Boletim eletrônico do Projeto Cursinho Popular
na Periferia- 4/2014
05/08/2014
“Se era pra sonhar, tinha que
sonhar alto”
by Movimento dos Sem Universidade on 5 de agosto de 2014 in Capital humano • 0
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Por Mariana Lima, especial para o blog do MSU
Roger Borges, educador popular do MSU
Com apenas 22 anos, o estudante de engenharia de materiais da
Universidade Federal do ABC (UFABC) Roger Borges divide as horas
dos seus últimos dias entre estudar e arrumar as malas. Em breve, ele
fará sua primeira viagem internacional, e em grande estilo: Roger foi
um dos escolhidos para participar programa “Ciência Sem Fronteiras”,
do governo federal, e viajará para a University of Idaho.
Natural de São João da Boa Vista, Roger é, além de pesquisador da
UFABC, um dos educadores populares do projeto Cursinho Popular
na Periferia, desenvolvido pelo Movimento dos Sem Universidade
(MSU). Ele conheceu o projeto por meio de um panfleto distribuído na
saída do bandejão da faculdade e logo resolveu se inscrever. Depois
de participar do processo seletivo e de ser escolhido como educador,
passou a dar aulas de biologia e química em Cidade Dutra (zona sul
de São Paulo) aos sábados e no Parque São Carlos (zona leste) aos
domingos. “Encontrar Sem Universidade que estão progredindo é
maravilhoso e nos dá mais ânimo para seguir a diante. Eu aprendi
demais ensinando para eles e acho que muitas pessoas deveriam ter
essa experiência também”, disse o jovem pesquisador.
De origem pobre, Roger não teve saída: ou estudava para passar em
uma universidade pública, ou teria que trabalhar enquanto fazia
faculdade. Mesmo sabendo que a luta não seria nada fácil, escolheu o
melhor caminho: “Como eu sempre gostei da ideia estudar em uma
universidade pública, comecei a me dedicar realmente aos estudos”.
Na entrevista abaixo, exclusiva para o blog do MSU, o jovem
estudante fala sobre sua expectativa para viajar ao exterior e conta
sobre os desafios que pessoas pobres precisam superar para entrar
em uma universidade pública. Fala ainda do sistema de cotas
(“consigo tirar nota tão boa tanto, e às vezes melhor, que os que não
entraram por cotas”) e sobre a realização do sonho de estudar em
uma universidade dos Estados Unidos.
Roger, como será a sua rotina nos próximos dias?
Eu viajo para os Estados Unidos dia 18 de Agosto, mas as atividades
só começam mesmo no dia 20 com um novo teste de inglês. E então
terei mais uma semana de integração para conhecer a estrutura da
universidade. Vão ser seis meses fazendo um curso de inglês e,
quando eu terminar, refaço o Toefl [Exame de proficiência em Língua
Inglesa] e poderei ver em qual universidade eu vou poder estudar.
O que você pretende estudar quando encontrar essa
universidade?
Eu curso engenharia de materiais. Já vi algumas universidades que
têm esse curso, mas ele é voltado mais para a área de metalurgia e
eu estudo a área de biomateriais, em especial, cerâmicas. Então, vou
aguardar pra ver em qual eu me encacharei melhor.
O que você espera dessa viagem?
Acho que vou voltar com mais experiência de mercado de trabalho e a
universidade de lá vai me dar um certificado de que estudei um ano
com eles. Além disso, as matérias vão valer para o meu curso aqui da
Universidade Federal do ABC.
Quando você soube que iria para os Estados Unidos?
Saiu o resultado dos aprovados no “Ciência Sem Fronteiras” em
junho. Fiquei bastante surpreso na hora, mas também era um pouco
previsível. O programa exige o cumprimento de alguns critérios e
quem consegue fazer tudo normalmente passa no projeto. A nota do
Toefl foi a minha maior surpresa mesmo: tirei 486. Estudei inglês só
por dois períodos no curso de Relações Internacionais da UFABC e
não imaginava que teria esse resultado.
Como foi a reação da sua família?
Para minha mãe, a ideia da viagem está sendo um pouco mais difícil
devido à distância e tudo mais. Mas ela diz que não cria filho pra ela,
mas para o mundo, e que está muito feliz por mim. Agora, ela já está
se acostumando e conta pra todo mundo que eu vou estudar fora
(risos).
Como você decidiu fazer faculdade?
O meu interesse começou em casa, com a educação que recebi da
minha família. Os meus pais só estudaram até o Ensino Médio, mas
sempre me falaram que, se eu quisesse subir na vida, eu teria que
estudar e eles sempre me cobraram muito para isso.
Eu tinha uma professora que dizia que, se era pra sonhar, tinha que
sonhar alto, e isso me marcou muito. Meu pai dizia que não tinha
condições de pagar faculdade para os três filhos, então eu só tinha a
opção de passar em uma faculdade pública ou trabalhar e pagar meus
estudos. Como eu sempre gostei da ideia estudar em uma
universidade pública, comecei a me dedicar realmente aos estudos.
Como era sua rotina antes do vestibular?
À época, eu fazia Ensino Médio de manhã e ensino técnico à noite, e
o meu horário da tarde era vago para eu estudar para o vestibular. Eu
me reunia com um amigo e estudávamos todos os dias na biblioteca
pública de São João de Boa Vista, onde morávamos. Estudávamos
com os livros que estavam disponíveis na biblioteca e com os livros de
cursinho que a bibliotecária doava para a gente. A cada semana, a
gente se dedicava a um assunto e, nas férias ou após a aula,
marcávamos com os professores para tirar nossas dúvidas.
Por que você decidiu estudar na UFABC?
Em 2009, no meu último ano do Ensino Médio, decidi fazer o Enem
porque era uma prova que possibilitava escolher entre várias
universidades. Mas, na
época, eu queria
mesmo era entrar na
Federal de São Carlos.
Para entrar nela, era
necessário fazer o Sisu
e o vestibular da
própria universidade.
Acabei fazendo, mas
quando saiu o resultado
do SISU, eu escolhi a
Federal do ABC, e
acabei me identificando
com o curso. A UFABC
tem uma visão
interdisciplinar da
ciência e nós
estudamos as três
áreas da ciência natural
de forma integrada, o
que me fez gostar muito. No final, eu acabei passando também na
UFSCar, mas optei por permanecer na UFABC.
Como você avalia a UFABC, depois de quatro anos de estudos?
Acho que é uma Universidade nova que investe muito em pesquisa.
Existem programas que possibilitam aos Sem Universidade já
começarem a fazer pesquisas de iniciação científica no primeiro ano
de curso, o que eu acho ótimo. É uma marca a UFABC ter várias
políticas de incentivo à pesquisa, o que tem colocado a UFABC nos
últimos rankings de produção científica.
Você entrou na UFABC por meio do Sistema de Cotas. O que
você acha deste modelo?
Durante a história do Brasil, o negro em particular sofreu muito desde
a forma como ocorreu a libertação dos escravos e como a sociedade
lidou com tudo isso depois. Equem estuda em escola pública hoje são
pessoas que não têm condições de pagar cursinho ou outra forma de
disputar em condições de igualdade com quem possui todas essas
oportunidades.
Acredito que é uma medida paliativa muito boa. O governo precisa ter
estruturas sociais que melhorem a distribuição de renda e tire as
pessoas da pobreza. Precisamos de políticas públicas para diminuir as
diferenças sociais e raciais. Mas entendo que esse processo demora
e, até que a gente chegue a uma sociedade mais igual, o sistema de
cotas é uma medida que dá condições de competir igualmente para
quem ainda não tem essas condições.
Em algum momento, você
se sentiu inferior na Universidade por ter entrado pelas cotas?
Eu fiquei com medo de não conseguir acompanhar o rendimento das
pessoas que tinham feito cursinho. Eu sabia que teria que estudar
muito em casa para compensar as deficiências do Ensino Médio. Acho
que quem entrou por cotas não precisa se sentir menor. Eu consigo
tirar nota tão boa tanto, e às vezes melhor, do que os que não
entraram por cotas!
As pessoas dizem que esse modelo diminui a qualidade da
Universidade porque permite a entrada de pessoas despreparadas. Eu
discordo completamente porque, a partir do momento em que você
entra na faculdade, todos têm acesso à mesma informação, à mesma
aula. É claro que alguns vão ter o conhecimento básico mais do que
os outros, mas vai da pessoa correr atrás de buscar essa informação
que falta e é possível fazer isso.
Como surgiu a ideia de ser educador popular na periferia de São
Paulo?
Eu defendo que a contribuição social é algo essencial na vida do
indivíduo e acredito que grande parte do pessoal da universidade
pública precisa retribuir o valor de impostos pagos pela sociedade
para os estudos públicos.
A minha experiência foi bem interessante porque foi a primeira vez
que eu tive a oportunidade de dar aula. Aqui na faculdade, eu faço a
minha pesquisa e é uma forma de colaborar com a sociedade, mas
acho que dar aula no cursinho do MSU foi uma forma mais palpável
de retribuir. Encontrar Sem Universidade que estão progredindo é
maravilhoso e nos dá mais ânimo para seguir a diante. Eu aprendi
demais ensinando para eles e acho que muitas pessoas deveriam ter
essa experiência também.
Agora que o sonho de ir estudar fora se realizou, qual será a sua
próxima meta?
Difícil pensar isso agora porque ainda estou curioso com a viagem
(risos). Eu acho que, quando eu voltar, pretendo fazer doutorado na
UFABC e terminar os estudos que estamos fazendo sobre câncer.
Quando eu voltar, quero pensar mais a respeito e terminar esses
projetos.
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