O que mudou no Brasil desde a ditadura militar? Lutz Taufer Latifundios ou democracia Quem quiser saber o que mudou desde o golpe em 1964 ou desde o fim da ditadura no Brasil, deveria primeiro lançar um olhar nas áreas rurais. Em principio, praticamente não mudou nada alí. Em 1963, o Congresso Nacional aprovou uma lei, que garantiu direitos trabalhistas aos trabalhadores rurais e a expropriação de terras ao longo de estradas públicas sem indenização aos proprietários. Esta mini-reforma agrária foi, um ano mais tarde, um dos motivos para o golpe militar. Tratava-se de salvar a pátria do „comunismo“ e de impedir uma segunda „Cuba“. Neste sentido, o governo americano de Kennedy , a oligarquia agrária do Brasil e a Igreja Católica marchavam unidos na mesma direção. No censo de 2006, o IBGE constata que nada mudou em relação a distribuição desigual da terra nos últimos 20 anos, ou seja, após o fim da ditadura, embora a legislação de 1988 preveja a expropriação de terras não produtivas no sentido de uma reforma agrária. As pequenas explorações agrícolas familiares, então aquelas de até 10 hectares de agricultura, dispõem apenas de 2,7% da terra, enquanto os latifundios com mais de 1.000 hectares ocupam mais de 43% do total da área agrícola do Brasil. A agricultura familiar no Brasil produz 70% dos produtos agrícolas consumidos no Brasil, enquanto os latifundios produzem, em primeiro lugar, para a exportação. Eles proporcionam, portanto, um dos impulsores mais importantes do crescimento econômico do país, enquanto a produção industrial interna é marcada por uma tendência decrescente, o desemprego no setor industrial está crescendo e a importação de produtos industriais está aumentando. Além dessa disparidade históricamente desenvolvida no meio rural aconteceu, a partir dos anos 80, a invasão do agrobusiness, vinculado ao landgrabbing e a expulsão de pequenos produtores rurais. O valor da terra no Brasil aumentou em até 278% na década passada. A causa mais importante disso é a soja geneticamente modificada, cuja cultivo no Brasil foi autorizado pelo governo Lula. Monsanto desenvolveu uma planta de soja, que cresce no Cerrado, uma região extensa ao sul do rio Amazonas (quase seis vezes o tamanho da Alemanha). Landgrabbing e a expulsão dos pequenos agricultores são práticas comuns naquelas regiões. O MTE - Ministério Federal de Trabalho publica a cada seis meses uma lista atualizada de empresas nas quais se detectou trabalho escravo. Atualmente constam dela 567 empresas acusadas. E assim, a idade média e o pós-modernismo andam lado a lado no Brasil. O agrobusiness produz com métodos altamente sofisticados, que nem se comparam com outros países desenvolvidos. Por outro lado, os assassinatos de sindicalistas rurais fazem parte do dia a dia. A Pastoral da Terra relata como as vítimas de trabalho escravo em fazendas, localizadas em áreas afastadas, estão sendo executadas quando não têm mais condições de trabalhar. „Ninguém pode sair da fazenda, porque tem risco de falar.“[2] O Movimento Sem Terra, o maior movimento social do hemisfério sul, ocupou um grande número de terras não produtivas, no entanto, fracassou muitas vezes por falta de apoio financeiro pelos governos, o que leva a uma piora da emigração aos centros urbanos. A maioria dos pequenos produtores rurais e das suas famílias tem pouca educação escolar, é analfabeto ou passou apenas dois ou três anos na escola. Os dados do PNAD (IBGE, 2009) mostram, que 27% da população rural é considerada pobre e 26% extremamente pobre (renda mensal per capta até um quarto de um salário mínimo). Ao invés de implementar a reforma agrária do governo Lula (como a do Governo Goulart em 1963) foram introduzidas, aos poucos, programas de ajuda para a agricultura familiar. Desde 2003, a população mais empobrecida na cidade e no campo recebe uma assistência social mensal (Bolsa Família), que varia entre 8 € e 66 € por mês. Adicionalmente, o salário mínimo aumentou significativamente. O acesso aos empréstimos dos bancos foi facilitado através do PRONAF (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar). O programa Alimentação Escolar apóia escolas públicas na aquisição de alimentos produzidos pela agricultura familiar local ou por comunidades indígenas ou quilombos. Os representantes do MST, que eu consultei recentemente num evento de divulgação em Berlim a respeito destes programas de ajuda, encolheram os ombros e responderam: „Bem, foi para isso que lutamos.“ No entanto, obviamente, não mudou nem um pouco a realidade feudal de poder e de propriedade. Entrevistei recentemente Rita Maria Kehl, uma dos sete membros da Comissão Nacional de Verdade, designados pela Presidente Dilma Rousseff, e coordenadora do grupo de trabalho „Camponeses e indígenas“. Ela fez o seguinte depoimento: „Até agora, o meu inquérito levou a dois conclusoes importantes: primeiro, as dimensões da violação de direitos humanos dos indígenas e da população rural durante a ditadura e durante a democracia foram praticamente idênticas, porque a ocupação ilícita de terra sempre aconteceu com a aplicação de violência por lado dos latifundiários e dos grileiros contra os indígenas e os pequenos produtores rurais. E sempre com o apoio sistemático do Estado a favor daqueles que têm o poder econômico. Segundo: a cota das vítimas de crimes contra indígenas e produtores rurais é a mais alta, e a cota de investigação é a mais baixa neste segmento da população.“ [3] Bolsa Familia – os programas de assistência social dos governos do PT Mesmo sendo Lula considerado o presidente mais popular do Brasil , ele, nao tendo sido eleito no primeiro turno, teve que concorrer no segundo turno nas eleições de 2006, quando se candidatou para um segundo mandato. Ele ganhou com os votos da população empobrecida do Nordeste. Sendo assim pode-se dizer que a “Bolsa Família“ rendeu também para Lula. De fato, houve um desenvolvimento sócio-político considerável durante a era dos dois presidentes do PT, Lula e Dilma. Dizem que 30 milhões de brasileiros saíram da pobreza absoluta. Há três anos, Dilma começou a ampliar o programa com mais fundos. O índice GINI, que mede a desigualdade na distribuição de renda, de fato diminuiu bastante. No entanto, o seu nível anterior, que já estava absurdamente alto (um dos mais altos do mundo) baixou a um nível, que continua ainda insuportávelmente alto. Vale lembrar que o índice GINI compara apenas as rendas de trabalho, sem considerar o rendimento de pacotes de ações de bolsa de valores e propriedades de imóveis e terras. Hoje em dia, os jovens dos subúrbios e até das favelas têm acesso às universidades. Com a introdução de cotas em todas as faculdades haverá, dentro de alguns anos, médicos, advogados e arquitetos negros – algo inédito no racismo institucional no Brasil. Através da pacificação de algumas poucas favelas, os jovens ganharam outras opções fora do recrutamento pelo narcotráfico, visto que as possibilidades de ganhar dinheiro no capitalismo ilegal também não são mais tão atrativas como eram ainda alguns anos atrás. No entanto, o desenvolvimento de qualidade das escolas públicas de primeiro e segundo grau continua deixando muito a desejar. O Brasil, de acordo com o 11º Relatório da UNESCO sobre Educação no Mundo, apresentado em Janeiro de 2014, conta com 13 milhões de analfabetos, e figura assim o oitavo lugar a nível mundial, ao mesmo tempo em que procura ocupar o sexto lugar de potência econômica mundial, atualmente ocupado pela Inglaterra. Só os protestos no ano passado tornaram esta realidade desastrosa num objeto de escândalo, que até então foi ignorado pela elite e a mídia brasileira, da mesma forma como o tráfico de drogas: essa violência faz parte de um segmento da sociedade brasileira, que não tange as elites. Fugir da pobreza? Então, devemos olhar com mais atenção para a tal “saída da pobreza”. Há anos fala-se até de que sob os governos do PT, desde 2003, se formou uma nova classe média. Dizem que tem uma das taxas de desemprego mais baixa na história do Brasil, e até a nível mundial. Mas como isso é possível num país no qual cerca de 50% da população economicamente ativa ganha a sua renda no setor informal: com uma conjuntura incerta, com falta de medidas de proteção e segurança no trabalho, sem seguro social ou de saúde, sem direito a benefícios e subsídios adicionais, previstos por lei, e, muitas vezes, sujeito a repressão do Estado. E o que quer dizer a chamada “nova classe média”? De acordo com a SAE [4], ela é caracterizada por uma vasta gama de renda mensal entre R$ 1.200 e 5.174. Glória é um bairro de classe média ou média baixa no Rio de Janeiro. Quando, em 2011 o preço de aluguel do meu apartamento sofreu um aumento súbito e eu tive que procurar um apartamento simples de 2 quartos, não consegui nada abaixo de R$ 2.500 por mes. Como uma família com uma renda mensal de R$ 1.200 deve então morar neste bairro simples, até já meio degradado? Educação e saúde à nível do FIFA Sob o governo Lula houve muita retórica anti-liberal e, na realidade, muito neoliberalismo. Sob o seu governo a “indústria” de educação e saúde cresceu como nunca antes. Antigamente, também os filhos dos ricos estudavam em boas escolas públicas. Hoje,até em muitas favelas foram criadas pequenas escolas particulares. Os dados do IBGE mostram, que 71,3% desta chamada nova classe média não tem plano de saúde, 64,9% não tem cartão de crédito e 10,2% são analfabetos. Mas mesmo quem puder se dar o luxo de pagar bastante por um plano de saúde, tem que brigar muitas vezes na justiça pela cobertura de cirurgias e tratamentos médicos, exigidos por auditores médicos. O resto da população tem que recorrer ao serviço público de saúde, o SUS. De acordo com a declaração da OMS de Alma Ata de 1978, foi desenvolvido um conceito progressista e emancipatório do Primary Health Care no Brasil, a partir do qual os profissionais do SUS não cuidam apenas diretamente da saúde dos seus pacientes, mas também do desenvolvimento da comunidade. Doença é definida também como estado decorrente de condições sociais, pelo menos na teoria do conceito. A prática do SUS, no entanto, contribuiu aos protestos enfurecidos de massa no ano passado. „Queremos um atendimento de saúde ao nível do FIFA.“ Ao lado dos novos estádios tipo “naves espaciais”, que foram construídos para a Copa Mundial de Futebol e que não serão mais usados em algumas semanas – como é o caso na África do Sul hoje - , morrem pessoas nos postos de saúde e em hospitais públicos de doêncas banais, cujo tratamento seria mera rotina. Falta o médico, o ECG nao funciona ou o remédio essencial acabou. Esses casos, sao noticiados na imprensa permanentemente. Apesar de todos os progressos e melhoras nos últimos anos a favor da classe pobre no Brasil, o discurso sobre a nova classe média deve ser considerado mero marketing político. É verdade que o poder de consumo de milhões de brasileiros aumentou, muitas vezes acompanhado por seu crescente endividamento. Mas enquanto esta chamada nova classe média está exposta à instabilidade e estados precários em todas as áreas da vida cotidiana, como educação, formação profissional e saúde, transporte público, acesso a água limpa e tratamento de esgoto, segurança pública e, não por último, participação política e cultural, não tem como se falar de uma nova classe média. Exército chinês Nos anos 70, então durante a ditadura militar, houve um desenvolvimento econômico em todo o Brasil, até nas favelas. Foi alí que se desenvolveu o capitalismo ilegal do tráfico de drogas. O Estado Brasileiro praticamente deixou o campo livre para ele se desenvolver. O narcotráfico aterrorizou os habitantes das favelas, sim, mas enquanto ficou limitado às favelas, ninguem se incomodava com isso. Mas se um policial durante um tiroteiro perdeu sua vida, a favela foi invadida pela PM para vingar essa morte. Não foi raro o caso de uma dúzia de cidadães inocentes que ali passava acidentalmente, tenha sido indiscriminadamente executada. Isso é que se chama chacina. Amnesty International criticou severamente as “execuções sumárias“. Fora esses incidentes, a PM e o narcotráfico normalmente se entenderam bem – muitas vezes no âmbito de negócios. E depois chegou a FIFA. Ela precisava de segurança para o seu negócio. 22% dos cariocas moram em favelas. „Claro que nao conseguiremos pacificar todas as favelas, para tal objetivo precisaríamos o exército chinês“, disse Eduardo Paes, o prefeito de Rio de Janeiro[5]. A solução encontrada foi o envio de unidades do exército, chamadas polícia pacificadora (UPP), em um pequeno número de favelas selecionadas, que estão localizadas na vizinhança dos centros dos jogos e do turismo ou que atraem especuladores de imóveis por sua belíssima vista do Oceano Atlântico. Os traficantes, informados antecipadamente pela imprensa sobre a invasão das UPPs, se mudaram para outras favelas. Deste modo, algumas favelas se tornaram mais seguras. O efeito positivo foi que os jovens conseguiram encontrar uma nova perspectiva de vida, porém, outras favelas se tornaram mais perigosas. Aonde antigamente existia um dos cartéis de droga, hoje existem dois. Hoje, a Polícia Pacificadora está sendo considerada pela maioria dos favelados afetados como um exército violento de ocupação. O número de execuções fora da lei aumenta. Genocídio de jovens favelados negros Com a abolição da escravidão em 1888, houve de repente milhões de ex-escravos famintos e extremamente pobres nas ruas no Brasil. Para reprimí-los, foi criada a polícia militar. Seu papel foi extremamente brutal durante a ditatura militar e representa uma herança trágica daquela época na sociedade democrática atual. Ela não tem a qualificação para proteger o cidadao e seus direitos. Ela tem uma formação de soldado. Um exército existe para defender a segurança do território nacional. Para poder reagir imediatamente em caso de um ataque, precisa-se de uma estrutura hierárquica que transmita as ordens. O objetivo é matar o inimigo. A situação da PM que age nas favelas é semelhante a aquela que o exército dos EUA praticou no Vietnã e da maneira como reagiu. Dizem que às vezes, os soldados americanos mal conseguiam distinguir entre os Vietcongs e a população comum. A população foi considerada parte do inimigo e portanto igualmente alvo de eliminação. Nas favelas, a situação não é muito diferente. A população “faz parte” do narcotráfico, principalmente quando é jovem, masculina e negra. Através da atividade da Polícia Pacificadora, a taxa de assassinatos diminuiu signficativamente. Vale destacar que os jovens são menos vítimas de execução pela polícia quando são brancos e não moram em favelas.O caso contrário acontece com os afrodescendentes masculinos, jovens e pobres. Uma série de sociólogos e políticos exigem que se acabe urgentemente com este genocídio. Entre eles, Jailson de Souza e Silva do “Observatório de Favelas” do complexo de favelas Maré, que foi ocupado algumas semanas atrás pelo exército. Ele e Eliana Silva da “Redes da Mare” foram os nossos palestrantes convidados dia 29 de maio em Berlim. Protesto e resistência Quando eu fiz, muitos anos atrás, as minhas primeiras experiências no Brasil, conclui que o Brasil precisa, em primeiro lugar, de uma coisa: uma revolução cultural. Não como aquela da China, e sim, uma que seja democrática – anti-autoritária. O Brasil continua sendo, em grande parte, uma sociedade de submissos e não de cidadões. Quem precisar enfrentar neste país as autoridades públicas, sabe do que estou falando. As palavras que mais ouvi nas favelas foram “quem manda“. Da mesma forma como na Alemanha após 1945, o fascismo continuou vivo não apenas nas cabeças das pessoas, o Brasil continua até hoje sofrendo dos impactos tardios da antiga sociedade dominada pela relação vertical entre patrão e escravo. É por isso que os protestos, que surgiram ano passado e continuam até hoje em centenas de cidades e dos quais participaram milhoes de pessoas têm um significado diferente dos protestos aqui na Alemanha. Trata-se não apenas de uma luta para a melhoria da educação e do atendimento de saúde. As lutas são também a expressão de uma nova descoberta e vivência da democracia no Brasil. Eu considero estes protestos a inovação mais significativa no Brasil desde o fim da ditadura militar. Lutz Taufer [1] [2] „Ausverkauf im Regenwald“, http://www.youtube.com/watch?v=FN1LkPBL0D8 [3] Brasilikum, März 2014 [4] Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República [5] „Rio 50° plus“, 07.06.2014, arte TV