AMOR E VÍNCULO: PARA ALÉM DAS FRONTEIRAS DA FEMINILIDADE[1] Ana Beatriz Zuanella[2] “Á Cármen Cardoso, minha analista, minha gratidão pela sua preciosa participação na tessitura dos elos de ligação que constituem o FORT-DA da feminilidade – a elaboração da estabilidade do vínculo sem a objeção ao enigmático inerente às incertezas dos encontros humanos”. O convite que me foi feito para participar desta mesa redonda - Feminilidade e Cultura Contemporânea - no II Congresso Internacional e VIII Congresso Nacional de Psicopatologia Fundamental, o qual me foi transmitido por Maria Helena Fernandes, de imediato muito me sensibilizou, tanto pelo grande respeito profissional que tenho pelas participantes da mesa, quanto pela possibilidade de rever conceitos acerca de um tema que sempre me foi tão caro em minha produção psicanalítica. Apesar da distância geográfica, as colegas sempre foram fonte de trocas frutíferas para os meus escritos, quer seja através de um intercâmbio direto de idéias, quer seja através da leitura de seus textos. Assim, o tema proposto para discussão nesta mesa levou-me a prosseguir as reflexões que tenho realizado nos últimos anos, no campo da feminilidade, amor, erotismo e vínculos. Estabeleci, assim, um elo de intersecção entre estas temáticas, perpassado pelo viés da contemporaneidade, a qual figurará no presente trabalho, como pano de fundo sobre o qual serão realizadas as reflexões acerca da emergência das novas modalidades de relações afetivas estabelecidas na atualidade. Primeiramente farei uma apresentação de algumas idéias sobre a constituição do sujeito para depois lançar algumas reflexões sobre as conseqüências da pósmodernidade na sua estruturação. Privilegiarei os tipos de relações amorosas estabelecidas pela Internet como ilustrativas das novas modalidades de relacionamentos afetivos na pós-modernidade. Em suma, proponho-me a pensar as relações amorosas virtuais sob uma perspectiva psicanalítica, principalmente quando estas adquirem um caráter compulsivo. Por hora, lanço uma questão: em que as invenções cibernéticas da pós-modernidade podem estar contribuindo para que o ser humano se refugie das dificuldades que lhe são intrínsecas? Para iniciar, trago um aspecto que pontuo desde o início: a importância do estabelecimento de vínculos como alicerce da estruturação humana. O sujeito humano constitui-se sempre a partir de um outro. Sem a existência deste outro não há sujeito possível. Todo o discurso freudiano é a expressão de uma preocupação em esboçar um esquema teórico que aborde os impasses do sujeito na constituição de sua alteridade. Contudo, para a construção de sua singularidade, um longo caminho precisará ser percorrido pelo sujeito. Primeiramente ele irá reunir, unificar as partes esparsas em si, num todo, para, posteriormente poder voltar-se para o mundo externo e investir em outros objetos além do próprio eu. O outro materno possuirá um papel fundamental neste primeiro momento, cujo olhar será de importância capital neste período primário da estruturação psíquica. Para sustentar teoricamente esta hipótese constatada na experiência prática e clínica, Freud criou em 1914 o narcisismo, um conceito de importância crucial em psicanálise. Com a introdução deste conceito, postula como o eu do sujeito passa a ser uma instância psíquica também passível de receber um investimento libidinal, ou seja, todo sujeito pode erotizar o próprio eu. A noção de narcisismo é considerada fundamental. Através dela podemos compreender o início da constituição de unidade do sujeito, pois o narcisismo unifica o despedaçamento pulsional das pulsões parciais. Será graças a ele, com este papel unificador, que o sujeito poderá fazer posteriormente uma escolha amorosa. Toda a problemática da escolha amorosa, pelo vínculo a um outro a que esta conduz, precisa ser considerada à luz desta leitura sobre a constituição do psiquismo humano. Neste sentido é importante ressaltar que todo investimento amoroso poderá também constituir-se como ameaçador, à medida que o investimento libidinal, como a própria terminologia aponta, é um capital circulante que teme tornar-se deficitário e pode ser sentido pelo sujeito como ameaçado de esvaziamento. O eu, por ser o objeto inicial do desenvolvimento das pulsões, pode ceder ou não, parte destes investimentos para o campo dos objetos. Por ser, portanto, o responsável pela construção da auto-estima, é atravessado pelo seguinte dilema: quanto pode ceder aos objetos sem sentir-se ameaçado. Muitas vezes este eu instituído se acredita na condição de criar suas próprias origens e de se estabelecer como sendo seu próprio ideal. É o que Freud denominou Eu Ideal, estreitamente vinculado ao narcisismo primário. Com esta instância psíquica, estruturada no início de nossa constituição, temos um agigantamento do próprio eu, momento em que o sujeito se vê como engrandecido em si mesmo, dispensando, portanto, de vínculos com outros sujeitos, por acreditar que pode suprir-se a si próprio. Pelo medo da dependência a um outro, acaba refugiando-se no interior de si mesmo. Contudo, esta idéia está fundada numa ilusão. É uma condição alienante, contrária à do Ideal do Eu, que projeta nos ideais civilizatórios o que outrora estava centrado em si mesmo. É por este motivo que toda a problemática do egoísmo, do amor, e da paixão derivadas do campo do erotismo, precisam ser perpassadas pelo eu. Quando o sujeito teme investir no outro, por temor deempobrecer-se, os objetos deixam de existir no seu horizonte e este passa a se considerar o centro do mundo. Neste sentido, podemos pensar como, lado a lado ao amor, caminham juntos, também, a paixão e o egoísmo, como outra face de uma mesma moeda e constatamos, assim, quão imbrincadas estão as relações entre o amor, a paixão, e o egoísmo, em sua vinculação ao erotismo, montadas sob o pano de fundo das pulsões de vida e de morte. Podemos perceber também, quão importante é a noção de narcisismo para a compreensão da estruturação das relações eróticas e amorosas. Sabemos, como por um lado, o narcisismo pode influenciar positivamente as relações afetivas, graças ao seu papel unificador, pois ele possibilita o investimento amoroso num objeto total, reunificando os aspectos fragmentários deste objeto. Porém, por outro lado, não podemos nos esquecer que pelos aspectos narcísicos envolvidos na relação amorosa, pode-se promover o fácil deslizamento para a paixão e o egoísmo. Compreendemos, desta forma, que a organização narícisa não interfere apenas possibilitando o desenvolvimento do erotismo. Sua fragilidade essencial e sua vinculação estreita com a pulsão de morte podem tornar essa estrutura suscetível à instabilidade. Na paixão, graças a relação especular sustentada pelo narcisismo, se produzem efeitos de idealização em relação ao objeto. Neste estado de paixão, esperamos encontrar o ser com quem poderemos nos tornar um só. Buscamos encontrar no ser apaixonado o outro de nós mesmos, nossa própria imagem restaurada. No campo da paixão, filha do desejo, encontramos as forças que buscam neutralizar e apagar as diferenças, numa tentativa de retorno à unidade perdida. A paixão parecer ser o domínio humano onde as duas vertentes de pulsões, Eros e Tânatos, parecem colidir em seus objetivos, com conseqüência, portanto, que podem ser nefastas.Tânatos, busca o repouso e Eros busca o estado de fusão narcísica com o outro, colocando o sujeito num estado de total dependência. Já no egoísmo, o narcisismo pode bloquear o investimento libidinal objetal, como efeito oposto da mesma ação de forçar que atuam na paixão. Como um outro lado da mesma moeda, esta é a face sombria da relação entre o narcisismo e o amor. Tal qual ocorre na paixão, Eros se reúne à pulsão de morte no que ela tem de mais destrutivo. Porém, ao invés de buscar no amor uma fusão com o objeto, o sujeito nega o papel do objeto em seu prazer. Passa a viver num estado de solidão mortífera. O aspecto patológico de fragilidade essencial da estrutura narcísica pode levá-la a buscar no amor a si próprio uma forma extrema e severa de defesa ante a ameaça de despersonalização. A carência da estrutura narcísica torna a presença do objeto uma ameaça insuportável e um obstáculo ao amor erótico. Na clínica, podem ser observador graves e severos prejuízos da vida erótica, mesmo em presença de uma vida sexual ativa. As relações tornam-se assépticas e impessoais. Neste sentido, penso que a conjuntura social na qual encontrase inserido o sujeito pode contribuir sobremaneira para o desenvolvimento das patologias narcísicas, as quais tornam-se cada vez mais freqüentes na contemporaneidade. Para tecermos estas considerações, faz-se necessária uma pontuação dos aspectos relevantes deste momento histórico e econômico que estamos vivendo. Passamos por um momento de terceirização da economia, onde os indivíduos, para sobreviverem precisam trabalhar incansavelmente, de maneira ininterrupta. Não é mais possível estar com os outros, relacionar-se, estabelecer contatos cara-a-cara e vínculos, pois não há mais tempo a se perder. A maximização de nossas funções produtivas e virtudes é o que nos pede estes tempos de globalização. Parecemos viver numa lógica de auto-conservação na qual a individualidade é preservada a um alto custo e passa a ser auto-referida. Assim, a terceirização da economia é a correlata da cultura do narcisismo e traz à tona toda a problemática da estruturação, nestes tempos pós-modernos, de personalidades auto-centradas, com engrandecimento do próprio eu, sobre as quais falei logo no início da exposição. Segundo Joel Birman, em seu livro “Estilo e Modernidade em Psicanálise”, a terceirização econômica representa o ápice do modelo do individualismo, através do qual o Ocidente construiu uma forma de ser da subjetividade desde o início do século XVIII. A alteridade, o sujeito descentrado de si mesmo, passa para o segundo plano nesta ótica pós-moderna. De acordo com a filosofia destes tempos atuais, as idéias de laço social perdem espaço na cultura no narcisismo, a qual visa exclusivamente o culto do próprio eu. Neste sentido, tudo o que proteja o sujeito da necessidade de contato mais íntimo com o outro é bem-vindo, à medida que este não corre o risco de exposição e de precisar confrontar-se com a possibilidade de erro e de fracasso. Várias são as maneiras de se construir uma fortaleza de proteção, num mundo em que, acrescido a estes aspectos que constituem nossos tempos pós-modernos, precisamos também considerar a violência crescente como uma ameaça freqüente à nossa integridade. Neste contexto atual, a Internet passa a ser vista como uma possível forma de interação como mundo, principalmente como uma possibilidade de estabelecer relações amorosas. Tentando aplacar a solidão, o sujeito acaba por criar uma forma de dependência com o outro, por detrás da tela de um computador, mais severa do que a procurava refugiar-se. Se, por um lado, esta modalidade de comunicação pode ser claramente atraente pelas facilidades e benefícios que proporciona a todos, por outro lado, não podemos deixar de considerar sua face sombria. As relações amorosas e sexuais virtuais, nas quais o sujeito utiliza-se exclusivamente desta modalidade de relacionamento, podem vir a tornar-se danosas. Não proponho-me a tomar todas as relações virtuais por esta perspectiva, mas apenas a considerar os aspectos sombrios que podem estar envolvidos em alguns destes relacionamentos, em que o contato real com o outro sujeito está fora de questão e quando esta adquire o caráter de compulsividade e de exclusividade, revelando sua face patológica. Nestes casos, as relações pela Internet passam a ser perigosas, vindo o sujeito a passar horas em frente a uma tela de computador, mais tempo inclusive do que gasta convivendo com outras pessoas. Este passa a ter prazer apenas diante do computador. Muitas vezes são pessoas extremamente retraídas, com medo de serem recusadas ao abordarem alguém diretamente. As salas de bate-papo pela Internet também favorecem que se converse sobre detalhes que não se teria coragem de conversar cara-a-cara com ninguém. A Internet, assim, protege o sujeito do risco de exposição. Mesmo pessoas que têm um relacionamento fixo com um parceiro podem utilizar de maneira compulsiva a Internet, para protegerem-se das dificuldades que um relacionamento pessoal impõe. Verificamos, inclusive, que entre algumas destas pessoas, existem pessoas casadas. Estas, ao invés de tentearem resolver os problemas do relacionamento com seus parceiros reais, acreditam ser mais fácil recorrer a relações com pessoas desconhecidas para fugirem dos problemas naturais de um relacionamento. Estas pessoas, na Internet, muitas vezes, não possuem sequer nomes verdadeiros. Nesta modalidade de relação o outro passa a não importar tanto, não sendo considerado propriamente um outro. A individualidade se contempla fundada no culto à imagem, o que é favorecido sobremaneira nas relações virtuais. Pode-se imaginar estar tendo relações sexuais com mulheres e homens que possuem um nível cultural e social não compatível com a realidade. A capacidade de fantasiar é elevada, podendo-se criar características estéticas e pessoais para o outro de acordo com o desejo do próprio sujeito. Nestes casos, o outro vale então como algo a ser consumido. A psicanalista Joyce McDougall em seu livro “Em Defesa de uma Certa Anormalidade”, nos fala sobre as chamadas personalidades aditivas. Nestes sujeitos, a vida sexual possui todos as características encontradas nas adições. Pode-se estabelecer contato com o outro, mas este nunca é visto como alguém com características próprias. Liga-se ao outro de maneira fusional, para suprir grandes carências interiores. O objetivo é descartar este outro quando assim se desejar. Porém o que ocorre muitas vezes é justamente o oposto: cria-se uma séria dependência desta modalidade de relação. Questões como sentimento pelo outro passam, nestes casos, despercebidas. Em tais sujeitos tornam-se inoperantes todas as tentativas de se criar ou de se manter relações sexuais estáveis, ligadas ao sentimento de amor. Estas subjetividades parecem ter realizado um curto-circuito na elaboração da angústia de castração fálico-edipiana. Com efeito, como o amor implica entrega, a perda de algo na economia narcísica, este se torna problemático neste contexto cultural. O outro não é um sujeito com carcterísticas próprias com quem eu me relaciono. Conseqüentemente, o laço amoroso passa a se inscrever num registro secundário da existência, pois interessa apenas ao individuo a maximização do seu gozo. Desta forma podemos perceber como a pós-modernidade está extremamente correlacionada à cultura do narcisismo e pode agravar alguns distúrbios característicos das personalidades narcísicas. Estas julgam-seengrandecidas por poderem relacionar-se com quem desejarem e a qualquer momento que procurarem por um parceiro pelo computador. Este, por sua vez, possuirá as características que seu imaginário puder construir. Além de tudo, supostamente, é possível controlar as relações, pois o outro entra e sai da vida do sujeito quando assim se deseja. O outro fica, muitas vezes, como descartável nestes casos. Outro fator relevante na cultura do narcisismo é este engrandecimento do próprio eu, uma vez que relacionando-me amorosamente com um sujeito virtual eu suponho que não preciso de pessoas reais para me relacionar. Parece haver cada vez mais, um maior número de pessoas que vivem uma existência separada e isolada, em que não desejam compartilhar nada com ninguém. Para melhor ilustrar estas pontuações que trouxera para reflexão, gostaria de citar novamente, o psicanalista Joel Birman, em seu livro “Estilo e Modernidade em Psicanálise”. Penso que este consegue ilustrar muito bem esta lógica que compõe a nossa atualidade. Utiliza-se do filme “Denise está chamando” para demonstrar como existem duas formas distintas de relacionamento na contemporaneidade. O enredo do filme nos demonstra, de início, a dificuldade em torno do desejo de um encontro, caraa-cara, entre um casal, o qual nunca irá acontecer. Trata-se de um homem e uma mulher que conversam ao telefone, compartilham algo, anseiam por este encontro, porém a intenção nunca se transforma em gesto. Manifestam os seus desejos de se encontrar e os impasses existentes para a realização desta intenção. O filme aponta-nos, assim, para as perdas essenciais que indica a lógica exclusivamente maquínica. A personagem Denise apresenta uma lógica pulsante, que contrapõe-se a dos demais personagens que ocupam sua existência com avançadas tecnologias telefônicas e cibernéticas, que afastam as pessoas da vida, fazendo-as perder o rosto, a memória, a afetação e até mesmo a riqueza da linguagem. É como se o cineasta nos colocasse duas lógicas que compõem a nossa atualidade, convivendo lado a lado na tessitura da pós-modernidade. A lógica pulsante de Denise existe ao lado da lógica maquínica das demais personagens. Pode ser uma lógica mais frágil e menos investida do que a maquínica, porém a pulsação ainda persiste, apesar dos pesares. Na leitura do filme realizada por Joel Birman, Denise é a personagem que ainda insiste em clamar pelos aspectos fundamentais da vida perdidos a algum tempo. O único fator que une os personagens em suas existências vazias é a comunicação que estabelecem um com o outro pelo computador e por telefone. As relações sexuais acontecem por computador e a busca de um pai para os seus filhos também. Poderíamos chamar isso de produção independente cibernética, talvez. Denise é a única personagem que, apear de também utilizar-se de recursos cibernéticos no seu dia-a-dia, clama por celebrar os rituais essenciais à propagação da existência humana: nascimento, festa e morte, tentando restaurar assim os aspectos fundamentais da existência humana. Ela anda pelas ruas, convive com outros seres humanos, fora do espaço fechado de seu apartamento. Seria insuportável se ficasse exclusivamente confinada num apartamento, ligada aos outros artificialmente pelos telefones e pela rede de computação. Daí por que ela chama. E pode ser escutada na conclusão do filme. Ao final, Denise é a única personagem que consegue estabelecer um contato, ao vivo, com o pai de seu filho. Ele lhe era, até então, um homem desconhecido que havia doado o seu sêmen para um banco de esperma. Segundo Birman, o que o filme nos mostra é o pânico que se anuncia quando o outro se perfila no universo imaginário e real do indivíduo. De forma disfarçada, estes sujeitos parecem sofrer da “síndrome dopânico”, tão abordada na atualidade. As síndromes do pânico, severas ou moderadas, e as depressões, são as duas vertentes negativas que balançam as subjetividades na cultura do narcisismo. Demonstra-nos também quais são os principais problemas das sociedades pósmodernas. Esticando as premissas do individualismo ao extremo, a filiação perde espaço nesta cultura. As conseqüências desta realidade irão se inscrever nos registros da filiação e do pânico. Através da Internet podemos adquirir qualquer nome, sexo e características que desejarmos. Com a sua obra, o cineasta Salween nos põe para pensar os destinos funestos do universo pós-moderno, colocando-nos entre o pesado maquinismo tecnológico do isolamento absoluto e o projeto pulsátil do desejo ainda ansiado. Ele aposta em Denise na conclusão do filme, sem deixar de nos colocar, inequivocadamente, diante de suas lógicas incompatíveis com as quais devemos nos confrontar como sujeitos, para fazermos a nossa escolha no deserto da pós-modernidade. Torna-se cada vez mais difícil suportar as desilusões nestes tempos pósmodernos, marcado por uma carência de ideais humanos pelos quais se lutar e compartilhar. Cada sujeito, fechado em sua existêncianarcísica e solitária, teme confrontar-se com as dores que as relações humanas lhe impõe. Pois, para se amar, é preciso poder suportar a dor narcísica das brechas que se abrem entre o eu o outro que não poderá nos satisfazer na intensidade de nossa demanda. Haverá que se suportar que o outro não seja nossa imagem e semelhança, para que seja possível encontrarmo-nos pelas nossas diferenças e sustentarmos o vínculo do laço que nos une. É neste sentido que retomo a noção de feminilidade, incompletamente desenvolvida na obra freudiana, a qual denuncia a impossibilidade de completude no ser humano, pois é o feminino que aponta para a existência do outro sexo, para a dualidade insuperável dos seres, para a impossibilidade, portanto, da manutenção de um estado permanente e ilusório de completude narcísica. Sobre a primazia fálica, ancorada sob o reinado narcísico, só há a existência de um sexo. A alteridade só se instala pelo corte efetuado como a castração. Ao sermos expulsos do estado nascísico de fusão absoluta com o outro, nos é oferecido em troca, um leque de possibilidades para desfrutarmos dos benefícios oferecidos pela alteridade. A feminilidade, situada no terreno da alteridade, marca, portanto, a diferença de um sujeito em relação a qualquer outro, a partir da experiência de castração. Esta pode ser pensada como a experiência-limite da condição humana, ao confrontar-se o sujeito com sua finitude e incompletude. Ao aceitarmo-nos como seres falíveis, desalojamo-nos da nossa pretensão e onipotência, e podemos reconhecer o desamparo como marca indelével da existência humana. O desamparo é a condição última da falta de garantias do funcionamento psíquico, que o homem tem de enfrentar quando se livra de todas as ilusões protetoras que cria para si mesmo. Na encruzilhada com o desamparo é preciso fazer nossa escolha por conduzirmo-nos pelo caminho que nos leva à alteridade ou àquele contrário que nos leva à submissão masoquista. Cabe a cada um de nós optar pela sua saída. O masoquismo, avesso da feminilidade, implica numa fusão mortífera com o Outro. Já a feminilidade possui uma íntima conexão com o amor. Segundo Serge André em seu livro O que quer uma mulher?, “o amor não pode pois, objetar à castração, ao não-todo feminino, a não ser à medida que ele se origine de nossa submissão a esse limite: é o ordinário da castração que torna o amor tão extraordinário”[3]. Prosseguir nesta estrada como ser singular, alteritário, é ser capaz de produzir na solidão, fazer vínculos e encontrar na diferença a possibilidade de amar o outro. É transformar a solidão em potencial para a construção. Lembrarmo-nos de que a feminilidade implica na passagem pelo desamparo, cuja travessia pressupõe a possibilidade de se estabelecer vínculos sem a dependência ao outro. Amor e vínculo estão estreitamente correlacionados à feminilidade. É a feminilidade que introduz Eros na cultura. Para melhor ilustrar a feminilidade, em contraposição, podemos citar a histeria, polo oposto emblemático da mulher enquanto sintoma da cultura. A histérica é aquela que expressa através de seu corpo a infelicidade que porta em si mesma: viver numa civilização demasiadamente fálica que se opõe a seu querer feminino. Freud, avesso à possibilidade da mulher renegar a sua feminilidade, procurou descortinar um espaço que pudesse comportar a sua fala, através da criação do método psicanalítico. Desde então, a dimensão da feminilidade parece ir ao encontro da experiência analítica numa trajetória que faz dela um desafio. Por isso, a psicanálise, ao contrário do que alguns insistem em afirmar, teria muito a dizer sobre a feminilidade, pois esta não é um indizível que jamais se esgote, mas um dizível contínuo e ininterrupto sobre o inconsciente. Por muito tempo Freud partiu em busca do “segredo” da mulher preso a uma dimensão falicizante, e foi após várias desilusões que veio a abandonar essa ambição. É quando admite que a alma feminina quem melhor responde sobre ela é o poeta, que Freud encontra na arte poética uma espécie de testemunho do Inconsciente e ao remeter a problemática da sexualidade feminina ao campo da arte, não só problematiza suas próprias construções teóricas feitas até então a respeito do tema, como nos dá a inviabilidade de lhe oferecer uma resposta definitiva e categórica. Como se Freud compreendesse que, ao enigma do Inconsciente, a mulher dava corpo. É inequívoca a associação freudiana entre o conceito de feminilidade e o final de análise, tal qual nos é apresentada em 1937. É neste texto que ele nos deixa uma abertura para abordarmos a feminilidade sob uma nova ótica, a qual Freud não terá tempo hábil de desenvolver. Este vislumbre freudiano nos fica, porém, como legado a ser aprimorado. Talvez, por esta razão, falar sobre a feminilidade é sempre ir mais além, cruzar fronteiras... E, associá-la ao amor, Freud de alguma forma o fizera. Desta forma, a feminilidade, correlacionada ao amor, aponta para uma psicanálise compreendida não apenas como ciência, mas também como arte e estilística da existência. Freud já estabelecera esta ligação entre feminilidade e amor ao utilizar, como genuína sagacidade, na direção da cura, o amor de transferência, que o universo feminino introduz no dispositivo analítico. O amor transferencial, para além de sua vertente nascísica de demanda de amor se apresentaria também em sua vertente traumática. Desta última se ocupará o tratamento analítico que conduzirá o falante, através de um caminho muito singular, a falar deste amor ao Outro. O analisado passa de demanda de ser amado, que conduz o sujeito ao estado de clausura alienante, ao desejo de amar, de onde eclodem possibilidades infinitas de construções outras. Com o feminismo, através do amor, o sujeito se libera a novas invenções e realidades, novas significações e à criação da vida. Compartilho das idéias que Paul-Laurent Assoun apresenta sobre a feminilidade em seu livro, Freud e a mulher. Ele nos demonstra como na literatura, a personagem Penélope, em resposta à sua falta, pôs-se a tecer, num trabalho em que a tecelagem opunha à falta um paciente trabalho de reparação. Ao tecer, retoma a ligação fio-a-fio, dia-a-dia de sua vida de mulher. Em seu texto Assoun nos demonstra como a feminilidade na cultura pode ser vista como uma versão particular do Fort-Da, o movimento de vai-e-vem entre a perda e o retorno. Este é também o trabalho de uma tecelagem invisível que se estabelece na análise, onde as lacunas incitam à ligações através do fio condutor da transferência que propiciará o feitio de uma obra única: a singularidade do sujeito em questão que pode vir a inserir-se, então, produtivamente na cultura. Este sujeito está apto a fazer vínculos e sabe dos riscos que se corre pela falta de garantias ao desejo humano. Mas, em contrapartida, construiu uma estabilidade interna ao elaborar gradativamente o intempestivo da pulsão, que sempre abre lacunas e impossibilidades, mas não mais produz sintomas incapacitantes. Em seu lugar, pode-se abrir para um universo de relações solidárias, pois, para além das fronteiras de feminilidade, o campo fértil do amor e vínculo se descortina, sempre em seu caráter imprevisível. Mas o sujeito, então, traz consigo a esperança de quem sabe que entre a perda e o retorno se constitui a alteridade e esta nos possibilita amar em respeito às diferenças...Para além das fronteiras da feminilidade... Pois amar é construir a estabilidade do vínculo em respeito à individualidade de cada um, sem nunca perder de vista o elo que mantém a união. Fazendo pontes entre os eventuais pontos de ruptura que marcam a separação entre dois seres particulares, não fortalece-se a dependência e estabelece-se assim, uma parceria duradoura de qualidade inestimável. BIBLIOGRAFIA ANDRÉ, Serge. O que quer uma mulher? Jorge Zahar Editora LTDA: Rio de Janeiro, 1987. BIRMAN, Joel. Por uma estilística da existência. Editora 34: Rio de Janeiro, 1996. __________. Estilo e modernidade em psicanálise. Editora 43: Rio de Janeiro, 1997. __________. Mal-estar na atualidade. Editora Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 1999. CORDEIRO, Ana Beatriz Zuanella. Feminilidade, amor e erotismo. Estudos de Psicanálise, Nº 22. Círculo Brasileiro de Psicanálise, 1999. ___________. Histeria e feminilidade: do congelamento à modalidade do desejo. Psicanalítica, N° 6. Círculo Brasileiro de Psicanálise, 1998. FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. ESB, vol. 7, Imago: Rio de Janeiro, 1969. Fragmento da análise de um caso de histeria. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade e outros trabalhos (1901-1905). __________. Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor (Contribuições à psicologia do amor II). ESB, vol. XI. Imago: Rio de Janeiro, 1969. Cinco lições da psicanálise (1910). __________. O instinto e suas vicissitudes. ESB, vol. XIV. Imago: Rio de Janeiro, 1969. A história do movimento psicanalítico. Artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos (1914-1916). __________. Sobre o narcisismo: uma introdução. ESB, vol. XVI. Imago: Rio de Janeiro, 1969. Além do princípio do prazer. Psicologia de grupo e outros trabalhos (1914-1916). __________. Além do princípio do prazer (1920). ESB, vol. XVIII. Imago: Rio de Janeiro, 1969. Além do princípio do prazer. Psicologia de grupo e outros trabalhos (1920). PAUL-LAURENT, Assoun. Freud e a mulher. Jorge Zahar Editor LTDA: Rio de Janeiro, 1993. RESUMO O presente artigo aborda algumas modalidades de formação de vínculos na pósmodernidade, ilustrando, através de alguns exemplos de novas possibilidades criadas nos relacionamentos amorosos, a face patológica que jaz oculta nas inter-relações estabelecidas entre pares. Cita os encontros amorosos virtuais que se estabelecem através de sites da Internet como canal de abertura para um campo mais abrangente de discussão em torno de aspectos relevantes de nossa sociedade contemporânea. Discorre, sobretudo sobre pilares que considera de importância fundamental na estruturação psíquica do ser humano. Ao longo do texto introduz conceitos tais como narcisismo, pulsão de vida e de morte, que auxiliam na compreensão dos aspectos metapsicológicos envolvidos tanto na construção da psique individual, quanto dos relacionamentos humanos. A matriz construída por estas idéias torna-se solo fértil para a criação de novas hipóteses conceituais. O saber psicanalítico é sempre construído a partir de pontos de questionamento intermináveis. Essencialmente, utiliza-se da feminilidade como constructo fundamental na elaboração de suas idéias sobre a possibilidade do encontro amoroso entre um homem e uma mulher para além do aspecto biológico constitutivo do gênero masculino e feminino. PALAVRAS-CHAVE: Narcisismo, Relações amorosas, feminilidade, pulsão de vida, pulsão de morte. [1] Este texto foi apresentado no II Congresso Internacional e VIII Congresso Nacional de Psicopatologia Fundamental, Belém, 07 a 10 de Setembro. [2] Psicanalista do Círculo Psicanalítico de Pernambuco. Exerceu atividades como Psicóloga clínica e Psicanalista no Ambulatório do Centro de Saúde Estadual Albert Sabin 1993-2002. Coordenadora do grupo de Recife para os Estados Gerais da Psicanálise. [3] ANDRE, Serge. O que quer uma mulher? Jorge Zahar Editor LTDA: Rio de Janeiro, 1987. pág. 263