosivas 11,71 Substâncias perigosas diversas 2,82 Ignorado 13,95 Fonte: Polícia Militar Rodoviária Estadual; Fundação Seade. creto no 96.044, de 18 de maio de 1988, e Portaria n. 204, de 20 de maio de 1997, do Ministério dos Transportes). O sistema internacional de classificação dos produtos perigosos considera nove classes de risco e a classificação dos materiais identificados nos acidentes foi realizada com base na tabela dos produtos que consta do Manual de Emergências, editado pela Associação Brasileira da Indústria Química – Abiquim. Cada registro de acidente do banco de dados foi recodificado com o número da classe de risco constante na tabela do referido manual. Dessa forma, tornou-se possível agrupar os produtos por classes de risco da ONU. A Tabela 2 mostra que, entre os principais produtos transportados e associados com algum acidente, 57,01% estão relacionados com transporte de líquidos inflamáveis, 11,71% com substâncias corrosivas e 8,32% com gases inflamáveis. CLASSIFICAÇÃO DOS PRODUTOS PERIGOSOS TRANSPORTADOS NAS RODOVIAS Entre as informações coletadas pelo policiamento rodoviário na ocorrência de um acidente envolvendo um veículo que transporta produtos perigosos, consta a especificação do produto através do código de identificação da Classificação Internacional de Produtos Perigosos adotado pelas Nações Unidas, conhecido também como o “Número da ONU”. A informação sobre os produtos tem um caráter prioritário para o atendimento, no caso de um acidente. As conseqüências dos acidentes no transporte desses materiais podem assumir dimensões catastróficas quanto ao número de vítimas, aos danos causados ao meio ambiente e aos elevados custos direta e indiretamente envolvidos. Além da documentação exigida por lei – que inclui a comprovação do treinamento do motorista, a ficha de emergência do produto e o manual de emergências –, a legislação brasileira determina que a unidade de transporte deve identificar o produto transportado através de painéis de segurança e rótulos de risco, segundo os padrões previstos de tamanho, cor e local de fixação no veículo (De- OS RISCOS PARA AS POPULAÇÕES LINDEIRAS E PARA O MEIO AMBIENTE Os riscos de acidentes no transporte rodoviário de produtos perigosos adquirem importância vital para as populações lindeiras. Considerando que muitas aglomerações se desenvolveram às margens das estradas e, de certa forma, tiveram seu crescimento demográfico influenciado pelo movimento das rodovias, é muito significativo o risco dos acidentes para as populações expostas nas proximidades das estradas. Existem muitos casos em que a rodovia principal corta a cidade e a ocorrência de aci- 71 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(2) 2003 GRÁFICO 2 Padrões de Concentração de Acidentes no Transporte Rodoviário de Produtos Perigosos, segundo Localização (Km) na Rodovia Estado de São Paulo – 1998-1999 SP-332 (General Milton Tavares de Souza) No de Acidentes BR-381 (Fernão Dias) o N de Acidentes SP-310 (Washington Luiz) No de Acidentes (Continua) 72 ACIDENTES COM MOTORISTAS NO TRANSPORTE RODOVIÁRIO DE... GRÁFICO 2 Padrões de Concentração de Acidentes no Transporte Rodoviário de Produtos Perigosos, segundo Localização (Km) na Rodovia Estado de São Paulo – 1998-1999 SP-150 (Via Anchieta) No de Acidentes SP-330 (Via Anhangüera) No de Acidentes SP-280 (Pres. Castello Branco) No de Acidentes Fonte: Polícia Militar Rodoviária Estadual. 73 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(2) 2003 Sul. No litoral, aparecem os casos registrados em São Vicente, Santos e Guarujá. Para se ter uma visão do conjunto dos casos no espaço geográfico paulista, as principais conseqüências desses acidentes (vazamentos, derramamentos, incêndios, explosões e outras) foram classificadas e representadas, segundo o município de ocorrência, no Mapa 1. Outra informação muito relevante coletada pelo policiamento rodoviário estadual diz respeito ao acidente ter causado, ou não, danos ao meio ambiente. Esses dados foram relacionados com o município de ocorrência e apresentados no Mapa 2. Cabe ressaltar que é possível, no momento do preenchimento do formulário pelo policial rodoviário, que não houvesse, ainda, um conhecimento completo das reais dimensões da catástrofe e suas repercussões ambientais. Dessa forma, parece correto considerar que a identificação dos casos que causaram danos ao meio ambiente tende a subestimar o número real de casos. dente envolvendo o transporte de produtos perigosos pode ter conseqüências calamitosas para a população local. A análise dos dados georreferenciados indicou que muitos desses acidentes ocorreram em trechos rodoviários que cortam as principais manchas urbanas do Estado de São Paulo. Ficou evidente a freqüência de acidentes em uma das regiões mais populosas do Estado, a Região de Campinas. A mancha urbana correspondente ao município de Campinas apresenta o maior número de ocorrências nos trechos rodoviários que cortam a cidade, mas foram registrados vários casos em outras manchas urbanas da mesma região, correspondentes aos municípios de Sumaré, Americana, Piracicaba, Limeira, etc. Situação semelhante se verifica nas vias que passam pelo município de Cubatão. O trecho da Via Anchieta, principal acesso à Refinaria de Cubatão para o transporte de produtos perigosos, localizado na Serra do Mar, apresenta maior concentração de acidentes. Muitos ocorreram, também, no interior das manchas urbanas dos municípios do ABC e da Baixada Santista. Os municípios de Cubatão e de São Bernardo do Campo são os que apresentam o maior número de ocorrências. Na mancha urbana da Grande São Paulo foram também assinalados os acidentes ocorridos nos trechos rodoviários correspondentes aos municípios de Diadema e São Caetano do PERFIL DOS MOTORISTAS Com o objetivo de traçar o perfil socioeconômico da população ocupada e contribuinte na classe de condutores de transporte rodoviário de produtos perigosos (Clas- MAPA 1 Acidentes no Transporte de Produtos Perigosos Ocorridos nas Rodovias Estaduais, segundo as Conseqüências Estado de São Paulo – 1997-99 Acidentes Incêndio/explosão Vazamento/derramamento Outras conseqüências Não houve acidente Fonte: Polícia Militar Rodoviária Estadual; Fundação Seade. 74 ACIDENTES COM MOTORISTAS NO TRANSPORTE RODOVIÁRIO DE... MAPA 2 Acidentes no Transporte de Produtos Perigosos Ocorridos nas Rodovias Estaduais que Causaram Danos ao Meio Ambiente Estado de São Paulo – 1997-99 Danos ao meio ambiente Localidade dos acidentes Fonte: Polícia Militar Rodoviária Estadual; Fundação Seade. Nota: As informações sobre os danos ao meio ambiente não são coletadas pela Polícia Rodoviária Federal. cia-se quanto ao rendimento do trabalho, cujo valor médio auferido por esta categoria profissional excede aquele percebido pelos condutores de cargas em geral (6,5 e 4,7 salários mínimos, respectivamente). A distribuição dos motoristas segundo a classe de rendimento, expresso em salários mínimos, demonstra que no caso dos produtos perigosos 65% dos trabalhadores recebem rendimentos acima de 5 salários mínimos, e nas cargas em geral esse percentual é de 29%. A escolaridade também apresenta diferença entre os dois contingentes, com um maior nível entre os transportadores de produtos perigosos. Verificou-se que 32% dos motoristas nesse ramo tinham até a quarta série completa, enquanto no caso das cargas em geral esse percentual foi de 25%. A mesma vantagem foi verificada ao se considerar a proporção de motoristas com a oitava série completa (34% e 26 %, respectivamente). Cabe ressaltar que no caso das cargas em geral, cerca de 10% dos motoristas tinham instrução inferior à quarta série e nos produtos perigosos esse percentual foi de 4%. Tais resultados aparecem no Gráfico 3. Quanto ao tamanho da empresa contratante, em volume de empregados, observa-se que as empresas que efetuam o transporte de cargas em geral são menores compa- sificação Nacional de Atividade Econômica – CNAE 60.27-5), tomou-se como situação de referência os ocupados no transporte de cargas em geral (CNAE 60.26-7). Para tanto, recorreu-se às informações contidas em um registro administrativo do Ministério do Trabalho e Emprego: a Relação Anual de Informações Sociais – Rais.1 A partir desses registros elegeram-se alguns atributos, tais como idade, escolaridade, rendimento do trabalho e tamanho da empresa. A variável gênero foi eliminada pelo reduzido efetivo de mulheres nesse exercício profissional (menos de 0,5%). A distribuição etária mostra maior proporção de condutores com mais idade no transporte de carga de produtos perigosos do que naquele de cargas em geral, muito possivelmente pela exigência de critérios mais restritivos, como experiência prévia e maior tempo de serviço no exercício do transporte de cargas. Cerca de 71% dos motoristas de produtos perigosos têm idade na faixa de 30 a 49 anos, enquanto nas cargas em geral esse percentual é de 61%. Da mesma forma, os motoristas menores de 30 anos representam cerca de 12% do total no primeiro caso e 29% no segundo. Através das informações da Rais, verifica-se que o perfil profissional de condutores de produtos perigosos diferen- 75 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(2) 2003 GRÁFICO 3 Distribuição dos Condutores de Transporte Rodoviário de Cargas, por Tipo de Carga, segundo Nível de Instrução Estado de São Paulo – 1998 Sem 4a Série 4a Série 8a Série 8a Série 2o Grau 2o Grau Superior Superior Instrução Incompleta Completa Incompleta Completa Incompleto Completo Incompleto Completo Ignorado Fonte: Ministério do Trabalho. RAIS. TABELA 3 Acidentes no Transporte de Produtos Perigosos, segundo o Horário do Acidente Estado de São Paulo – 1997-99 1997 Horário do Acidente 1998 1999 Total N Absolutos % N Absolutos % N Absolutos % N Absolutos % 487 71 124 165 127 0 100,00 14,58 25,46 33,88 26,08 - 510 82 152 154 122 0 100,00 16,08 29,8 30,2 23,92 - 566 96 142 188 140 0 100,00 16,96 25,09 33,22 24,73 - 1.563 249 418 507 389 0 100,00 15,93 26,74 32,44 24,89 - os Total Das 0 às 6h Das 6 às 12h Das 12 às 18h Das 18 às 24h Ignorado os os os Fonte: Polícia Militar Rodoviária Estadual. de instrução, salário médio mais alto, idade média mais elevada e são contratados por empresas com maior número de empregados. rativamente àquelas dedicadas ao transporte de produtos perigosos. Observou-se que 55% dos motoristas de produtos perigosos trabalhavam em empresas com mais de 50 funcionários; no caso das cargas em geral esse percentual foi de 36%. Calculando-se o número médio de empregados para cada uma das categorias em questão, obteve-se para o transporte de produtos perigosos o número médio de 155 empregados, e para cargas em geral, de 93. Em síntese, esses resultados apontam para um perfil diferenciado dos motoristas de veículos que transportam produtos perigosos em relação ao dos motoristas de cargas em geral, pois os primeiros apresentam maior nível CARACTERÍSTICAS DOS ACIDENTES Os acidentes se distribuem com maior intensidade nos dias úteis da semana, observando-se uma pequena concentração na sexta-feira. De modo geral, o domingo apresenta a menor freqüência de acidentes e o sábado situa-se numa posição intermediária. De acordo com o horário da ocorrência, a distribuição dos acidentes, em grupos de seis horas, mostra claramente a pre- 76 ACIDENTES COM MOTORISTAS NO TRANSPORTE RODOVIÁRIO DE... TABELA 4 Acidentes no Transporte de Produtos Perigosos, segundo as Condições da Pista Estado de São Paulo – 1997-99 1997 Condições da Pista 1998 N Absolutos % N Absolutos Total 487 100,00 510 Seca 361 74,13 377 6 1,23 106 21,77 os Neblina Molhada Enlameada Ignorado 1999 % Total N Absolutos % N Absolutos 100,00 566 100,00 1.563 100,00 73,92 458 80,92 1.196 76,52 9 1,76 9 1,59 24 1,54 114 22,35 92 16,25 312 19,96 os os os % 0 - 1 0,2 0 - 1 0,06 14 2,87 9 1,76 7 1,24 30 1,92 Fonte: Polícia Militar Rodoviária Estadual. As maiores freqüências de casos de acidentes graves e fatais ocorreram nas Rodovias SP 310 (Washington Luiz) e SP 330 (Anhangüera), com respectivamente 14 e 11 casos no período mencionado. Em seguida, aparecem as Rodovias SP 304 e SP 65, com cinco casos registrados em cada uma. Apesar de a Rodovia SP 332 (General Milton Tavares de Souza) apresentar a segunda maior freqüência de acidentes, a proporção dos graves e fatais (2,33%) é relativamente reduzida. Na Washington Luiz e na Anhangüera, esse valor correspondeu a 12,50% e a 4,93%, respectivamente. De modo geral, os acidentes mais graves para os motoristas são aqueles associados ao capotamento do veículo, quando o risco de acidentes graves e fatais é da ordem de 17,33% dos casos. Quanto às conseqüências do acidente, como era de se esperar, as maiores proporções de casos graves e fatais correspondem a incêndio/explosão (19,05%) e derramamento de produto químico (18,53%). Os dados coletados possibilitam também uma associação entre gravidade do acidente e idade do condutor do veículo. Verifica-se que as maiores proporções de acidentes graves e fatais ocorreram com motoristas nas faixas etárias de 15 a 29 anos e 50 anos e mais. Provavelmente a inexperiência dos mais jovens, agravada pela existência de um mercado de certificados ilícitos de capacitação técnica para o transporte de produtos perigosos, deve contribuir para essas evidências. Na faixa etária extrema superior, pode-se considerar as possíveis conseqüências de uma idade biológica que apresenta mais limitações diante do elevado estresse da ocupação e das sobrecargas do trabalho. Evidentemente, todas essas observações necessitam de uma análise mais detalhada, dentro de um modelo estatístico mais complexo, que relacione todas as variáveis dis- dominância do grupo das 12 horas às 18 horas, com maior incidência no intervalo entre 16 horas e 18 horas. A proporção de vítimas em acidentes nas rodovias com pista simples (37,2%) é maior do que naqueles ocorridos em rodovias com pista dupla (28,5%). A maioria dos acidentes ocorreu em trechos sem a presença de faixa adicional (84%), e somente 12,5%, naqueles com existência dessa faixa. A faixa adicional nas estradas constitui um fator de maior segurança para os condutores de veículos, sobretudo nos trechos que apresentam maior dificuldade de tráfego. A grande concentração de acidentes nos locais sem faixa adicional, portanto, pode ser uma evidência da sua importância na redução dos acidentes. A maior parte dos acidentes ocorreu em condições de pista seca (76,52%), vindo a seguir os acidentes em pista molhada (19,96%) e os demais, em condições de pista com neblina, enlameada ou ignorada (3,52%). É evidente que esses fatores de risco atuam sobre a segurança nas estradas, mas a grande concentração de acidentes em pista seca sugere a interferência de outras causas. ACIDENTES GRAVES E FATAIS Foram registrados, pela Polícia Rodoviária, 83 acidentes graves e fatais de motoristas que transportam produtos perigosos nas rodovias estaduais, durante o período de 1997 a 1999. Desse total, 34 foram fatais e 49 considerados graves, com o risco de ter ocorrido o óbito posteriormente. Cabe assinalar que, para se conhecer o número real de mortes, há necessidade de se recorrer a outro recurso metodológico, de vinculação de fontes de dados distintas (ocorrências policiais e declarações de óbitos), o que transcende os limites da atual pesquisa. 77 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(2) 2003 poníveis simultaneamente e controle as interações e interferências entre variáveis. Trata-se de um recurso metodológico que ultrapassa os limites da análise exploratória atual. GRÁFICO 4 Acidente do Trabalho de Motoristas de Caminhão e Similares de Produtos Perigosos, segundo Hora do Acidente Estado de São Paulo – 1997/1999 ACIDENTES DO TRABALHO Uma outra importante fonte de dados sobre acidentes de motoristas é a Comunicação de Acidentes do Trabalho (CAT), do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS). É por meio da CAT que se dá início ao processo de acidente do trabalho com o objetivo de estabelecer a causalidade entre acidente e trabalho, e de permitir a concessão dos benefícios ao trabalhador. As CATs são ricas em informações demográficas/sociais e possibilitam a identificação dos acidentes com motoristas de veículos que transportam produtos perigosos por intermédio dos códigos da CNAE (Classificação Nacional de Atividade Econômica) e da CBO (Classificação Brasileira de Ocupações). Os dados aqui analisados são os resultados do projeto “Pesquisa de Acidentes do Trabalho de Motoristas e Cobradores, através das Informações Detalhadas das CATs”, desenvolvida na Fundação Seade em parceria com a Fundacentro. A pesquisa no INSS identificou 49 processos de acidente do trabalho, inclusive fatais, relacionados com o transporte de produtos perigosos relativos às ocorrências do período de 1997 a 1999. Observa-se que todos os casos envolveram trabalhadores homens, sendo 73,47% casados, 16,33% solteiros, 4,08% divorciados ou separados. As maiores freqüências de casos do INSS ocorreram nas faixas etárias de 40-44 anos (26,53%) e de 35-39 anos (22,45%). Grande parte dos acidentes (75,50%) ocorreu com trabalhadores de mais de 35 anos de idade. Os resultados também indicam que, do total de acidentes sofridos pelos trabalhadores, 10,20% não provocaram afastamento do trabalhador de suas atividades profissionais e 36,73% determinaram afastamento de menos de 15 dias. Cabe destacar que 51,01% dos acidentes foram responsáveis por afastamentos de mais de 15 dias e menos de três meses. A comparação desse padrão de afastamento com aquele relativo ao total da categoria de motoristas e cobradores revelou uma grande semelhança entre os dois padrões de afastamentos, demonstrando que a atividade no transporte de produtos perigosos não é responsável por afastamentos significativamente mais longos que os verificados para o total da categoria de motoristas e cobradores. Fonte: Fundação Seade; INSS; Fundacentro/MTE; Denatran/MJ. Polícia Militar Rodoviária Estadual. TABELA 5 Acidente do Trabalho de Motoristas de Caminhão e Similares de Produtos Perigosos, segundo Município da Empresa Estado de São Paulo – 1997-99 Município da Empresa Casos % Total 49 100,00 Paulínia 15 30,61 São Paulo 13 26,53 São Bernardo do Campo 5 10,2 Araraquara 3 6,12 São José dos Campos 3 6,12 Bauru 2 4,08 Santo André 2 4,08 Campinas 1 2,04 Mirassol 1 2,04 Ribeirão Preto 1 2,04 Santos 1 2,04 Município do Estado do Paraná 1 2,04 Ignorado 1 2,04 Fonte: Fundação Seade; INSS; Fundacentro/MTE; Denatran/MJ. Outro aspecto apresentado pela pesquisa é o da freqüência de acidentes segundo o horário da ocorrência. A curva construída com esses dados, que aparece na Gráfico 4, deixa evidente a ocorrência de maior concentração de acidentes no período da tarde, com redução à noite e no horário do almoço. Esse padrão se aproxima daquele correspondente ao da distribuição dos acidentes registrados pela Polícia Rodoviária Estadual. 78 ACIDENTES COM MOTORISTAS NO TRANSPORTE RODOVIÁRIO DE... se sobressai quando analisada regionalmente ou por trechos de rodovia. Assim, por exemplo, ao serem considerados somente os acidentes da SP 332 (General Milton Tavares de Souza), a causa “via” passa a ser mencionada com uma freqüência duas vezes maior que na média do Estado. Ao se levar em conta também a informação sobre a qualidade da “sinalização”, a categoria “regular e ruim”, que atingiu 17% na média do Estado, passou para 71% na Rodovia SP 332. Esse exemplo não é um caso isolado e representa um indicador de que muitas vias não estão adequadas ao tráfego, faltando condições apropriadas de sinalização e outros itens de segurança da rodovia. A utilização de instrumentos de análise georreferenciados possibilitou o monitoramento dos acidentes e a análise de sua distribuição espacial, levando-se em conta a malha rodoviária do Estado, as divisões administrativas, as concentrações populacionais urbanas, etc. Foram identificados os principais pontos de concentração de acidentes do Estado, que poderão ser objeto de análises mais detalhadas em estudos específicos posteriores. Os pontos de concentração estão associados à confluência de rotas de transporte de produtos perigosos com as principais rotas de outros tipos de transporte ou de veículos de passeio, elevando significativamente a ocupação do espaço rodoviário nesses locais e, conseqüentemente, o risco de acidentes. A localização de diversos pólos químicos e petroquímicos nas regiões metropolitanas de Campinas, da Grande São Paulo e da Baixada Santista, que constituem a maior concentração populacional do país, requer um cuidado especial no traçado das rotas de transporte para produtos perigosos que reduza os riscos de acidentes e suas conseqüências sobre a população e o ambiente. Trata-se de uma tarefa que se torna cada vez mais difícil diante da defasagem entre a infra-estrutura rodoviária necessária ao aumento do tráfego e às condições atuais das rodovias. Os resultados da metodologia utilizada para mapear os acidentes podem ser úteis para subsidiar estudos de redimensionamento de demanda, identificação de pontos críticos e análise de rotas alternativas para o transporte de produtos perigosos. Este trabalho, evidentemente, não esgota o tema, mas propicia um panorama diversificado da problemática dos acidentes rodoviários que ocorrem no transporte de produtos perigosos no Estado de São Paulo e sugere procedimentos metodológicos que podem contribuir nas atividades de monitoramento e prevenção de tais acidentes. Os dados do INSS informam, também, sobre o município de ocorrência do acidente, o município de residência do trabalhador e o município da empresa transportadora. Os municípios que concentraram mais acidentes foram São Paulo, Paulínia e São Bernardo do Campo, e os municípios de residência mais freqüentes foram São Paulo, Cosmópolis, Campinas e Paulínia. Os municípios-sede das empresas transportadoras mais citados foram Paulínia, São Paulo e São Bernardo do Campo, tal como se observa na Tabela 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS As principais causas de acidentes com produtos perigosos foram atribuídas pela Polícia Rodoviária Estadual a erros do condutor (44,3% do total dos acidentes), vindo em seguida a categoria outros (23,61%), falhas com o veículo (21,83%) e condições da via (3,71%). A Polícia Rodoviária Federal também dá mais ênfase aos erros do condutor, sendo falta de atenção, excesso de velocidade e desobediência à sinalização os principais fatores envolvidos. Esses indicadores nos remetem à questão da educação para o trânsito e à importância do treinamento e capacitação para conduzir veículos transportando produtos perigosos. Embora esse último represente uma exigência legal para transportar tal tipo de produto, chama a atenção o fato de existirem casos de condutores de veículos acidentados com certificados de capacitação vencidos ou, até mesmo, sem portar nenhum certificado. Da mesma forma, essas estatísticas também revelam ocorrências com veículos sem equipamento de proteção individual, sem conjunto de emergência e sem extintor, significando que existe um número ainda maior de condutores de veículos operando em condições irregulares. Embora reduzidas em termos percentuais, essas situações irregulares podem ser a parte visível de uma problemática maior associada às condições reais de trabalho e ao padrão de educação e capacitação técnica dos condutores. A outra causa que se destaca nas estatísticas da Polícia Rodoviária relaciona-se a falhas do veículo, colocando em questão as condições da frota de veículos de transporte de produtos perigosos no que diz respeito à idade média da frota e a seu grau de atualização tecnológica. Certamente, as implicações das limitações tecnológicas e falhas mecânicas, tratando-se de transporte de produtos perigosos, podem ter conseqüências devastadoras sobre a população e o meio ambiente. Quanto às condições das vias, aparece com a menor freqüência nas estatísticas do Estado de São Paulo, mas 79 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(2) 2003 NOTA (Mestrado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1997. 1. A relação Anual de Informações Sociais – Rais é um registro administrativo, de âmbito nacional, com periodicidade anual, obrigatório para todos os estabelecimentos, inclusive aqueles sem ocorrência de vínculos empregatícios no exercício, tendo esse tipo de declaração a denominação de Rais Negativa. SÃO PAULO (Estado). Assembléia Legislativa de São Paulo. Cadernos do Fórum São Paulo Século XXI. Diário Oficial do Estado de São Paulo, 110 (107/109), jun. 2000. Suplemento. ________ . Secretaria de Segurança Pública. O que você deve saber sobre produtos perigosos. Disponível em: < www.polmil.gov.br/unidades/cprv >. Acesso em: maio 2002. [site da Polícia Militar Rodoviária do Estado de São Paulo]. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ZHANG, J. et al. Padrões etários de fatores relacionados a acidentes de tráfego fatais: enfoque sobre motoristas jovens e idosos. Revista da Associação Brasileira de Acidentes e Medicina de Tráfego, São Paulo, n.35, maio/jun. 2000. ABIQUIM, Departamento Técnico. Comissão de Transportes. Manual para atendimento de emergências com produtos perigosos. 3. ed. São Paulo, 1999. 234p. FUZETTI, R.V. O poder público municipal e o transporte rodoviário de produtos perigosos no município de São Paulo. 2000. Dissertação (Mestrado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000. CARLOS EUGENIO DE CARVALHO FERREIRA: Pesquisador da Fundação RAMOS, F.B. Metodologia para escolha de alternativas de rotas para o transporte de materiais perigosos. 1997. Dissertação Seade ([email protected]). 80 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2): 81-90, 2003 ACIDENTES DO T RABALHO R URAL NO INTERIOR P AULISTA ACIDENTES DO TRABALHO RURAL NO INTERIOR PAULISTA MONICA LA PORTE TEIXEIRA ROSA MARIA VIEIRA DE FREITAS Resumo: No interior paulista, coabitam alta tecnologia e acidentes do trabalho estritamente manuais, ou seja, o alto índice de tecnologia utilizada na agropecuária não descartou a possibilidade de existirem acidentes com trabalhadores rurais, que exercem atividades com baixo padrão tecnológico, sobretudo as vinculadas ao plantio e corte de cana-de-açúcar. Onde eles, em sua maioria, sofrem acidentes no exercício diário de sua profissão. Palavras-chave: trabalhador rural; acidente do trabalho; atividade agrícola. Abstract: In the interior of São Paulo State, highly developed farming technologies coexist with accidents that occur during the execution of strictly manual tasks. From this, one can conclude that advanced farming technologies have not eliminated accidents among rural laborers who carry out low-technology tasks, especially those tasks related to the planting and harvesting of sugar cane. It is in this area that most laborers suffer accidents in their day-to-day work. Key words: rural laborers; work-related accident; agricultural activity. A intenção deste artigo é expor, de forma sucinta, os principais resultados da pesquisa sobre acidentes do trabalho rural realizada pela Fundação Seade/Fundacentro e despertar um pouco a atenção para as diversidades existentes no interior paulista, como a riqueza agrária e os diferentes problemas enfrentados pelos trabalhadores rurais no exercício de suas atividades profissionais. Mais que oportuno, o debate sobre a temática do acidente do trabalho no meio rural é imprescindível nos tempos modernos, pois este é um espaço onde se sucederam grandes transformações tecnológicas que modificaram a vida dos trabalhadores desse setor, em especial para o Estado de São Paulo, importante palco dessas transformações. Contudo, são precários os estudos e a disponibilidade de dados sobre o tema. Os existentes, tais como, os trabalhos de Lopes (1982:12-17) e de Alessi e Navarro (1997:111-121) entre outros, importantes e fundamentais, são específicos a determinadas áreas ou a estudos de casos. Para uma área tão extensa como o Estado de São Paulo e com informações minuciosas referentes aos trabalhadores que se apresentam mais suscetíveis aos acidentes, es- tes estudos eram praticamente inexistentes até a realização da pesquisa Seade/Fundacentro, que ocorreu em todas as agências da Previdência Social, mediante a coleta das Comunicações de Acidentes do Trabalho – CAT, instrumento no qual os trabalhadores registrados no INSS têm seu acidente cadastrado com informações valiosissímas. Uma das características positivas dessa pesquisa realizada no meio rural foi o grande volume de eventos coletados, o que demonstra que muitos dos acidentes que envolveram trabalhadores rurais foram notificados, ao contrário do que se supunha (Fundação Seade/Fundacentro, 2001). Do total dos acidentes ocorridos no Estado de São Paulo entre 1997 e 1999, registrados na Previdência Social, 10,4% eram de acidentes rurais coletados pela pesquisa. SÃO PAULO – UMA POTÊNCIA DO SETOR PRIMÁRIO O Estado de São Paulo sobressai-se não só por ser o Estado mais populoso e industrializado do Brasil, mas também por possuir um saliente centro agropecuário, destacando-se em relação ao conjunto nacional. 81 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 sai-se na atividade agroindustrial1 em São Paulo, como a primeira nesse ramo de atividade, no que se refere aos indicadores emprego, receita, remuneração e valor adicionado (Belik et al., 1999). A pecuária é outra atividade do setor primário que concorre sensivelmente para o processo produtivo da economia regional, principalmente nas áreas vinculadas à bovinocultura de corte e de leite; à avicultura, que se firmou como importante complexo integrado de granjas e abatedores; e à suinocultura, esta última como produtora de matrizes e reprodutores. Essas atividades apresentam no Estado de São Paulo, concomitantemente, modernas e grandes instalações de abate, como também pequenos abatedores tradicionais. Quanto ao pessoal empregado, a participação da pecuária é pequena comparada à atividade agrícola (Silva; Balsadi; Grossi, 1997). Em relação ao volume dos efetivos de rebanho, a maior concentração de cabeças de boi situa-se mais a oeste, nas mesorregiões de São José do Rio Preto, Presidente Prudente e Araçatuba, enquanto os efetivos de aves localizam-se mais a noroes- Concentra excelentes condições em virtude da boa qualidade do solo e do clima, além de possuir excelentes fatores estruturais, técnicas aplicadas que favorecem o plantio de culturas diversificadas, como algodão herbáceo, amendoim, cana-de-açúcar, laranja, tomate, arroz, banana, feijão, mandioca, milho, soja, trigo, batata-inglesa, uva e café. Embora tenha perdido o título de centro de cafeicultura para o Paraná, ainda se destaca como um dos grandes produtores dessa cultura agrícola, entre outros. Outro atrativo que facilitou o desenvolvimento agrícola do Estado é a disponibilidade de um bom aparelhamento do porto de exportação, o porto de Santos. Um dos produtos agrícolas de maior relevância é a canade-açúcar com incremento apreciável. Sua área colhida corresponde a cerca de 51% da produção brasileira (Censo Agropecuário de 1995/96), o que garante o suprimento da indústria açucareira, que se firmou como uma das mais importantes do país. De acordo com dados da Pesquisa de Atividade Econômica Paulista – Paep 96 realizada pela Fundação Seade, a produção de cana-de-açúcar sobres- MAPA 1 Produtos de Lavoura Temporária e Permanente, por Área Colhida (Hectare), segundo Mesorregiões Geográficas Estado de São Paulo – 1995/1996 Fonte: Fundação IBGE. Censo Agropecuário de 1995/1996. 82 ACIDENTES DO T RABALHO R URAL NO INTERIOR P AULISTA te e nordeste, nas mesorregiões de Campinas, Piracicaba e Araraquara, e a criação de suínos mescla-se, destacando-se as mesorregiões de Campinas, São José do Rio Preto e Bauru (Censo Agropecuário de 1995/1996). Quanto à piscicultura, o litoral de 622 km, tem numerosas colônias de pescadores, mas é especialmente nas proximidades de Santos e Cananéia que se concentram atividades pesqueiras organizadas. Segundo Silva, Balsadi e Grossi (1997), o aumento dessa atividade, no Estado de São Paulo, deve-se ao vertiginoso crescimento dos pesquepagues, e a demanda para o processamento industrial. O Mapa 1 apresenta as principais áreas de colheita de lavoura permanente e temporária do Estado, onde a cultura de cana-de-açúcar, em razão do grande valor na produção agrícola, encontra-se separada. 2 Observa-se por área colhida, grande diversidade de produtos agrícolas no espaço territorial paulista, onde o destaque cabe para as lavouras temporárias, principalmente para a cultura de cana-de-açúcar, que, com pouquíssimas exceções, espalha-se por todo o interior do Estado. As mesorregiões que mais se sobressaem nesse cultivo são as de Ribeirão Preto, Piracicaba, Araraquara e Bauru, com exceção dessa última, são regiões do Estado onde se concentram a agricultura de maior valor comercial, em particular as atividades dos complexos agroindustriais de canade-açúcar e da laranja (Balsadi et al., 2001). As diversidades no setor agrícola paulista não só se restringem aos tipos de culturas existentes, mas também às distintas técnicas e divisões trabalhistas, tanto nas atividades de plantio e corte, como nas atividades da agroindústria. Com relação à demanda de mão-de-obra, a cana-deaçúcar, mais uma vez, aparece como principal cultura a utilizar mão-de-obra agrícola no Estado de São Paulo (Belik et al., 1999), onde muitos desses trabalhadores exercem atividades com baixo padrão tecnológico. Regionalmente, conforme dados da Paep, a área do Estado que teve o maior peso relativo à demanda de mão-de-obra, durante os anos 90, foram as mesorregiões situadas mais a noroeste do Estado, depois as situadas a nordeste, centro-oeste e centro-sul (Balsadi et al., 2001). O progresso do setor agrícola paulista intensificou-se a partir dos anos 50. Foi com o crescimento urbano e econômico do Estado que se desencadeou o processo de modernização tecnológica na agricultura, acarretando modificações nas práticas agrícolas, como o aumento do trabalho mecânico e a ampliação do uso de insumos químicos, mudanças que garantiram o aumento da produtivi- dade com menor utilização da mão-de-obra. Contudo, algumas práticas agrícolas continuam a ser trabalhadas de forma manual, como há 100 anos. Diante desse panorama, conclui-se que o perfil do trabalhador rural paulista é diversificado, pois convive no mesmo espaço com a alta tecnologia e o trabalho manual. PROBLEMÁTICA DO ACIDENTE DO TRABALHO Todo o trabalhador no exercício de sua profissão está sujeito a um acidente do trabalho, e algumas profissões apresentam probabilidades maiores que outras. A teoria do risco de acidente do trabalho aponta os principais agentes de risco ocupacionais presentes no ambiente de trabalho, são eles: físicos, mecânicos, biológicos, ergonômicos (considerados a partir da Segunda Guerra Mundial, seriam as condições de adequação dos instrumentos de trabalho ao homem) e mais recentemente, os riscos psicossociais, em razão da crescente exposição do trabalhador a situações de tensão e estresse no trabalho. A definição de acidente do trabalho no Brasil existe desde 1919 como conceito jurídico. No entanto, somente nos últimos anos é que se ampliou seu espaço, preocupando a classe médica e dando origem à medicina do trabalho. Essa inquietação cresceu de um jeito que expandiu o âmbito industrial, surgindo vários trabalhos referentes ao acidente do trabalho propriamente dito, à higiene industrial e à segurança do trabalho, entre outros (Ribeiro, 2000). A Lei n o 8.213, que rege desde 1991 o acidente do trabalho no Brasil, considera em seu artigo 19: “acidente do trabalho é todo aquele que ocorre pelo exercício do trabalho, a serviço da empresa, provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte ou a redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho”. Ademais, nos artigos 20 e 21 “Consideram-se ainda como acidentes do trabalho, outras entidades mórbidas, tais como as doenças profissionais; os acidentes ligados ao trabalho, embora o trabalho não seja a única causa que haja contribuído para a morte ou lesão do segurado: os acidentes ocorridos no local de trabalho decorrentes de atos intencionais ou não de terceiros ou companheiros de trabalho; os desabamentos; as inundações; os incêndios e outros casos fortuitos ou decorrentes de força maior; as doenças provenientes de contaminação acidental no exercício da atividade; os acidentes, ainda que ocorridos fora do horário ou local de trabalho, na execução de ordem da 83 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 empresa, mesmo para estudos ou realização de serviços externos; no percurso da residência para o local de trabalho, ou deste para aquele”. Assim, para efeito da Previdência Social, os acidentes do trabalho são classificados em três categorias: - Acidentes-Tipo: são os acidentes decorrentes da atividade profissional desempenhada pelo trabalhador; acidentes do trabalho que envolve esses trabalhadores é enorme, em razão das queimadas,5 da postura física exigida para o corte da cana e da simples utilização de suas ferramentas básicas de trabalho, como o afiado facão, que sem o material de proteção torna-se um perigo em potencial nas mãos habilidosas e apressadas do trabalhador. O desenvolvimento tecnológico do campo resultou não só na utilização de novas técnicas agrícolas, mas também em novos tipos de acidentes do trabalho. Com a intenção de aumentar a produtividade com menor utilização de mãode-obra, ampliou-se a força mecânica (máquinas) e a utilização de defensivos agrícolas, situação a qual diversos trabalhadores rurais não estavam preparados para utilizá-las de forma adequada, o que desencadeou sérios acidentes. No entanto, os trabalhadores rurais não estão sujeitos somente a acidentes-tipo, os acidentes ocorridos no trajeto, entre a residência e o local de trabalho e vice-versa, tornaram-se mais próximos dessa classe trabalhista. A valorização das terras, ocorrida cada vez mais com a utilização tecnológica, teve como uma das conseqüências a expulsão do trabalhador rural da terra, obrigando-o a migrar para as cidades, levou-o a realizar todos os dias o deslocamento entre grandes áreas, muitas vezes, em péssimas condições, determinadas pela qualidade das estradas e do tipo de transporte utilizado (Waldvogel, 1999). Como a identificação e a dimensão a priore de uma situação pode contribuir para a prevenção de um problema ou diminuir sua extensão, tomar conhecimento da questão acidentária relativa aos trabalhadores rurais, identificando-os e dimensionando seus principais problemas de saúde e de segurança, poderá enriquecer o debate dessa temática, como também colaborar para orientar políticas de prevenção de acidentes e doenças do trabalho em área rural. Assim, foi com esse intuito, que se realizou numa “parceria” entre a Fundação Seade e a Fundacentro, uma pesquisa nas agências e postos do INSS do Estado de São Paulo, com a finalidade de levantar os casos de acidentes do trabalho ocorridos no meio rural. - Acidentes de Trajeto: são os acidentes ocorridos no trajeto entre a residência e o local de trabalho e nos horários de refeição; - Doenças do Trabalho: são os acidentes ocasionados por qualquer tipo de doença peculiar a determinado ramo de atividade (Waldvogel, 1999). Alterações expressivas com relação ao trabalho agrícola também foram observadas na Lei Acidentária. Até 1991, a classe trabalhista rural sofria uma distinção na forma de pagamento dos benefícios relacionados ao acidente do trabalho, que a deixavam, mais uma vez, em desvantagem em relação ao trabalhador urbano. Com a Lei Acidentária de 1991 ocorreram duas importantes alterações. A primeira considera que, para efeito de pagamento de benefícios decorrentes de acidentes do trabalho, o trabalhador rural tem os mesmos direitos do trabalhador urbano, equiparando-o, com relação ao pagamento dos benefícios, ao trabalhador urbano (Waldvogel, 1999). A segunda refere-se à notificação dos acidentes do trabalho ao Instituto Nacional de Seguridade Social – INSS, que deixa de ser prerrogativa das empresas, e pode ser efetuada pelos sindicatos dos trabalhadores, pelo Sistema Único de Saúde – SUS e pelos próprios trabalhadores ou seus familiares (Waldvogel, 1999). A Organização Internacional do Trabalho – OIT afirma que o trabalho rural é significativamente mais perigoso que outras atividades e estima que milhões de agricultores sofram sérios problemas de saúde. 3 São distintos e reais os percalços do trabalhador rural paulista. Convivem tanto com a mais alta tecnologia agrária como com condições mais simples de plantio, corte, etc. Mesmo com o alto desenvolvimento tecnológico no setor primário, no qual o Estado de São Paulo destaca-se em relação ao resto do país, apresenta trabalhadores rurais em atividades puramente braçais e de risco de vida, como os cortadores de cana. Considerando-se que em São Paulo cerca de 75% da área plantada da cana-de-açúcar4 ainda é cortada manualmente após o processo de queimada, como há 100 anos (Revista Ecologia e Desenvolvimento, 2000:42-43), dessa forma, conjectura-se que o número de LEVANTAMENTO DOS CASOS DE ACIDENTES DO TRABALHO OCORRIDOS NO MEIO RURAL Metodologia de Coleta dos Dados A pesquisa realizada pela Fundação Seade/Fundacentro, em todas as 115 agências do INSS do interior paulista, levantou 58.204 acidentes do trabalho, ocorridos em área rural no período entre 1997 e 1999. 84 ACIDENTES DO T RABALHO R URAL NO INTERIOR P AULISTA tes-tipo. Apenas 277 acidentes não puderam ser classificados. Ocorreram em média 53,2 acidentes do trabalho por dia envolvendo trabalhadores da área rural paulista, o que se classifica como uma alta proporção diária de acidentes entre 1997 e 1999. Vale ressaltar que os acidentes de trajeto apresentaram a menor média, menos de 1 acidente por dia no decorrer do período. O grande causador dessa média elevada são os acidentes-tipo, com 47,2 acidentes por dia, ou seja, foi no desempenho de sua atividade profissional que o trabalhador rural apresentou a maior possibilidade diária de acidentes do trabalho. Como conseqüência desses acidentes, observa-se que a maioria resultou em incapacidade temporária, enquanto a incapacidade permanente e o óbito atingiram uma parcela bastante reduzida de trabalhadores. Com praticamente 89% os acidentes-tipo , em sua maioria teve como conseqüência a incapacidade temporária. Foram os acidentes de trajeto que apresentaram a menor participação no total dos acidentes, entretanto, proporcionalmente, são eles que resultam mais em óbitos, por serem, mais violentos. As doenças do trabalho, que perfizeram 10% dos acidentes nesse período, resultaram, praticamente em sua totalidade, em incapacidade temporária, não apresentando nenhum óbito. Entre os tipos mais presentes das doenças do trabalho encontram-se os traumatismos, o mal súbito, o estresse e as lesões por esforços repetitivos. É pertinente observar que é muito mais difícil estabelecer nexo causal entre a lesão adquirida e a atividade profissional desempenhada pelo trabalhador para doença profissional que para o acidente do trabalho tipo ou de trajeto. Segundo a Classificação Nacional de Atividade Econômica – CNAE, para os acidentes-tipo, 70,5% dos acidentes estão associados a empresas relacionadas à agricultura, pecuária, silvicultura e exploração florestal, e são Essa pesquisa foi pioneira, uma vez que sua abrangência geográfica cobriu todo o Estado de São Paulo e contemplou todas as atividades desenvolvidas nas áreas rurais. O levantamento realizado representa 10,4% de todos os acidentes registrados na Previdência Social no período estudado. Constituiu-se de coleta manual nos arquivos do INSS, por meio do rastreamento de todos os processos existentes, identificando e selecionando os acidentes do trabalho registrados na Comunicação de Acidente do Trabalho – CAT. A seleção dos processos de acidentes do trabalho seguiu os seguintes critérios: - acidente descrito no processo de acidente do trabalho ocorreu em área rural; - o acidente descrito no processo de acidente do trabalho correspondeu a uma atividade tipicamente rural (Relatório Seade/Fundacentro, 2001). Foi elaborado um formulário específico para a coleta, com levantamento de diversas características referentes ao acidentado, ao empregador e ao acidente. Logo após, os dados passaram por processo de crítica e revisão, e, em seguida, realizadas a codificação e a digitação. Os dados, após digitados e consistidos, foram organizados em farto material de banco de dados, com diversas informações referentes aos acidentes-tipo, de trajeto e doenças do trabalho ocorridos em áreas rurais do Estado de São Paulo. Principais Resultados Abrangendo somente os trabalhadores registrados na Previdência Social, a pesquisa levantou 58.204 acidentes do trabalho em áreas rurais. Desses acidentes, 929 eram de trajeto, 5.354 doenças do trabalho e 51.644 aciden- TABELA 1 Distribuição dos Acidentes do Trabalho em Áreas Rurais, por Motivo, segundo Conseqüência Estado de São Paulo – 1997/1999 Total (1) Conseqüência Acidentes-Tipo Doenças do Trabalho Acidentes de Trajeto Casos Casos % Casos % Casos Total 58.204 100,00 51.644 88,73 5.354 9,20 929 1,60 Incapacidade Temporária 58.049 99,73 51.508 99,74 5.353 99,98 918 98,82 Óbito 90 0,15 76 0,15 0 0 10 1,08 Invalidez Permanente 65 0,11 60 0,12 1 0,02 1 0,11 Fonte: Fundação Seade; Fundacentro/MTE. (1) Inclui 277 casos ignorados. 85 % % S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 se dos demais, com quase 75% do total das doenças do trabalho. Repetindo, dentro desse grupo, nas atividades mencionadas, sobressaem-se mais os trabalhadores relacionados ao cultivo da cana-de-açúcar com 52,1% e os da produção mista, lavoura e pecuária com 37,4%. Verifica-se, para as doenças do trabalho, semelhante participação relativa para os outros dois grandes grupos da CNAE, já mencionadas nos acidentes-tipo, ou seja, fabricação de produtos alimentícios e bebidas e a produção de álcool. Onde ambos apresentaram uma supremacia de atividades relacionadas, mais uma vez, ao cultivo e à produção da cana-de-açúcar. Ao lançar um olhar no agente causador, nota-se que cerca de 49,9% dos acidentes-tipo foram causados por ferramentas de trabalho, entre elas pode-se citar o facão e o podão, ferramentas utilizadas sobretudo pelos cortadores de cana-de-açúcar, com força e de forma precisa. Essa in- destaque deste grande grupo, as atividades que envolvem o cultivo de cana-de-açúcar (40,3%) e a produção mista, ou seja, lavoura e pecuária (39,2%). Das atividades relacionadas, só na pecuária e na criação de animais observaram-se, proporcionalmente, poucos acidentes. Outros grandes grupos de destaque são: o de fabricação de produtos alimentícios e bebidas, onde as usinas de açúcar perfazem 61,4% dos acidentes-tipo e 13,1% são de acidentes relacionados à fabricação de aguardentes e bebidas destiladas; e o de produção de álcool. Todos os grandes grupos da CNAE, que apresentaram participação considerável de acidentes do trabalho estão de alguma forma vinculados à cana-de-açúcar. Ainda segundo a CNAE, para a doença do trabalho observa-se novamente que o grupo de trabalhadores inseridos em empresas com atividades econômicas relacionadas a agricultura, pecuária, silvicultura e exploração florestal destaca- TABELA 2 Distribuição dos Acidentes do Trabalho em Área Rural, segundo Principais Grupos da Classificação Nacional de Atividade Econômica e Subgrupos Estado de São Paulo – 1997/1999 Acidentes-Tipo Classificação Nacional de Atividade Econômica Doenças do Trabalho Total % Total % TOTAL 51.644 100,00 5.354 100,00 Agricultura, Pecuária e Serviços Relacionados com essas Atividades Cultivo de cana-de-açúcar Produção mista: lavoura e pecuária Atividades de serviços relacionados com a agricultura Cultivo de frutas cítricas Criação de aves Criação de bovinos Cultivo de café Atividades de serviços relacionados com a pecuária, exceto atividades veterinárias Cultivo de cereais Cultivo de flores e plantas ornamentais Outros 36.388 14.661 14.275 4.752 993 462 393 216 212 103 95 226 70,46 40,29 39,23 13,06 2,73 1,27 1,08 0,59 0,58 0,28 0,26 0,62 3.970 2.069 1.483 279 53 28 7 11 13 7 17 3 74,15 52,12 37,36 7,03 1,34 0,71 0,18 0,28 0,33 0,18 0,43 0,08 Fabricação de Produtos Alimentícios e Bebidas Usinas de açúcar Fabricação, retificação, homogeneização e mistura de aguardentes e outras bebidas destiladas Abate de aves e outros pequenos animais e preparação de produtos de carne Abate de reses, preparação de produtos de carne Refino e moagem de açúcar Produção de sucos de frutas e de legumes Outros 1.527 937 200 108 105 62 61 54 2,96 61,36 13,10 7,07 6,88 4,06 3,99 3,54 144 107 7 12 5 6 7 2,69 74,31 4,86 8,33 3,47 0,00 4,17 4,86 Produção de Álcool Produção de álcool Refino de petróleo 1.119 1.118 1 2,17 99,91 0,09 210 210 - 3,92 100,00 0,00 Outros 8.649 16,75 623 11,64 Ignorado 3.961 7,67 407 7,60 Fonte: Fundação Seade; Fundacentro/MTE. 86 ACIDENTES DO T RABALHO R URAL NO INTERIOR P AULISTA formação vem de encontro ao observado nos dados do tipo de acidente, no qual destacam-se os acidentes com objetos cortantes/contundentes (44,3%) e os traumatismos ou lesões causados por instrumentos de trabalho (11,7%). Outro agente causador relevante nos acidentes-tipo foi o contato com animais e plantas venenosas com 14,7% dos casos, situação decorrente do meio ambiente do trabalhador do campo, explicando o quarto principal tipo de acidente, que são os acidentes causados por plantas (Tabelas 3 e 4). A mesma análise feita para as doenças do trabalho mostra que os acidentes que envolvem torção, mal jeito são maioria absoluta, com 94,5% dos eventos. Nesse caso, os principais problemas são os terrenos irregulares, buracos, saltos do caminhão, posições inadequadas, movimentos bruscos, etc., e nos demais agentes causadores nenhum deles apresentou volume de eventos considerável para análise quando observados isoladamente. Com relação a variável tipo de acidente, destacam-se para as doenças do trabalho, com um pouco mais da metade das doenças registradas (51,3%) – os traumatismos ou as lesões decorrentes de movimentos. Importantes e destacadas apareceram, com 47,1%, lesões por esforços repetitivos/mal súbito/estresse. Esses tipos de doenças do trabalho aparecem cada vez mais com freqüência no cotidiano de todo o trabalhador, ou seja, estão cada vez mais evidentes e passíveis de reconhecimento. Do total dos acidentes do trabalho sofridos pelos trabalhadores da área rural, 6,5% não afastaram o trabalhador de suas atividades profissionais, 61,2% o afastaram até 15 dias, 32,3% resultaram em período de afastamento superior a 15 dias. De acordo com a classificação do acidente, nota-se que as doenças do trabalho apresentaram proporção um pouco maior de casos que não resultaram em afastamento em relação aos acidentes-tipo e ao total dos acidentes coletados. Foi a doença do trabalho que também registrou a mais significativa proporção de trabalhadores com afastamento entre 15 dias e 1 mês. Percebe-se que, após três meses de afastamento, a proporção de trabalhadores afastados por algum tipo de acidente diminui bastante, alcançando menos de 1% do total dos acidentes, independente de sua classificação tipo, trajeto ou doenças do trabalho. O afastamento do trabalhador de suas atividades laborais acima de 15 dias pode trazer prejuízos dos pontos de vista: econômico, social e pessoal. Nesse caso, as principais vítimas são o Estado, através da Previdência Social, que arca com os direitos do trabalhador durante o afastamento e o próprio trabalhador, que além de ter reduzido seu salário, fica “fora” do mercado de trabalho, e dependendo do tipo de acidente pode haver um comprometimento de seu amor próprio, achar-se incompetente, etc., e incapaz do sustento de seu lar (Ribeiro, 2000). Nota-se, que existe alta notificação dos acidentes com afastamento inferior a 15 dias, por parte das empresas, que preferem assumir a responsabilidade do pagamento do afastamento nesse período a correr o risco de se responsabilizar por um afastamento superior a esse tempo, isenTABELA 4 Distribuição dos Acidentes do Trabalho em Áreas Rurais, segundo Principais Tipos de Acidente Estado de São Paulo – 1997/1999 TABELA 3 Distribuição dos Acidentes do Trabalho em Áreas Rurais, segundo Principais Agentes Causadores Estado de São Paulo – 1997/1999 Principais Agentes Causadores Total Ferramentas de trabalho Contato com animais e plantas venenosas Outros Queda Torção, mal jeito Objetos inanimados Escorregar, desequilibrar, Tropeçar, pisar em falso Sem informação Ignorado Acidentes-Tipo Total % Tipos de Acidentes do Trabalho Doenças do Trabalho Total % 51.644 25.770 100,00 49,90 5.354 49 100,00 0,92 7.610 5.290 3.116 2.756 2.544 14,74 10,24 6,03 5,34 4,93 15 106 5.060 16 0,28 1,98 94,51 0,30 2.484 2.048 26 4,81 3,97 0,05 107 1 2,00 0,02 Acidentes-Tipo Acidentes com objetos cortantes/contundentes Demais tipos de acidente Traumatismos ou lesões causados por instrumento de trabalho Acidentes causados por plantas Queda/torção/escorregar/em área rural Acidentes com objetos inanimados Ignorado Doenças do Trabalho Traumatismos ou lesões decorrentes de movimentos Lesões por esforços repetitivos/mal súbito/estresse Demais tipos de acidente Ignorado Fonte: Fundação Seade; Fundacentro/MTE. Fonte: Fundação Seade; Fundacentro/MTE. 87 Total % 51.644 22.869 9.901 100,00 44,28 19,17 6.033 6.007 4.232 2.495 107 11,68 11,63 8,19 4,83 0,21 5.354 2.747 2.524 65 18 100,00 51,31 47,14 1,21 0,34 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 GRÁFICO 1 Distribuição dos Acidentes do Trabalho em Áreas Rurais, segundo Período de Afastamento Estado de São Paulo – 1997/1999 Fonte: Fundação Seade; Fundacentro/MTE. tando-se assim do custo de um tratamento mais demorado que recai sobre a Previdência Social. As partes do corpo atingidas nos acidentes-tipo e das doenças do trabalho são muitas e diversificadas. Vale ressaltar que o mesmo acidente ou doença do trabalho pode atingir mais de uma parte do corpo do trabalhador. Para as doenças do trabalho as partes do corpo que mais sofreram lesões foram os membros superiores, em que os braços com 52,3% e as mãos com 42,3% foram maioria, a seguir apresentou-se o tronco com 39,6%. Para os acidentes-tipo, as partes do corpo mais atingidas foram os membros superiores 39,0% e os inferiores 38,8%, ambos encontram-se muito sujeitos aos traumatismos causados pelas ferramentas de trabalho, como o facão. Nos membros superiores, as partes mais atingidas são os dedos 46,3% e as mãos, enquanto nos inferiores tanto as pernas como os pés têm pesos muito parecidos, 50% e 49,7%, respectivamente. Observa-se uma supremacia do sexo masculino, com quase 90% dos casos de acidente do trabalho, coerente com a composição de gênero da população dos trabalhadores das áreas rurais, que em sua maioria (77,1%) são homens e 22,9%, mulheres, segundo o Censo Agropecuário de 1995-1996. Por tipo de acidentes são as doenças ocupacionais onde o sexo feminino tem maior percentual de participação com 18,9% dos casos. Com relação a idade os trabalhadores que apresentaram maior proporção de acidente do trabalho foram aqueles com idades entre 20 e 24 anos. TABELA 5 Distribuição dos Acidentes do Trabalho em Áreas Rurais, segundo Grandes Partes do Corpo Atingidas Estado de São Paulo – 1997/1999 Partes do Corpo Atingidas Acidentes-Tipo Casos TOTAL 51.644 Membros Inferiores Pernas Pés Membros Superiores Dedos Mãos Braços Tronco Cabeça Olhos Ouvidos 20.025 10.007 9.945 20.162 9.327 7.726 3.016 2.975 8.478 6.832 101 % Doença do Trabalho Casos % 5.354 38,78 49,97 49,66 39,04 46,26 38,32 14,96 5,76 16,42 82,11 1,21 238 167 56 2.851 106 1.206 1.490 2.123 101 8 14 4,45 70,17 23,53 53,25 3,72 42,30 52,26 39,65 1,89 18,18 31,82 Fonte: Fundação Seade; Fundacentro/MTE. Nota: Como o mesmo acidente pode traumatizar mais de uma parte do corpo, a soma das parcelas não corresponde ao total dos itens levantados. Os acidentes-tipo ocorrem em todos os grupos etários, e são mais freqüentes proporcionalmente nas idades mais tenras, de 15 a 24 anos. Com o avançar da idade, mesmo sendo alto, passa a apresentar uma tendência de queda. Asdoenças do trabalho, por sua vez, só ultrapassam os acidentes-tipo nas faixas etárias de 25 a 39 anos, idades mais avançadas quando comparadas as dos acidentes-tipo, porém ainda prematuras, mas que já indicam alguns anos de trabalho duro, realizados com gestos mecânicos e repetitivos. Para os aci- 88 ACIDENTES DO T RABALHO R URAL NO INTERIOR P AULISTA GRÁFICO 2 Distribuição dos Acidentes do Trabalho em Áreas Rurais, segundo Grupos de Idade Estado de São Paulo – 1997/1999 Fonte: Fundação Seade; Fundacentro/MTE. dentes de trajeto, o pico acontece entre os 20 e 24 anos, apresentando depois dos 30 e 34 anos a tendência de queda já observada para doenças do trabalho e os acidentes-tipo. Chama atenção que esse tipo de acidente com o avançar da idade, entre os 40-44 e 60-65 anos, mostra-se mais significativo em relação aos demais. Distinto das classificações citadas, os acidentes de trajeto não são exclusivos e nem estão diretamente relacionados a essas classes trabalhistas, como são a maioria dos acidentes-tipo. Embora registre uma proporção menor de eventos, é um acidente no qual todos os trabalhadores apresentam-se vulneráveis, basta realizar o exercício de ir e vir da residência ao local de trabalho e vice-versa, como cumprir o horário destinado ao almoço. Com relação a esses acidentes, a maioria ocorreu no percurso entre residência/trabalho. Considerando os meios de locomoção utilizados pelo trabalhador rural em seu movimento físico diário, que apresentaram as maiores proporções de acidente do trabalho, encontram-se: o ônibus, com praticamente 44% de todos os acidentes, a pé, com 25% dos acidentes e numa menor proporção, a bicicleta com 7,3%, entre outros. Nota-se que entre os meios de locomoção mais representativos, com exceção de um (a pé), os demais envolviam algum tipo de veículo. TABELA 6 Distribuição dos Acidentes de Trajeto, segundo Meio de Locomoção Estado de São Paulo – 1997/1999 Meios de Locomoção Total % Total Ônibus A pé (parado, carregando, empilhando) Bicicleta (duas rodas) Caminhão Motocicleta Kombi, Besta, Van, Sprinter Carreta Automóvel Ônibus coletivo intermunicipal Animais Quadrúpedes (cavalo, pônei, jumento, burro, jegue) Caminhonete ou Picape Mobilete Não preenchido 929 408 232 68 47 42 15 13 11 9 6 4 4 70 100,00 43,92 24,97 7,32 5,06 4,52 1,61 1,40 1,18 0,97 0,65 0,43 0,43 7,53 Fonte: Fundação Seade; Fundacentro/MTE. levantamento, que abrangeu todo o Estado de São Paulo, resultando em um rico banco de dados, contendo detalhes valiosos sobre o trabalhador acidentado, proporcionando um estudo minucioso e uma análise dos diferenciais regionais. Resultado satisfatório também foi tomar conhecimento da grande notificação dos acidentes rurais, talvez isso possa servir para olhar como mais atenção essa classe trabalhista tão sofrida e merecedora de respeito, e assim, contribuir de alguma forma para a prevenção dos acidentes do trabalho e das doenças profissionais na área rural. CONSIDERAÇÕES FINAIS O mais inédito deste trabalho de parceria entre a Fundação Seade e a Fundacentro foi a extensão territorial desse 89 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Mesmo sendo uma potência do setor primário, com alta tecnologia, o Estado de São Paulo apresenta elevada participação de trabalhadores rurais que exercem atividades manuais vinculadas, principalmente, ao plantio e ao corte da cana-de-açúcar. Esses trabalhadores foram, de acordo com a pesquisa, um dos mais suscetíveis a apresentar acidentes do trabalho. Foi constatado uma média diária de 53,2 acidentes do trabalho, nos quais a maioria ocorreu no exercício da profissão, ou seja, os acidentes classificados de tipo. Esses trabalhadores, em sua grande parte, se acidentaram com suas próprias ferramentas diárias de trabalho, registrando cortes ou traumatismos; as partes do corpo mais atingidas são os membros superiores e inferiores, afastando aproximadamente 86% desses trabalhadores de suas atividades laborais, no máximo até 1 mês. A doença do trabalho, que também afetou e afastou trabalhadores teve como principais agentes causadores a torção e o mal jeito, que ocasionaram traumatismos ou lesões decorrentes de movimentos, afetando principalmente os membros superiores. É interessante observar que apesar dos acidentes do trabalho espalharem-se por todo o interior paulista, diversos municípios que registraram os maiores volumes de acidentes do trabalho encontram-se geograficamente localizados nas áreas de maior valor comercial do Estado e as que empregam mais mão-de-obra para a atividade agrícola, onde concentram-se as atividades dos complexos agroindustriais de cana-de-açúcar e da laranja, que são as mesorregiões de Ribeirão Preto, Araraquara, Campinas e Piracicaba. ALESSI, N.P.; NAVARRO, L. Saúde e trabalho rural: o caso dos trabalhadores da cultura canavieira na Região de Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil. Caderno de Saúde Pública, Rio de Janeiro, 13 (supl. 2), p.111-121, 1997. BALSADI, O.V.; BORIN, M.R.; JULIO, J.E. A agropecuária paulista. São Paulo: Fundação Seade, 2001. Mimeografado [Texto elaborado a partir do Caderno Agricultura do Fórum São Paulo Século XXI que a Fundação Seade produziu para a Assembléia Legislativa do Estado]. 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Belo Horizonte: PUC-Minas, Instituto de Relações do Trabalho e Fundacentro, 2001. 2. Lavoura Permanente: compreendeu a área plantada ou em preparo para o plantio de culturas de longa duração, que após a colheita não necessitassem de novo plantio, e que produzissem por vários anos sucessivos. Foram incluídas nesta categoria as áreas ocupadas por viveiros de mudas de culturas permanentes. Lavoura Temporária : abrangeu as áreas plantadas ou em preparo para o plantio de culturas de curta duração (em geral, menor que um ano), e que necessitassem quase sempre de novo plantio após cada colheita. Incluíram-se, também nessa categoria as áreas das plantas forrageiras destinadas ao corte. _______ . Acidentes do trabalho - os casos fatais: a questão da identificação e da mensuração. 1999. Tese (Doutorado) – Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999. [Publicada pela Fundacentro: Coleção de Fontes e Análise, v.1, n.1, mar. 2002]. 3. Ver, a respeito: <www.saudeetrabalho.com.br>. 4. Ver, a respeito: <www.unica.com.br/pages/agroindustria_alta.asp>. MONICA LA P ORTE TEIXEIRA: Matemática, Analista da Fundação 5. Com a proibição da queimada da cana crua, a mecanização da colheita deve atingir grande parte da área cultivada em solos com declividade compatível com esta prática nos próximos anos, provocando mudanças importantes para as regiões de cultivo e para os trabalhadores, resultando na diminuição do volume de empregos. Seade ([email protected]). ROSA MARIA VIEIRA DE FREITAS: Socióloga, Analista da Fundação Seade ([email protected]). 90 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2): 91-101, 2003 O P ESO DO T RABALHO “ LEVE” F EMININO À S AÚDE O PESO DO TRABALHO “LEVE” FEMININO À SAÚDE W ILLER B AUMGARTEM MARCONDES LÚCIA ROTENBERG LUCIANA FERNANDES PORTELA C LAUDIA ROBERTA DE C ASTRO MORENO Resumo: Valendo-se de estudo empírico com trabalhadores(as) do turno noturno, irá se discutir divisão sexual do trabalho, qualificação profissional, trabalho doméstico, trabalhos “pesados” e “leves” e suas possíveis repercussões diferenciadas à saúde de homens e mulheres. Gênero e trabalho lançam luzes um sobre o outro e revelam aspectos em que a produção e a reprodução imbricam-se, apontando para a desconstrução de estereótipos. Palavras-chave: divisão sexual do trabalho; saúde; trabalho noturno. Abstract: Based on an empirical study of night-shift workers, this article discusses the gender division of labor, professional qualifications, domestic work, “heavy” and “light” work, and the possible repercussions on the health of men and women. The terms “gender” and “labor” are mutually revealing, unveiling aspects in which production and reproduction are tied into one another, suggesting a deconstruction of stereotypes. Key words: gender division of labor; health; night shift. ste artigo baseia-se na pesquisa Gênero e Trabalho Noturno, realizada em 1998 em uma indústria no Rio de Janeiro.1 Procurou-se enfatizar, em especial, aspectos das relações de gênero, tanto interno como externo do ambiente fabril, buscando o diálogo com questões como divisão sexual do trabalho, qualificação profissional, trabalho doméstico e concepções relativas às definições de trabalhos “pesados” e “leves” e sua possível associação com a saúde dos(as) trabalhadores(as). Esta proposta surgiu da constatação feita pela equipe de pesquisa, em um primeiro relatório,2 de que o material empírico obtido e apresentado em sua totalidade suscitava um debate que não só o aprofundava no que concerne às relações de gênero, bem como possibilitava abordar o mundo do trabalho. Gênero e trabalho, portanto, lançam luzes um sobre o outro, e revelam aspectos em que a produção e a reprodução imbricam-se indissociavelmente. E milares. Nos setores da produção com atividade noturna, a jornada é das 22 às 06 horas de segunda a sexta-feira, com folgas nos fins de semana. O estudo incluiu todos os trabalhadores do turno da noite (60 pessoas), porém, em razão das demissões e remanejamento de pessoal, nem todas as pessoas participaram de todas as etapas de coleta de dados.3 Para este artigo, foram retomados os dados produzidos pelas entrevistas semi-estruturadas, nas quais abordaram-se aspectos gerais do trabalho noturno, vantagens, desvantagens e seus efeitos no cotidiano, principalmente quanto à organização das atividades durante o dia. O roteiro incluiu ainda temas referentes às concepções sobre o sono, a fadiga e a saúde, bem como suas mudanças com base no trabalho noturno. Também inquiriu-se sobre as atribuições e relações de gênero fora da fábrica, no dia-adia dos entrevistados. A análise aqui apresentada refere-se a um grupo de dez pessoas 4 – cinco homens e cinco mulheres – cuja seleção contemplou a diversidade que se encontrou quanto à situação conjugal e à presença de crianças na casa, fatores relevantes para a compreensão do cotidiano. O grupo era composto de dois homens solteiros e três casados (inclu- ESTUDO EMPÍRICO A pesquisa original refere-se a operários e operárias que trabalham à noite em uma fábrica do setor de plásticos, que produz embalagens para colônias, xampus e si- 91 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO E QUALIFICAÇÃO PROFISSIONAL indo união livre), dentre os quais dois tinham filhos de até 10 anos; quanto às mulheres, duas eram solteiras, duas casadas e uma separada e, com exceção das solteiras, todas tinham filhos naquela faixa etária. As entrevistas abordaram (1) o Sono, com ênfase nas vivências de dormir de dia, hábitos, queixas e alternativas adotadas no dia-a-dia e (2) as Relações de Gênero, em que se reuniu relatos sobre diferenças entre homens e mulheres no trabalho noturno e no trabalho doméstico, suas repercussões na vida afetiva, sexual, social e familiar. Trabalhou-se com as entrevistas como um conjunto, com seleção de falas ilustrativas para compor um “mosaico” de significados, encadeados na forma de um texto que procurou seguir as argumentações em suas lógicas e ambivalências. Esse estudo baseia-se em dois aspectos importantes observados no material discursivo. O primeiro diz respeito ao “desencontro” de horários dessas pessoas em relação à família, aos amigos e à comunidade em sua totalidade. 5 Ao contrariar a divisão socialmente adotada em relação às 24 horas do dia (em que a noite é geralmente dedicada ao repouso e o dia, às atividades), o trabalho noturno demanda esforços do/a trabalhador/a para compatibilizar o sono com a realização das atividades diurnas. Portanto, as relações de gênero associadas ao trabalho adquirem novos contornos quando se trata do trabalho realizado à noite, pois ele implica mudança substancial na forma de organizar o dia, que tende a ser mais complexa para as mulheres, pois detêm maior carga de trabalho doméstico. Cabe ressaltar a atualidade desse tema, por causa do aumento da participação feminina na força de trabalho, que inclui um contingente de mulheres que trabalham à noite em indústrias, onde o trabalho noturno era restrito aos homens até a Constituição de 1988. O segundo aspecto faz menção a um modo de organização social do trabalho que divide e hierarquiza culturalmente as diferenças entre homens e mulheres. Essa lógica fez-se presente de forma contundente nas entrevistas tanto masculinas, como femininas. Desse modo, para melhor se tratar as relações de gênero no trabalho noturno, deve-se antes refletir sobre as atribuições de gênero, que envolvem a relação de homens e mulheres no processo de trabalho – tanto profissional como doméstico. Essas relações envolvem necessariamente a realidade de homens e mulheres não só na fábrica, como no dia-a-dia fora do trabalho. É nessa perspectiva que se adota a divisão sexual do trabalho (Kergoat, 1989) como conceito fundamental, como se discutirá a seguir. Desde os anos 70, quando emergiu como teoria e problema de pesquisa sociológica no campo das Ciências Sociais, até nossos dias, inúmeras leituras puderam ser feitas sobre a divisão sexual do trabalho, e a que melhor identifica as origens dessa discussão enfatiza o caráter sexuado das relações sociais. Nesse panorama, as diferenças entre homens e mulheres engendram desigualdades quanto ao valor dos trabalhos masculinos e dos femininos (Hirata; Kergoat, 1998). Por essa perspectiva, encontram-se trabalhadores dotados das atribuições de seus gêneros e, por elas, hierarquizados no valor de suas atividades. A assimetria e a hierarquia entre os trabalhos desenvolvidos por homens e por mulheres espelham a forma desigual com que se relacionam na sociedade e, assim, o trabalho é dividido conforme a organização que permeia as relações de gênero. Por meio da atuação de outras disciplinas, como História e Antropologia, a divisão do trabalho entre os sexos alcançou novos contornos que ampliaram seus debates. Uma importante contribuição refere-se à caracterização da divisão sexual do trabalho como um fenômeno presente em todas as culturas e sociedades; sua organização varia no tempo e no espaço e não consiste em única forma de divisão do trabalho, mas às outras se articula (Kergoat, 1989). Seu principal elemento em comum, em todas as suas variações, está na hierarquização do trabalho conforme o sexo de quem o realiza. Se, por um lado, a organização entre os sexos não é a única forma de divisão do trabalho em uma cultura ou sociedade, e tampouco é exclusiva das nossas sociedades ocidentais, por outro, sua grande importância reside na capacidade de conferir visibilidade às relações sociais. Isto porque “a divisão sexual do trabalho é o suporte empírico que permite a mediação entre relações sociais (abstratas) e práticas sociais (concretas)” (Hirata; Kergoat, 1998:95, tradução livre). Sua “universalidade”, longe de cristalizar as relações entre os sexos, conferindo-lhe um caráter da ordem da natureza e da imutabilidade, inscreve a divisão sexual do trabalho radicalmente na ordem do social, uma vez que em seu centro estão a hierarquia e o valor. É importante ressaltar que esses elementos são frutos de relações sociais, uma vez que são elas que constroem e compartilham sentidos e significados sobre o mundo, e não o contrário – como poderiam postular abordagens deterministas e essencialistas. 92 O P ESO DO T RABALHO “ LEVE” F EMININO À S AÚDE Este é um importante ponto, bastante beneficiado pelas contribuições do feminismo com sua crítica à biologização dos papéis sociais. Com a desnaturalização do trabalho, ele deixou de espelhar a “ordenação natural” das capacidades masculinas e femininas e passou a ser visto como resultado das relações sociais, ou seja, um “constructo social”, nos termos de Kergoat (1989). Essa ruptura com as concepções deterministas da natureza sobre as relações sociais permitiu que outros pontos pudessem ganhar evidência nos debates sobre a divisão do trabalho entre os sexos. A mesma hierarquia que organiza, pelo valor, as diferenças entre trabalhos realizados por homens e por mulheres, possibilitou o não reconhecimento dos trabalhos que ocorrem na esfera doméstica e são relacionados ao mundo privado. Os cuidados, geralmente atribuídos às mulheres, com as crianças, a casa e seus moradores, não são considerados trabalhos pois tratar-se-iam “apenas” de atividades de manutenção das condições para a realização do “autêntico trabalho”, este sim, verdadeiramente produtivo, posto que se consubstancia em produtos cujos valores são monetarizáveis. Além disso, este trabalho é pago por meio de salário e realizado no âmbito público. Esta separação entre trabalho produtivo e reprodutivo é um dos principais elementos organizadores da atribuição de hierarquia e valor que legitima o que seria um “verdadeiro trabalho”, conferindo poder a quem o realiza e perpetuando as condições para a divisão e desigualdade do trabalho entre os sexos. Apesar de a entrada das mulheres no mercado de trabalho nos considerados “setores produtivos”, o valor de sua atuação continua atrelado ao universo hierarquicamente subalternizado da reprodução no mundo doméstico. Seu trabalho e sua identidade como trabalhadoras continuam a ser de mulheres que, de certa forma, “não deveriam estar ali”, pois seu lugar permanece referido ao da casa, ao da maternidade e ao do cuidar dos outros (Brito; Oliveira, 1997). Desde sua sistemática entrada no proletariado, no final do século XIX e início do XX, a mulher insere-se no “setor produtivo”, sendo mantido, entretanto, o modelo atribuído ao feminino, voltado para o mundo privado e da reprodução. Um exemplo muito ilustrativo desse período encontrase na análise da imprensa do movimento operário da cidade de São Paulo (Rago, 1987). Este, mesmo possuindo uma visão de mundo fortemente impregnada pelo anarquismo, que rivaliza com o projeto burguês, no que diz respeito às mulheres também idealiza uma “rainha do lar”. A imprensa re- produz os atributos conferidos às mulheres como doces, ingênuas e frágeis (física e moralmente). O discurso operário, de modo geral, possui um tom paternalista, ao ver a mulher como uma “flor frágil” que deveria ser protegida e, sempre que possível, reconduzida ao que seria seu legítimo lugar, o espaço doméstico. Como defende Kergoat (1987:89), é de grande importância a articulação entre a produção e a reprodução, uma vez que: “por não se considerar o conjunto produção/reprodução como um todo indissociável, tudo se passa como se devêssemos encontrar um princípio de coerência único, e que essa coerência devesse ser relacionada a um lugar institucional: a família ou a fábrica. O que é apenas, no fim das contas, uma das maneiras de pôr em funcionamento a dicotomia clássica: aos homens, o trabalho assalariado – e quando as mulheres inserem-se positivamente nesse espaço, isto continua a ser considerado como excepcional – às mulheres, a família: lugar de enclausuramento e de opressão; lugar fechado”. Desse modo, portanto, não se avançará no mundo sexuado do trabalho se não se articular nas análises as relações de gênero e as de classe. Pois, como a produção e a reprodução, a casa e a fábrica são espaços que não se encontram isolados em si; pelo contrário, interagem por meio de relações sociais fundamentais. O sexo dos trabalhadores é uma importante diferença no mundo do trabalho que, geralmente, encontra-se ocultada pela “uniformidade” de classe. E, no entanto, é ao se colocarem na situação de trabalhadores, ao venderem sua “força de trabalho” como economia clássica, que as relações de gênero adquirem concretude e visibilidade privilegiadas. Isso significa que se deve adotar em nossos estudos, ao mesmo tempo, esses dois grupos de relações sociais: de gênero e de classe, de forma a escapar de reduções e simplificações que ou bem abordem a opressão em uma ou bem a exploração em outra, compactuando com a hierarquização das relações sociais ou com a abordagem de uma em detrimento da outra (Kergoat, 1984; 1987). Como, aliás, tão bem define Hirata (1995:40): “Relações de classe ou relações de sexo, antagonismos de classe ou antagonismos de sexo, tudo se passa como se a importância dada a uma destas relações implicasse deixar a outra em um plano secundário. Foi Danièle Kergoat quem conceituou estas duas relações sociais em termos de ‘coextensividade’, isto é, em termos de recobrimento parcial de uma pela outra.” Neste “recobrimento parcial de uma pela outra”, destaca-se a questão da qualificação profissional como im- 93 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 portante ponto de articulação entre relações de classe e de gênero em nosso dias, como no exemplo do início do século XX (Rago, 1987). Mediante a perspectiva de “coextensividade” das relações sociais, pode-se perceber que, como no passado, sobre a trabalhadora é projetada a imagem da dona-de-casa (Brito; Oliveira, 1997). Portanto, sua “qualificação” é associada a “habilidades naturais”, como paciência, destreza, detalhismo e movimentos finos. Como estes atributos, porém, estão inscritos no mundo da reprodução e da feminilidade, não possuem prestígio e status de qualificação no mundo do trabalho assalariado, existindo, quando muito, na forma de “qualidades femininas” (Kergoat, 1984). As qualificações femininas, forjadas ao longo de suas vidas nos saberes, disciplinas e habilidades aprendidas e desenvolvidas nos trabalhos domésticos, mesmo quando largamente empregadas pelas fábricas, não são equiparadas àquelas adquiridas em cursos e treinamentos formais. E mais: além de não serem reconhecidas em prol da trabalhadora, ainda “desqualificam” os postos de trabalho que delas se servem. É como se, onde as qualificações femininas forem postas em uso, mais simples será o trabalho, uma vez que ele pode ser feito com base em conhecimentos tidos como “naturais” ou “espontâneos”. Em suas pesquisas, Rizek e Leite (1998: 291) apontam que as justificativas gerenciais para a contratação de mulheres para postos “sem qualificação” ressaltam as habilidades e capacidades femininas que seriam adequadas ao “trabalho simples”, em que: “o trabalho feminino fabril é visto como uso das habilidades e inabilidades corporais femininas: destreza e paciência, atenção e minúcia são naturalizadas constituindo parte da ‘natureza feminina’”. As qualificações femininas permanecem “invisíveis”, portanto, em razão dessa subalternização conferida ao valor do trabalho feminino, sendo este capturado em uma esfera de informalidade e espontaneidade. São considerados como “talentos de mulher”, embora sejam reconhecidos pelos gerentes como vantagens para o processo produtivo, não se traduzem como carreira ou salário (Soares, 1998). Desqualificação do trabalho feminino e depreciação de seus postos de trabalho compõem um quadro de verdadeira “segregação ocupacional” para as trabalhadoras, à medida que acarretam grande concentração de mãode-obra feminina em postos de trabalho mal remunerados, com organização rígida, repetitiva e em condições de execução precárias (Soares, 1997). Como desdobramento das condições adversas da segregação ocupacional, ocorrem a reafirmação e recriação da subalternização do trabalho feminino, uma vez que sua rígida organização temporal, na maioria das vezes, não possibilita a complementação dos estudos ou a liberação de seus postos de trabalho para participar de cursos e (re)qualificações profissionais. Um círculo vicioso reproduz a segregação: postos de trabalho tidos como desqualificados possuem rígida organização temporal que dificulta o acesso a qualificações formais para o mundo do trabalho, ao mesmo tempo que, por tais postos serem considerados de baixa ou nenhuma qualificação, não haveria porque empreender gastos com as trabalhadoras. Marcas dessa situação podem ser encontradas em pesquisas realizadas sobre o acesso das trabalhadoras a treinamentos, nas quais se aponta como este é restrito, se comparado com os trabalhadores do sexo masculino (Rizek; Leite, 1998). Para além de decisões de caráter “puramente técnicos”, a qualificação do trabalho lida com a base valorativa oriunda das relações sociais, de forma que se garanta a produção (Rolle, 1989). A lógica da qualificação atende ao fluxo do trabalho reproduzindo as atribuições de gênero. O pouco acesso ao treinamento técnico e a dificuldade em galgar melhores colocações profissionais promovem o confinamento feminino nesses postos precários de trabalho. Por sua vez, as trabalhadoras interiorizam a banalização de suas próprias qualificações e se vêem com poucas perspectivas de melhoria de suas condições (Kergoat, 1984). Em busca de novos contornos e detalhes, avançar-se-á nessas questões com base nos discursos dos trabalhadores e trabalhadoras. Suas argumentações além de ilustrar, dialogam de modo bastante preciso com o universo conceitual da divisão sexual do trabalho articulando, dentro e fora da fábrica e do turno noturno, o cotidiano de cada um, principalmente no que concerne à divisão dos trabalhos domésticos e responsabilidades familiares. “VOCÊ TEM QUE CHEGAR EM CASA, FAZER SUA OBRIGAÇÃO” Tanto homens quanto mulheres freqüentemente relacionaram nas entrevistas os cuidados com a limpeza e a arrumação da casa, o preparo das refeições e a atenção às crianças como atribuições femininas. No trabalho noturno tal aspecto adquire relevância especial, uma vez que tais atividades comprometem seriamente o tempo para dormir. Diz Elvira:6 “A gente chega em casa (...) tem que dividir o descanso com as tarefas domésticas entendeu, e fica meio complicado, porque você fica assim meio dese- 94 O P ESO DO T RABALHO “ LEVE” F EMININO À S AÚDE quilibrada ou você descansa ou você cuida das tarefas, ou você cuida dos filhos entendeu? Aí é difícil...”. Por um lado, o acúmulo de trabalhos sobre as mulheres pode ser entendido não só como a “naturalização” da atribuição dos trabalhos domésticos femininos mas, também, como um fenômeno articulado a uma prerrogativa masculina que facilita a ausência dos homens nessas mesmas atividades (Hirata, 1995). Aos homens já estariam imputados o trabalho considerado produtivo e a dispensa dos trabalhos domésticos, ao passo que para as mulheres o trabalho doméstico permanece como determinação, sobretudo em uma época em que cada vez mais trabalhadoras entram e procuram manter-se no mercado de trabalho (Hirata; Kergoat, 1998). Assim, pôde-se ouvir das mulheres falas bastante claras, como a de Marina, sobre esse caráter de “obrigatoriedade” dos trabalhos domésticos: “Você tem que chegar em casa, fazer sua obrigação”. Por outro lado, a prerrogativa masculina de não adesão a esses trabalhos domésticos estende a eles uma vantagem significativa para se adaptarem mais facilmente ao trabalho noturno. Clarice declara: “Por que ele é homem né... quer dizer, ele agüenta mais e ele não tem o que fazer dentro de casa, quem faz sou eu mesma, quer dizer, de noite ele agüenta, é só chegar em casa e dormir”. Os homens confirmam a prioridade para dormir em sua rotina diária. Eles dormem bastante porque precisam preparar-se para o turno noturno e, também, porque podem entregar-se mais livremente à satisfação dessa necessidade: Antenor declara: “É, eu só descanso. Durante o dia eu descanso, você pode até ver, eu durmo... eu chego em casa umas 8 e meia, aí escuto um pouco o rádio e tal, olho as crianças e tal, aí vou deitar, não adianta me chamar que eu não faço nada, não faço nada, nada, nada, nada... só descanso. Porque se eu não descansar, quando eu chegar aqui no serviço, não agüento fazer, entendeu?”. Conhecer as lógicas referidas ao cotidiano aproxima, com mais informações das concepções sobre as vidas de nossos entrevistados e, principalmente, das relações sociais que mediam seu dia-a-dia. Estudos sobre a permanência masculina no espaço domiciliar, seja por motivo de desemprego, seja porque exerçam atividade autônoma, estejam estudando ou se encontrem incapacitados para o trabalho; apontam que sua participação nos trabalhos domésticos é sempre inferior ao das mulheres (Bruschini; Ridenti, 1995; Marshall, 1998).7 Em especial, quando homens desenvolvem em suas casas atividades como autônomos, seus trabalhos, embora sejam realizados no âmbito doméstico, continuam a ser considerados por eles próprios como qualificados. Trabalhar em casa representa para os homens não estar submetido a esquemas de produção rígidos e controlados, podendo se organizar com flexibilidade quanto a seus próprios horários e atividades. Interessante destacar que, independente do espaço onde o trabalho é realizado, a noção de qualificação – e o decorrente prestígio das tarefas executadas – acompanha o sexo do trabalhador. Outro ponto importante consiste na capacidade do trabalhador masculino, no âmbito doméstico, de realizar uma clara distinção (espacial e temporal) entre o seu trabalho autônomo e o do domicílio, conseguindo preservar sua vida profissional, mesmo quando a exerce em casa. Portanto, os homens que trabalham em casa parecem não deixar que as demandas do lar interfiram em sua atividade profissional. Embora sua maior permanência em casa favoreça sua aproximação com os filhos e a moradia, sua participação nos trabalhos domésticos caracteriza-se por uma relação mais distanciada e menos envolvida, em comparação com mulheres que também desenvolvem atividades profissionais autônomas em casa (Bruschini; Ridenti, 1995). Também em nossa pesquisa atemática quanto aos cuidados com os filhos possibilitou aprofundar alguns interessantes aspectos das relações entre homens e mulheres que vivenciam o trabalho noturno. Como os demais trabalhos domésticos, a atenção às crianças parece constar do conjunto das atribuições femininas, a tal ponto, que o próprio ingresso e/ou a permanência no turno noturno foram justificadas pela possibilidade da mulher de cuidar dos filhos durante o dia. Elvira justifica: “porque eu tenho 2 filhos e a minha mãe tem esse problema né, hipertensa... Então tudo tem que ser por minha conta, então o melhor horário seria à noite mesmo, porque eu tenho o dia todo livre para fazer isso, ensinar dever da escola, fazer as tarefas domésticas e à noite quando eu saio, já está praticamente na hora deles dormirem.” Entre os homens entrevistados, também a disponibilidade durante o dia para cuidar dos filhos foi apontada como um dos importantes motivos para explicar a entrada e/ou permanência no trabalho noturno. Entretanto, como este cuidado é comumente encarado como tarefa feminina, muitos mencionam esta “vantagem” do trabalho noturno para as mulheres com filhos, não lhes ocorrendo incluir a si próprios, ou aos outros homens, também como beneficiados. Pedro tem a seguinte opinião: “Só serve se for à noite (...) Porque ela tem o sábado livre, ela pode lavar as roupinhas dela... entendeu? E também porque ela não tem com quem deixar os filhos, então o marido chega fica com 95 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 o filho à noite e ela pode estar trabalhando, ganhando um dinheirinho para ajudar o marido... ela sai de casa, quase o marido não fica com o filho, porque a hora que o marido vai dormir, é a hora também que a criança vai dormir”. Vale ressaltar que um entrevistado mencionou que, há certo tempo, havia assumido alguns cuidados com os filhos, fato que promoveu uma radical reestruturação em seus horários de sono, agora sincronizados pelos cuidados com as crianças. Relata Américo: “Há pouco tempo agora eu vou... pego, levo as crianças para a escola, chego lá... a mãe deles trabalha de manhã, aí eu chego lá faço café, arrumo eles, aí levo eles para escola... um estuda perto, o outro lá em Pilares. Aí eu levo eles, chego em casa 8 horas, tomo um banho, lá para 8 e meia... eu estou dormindo, aí eu acordo 11 horas, vou buscar eles... aí quando é 1 hora mais ou menos, uma e meia aí eu volto a dormir de novo. Aí acordo, às vezes 6 horas, 8 e meia aí tomo um banho e vou se arrumar para vir trabalhar”. O motivo de alteração na rotina deste entrevistado está em consonância com as atribuições de tarefas diferenciadas entre homens e mulheres, que aqui se tem apresentado. Ou seja, os cuidados com as crianças geralmente são responsabilidade feminina, mas podem passar a ser atribuição masculina em circunstâncias extremas, como diante da ausência ou impossibilidade de outra pessoa arcar com tal tarefa. “Porque eles ia com a prima deles, aí eles começou a não querer ir para a escola com ela, aí eu tive que passar a levar... se não eles não iam para a escola”, afirmou, Américo. postas pelo turno noturno, Antenor diz: “Só vontade de trabalhar... a pessoa que tem vontade de trabalhar, cara, supera tudo, não é? Ainda mais se estiver necessitada, se estiver precisando, aí... não tem nada que segure. Eu, vim para cá, como eu disse né, estava precisando, e fiquei até hoje”. A necessidade e a importância do trabalho bem como o medo de perder o emprego adquirem destaque e contornos dramáticos nas entrevistas, principalmente nas falas dos homens, como Pedro: “eu me preocupo muito em... por exemplo, perder esse emprego, com essa crise de desemprego aí, se... juntando a idade, juntando a crise de desemprego, essas exigências com idade, esses negócios, o quê que pode me restar?” Cabe reconhecer, evidentemente, que a perda do emprego e o temor de não se recolocar no mercado de trabalho ameaçam tanto homens como mulheres, sobretudo em nossos dias. Contudo, deve-se destacar que, em especial para os homens, o trabalho assalariado quando ameaçado é motivo de sofrimento e angústia, sendo também visto, pelos próprios trabalhadores, como uma responsabilidade masculina para com a família e a casa, como bem ilustra Sarti (1996:72): “A categoria pai de família complementa a auto-imagem masculina. A moral do homem, que tem força e disposição para trabalhar, articula-se à moral do provedor, que traz dinheiro para dentro de casa, imbricando-se para definir a autoridade masculina e entrelaçando o sentido do trabalho à família.” Prover as necessidades da família, antes de tudo, parece consistir em uma atribuição que gera novos sofrimentos à vivência masculina no mundo do trabalho. Antenor declara: “minha filha tinha 3 anos, era pequena, aí poxa, para mim ficar desempregado com filha pequena né, aí eu pedi a um colega, falei: “pô, arruma serviço pra mim...” ele falou: “serviço lá não é bom, e tal...” me preparou né, aí eu falei: “tudo bem cara, eu quero só um serviço para... um emprego para mim poder respirar...”. Este próprio entrevistado, com base na história de sua união com a atual companheira, tão bem ilustra a relação que haveria para um homem entre trabalho e assunção de responsabilidades afetivas e familiares: “Eu já conhecia ela, mas eu não era casado. Eu tinha um filho com ela, mas não era casado não. Depois que eu trabalhei... passei a trabalhar aqui é que eu fui morar com ela. Na época também eu não tinha condições de botar também casa para ela não, eu ganhava pouco... dava 2 salários ou até menos, ganhava mal... mas era o que eu ganhava né.” A responsabilidade de prover o sustento familiar, tradicionalmente atribuída aos homens, gera importantes “UM EMPREGO PRÁ PODER RESPIRAR” Por um lado, a adaptação ao trabalho noturno muitas vezes é apresentada em um conjunto de argumentos, ou seja, articulada a outras questões que facilitam ou prejudicam o desempenho no turno noturno, variando desde aspectos fisiológicos, físicos e mentais até questões que envolvem a necessidade imperiosa de estar empregado. Essas explicações, porém, adquirem nova relevância quando consideradas com base em uma leitura das relações de gênero. Por exemplo, dispor ou não da ajuda de um familiar para cuidar da casa ou dos filhos, aliviando alguns encargos de mulheres que também trabalham à noite, foi mencionado como fator decisivo para a adaptação ao trabalho noturno. Mas, por outro lado, a adaptação pode ser entendida como conseqüência da necessidade do emprego e da vontade de trabalhar, que superariam até as dificuldades im- 96 O P ESO DO T RABALHO “ LEVE” F EMININO À S AÚDE impactos na criação e estruturação das próprias famílias. Deve-se considerar que, se o trabalho ocupa um lugar tão central na identidade masculina, e socialmente lhe é atribuído como mais importante do que para as mulheres, o efeito da perda do emprego, portanto, deve ser mais severo para os homens, por ser motivo de vergonha e humilhação (Kjellberg, 1998) – sobretudo em períodos de redução de postos de trabalho, de vagas com vínculo empregatício e de intensas modificações das técnicas produtivas, em que as possibilidades de realocação no mercado ficam menores. Convém destacar que tais situações de “crise do trabalho” em geral ocorrem em períodos de crise na acumulação de capital (Freyssenet, 1989). Situações adversas no mundo do trabalho radicalizam os efeitos da responsabilidade imputada aos homens. Em situações limites, ele não formará família, ou a abandonará caso se perceba impotente para responder financeiramente por ela. No universo das relações de gênero, no qual a identidade masculina ainda se referencia mais ao mundo público do que ao privado, seu “passaporte” para o âmbito doméstico e à vida familiar precisa estar em dia na forma de dinheiro que responderá às necessidades da casa e de seus habitantes. Esta responsabilidade de gênero aponta para a idéia de que uma união estável – formal ou não – com coabitação teria que, necessariamente, estar fundamentada numa relação assimétrica entre homens e mulheres, uma vez que caberia àqueles a atribuição de prover. Dessa maneira, quando as atribuições de gênero estiverem mais rigidamente unidas aos atributos tradicionais, as uniões serão originadas em grande parte quando o homem puder “constituir família”, ou seja, dispor de rendimentos próprios e superiores (quando não absolutos) aos de sua parceira. Adotando esse ponto de vista, pode-se, então, entender essa “assimetria estruturante” como um dos elementos, por exemplo, na recorrente diferença entre a idade dos homens e das mulheres quando se casam. Estudos baseados em dados referentes a casamentos legalizados (Berquó, 1998) apontam que, nos últimos vinte anos no Brasil, os homens casam-se com idades maiores às de suas esposas, com cerca de 3,6 anos de diferença. A diferença entre as idades pode representar o tempo necessário aos homens para galgarem melhores colocações no mercado de trabalho, ao menos, para estarem em condições de manterem uma casa e/ou ganharem mais do que suas esposas. Como dissemos, porém, esta lógica atende com maior coerência quanto mais rígidas forem as relações de gênero conforme as atribuições tradicionais para as masculi- nidades e feminilidades. A sociedade brasileira vive atualmente mudanças importantes, como o aumento da participação feminina na força de trabalho (Irrrag, 1995; Fundação Seade, 1997) e o crescente número de famílias chefiadas por mulheres (Oliveira, 1996). Para essas famílias, em especial, o trabalho noturno parece constituir-se em uma alternativa para mulheres que, por diversos motivos, precisam prover a subsistência da família, assumindo para si essa atribuição apontada nas entrevistas como prioritariamente masculina. Nelson, um dos entrevistados, diz: “a maioria das que trabalham aqui tem filhos (...) uma grande realidade dessa firma é que a maioria das admissões das mulheres, são mulheres que tem filho, que o marido deixou e precisou cuidar dos filhos, né?” Para as mulheres no trabalho noturno que assumiram a atribuição de provedora da família, existe grande sobrecarga que agrega as tarefas domésticas, a atenção aos filhos, o trabalho noturno e a responsabilidade de garantir o atendimento às necessidades familiares e da casa. De modo geral, no mundo do trabalho, a falta de reconhecimento do trabalho das mulheres e de suas qualificações, que se expressa em salários menores e carreira depreciada, aliada à sobrecarga dos trabalhos domésticos, está agravando a “feminização da pobreza” (Brito; Oliveira, 1997). Essa situação, além de ocasionar grandes agravos pessoais, em especial à saúde, das mulheres chefes de família, atinge também aos que estão sob seus cuidados diretos como crianças e idosos, ampliando a gravidade de seus impactos sociais. “É SERVIÇO PRA MULHER MESMO” Outra atribuição de gênero apontada pelas entrevistas como “essencial” ao sexo dos trabalhadores faz menção à força física e à resistência que, em geral, os homens teriam a mais que as mulheres. Pode-se perceber, também, que tais atribuições e expectativas são apresentadas nas entrevistas na forma de pares de oposição, contrapondo homem/mulher, “sexo-forte”/“sexo-fraco”. Nesse sentido, parece bastante ilustrativo o depoimento de Sabrina, uma entrevistada, que articulou essas caraterísticas, organizadas em pares de oposição, no que tange à adaptação ao trabalho noturno: “Ah sei lá, mulher é mais sensível ou agüenta menos, homem não, é mais farrista, sei lá, se tiver que pegar uma noitada pela frente, eles pegam, não estão nem aí. Eu acho que trabalhando ou na farra, segue tranqüilo. A mulher não, eu pelo menos tiro por mim, mais fraca, eu acho a mulher mais sensível para trabalhar à noite, 97 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 para levar uma noite toda assim pela frente. Homem não, eu olho o homem assim com o olho de que ele pode mais.” A identificação de força e resistência, como características predominantemente masculinas, estende-se às classificações dos processos produtivos da fábrica criando, por sua vez, o “serviço de mulher” e o “serviço de homem” como duas categorias recorrentes. João pensa desse modo: “Esse serviço que as mulheres trabalham de operadora aí é moleza. É serviço pra mulher mesmo. Porque é um servicinho leve, você pega frasco e vai arrumando... Pra homem, não! Homem você... a gente sendo homem, a gente pega qualquer serviço... Aquilo é que é serviço de mulher, mesmo. O que eu faço é forçado. Eu faço é abastecer máquina. Tem que pegar o material e botar pra cima. Carrega no carrinho mas, quando chega lá, tem que carregar tudo no ombro e põe na máquina. Mais forçado que tem é esse.” O mundo do trabalho também informa sobre as características atribuídas às mulheres. Se, por um lado, os homens são identificados pela força e resistência, por outro lado, as mulheres são dotadas de disciplina e organização Clarice lembra: “Antigamente aqui não admitia mulher de noite não, era só homem... mas eu acho que homem fazia bagunça, dormia, não dava conta da produção, aí colocaram mulher. ... Aí botaram mulher, porque mulher é mais organizada né... tem medo também, porque homem... por exemplo, o chefe, homem não respeita o chefe, e a mulher já fica com medo né, já tem aquele receio de falar alguma coisa, de reclamar... homem não, homem se tiver que falar vai falar mesmo na cara... mulher não.” Assim, as mulheres são descritas como mais cordatas e pacíficas em suas relações com a chefia e os colegas, características quase sempre apontas como mais vantajosas, sobretudo porque os homens, na lógica das oposições, são caracterizados como mais rebeldes e truculentos. É assim que Antenor define: “Mulher não, mulher sabe que tem que fazer aquilo, não fez a gente chama atenção e ela fica quieta. O homem não, o homem já quer discutir, já acha que é mais forte entendeu?” Essas atribuições de gênero são trazidas para o mundo do trabalho tanto pelas chefias e gerências como pelos próprios trabalhadores, uma vez que ambas as classes, embora vivam grandes diferenças sociais, estão no mesmo mundo da cultura e compartilham de seus significados mais enraizados. Uma importante pesquisa, realizada com chefes de setor de recrutamento e seleção sobre os critérios adotados para a contratação, aponta que os atributos de masculini- dade e feminilidade – na forma de concepções sobre os sexos – são claros norteadores para os preenchimento de vagas: “Segundo essas concepções, existem trabalhos de homem e trabalhos de mulher, que requerem aptidões diferenciadas e que justificam a divisão sexual do trabalho dentro da fábrica” (Silva, 1995). Do mesmo modo, mulheres deveriam corresponder às expectativas de um feminino habilidoso, delicado, paciente e, principalmente, dócil na fábrica como em casa (Rizek; Leite, 1998). A “calma”, tão valorizada entre os atributos imputados às mulheres, é apreciada pelas chefias como qualidade imprescindível para trabalhos que exigem paciência, delicadeza e minúcia. São trabalhos tidos como “leves”, mas nos quais as trabalhadoras também precisam de calma para enfrentar longos períodos de tarefas repetitivas, em postos de trabalho que geralmente são altamente mecanizados. Do mesmo modo, deve-se contratar trabalhadoras dotadas desta “virtude” para que estabeleçam relações dóceis, cordiais e de obediência com seus colegas e chefes de setores. Enfim, as trabalhadoras em seus trabalhos “leves” só precisariam ter “a virtude da calma”, para trabalhar e obedecer. Quanto aos homens, ao lado de sua qualificação reconhecida ou presumida, um importante atributo da masculinidade para o mundo do trabalho é o da virilidade, acionada para atividades tidas como mais pesadas, por envolverem perigo ou manuseio de peso ou uso de força. De modo geral: “O estudo das atividades de trabalho segundo o sexo e o par masculinidade/virilidade e feminilidade desvenda o poder dos estereótipos sexuados no trabalho (a virilidade é associada ao trabalho pesado, penoso, sujo, insalubre, algumas vezes perigoso, trabalho que requer coragem e determinação, enquanto que a feminilidade é associada ao trabalho leve, fácil, limpo, que exige paciência e minúcia)” (Hirata, 1995:42). Um trabalho que, por sua vez, demanda e desafia a virilidade de um trabalhador, está acionando sua identidade masculina, podendo, com isso, favorecer condutas prontas e vigorosas, bem como situações em que a saúde e a integridade (física e mental) sejam postas em risco. Talvez, muitos dos ditos “atos inseguros”, que geraram acidentes de trabalho ou doenças ocupacionais, possam ter suas raízes na mobilização de atribuições de gênero.8 Em seu trabalho com classes populares, Leal (1998: 392) aponta como, também, o trabalho e a sexualidade entrelaçam-se nos significados masculinos, em que o atributo da virilidade é fundamental: “Trabalho”, “serviço” e “esforço” são impressões-chave que aparecem associadas 98 O P ESO DO T RABALHO “ LEVE” F EMININO À S AÚDE à prática sexual masculina e numa perspectiva exclusivamente masculina. Expressões que, por um lado, potencializam a noção força-esforço, virilidade, e, por outro, redimensionam uma esfera – o trabalho – que é socialmente concebida como do masculino. Um importante ponto na divisão idealizada entre “serviço de homem” e “serviço de mulher” baseia-se no emprego da força física, o que promove outra forma de distinção e atribuição de valores às atividades como: “pesadas-difíceis” ou “leves-fáceis”. Assim, carregar peso parece ser um dos poucos esforços visíveis e reconhecíveis no trabalho, quanto aos demais, em geral realizados pelas trabalhadoras, permanecem invisíveis. O peso do trabalho “leve” adquire visibilidade se se articular a perspectiva de gênero com a abordagem ergonômica dos postos de trabalho,9 de modo que se contextualize esses valores de leveza e peso. Dessa forma, podemos levar em consideração não só o peso em si que o trabalhador precisa deslocar, mas as demais condições que compõem determinada atividade. Por exemplo, nos postos mais mecanizados, considerados “leves” em razão da presença da máquina e onde geralmente se alocam mulheres, ocorrem esforços físicos que podem passar despercebidos, tais como a adoção de posturas desfavoráveis para músculos e ossos, sua manutenção por longos períodos, a repetição sucessiva dos mesmos movimentos e, somando-se a estas, a pouca ou nenhuma possibilidade de sair do posto de trabalho e se locomover a fim de alternar movimentos ou, simplesmente, “dar uma esticada” para romper com o sedentarismo. Como o manuseio de peso é um importante diferencial que distingue os “trabalhos de homens” dos “trabalhos de mulheres”, reafirmando a lógica binária “pesado” versus “leve”, as diferenças imputadas aos gêneros, parecem tender a valorizar o esforço físico masculino e subestimar o feminino. Entretanto, deve-se considerar que, quando os homens deslocam pesos, o esforço físico e o trabalho muscular são mais intensos, porém esporádicos; ao passo que nos trabalhos “femininos”, esses são moderados, mas contínuos (Brabant, 1990; Vézina; Courville, 1992, Soares, 1998). Reside aí importante diferença que, nem sempre percebida, acarreta graves conseqüências para a saúde das mulheres trabalhadoras.1 0 De fato, a título de ilustração, as observações ergonômicas realizadas na fábrica11 informaram que grande parte dos homens realmente carrega peso no transporte e abastecimento de insumos para a produção, seu trabalho possibilita maior movimentação pela fábrica e um con- trole mais livre de seu tempo entre os abastecimentos. Tais características, no conjunto das atividades desempenhadas no turno noturno constituem importantes vantagens, sobretudo se comparadas ao trabalho nas máquinas. Um outro importante diferencial na lógica binária no mundo do trabalho está no atributo de “serviço perigoso” identificado, por exemplo, naqueles geralmente realizados em alturas que oferecem riscos de quedas ou com possibilidade de exposição a materiais tóxicos. Esses são considerados tanto por trabalhadores como pelas chefias, como trabalho pesado e, portanto, “típico” de homem (Kjellberg, 1998; Messing; Elabidi, 1998). Aceitar este risco subestimando os perigos, faz parte das atribuições de gênero que são acionadas no mundo do trabalho, uma vez que um “homem de verdade” não teme o perigo (Messing; Chatigny; Courville, 1996). Essa divisão entre trabalhos “leves” ou “pesados”, de mulher ou de homem, promove desafios à promoção da saúde dos trabalhadores, já que “estereótipos sexuados” contribuem para agravos estereotipados à saúde (Messing; Chatigny; Courville, 1996). De fato, nos trabalhos assalariados femininos, tidos como “leves”, há maior dificuldade na identificação dos riscos, principalmente porque as trabalhadoras tenderiam a desenvolver doenças ocupacionais, enquanto os homens estariam mais sujeitos a sofrer acidentes de trabalho (FTQ, 1995; Kjellberg, 1998). Por fim, deve-se considerar que apesar de gerentes e chefes também serem homens e mulheres, sua situação de classe os colocam numa perspectiva de otimização e de aproveitamento das atribuições de gênero dos trabalhadores, em benefício dos processos produtivos. Portanto, a organização do trabalho aciona atributos de gênero para seu melhor desempenho. Como aponta Hirata (1995), um grande campo de investigação abre-se diante da questão de como a virilidade, a docilidade, as masculinidades e femilidades são expressas, interpretadas, transpostas, negadas ou exploradas no trabalho. GÊNERO, TRABALHO E SAÚDE: DESCONSTRUÇÕES NECESSÁRIAS Uma vez que o trabalho feminino “leve” também tem o seu peso, deve-se, do mesmo modo, destacar que este fica ainda mais pesado, já que a atividade assalariada é exercida “acoplada” aos trabalhos domésticos (RochaCoutinho, 1994). Mesmo nos países onde existe maior participação masculina nos cuidados da casa e das crianças, ainda são as mulheres que dedicam mais tempo a essas 99 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 atividades, ou seja, apesar de conquistar espaço no mundo do trabalho assalariado, os trabalhos domésticos continuam sendo em sua maior parte realizados por mulheres (FTQ, 1995; Marshall, 1998). A interação entre os trabalhos doméstico e remunerado é um aspecto-chave na compreensão do impacto diferenciado das condições de trabalho sobre a saúde de homens e mulheres, como comenta Vogel (1999). Ao analisar historicamente a inserção das mulheres no trabalho assalariado, este autor ressalta quão pouco se conhece sobre os impactos da divisão desigual do trabalho, enfatizando a “invisibilidade” do trabalho doméstico em seus efeitos à saúde. Se tantas mudanças puderam ser feitas nas sociedades, se tantos atributos de gênero foram desconstruídos, principalmente ao longo do século XX, no qual as mulheres conquistaram importantes direitos sociais, como ao voto e ao trabalho, é importante considerar que não só o trabalho doméstico feminino precisa adquirir seu efetivo status nas relações produtivas, como também empregar a força de trabalho masculina nesse trabalho na esfera do privado. Desconstruir, então, adquire o sentido da redimensão das atribuições aos gêneros, em relação à história inscrita no cotidiano. Por isso, em vez de “proteger” o trabalho feminino com legislações especiais, que podem voltar-se contra as próprias trabalhadoras, pode-se empreender esforços, como alternativa, para “despublicizar” a parte do trabalho masculino que cada vez mais começa a faltar no espaço privado, em especial com a saída das mulheres para o trabalho na esfera pública. No entanto, caso se volte para uma perspectiva que visa a desconstrução de forma conseqüente da oposição binária masculino-feminino, ao rever as expectativas sobre as mulheres como essencialmente reprodutoras, também deve-se rever as atribuições aos homens como provedores. De forma bem clara alguns trabalhadores mencionaram, sob o aspecto obrigação perante a família, estarem empregados para garantir o mais plenamente possível a satisfação de seus dependentes. Essas obrigações foram descritas com palavras de angústia e sofrimento, pois perder o emprego ou não mais poder prover as necessidades familiares de forma satisfatória, implica para um homem perder seu “ingresso” no âmbito domiciliar. No livro A Revolução das Mulheres (Toscano; Goldenberg, 1992:68), Marta Suplicy relata significativamente: “Quantas vezes eu não ouvi mulheres dizendo: ‘Eu acho que o que eu ganho é meu. O que é dele é nosso, mas o que eu ganho é dinheiro meu’.” Assim, com a revisão das polaridades masculino-feminino e público-privado, não só as mulheres, mas também os homens podem ser beneficiados. No que tange ao trabalho noturno, estas questões adquirem especial relevância em virtude da inevitável inversão de horários que por si só já acarreta agravos à saúde (Rutenfranz; Knauth; Fischer, 1989). Quando a realização da jornada diurna compete com a premência de sono, é de se esperar que toda a vida sofra perda de qualidade, acirrando os impactos das diferenças homem-mulher. NOTAS Os autores agradecem a Angelo Soares, pela gentileza de disponibilizar farta bibliografia. 1. Pesquisa coordenada por Lúcia Rotenberg, com apoio da Faperj, CNPq e Fundação Ford. 2. Relatório de pesquisa, para a Fundação Ford, referente a auxílio concedido mediante Programa Interinstitucional de Metodologia de Pesquisa em Gênero, Sexualidade e Saúde Reprodutiva. 3. A pesquisa foi desenvolvida em etapas: (1) caracterização do grupo quanto às variáveis sociodemográficas e relativas aos trabalhos profissional e doméstico, (2) quantificação dos horários de sono, (3) análise qualitativa de entrevistas em relação às vivências de inversão de horários, às práticas para lidar com essa inversão e aos fatores considerados relevantes para a adaptação ao horário de trabalho e (4) descrição dos ambientes físico e organizacional da fábrica aliada à caracterização dos postos de trabalho ocupados por homens e mulheres. 4. No total, foram entrevistadas 46 pessoas – 29 trabalhadoras e 17 trabalhadores. 5. Resultados anteriores desta pesquisa indicam que a inversão de horários permeia vários aspectos da vida dos(as) trabalhadores(as), que afeta a saúde, o bem-estar, o lazer, os estudos e as relações amorosas (Rotenberg et al., 2001). 6. Os nomes são fictícios. 7. Os dados relativos ao trabalho doméstico mostram que para as mulheres predominam as tarefas domésticas básicas (limpar a casa, cozinhar, lavar e passar roupa), enquanto os homens dedicam-se, geralmente, a atividades eventuais fora do ambiente doméstico, como fazer compras ou ir ao banco (Rotenberg et al., 2002). 8. Entre os estudos sobre a virilidade no mundo do trabalho, existem importantes contribuições feitas por Christophe Dejours (1997, 1999) em que a virilidade teria uma conotação sexual e consistiria em um atributo masculino mas que seria compartilhado por homens e mulheres, e acionada por ambos em situações no trabalho onde se deve lutar contra o medo. Nesse sentido, a virilidade para o autor afasta-se da perspectiva de gênero adotada neste artigo, bem como nos demais autores citados, para aproximar-se das discussões sobre estratégias defensivas, no contexto da psicodinâmica do trabalho. 9. Na indústria estudada, os postos de trabalho relativos à produção são ocupados por mulheres, de modo geral. Na ausência delas (em casos de faltas ou nos horários das refeições), ou quando há aumento da demanda de produtos, supervisores e outros trabalhadores ocupam esses postos de trabalho. Grosso modo, homens e mulheres ocupam postos de trabalho distintos em que pode-se dizer que a produção realizada por mulheres e as tarefas relativas à supervisão e ao transporte de matéria-prima ou produto são realizadas por homens. O objeto de trabalho utilizado pelas mulheres é leve (tampas ou frascos de plástico) e manuseado com o auxílio dos 100 O P ESO DO T RABALHO “ LEVE” F EMININO À S AÚDE dedos. Já os homens utilizam a força muscular das mãos, braços e tronco para executarem suas tarefas, que são, basicamente, o carregamento de sacos cheios de material plástico, os quais pesam cerca de 25 kg, além dos que ocupam cargos de supervisão e mecânica. MARSHALL, K. Stay-at-home dads. Perspectives on labour and income, Ottawa: Statistics Canada, v.10, n.1, p.9-15, abr./jun. 1998. 10. Irá se abordar direta e exclusivamente em discussões apenas os mencionados “esforços físicos e trabalhos musculares”, entretanto, deve-se ressaltar a importância dos “esforços mentais” nos postos de trabalhos que por causa dos limites no desenho deste artigo não poderão ser aqui contemplados. MESSING, K.; CHATIGNY, C.; COURVILLE, J. L’invisibilité du travail et la division léger/lourd: impact sur la santé et la securité du travail. Objectif Prévention, Montreal, v.19, n.2, p.13-16, 1996. MESSING, K.; ELABIDI, D. Collaboration entre les travailleurs lors d’efforts physiques. Objectif Prévention, Montreal, v.21, n.5, p.24-26, 1998. OLIVEIRA, M.C. A família brasileira no limiar do ano 2000. Estudos Feministas, Rio de Janeiro, IFCS/UFRJ, v.4, n.1, p.55-63, jan./ jun. 1996. 11. Ver nota 9. RAGO, M. Do cabaré ao lar. Uma utopia da cidade disciplinar (Brasil 1890-1930). 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Women’s health at work. Estocolmo: Arbetslivinstitutet, 1998. p.279-307. DE C ASTRO MORENO: Bióloga, Pesquisadora do Departamento de Psicobiologia da Escola Paulista de Medicina, UnifespSP ([email protected]). CLAUDIA ROBERTA LEAL, O.F. Cultura reprodutiva e sexualidade. Estudos Feministas, Rio de Janeiro, IFCS/UFRJ, v.6, n.2, p.376-392, jul./dez. 1998. 101 SSÃO ÃO P PAULO AULO EM EM P PERSPECTIVA ERSPECTIVA,, 17(2): 17(2) 2003 102-108, 2003 SAÚDE MENTAL E PSICOLOGIA DO TRABALHO J OSÉ ROBERTO H ELOANI C LÁUDIO G ARCIA C APITÃO Resumo: Este artigo objetiva, mediante algumas incursões teóricas e de uma análise sociopsicológica, discutir a forma como o trabalho está organizado em nossa sociedade, bem como as repercussões psíquicas provocadas pelo trabalho sem sentido. As condições e as exigências do mercado de trabalho na atualidade rotinizam e amortecem o sentido da vida, deixando no corpo as marcas do sofrimento, que se manifestam nas mais variadas doenças classificadas como ocupacionais, além de atentar contra a saúde mental. Palavras-chave: psicodinâmica; trabalho; saúde mental. Abstract: The objective of this paper is to discuss, trhough some theoretical incursions and a socio-psycological analysis, the way labor is organized in our society and the psychic repercussions criated by the non-sense labors. Conditions and requirements imposed by the current work market make life a matter of routine and deaden its sense, leaving scares of sufferings on bodies which are manifested by various diseases taken as occupational ones and constitute an attack to mental health. Key words: psychodynamic; labor; mental health. U m dos objetivos mais recentes da saúde mental não se restringe apenas à cura das doenças ou a sua prevenção, mas envidar esforços para a implementação de recursos que tenham como resultado melhores condições de saúde para a população. Na visão de Bleger (1984), não interessa apenas a ausência de doenças, mas o desenvolvimento integral das pessoas e da comunidade. A ênfase, então, na saúde mental, desloca-se da doença à saúde e à observação de como os seres humanos vivem em seu cotidiano. Para Dejours (1994), a psicopatologia tradicional está alicerçada no modelo clássico da fisiopatologia das doenças que afetam o corpo. Dedica-se, exclusivamente, ao diagnóstico das doenças mentais, dos transtornos mentais orgânicos, da esquizofrenia, dos transtornos do humor e dos inúmeros transtornos de personalidade. O debate, porém, que este artigo pretende explorar abrange as condições de milhares de pessoas sem imunidade que, embora suportem as pressões, conseguem, de alguma forma, escapar de um transtorno psicótico severo, mas que se mantêm, por assim dizer, no campo da normalidade. Não é raro encontrar pessoas que, por uma condição de sua psicodinâmica interna, possuem a propensão a tra- balhar em excesso e a divertir-se muito pouco; outras, pelo contrário, passam os dias a divertirem-se; outras ainda não conseguem fazer nem uma coisa nem outra. Sabe-se hoje que tanto o trabalho, quanto a diversão em proporções satisfatórias são critérios para avaliar um funcionamento psíquico saudável. Na realidade, ao contrário do que muitos possam supor, a organização do trabalho não cria doenças mentais específicas. Os surtos psicóticos e a formação das neuroses dependem da estrutura da personalidade que a pessoa desenvolve desde o início da sua vida, chegando a certa configuração relativamente estável, após o período de ebulição da adolescência – quando as condições sociais são relativamente favoráveis –, antes mesmo da pessoa entrar no processo produtivo. No entanto, “o defeito crônico de uma vida mental sem saída mantido pela organização do trabalho, tem provavelmente um efeito que favorece as descompensações psiconeuróticas” (Dejours, 1992:122). Atualmente, observa-se uma pressão constante contra a grande massa de trabalhadores existente em quase todo o mundo. Uma ameaça com objetivo certeiro faz com que milhares de pessoas sintam-se sobressaltadas, pois a úni- 102 S AÚDE MENTAL E P SICOLOGIA DO T RABALHO ca ferramenta de que dispõem, sua força de trabalho, pode ser dispensada a qualquer momento. O desprezo assola o universo do trabalho e traz conseqüências drásticas para todos os que têm em seu trabalho sua única forma de sobrevivência. Contudo, a força de trabalho exigida precisa de especial qualificação, mesmo que seja, como antigamente, para apertar um simples botão. Assim, para a maior parte das atividades, exige-se um trabalhador complexo, que saiba muito mais além do que seria preciso para a execução de determinada tarefa. Acompanhando a tecnicidade do mundo, vai-se, paulatinamente, necessitando de um trabalhador com maiores habilidades, ágil, que saiba lidar com uma nova representação de mundo, mesmo que seja para ocupar um cargo simples como o de telefonista. Essa pessoa tem de dominar sua língua, em alguns casos outro idioma, tem de ter rapidez tanto manual, como na voz e na mente, além de uma bagagem de informação disponível enquanto recurso pessoal para, ante qualquer dificuldade, utilizá-la. Assim, o mundo do trabalho torna-se, de forma rápida e surpreendente, um complexo monstruoso, que se por um lado poderia ajudar, auxiliar o homem em sua qualidade de vida, por outro lado – patrocinado pelos que mantêm o controle do capital, da ferramenta diária que movimenta a escolha de prioridades –, avassala o homem em todos os seus aspectos. Alguns são absorvidos, exigidos, sugados. Outros alçados a postos de poder e de liderança que reproduzem o capital virtual. Outros, por assim dizer, alguns milhões, são jogados como a escória cuja água benta do emprego, da possibilidade do trabalho, não veio a salvar. Esse princípio de realidade adentra e fere o psiquismo humano, fazendo com que as pessoas sintam-se exigidas; o sentimento de impotência e de desvalorização, que leva as pessoas pouco resistentes a degenerar-se rapidamente, avilta de si qualquer potencial humano que pudesse se somar às conquistas da civilização. nome, de país, de ramo de atividade, deixando seus trabalhadores em pleno mar de incertezas e retirando-lhes a identificação com sua prática diária e com a empresa para a qual trabalham. No pensamento e análise precisos e pontuais de Ianni (2000), é principalmente no neoliberalismo que se dá a dissociação entre o Estado e a sociedade civil, adquirindo o primeiro características de um aparelho administrativo das classes e grupos que detêm o poder, configurando-se como blocos dominantes em escala mundial. O que se observa é um Estado comprometido com a possibilidade de facilitação da produção e dos mercados, tendo em seu bojo a fluidez do capital produtivo e especulativo, da alta tecnologia, da informática, etc. No entanto, sempre em sintonia com as políticas geradas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial (Bird), Organização Mundial do Comércio (OMC), Grupo dos 7, Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) comprometidas em facilitar e incrementar a produção, com praticamente nenhum cuidado em relação aos resultados de suas políticas, sua repercussão social ou conseqüências diretas na vida de milhões de pessoas. Se o homem passa a maior parte de seu tempo trabalhando, suas relações pessoais fora de casa deveriam ter um valor afetivo de extrema importância. No entanto, as relações de companheirismo e de amizade no trabalho não se concretizam, pois elas são passageiras, imediatas, competitivas e as ligações afetivas, os vínculos não podem estabelecer-se, já que com cada alteração rompem-se os laços, perdem-se as pessoas e daí, além do castigo do desemprego, há a solidão, a perda irreparável. Fala-se em corrosão do caráter porque ninguém, nem os que teriam todas as razões para estarem satisfeitos com o sistema já que representam seu próprio ideal, encara seu emprego num horizonte a longo prazo. O comportamento de curto prazo, como Sennett (1998) observou, distorceu qualquer senso de realidade, confiança e comprometimento mútuo. As empresas descartam seus funcionários e os que podem fazem o mesmo. As pessoas parecem não mais estarem preocupadas com o significado do seu trabalho ou com a oportunidade de vivência e troca coletiva. A preocupação volta-se para a acumulação de um valor de troca, como se todos se convertessem em uma ação de mercado, cujo preço é julgado por outrem. A verdadeira identificação com o trabalho parece viver de um objetivo que não chega a concretizar-se: acumula-se aprendizado, dinheiro, experiência, aumentam-se as páginas do currícu- PARADOXOS DO TRABALHO A barbárie do capital instaura na contemporaneidade a desumanidade das relações humanas, que se desqualificam quase totalmente, surpreendendo com a forma e a fôrma na qual o homem atual vai colocando-se. O capital, por meio do trabalho, organiza e estrutura o mundo. Só que hoje ele não tem mais nomes, expressa-se por Fundos. As empresas são gerenciadas por executivos, não mais por seus donos. Podem mudar de cidade, de 103 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 lo, tudo para o próximo processo seletivo já que o trabalho atual será apenas momentâneo. No presente, ao contrário da classe de mineiros descrita em Germinal, por Zola, o que encontra-se são pessoas isoladas, esquizóides, que olham o colega como alguém não confiável, não só pelo fato do que o outro realmente é, mas, muito mais, pelo que representa: sofrimento e dor. No universo pós-moderno “são muitos os que colocam em plano muito secundário, ou simplesmente esquecem, o povo, as classes, os grupos e os movimentos sociais, assim como as correntes de opinião pública e os jogos das forças sociais [...] Em especial, esquecem as formas de organização social e técnica do trabalho, compreendendo as condições sob as quais se desenvolvem e realizam a produção, distribuição, troca e consumo, processos com os quais se funda uma parte fundamental da ‘fábrica’ da sociedade, em escala nacional e mundial” (Ianni, 2000). Retrocedendo na História, assim como sugere Marx (1996), mais dependente aparece o indivíduo, e, conseqüentemente também o indivíduo produtor e o conjunto ao qual pertence. De início, esse aparece de um modo ainda bastante natural, no seio da família e da tribo, esta uma família ampliada. Mais tarde, surge nas inúmeras formas de comunidade resultantes do antagonismo e da fusão das tribos. Somente no século XVIII, na “sociedade burguesa”, é que as diversas formas do conjunto social passaram a apresentar-se ao indivíduo como simples meio de realizar seus fins privados, como necessidade exterior. Todavia, a época que produz esse ponto de vista, o do indivíduo isolado, é precisamente aquela na qual as relações sociais (e, desse ponto de vista, gerais) alcançaram o mais alto grau de desenvolvimento. Não pretende-se nesse breve artigo sobrepor o homem atual àquele encontrado no século XVIII, no que se refere, por exemplo, ao trabalho e à forma como ele se organiza. Mas, ao contrário, esclarecer algumas das determinações históricas que fizeram com que o trabalho fosse e tivesse a forma atual e porque a relação com o trabalho deve ser de sofrimento, de pena a ser cumprida, de trabalho forçado e não algo ego-sintônico, motivado e prazeroso. Seriam apenas as relações de propriedade e de exploração? Ou a própria produção cria aquele que consome, que, por sinal, cria a própria Produção. Para Marx (1996:31), “a produção é também imediatamente consumo. Consumo duplo, subjetivo e objetivo. O indivíduo, que ao produzir desenvolve suas faculdades, também as gasta, as consome, no ato da produção, exatamente como a reprodução natural é um consumo de forças vitais”. Se a produção coincide com o consumo dos meios que obrigatoriamente foram utilizados e gastos para que ela ocorresse, o próprio ato de produção vai ser, como se verá, em todos os seus momentos, também ato de consumo. O resultado, em síntese, é que a produção é consumo, e que, imediatamente, é produção. “Cada qual é imediatamente seu contrário. Mas, ao mesmo tempo, opera-se um movimento mediador entre ambos. A produção é mediadora do consumo, cujos materiais cria e sem os quais não terá objeto. Mas o consumo é também mediador da produção ao criar para os produtos o sujeito, para o qual são os produtos” (Marx, 1996:32). Para entender quais as determinações históricas da relação homem x trabalho na modernidade, tem-se de penetrar na “máquina” que tece sua trama nevrálgica, a produção que cria seu produtor e consumidor, com base no momento em que foi gerada. Então, o trabalho configura-se como o representante da força dos impulsos que o homem emprega para executálo, para poder ou não consumir o que foi por ele produzido, abrindo possibilidades de constituição de subjetividades, correspondentes a cada época histórica, que tem, por domínio, uma forma de produção. Sujeito, trabalho, produto, consumo, lucro. Elementos constitutivos de um intrigante eixo gravitacional, em que consumidor e produto mantêm uma relação eqüidistante. Para Adorno e Horkheimer (apud Rouanet, 1983:147) “a atrofia da imaginação e da espontaneidade do consumidor cultural moderno não precisa ser reconduzida a mecanismos psicológicos. Os produtos mesmos, a partir do mais típico, o filme falado, paralisam aquelas faculdades por sua própria constituição objetiva. São feitos de tal forma que sua compreensão adequada exige rapidez de reflexos, dotes de observação, competência específica, mas também a absoluta suspensão da atividade mental do espectador, se este não quer perder os fatos que se desenrolam diante de seus olhos... o espectador não deve trabalhar com a própria cabeça; o produto prescreve todas as reações: não por seu contexto objetivo – este se esvai no momento em que é submetido ao pensamento – mas através de sinais. Toda conexão lógica, que exija esforço intelectual, é escrupulosamente evitada”. O produto posiciona o consumidor na mesma situação de uma linha de montagem e não se restringe apenas a filmes, mas a amplo universo de necessidades criadas, consumidas sem qualquer reflexão, como se os efeitos da paralisia mental sofrida na produção fosse transferida em gênero, número e grau, para aquele que o adquire. 104 S AÚDE MENTAL E P SICOLOGIA DO T RABALHO No que se refere à produção, e por que não dizer o mesmo para o consumo, a situação que se encontra na atualidade não surgiu por geração espontânea, mas ocorreram marcos no capitalismo, que, para melhor rendimento e maior produção, desenvolveu métodos, muitos dos quais, aperfeiçoados em diversas versões. Taylor (apud Heloani, 1994) formulou uma forma de organização do trabalho caracterizada pelo amplo funcionamento das tarefas e concomitante o monitoramento dos movimentos dos trabalhadores. Tal forma rígida de controle objetivava a eficiência como meta e princípio. O modelo de Taylor, por seu lado, foi aperfeiçoado por Henry Ford, que desenvolveu a concepção de linha de montagem. O trabalho, então, é dividido de tal forma que o trabalhador possa a ser abastecido de peças e componentes através de esteiras, sem precisar, desse modo, movimentar-se. A administração do tempo passa a se dar de forma coletiva, pela adaptação do conjunto dos trabalhadores ao ritmo imposto pela esteira. O fordismo não se limitará apenas à questão disciplinar no interior da fábrica. Ele incorporará, tal como o taylorismo, um projeto social de “melhoria das condições de vida do trabalhador”. O projeto social fordista revela-se um projeto político que objetivava assimilar o saber e a percepção política do trabalhador para a organização. Até a crise do paradigma taylorista-fordista de produção, o modelo de Recursos Humanos e a própria concepção de administração estiveram articulados com concepções oriundas da engenharia, especialmente com a de produção, como também, com a lógica militar, expressa tão bem pela utilização de vocábulos pertencentes à caserna, tais como: logística, tática, estratégia, etc. Em conseqüência das transformações sociais e das ocorridas no cerne do capitalismo, a abordagem da engenharia foi perdendo espaço e começou a ser questionada à medida que o modelo fordista de desenvolvimento entra em crise – perde sua eficácia – em fins dos anos 60 e começo dos 70. Tal mudança não foi produto simples e acabado de uma visão mais humanista ou de um longo e bem-cuidado processo de conscientização, mas conseqüência de uma necessidade premente de responder a uma nova estrutura econômica e a um novo modo de regulamentação social; em suma, a uma nova realidade que se apresentava e que exigia respostas rápidas por parte do capital. tente preocupação com a melhoria da qualidade de vida dos que trabalham. Todavia, encontra-se uma política mundial de ajuste de custos que leva governos e empresas a minguarem as conquistas sociais alcançadas no último século pela classe trabalhadora. Embora não exista uma definição consensual sobre a expressão “Qualidade de Vida no Trabalho (QVT)”, o termo vem sendo utilizado com diferentes conteúdos e significados – sua origem, segundo Trist (1981), concerne a uma conferência internacional sediada em Arden House, em 1972, cujo tema principal versava sobre os “Sistemas Sociotécnicos”. Não obstante, já no final da década de 50, quando o capital americano promove uma recessão para organizar o seu parque industrial, observa-se certa preocupação com esse assunto nos países que ditavam a política do capitalismo. Não teria portanto o “movimento” de QVT sua verdadeira origem nas conseqüências sociais da primeira retração econômica significativa após a Segunda Guerra Mundial nos EUA? É o que parece, ainda que tais mazelas só possam ser conhecidas e sentidas em sua real magnitude na crise do modelo de desenvolvimento fordista dos anos 60 e 70. O que se constata é que a qualidade de vida do trabalhador, especialmente dos que vivem no terceiro mundo, vem-se degradando dia após dia. Doenças até então inexistentes ou restritas a certos nichos empresariais, como a LER/Dort tornaram-se comuns a todos, e espalharam-se como doenças infecto-contagiosas, tornando impossibilitados, para o trabalho, milhares de trabalhadores. As Lesões por Esforços Repetitivos (LER) ou Distúrbios Osteomusculares (Dort) relacionados ao trabalho são nomenclaturas utilizadas para designar inúmeras doenças, entre as quais tenossinovites e tendinites, ou seja, inflamações que se manifestam nos tendões e nas bainhas nervosas que os recobrem; são afecções que podem acometer músculos, tendões, nervos e ligamentos de forma isolada ou associada, com ou sem a degeneração de tecidos, e que pode ocasionar a invalidez permanente. Em geral, não são facilmente diagnosticadas – o que prejudica o processo de tratamento – e afetam sobretudo trabalhadores do sexo feminino, das mais variadas atividades, com maior incidência entre os dezoito e trinta e cinco anos. Parece até que, pelo encolhimento do mercado de trabalho, as lutas dos trabalhadores restringem-se apenas à sobrevivência, assim como o quadro histórico encontrado no início do século passado, em que a luta era para não morrer, não importando o preço que teria de ser pago... viver como um estado apenas emergencial. QUALIDADE DE VIDA Hoje, o discurso manifesto encontrado nos folhetins que tratam das relações do trabalho parece demonstrar insis- 105 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 No entanto, se a qualidade de vida do trabalhador é vista, pelo menos como uma política de relações públicas, ou como uma meta quase recorrente, deve-se perguntar o que no trabalho pode ser apontado como fonte específica de nocividade para a vida mental. A trama em que essa questão está envolta é quase evidente: a luta pela sobrevivência leva a uma jornada excessiva de trabalho, e as condições em que o trabalho se realiza repercutem diretamente na fisiologia do corpo. O rompimento de vínculos de relações fundamentais para manutenção e fortalecimento da subjetividade humana atua de certa forma que pode desencadear o assédio moral, o qual tem sido compreendido, atualmente, como a exposição dos trabalhadores a situações humilhantes e constrangedoras, repetitivas e prolongadas durante a jornada de trabalho; e passam a ser mais desestabilizadoras. Mesmo assim, logo as relações ficam mais desumanas e aéticas, nas quais predominam os desmandos, a manipulação do medo, a competitividade desenfreada e os programas de qualidade total associados à produtividade e dissociados da QVT. A qualidade total sem qualidade de vida não é integral, mas parcial. O trabalho como regulador social é fundamental para a subjetividade humana, e essa condição mantém a vida do sujeito; quando a produtividade exclui o sujeito podem ocorrer as seguintes situações: reatualização e disseminação das práticas agressivas nas relações entre os pares, gerando indiferença ao sofrimento do outro e naturalização dos desmandos administrativos; pouca disposição psíquica para enfrentar as humilhações; fragmentação dos laços afetivos; aumento do individualismo e instauração do pacto do silêncio coletivo; sensação de inutilidade, acompanhada de progressiva deterioração identitária; falta de prazer; demissão forçada; e sensação de esvaziamento. As condições laborais, bem como as relações diretas entre os trabalhadores, influenciam diretamente a qualidade de vida. Essa, portanto, torna-se, nessa perspectiva, estratégica para a sobrevivência e desenvolvimento futuros das organizações. Como a produção estimula o consumo e ao mesmo tempo inventa o sujeito para o qual ela se destina, deve, então, esse sujeito, receber os impactos diretos da organização do trabalho. Resta, então, deduzir que, em grande parte, o sofrimento mental do trabalhador é conseqüência direta dessa organização, isto é, da divisão do trabalho, do conteúdo da tarefa, do sistema hierárquico, das modalidades de comando, das relações de poder, etc.; de todo um apa- rato que modula a percepção, o controle dos impulsos, as possibilidades de apreensão e a reflexão do que produz e que também se consome nas tarefas que executa. O SOFRIMENTO DO TRABALHO Dejours (1992) afirma que executar uma tarefa sem envolvimento material ou afetivo exige esforço de vontade que em outras circunstâncias é suportado pelo jogo da motivação e do desejo. A vivência depressiva em relação ao trabalho e a si mesmo alimenta-se da sensação de adormecimento intelectual, de esclerose mental, de paralisia da fantasia e da imaginação; na verdade, marca de alguma forma o triunfo do condicionamento em relação ao comportamento produtivo e criativo. Para esse pensador, no que diz respeito à relação do homem com o conteúdo significativo do trabalho, é possível considerar, esquematicamente, dois componentes: o conteúdo significativo em relação ao sujeito e o conteúdo significativo, pode-se assim dizer, em relação ao objeto. Quando o progresso e o avanço dessa relação são bloqueados por algum motivo ou circunstância, observa-se a incidência do sofrimento. O sofrimento, por seu turno, é desdobrado: o ponto de incidência proveniente das ações mecânicas, conteúdo ergonômico da tarefa, é o corpo e não o aparelho mental; esse último será afetado pela insatisfação propiciada pelo conteúdo significativo da tarefa a ser executada, transformando em sofrimento bem particular, cujo alvo, antes de tudo, é a subjetividade, ou seja, a mente. Freud (1987a), ao descrever o desenvolvimento psíquico, relata que uma criança recém-nascida ainda não diferencia seu ego do mundo externo como origem das inúmeras sensações que são vivenciadas por ela; apenas, com o passar do tempo, e progressivamente, vai aprendendo a fazer tal diferenciação, reagindo de modo adequado aos estímulos correspondentes. Por seu lado, o ego, movido pelo princípio do prazer, tenta afastar as sensações desprazerosas, denotanto uma tendência a isolar e a projetar para fora de si tudo o que pode ser fonte de desprazer. Num estágio de maior integração, o ego, com a ação deliberada das atividades sensórias e da ação muscular correspondente, consegue diferenciar entre o que é interno e o que origina-se do mundo externo, estabelecendo dessa forma as condições para a introdução do princípio de realidade. Por meio desse último, o ego pode localizar o sofrimento surgindo de três direções: de nosso próprio corpo, do mundo externo e da nossa relação com as outras pessoas. 106 S AÚDE MENTAL E P SICOLOGIA DO T RABALHO Esses desdobramentos na evitação do sofrimento por parte do ego podem também ocorrer em relação ao trabalho, tanto do ponto de vista físico quanto mental. O trabalho, não só como uma condição externa, pode propiciar sofrimento insuperável para o ego, empobrecendo-o e restringindo sua ação a mecanismos defensivos repetitivos e ineficazes, não lhe possibilitando aferir, de acordo com suas atividades, a satisfação de determinadas pulsões, que, não satisfeitas, tensionariam o aparelho psíquico, gerando angústia, estados depressivos, ansiedade, medos inespecíficos, sintomas somáticos, como sinais marcantes de sofrimento mental, com o agravante de que um ego debilitado e frágil não consegue diferenciar, pela sua condição, a origem de seu sofrimento. Dejours (1994) distingue dois tipos de sofrimento: o sofrimento criador e o sofrimento patogênico. Este último surge quando todas as possibilidades de transformação, aperfeiçoamento e gestão da forma de organizar o trabalho já foram tentadas, ou melhor, quando somente pressões fixas, rígidas, repetitivas e frustrantes, configuram uma sensação generalizada de incapacidade. Todavia, quando as ações no trabalho são criativas, possibilitam a modificação do sofrimento, contribuindo para uma estruturação positiva da identidade, aumentando a resistência da pessoa às várias formas de desequilíbrios psíquicos e corporais. Dessa forma, o trabalho pode ser o mediador entre a saúde e a doença e o sofrimento, criador ou patogênico. Assim, prazer e sofrimento originam-se de uma dinâmica interna das situações e da organização do trabalho. São decorrências das atitudes e dos comportamentos franqueados pelo desenho organizacional, cuja tela de fundo constitui-se de relações subjetivas e de poder. Pela condição de funcionamento mental estabelecida, o sujeito perde sua autonomia e, por conseqüência de um ego debilitado, não tem forças para realizar o trabalho de reflexão em que está envolvida toda sua existência, pois “as variáveis de personalidade mais relevantes na determinação da objetividade e racionalidade da ideologia são as pertencentes ao Ego, a parte da personalidade que avalia a realidade, integra as demais instâncias, e opera da forma mais consciente. É o ego que percebe as forças nãoracionais que atuam na personalidade, e se responsabiliza por elas” (Adorno; Horkheimer, apud Rouanet, 1983:170). Nesse sentido, abre-se ao psicólogo, e aos demais profissionais de saúde mental, um campo enorme de estudo, não apenas de denúncia. As condições e as exigências do mercado de trabalho na atualidade rotinizam e amortecem o sentido da vida, deixando no corpo as marcas do sofrimento, que se manifestam nas mais variadas doenças ditas ocupacionais, além de atentar contra a saúde mental, em especial quando o psiquismo anquilosado em sua mobilidade faz com que a mente seja absorvida em formas de evitação do sofrimento. No entanto, as organizações cobram de seus psicólogos e das escolas que os formam um rápido ajustamento de suas metodologias e de suas estratégias de ação. Isso tem feito com que grande parte dos psicólogos organizacionais abracem novamente (sem nenhuma crítica, com pouquíssima reflexão) idéias, princípios e pressupostos vindos das teorias administrativas, tais como as chamadas “Teorias da Qualidade”, verdadeiro fetiche pós-moderno, pois nada mais são do que a reatualização de alguns princípios da década de 30, bem untados com uma eficiente metodologia quantitativa desenvolvida na década de 50, aproveitada nos anos 70 e aperfeiçoada na década de 80. Na realidade, com o esvaziamento da área de Recursos Humanos, em razão das reengenharias, processos de downsizing e congêneres, alguns psicólogos estão-se transformando em consultores internos, assessorando treinamento e seleção e passando da posição de linha para a de staff, que além de ser, no cômputo geral, menos custosa, possui a vantagem do não envolvimento direto com os trabalhadores. Como nas organizações pós-fordistas houve uma maquiagem no que concerne ao controle. Agora o psicólogo não regula o processo, o controle é por resultados, o compromisso é com a qualidade e esse profissional deve voltar sua atenção para a auto-regulação do trabalhador. Essa sim é sua função! Não há nada de mais democrático ou participativo nisso em relação à concepção taylorista/fordista. O que existe é a substituição do controle externo do desempenho pelo controle interno dos próprios funcionários mediante eficiente trabalho de comunicação no qual o psicólogo, sem dúvida, poderá vir a ser protagonista, pois compete a ele, agora, instruir as equipes nesse sentido. Nas empresas pós-fordistas, signatárias do neoliberalismo, a matéria-prima principal são as pessoas; a moeda mais importante é o signo e o símbolo, e a manipulação dos processos psicodinâmicos constitue a principal tecnologia. Essas são algumas das ferramentas da empresa pós-moderna (se é permitido o neologismo). Substituíram o chicote, o supervisor e os testes psicológicos pela ilusão da integração e da participação. É a tentativa da construção de uma nova subjetividade que encontra no 107 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 _______ . Repressão e subversão em psicossomática: pesquisa psicanalítica sobre o corpo. Rio de Janeiro: Zahar, 1989. projeto neoliberal a sementeira do individualismo e da barbárie. _______ . O corpo entre a biologia e a psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas, 1988. CONCLUSÃO FREUD, S. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1987a (Obras Completas, v.21). _______ . O futuro de uma ilusão. Rio de Janeiro: Imago, 1987b (Obras Completas, v.21). Pelos problemas aqui abordados, as questões que envolvem a psicodinâmica do trabalho tornam-se pontos fundamentais de preocupação para os que lidam com Saúde Pública, sobretudo quando se sabe que a separação entre mente e corpo é apenas uma questão semântica, didática, e que o conceito de saúde vai muito além do que a mera ausência sintomática de doenças. Quanto à psicologia, concorda-se com Freud (1987b:61) quando assinala que “um psicólogo que não se ilude sobre a dificuldade de descobrir a própria orientação neste mundo, efetua um esforço para avaliar o desenvolvimento do homem, à luz da pequena porção de conhecimentos que obteve através de um estudo dos processos mentais de indivíduos durante seu desenvolvimento de criança a adulto”. Não se pode ser fiador de futuras ilusões para a grande massa de trabalhadores, que sofre com o trabalho ou com a sua falta. O trabalho não pode ser uma negatividade da vida, mas, muito pelo contrário, sua expressão, coisa que o capitalismo, em suas mais variadas versões apresentadas no decorrer da história, não permitiu que ocorresse. Eis a Esfinge que cabe ao homem contemporâneo decifrar, para não ser definitivamente devorado por ela. HELOANI, J.R. Organização do trabalho e administração: uma visão multidisciplinar. São Paulo: Cortez, 1994. IANNI, O. Enigmas da modernidade-mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. LARANJEIRA, S.M.G. A realidade do trabalho em tempo de globalização. Precarização, exclusão e desagregação social. In: SANTOS, J.V.T. (Org.). Violência em tempo de globalização. São Paulo: Hucitec, 1999. MARX, K. Para a crítica da economia política do capital. São Paulo: Nova Cultural, 1996. MATTAR Jr. R.; AZZE, R.J. Moléstias ocupacionais, lesões por esforços repetitivos: um desafio para a cirurgia de mão. In: CODO, W.; ALMEIDA, M.C.C.G. (Orgs.). 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CLÁUDIO GARCIA CAPITÃO: Psicólogo Clínico, Professor e Pesquisador Estadual de Campinas e na FGV-SP([email protected]). _______ . A loucura do trabalho. São Paulo: Cortez, 1992. em Psicologia na Universidade São Francisco ([email protected]). 108 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2): 109-122, 2003 F AMÍLIA E P ROTEÇÃO S OCIAL FAMÍLIA E PROTEÇÃO SOCIAL INAIÁ MARIA MOREIRA PAULO H ENRIQUE DE DE C ARVALHO ALMEIDA Resumo: Este trabalho se propõe a discutir o papel da família como mecanismo de proteção social no Brasil dos anos 90. Ele considera tanto as novas tendências e padrões de organização da família como as transformações econômicas e sociais da atualidade brasileira. Palavras-chave: família e proteção social; família ocidental; crises econômicas e família. Abstract: This paper analyzes the family as a mechanism of social protection in Brazil during the 90s. It considers at the same time the new trends and standards of family organization, and the economic and social transformations of the brazilian society. Key words: family and social security; western family; economic crises and family. A década de 90 foi a década dos direitos. Agora chegou a década da responsabilidade. A família tem responsabilidade de fazer força para sair da situação de indigência. Se a situação de penúria persistir após quatro anos, vamos analisar o caso. Wanda Engel 1 ções. Representando a forma tradicional de viver e uma instância mediadora entre indivíduo e sociedade, a família operaria como espaço de produção e transmissão de pautas e práticas culturais e como organização responsável pela existência cotidiana de seus integrantes, produzindo, reunindo e distribuindo recursos para a satisfação de suas necessidades básicas. Ainda que determinados fenômenos venham suscitando alguns questionamentos sobre a centralidade e o futuro da família nas sociedades contemporâneas, suas responsabilidades e suas funções sociais não parecem ter perdido a relevância, tanto nos países desenvolvidos, quanto nos que não chegaram a estabelecer um Estado de BemEstar e um sistema de políticas sociais mais consistente, como é o caso do Brasil. Essas funções e responsabilidades seriam particularmente demandadas nas situações de adversidade. Mais recentemente, a literatura especializada das ciências sociais tem abordado, entre outras, duas instigantes questões. Primeira: as mudanças na estrutura da família ocidental típica estariam reduzindo a importância de seu papel de “amortecedor social”? Segunda: estariam as crises econômicas atuais, num quadro de declínio dos amor- E ste trabalho se propõe a debater o papel da família como mecanismo de proteção social na denominada “era da responsabilidade”, considerando tanto as novas tendências e os padrões de organização da família como as transformações econômicas e sociais mais amplas do Brasil na atualidade. Constituída com base nas relações de parentesco cultural e historicamente determinadas, a família inclui-se entre as instituições sociais básicas. Com o desenvolvimento das ciências sociais, ampla bibliografia internacional tem analisado suas diversas configurações e destacado sua centralidade conforme a reprodução demográfica e social. A família é apontada como elemento-chave não apenas para a “sobrevivência” dos indivíduos, mas também para a proteção e a socialização de seus componentes, transmissão do capital cultural, do capital econômico e da propriedade do grupo, bem como das relações de gênero e de solidariedade entre gera- 109 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 tecedores do Welfare State, contribuindo para a destruição da estrutura familiar tradicional? Entre os fenômenos que traduzem as modificações na estrutura tradicional das famílias estariam: - aumento da proporção de domicílios formados por “nãofamílias”, não apenas entre os idosos (viúvos), mas também entre adultos jovens que expressariam novo “individualismo”; cultura de massa”. Assim, as alterações na estrutura familiar atualmente em curso no Ocidente podem estar simplesmente marcando o retorno “ao estado complexo e diverso em que de fato a família passou a maior parte do milênio”. Ainda que no passado as causas não tenham sido as mesmas, fenômenos como o incremento do número de separações, de casamentos tardios, de nascimentos fora do casamento ou da proporção de mulheres trabalhando fora, já se verificaram em outros momentos das sociedades ocidentais. É necessário também lembrar que as mudanças aparentes nas estruturas familares devem ser relativizadas com base na crítica da chamada “abordagem do domicílio”. Como Burke (2000:80-81) resume, existem dois grandes riscos na utilização de um enfoque “residencial” da família. O primeiro é que diferenças nas composições das famílias podem ser apenas instantâneos de fases diferentes do ciclo de desenvolvimento de grupos domésticos. Estes grupos surgem pequenos, expandem-se com os filhos e diminuem de tamanho à medida que os filhos maduros abandonam o lar. O segundo e maior perigo para a análise é o da confusão entre grupo familiar e grupo residencial. A família extrapola a residência; ela “não é apenas uma unidade residencial, mas também [...] uma unidade econômica e jurídica. Ainda mais importante, é uma comunidade moral, no sentido de um grupo com o qual os membros se identificam e mantêm envolvimento emocional [...]. Essa multiplicidade de funções coloca problemas porque as unidades econômica, emocional, residencial e outras podem não coincidir”. Assim – conclui Burke –, “um ín- - a redução do tamanho das famílias; - a fragilização dos laços matrimoniais, com o crescimento das separações e dos divórcios; - incremento da proporção de casais maduros sem filhos; e - a multiplicação de arranjos que fogem ao padrão da típica família nuclear, sobretudo de famílias com apenas um dos pais, e em especial das chefiadas por mulheres sem cônjuge.2 Para o exame dessas transformações, é preciso reconhecer primeiramente que se trata de processo “universal”, mas apenas no sentido de que é comum às sociedades urbanas dos países ocidentais ou “ocidentalizados”. Ele ocorre na França, na América Latina ou nos Estados Unidos (Tabela 1). No entanto, na Ásia e na África, se a família muda com a industrialização e a urbanização, esta mudança adquire significados particulares porque se faz com a preservação de valores e tradições específicas. Esta especificidade é marcante nos países muçulmanos, onde a “ocidentalização” da família continua sendo largamente rejeitada (Segalen, 2000). A diferenciação nos processos de “modernização” da família alerta para o fato de que ela não pode ser reduzida aos efeitos de fenômenos econômicos (urbanização, entrada da mulher no mercado de trabalho e outros) ou demográficos (como a queda das taxas de fecundidade). As estruturas familiares continuam a ser determinadas também por fatores culturais, ideológicos e políticos, que vão da afirmação do feminismo no Ocidente à reafirmação do integrismo fundamentalista no mundo árabe. É preciso verificar ainda que a mudança nas estruturas familiares na direção de uma maior diversidade de tipos ou modelos não é em absoluto um processo novo. A literatura especializada internacional insiste há muito tempo na desconstrução do “mito da família (nuclear) ocidental” (Segalen, 2000; Burke, 2000). Como afirmou The Economist (2000), a família nuclear ideal talvez seja apenas “uma invenção moderna”, “um fenômeno efêmero, que atingiu o auge na década de 50, sustentado pela prosperidade do pós-Guerra, por um baby boom e pela difusão da TABELA 1 Mudanças na Composição Familiar e População Média por Domicílio EUA – 1970-2000 Tipos de Família e População Média por Domicílio 1970 1980 1990 2000 Casal com filhos Chefes solteiros com parentes, inclusive filhos 40,3 30,9 26,3 24,1 10,6 12,9 14,8 16,0 Casal sem filhos 30,3 29,9 29,8 28,7 Outros tipos: não-famílias 1,7 3,6 4,6 5,7 Homens vivendo sozinhos 5,6 8,6 9,7 10,7 Mulheres vivendo sozinhas 11,5 14,0 14,9 14,8 Número Médio de Pessoas por Domicílio 3,1 2,8 2,6 2,6 Fonte: U.S Census Bureau. 110 F AMÍLIA E P ROTEÇÃO S OCIAL dice baseado na co-residência talvez não nos informe o que mais precisamos saber sobre estrutura familiar”. CRISE BRASILEIRA E PAPEL AMORTECEDOR DA FAMÍLIA Analisando as condições de reprodução social de trabalhadores brasileiros, estudos como os de Bilac (1978; 1993), Telles (1988), Lopes; Gottschalk (1990), Carvalho (1994), Ribeiro; Ribeiro (1994), Draibe (1994) e Montali (2000), têm destacado o papel desempenhado pela família nesse processo. Constatando como os baixos salários, a carência de serviços públicos e outros fatores mostram-se desfavoráveis à referida reprodução, esses estudos evidenciam como ela vem-se viabilizando em decorrência de uma lógica de solidariedade e de um conjunto de práticas no campo de ação de grupos domésticos, que atuam como unidades de formação de renda e de consumo, procurando maximizar os recursos a sua disposição. Com base nesses primeiros estudos, foram cunhadas e vêm sendo utilizadas as expressões “estratégias familiares” ou “estratégias de sobrevivência”, que procuram dar conta de um conjunto de práticas de trabalho, não trabalho, consumo e reivindicações. Por meio dessas práticas, rendas seriam obtidas e reunidas em um orçamento comum e dispendidas segundo critérios estabelecidos no âmbito da unidade familiar, com o objetivo de atender da melhor forma possível às necessidades de seus diversos membros. Essas estratégias teriam como elemento central o recurso ao trabalho complementar do cônjuge e dos filhos para compensar os baixos rendimentos do principal provedor, ocasionando ampliação do número de membros ativos da família, uma redução da proporção daquelas em que uma só pessoa trabalha e um conseqüente aumento da participação de mulheres e de jovens na PEA. Como assinala Montali (2000), isso se dá dentro da lógica da divisão sexual do trabalho e das relações de gênero e de hierarquia vigentes tanto na família quanto no mercado de trabalho, que se expressam em valores e em papéis atribuídos ao homem, à mulher e aos filhos na família e na produção, definindo tanto a disponibilidade dos diferentes membros da família para o ingresso no mercado quanto às possibilidades de sua absorção. 3 Assim, notadamente nas classes populares, as condições da família terminam dependendo de alguns fatores: da fase do ciclo familiar; do número e características de seus componentes (conforme sexo, idade, instrução e ní- 111 vel de qualificação, entre outros) e de sua posição no grupo doméstico (chefe, cônjuge e filhos, principalmente, em razão da prevalência da família nuclear no Brasil), à qual estão associados papéis definidos socialmente. Famílias com filhos mais novos ou chefiadas por mulheres têm alta probabilidade de serem pobres ou muito pobres. Contudo, à medida que os filhos crescem e começam a entrar no mercado de trabalho, essa probabilidade diminui, para crescer novamente em algum momento na família de chefes idosos, seja quando ainda há filhos maduros em casa, seja quando o casal – ou o cônjuge viúvo – está só (Lopes; Gottschalk, 1990). Nos anos mais recentes, transformações na dinâmica demográfica, nos valores e nos comportamentos sociais e no mercado de trabalho parecem afetar os mencionados arranjos e condições. Procurando discutir esse fenômeno e suas repercussões sobre as condições de vida de amplos segmentos da população brasileira serão analisadas, a seguir, as mudanças que marcaram os anos 90, com base em dados coletados pelo IBGE (2001, 2002) e pelo Dieese (2001), relativos ao conjunto do país e a suas várias regiões e áreas metropolitanas. Transformações dos Anos 90 De início, vale reafirmar que o conceito de família é polissêmico, com várias acepções. No sentido mais restrito, ele se refere ao núcleo familiar básico. No mais amplo, ao grupo de indivíduos vinculados entre si por laços consangüíneos, consensuais ou jurídicos, que constituem complexas redes de parentesco atualizadas de forma episódica por meio de intercâmbios, cooperação e solidariedade, com limites que variam de cultura, de uma região e classe social a outra (Salles, 1999; 2002; Tuirán, 2002). Nas sociedades contemporâneas ocidentais, o modelo arquétipo é a família conjugal tradicional, constituída pelo casal e seus filhos não emancipados, e que residem em um domicílio independente. Contudo, como já se avançou, há uma brecha clara e crescente entre este modelo e uma realidade muito mais plural, na qual uma proporção crescente de famílias não se enquadra nesse padrão. Com o avanço da urbanização, da industrialização e da modernização dessas sociedades, ainda que persistam a pequena agricultura camponesa, indústrias caseiras e empresas domésticas urbanas, atividades econômicas ancoradas em relações familiares perderam a relevância, já não se podendo caracterizar a família, em geral, como S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 unidade de produção. 4 O declínio do poder patriarcal e de princípios e controles religiosos e comunitários mais tradicionais traduziu-se em mudanças nas relações de gênero, na ampliação da autonomia dos diversos componentes da família e em um exercício bem mais aberto e livre da sexualidade, dissociada das responsabilidades da reprodução. A presença de mulheres no mercado de trabalho passou a ser crescente, assim como a difusão e a utilização de práticas anticoncepcionais e a fragilização dos laços matrimoniais, com o aumento das separações, dos divórcios e de novos acordos sexuais. Esses fenômenos associam-se a uma significativa redução da fecundidade e do tamanho médio das famílias e a sua maior diferenciação, com a persistência de arranjos mais tradicionais, ao lado de outros genuinamente emergentes. No âmbito da família estão-se constituindo novas relações, com o relaxamento dos controles sociais sobre o comportamento dos cônjuges, o deslocamento da importância do grupo familiar para a importância de seus membros, a idéia de que o “amor” constitui uma condição para a permanência da conjugalidade e a substituição de uma “educação retificadora”, corretora e moral das crianças, por uma “pedagogia da negociação” (Machado, 2001; Décoret, 1998). À primeira vista, essa nova realidade pode dar a impressão de que as famílias estão desestruturadas, ameaçadas, ou, até mesmo, em vias de extinção. Uma leitura mais cuidadosa e acurada, porém, deixa patente sua plasticidade e sua enorme capacidade de mudança e de adaptação às transformações econômicas, sociais e culturais mais amplas, bem como sua persistente relevância, notadamente como espaço de sociabilidade e socialização primárias, de solidariedade e de proteção social. Por isso mesmo, trabalhos como os de Carvalho (1994) e Draibe (1994), entre vários outros, que se reportam à pauperização de enorme contigente da população brasileira (especialmente no Nordeste, no meio rural e nas áreas metropolitanas), recomendaram que a reforma das políticas e dos programas sociais colocasse a família como eixo e prioridade das ações governamentais nesse campo. Ao lado de macropolíticas orientadas para o combate à pobreza e à exclusão social, propuseram a implementação de programas de geração ou complementação de emprego e renda e de uma rede de serviços comunitários, incluindo programas de renda mínima para as famílias carentes, com a condicionalidade da permanência de seus filhos na escola. Esse reconhecimento da centralidade da família tornou-se praticamente consensual, apesar da absoluta insuficiência das políticas e dos programas sociais do país, como será visto posteriormente. O perfil das famílias brasileiras no início dos anos 2000 expressa as mencionadas transformações, acentuando tendências detectadas já em décadas anteriores. Com um decréscimo continuado e persistente, a taxa de fecundidade total passou de 2,6 filhos por mulher, em 1992, para 2,3 filhos, em 2001; o tamanho médio das famílias, que alcançava 4,5 pessoas em 1980 e 3,8 em 1992, reduziu-se em 2001 para 3,3 membros, segundo a PNAD. Já, em 1998, o número médio de filhos por família era de 2 no Norte, 1,9 no Nordeste, 1,5 no Sudeste, 1,4 no Sul, 1,5 no Sudoeste e 1,6 em todo o Brasil, conforme dados do IBGE/ PNAD elaborados pelo Dieese (2001:18, tabela 2). Além TABELA 2 Distribuição das Famílias, por Tipo, segundo Grandes Regiões Brasil – 1992-1999 Em porcentagem Tipos de Famílias Grandes Regiões Unipessoal Duas ou mais pessoas Casal sem filhos Casal com filhos Mulheres sem cônjuge com filhos Outros Tipos 1992 1999 1992 1999 1992 1999 1992 1999 1992 1999 1992 1999 Brasil 7,3 8,6 0,3 0,3 12,9 13,6 59,4 55,0 15,1 17,1 5,2 5,5 Norte 5,5 6,3 0,3 0,4 10,2 10,1 60,0 57,1 18,6 20,4 5,4 5,8 Nordeste 6,9 7,7 0,3 0,3 11,9 12,2 58,7 55,4 16,5 18,5 5,7 6,0 Sudeste 7,7 9,1 0,3 0,4 13,1 14,0 58,7 53,8 15,0 17,3 5,2 5,5 Sul 6,9 9,3 0,3 0,3 15,0 15,5 61,6 57,5 12,0 12,9 4,2 4,6 Centro-Oeste 8,6 0,5 0,3 11,9 13,9 60,2 54,8 15,1 17,2 4,8 5,2 Fonte: Fundação IBGE. Síntese de Indicadores Sociais 2000. 112 F AMÍLIA E P ROTEÇÃO S OCIAL disso, dados preliminares do Censo de 2000 evidenciaram um crescimento das separações, de novas uniões e de casamento não oficiais, com as uniões consensuais elevando-se dos 18,3% registrados em 1991 para 28,3% do total de arranjos conjugais. O exercício mais amplo e mais livre da sexualidade contribuiu para maior incidência da gravidez e da maternidade entre as adolescentes. Quanto aos arranjos familiares, ainda que o casal com filhos permaneça como o padrão de organização dominante, registra-se ligeira queda de sua freqüência, paralela a um aumento relativo das famílias unipessoais 5 e das famílias monoparentais, conforme os dados da Tabela 2. A freqüência de famílias monoparentais está associada a um dos fenômenos mais destacados pelo Censo de 2000 e pelas últimas PNADs: o aumento das responsabilidades das mulheres, que passaram a responder pela chefia de um em cada quatro domicílios no Brasil (27,3% segundo a PNAD 2001). De acordo com os Censos Demográficos, isso significou um incremento de 37,6% entre 1991 e 2000. Sem entrar na discussão desse fenômeno, cabe assinalar que as condições de inserção ocupacional das mulheres e a vulnerabilidade social dessas famílias têm implicações importantes para o objeto deste artigo, como será visto posteriormente. No entanto, não se pode desconhecer que as condições e alternativas das famílias também são definidas por condições exteriores a elas, isto é, por fatores macro-estruturais como a dinâmica da economia e das oportunidades ocupacionais. Nesse sentido, vale ressaltar como as “estratégias de sobrevivência” identificadas pelos estudos sobre família antes mencionados estavam associadas a taxas de crescimento e diversificação da produção e das oportunidades de trabalho que, apesar do incremento da população e do grau de urbanização, pelo menos até o início da década de 80 ampliaram expressivamente as possibilidades de integração e de mobilidade social. Entre outros fatores, porque as taxas de crescimento do PIB eram sistematicamente superiores às do crescimento da PEA, em uma época em que a expansão da produção implicava maior demanda de trabalho (Dedecca, 2001). Assim, a tendência à maior integração por intermédio do mercado de trabalho exauriu-se na década de 80, a denominada “década perdida”, com o esgotamento da tradicional industrialização por substituição de importações e a crise do Estado desenvolvimentista e do padrão de crescimento por ele impulsionado. Em razão do agravamento da crise econômica e da crise fiscal do Estado e de grande aceleração do processo inflacionário na década de 90, o padrão e o ritmo de desenvolvimento do Brasil foram reorientados, com a implementação de um conjunto de políticas convergentes, recomendadas pelas agências multilaterais. Denominadas de “ajuste estrutural”, “reformas estruturais” ou “reformas orientadas para o mercado”, elas envolveram um programa de estabilização, a realização de uma abertura econômica intensa e rápida, a implementação de amplo programa de privatizações, ênfase nos mecanismos do mercado e profunda reformulação do papel do Estado, não apenas em termos do seu protagonismo econômico e de suas funções reguladoras como, também, de suas responsabilidades como provedor de políticas econômicas e sociais. Foge aos objetivos deste trabalho uma análise do ajuste e da reestruturação produtiva dos anos 90, associada a uma inserção passiva e subordinada do país na economia global. Contudo, cabe ressaltar como esses processos contribuíram decisivamente para agravar o quadro social do Brasil nessa década, período marcado por: baixos níveis de crescimento econômico; deterioração das condições de trabalho e renda da população; persistência das desigualdades sociais e espaciais; e uma reorientação profunda das políticas sociais. Com a desaceleração da produção, baixos níveis de investimentos, grande aumento da dívida externa e interna, da dependência do mercado financeiro em relação a capitais voláteis e de sua vulnerabilidade aos ataques especulativos e às crises internacionais, o Brasil cresceu muito pouco na década de 90, que começa a ser avaliada como uma segunda década perdida. Em conseqüência, o período em apreço também foi marcado por expressiva destruição dos postos de trabalho, notadamente no setor industrial. É claro que valendo-se da constituição de uma sociedade de base urbanoindustrial no país, a economia brasileira – sobretudo metropolitana – avançou na direção da terciarização que caracteriza o trabalho contemporâneo. Contudo, a expansão dos serviços sociais (saúde, educação) e modernos (telemática, business services e outros) não compensou a destruição de empregos que vem-se processando nos demais setores. Isso ocorreu também porque o crescimento dos segmentos mais dinâmicos dos serviços também se fez com uso de novas tecnologias e demanda de mão-deobra mais qualificada. Conseqüentemente, ampliou-se o tradicional excedente de força-de-trabalho no país, intensificando a seletividade patronal e as dificuldades e as desigualdades no acesso aos postos de trabalho existen- 113 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 tes. Isso vem-se traduzindo em acentuado crescimento do desemprego, na precarização das relações de trabalho, na queda do rendimento médio dos que permanecem ocupados, na acentuação das disparidades espaciais e na persistência de uma pobreza massiva e secular. O ajuste estrutural da indústria brasileira já teria terminado? A ligeira alta da participação da ocupação manufatureira na população ocupada de 11,6% para 12,3%, entre 1999 e 2001, pode sinalizar nesta direção (IBGE, 2002). Resta que a vulnerabilidade da economia nacional perdura e que a desaceleração em 2002, que se segue aos efeitos da desvalorização do real, deve ter impacto negativo sobre o emprego industrial. Na década de 90, de acordo com levantamentos do IBGE, o desemprego aberto manteve uma taxa média entre 7% e 8%, particularmente acentuada em algumas cidades e regiões. 6 Com uma metodologia mais refinada, a Pesquisa de Emprego e Desemprego, realizada periodicamente pelo Departamento Inter-Sindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos – Dieese nas principais regiões metropolitanas, onde se concentra grande parcela das atividades econômicas e da população no Brasil, encontrou números ainda mais elevados. Em 2000 eles correspondiam a 17,8% em Belo Horizonte, 19,6% no Distrito Federal, 16,6% em Porto Alegre, 20,7% em Recife, 26,6% em Salvador e 17,6% em São Paulo. O crescimento do desemprego agrava-se com a duração média do tempo de procura de trabalho pelos desempregados e com a proporção dos que estão há mais de um ano nessa condição. De acordo com as pesquisas do Dieese, em 1999, a duração média do tempo de procura de trabalho chegava a 11 meses em Belo Horizonte, 15 no Distrito Federal, 11 em Porto Alegre, 12 em Salvador e 10 em São Paulo. O percentual de desempregados em busca de trabalho há mais de um ano elevava-se a 21% em Belo Horizonte, 31,6% no Distrito Federal, 21,6% em Porto Alegre, 26,5% em Salvador e 21,8% em São Paulo. Paralelamente ao incremento do desemprego, ocorreu uma deterioração expressiva das condições e da qualidade da ocupação, com o decréscimo do emprego formal, associado a garantias trabalhistas e a certa proteção social. Em contrapartida, ampliou-se o emprego precarizado e o número de trabalhadores que, como alternativa ao desemprego e à ausência de renda, passou a engrossar as fileiras do mercado informal. Entre 1992 e 1999 registrou-se um decréscimo da freqüência relativa dos empregados, o crescimento da participação dos trabalhadores domésticos e, principalmente, dos que exercem ativida- des por conta própria, bem como a extensão e o crescimento das desigualdades regionais. A flexibilização e a precarização das relações de trabalho transparecem, igualmente, na freqüência de empregados com carteira assinada, que segundo a Síntese dos Indicadores Sociais do IBGE caiu entre 1992-1999 de 51,6% para 45,3% no Norte, de 45,1% para 43,2% no Nordeste, de 72,2% para 68,3% no Sudeste e de 72,9% para 71,2% do Sul. Ainda que no Centro-Oeste esses números tenham evoluído de 50,4% para 52,9%, eles passaram de 64% para 61,3% em todo o Brasil. Os baixos rendimentos do trabalho e a persistência de enormes desigualdades constituem outro componente desse quadro. Com o crescimento do desemprego, a inconsistência dos vínculos e a redução dos rendimentos em todos os setores de atividade e para a maioria dos níveis socioocupacionais, houve redução substantiva da participação dos empregados na renda disponível. Análises de Dedecca (2001) ressaltam como essa participação declinou de 37,5% em 1991 para 32,8% em 1999. Se excluídas as contribuições sociais efetivas, esses números passam de 32% para 26,5%, respectivamente. Em contrapartida, aumentou a participação das empresas, dos impostos e das contribuições. É verdade que a distribuição da renda do trabalho teve pequena melhoria nos anos 90, principalmente em razão dos efeitos da estabilização monetária, vale dizer, da redução do “imposto inflacionário”, e ainda da recuperação do valor do salário mínimo. O índice de Gini para a distribuição dos rendimentos do trabalho teria alcançado um máximo de 0,600 em 1993, de acordo com o IBGE (PNAD, 2001), e um mínimo de 0,566 em 2001 . Contudo, é preciso também relevar dois fatos. Em primeiro lugar, o país continuou a conviver com uma das distribuições de renda mais injustas do planeta. Assim, por exemplo, 40,7% da população brasileira ocupada ganhava até um salário mínimo em 1999 (66,3% no Nordeste) (Tabela 3). E, em 1999, 50% dos trabalhadores que menos ganhavam se apropriavam de apenas 13,9% do total da renda proveniente do trabalho, enquanto os 10% que ganhavam mais ficavam com 46,8% e os 5% mais ricos com 33,4%. Em segundo, a desvalorização do real e o conseqüente retorno da inflação no final da década implicaram a volta da tendência à queda nos rendimentos reais das pessoas já ocupadas, visível, por exemplo, na comparação das PNADs 1999 e 2001 (IBGE, 2002). Se houve melhoria nos rendimentos médios mensais a partir de 1992, a perda 114 F AMÍLIA E P ROTEÇÃO S OCIAL TABELA 3 População Ocupada, por Classe de Rendimento Médio Mensal Familiar per Capita, segundo Grandes Regiões Brasil – 1992-1999 Em porcentagem Classes de Rendimento Médio Mensal Familiar per Capita (em salários mínimos) Grandes Regiões Até 1/2 Mais de 1/2 a 1 Mais de 1 a 2 Mais de 2 a 3 1992 1999 1992 1999 1992 1999 1992 Brasil 28,1 18,9 24,9 21,8 23,1 25,6 Norte 33,0 20,2 27,6 28,4 21,9 Nordeste 50,4 39,8 21,5 26,5 12,1 Sudeste 16,8 8,4 24,8 17,7 Sul 19,9 11,4 27,8 Centro-Oeste 25,3 13,5 30,4 Mais de 3 a 5 1999 1992 1999 8,4 11,2 6,2 25,9 7,0 9,3 17,0 3,3 5,0 28,5 29,2 6,2 21,1 27,1 29,6 24,9 24,1 28,6 Mais de 5 1992 1999 9,4 5,3 9,9 5,1 8,0 3,8 6,8 2,3 3,6 1,9 3,8 14,5 8,6 12,8 7,0 13,9 10,3 13,7 7,0 11,1 5,4 11,2 5,3 11,9 5,4 8,6 5,3 10,4 Fonte: Fundação IBGE. Síntese de Indicadores Sociais 2000. média anual das pessoas com rendimento de trabalho foi da ordem de 0,7% entre 1999 e 2001. enormes desigualdades regionais do país, esses percentuais eram expressivamente inferiores nas regiões mais desenvolvidas e urbanizadas do Brasil, o Sudeste e o Sul. No Norte, porém, as famílias com renda per capita familiar de até metade do salário mínimo chegavam a 25,2% e no Nordeste a 38,9%, e a freqüência daquelas com renda até um salário mínimo a 52,3% e 65,9%, respectivamente. Com as transformações dos últimos anos, o crescimento da ocupação das mulheres e dos filhos registrado até os anos 80, paralelo ao incremento da diversidade e complementariedade de formas de trabalho e fontes de renda, que constituíam o eixo central das “estratégias de sobrevivência” das famílias das classes trabalhadoras, vem sendo inviabilizado. Como assinala Goldani (2002), a utilização dos “recursos da pobreza” vem-se transmutando em perversa “pobreza de recursos”, com a família reduzindo seu tamanho mas com “dependentes dependendo cada vez mais” dos poucos adultos que trabalham, em condições muitas vezes bastante desfavoráveis. Analisando a condição de atividade dos diversos membros das famílias do 1o e do 4o quartil de renda (ou seja, dos 25% de famílias mais pobres e dos 25% das mais ricas), nas principais regiões metropolitanas brasileiras, o Dieese calculou sua taxa de dependência econômica, dividindo a soma de menores de dez anos, inativos e desempregados pelo total de ocupados em cada família. Em 1999, esta taxa era de 5,1 em Belo Horizonte, 4,23 no Distrito Federal, 4,41 em Porto Alegre, 4,93 em Recife, 5,06 em Salvador e 4,18 em São Paulo, entre as famílias de menor renda, que tendiam a contar com maior número de crianças e cujo tamanho, inclusive por isso, era muitas vezes superior à média (Dieese, 2001). Impactos sobre as Famílias Em sociedades que não dispõem de sistema de políticas sociais mais efetivo e abrangente, como o Brasil, as condições de subsistência das famílias são determinadas por seu nível de rendimentos. Associado, fundamentalmente, tanto à renda obtida pelo seu chefe como à existência, ao número e a características de outros parentes inseridos no mercado de trabalho, e que auferem rendimentos adicionais. Por isso mesmo, as mudanças e os fenômenos assinalados vêm tendo claros e fortes impactos sobre a organização e as condições de vida das famílias brasileiras, e que afetam negativamente sua capacidade de atender às necessidades básicas de seus membros e propiciarlhes efetiva proteção social. Com a redução e a precarização dos postos de trabalho, a elevação do patamar do desemprego e a queda no rendimento médio dos trabalhadores, a pequena melhoria de rendimentos ocorrida na base da população ocupada ao longo dos anos 90 não chegou a propiciar melhor distribuição de renda ou a reduzir de forma significativa a proporção de trabalhadores em condições de pobreza ou de indigência. Nessas circunstâncias, a reprodução cotidiana de parcela significativa das famílias brasileiras continuou a ser afetada pela insuficiência de renda. Apesar de o decréscimo da freqüência relativa das famílias de mais baixa renda, em 1999, um quinto ainda subsistia com renda familiar per capita de até meio salário mínimo e 43,5% com até um salário mínimo. Refletindo, mais uma vez, as 115 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 Como assinala, porém, o referido estudo, essas taxas estão igualmente associadas às dificuldades de inserção da maioria dos trabalhadores em um mercado cada vez mais restrito e exigente quanto a instrução, qualificação (que envolve o capital cultural), condições de saúde e tempo de dedicação ao trabalho, mesmo nas áreas mais dinâmicas do país, como as regiões metropolitanas. Afetando o conjunto das atividades econômicas e setores que absorviam tradicionalmente e em grande escala a mão-deobra masculina e de menor qualificação (como a indústria e a construção civil), a reestruturação produtiva e a crise ampliaram o desemprego e a vulnerabilidade ocupacional entre os chefes de família, homens na maioria dos casos. Além disso, vêm reduzindo a possibilidade de que outros membros da família possam colaborar com o chefe ou, eventualmente, substituí-lo na manutenção do grupo doméstico. De acordo com informações sobre as características pessoais dos chefes de família em cinco regiões metropolitanas brasileiras, encontravam-se desempregados, em 1999, 8,3% dos chefes de família em Belo Horizonte, 10,2% no Distrito Federal, 9,7% em Porto Alegre, 10,6% em Recife, 14,8% em Salvador e 10,3% em São Paulo. Nas famílias mais pobres, situadas no primeiro quartil de renda, as taxas de desemprego do chefe ficavam acima de 20%, chegando a 36,2% em Salvador. Apesar disso o chefe continuava como o grande provedor, uma vez que sua contribuição para o rendimento total dessas famílias ficava próxima ou ultrapassava 80%. Estudos como os de Salles (2002), Oliveira e Ariza (2002), Goldani (2002) e Montali (2000), têm ressaltado como os problemas em apreço afetam, também, os padrões de organização do grupo familiar. Isso porque, nas classes populares, o homem ainda é considerado e valorizado como chefe e provedor da família, ao passo que as mulheres tendem a perceber o casamento como apoio moral e econômico e, muitas vezes, como oportunidade de deixar de trabalhar, dedicando-se aos afazeres domésticos e à criação dos filhos. À medida que o desemprego e os baixos níveis de remuneração inviabilizam essa divisão sexual de responsabilidades, o projeto feminino de melhorar de vida pelo casamento é frustrado, enquanto o homem, impossibilitado de cumprir o seu papel, sente-se fracassado, enveredando muitas vezes pelo alcoolismo ou abandonando a família. Assim, a ruptura das possibilidades objetivas de manter o padrão de família culturalmente estabelecido e dominante parece estar contribuindo para o aumento das separações e das famílias monoparentais, chefiadas sobretudo por mulheres. Como já foi visto, a freqüência dessas famílias foi uma das mudanças destacadas pelos dados do último Censo, mostrando que, em número crescente “las mujeres en este final de siglo, se enfrentan a um doble reto, de ‘cuidar’ e ‘prover’ a sus familias” (Goldani, 2002:286). Com responsabilidades ampliadas, elas têm aumentado sua participação entre a população ocupada, que passou de 38,8% em 1989 para 40,3% em 1999 (Dieese, 2001). Contudo, enfrentando discriminações e dificuldades no mercado de trabalho, as mulheres não apenas auferem remunerações médias inferiores às dos homens como tendem a concentrar-se em ocupações precárias, instáveis, mal remuneradas e com baixa proteção social.7 Nas classes populares, o emprego doméstico (ao lado de serviços executados de forma autônoma diretamente para o público) constitui o grande absorvedor da mão-de-obra feminina, indicando tanto a permanência de papéis tradicionais para as mulheres no mercado de trabalho como a precariedade de sua inserção, uma vez que esse tipo de emprego apresenta os menores níveis de formalização do vínculo, jornadas de trabalho irregulares e prolongadas e baixa remuneração. Discriminando a renda familiar pelos diversos tipos de relação de trabalho, informações do IBGE indicam que, em 1999, entre os empregados domésticos (majoritariamente mulheres) os trabalhadores com renda média familiar per capita de até meio salário mínimo representavam 39,1% na região Norte, 53,8% no Nordeste, 17,6% no Sudeste, 19,3 no Sul, 26,0% no Centro-Oeste e 26,7% no conjunto do Brasil. Além disso, agregando como trabalhadores em postos vulneráveis os assalariados sem carteira assinada, os autônomos que trabalhavam para o público, os trabalhadores familiares sem remuneração e os TABELA 4 Proporção de Trabalhadores em Postos Vulneráveis, segundo Região Metropolitana Brasil – 1999 Regiões Metropolitanas Homens Mulheres Belo Horizonte Distrito Federal Porto Alegre Recife Salvador 31,5 24,4 30,7 38,7 35,8 43,3 38,3 39,8 52,8 50,0 São Paulo 31,1 42,7 Fonte: Fundação IBGE. PNAD apud Dieese. Anuário dos trabalhadores. 116 F AMÍLIA E P ROTEÇÃO S OCIAL empregados domésticos, e calculando a proporção de trabalhadores em postos vulneráveis segundo o sexo, com base em pesquisas realizadas em 1999 em grandes metrópoles brasileiras, o Dieese chegou aos seguintes resultados: Nesse contexto, as famílias sob responsabilidade feminina geralmente são marcadas pela precariedade de renda e condições de subsistência. Informações do IBGE deixam patente como 24,8% dessas famílias tinham uma renda familiar per capita até meio salário mínimo e 48,2% até um salário mínimo em 1999. No Sul e no Sudeste esses percentuais eram mais reduzidos. Mas, no Norte eles atingiam 33,4% e 56,4% e no Nordeste 40,1% e 64,6%, respectivamente. Como se vê, a pequena melhoria de renda observada entre 92 e 99, com a redução do segmento mais pobre dessas famílias, não chegou a alterar significativamente sua situação. De acordo com apurações preliminares do Censo de 2000, nos domicílios por elas chefiados, 90% das mulheres não viviam com cônjuge masculino, sendo as principais quando não as únicas provedoras de suas famílias. Como já foi ressaltado no início deste artigo, a contribuição de outros membros vem sendo dificultada pela elevação do desemprego e da vulnerabilidade ocupacional entre os diversos segmentos da população e, especialmente, entre os jovens. Recorrendo mais uma vez ao estudo do Dieese, que analisou com minúcias a situação do trabalho no Brasil na década de 90, observa-se que as taxas de desemprego total vêm aumentando entre os chefes, cônjuges, filhos e outros componentes da família, em todas as regiões metropolitanas brasileiras pesquisadas. Além daqueles segmentos que tradicionalmente já enfrentavam maiores dificuldades para encontrar uma ocupação (como os dotados de menor escolaridade), o desemprego também tem-se acentuado entre a força de trabalho na idade mais produtiva (16 a 39 anos), na sua parcela mais madura e experiente (40 anos e mais) e até mesmo entre os mais instruídos, ou seja, entre os que possuem o segundo grau completo ou curso superior. Entre os jovens, muitas vezes sem qualificação profissional adequada e com experiência limitada por sua própria idade, esse problema vem assumindo proporções extraordinárias. Nas regiões metropolitanas brasileiras, as taxas de desemprego dos jovens são superiores a 40% entre os 16 e 17 anos, chegando a 54,1% em Salvador. Entre os 18 e 24 anos elas vão de 27,5% em São Paulo a 35,4% nessa última região metropolitana. Particularmente acentuados entre as mulheres, os problemas de inserção dos jovens também se manifestam na ocupação de postos vulneráveis e de suas baixas remunerações. A questão é importante, porque em decorrência da precariedade de rendimentos da maioria das famílias brasileiras, a participação dos jovens no orçamento doméstico não chega a ser desprezível, variando de 6,7% a 10,8%. E nas famílias do primeiro quartil de renda, esse percentual chega a dobrar (Dieese, 2001). Esses problemas afetam não apenas as condições materiais da subsistência da família como sua própria convivência e organização, com o aumento dos conflitos, da violência doméstica, da fuga de crianças e adolescentes para as ruas e do envolvimento desses últimos em atos infracionais. A pobreza, o desemprego e, em especial, a falta de perspectivas têm conduzido muitos jovens brasileiros para a criminalidade, o que contribui com o crescimento da violência, da qual eles têm-se tornado vítimas preferenciais, notadamente nos bairros pobres onde se concentram. Estudo da Unesco constatou que a taxa nacional de vítimas de assassinatos na faixa dos 15 a 24 anos passou em duas décadas de 30 (1980) para 52,1 (2000) por grupo de 100 mil. Além disso, tem crescido o envolvimento dos jovens com pequenos delitos, gangues, seqüestros e tráfico de drogas, despertando a atenção de pesquisadores e policy makers, da mídia e da opinião pública, com a demanda de políticas governamentais direcionadas para o segmento. É ilustrativo que, a pedido do governo do Estado de São Paulo, a Fundação Seade tenha criado um inédito “índice de vulnerabilidade juvenil”, que com base em uma série de indicadores avalia, nas diversas áreas da capital paulista, o quanto os adolescentes estariam passíveis de serem “contaminados” por algum processo de transgressão (Folha de S.Paulo, 14/07/2002). CARÊNCIA DE POLÍTICAS SOCIAIS Fragilizada pelos processos e pelas mudanças que marcam a atual realidade, a família vê crescer, paradoxalmente, suas responsabilidades como mecanismo de proteção social. Reportando-se a essa realidade, Fitoussi e Rosanvallon (1996) assinalam como a desestabilização da condição salarial, a multiplicação das situações de precariedade e um massivo crescimento do desemprego vêm levando a uma “sociedade de trabalhadores sem trabalho”. Nessa sociedade, o crescimento das situações de vulnerabilidade e a crise das instituições que fazem funcionar o 117 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 vínculo social e a solidariedade têm obrigado cada um a dar conta de si mesmo, organizando e procurando dar um sentido à sua vida de forma mais individual e solitária. Nesse contexto, cresce a importância da família e dos entornos sociais imediatos, notadamente para todos os que carecem de bens materiais, culturais e simbólicos, necessários não apenas à subsistência, mas também à criação de uma identidade e à alimentação de uma interioridade. Essa importância cresce entre as pessoas mais frágeis, para as quais não se dá um lugar na sociedade e que não conseguem encontrá-lo por si mesmas. É a família, sobretudo, que pode transmitir-lhes, entre outros aspectos, um patrimônio de “defesas internas”. Suscitadas com base na observação sobre países capitalistas avançados e onde se constitui e ainda persiste um Estado de Bem Estar Social, essas considerações aplicamse especialmente à situação dos países latino-americanos e do Brasil, onde os (históricos) problemas e transformações na esfera do trabalho são bem mais acentuados e somam-se a uma enorme carência de políticas sociais (Lautier, 1994; 1995). Diversos estudos, por um lado, têm analisado como, na história brasileira, os desafios de combate ao pauperismo e de regulação e controle das desigualdades e das injustiças nunca foram priorizados e efetivamente enfrentados (Carvalho, 2001). Todavia, o projeto desenvolvimentista pelo menos incorporava certa lógica de integração e as altas taxas de crescimento econômico por ele propiciadas viabilizaram, durante algumas décadas, uma expansão significativa das oportunidades de emprego e de obtenção de renda, bem como perspectivas de mobilidade e ascensão social, abortadas com sua crise e seu esgotamento. Por outro lado, notadamente na década de 80, na luta contra o regime autoritário, as reivindicações dos trabalhadores e as demandas da grande massa excluída dos benefícios da modernização e crescimento do país alcançaram nova expressão e relevância política, colocando o enfrentamento da questão social no centro da agenda da redemocratização; para isso, eram enfatizadas melhor distribuição das oportunidades e da riqueza e a ampliação e a universalização dos direitos de cidadania, notadamente pelo sistema de proteção e de um conjunto de políticas públicas de caráter social. Com o ajuste e a reestruturação produtiva nos anos 90, porém, essas prioridades foram alteradas, passando-se a enfatizar e a tratar a questão social de outra perspectiva. Partindo de concepções antinômicas entre o desenvolvimento econômico e o social e considerando o segundo como um subproduto do primeiro, essa perspectiva: 118 - despolitiza a questão social, dissociando-a da questão da injustiça e das desigualdades sociais e da própria esfera pública; - subordina o desenvolvimento e as políticas sociais aos ditames absolutos da economia; - reduz a questão social à questão da pobreza, com outra compreensão desse fenômeno; - adota uma concepção residual que retira o caráter universal das políticas sociais, direcionando-as, fundamentalmente, aos contingentes excluídos do mercado e em situação de maior pobreza, com o objetivo de atenuar seus efeitos mais perversos e seu potencial conflitivo e disruptivo; e - promove uma reconfiguração do sistema de proteção e das políticas sociais, adaptando-as a essas novas orientações (Carvalho, 2001; Ivo, 2001). Assim, em vez de “a década dos direitos”, os anos 90 constituíram, na verdade, a década de sua destituição. Com disponibilidade reduzida de recursos e sujeita a pressões crescentes por sua contenção, a chamada “área social” do Estado brasileiro vem buscando racionalização dos gastos e adequação de suas ações às orientações anteriormente mencionadas, mediante focalização, da descentralização e da busca de novas parcerias com o mercado e a sociedade. Reproduzindo uma concepção da vida social fragmentada, os “problemas sociais” passaram a ser enfrentados pela multiplicação de políticas e programas setoriais, emergenciais e isolados, sem um projeto que os articule e lhes imprima sentido político (Cohn, 2000). A prioridade concedida aos segmentos populacionais considerados como mais pobres e vulneráveis (como as crianças e os adolescentes ou os produtores rurais de baixa renda) vem-se traduzindo em intervenções pontuais, compensatórias e assistencialistas, de alcance geralmente limitado. Como ilustram as declarações da Secretaria de Assistência Social do Ministério da Previdência e Assistência Social do Brasil, reproduzidas no início do presente texto, alguns desses programas remetem à própria população pauperizada a “responsabilidade” de dar conta de seus problemas, exaltando a “participação”, a “solidariedade” e a “autogestão”. Em acuradas análises sobre as relações entre pobreza e governança, Ivo (2001) destaca esse fenômeno, reportando-se ao desenvolvimento de iniciativas inspiradas pelas agências multilaterais que procuram aproveitar o que consideram como “ativos” e como “potencial” dos pobres, mo- F AMÍLIA E P ROTEÇÃO S OCIAL bilizando-os e canalizando-os “para resolver a um só tempo o problema material da pobreza, da participação e da integração social”, por intermédio de ações restritas ao campo de ação da comunidade e de uma ênfase no empreendedorismo e na incorporação dos pobres no mercado. 8 Contudo, embora necessários para aliviar a extrema carência de determinadas camadas da população, programas pontuais e enfatizados têm limites bastante estreitos no enfrentamento dos problemas sociais e da pobreza quando não são associados a políticas e transformações mais amplas, que ataquem seus determinantes estruturais (Lopes; Gottschalk, 1990). Além disso, no caso brasileiro, eles vêm atendendo a uma parcela bastante reduzida de sua potencial clientela. O Programa Brasil em Família ilustra bem este fato. Criado em 2000, ele propõe parceria entre o governo federal (por intermédio da Secretaria de Assistência Social – Seas do Ministério da Previdência e Assistência Social), os governos estaduais e municipais para a instalação e manutenção de Núcleos de Apoio à Família (NAF). Conforme a proposta oficial (Brasil, 2001a), esses núcleos se incluiriam entre as ações integradas no combate à pobreza, com múltiplas atribuições. Objetivando impulsionar a inclusão social de famílias de baixa renda, com atividades de atendimento, orientação, encaminhamento, suporte social e visitas domiciliares, entre outros, caberia aos NAF: - organizar e mediar a oferta e a demanda de serviços sociais por meio da orientação ao acesso dos serviços cadastrados; - incentivar a ampliação da rede social local, tanto por parte da iniciativa privada quanto da governamental. Na prática, porém, o programa parece estar bem distante dessas pretensões. No Estado da Bahia, por exemplo, foram implantados apenas doze núcleos, nove deles em Salvador e outros nos municípios de Camaçari, Lauro de Freitas e Simões Filho (integrantes da Região Metropolitana), com uma meta de 28.800 atendimentos/ano. Problemas com o repasse de verbas da Seas levaram o NAF de Simões Filho à desativação e os demais a serem bancados pelas prefeituras. No primeiro semestre de 2002, foram registrados 1.379 atendimentos em Camaçari, 958 em Lauro de Freitas e 8.301 em Salvador, com as ações do NAF centradas na identificação de instituições e serviços locais de assistência, no cadastramento e na realização de reuniões socioeducativas com famílias indigentes e em esforços para intermediar e assegurar seu acesso à deficitária (e muitas vezes precária) rede social existente. Programas direcionados à infância e à juventude pauperizadas, como o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – Peti, o Projeto Agente Jovem de Desenvolvimento Social e Humano e o Programa Bolsa Escola do Governo Federal também são destacados como iniciativas de proteção à família no discurso oficial. O Peti vem retirando meninos e meninas entre 7-14 anos das chamadas “piores formas” de trabalho infantil. Atuando prioritariamente em áreas que o utilizam em larga escala e em condições especialmente intoleráveis, ele oferece pequena compensação financeira às famílias dessas crianças, na forma de bolsas no valor de R$ 25,00 por criança nas áreas rurais e R$ 40,00 nas áreas urbanas, com um teto máximo de três crianças, por família, desde que elas freqüentem regularmente a escola e atividades socioeducativas (culturais, esportivas e de lazer) no turno complementar. Envolvendo uma parceria entre o governo federal, Estados e municípios, em 2000, o Programa atendia a cerca de 140 mil crianças e adolescentes brasileiros. Em 2002, esse número se expandiu significativamente, projetando uma meta de 813 mil e concedendo 801.714 benefícios até o último mês de maio (Folha de S.Paulo, 26/05/2002), com evidentes efeitos positivos sobre as crianças, famílias e áreas beneficiadas. Contudo, já em 1999 havia 2.532.965 crianças ocupadas entre os 10-14 anos no Brasil, conforme informações da PNAD, sem contar que muitas crianças começam a trabalhar antes daquele limite de idade, principalmente nas áreas rurais. Além disso, o Peti começou a enfrentar o angustiante proble- - estimular e valorizar o papel da mulher nas famílias pauperizadas; - desenvolver atividades socioeducativas com essas famílias para ampliar o universo informacional e a ação participativa; - articular e apoiar projetos de incentivo a unidades produtivas familiares e comunitárias, ao associativismo e ao cooperativismo; - encaminhar ou articular cursos de qualificação profissional; - viabilizar o atendimento prioritário às famílias inseridas nos programas da Seas; - trabalhar as relações existentes nos núcleos familiares; - manter uma “relação direta e dinâmica” com as instituições e os serviços sociais da comunidade; 119 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 ma do que fazer com os meninos e as meninas desligados porque ultrapassaram os 14 anos, que na ausência de outras alternativas tendem a voltar a atividades precárias e arriscadas e às condições de vida degradantes das quais foram temporariamente afastados. Esse problema começou a ser parcialmente equacionado com a recente criação do Programa Agente Jovem, direcionado para jovens de 15 a 17 anos de comunidades pobres cujas famílias tenham renda familiar per capita d e até meio salário mínimo, com prioridade para os egressos de programas como o Renda Mínima, Peti ou Bolsa Escola. Seu objetivo seria o de suprir necessidades de jovens com o mencionado perfil, que sem idade suficiente para ingressar no mercado de trabalho e sem melhores alternativas terminariam ficando “à margem”, na ociosidade ou na marginalidade (Brasil, 2001b). Fundamentando-se na crença de um protagonismo juvenil, o programa propõe-se a assistir aos seus beneficiários de forma que assegure sua permanência no sistema educacional e experiências práticas para sua inserção laboral futura, paralelamente a uma atuação “cooperativa e construtiva” nas comunidades onde eles residem, contribuindo para melhoria de seus indicadores sociais. Mais concretamente, é oferecida uma Bolsa de R$ 65,00 aos seus participantes, condicionada à freqüência escolar e a sua capacitação e atuação na comunidade no apoio às áreas de saúde, meio ambiente e cidadania, articulada com sua participação em atividades de cultura, esporte e lazer. De acordo com informações oficiais, em maio do corrente ano, o total de beneficiários do Agente Jovem teria chegado a 100 mil. Sem maiores considerações sobre a proposta ou a operacionalização desse programa, no que diz respeito às discussões do presente trabalho, vale ressaltar: a) sua reduzida abrangência, em um país atualmente marcado pela chamada “onda jovem”; b) como iniciativas dessa ordem, mesmo quando bem concebidas e sucedidas, não vem conseguindo-se contrapor ao alto nível de desemprego e à falta de perspectivas que afeta a maioria dos jovens brasileiros, frustrando o aproveitamento de suas potencialidades, seus sonhos e suas expectativas. O último dos programas mencionados, o Bolsa Escola teve origem em 1995, como iniciativa do governador recém-eleito do Distrito Federal, Cristovam Buarque. Na época, o Programa beneficiou 50.676 crianças de um total de 25.680 famílias de baixa renda, oferecendo-lhes mensalmente uma Bolsa no valor de um salário mínimo, condicionada à freqüência de seus filhos à escola. Por seu caráter inovador e resultados, essa iniciativa conquistou visibilidade e reconhecimento internacional. Com isso, terminou fundamentando um programa que em maio de 2002 atendeu a 852.002 crianças e adolescentes (entre seis a quinze anos) de famílias com renda per capita de até meio salário mínimo, em todo o território brasileiro, o denominado Bolsa Escola Federal. Ao expandir sua abrangência, porém, o programa reduziu o valor da Bolsa para R$ 15,00 para cada filho beneficiado, estabelecendo um teto máximo de R$ 45,00 por família, o que tem suscitado várias críticas. Documento elaborado pelo MEC responde às críticas, ressaltando que o Bolsa Escola não é a solução para a pobreza do país e que sua proposta “é eminentemente educacional”. Seus objetivos seriam, sobretudo, “assegurar a permanência dos alunos mais pobres na escola, motivá-los a estudar e diminuir os ainda altos índices nacionais de evasão e repetência. Mas as ações deverão produzir outros efeitos importantes, como a melhora da qualidade de vida e da distribuição de renda no país, a recuperação da auto-estima de famílias ou o desenvolvimento da cidadania” (Dossiê J.B. Publicidade , 2002). É no mínimo duvidoso, porém, que com uma simples e reduzida Bolsa possa alcançar-se esses efeitos e objetivos. Em Estados como o da Bahia não existe sequer um efetivo controle da freqüência dos beneficiários à escola. Além disso, sua qualidade precisaria ser bastante transformada e melhorada para torná-la mais convidativa e capaz de viabilizar melhor desempenho educacional dos alunos de mais baixa renda. Ademais, não se pode ignorar que, além de atingir apenas reduzida parcela de seu público-alvo, esses programas deixam grande contigente de trabalhadores empobrecidos e vulnerabilizados e os que não são considerados como em uma situação extremada de pobreza excluídos dos suportes sociais. Assim, o que a referência às “responsabilidades” deixa evidente é um processo de privatização dos riscos que remete aos indivíduos e às famílias o enfrentamento da vulnerabilidade e da precariedade das condições de vida. Atingida pelas mudanças assinaladas e por processos nos quais não têm qualquer controle, porém, a família vem perdendo gradativamente sua capacidade de funcionar como amortecedor da crise e como mecanismo de proteção de seus componentes, o que leva não apenas à deterioração das condições de vida da maioria da população como afeta e ameaça a própria unidade familiar. 120 F AMÍLIA E P ROTEÇÃO S OCIAL NOTAS 10 e 15 anos, pois considera fundamental reconhecer a realidade do trabalho infantil no país. 1. Secretária de Assistência Social do Ministério da Previdência e Assistência Social do Brasil. Esta declaração foi publicada na Folha de S.Paulo de 30/04/2000, como resposta às críticas sobre a redução para quatro anos do tempo máximo em que crianças e adolescentes pauperizados poderiam ser beneficiados pelo Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – Peti, criado em 1997 para eliminar as chamadas “piores formas desse trabalho”. Até 1999, o Programa concedia bolsas a crianças e jovens ocupados em atividades penosas e degradantes até que eles chegassem aos 15 anos, procurando viabilizar sua dedicação integral à escola. Com o argumento, porém, de que o Peti precisava “ter uma porta de saída”, o tempo do benefício foi reduzido para dois anos, prorrogáveis por mais dois, decisão justificada pela Secretária com as mencionadas considerações. 7. Caracterizando a discriminação da mulher no mercado de trabalho, o estudo do Dieese (2001) assinala como sua remuneração média é inferior à dos homens até mesmo entre os profissionais de nível superior. Em 1999, os rendimentos/hora dos ocupados no trabalho principal entre esses profissionais era de R$ 12,33 entre os homens em Belo Horizonte, contra R$ 8,56 entre as mulheres; no Distrito Federal de R$ 16,64 contra R$ 12,52; em Porto Alegre de R$ 9,09 contra R$ 6,90; em Recife de R$ 10,14 contra R$ 6,60; em Salvador de R$ 10,12 contra R$ 7,10 e em São Paulo de R$ 14,33 contra R$ 10,03. Considerando todos os ocupados, as mulheres recebiam em média 65% do que recebiam os homens. 8. Ao cobrar que as famílias beneficiadas pelo Peti se esforçassem para sair da indigência; a Secretaria de Assistência Social explicou que isso poderia ser viabilizado à medida que as famílias aproveitassem os programas governamentais de geração de trabalho e renda. 2. Ver, a esse respeito, por exemplo, Scott (1993), para o caso norteamericano, e ainda, para as realidades do Brasil e de outros países da América Latina, estudos como os de Bilac (1993), Ribeiro e Ribeiro (1994), Ribeiro et al., (1994), Ribeiro (1999), Montali (2000), Tuirán (2002), Salles (2002), Goldani (2002), Garcia e Rojas (2001), Souza (1996) e Machado (2001), que, entre vários outros, destacam as transformações da estrutura familiar. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BECKER, G.S. A theory of the allocation of time. Economic Journal, 75, 493-517, set. 1965. 3. Diversos estudos assinalam que geralmente o principal provedor é o chefe da família, seja ele homem, seja mulher. O segundo membro da família a participar mais intensamente do mercado de trabalho é o cônjuge, seguido pelos filhos adultos ou adolescentes. A chefia feminina tende a ampliar as dificuldades de subsistência; principalmente quando os filhos são menores, porque além de receberem salários médios mais baixos as mulheres têm que conjugar o trabalho remunerado com as atividades domésticas e o cuidado das crianças. Nesse último aspecto, a colaboração mais ampla da família extensa tende a ser crucial. BILAC, E.D. A família e a fragmentação do social. Natureza, História e Cultura. Repensando o Social. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, SBS, 1993. p.93-98. [Edição especial de Cadernos de Sociologia, publicação do Programa de Pós-Graduação em Sociologia/IFFCH/UFRGS]. _______ . Famílias de trabalhadores: estratégias de sobrevivência. São Paulo: Símbolo, 1978. 157 p. 4. Salvo quando se adota o ponto de vista de Mitchell (1912) e Reid (1934), desenvolvido por economistas neoclássicos nos anos 60. Gary Becker (1965) e Kelvin Lancaster (1966), entre outros, interpretam a família como uma “microempresa”, que compra bens e outros insumos no mercado, combina-os com seu próprio tempo de trabalho, segundo uma “função de produção doméstica”, para produzir “bens” destinados ao autoconsumo. Trata-se de um enfoque interessante, sobretudo numa economia em que crescem o self-service e o do-it-yourself, mas que está limitado à órbita do que os marxistas denominam “valoresde-uso”. BRASIL. Ministério da Previdência e Assistência Social. Brasil em família . Brasília, 2001a. _______ . Ministério da Previdência e Assistência Social. Projeto Agente jovem de desenvolvimento social e humano. Guia de gestores. Brasília, 2001b. BURKE, P. História e teoria social. São Paulo: Unesp, 2000. CARVALHO, I.M.M. de. Brasil: reestruturação produtiva e condições sociais. Caderno CRH, Salvador, Edufba, n.35, 2001. p.123-149. 5. O crescimento das famílias unipessoais está principalmente associado a mudanças na pirâmide etária e ao envelhecimento da população, pois a maior parte dessas unidades é composta por pessoas idosas. Vale ressaltar, também, que o tamanho médio da família apresenta algumas diferenças entre as diversas regiões, sendo maior no Norte (3,9) e Nordeste (3,7) e menor no Sul e Sudeste (3,3), sobretudo em decorrência de variações no número médio de filhos. CARVALHO, I.M.M. de; ALMEIDA, P.H. de; AZEVEDO, J.S.G. de. Dinâmica metropolitana e estrutura social em Salvador. Tempo Social: revista de Sociologia da USP, São Paulo, 11(2), 183-197, fev. 2002. CARVALHO, M.C.B. de. A priorização da família na agenda da política social. In: KALOUSTIAN, S.N. (Org.). Família brasileira, a base de tudo. São Paulo: Cortez; Brasília: Unicef, 1994. p.93-108. 6. O conceito oficial de desemprego aberto (medido pela Pesquisa Mensal de Emprego, pelo IBGE) considera como desempregado apenas aquele que além de ter buscado emprego ativamente no período de referência, não executou qualquer atividade laboral. Aquele que não procurou emprego nesse período, é classificado como inativo, e quem trabalhou por algumas horas como ocupado. Isto leva a uma expressiva subestimação do fenômeno, uma vez que esse conceito não considera quem se encontra à procura de trabalho mas realizou alguma atividade esporádica, premido pela necessidade de subsistência (na ausência de um seguro-desemprego), assim como os que poderiam ser classificados como desempregados por desalento; ou seja, pessoas que desistiram de uma procura ativa de emprego, desanimadas por não conseguirem encontrá-lo, mas que desejam trabalhar. Já a metodologia do Dieese (PED) procura captar esses problemas, medindo tanto o desemprego aberto como aquele oculto pelo trabalho precário ou pelo desalento, para chegar à taxa de desemprego total. Ademais, as metodologias da PED e da PME operam com conceitos distintos da População em Idade Ativa (PIA). A primeira incorpora jovens entre COHN, A. As políticas sociais no Governo FHC. Tempo Social: revista de Sociologia da USP, São Paulo, v.11, n.2, p.183-197, 2000. DÉCORET, B. Familles. Paris: Economia, 1998. 112 p. DEDECCA, C.S. Anos 90. A estabilidade com desigualdade. In: XXV Encontro Anual da Anpocs, 2001, Caxambu, 20 p. DIEESE. A situação do trabalho no Brasil. São Paulo, 2001. 352 p. DOSSIÊ J.B. Publicidade. Bolsa Escola. Aposta no futuro. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, p.42, 11 jul. 2002. DRAIBE, S.M. Por um reforço de proteção à família: contribuição à reforma dos programas de assistência social no Brasil. In: KALOUSTIAN, S.N. (Org.). Família brasileira, a base de tudo. 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P AULO HENRIQUE DE ALMEIDA: Professor do Mestrado em Economia da Universidade Federal da Bahia. 122 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2): 123-135, 2003 R ELAÇÃO F AMÍLIA-T RABALHO: REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E DESEMPREGO RELAÇÃO FAMÍLIA-TRABALHO reestruturação produtiva e desemprego LILIA MONTALI Resumo: A análise trata de maneira articulada as transformações da família e do mercado de trabalho sob o processo recente de reestruturação das atividades econômicas da Região Metropolitana de São Paulo. No contexto de pequena expansão das oportunidades de trabalho observada nos anos 90 e de crescente desemprego dos principais mantenedores da família, novos arranjos familiares de inserção no mercado de trabalho passaram a ser articulados. Palavras-chave: família e trabalho; reestruturação produtiva; desemprego. Abstract: This essay provides a detailed analysis of the transformation in the family and the labor market as a result of the recent restructuring of economic activities in the Metropolitan Region of São Paulo. New familial configurations emerged as the result of limited expansion of employment opportunities during the 1990’s and the growing unemployment rates of heads of household. Key words: family and work; productive restructuring; unemployment. N este artigo sobre as mudanças na relação família-trabalho, são tratadas conjuntamente as influências recíprocas da estruturação das atividades produtivas e da estruturação das famílias. Considerando a articulação entre produção e reprodução através da divisão sexual do trabalho e a mútua influência entre essas duas esferas, este estudo busca conhecer de que maneiras as transformações nas formas de produção e gestão, que afetam as oportunidades diferenciadas de emprego de homens e de mulheres no mercado de trabalho, nos anos 90, manifestam-se na unidade familiar. Indaga-se também sobre as alterações da relação família-trabalho relativas às atuais transformações das atividades econômicas e as possíveis conseqüências destas na mudança das relações hierárquicas na família. Os resultados dessa pesquisa vêm mostrando que ocorreram, na década de 90, mudanças no padrão de incorporação pelo mercado de trabalho e aumento do desemprego, que afetam diferentemente os componentes das famílias, identificados por sua posição no interior destas bem como por gênero e idade. Essas mudanças expressam-se em alterações nos arranjos familiares de inserção no mercado de trabalho, com especificidades observadas nos diferentes momentos do ciclo de vida da família. Os rearranjos de inserção refletem-se, como se verá, inclusive na modificação do peso da contribuição de cada membro do grupo doméstico na composição da renda familiar. Ainda que este trabalho detenha-se mais especificamente sobre as novas tendências encontradas na relação família-trabalho nos anos 90, os resultados e reflexões aqui apresentados incorporam conhecimento acumulado de três estudos de caso para períodos específicos: - 1981-83, momento de crise econômica do início dos anos 80; - 1990-94, intensificação da reestruturação produtiva na Região Metropolitana de São Paulo, sendo que os dois primeiros anos (1990 e 1991) foram de crise econômica e os últimos de início da recuperação sem recuperação do emprego; - 1997-99, momento em que, sob a reestruturação produtiva, ocorreu nova crise econômica, resultando no recrudescimento do desemprego.1 O primeiro período em que se analisou a relação família-trabalho e sua transformação (1981-83) tem como marcas a crise econômica e o momento de acentuação da 123 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 entrada da mulher no mercado de trabalho, iniciada na metade da década anterior.2 Foram analisadas a inserção diferenciada dos componentes das famílias no mercado de trabalho e sua mobilização no momento da crise econômica. Procurou-se, através da inserção e da mobilização destes, identificar rearranjos inovadores na relação família-trabalho dominante, indicativos de mudanças na divisão sexual do trabalho na família. Nessa mesma pesquisa, analisou-se outra conjuntura recessiva mais recente (1990-91), com base nos dados da PED (Pesquisa de Emprego e Desemprego), realizada pela Fundação Seade, encontrando-se semelhanças na mobilização dos componentes da família na crise. Entre as semelhanças de mobilização familiar encontradas na comparação entre as crises do início dos anos 80 e do começo da década de 90, a maior inserção da mulher no mercado de trabalho – tanto cônjuges como filhas –, que ocorreu no mesmo momento em que, sob as restrições colocadas por este, cresce o desemprego masculino.3 Esta e outras tendências que se acentuam no período são interpretadas como indicativas de rupturas na possibilidade concreta de realização do padrão de família mantido pelo chefe provedor, especialmente nas conjunturas recessivas. Os resultados de pesquisa ofereceram sustentação para indicar que o processo de mudança na relação família-trabalho põe em questão a figura do provedor, culturalmente atribuída ao chefe da família, expressando possíveis transformações nas relações internas de hierarquia e de poder. Dessa maneira, a pesquisa sobre o início dos anos 80 detectou processos e suscitou indagações, dando origem aos estudos subseqüentes sobre os anos 90. No segundo período, 1990-94, as mudanças na relação família-trabalho foram analisadas sob a reestruturação produtiva. 4 Em 1990, intensificou-se o processo de inovações produtivas e organizacionais na Região Metropolitana de São Paulo, pioneira nesse processo no Brasil; em 1994, a reestruturação continuou operando e já se tornavam evidentes seus efeitos na deterioração das relações de trabalho e no desemprego. Esse período estudado é relevante por possibilitar apreender aspectos das estratégias de vinculação das famílias ao mercado de trabalho sob o impacto do início da intensificação da reestruturação produtiva. Buscava-se identificar nesse estudo quais indicações de mudança percebidas no estudo dos anos 80 eram temporárias e quais eram mais duradouras, além dos momentos de conjuntura de crise. Tinha-se por hipótese que, devido ao fato de os anos 80 e o início dos 90 terem sido marcados primordialmente pela conjuntura recessiva (embora com alguns momentos de expansão), as mudanças na relação família e trabalho anteriormente identificadas seriam aceleradas e consolidadas, favorecendo as transformações nas relações internas das famílias. Quando considerados os anos de 1981 e 1990, verifica-se que os arranjos familiares de inserção no mercado de trabalho eram semelhantes. No entanto, a comparação entre 1990 e 1994 evidencia, para este último ano, rearranjos de inserção com especificidades nos diferentes tipos de família,5 o que, certamente, já expressava os efeitos da reestruturação produtiva e dos novos padrões de absorção da força de trabalho sobre a família e a relação família-trabalho (Montali, 2000b). A última pesquisa6 trata do mesmo tema, analisando tais processos no período 1997-99, quando recrudesceu o desemprego. A partir de 1998, acrescenta-se ao elevado desemprego a queda da renda dos ocupados e da renda familiar per capita. Se nos anos em que já se faziam sentir de maneira inequívoca os efeitos da reestruturação organizacional e produtiva foram identificados arranjos de inserção no mercado de trabalho, nesta última pesquisa evidenciaram-se mudanças que configuram rearranjos. Assim, a partir de 1994, diferenciando-se dos arranjos anteriormente encontrados em 1981 e em 1990, os rearranjos refletem o deslocamento da responsabilidade pela manutenção da família dos principais mantenedores identificados para cada tipo de família nas pesquisas anteriores (Montali, 1995, 1998) para outros componentes da família, especialmente para a mulher-cônjuge, bem como maior partilhamento dessa responsabilidade. Essa nova tendência delineia-se em face da redução dos postos de trabalho, principalmente para ocupações predominantemente masculinas, resultando em crescente desemprego dos até então principais mantenedores das famílias (chefes e filhos masculinos e filhas maiores que 18 anos), e diante das maiores dificuldades de absorção encontradas pelos jovens a partir de 1992. Embora com especificidades nos diversos tipos de família, foi possível identificar duas tendências gerais. A primeira, no caso de famílias estruturadas em torno do casal, expressa-se na crescente participação da mulher-cônjuge entre os ocupados da família, na redução do peso do chefe masculino entre estes e na diminuição da participação dos filhos. Uma exceção entre as famílias conjugais é encontrada para aquelas na etapa da “velhice”, considerando-se o ciclo de vida familiar – ou seja, de casais com mais de 50 anos –, com a presença de filhos residentes, em que, comparati- 124 R ELAÇÃO F AMÍLIA-T RABALHO: vamente ao verificado em 1981-83 e 1990, cresceu a participação do chefe masculino entre os ocupados da família de forma concomitante à redução da participação dos filhos adultos, afetados pelo desemprego. A segunda tendência observada refere-se às famílias com chefia feminina sem cônjuge, nas quais a participação da chefe entre os ocupados da família aumenta em decorrência da menor absorção dos filhos e parentes jovens pelo mercado de trabalho. Observa-se, até o final da década de 90, a continuidade progressiva desse padrão de rearranjos familiares de inserção no mercado de trabalho e de mudanças na relação família-trabalho. Um dos resultados mais relevantes dessas pesquisas, para o estudo da relação família-trabalho, refere-se ao conhecimento sobre os efeitos dos novos padrões de incorporação da força de trabalho pelo mercado, que incidem sob a reestruturação produtiva, modificando as possibilidades de emprego de determinados componentes, identificados por sua posição na família e atribuições específicas, e os novos arranjos de inserção no mercado de trabalho, que passam a ser articulados nos diferentes tipos de família diante de tais restrições e oportunidades. Deve-se acrescentar que os resultados apontados neste artigo para determinados períodos se confirmam como tendência para a década, segundo de todo o período de 1985 a 2000, recentemente realizada, utilizando a base de dados da Pesquisa de Emprego e Desemprego, da Fundação Seade (Montali, 2002). Estas análises identificam as tendências na década de 90 para a Região Metropolitana de São Paulo e são, muito possivelmente, aplicáveis também a outras metrópoles brasileiras, desde que adequadamente contextualizadas. REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E DESEMPREGO pela redução dos empregos regulamentados e pela elevação do patamar das taxas de desemprego.8 As atividades do terciário diversificam-se e este consolida-se, concentrando na região atividades altamente sofisticadas. Diversos processos estão envolvidos na expansão do terciário. Por um lado, a centralidade que a região passa a ter a partir da década de 80, acentuando-se na de 90 ao concentrar atividades de gestão e do terciário superior, gera empregos de qualidade.9 Também novas possibilidades de ocupações no terciário foram geradas pela consolidação, nos anos 90, da inclusão da Região Metropolitana de São Paulo na rede de cidades mundiais, através da qual se articulam as relações com o mercado internacionalizado.1 0 Por outro lado, a reestruturação produtiva, ao subcontratar atividades desenvolvidas em áreas de apoio e naquelas produtivas, acarreta a criação de setores informais modernos. Com a terceirização e a subcontratação da produção e dos serviços, a informalização passa a crescer rapidamente e, através da expansão dos pequenos negócios se estabelece uma rede de produtores e de prestadores de serviços organizada sob relações de trabalho fortemente precárias (Dedecca; Baltar, 1997). Os dados da Pesquisa de Emprego e Desemprego, da Fundação Seade, evidenciam, a partir de 1989 – ano tomado como referência para a análise dos efeitos da reestruturação da produção e das formas de gestão do trabalho na Região –, a progressiva redução da participação da indústria na composição do nível de emprego regional e o aumento da importância do emprego nos serviços. Os postos de trabalho do setor serviços, incluindo-se os do comércio e dos serviços, representavam 56% das ocupações em 1989 e cerca de 69% em 2000. O emprego industrial correspondia, em 1989, a 33% da força de trabalho ocupada, diminuindo para 19,6%, em 1999, e 19,9%, em 2000 (Fundação Seade, 2001). Uma das conseqüências dessa alteração na composição do emprego por setor, apontada por estudos sobre o mercado de trabalho, é a piora na qualidade do emprego. O emprego industrial, predominantemente regulamentado, passou a ser substituído, na trajetória de muitos dos que perderam esses empregos, por ocupações autônomas ou temporárias caracterizadas por maior instabilidade (Fundação Seade, 1998a, b; Cardoso; Comin; Guimarães, 2001). Dessa maneira, a reestruturação produtiva e o baixo nível da atividade econômica elevaram as taxas de desemprego na região e promoveram a precarização das relações de trabalho. MUDANÇAS NO MERCADO DE TRABALHO: REFLEXOS SOBRE AS CONDIÇÕES DE VIDA E O EMPREGO As duas últimas décadas têm sido de profundas transformações nas atividades econômicas da Região Metropolitana de São Paulo, principal centro industrial do país, como resultado de processos relacionados entre si, tais como a desconcentração industrial, o desenvolvimento do terciário e a reestruturação produtiva.7 Resultam destas transformações a redução do emprego industrial, a expansão e a consolidação das atividades de serviços e a deterioração das condições de inserção no mercado de trabalho na Região Metropolitana, expressa 125 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 GRÁFICO 1 O desemprego, nos anos 90, assumiu características específicas, atingindo patamares mais elevados que na segunda metade da década anterior (Montali, 2000b; Brandão; Montagner, 1996). A partir de 1990, quando começaram a ser eliminados postos de trabalho na RMSP como conseqüência da reorganização das formas de produção e gestão e da abertura da economia ao comércio internacional, a taxa de desemprego superava os 10% da PEA, recrudescendo, em 1992, quando ultrapassou os 15%. Entre 1992 e 1997, as taxas de desemprego total registradas pela Pesquisa de Emprego e Desemprego, da Fundação Seade, oscilaram ao redor de 16% da população economicamente ativa11 e, com exceção de 1995, são bastante próximas daquelas verificadas durante a crise do início da década de 80, ou seja, de 16,0% em 1981 e de 16,5% em 1983 (Dieese, 1984).1 2 Outro patamar mais elevado de desemprego se estabeleceu a partir de maio de 1997, na Região Metropolitana de São Paulo. Em 1998, a média anual chegou a 18,2% e, em 1999, alcançou 19,3%, “superando mais uma vez todos os patamares anuais registrados na PED” (Fundação Seade, 2000). A deterioração das condições de inserção no mercado de trabalho, na década de 90, incluindo o aumento do desemprego e dos postos de trabalho precários, provocou a queda dos rendimentos do trabalho para os ocupados, com maior intensidade nos últimos anos, quando novamente ocorreu redução da atividade econômica em âmbito nacional. Entre 1995 e 2000, o rendimento real médio dos ocupados reduziu-se em 14,3% (Fundação Seade, 2000). Quando considerado o período 1989-2000, a queda correspondeu a cerca de 20%, porque, mesmo com a recuperação do rendimento dos ocupados entre 1994 e 1996, não foram atingidos os níveis vigentes em 1989 na Região Metropolitana. As conseqüências das alterações nas possibilidades de inserção no mercado de trabalho e da queda dos rendimentos provenientes do trabalho são evidentes sobre o rendimento familiar médio e per capita. Foi possível identificar três movimentos na evolução do rendimento familiar per capita a partir de 1989: caiu acentuadamente entre 1989 e 1992, correspondendo à recessão do início da década; elevou-se entre 1993 e 1995 como efeito da recuperação do crescimento de economia; e após 1994, também aumentou como resultado do plano de estabilização. Em 1996 e 1997, o rendimento estabilizou-se; voltando a cair a partir de 1998, com continuidade em 1999. Desse movimento, resultou perda de poder aquisitivo para as Rendimento Familiar per Capita Médio (1) Região Metropolitana de São Paulo – 1986-2000 Fonte: Fundação Seade – Dieese – Pesquisa de Emprego e Desemprego. Elaboração: Montali (2002:8). (1) Em reais de dezembro de 2000 – ICV-Dieese. famílias metropolitanas, pois, entre 1989 e 2000, o rendimento familiar per capita médio retraiu-se em 18% (Montali, 2002). Na década de 90, a contribuição para renda familiar oriunda do trabalho das mulheres-cônjuges possibilitou menor deterioração dos rendimentos familiares (Troncoso, 2000). Mesmo que o desemprego seja elevado e crescente para todos os componentes da família, entre 1992 e 1997 a mulher-cônjuge foi o único membro entre os ocupados da família a apresentar tendência ascendente no valor real do rendimento do trabalho; a partir desse ano passou a sofrer perdas. A análise dos dados gerados pela PED (Fundação Seade, 2000) evidencia que, em 1998 e 1999, todos os componentes ocupados da família tiveram reduções no rendimento real. A comparação dos dados de 1999 com aqueles referentes a 1989, mostra que, enquanto a queda no rendimento do total dos ocupados foi de 17,9%, para as cônjuges ocupadas essa redução foi menos acentuada (4,2%), bem como menor que observada para os demais componentes ocupados da família. A retração, no mesmo período, da renda dos chefes de família ocupados foi de 22,7% e a dos filhos correspondeu a 22,1% (Montali, 2000b). Outro aspecto a ressalvar no período entre 1989 e 1999, relativo às condições de vida na Região Metropolitana de São Paulo, é que, apesar do plano de estabilização a partir de 1994, não houve significativa redução na desigualdade 126 R ELAÇÃO F AMÍLIA-T RABALHO: da distribuição da renda do trabalho. Do total da massa de rendimentos do trabalho gerada em 1999, os 10% dos ocupados mais pobres apropriaram-se de apenas 1,1%, os 50% mais pobres ficaram com 16,3%, enquanto os 10% mais ricos apropriaram-se de 42,3% (Fundação Seade, 2000). Essa situação é muito semelhante à observada em 1989, embora tenha havido alguma elevação da proporção apropriada pelos mais pobres. Naquele ano, os 10% dos ocupados mais pobres alcançaram 0,4% da massa de rendimentos e os 50% mais pobres ficaram com 14,6%, enquanto a parcela apropriada pelos 10% mais ricos era de 41,4%, um pouco menor que a registrada em 1999, significando que, no período, houve certa ampliação na participação destes no total dos rendimentos do trabalho. REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E DESEMPREGO Apesar de importantes mudanças na inserção das mulheres no mercado de trabalho, principalmente na segunda metade dos anos 90, tais como a entrada em novos postos de trabalho antes tipicamente masculinos e a maior participação entre os profissionais de nível superior, em profissões de maior prestígio com predomínio masculino (Bruschini; Lombardi, 2000), grande parte das mulheres concentra-se em ocupações tradicionalmente femininas. No decorrer dos anos 90, persiste a “sexualização” das ocupações, ou seja, são mantidos funções e setores de atividade que concentram diferencialmente homens e mulheres (Bruschini, 1994) e que expressam a divisão sexual do trabalho, que opera tanto na família como no mercado de trabalho. Este fato favoreceu o emprego feminino. Por um lado, no processo de reorganização produtiva e organizacional, os postos de trabalho ocupados por mulheres foram menos afetados do que os ocupados pelos homens. Isto porque, em primeiro lugar, o setor da atividade econômica que mais sofreu retração de empregos na região, nos anos 90, foi o industrial e, especialmente, o ramo metal-mecânico, que empregava predominantemente homens, e, em segundo lugar, porque, por ocuparem poucos cargos de chefia, as mulheres foram menos atingidas pela redução das hierarquias das empresas e também pela inovação de processos, com a introdução de novos equipamentos, um vez que muito poucas operavam máquinas. Em ambos os casos, trabalhadores do sexo masculino foram afetados por eliminação de postos ou por substituição (Matesco, 1995; Lavinas; Matesco, 1996). Por outro lado, a divisão sexual do trabalho, que atua conjuntamente no mercado de trabalho e nas relações familiares definindo os lugares de homens e de mulheres (Barrère-Maurisson, 1992) , favorece que sejam mais frágeis as formas de vinculação das mulheres ao mercado. Historicamente, é menor a proporção das mulheres entre os assalariados e, na década de 90, foi crescente sua vinculação ao mercado de trabalho através do trabalho autônomo, do assalariamento sem registro em carteira de trabalho e em serviços domésticos (Montali, 2000b; Montali; Lopes, 2002). Não se pode deixar de registrar que também os trabalhadores do sexo masculino sofreram o processo de fragilização das formas de vinculação ao mercado de trabalho nos anos 90, com a perda de postos de trabalho regulamentados. Como mencionado anteriormente, o setor de serviços vem se expandindo nas duas últimas décadas na região metropolitana e é o setor de atividade que concentra a Mudanças no Emprego por Gênero O processo de reestruturação produtiva na Região Metropolitana de São Paulo, nos anos 90, vem restringindo mais fortemente os postos de trabalho masculinos. As tendências observadas na primeira metade da década são de acentuada queda nas taxas de ocupação masculina, que se mantêm mais elevadas que as femininas, e de manutenção das taxas de ocupação femininas oscilando num mesmo patamar (Brandão; Montagner, 1996). Observa-se, na segunda metade da década, continuidade da tendência de queda mais acentuada nas taxas de ocupação masculina e, a partir de 1997, para ambos os sexos, evidenciando a redução das possibilidades de absorção pelo mercado de trabalho. Também é distinto o comportamento das taxas de participação para homens e mulheres. Enquanto a taxa de participação feminina cresce progressivamente, a dos homens, mais elevada, apresenta tendência de queda. Em decorrência desse comportamento, a expansão da taxa de participação regional na década – que passou de 60,2% em 1990 para 61,6% em 1998 e 62,2% em 1999 – é atribuída à participação feminina (Fundação Seade, 2000). Os estudos sobre mercado de trabalho e gênero vêm constatando, em outros países da América Latina e da Europa, durante os anos 90, tendência semelhante de crescimento da taxa de participação feminina concomitante à queda daquela referente aos homens (Posthuma ; Lombardi, 1997; Hirata; Humphrey, 1994; Abramo, 2000; González de la Rocha, 1997). Os efeitos diferenciados da reorganização das atividades econômicas sobre o emprego masculino e feminino, na RMSP, podem ser mais bem explicitados através dos conceitos da divisão sexual do trabalho e das relações de gênero. 127 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 maior parcela da força de trabalho feminina, embora venha ampliando oportunidades de absorção também para os homens. Mesmo considerando-se a diversidade do setor terciário, neste são maiores as possibilidades de vinculações precárias ao mercado de trabalho, reduzindo, principalmente para as mulheres, as chances de inserção em empregos de qualidade num período de crescimento de sua participação no mercado de trabalho. As tendências de absorção pelo mercado de trabalho aqui sintetizadas expressam as profundas modificações nas formas de inserção no mercado na Região Metropolitana de São Paulo e refletem-se nos arranjos familiares para garantir a sobrevivência. A crescente participação das mulheres no mercado de trabalho é um fato importante nas mudanças observadas nos arranjos familiares de inserção articulados pelas famílias nos anos 90. Alterações nos valores em relação ao papel da mulher na sociedade e na estruturação dos núcleos domésticos têm aumentado a disponibilidade desta, em todas as idades e posições na família, para o trabalho remunerado. Embora as mudanças nas características da composição familiar integrem esse processo com acentuação, no período, de algumas tendências na sua estruturação, da continuidade da redução no seu tamanho e da mais significativa redução na proporção de filhos menores de dez anos, considera-se que foi a mudança ocorrida no padrão de absorção da força de trabalho vigente na década de 90, em relação ao início dos anos de 80, que afetou mais profundamente os arranjos de inserção dos componentes da família no mercado de trabalho. Como mencionado nos itens anteriores, os arranjos de inserção no mercado de trabalho articulados pelos componentes das famílias nos anos em que já se faziam sentir os efeitos da reestruturação organizacional e produtiva evidenciam mudanças que configuram rearranjos. Essa conclusão está fundamentada na alteração verificada entre os componentes ocupados na família, sem que houvesse alteração no número médio de ocupados segundo tipo de família, entre 1990 e 1994, e, pelo contrário, diminuindo entre esse período e o final da década. Diferenciando-se dos anteriormente encontrados, os novos arranjos refletem maior partilhamento da responsabilidade da manutenção da família entre seus componentes, com o deslocamento de parte dessa responsabilidade dos principais mantenedores, identificados para cada tipo de família nas pesquisas dos períodos 19811983 e 1990 (Montali, 1995) para outros membros da família. Os arranjos familiares de inserção no mercado de trabalho observados nas análises dos anos 90 evidenciam: semelhanças em relação àqueles encontrados no início da década de 80 e diferenciação quanto aos identificados em 1994 e no final da década (1997, 1998 e 1999). Com base em análises sobre os arranjos familiares, supõe-se que, além da redução da taxa de ocupação no período e da deterioração do emprego na Região Metropolitana de São Paulo, o empobrecimento para os diferentes tipos de família está relacionado aos rearranjos de inserção familiar que estão ocorrendo e às diferentes vantagens e restrições de inserção no mercado que cada componente encontra – condicionadas que são pelo gênero, idade e posição na família (Montali, 2000a) –, considerando-se que não existe “permutabilidade” entre estes para a inserção no mercado de trabalho (Hirata ; Humphrey, 1994). Como um exemplo desse fato, a mais elevada presença da mulher-cônjuge entre os ocupados da família em todos os tipos de família, especialmente a partir de 1994, não resulta em aumento equivalente de sua participação na composição da renda familiar, como pode-se observar nos Gráficos 2 e 3. Isso decorre da qualidade do trabalho dessa componente da família. A análise das formas predominantes de inserção das mulheres-cônjuges mostra que mais da metade delas encontra-se vinculada de formas precárias ao mercado de trabalho. Apenas cerca de 41% delas estão em situação de assalariamento regulamentado, a mais baixa proporção quando comparada aos demais componentes ocupados da família (Montali, 2000b). Mudanças na Relação Família-Trabalho As análises a partir da unidade familiar possibilitam conhecer as respostas das famílias e dos sujeitos com suas atribuições familiares às diferentes conjunturas que condicionam as possibilidades de emprego. Dessa maneira, foi possível identificar uma nova tendência na articulação dos arranjos familiares de inserção no mercado na década de 90, como decorrência da redução dos postos de trabalho, principalmente para ocupações predominantemente masculinas, o que resultou em crescente desemprego daqueles que eram os principais mantenedores das famílias, ou seja, os chefes masculinos e filhos, bem como filhas maiores de 18 anos. Deve-se acrescentar que, a partir de 1992, acentuaram-se as dificuldades de absorção dos jovens pelo mercado de trabalho na região metropolitana (Pochmann, 1998). 128 R ELAÇÃO F AMÍLIA-T RABALHO: A metodologia desenvolvida por este estudo, através da análise dos arranjos familiares de inserção no mercado de trabalho considerando-se o tipo de família, possibilita verificar, no grupo familiar, alguns dos efeitos das alterações das possibilidades de emprego oferecidas pelo mercado de trabalho e das novas características dos desempregados, como decorrência do baixo ritmo de expansão da economia e da mudança do padrão de incorporação da força de trabalho introduzido a partir da reestruturação produtiva e organizacional nos diversos setores de atividade. A análise das taxas familiares de participação, ocupação, desemprego e inatividade para o período 1990-94 evidencia que, apesar do aumento da disponibilidade de seus componentes para o mercado de trabalho, indicado pela crescente taxa de participação em todos os tipos de família, não ocorreu expansão da absorção desses contingentes pelo mercado de trabalho (expressa pelas taxas de ocupação estáveis), resultando em mais elevadas taxas de REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E DESEMPREGO desemprego em 1994. Como agravante dessa situação, entre 1997 e 1999 ocorreram aumento da taxa de participação e queda da taxa de ocupação para o total da PIA e para cada um dos tipos de família pesquisados, resultando em taxas de desemprego crescentes, em patamares antes não conhecidos na região metropolitana (Tabela 1). Os rearranjos de inserção dos componentes da família no mercado de trabalho diferenciam-se por tipos de família, mas o mais freqüente em praticamente todos os tipos é o caso do aumento da participação da mulher-cônjuge e da mulher-chefe entre os ocupados da família e, no caso da família com a presença de filhos na etapa final do ciclo de vida familiar, o aumento da participação do chefe e da cônjuge entre os ocupados, que se dá ao mesmo tempo em que cresce o desemprego dos filhos adultos. Os atuais arranjos e rearranjos de inserção dos componentes da família no mercado de trabalho são definidos articuladamente pela dinâmica da economia e das relações TABELA 1 Taxas Específicas de Participação, Ocupação, Desemprego e Inatividade, segundo Tipos de Família Região Metropolitana de São Paulo –1990-1999 Tipos de Família Participação (1) Ocupação (2) Desemprego (3) Em porcentagem Inatividade (4) 1990 Total (5) Casal sem Filhos Casal de até 34 Anos com Filhos e Parentes Casal de 35 a 49 Anos com Filhos e Parentes Casal de 50 Anos e Mais com Filhos e Parentes Chefe Feminino sem Cônjuge 58,0 51,9 59,6 55,4 58,0 61,8 52,0 47,3 54,1 49,9 52,0 53,6 10,3 8,8 9,2 10,0 10,3 13,3 41,3 47,5 40,0 43,7 41,8 37,4 1994 Total (5) Casal sem Filhos Casal de até 34 Anos com Filhos e Parentes Casal de 35 a 49 Anos com Filhos e Parentes Casal de 50 Anos e Mais com Filhos e Parentes Chefe Feminino sem Cônjuge 60,7 56,4 63,4 58,9 59,5 60,3 51,7 51,0 55,7 49,9 52,1 48,2 14,8 9,5 12,0 15,3 12,4 19,9 39,2 43,4 36,6 40,9 40,4 39,6 1999 Total (5) Casal sem Filhos Casal de até 34 Anos com Filhos e Parentes Casal de 35-49 Anos com Filhos e Parentes Casal de 50 Anos e Mais com Filhos e Parentes Chefe Feminino sem Cônjuge 62,5 62,6 66,2 60,6 59,7 60,2 49,8 54,2 53,2 47,8 47,8 46,0 19,3 13,5 19,6 21,1 20,0 23,6 37,4 37,1 33,7 39,3 40,3 39,6 Fonte: Fundação Seade. Pesquisa de Condições de Vida – PCV 1990 e 1994; Fundação Seade – Dieese. Pesquisa de Emprego e Desemprego – PED (trimestre maio/jun./jul. 1999). Elaboração: Montali (2000). (1) PEA/PIA. (2) Ocupados/PIA. (3) Desempregados/PEA. (4) Inativos/PIA. (5) Inclui outras configurações familiares. Nota: A PIA inclui os não informados da condição de ocupação. 129 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 familiares e de gênero, assumindo especificidades nos diferentes tipos de família, afetados pela composição predominante da etapa do ciclo de vida familiar. Assim, no arranjo de inserção predominante na família do tipo “casal sem filhos”,13 o chefe é o principal responsável pela manutenção da família. Ele representa mais da metade dos componentes ocupados e contribui com a maior parcela da renda familiar. Houve, entretanto, uma mudança no padrão observado para a década de 80, quando comparados os anos 1990 e 1994, que persiste no final da década: a proporção de chefes entre os ocupados da família diminuiu de 63,8%, em 1990, para 56,4%, em 1994 (Montali, 1998), mantendo-se em torno de 57%, nos anos finais da década (Gráfico 2). A mulher-cônjuge apresentou, entre 1990 e 1994, significativo crescimento entre os ocupados, quando passou de 32,7% para 36,5% destes, continuando nesse patamar no período 1997-99. Embora tenha ocorrido aumento da taxa de desemprego familiar, houve, nos anos analisados da década, progressiva mobilização dos componentes desse tipo da família na busca por inserção no mercado de trabalho, como evidencia o conjunto de taxas da Tabela 1. Ocorreram aumento nas taxas familiares de participação, de ocupação e de desemprego e progressiva redução da inatividade. Entre 1990 e 1994, houve expansão do desemprego do chefe e redução em suas taxas de participação e de ocupação. Em movimento contrário, apresentaram crescimento as taxas de participação e de ocupação das cônjuges e parentes. Oscilação nesse arranjo, que envolve basicamente o casal, foi verificada quando diminuiu a taxa de ocupação da cônjuge de 45%, em 1996, para 42%, em 1998, retornando ao patamar de 45% em 1999, com reflexos na presença desse componente entre os ocupados da família, bem como em sua contribuição para a composição da renda familiar (Gráficos 2 e 3). A participação do chefe masculino, como mencionado anteriormente, compõe a maior parte da renda familiar nesse tipo de família: cerca de 72%, a partir de 1994. Houve, entre 1990 e 1994, redução no peso de sua contribuição (de 77,5% para 73%) e crescimento da participação da cônjuge (19,8% para 22%) e dos parentes (2,7% para 5%). A contribuição da cônjuge para a renda familiar muda de patamar no decorrer dos anos 90: 19,8% em 1990, 21,8%, em 1994, mantendo o crescimento até o final da década, quando atingiu 28,8% (Gráfico 3). Dessa maneira, o arranjo desse tipo de família na década é centrado no casal, com maior participação do homem. A comparação com o arranjo que predominava em 1981, nesse tipo de família, mostra que ocorre uma alteração na definição dos responsáveis pela manutenção das famílias. A redução relativa da participação do homem entre os ocupados da família e o crescimento daquela re ferente à mulher-cônjuge sugerem uma tendência de maior partilhamento na responsabilidade pela manutenção da família. Nas famílias de “casais de até 34 anos com filhos” é encontrada situação semelhante de mobilização dos componentes da família nesse período, em que se observa elevação da taxa de ocupação, além da taxa de participação, entre 1990 e 1994, estabilizando-se nos dois últimos anos da década (Tabela 1). Como no tipo anterior, houve pequeno acréscimo no número médio de ocupados da família e no número de pessoas com algum tipo de rendimento entre 1990 e 1994 (Montali, 1998), bem como pequena redução em ambos indicadores nos últimos anos do final da década (Montali, 2000b). Ocorreram, nesse tipo de família, aumento do desemprego do chefe e redução na sua taxa de ocupação, sem que se tenha diminuído sua participação na força de trabalho. Diante da constante redução da taxa de ocupação do chefe, acentuada nos últimos anos da década, e do concomitante aumento da inserção da cônjuge em atividade de geração de renda, tem sido também crescente a participação desta na renda familiar. Ainda que a mulher-cônjuge representasse quase 30% dos ocupados da família em 1998 e 1999, sua contribuição para a renda familiar era cerca de 21% nesses anos, registrando crescimento, uma vez que representava 14,6% em 1990, 18,9% em 1994 e 19,5% em 1997. A contribuição dos parentes se mantém em todos os momentos inferior a 3%. Nessa nova composição, a participação da renda do chefe decresceu de 81,9% para 78% da renda familiar, entre 1990 e 1994, e reduziuse progressivamente, ficando em cerca de 76% nos três últimos anos (Gráficos 2 e 3). O tipo de família “casal de até 34 anos com filhos” está relacionado ao momento de “constituição” do ciclo vital da família, etapa do nascimento da maior parte dos filhos. O arranjo de inserção no mercado observado decorre, em grande parte, da composição familiar típica dessa etapa do ciclo de vida da família e das atribuições sociais de seus componentes, pois praticamente só o casal está em idade para participar do mercado de trabalho, assim como à mulher cabe a atribuição social dominante do cuidado dos filhos. Nesse tipo de família ocorreram tanto a redução na proporção do homem do casal entre os ocupados da família 130 R ELAÇÃO F AMÍLIA-T RABALHO: REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E DESEMPREGO GRÁFICO 2 Distribuição dos Ocupados, por Posição na Família, segundo Tipologia de Família Região Metropolitana de São Paulo – 1990-1999 Fonte: Fundação Seade. Pesquisa de Condições de Vida – PCV 1990 e 1994; Fundação Seade – Dieese. Pesquisa de Emprego e Desemprego – PED 1997, 1998 e 1999 (trim. maio/jun./jul.). Elaboração: Montali (2000). (1) Inclui outras configurações familiares. GRÁFICO 3 Distribuição da Renda Familiar (1), por Posição na Família, segundo Tipologia de Família Região Metropolitana de São Paulo – 1990-1999 Fonte: Fundação Seade. Pesquisa de Condições de Vida – PCV 1990 e 1994; Fundação Seade – Dieese. Pesquisa de Emprego e Desemprego – PED 1997, 1998 e 1999 (trim. maio/jun./jul.). Elaboração: Montali (2000). (1) Renda proveniente do trabalho. Participação na massa do rendimento familiar. (2) Inclui outras configurações familiares. 131 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 como o progressivo crescimento da participação da mulher-cônjuge entre estes (Gráfico 2). Apesar desse movimento que atenua o encargo masculino da manutenção da casa, este permanece ainda bastante concentrado no componente masculino do casal, sendo o mais elevado entre os tipos de família. Entretanto, ao se comparar os padrões vigentes entre 1981 e 1994 e no ano de 1999, a tendência é de mudança na direção de um maior partilhamento na manutenção da família. O arranjo predominante apresentado por este tipo de família, em 1981, mostra o homem do casal como o responsável pela manutenção da família, quando representava 73% dos ocupados da família e a mulher respondia por 18,7%, configurando, ao menos nesse aspecto, o modelo de família do chefe provedor. Desde 1990, define-se uma tendência de maior participação da mulher entre os ocupados da família, quando representar 24,2% deles e o homem, 66,3%. Em 1994, o homem responde por 64,3% dos ocupados da família e a mulher-cônjuge por 27,8% e, em 1999, 63% e 30%, respectivamente (Gráfico 2). Ainda que a contribuição para a renda familiar permaneça como atribuição do homem, a participação da mulher-cônjuge aumentou, passando de 15%, em 1990, para 20,5%, em 1999, enquanto a do homem diminuiu de 82% para 76,4% (Gráfico 3). O tipo de família “casal de 35 a 49 anos com filhos” corresponde ao momento de “maturação”, quando convivem no domicílio filhos de diferentes idades. Neste caso, o arranjo familiar de inserção é caracterizado pelo esforço coletivo dos componentes da família. O rearranjo de inserção no mercado de trabalho das famílias de casais entre 35 e 49 anos com filhos se dá com o aumento do desemprego, a redução nas taxas de ocupação do chefe e dos filhos e o crescimento na taxa de ocupação da cônjuge. Dessa maneira, a partir de 1994 diminuiu a participação dos dois primeiros entre os ocupados e aumentou a da cônjuge. Movimento semelhante se observa na contribuição de cada um desses componentes para a renda familiar (Montali, 1998, 2000b). No final da década de 90, manteve-se esse padrão de arranjo familiar de inserção, diferenciando-se por apresentar crescente presença da mulher-cônjuge entre os ocupados e redução da proporção de filhos entre estes. Nas famílias desse tipo, a participação da cônjuge na composição da renda familiar aumentou de 14,3% para 17,4%, entre 1990 e 1994, crescendo progressivamente, ainda que de maneira tênue, até o final da década, quando passou a representar 19,3%, em 1997, e 21,8%, em 1999 (Gráfico 3). A contribuição dos filhos maiores de 18 anos decres- ceu de 15,5%, em 1990, para cerca de 11%, no final da década. A participação do chefe na renda familiar, que era de 68% desde 1990, reduziu-se para 65%, em 1999 (Gráfico 3). O arranjo de inserção dos componentes do tipo de família “casal de 50 anos e mais com filhos”, na etapa de envelhecimento da família, é caracterizado pela maior presença dos filhos entre os ocupados, representando mais da metade destes do grupo doméstico. Entre 1990 e 1994, houve queda nessa participação, passando de 62,7% dos ocupados da família para 58,5%, em decorrência da queda das taxas de participação para ambos os sexos e da acentuação das taxas de desemprego. Para enfrentar a situação de desemprego e a precarização do trabalho dos filhos adultos residentes, ocorreu o retorno para o mercado de trabalho de parcelas tanto do homem do casal central como da mulher-cônjuge. Esse movimento fica evidenciado pela expansão das taxas de participação do chefe com mais de 50 anos e das mulheres-cônjuge, bem como pela expansão das taxas de ocupação de ambos o que indica relativo sucesso na obtenção de ocupação, restando saber sobre a qualidade desta (Montali, 1998a). Assim, entre 1990 e 1994, alteraram-se os pesos entre os componentes da família nesse arranjo familiar de inserção no mercado, diluindo tendencialmente o papel dos filhos como os principais mantenedores da família. No período 1997-99, com pequenas oscilações, manteve-se o arranjo de inserção familiar definido em 1994 (Gráfico 2). Os filhos representavam 63,9% dos ocupados em 1981, 62,7% em 1990, 58,5% em 1994 e cerca de 59% no final da década. Em movimento inverso, cresceu a participação do chefe e da cônjuge idosos. Os primeiros correspondiam a 23,1% dos ocupados em 1981, 24,6% em 1990 e 27,4% em 1994, representando, nos dois últimos anos da década, cerca de 27%. Acentuou-se a participação da cônjuge idosa entre os ocupados da família: eram 7,6% em 1981, 9,4% em 1990 e 11,4% em 1994, passando para 12,9% em 1997, 11,6% em 1998 e 13% em 1999. Como conseqüência desse rearranjo de inserção no mercado de trabalho, os casais mais velhos (50 anos e mais) aumentaram sua participação também na renda familiar, entre 1990 e 1994. A contribuição do chefe, que era de 42% em 1990, passou para 52% em 1994, com participação um pouco menor (cerca de 50%) no final da década (Gráfico 3). A contribuição da cônjuge praticamente se manteve estável nos dois primeiros anos da década, ficando pouco acima 7%; a partir de 1997, aumentou progressivamente, alcançando 12,3% em 1999. 132 R ELAÇÃO F AMÍLIA-T RABALHO: Dessa maneira, no decorrer da década e respondendo à mudança do padrão de incorporação da força de trabalho após a intensificação da reestruturação produtiva, cresceu a importância do casal mais velho na composição da renda familiar, em grande parte decorrente do aumento da ocupação destes. Em 1990, o casal de 50 anos e mais contribuía com 49% da renda familiar e os filhos com 49%, passando, respectivamente, para 59,7% e 39,2%, em 1994. Nos dois anos do final da década (1998 e 1999) aumentou novamente a contribuição do casal mais velho, respondendo por 61% da renda familiar e os filhos por 38% (Gráfico 3). Assim, durante a década, a mudança que ocorreu no arranjo de inserção familiar desse tipo de família foi de redução da participação dos filhos na renda familiar, considerando que eram os principais mantenedores da família nos anos 80 e em 1990. O arranjo de inserção no mercado de trabalho da família do tipo “chefe feminino sem cônjuge” apresenta também como característica o esforço coletivo. Esse tipo de família, em decorrência de sua composição, tem sofrido de maneira mais aguda os reflexos do novo padrão de absorção da força de trabalho que opera no mercado. Na família da chefe feminina sem cônjuge diminuiu a taxa de participação familiar, cresceu o desemprego e reduziu-se a taxa de ocupação, entre 1990 e 1994, mantendo o mesmo padrão em 1997 (Tabela 1). Agravou-se a situação de inserção deste tipo de família em 1998 e 1999, quando passou a apresentar mais elevadas taxas de desemprego da PEA familiar, da ordem de 22% e 23%, respectivamente. Nesse contexto, diante do elevado desemprego dos filhos e da queda na sua taxa de ocupação, aumentou o peso da chefe feminina entre os ocupados, passando de 38,8% para 43,7%, entre 1990 e 1994, e para cerca de 45%, em 1997, 1998 e 1999. A participação dos filhos entre os ocupados diminuiu de 47,1% para 40,8%, entre 1990 e 1994, e ficou em cerca de 41% nos anos finais da década (Gráfico 2). Também nesse tipo de família ocorreu alteração no padrão verificado em 1981, 1983 e 1990. Observa-se que, a partir de 1994, como conseqüência do crescimento do desemprego especialmente para os jovens, a mulher-chefe assumiu a maior responsabilidade no encargo da manutenção da família. Cresceu a importância da renda obtida pela chefe mulher para a composição do rendimento familiar, que passou de 49%, em 1994, para 61,5%, em 1994, diante da redução da contribuição dos filhos e parentes. Nos últimos anos da década, manteve-se esse mes- REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E DESEMPREGO mo rearranjo na responsabilidade pela manutenção da família: em 1997, a mulher-chefe respondia por 62% da renda familiar e, em 1998 e 1999, devido à pequena recuperação na participação dos filhos, diminuiu para cerca de 60% (Gráfico 3). Este conjunto de informações evidenciou, através dos rearranjos de inserção no mercado efetivados nesse período de alteração do padrão de incorporação da força de trabalho, o maior partilhamento da responsabilidade pela manutenção da família entre seus diversos membros. Constatou-se também, ao examinar a participação efetiva dos rendimentos de cada um desses componentes na composição da renda familiar considerando o tipo de família, que esta corrobora as indicações anteriores acerca do maior partilhamento entre os componentes do grupo familiar das responsabilidades pela sua manutenção. A exceção se dá na família da chefe feminina sem cônjuge, na qual verificou-se movimento inverso de aumento do encargo para a mulher-chefe. Outra constatação a ser ressaltada é que o aumento da importância da cônjuge entre os ocupados do tipo de família analisado acima resultou em crescimento significativo da sua contribuição na composição da renda familiar, ao serem comparados os anos estudados e os tipos de família (Gráfico 3). Finalizando, foi possível demonstrar, através das análises apresentadas, que os arranjos e rearranjos de inserção no mercado de trabalho diferenciam-se entre os tipos de família e os momentos do ciclo vital das famílias. Os rearranjos possíveis de inserção no mercado de trabalho para os componentes da família são definidos por sua disponibilidade para o mercado de trabalho a partir de sua posição na família, relações de gênero e atribuições familiares, bem como pelos padrões vigentes de absorção da força de trabalho pelo mercado. Dessa maneira, como não existe “permutabilidade” nas possibilidades de inserção no mercado entre os componentes da família, porque são diferenciadas as restrições e o acesso ao emprego, os rearranjos de inserção possíveis nem sempre garantem ao grupo familiar a manutenção das condições de existência nos mesmos níveis. Assim, o desemprego e a precarização da ocupação dos principais mantenedores da família afetam a renda monetária disponível para suprir a sobrevivência da família. Estes resultados de pesquisa reafirmam a hipótese de que as mudanças na divisão sexual do trabalho e nas relações hierárquicas estabelecidas na família passam pela impossibilidade concreta de realização do modelo do chefe 133 S ÃO P AULO EM P ERSPECTIVA, 17(2) 2003 10. Estes processos de transformação das atividades na RMSP, nos anos 80 e 90, foram objeto de muitos estudos, dentre os quais, Araujo (1992); Cordeiro (1993); Pacheco (1993); Bogus e Montali (1994); Cano e Semeghini (1991); Emplasa (1994); Véras (1996); Pochmann (2001). provedor. Tanto os períodos de crise econômica como as alterações no padrão de incorporação da força de trabalho sob a reestruturação produtiva e organizacional na Região Metropolitana de São Paulo, analisados nas duas últimas décadas, evidenciam que vem se alterando a divisão sexual do trabalho no mercado, reforçam a impossibilidade de realização desse modelo de família e apontam para novas formas de divisão do trabalho que poderão, no futuro, impulsionar mudanças na divisão sexual do trabalho na família e nas relações internas de poder. 11. As taxas de desemprego entre 1992 e 1997 são: 15,2% (1992); 16,1% (1993); 15,3% (1994); 13,5% (1995); 15,9% (1996); e 15,9% (1997). Dados da Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED) – Seade/ Dieese, referentes ao trimestre fevereiro, março, abril, utilizados para permitir a comparação com os dados de pesquisa de 1981 e 1983 (Dieese, PPVE). Fundação Seade. Boletim PED 122, 1996 e <www.seade.gov.br>. 12. Dados Dieese. PPVE (Pesquisa de Padrão de Vida e Emprego). 13. Tipologia de família construída a partir da estruturação das famílias – se nucleadas por casal ou por chefe sem a presença de cônjuge – e das etapas do ciclo de vida familiar. São os seguintes os tipos de família utilizados: casais sem filhos, casais de até 34 anos com filhos residentes (etapa de constituição da família); casais de 35 a 49 anos com filhos residentes (etapa de consolidação da família); casais de 50 anos e mais com filhos residentes (etapa de envelhecimento da família); chefe feminino sem a presença de cônjuge (só, com filhos e/ou parentes); chefe masculino sem a presença de cônjuge (só, com filhos e/ou parentes). NOTAS Este artigo foi apresentado em versão mais ampla no XXIV Encontro Anual da Anpocs – 2000, GT Família e Sociedade, sob o título “Mudanças recentes na relação família-trabalho”. Traz resultados de pesquisa sobre os anos 90, projeto: “Família, Trabalho e Condições de Vida na Região Metropolitana de São Paulo: estudo da mudança na família e na relação família-trabalho no contexto da transformação das atividades econômicas”, apoiado pelo CNPq na modalidade Projeto de Pesquisa Integrado desenvolvido junto ao Nepp/Unicamp. Os resultados apresentados baseiam-se em Montali (1998a, 2000b). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. A periodização adotada pela pesquisa é a seguinte: 1981-83: recessão; 1984-86: recuperação e crescimento da atividade econômica; 1987-89: desaceleração da atividade econômica e superinflação; 1990-92: recessão (início da reestruturação produtiva na RMSP); 1993-96: recuperação sem recuperação do emprego; 1997-99: acentuação do desemprego na RMSP e baixo crescimento econômico; 2000: recuperação temporária do crescimento da economia. ABRAMO, L. Inserción laboral de las mujeres em America Latina: una fuerza de trabajo secundaria? Seminário temático interdisciplinar: Os estudos do trabalho; novas problemáticas, novas metodologias e novas áreas de pesquisa . Campinas: Unicamp, nov.dez. 2000. _______ . Imagens de gênero e políticas de recursos humanos na modernização produtiva. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, Fundação Seade, v.11, n.1, p.110-121, 1997. 2. Montali (1995), tese de doutorado, pesquisa realizada com apoio da Fapesp. Base de dados utilizada: Dieese. Pesquisa de Padrão de Vida e Emprego. Anos 1981 e 1983. ARAUJO, M.F. Uma nova centralidade da Região Metropolitana de São Paulo. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, Fundação Seade, v.6, n.3, p.55-59, 1992. 3. Outros estudos sobre a década de 80, tais como Jatobá (1990) e Fundação IBGE (1995), também mostraram o crescimento da participação de outros componentes da família além do chefe. BARRÈRE-MAURISSON, M. La division familiale du travail – La vie en double. Paris: Presses Universitaires, 1992. 4. Montali (1998a), pesquisa realizada com apoio do CNPq. As bases de dados utilizadas são comparáveis à anterior: Fundação Seade. Pesquisa de Condições de Vida na Região Metropolitana de São Paulo. Bases dos anos 1990 e 1994. BOGUS, L.M.M.; MONTALI, L. A reestruturação metropolitana de São Paulo. Margem , São Paulo, Educ/Faculdade de Ciências Sociais da PUC, v.3, p.159-178, 1994. 5. Tipologia de família construída com base na estruturação da família em torno de casal ou chefe sem cônjuge e momento do ciclo vital da família, definida nos estudos citados. BRANDÃO, S.M.C.; MONTAGNER, P. Novas características do desemprego. In: X ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS. Anais... Caxambu, Abep, 1996. 6. Montali (2000b), pesquisa realizada com apoio do CNPq. As bases de dados utilizadas são comparáveis à anterior: Fundação Seade. Pesquisa de Emprego e Desemprego – Região Metropolitana de São Paulo. Bases dos anos 1997, 1998 e 1999. BRUSCHINI, M.C. O trabalho da mulher brasileira nas décadas recentes. In: II SEMINÁRIO NACIONAL: POLÍTICAS ECONÔMICAS, POBREZA E TRABALHO. Rio de Janeiro: Ipea, Série Seminários, n.7, 1994. 7. Maior detalhamento sobre as mudanças nas atividades econômicas na RMSP pode ser encontrado em Montali (1998b). Ver também Montali (2000c). BRUSCHINI, M.C.; LOMBARDI, M.R. Trabalho feminino no Brasil no final do século: ocupações tradicionais e novas conquistas. In: SEMINÁRIO TEMÁTICO INTERDISCIPLINAR: OS ESTUDOS DO TRABALHO; NOVAS PROBLEMÁTICAS, NOVAS METODOLOGIAS E NOVAS ÁREAS DE PESQUISA. Campinas: Unicamp, nov./dez. 2000. 8. Pochmann (2001:110) considera que nas décadas de 80 e 90 houve desestruturação do mercado de trabalho na Região Metropolitana de São Paulo. Entende por desestruturação do mercado de trabalho “a presença simultânea e combinada do desemprego aberto em larga escala, do desassalariamento (redução dos empregos assalariados no total da ocupação) e da geração de postos de trabalho precários)”. CANO, W.; SEMEGHINI, U.C. Setor terciário no Brasil: algumas reflexões sobre o período 1970/1989. In: IV ENCONTRO NACIONAL DA ANPUR. Anais... Salvador: Anpur, 1991. 9. A partir dos anos 80, acentuando-se nos anos 90, passaram a se concentrar na Região Metropolitana de São Paulo as sedes das principais empresas industriais e financeiras sediadas no Brasil. CARDOSO, A. et al. Os deserdados da indústria. Reestruturação produtiva e trajetórias intersetoriais de trabalhadores demitidos da 134 R ELAÇÃO F AMÍLIA-T RABALHO: indústria brasileira. Revista Latinoamericana de Estudios Del Trabajo, Buenos Aires, ano 7, n.13, p.17-51, 2001. REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E DESEMPREGO LAVINAS, L.; MATESCO, V.R. A reestruturação produtiva nas empresas brasilerias e seu reflexo sobre a força de trabalho por gênero. Rio de Janeiro: Ipea, 1996 (Texto para discussão 400). CASTRO, N.A.; DEDECCA, C.S. (Orgs.). A ocupação na América Latina: tempos mais duros. Rio de Janeiro: Alast, 1998. LOBO, E.S. 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