ERGONOMIA DE CONCEPÇÃO
Inteligentes até que ponto?
Edifícios verdes certificados devem aliar preocupação com a QVT ao cuidado ambiental
Segundo a Abergo (Associação Brasileira de Ergonomia), entende-se por
er­gonomia o estudo das interações das
pessoas com a tecnologia, a organização
e o ambiente, objetivando intervenções
e projetos que visem melhorar de forma
integrada, e não dissociada, a segurança, o
conforto, o bem-estar e a eficácia das atividades humanas. Aqui há uma primeira
relação coincidente com o conceito mais
recente de sustentabilidade, ou seja, não
é possível dissociar os fins de seus meios.
A sustentabilidade é vista como um processo em que qualquer pequena interação
ou conquista bem negociada e aceita vale
mais do que os objetivos perseguidos de
forma isolada, sem respeitar as características individuais de uma espécie,
comunidade, região ou país.
A maior consequência da visão estreita do conceito, hoje abandonada, foi a
de procurar culpar o ser humano pelas
mazelas do planeta, a ponto de transformá-lo em vilão de um processo que visava
indiretamente protegê-lo. Com isso, a
preservação da flora e da fauna parecia
excluir o homem do foco de preocupação,
e a qualidade de vida no trabalho parecia
uma ideia menor em termos do estudo da
natureza dos sistemas de desenvolvimento sustentável.
Entretanto, o homem é uma espécie
triplamente ameaçada. Enquanto espécie,
é tão frágil como qualquer outra. Como
indivíduo, é tão mortal como qualquer
outro animal. E, paradoxalmente, ele é
imprescindível para buscar as soluções
possíveis contra a destruição da natureza
(que ele ajudou a perpetrar, é verdade),
Marcello Silva e Santos
[email protected]
Bernardo Bastos
[email protected]
Raphael Pacheco
[email protected]
Luiz Ricardo Moreira
[email protected]
Mario Cesar Vidal
[email protected]
Laboratório GENTE/COPPE/UFRJ
Artigo originalmente apresentado no Congresso Brasileiro de
Ergonomia – Abergo 2010, no Rio de Janeiro/RJ, intitulado “Sustentabilidade sem ergonomia: quando os edifícios inteligentes
deixam seus usuários verdes de raiva”.
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BETO SOARES/ESTÚDIO BOOM
Marcello Silva e Santos, Bernardo Bastos, Raphael Pacheco, Luiz Ricardo Moreira e Mario Cesar Vidal
se assim desejar e trabalhar de forma
con­junta e urgente. Aparentemente, o
homem está se conscientizando cada
vez mais rápido. Como disse um famoso
ex-candidato à presidência dos Estados
Unidos numa conferência mundial sobre
o clima, “devemos todos aprender a nos
salvar de nós mesmos”.
No campo mais pragmático, porém, é
preciso reforçar a necessidade de combinar o conhecimento acumulado no
sentido de:
w Evitar tecnologias agressivas do
ponto de vista ecológico adotando
sistemas construtivos com menor grau
de consumo de energia e desperdício
– Pouca gente sabe que a construção em
madeira (nem sempre viável por questões técnicas) é muito menos poluidora,
além de mais “reciclável” que sistemas
construtivos convencionais em concreto
e alvenaria (principalmente quando considerada toda a cadeia produtiva, desde
a mineração e produção de cimento,
transportes, etc.).
w Projetar melhor os sistemas de
controle de consumo de energia e descarte de rejeitos – Pelo estímulo ao uso
de ventilação e iluminação natural, por
exemplo, estabelecem-se de forma natural mecanismos de redução de consumo,
sem prejuízo operacional. Por outro lado,
a utilização de usinas de reciclagem de rejeitos (entulhos), uma realidade mundial,
ainda é muito pouco divulgada no Brasil.
w Projetar adequadamente fábricas,
escritórios e ambientes de trabalho em
geral para que não se tornem obsoletos,
a curto prazo, nem opressores, a longo
prazo – Aqui tem-se a maior oportunidade
em termos de ganhos operacionais, financeiros e de qualidade de vida no trabalho,
ao mesmo tempo que se constitui no
maior desafio de conscientização, já que
o homem “se acostumou” a transformar
os ambientes de trabalho constantemente, como se isso fosse algo saudável (ou
sustentável).
VISÃO HOLÍSTICA
O entendimento que parece sensato deduzir é o de que, se a preocupação com o
meio ambiente e a sustentabilidade passa
invariavelmente pela compreensão de que
o ser humano deve ser o foco principal
das atitudes em relação ao tema, não
faz sentido buscar pseudogarantias de
que esta sustentabilidade será alcançada
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ERGONOMIA DE CONCEPÇÃO
pela simples obtenção de qualquer tipo
de certificação. Ou seja, se uma edificação foi construída dentro de parâmetros
normativos e critérios técnicos (ainda que
muitos destes não sejam regionalizados)
que a façam merecer uma certificação
porque economiza recursos, gasta pouca
energia, dura mais, etc., isso não a qualifica enquanto “ambiente” adequado para
o desempenho das atividades de trabalho
que irão ali acontecer.
Isso é particularmente importante, já
que a maior parte desses “edifícios verdes” (que em geral também incorporam
o conceito de edifícios inteligentes) foi
pla­nejada para abrigar grandes empresas,
muitas destas públicas, em que há uma
tendência de solidez corporativa e de
“lon­gevidade” da força de trabalho, seja
por estabilidade ou outros fatores. Muitos
dos trabalhadores que utilizarão estas instalações se aposentarão no mesmo local,
ainda que sejam promovidos ou mudem
de função.
Nesse particular, há de se considerar
fatores além dos usualmente analisados no
estudo das atividades de trabalho. Como se
pode perceber, a relação entre a ergonomia
e o desenvolvimento sustentável mostra-se
mais estreita do que parece. O conceito de
sustentabilidade pres­supõe que as relações
existentes entre organizações, governos e
grupamentos sociais em geral são calçadas
em três grandes variáveis interdependentes, a saber: social, econômica e ambiental,
conforme mostra a Figura 1.
A tentativa de se atribuir pesos diferentes a cada um dos componentes do
conceito de sustentabilidade é um mero
exercício de abstração, já que o que deve
ser perseguido é o ponto comum de interseção entre todas essas variáveis. Essa
(re)visão holística, na qual a ergonomia
se apoia para produzir resultados mais
consistentes em suas ações, é condizente
com a ideia de que o habitat é composto
por tudo em volta, incluindo o (meio)
am­biente de trabalho.
Se isso for verdade, por que não preservar também o trabalhador a partir da
garantia dos recursos ou meios necessários ao desempenho adequado de suas
diferentes atividades? Afinal, o homem
deveria ser merecedor da mesma atenção
que recebem a rica flora ou os animais
nas pradarias. Já que a maioria dos ergonomistas não pensa pequeno, é preciso
“preservar” o ambiente de trabalho, não
permitindo que o homem trabalhe em
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con­dições inadequadas que afetam a sua
qualidade ou produtividade e que o prejudicam na busca pelo exercício de sua
plenitude de (ser) humano.
AVERIGUAÇÃO
Como parte do processo de uma pesquisa de pós-doutorado, um dos autores deste artigo decidiu avaliar os resultados de
algumas construções chamadas “verdes”
ou “prédios inteligentes” para verificar
se existiam problemas na fase de utilização que iam além do erro de construção
terminológica, afinal prédios não pensam
nem se autoprojetam.
Na verdade, avaliar o projeto ou o conceito (de arquitetura inteligente) não era
a maior preocupação, mas sim identificar
inadequações advindas da falta da participação do usuário na concepção dos
seus ambientes de trabalho. Sem precisar
ir muito longe, aproveitando o contato
próximo com uma grande empresa de
energia, foi solicitada a permissão para
vistoriar quatro novos prédios construídos dentro do conceito de arquitetura
sustentável e entrevistar alguns de seus
usuários.
Logo na chegada a um desses prédios,
ocorreu um fato inusitado que, se não é
classificado como problema de projeto,
certamente é uma curiosidade de cunho
cognitivo. Ao nos dirigirmos aos elevadores, tocamos na moderna tecla sensível ao
toque e nela apareceu o código “E2”. Após
alguns instantes, percebemos que o elevador estranhamente não chegava, já que
naquele momento o prédio parecia vazio.
Nisso, uma funcionária da empresa
passou por nós e entrou em outro elevador um pouco mais adiante daquele
que aguardávamos. Acima da porta do
elevador em que a funcionária entrou,
vimos aceso o código “E2”. Ou seja, ao
tocar a touch screen, esta nos indicava
não apenas o andar no qual estávamos,
onde o elevador estava e outras informações (tudo com letras pequenas), como
também o número do elevador para onde
deveríamos ter nos dirigido. Digamos que
alguém precisaria ter um raciocínio ágil
o bastante para deduzir a que se referia
aquele “E(x)”.
Nesse mesmo prédio, tivemos que nos
reunir na sala de um dos gerentes, já que
a maioria das novas salas de reuniões
projetadas teve de ser convertida para
espaços de escritório devido ao “crescimento da empresa acima do previsto”.
Essas duas observações nos indicam algo
nem sempre imaginado no planejamento
dos ambientes de trabalho: somente a utilização em contexto real pode responder
pela adequação desses espaços.
ENTREVISTAS
A partir das entrevistas, foi possível estabelecer um quadro inicial com algumas
estatísticas interessantes em um desses
novos prédios. Este estudo carece de
rigor científico, mas serve como evidência motivadora para que novos e mais
aprofundados estudos sejam conduzidos
com este tema. Os dados que constam
nos Gráficos 1 a 4 referem-se somente às
respostas efetivas. As questões em branco
foram descartadas.
Além do impacto sobre as atividades de
trabalho, um mau projeto é desproporcionalmente danoso ao meio ambiente
em comparação com um bom projeto.
Paradoxalmente, a quantidade de esforços combinados não varia muito nos dois
casos, o que torna ainda mais intrigante
a utilização de modelos não participativos
de gerenciamento de projetos. É o que
se pode chamar de “paradoxo de um
pa­radigma”, a manutenção de modelos
comprovadamente ineficazes, ainda que
ditos inteligentes.
Porém, o pior ainda está por vir. Um
dos autores deste trabalho, professor
de Engenharia Ambiental, trabalha com
indicadores de impacto ambiental derivados da ineficiência socioeconômica da
indústria da construção civil. Dentre os
achados preliminares, verifica-se um aumento acentuado na geração de passivos
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ambientais decorrentes de:
w Geração de resíduos sólidos –
Ainda que tenha havido uma melhoria
sensível nos programas de controle de
desperdício, a construção continua líder
em termos de geração de resíduos, com
pouca ou quase nula utilização de técnicas
de reciclagem (entulhos, por exemplo).
w Utilização de sistemas construtivos ultrapassados – A pouca mecanização no país, aliada ao modelo de implantação de canteiros de obra, produz danos
ambientais por vezes não considerados.
w Desconsideração do ciclo de vida
do produto e da evolução do mercado
no planejamento de novas edificações
– Cada vez que uma grande empresa precisa de mais espaço para expandir suas
atividades, percebe-se em várias ocasiões
que esses novos ambientes levam um tempo enorme desde a gestão da ideia até a
entrega do prédio. Antes mesmo da entrega aos usuários, os ambientes estão subdimensionados para atender ao aumento
da força de trabalho e ultrapassados em
relação à demanda de utilização (carga
elétrica subdimensionada, por exemplo).
As alternativas adotadas, na maior parte
dos casos, são a reforma, ampliação ou o
planejamento e construção de novos espaços, mantendo-se o círculo vicioso. Isso
naturalmente pressupõe maior impacto
ambiental em todos os níveis.
REFORMULAÇÃO
Este artigo não remete a uma conclusão, mas sim a uma reflexão. Ninguém
preconizaria, nos tempos de hoje, uma
volta ao passado. Sistemas construtivos
ineficientes, uso de materiais que agridem
a natureza ao longo do seu ciclo de produção e principalmente a falta de inteligência na utilização de recursos naturais ou
não renováveis equivalem a um paradoxo
maior que a Santa Inquisição.
As organizações modernas de ponta, na
sua busca pela maturidade organizacional,
procuram estar também enquadradas na
esfera normativa, respeitando a legisla­
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ção vigente e de acordo com padrões
de qualidade diversos. As certificações
em qualidade de processos, Segurança
no Trabalho e, mais recentemente, em
responsabilidade social (ainda que, por
ora, a ISO 26000 não pretenda ser um
padrão certificador) têm seu raio de ação
ampliado a cada ano.
Em contrapartida, aumenta o nível de
exigência em QVT (Qualidade de Vida no
Trabalho), que extrapola as fronteiras das
organizações e retroage aos fundamentos
básicos da natureza humana, como a necessidade por respeito e convívio social
e familiar. Isso também remete à ideia de
desenvolvimento sustentável, na medida
em que as empresas passam a aceitar
melhor o fato de que novos modelos de
organização do trabalho podem gerar
benefícios diretos (aumento de produtividade) a partir da oferta de benefícios
indiretos (melhoria das condições de
trabalho).
Não deve causar surpresa o que o futuro
reserva em termos de avanços na natureza
do trabalho humano, mesmo que parte desse avanço possa vir acompanhada de uma
redução drástica no volume de postos de
trabalho, pelo menos no modelo convencional. Como alguns já disseram, fábrica
não é lugar de gente, mas de máquinas.
Se é possível repensar a sociedade, seus
hábitos e costumes, por que não (re)formular um modelo de trabalho e emprego?
A ergonomia está preparada para isso,
no sentido de que respeita a diversidade, incentiva a multidisciplinaridade e
intervém de forma interdisciplinar. A er­
gonomia não impõe ideias ou conceitos,
agindo a partir de ações indiretas sobre
todas as dimensões (física, cognitiva e
organizacional) presentes nos sistemas
de trabalho, por meio da ação direta e
participativa dos trabalhadores.
sido cada vez mais comum) de participar
ativamente dos projetos de seus espaços
de trabalho, elas tenderão a refletir melhor sobre suas aspirações, seus ideais
de conforto, design, segurança e “habitabilidade” do ambiente construído para o
trabalho. Se não forem capazes, ainda que
indiretamente pelas mãos de designers e
projetistas, de conceber adequadamente
seu ambiente de trabalho ou os sistemas
de produção, o que dirá de uma missão
maior, como a garantia de um modelo
de desenvolvimento sustentável para o
planeta?
O caminho para a garantia das condições ideais de trabalho passa primeiro
pela garantia do próprio trabalho. Os
governos devem garantir políticas públicas que mantenham níveis adequados de
empregabilidade e reprimam com rigor o
descumprimento das normas sobre condições mínimas de trabalho. Em segundo
lugar, é preciso mudar de vez o (pré)
conceito de que os usuários não sabem
o que querem e, por isso, precisam de
projetistas para satisfazer as suas necessidades. Todos sabem o que é bom, o
que incomoda, agrada ou desagrada num
ambiente de trabalho.
Se não for possível transmitir essas necessidades para os programas de projeto,
talvez seja necessário mudar a maneira
como esses programas são desenvolvidos,
adicionando métodos de projeto participativo, técnicas de engenharia simultânea, ferramentas de ação operacional de
projeto, etc. Tentar atribuir inteligência
a uma edificação, acreditando que no
futuro será possível solucionar o desconforto de um ambiente opressor, remonta
à mais absoluta falta desse atributo, além
de continuar deixando os trabalhadores
“verdes de raiva”.
CONCEPÇÃO PARTICIPATIVA
Muito provavelmente, quando as pessoas tiverem a oportunidade (como tem
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