AÇÃO AFIRMATIVA E IGUALDADE DE OPORTUNIDADES* Jacques d’Adesky** 1. A questão A noção da igualdade regula a sociedade democrática contemporânea e tornou-se a exigência moral segundo a qual todas as pessoas devem ser tratadas da mesma forma como cidadãos. Todos são considerados iguais em referência a qualidades constitutivas da natureza humana como a razão, a responsabilidade moral, a liberdade. Nesse sentido, a igualdade supõe que consideremos as pessoas diferentes como equivalentes, mas não forçosamente idênticas. De acordo com essa lógica, as desigualdades de condição social existem, devendo ser eliminadas ou corrigidas mediante um tratamento igualitário. Essa igualdade formal entre pessoas significa também que, dentro de um contexto democrático, reconhece-se que cada indivíduo possui certo número de direitos, como a liberdade de locomoção, de voto, de expressão, de opinião, etc. Contudo, para que haja verdadeiramente igualdade e liberdade, o princípio de igual respeito entre os indivíduos deve ser plenamente aceito e disseminado na sociedade. Esse princípio traduz-se pela idéia de que a igualdade entre os indivíduos requer que cada um reconheça a igualdade em dignidade do outro e aja em relação ao outro com espírito de fraternidade, independentemente das diferenças de sexo, raça, nacionalidade, etnia, religião, etc. Esse reconhecimento nem sempre é evidente para as pessoas, pois a sua formulação privilegia antes de tudo a figura de um indivíduo abstrato que se tornou o nosso denominador comum universal. Tampouco o nosso elo universal é considerado um fundamento suficiente para estimular, por exemplo, ações ou tomadas de decisões em favor simplesmente do respeito à pessoa humana. Essa dificuldade de compreensão é de tal ordem que é mais fácil mobilizar a opinião pública nacional ou internacional para defender os direitos humanos quando caracterizamos que se trata nominalmente das violações dos direitos humanos de que são vítimas os muçulmanos do Kosovo, etc. Parece então necessário o uso de categorias ou “marcas” que expressem diferenças para nos levar a tomar posições claras em favor das pessoas ou grupos que são vítimas de privações ou de discriminação. Observa-se, por outro lado, que essas mesmas categorias ou “marcas” tornaram-se muitas vezes objetos de nossos próprios preconceitos. Manifestamos intolerância em relação aos judeus porque somos católicos, criticamos invejosamente os argentinos porque somos brasileiros, julgamos os baianos preguiçosos e os paulistas apressados demais porque somos cariocas, etc. 2. A persistência do racismo e da intolerância Se não ficarmos atentos às dificuldades em lidar com as diferenças, poderemos ser levados a instrumentalizar os preconceitos para marginalizar, discriminar, racializar as pessoas e os grupos que menosprezamos. O século XX foi um terreno fértil para as manifestações de intolerância e de racismo. Chegou a presenciar, em vários momentos e em países diferentes, atos bárbaros praticados em grande escala, como a tortura, o genocídio, a limpeza étnica, etc. O surgimento do neonazismo nas últimas décadas na Europa nos leva a pensar que a sociedade ocidental não conseguiu até hoje eliminar o racismo, o antisemitismo, a xenofobia. Tudo se passa como se a sociedade tivesse aceito em nome da democracia, portanto, da liberdade de expressão, a existência dessas manifestações ou as tolerasse como formas veladas de hierarquização ou discriminação. Sem dúvida, o segundo termo da alternativa é demasiadamente pessimista. Mesmo assim, queremos sublinhar, diante da persistência do racismo, do antisemitismo e de outras formas de intolerância, a imensa dificuldade em instaurar uma sociedade verdadeiramente igualitária. Aliás, como bem observou Hannah Arendt, os homens não nascem iguais, como formulado no artigo 1º da Declaração Universal da ONU, de 1948, mas se tornam iguais como membros de uma coletividade em virtude de uma decisão conjunta que garante a todos direitos iguais. A igualdade, portanto, não é um dado, é uma construção elaborada convencionalmente pela ação dos homens enquanto cidadãos de uma comunidade política. A relação existente entre a situação social precária da maioria da população negra no Brasil e a condição de cidadania de segunda classe mostra toda a atualidade da afirmação de Hannah Arendt. Desvenda que a exigência da igualdade, quando prevalece a idéia de cidadão na sua formulação abstrata, pode implicar, no sentido causal, a acomodação de importantes disparidades em termos de raça, sexo, etc. A dificuldade vem precisamente do fato de que o espaço ao qual se pode aplicar o conceito de igualdade privilegia a abordagem abstrata em detrimento da multiplicidade de categorias em termos das quais a igualdade pode também ser medida. 3. Ação afirmativa: natureza e singularidade É precisamente para encontrar soluções de maior adequação à realidade concreta que muitos países dispõem atualmente, ao lado de políticas universalistas fundamentadas no princípio de não discriminação e, portanto, cegas diante das diferenças, de medidas específicas que determinam a adoção da chamada ação afirmativa em favor de pessoas portadoras de deficiência, minorias étnicas, grupos religiosos, etc. Nas democracias ocidentais, a experiência norte-americana de affirmative action é apontada como um modelo de referência para os outros países. Contudo, a realidade particular de cada sociedade acaba estimulando a busca de soluções específicas. Na Grã-Bretanha, por exemplo, desde a sua concepção, as políticas públicas são obrigadas a levar em consideração as necessidades reais e específicas dos diferentes grupos sociais e culturais. procurar, de uma forma abrangente, No Canadá, a ação afirmativa deve alcançar níveis de representação e participação de pessoas portadoras de deficiência e de minorias étnicas no mercado de trabalho que sejam eqüitativos se comparados com os níveis existentes da população em geral. Mesmo nos países que privilegiam a concepção de um Estado que intervém num sentido estritamente universal, observa-se cada vez mais a introdução de medidas particulares para melhorar a qualidade de vida de certas minorias ou grupos sociais. Entre estes, a França adotou mediante a revisão constitucional de 8 de julho de 1999 e pela lei eleitoral de 6 de junho de 2000, e após muita polêmica, a paridade das candidaturas políticas que visam assegurar maior presença da mulher na Assembléia nacional. As políticas de ação afirmativa não se limitam aos países ocidentais nem foram inventadas stricto sensu nos Estados-Unidos. Na Índia, em 1919 e 1935, os britânicos desenvolveram duas reformas eleitorais que estabeleceram um sistema de representação parlamentar para promover certas castas assim como as mulheres e as minorias cristã, muçulmana e sikh. Em 1948, no momento da sua independência, a Índia introduziu um sistema de cotas que ampara as “classes atrasadas” para garantir-lhes acesso a empregos públicos e às universidades. Também na Malásia o governo adotou um sistema de cota em benefício da população indígena em áreas tais como: admissão às universidades, direito de posse, emprego e promoção no serviço público. Com referência ao Oriente Médio, o Líbano destaca-se com as medidas de ação afirmativa tomadas não só em reação à discriminação estrutural no local de trabalho, mas principalmente como meio de corrigir desequilíbrios na distribuição de poder entre facções religiosas. 4. Do princípio de igualdade para a noção de eqüidade Mesmo com a multiplicação de medidas de ação afirmativa em muitos países democráticos, observa-se o surgimento constante de controvérsias a respeito da necessidade ou não de adotar legislações específicas que determinem políticas para solucionar fenômenos como o racismo, sexismo e outras formas de intolerância. As controvérsias em torno destas iniciativas variam muito, quer em termos de suas justificativas políticas, quer no modo de sinalizar legalmente as minorias e grupos beneficiados por essas medidas. No plano político, os programas de ação afirmativa resultam da compreensão cada vez maior de que a busca de uma igualdade concreta deve realizar-se não mais somente pela aplicação geral das mesmas regras de direito para todos, mas também através de medidas específicas que levam em consideração as situações particulares de minorias e de membros pertencentes a grupos em desvantagem. Considera-se que a referência a um indivíduo abstrato, percebido como universal e reconhecido como cidadão, digno de igual respeito em razão de seu status de agente racional, deve ter a preeminência na formulação de políticas públicas. Observa-se, ao mesmo tempo, que tal referência torna-se insuficiente para combater o preconceito, racismo, sexismo, etc. que permanecem na sociedade impedindo o total reconhecimento da dignidade da pessoa. A exigência moral desta perspectiva conduz a buscar uma dimensão mais exigente da igualdade. O que implica assumir racionalmente, no terreno de políticas públicas, o caráter dialógico da pessoa humana no sentido que possui uma dignidade inerente igual a todo ser humano e uma identidade individual portadora de culturas construídas parcialmente por diálogos coletivos. Significa também reconhecer de modo subjacente que a pessoa é um indivíduo insubstituível e, ao mesmo tempo, um membro de uma comunidade. Essa percepção de que é preciso garantir o pleno reconhecimento da dignidade da pessoa, deu lugar à inflexão do princípio da igualdade para a noção de eqüidade. Possibilitou conferir à justiça social uma concepção fundamentada na percepção de igualdade de oportunidades. Isto é fomentar, em certas circunstâncias, políticas públicas capazes de compensar, reduzir, mediante dotações desiguais (portanto, mais eqüitativas) as disparidades que afetam minorias e membros de grupos em situação de desvantagem por motivos racial, étnico, religioso, etc. No plano das normas jurídicas, o componente central do debate questiona a natureza da discriminação positiva e os princípios que os norteiam no espaço democrático. Trata de mostrar que é possível e mesmo legítimo por parte do Estado, lugar por excelência do universal e do cidadão, romper temporariamente com o princípio da igualdade que supõe ignorar, de uma maneira ou de outra, as diferenças entre os indivíduos e de considerar pessoas diferentes como equivalentes. Para tanto, invocam que o princípio da não discriminação que implica que cada um seja tratado com igual respeito dentro de um conjunto idêntico de direitos, mesmo que de fato o indivíduo seja inserido numa hierarquia de posições que consagram a sua própria desigualdade, não é mais suficientemente adequado diante da apreciação das desigualdades multiformes da sociedade. Mesmo que se proceda com base no princípio da não discriminação, observase cada vez mais que as normas jurídicas contemporâneas destinadas a enquadrar problemas sociais particulares, setoriais ou conjunturais levam a assinalar com precisão as categorias destinatárias das normas assim editadas. A referência a um indivíduo abstrato acaba perdendo sua força normativa diante da sinalização da população por faixas etárias (jovens e adultos), categorias sociais (ativos, aposentados, desempregados), escalas econômicas (ricos, pobres, sem-terra), categorias de pertencimento (etnia, religião, cultura). Esta concepção explica portanto que o princípio de igualdade em direitos está cada vez mais suplantado pela noção de igualdade concreta vinculada à constatação pragmática da existência e da perpetuação de desigualdades. 5. A dimensão coletiva das oportunidades No plano da reflexão teórica, essa dificuldade recorrente das sociedades democráticas em concretizar a igualdade no seu sistema jurídico e social explica, sem dúvida, a crescente importância da noção de igualdade de oportunidades. Tem contribuído esta última década para a tomada de consciência de que as oportunidades de um indivíduo dependem também do seu pertencimento social e comunitário. Essa dimensão coletiva das oportunidades tem levado a recomendar em certas circunstâncias medidas de igualização em benefício de minorias e membros de grupos em desvantagem. O desenvolvimento das ciências sociais e o acúmulo de dados estatísticos produzindo informações sobre desigualdades e indicadores sobre a mobilidade social contribuíram a revelar em particular que as políticas públicas fundamentadas no tratamento uniforme e global de todos os cidadãos, não sempre puderam oferecer condições para instaurar por si só a igualdade de oportunidades. No plano social, é importante reconhecer também que as reivindicações da população relacionadas diretamente à carência de oportunidades econômicas, negligências dos serviços públicos com educação e saúde, destituição cultural sistemática, tiveram grande relevância no sentido de influenciar o Estado em vários países democráticos para acolher uma concepção da justiça social mais atenta às dificuldades por motivos de raça, etnia, sexo, etc. As reivindicações mais constantes apontam que as desigualdades econômicas e sociais dos grupos vítimas do racismo, sexismo, etc. têm sido concomitante com as desigualdades em matéria de exigências de reconhecimento com base na idéia de que os seres humanos têm direito ao igual respeito. A falta de consideração e de reconhecimento adequado têm sido denunciada como uma forma de opressão e depreciação da imagem do grupo. Este caráter negativo é tão destruidor diminuir que concorre em nível coletivo a as liberdades as oportunidades, as potencialidades assim como a reduzir as possibilidades de acesso às riquezas e ao poder. A reversão dessa situação tem sido, desde as décadas de cinqüenta e sessenta, uma das principais preocupações políticas de grupos feministas e africano-americanos nos Estados-Unidos. Reivindicações semelhantes aparecem no Brasil a partir dos anos setenta com o surgimento do movimento indígena e do movimento negro. Essas reivindicações políticas e sociais em torno da exigência do reconhecimento de uma particularidade, do respeito do valor da identidade cultural, apontam à concepção de uma política que faz das diferenças o fundamento mesmo de um tratamento diferente, bem como de uma política restauradora da igualdade com base na noção de discriminação positiva e do princípio da igualdade de oportunidades. Essa concepção que procede do reconhecimento de uma situação particular de uma minoria ou de um dado grupo em situação de desvantagem mostra toda dimensão complexa da igualdade. Esta não é apenas uma questão econômica ou de direito, é também uma questão moral em termos das aspirações de igualdade, de respeito e de reconhecimento em função de uma especificidade, de uma particularidade assim como do acesso igual aos bens e direitos fundamentais. Para que a idéia de um tratamento preferencial em benefício de minorias ou membros de grupos em desvantagem possa ser aceito plenamente, é essencial reconhecer a existência de desigualdades específicas (racismo, sexismo, etc.) e que estas sejam consideradas profundamente injustas. Do contrário, a sociedade pode ser levada a perceber um enfraquecimento do princípio de igualdade (igualdade diante do imposto, igualdade perante a lei, perante a administração pública) que estrutura a democracia e a ressentir como injustas as medidas preferenciais, consideradas então como privilégios e não como medidas de igualização. Para evitar este risco, a idéia de um tratamento preferencial deve também ser fundamentada em argumentos éticos e sustentada por um saber empírico que prova as razões históricas das desigualdades e demonstram, ao mesmo tempo, as insuficiências das políticas igualitárias. A conjunção destas ordens de argumentos éticos e do acúmulo de dados empíricos, é que permitirão à sociedade considerar admissível a instauração de uma discriminação positiva destinada a reduzir ou a compensar uma desigualdade básica. É, portanto, necessário que a sociedade tenha a clara percepção de que o princípio de igualdade de oportunidades para todos não foi respeitado ou não funciona em razão da situação de desvantagem daqueles que pertencem a uma minoria como grupo historicamente discriminado. 6. As cotas ou metas numéricas Em sociedades que celebram os méritos, os talentos e a inteligência como condição de ascensão individual, é com naturalidade que os programas de ação afirmativa de diversos países enfatizam programas de melhor acesso ao emprego e à universidade. Espera-se, com estas medidas, abrir para os beneficiados perspectivas reais de ascensão na hierarquia social e de melhor posicionamento na sociedade. Estes tipos de ação são acompanhados às vezes de cotas ou metas numéricas. Neste caso, a igualdade de oportunidades não é mais invocada em nível individual, mas em relação a cada grupo. Interpreta-se, então, a igualdade de oportunidades como consolidada quando se comprova a existência de uma igualdade de resultados. Isto é, quando se consegue, num determinado período de tempo, assegurar a cada grupo vagas proporcionais, em cada nível desejado da escala social. Trata-se, portanto, de uma visão proporcional da igualdade de oportunidades que define a mobilidade social numa base comunitária. Contudo, por ser vista como uma medida radical, a reserva de uma cota de vagas é muitas vezes sujeita a críticas tanto da parte beneficiada, quanto da parte preterida. Para os primeiros, a cota pode ser considerada como medida humilhante que dilui o mérito de conquistas genuínas. Além disso, pode reforçar a imagem depreciativa de que os beneficiários seriam incapazes de ter sucesso sem a ajuda de uma proteção especial. Para os segundos, a reserva de vagas pode suscitar um sentimento de profunda injustiça quando sentem o espaço de oportunidades restringir-se, muito embora seu mérito pessoal fosse maior do que a capacidade das pessoas beneficiadas. Esta situação sem saída aparente vem sendo forçada pela postura da própria sociedade que costuma encarar com naturalidade as diferenças de renda e status social desde que resultem do mérito e da capacidade de cada um. Às vezes essas diferenças atingem, em certas profissões, distorções exageradas legitimadas pela idéia de que diante da exigência do mercado e da eficácia no trabalho deve-se pagar o mais alto salário possível para o melhor profissional. Numerosos exemplos que se enquadram nesta proposição encontram-se nas áreas da indústria do entretenimento como o cinema e a televisão, assim como no meio do esporte, onde uma minoria consegue enriquecer num espaço de tempo muito curto. Várias observações podem ser feitas sobre este assunto, sobretudo quando se observa que o processo de globalização econômica conduz também a supervalorizar no mundo dos negócios o espírito competitivo, o individualismo e a rivalidade em detrimento da cooperação e do sentimento de solidariedade humana. 7. Limites e tensões da ação afirmativa Mesmo que muitas ações afirmativas não definam metas numéricas, como as cotas fazem, este aspecto do debate desvela a existência de vários limites inerentes às políticas de igualização das oportunidades. Em primeiro lugar, há de se compreender que essas ações não colocam em questionamento a estrutura hierárquica e desigual das posições e de rendas existentes na sociedade. Elas visam assegurar para os indivíduos uma repartição mais justa das posições existentes. Não se preocupa com as razões fundamentais das desigualdades. Não tem alcance para instituir uma verdadeira igualdade de oportunidade para todos. No máximo pode reduzir a amplitude das desigualdades, em nenhum caso suprimi-las. Podem ocorrer às vezes tensões no seio da sociedade quando se aplicam simultaneamente os princípios da igualdade e da eqüidade, tidos como antagônicos e não como complementares. Entretanto, se concordarmos em ir além da causalidade linear, abrindo-nos para uma perspectiva dialógica que abriga ao mesmo tempo as duas noções, compreenderemos que as políticas universais, portanto iguais para todos, se não foram suficientes para solucionar fenômenos como o racismo, o sexismo e outras formas de intolerância, podem e devem conjugar-se com medidas específicas pensadas e formuladas para corrigir, reduzir ou compensar as desigualdades particulares. A ação afirmativa conduz assim a buscar uma dimensão mais exigente da igualdade, e não, de forma alguma, a renunciar a ela. Aliás, a experiência tem demonstrado em vários países que o aumento expressivo de investimento público em educação e melhoramento dos serviços de saúde para todos, se eleva diretamente a qualidade de vida, não necessariamente atenua por si só os efeitos do racismo e da intolerância que permeiam essas sociedades. Queremos alertar com esta observação que as políticas públicas, mesmo bem intencionadas, são muitas vezes insuficientes quando pretendem reduzir as disparidades raciais ou étnicas mediante a adoção de simples medidas universais. Por definição, estas devem ser neutras diante das diferenças. Têm por objetivo central a realização do bem-estar de todos por meio de medidas que não levam em consideração as distinções de raça, cor, sexo, religião. É dentro desse contexto que os programas de ação afirmativa, mesmo que sejam de dimensão restrita, se mostram geralmente mais satisfatórios por serem concebidas numa perspectiva que leva em conta as circunstâncias específicas e a natureza histórica das fontes de desigualdades de que são vítimas certos grupos. 8. A perspectiva pragmática da ação afirmativa Se a sociedade considera aceitável a existência de certas desigualdades, o que então leva o Estado a promover em última instância tratamentos preferenciais para os grupos em desvantagem? Cremos que a resposta encontra-se em argumentos baseados no conhecimento dos limites aceitáveis das desigualdades existentes e na percepção que a sociedade se faz de seu próprio futuro diante do princípio da igualdade de oportunidades. Esta dupla avaliação tem um peso significativo nas tomadas de decisão política. Em primeiro lugar, permite arregimentar o apoio da opinião pública em aceitar a instituição de medidas de igualização respaldadas pela percepção de que certas minorias ou membros pertencentes a certos grupos estão em desvantagem comparados a outros grupos em razão da existência de disparidades exageradas e em números desproporcionais. Em segundo lugar, porque o cálculo custo/benefício referente a um tratamento preferencial chega a ser visto como vantajoso para a sociedade como um todo. Mesmo que não resulte, como já vimos, numa igualdade de fatos para todos, tais medidas podem assegurar ao menos que os grupos beneficiados não fiquem na extremidade mais desfavorecida em números desproporcionais diante de outros grupos. Esta concepção pragmática aponta, portanto, que em certas circunstâncias é valioso para o Estado intervir com medidas específicas para aumentar o peso relativo da representatividade de grupos em desvantagem, de modo a preservar a coesão social, reduzir os possíveis conflitos e manter as desigualdades em um nível aceitável. Contudo, medidas preferenciais baseadas somente numa estreita perspectiva pragmática sempre correrão o risco de esvaziamento rápido quando a sociedade percebe ou acredita que os resultados alcançados, mesmo não tendo maximizado satisfatoriamente as oportunidades dos desfavorecidos, não justificam mais a manutenção daquelas medidas. 9. Ação afirmativa no Brasil No Brasil, a adoção de medidas de ação afirmativa como ferramenta de política pública é ainda recente. Baseia-se parcialmente nesse utilitarismo pragmático (maximização do bem-estar geral) ao observar a reserva feita pela Constituição de 1988 de um percentual de cargos e empregos públicos aos portadores de deficiência, bem como as leis específicas que garantem maior proteção no mercado de trabalho para as mulheres e asseguram uma percentagem mínima de 30% até um máximo de 70% de candidatas mulheres para a disputa de cargos legislativos em níveis municipal, estadual e federal, com exceção de senado. Em relação à população negra, verificam-se também alguns avanços referentes a programas de ação afirmativa, mesmo que nem todos eles estejam amparados por leis específicas. Podemos relembrar, por exemplo, os subsídios do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) para projetos que visam a qualificação profissional de pessoas negras bem como as leis que objetivam reduzir a invisibilidade dos negros na propaganda e na publicidade (ver lei municipal da cidade do Rio de Janeiro de autoria dos vereadores Antônio Pitanga e Jurema Batista). No ano de 2001, que coincide com a realização, na África do Sul, da Conferência Mundial das Nações Unidas contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, observa-se no Brasil um novo impulso para a adoção de programas de ação afirmativa em prol dessa população. Por exemplo, no Estado do Rio de Janeiro, a Lei Nº 3.708, de 9 de novembro de 2001, regulamentada pelo Decreto Nº 30.766, de 4 de março de 2002, instituiu cotas de até 40% para as populações “negra e parda” no acesso à Universidade do Estado do Rio de Janeiro e à Universidade Estadual do Norte Fluminense. Atualmente esse programa de cotas fixa uma reserva de 20% das vagas para alunos da escola pública, 20% para negros e 5% para portadores de deficiência ou membros de minorias étnicas. Além disso, os cotistas precisam comprovar renda mensal bruta domiciliar por pessoa inferior a R$ 520. Em âmbito federal, o Supremo Tribunal Federal expediu também em 2001 um edital de licitação que prevê cotas para negros nos serviços terceirizados do próprio Tribunal. O Ministério da Reforma Agrária adotou nesse ano medidas favorecendo candidatos negros em cargos terceirizados. Desde março de 2002, o Ministério das Relações Exteriores incentiva o ingresso de afro-descendentes na carreira diplomática mediante a concessão de bolsas-prêmio de vocação. Em 2004, ampliou-se a política de ação afirmativa nas universidades com a adesão às cotas de um total de 13 instituições públicas de ensino. O governo federal instituiu também o Programa Universidade para Todos (ProUni) destinado à concessão de bolsas de estudo integrais e bolsas de estudo parciais de 50% para estudantes dos cursos de graduação e seqüenciais de formação específica, em instituições privadas de ensino superior. A bolsa integral é dada a quem tem renda familiar per capita não superior a 1,5 salário mínimo e a parcial a quem tem renda familiar per capita que não exceda três salários mínimos. Percentual de bolsas de estudo é destinado à implementação de políticas afirmativas de acesso ao ensino superior de autodeclarados negros e indígenas. São medidas ainda limitadas diante do conjunto de privações enfrentadas pela população negra, tais como a carência de oportunidades econômicas, a negligência dos serviços públicos de saúde e de ensino, chegando até mesmo à pobreza extrema para uma fração importante dessa população. Essa situação pode ser ilustrada pelo relatório de Ricardo Henriques sobre a desigualdade racial no Brasil, que aponta a existência de um “Brasil branco” cerca de 2,5 vezes mais rico, em termo de renda, do que o “Brasil negro”. No campo da educação escolar, a desigualdade, expressa pelo diferencial de 2,3 anos de escolaridade entre brancos e negros, se mantém absolutamente estável entre as gerações, mesmo tendo a escolaridade média dos brancos e dos negros aumentado de forma contínua ao longo do século XX. O abismo que separa os brasileiros considerados brancos e os de ascendência africana pode ser ilustrado também pelo índice de desenvolvimento humano (IDH) desagregado pela cor. Este aponta que os afro-descendentes (pretos e pardos), se considerados à parte, ocupariam a 108ª posição no ranking proposto pelo relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), enquanto os brancos deteriam a 48ª posição, sendo que o Brasil, no seu conjunto, está na 68ª posição entre os 175 países estudados. Essa constatação traduz claramente a existência de uma situação privilegiada desfrutada coletivamente pela população branca. Significa, ao mesmo tempo, que os negros, tomados coletivamente, estão na extremidade mais desfavorável da população, o que corresponde também a uma situação de desvantagem desproporcional em relação aos brancos. 10. A exigência da ação afirmativa As disparidades extremas postas em evidência expressam precisamente a exigência de medidas eqüitativas em beneficio da população afro-descendente, visando a igualização de oportunidades de acesso a melhores empregos, educação superior, serviços de saúde adequados, etc., pois os resultados das políticas universalistas adotadas por vários governos apontam claramente que estas não tiveram bom êxito em solucionar as desigualdades raciais. Nessa perspectiva, não se pode pensar a política de ação afirmativa como sinônimo de simples metas de inclusão a serem alcançadas. Tampouco deve ela ser vista como pura correção de rota, limitada a reduzir ou compensar as desigualdades sócio-econômicas. Tais concepções tendem a desconsiderar a complexidade do racismo. Ao adotar uma estratégia de ação afirmativa, é necessário que esta seja acompanhada de medidas paralelas de combate ao racismo. Do contrário, arisca-se a implementar programas voltados somente para os efeitos e não para as causas e a natureza histórica das fontes de desigualdades raciais. Para chegar à melhor expectativa de resolução possível, preconiza-se que tais programas sejam formulados com base em um diagnóstico tanto dos efeitos do racismo como das suas causas específicas. Entre as causas, há que destacar o menosprezo racial como também a falta de uma justa consideração do valor da história e da cultura dos negros. Ambas representam uma privação fundamental que tem influência crucial na determinação das condições materiais e da qualidade de vida da população afro-descendente. Com efeito, sem desconsiderar o peso das desigualdades econômicas e sociais, é preciso compreender que a desvalorização da história e da cultura de origem africana e a depreciação pela mídia da imagem dos afro-descendentes constituem um dano moral, uma denegação de reconhecimento igualitário. Esse duplo menosprezo pode despertar em certas pessoas o ódio a si mesmas, bem como a tortura de uma baixa auto-estima, concorrendo, ao lado das desigualdades sócio-econômicas, para fixar a população afro-descendente no patamar inferior da escala social. Em nível individual como no plano coletivo, a natureza substancial da falta de igual consideração e de reconhecimento adequado de sua imagem e das particularidades históricas e culturais contribuem para diminuir as liberdades, as oportunidades, as potencialidades, assim como para reduzir as possibilidades de acesso à riqueza e ao poder. 11. Controvérsias em torno da ação afirmativa Essas ressalvas sublinham que não deve ser simples, numa sociedade racialmente hierarquizada como o Brasil, admitir sem controvérsias a instauração de medidas especiais em beneficio da população afro-descendente. E, na medida em que a agenda política deu certa ênfase ao sistema de cotas, isso não apenas favoreceu o questionamento da sua eficácia como também privilegiou o debate entre os que estavam simplesmente a favor e os que estavam contra, sem dar conta da abrangência e complexidade do assunto. Aumentou igualmente a distância entre, de um lado, as lideranças do Movimento Negro e personalidades do meio político mais sensíveis e abertas a uma política de inclusão dos negros, e, de outro lado, uma parte do mundo universitário mais fechada e convicta de que o problema do negro é antes de tudo social. Entre os políticos de expressão nacional que apóiam a política de ação afirmativa, observa-se uma linha apartidária que inclui nomes como Fernando Henrique Cardoso, Marco Maciel, José Sarney, Anthony Garotinho, Lula da Silva, Benedita da Silva, Paulo Paim, José Serra e Ciro Gomes. Este último, anteriormente contra, mudou de posição durante o debate televisivo entre os principais presidenciáveis no dia 3 de outubro de 2002. Os dados do relatório do CEAP O racismo em números: atitudes raciais no Rio de Janeiro confirma todo o potencial polêmico do assunto. Mostram também que, na medida em que o nível educacional dos entrevistados cresce, diminui o apoio à implantação de programas de ação afirmativa no país. Essa resistência explica-se igualmente pelo fato de que as medidas de ação afirmativa concentramse geralmente no campo do ensino superior e no acesso ao mercado de trabalho. Objetivam reduzir as desigualdades desproporcionais existentes entre os grupos de raça/cor, impulsionando a mobilidade social ascendente e o aumento do peso relativo, nas camadas sociais superiores, dos grupos em situação de desvantagem. Para a população afro-descendente, ação afirmativa significa concretamente criar ou reforçar as oportunidades para a classe média negra, apoiar medidas para o surgimento de uma elite ou de uma burguesia negra. Tais medidas, por outro lado, podem ocasionar o acirramento na competição pelo mercado de trabalho, assim como desvelar um racismo mais aberto e agressivo por parte de alguns setores da população até então privilegiada. A expansão substancial das oportunidades reais em beneficio dos negros questiona, portanto, a situação de privilégio de que a população branca tradicionalmente desfruta em termos de aquisição de bens materiais e de posições de prestígio. 12. Quem é negro? Com raras exceções, observa-se também que os intelectuais e formadores de opinião tampouco compreendem as especificidades do racismo no Brasil. Não entendem que uma política consistente de luta anti-racista passa por ações específicas, sem prejuízo de soluções tradicionais que focalizam a luta contra a pobreza. Além disso, alguns tendem a evitar a discussão alegando que no Brasil não se sabe direito quem é negro. Subentende-se dessa forma que a mistura racial tem diluído tanto a população que se torna difícil discernir quem é pardo, mulato, preto, negro, etc. Diante desta realidade difusa, o bom senso recomendaria mesmo em se preocupar com os problemas sociais e econômicos e não com o racismo. Tal argumentação é comum nos debates. pertinência ou não de ação afirmativa Surge quando se levanta a destinada as populações afro- descendentes. Sem desconsiderar a importância da polêmica, a constatação da exigência de um grande número de categorias raciais em termos de cor tem o mérito de obrigar-nos a encarar a questão, mesmo que possamos considerá-la como maliciosa. Não só assinala a exigência jurídica em definir as pessoas ou grupos suscetíveis de beneficiar-se de políticas específicas, mas relembra também a ambigüidade e indeterminação das categorias raciais. Para nos ajudar a resolver estes dilemas, há de se reconhecer que o termo negro é uma categoria convencional tanto quanto o branco. Agrupa todas as gradações, que vão do pardo até o preto, incluindo a cor de cobre. Da mesma forma, a categoria branco abrange também cores diferentes, já que os brancos não são verdadeiramente brancos. Além disso, observa-se que a multiplicação de categorias relacionadas com a cor da pele, formato de rosto e textura dos cabelos é um fenômeno comum em sociedades multirraciais. Traduz o anseio das pessoas em agrupar os outros em determinados grupos raciais ou de cor, o que é em um exercício banal. Mas pode corresponder às vezes a um desejo de hierarquizar os outros numa escala racial e cromática. Essas observações aparentemente sem muita importância mostram o que está em jogo não é tanto a cor da pele, o formato do rosto, mas o racismo que conduz a comportamento de menosprezo em relação às pessoas ou grupos humanos aos quais se atribui uma inferioridade racial, com base na idéia de que as características intelectuais ou morais de tais pessoas ou grupos são conseqüências diretas de suas características físicas ou biológicas. Entendemos por essas razões que restringir a compreensão do racismo a um simples fenômeno de pigmentação é muito pouco. Também, do ponto de vista da luta anti-racista, não é relevante dividir as categorias em preto, pardo, mulato, negro como se fossem categorias excludentes. É um falso problema, pois todos sofrem dos efeitos, em grau variado, da discriminação subjacente demonstrado por inúmeros estudos universitários, dados estatísticos governamentais. Todos são vulneráveis a passíveis privações na forma de menor expectativa de vida, de falta de igualdade de oportunidades, mas também de danos psicológicos, o que contribui a restringir o grau de participação da vida social, política, econômica e cultural do país. Em vez de perguntar quem é negro, é, portanto, preferível questionar quem sofre de privações por motivos de raça, cor da pele ou de pertença étnica. Essa nova formulação ajuda a resolver o dilema da cor assim como sinalizar melhor as pessoas ou grupos discriminados dentro de uma perspectiva de norma legal. 13. A remoção das privações Sem dúvida, a política de ação afirmativa questiona de modo singular as desigualdades raciais, na medida em que assegura que minorias e membros de grupos em desvantagem não permaneçam, em números desproporcionais, na extremidade mais desfavorecida diante dos outros grupos raciais e étnicos. Requer, a fim de garantir um patamar mínimo de igualdade de oportunidades para todos, que, além da igualdade dos direitos de ir e vir, de livre expressão e de voto, sejam incluídas diversas outras variáveis, como o acesso à universidade e aos serviços de saúde de qualidade, o acesso em pé de igualdade ao emprego, ao crédito financeiro, a uma expectativa de vida decente, ao direito a uma imagem adequada na mídia, etc. A dimensão das privações é tanto mais importante quando se reconhece que as desigualdades sócio-econômicas são cumulativas com a discriminação racial que tem por sua vez efeitos negativos como a alienação dos próprios discriminados e a diminuição da auto-estima. Essa situação mostra precisamente que as reivindicações para adotar medidas de igualização de oportunidades, ainda que diga respeito às desigualdades econômicas e sociais, são fundamentalmente questões morais, pois nascem de sentimentos de indignação e de humilhação provocados pelo racismo que nega a estas pessoas a igual dignidade e consideração. O pleno reconhecimento dos direitos da população afro-descendente é portanto uma das tarefas mais importantes de nosso tempo. Implica o apoio substantivo do Estado, mediante adoção de políticas de ação afirmativa, como solução temporária para se contrapor aos efeitos da discriminação. Enquanto essa população estiver em posição vulnerável e em situação de desvantagens sociais e ocupacionais, a concretização deste processo não estará apenas no apoio do Governo, mas, antes de tudo, na mudança de comportamento das pessoas. Isto requer a compreensão mínima de que o modelo de hierarquização racial é produto da história colonial e resulta também de oportunidades negadas e de injustificável exclusão social que perduram até hoje. Significa, portanto, que a discriminação racial não é uma questão que diga respeito somente aos discriminados, mas concerne a população no seu todo, incluindo os seus beneficiários. Impõe-se, por isso mesmo, uma articulação dos grupos vítimas do racismo com as outras organizações da sociedade civil para denunciar e combater práticas discriminatórias em todas as frentes. BIBLIOGRAFIA d’Adesky, Jacques. “A singularidade do debate em torno da política de ação afirmativa no Brasil”, Proposta, FASE, nº 76, março-maio, Rio de Janeiro, 1998. d’Adesky, Jacques. Políticas públicas e ação afirmativa no Brasil, IPCN, mimeo, Rio de Janeiro, 1999. Guimarães, Antônio Sérgio Alfredo. 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Palavras-chave: ação afirmativa, racismo, equidade, cotas. * Versão atualizada do texto “A exigência de políticas de ação afirmativa no Brasil”, publicado na revista Proposta, FASE, nº 96, março/maio, Rio de Janeiro, 2003. ** O autor é Economista, Doutor em Antropologia Social pela USP, Pesquisador do Centro de Estudos das Américas da Universidade Candido Mendes.