Revista Linguasagem – 21° Edição www.letras.ufscar.br/linguasagem O voo de uma mariposa Gustavo Duarte de Oliveira Livro. Página. Letra, capa. Parágrafo, linha, travessão. Inspiração, ou pior, a falta dela. Com a ajuda de uma bela xícara de café, escrevo. Perfaço, prosaicamente, uma escrita sem nenhum sentido, ou será que a falta de sentido produz a existência de um? Não pensar em nada é pensar em alguma coisa? O ser - humano é ser capaz de pensar em nada? Pauso a reflexão. Começo o segundo parágrafo, meus pensamentos estão em como iniciar o terceiro. Gastei minha tarde, e só consegui escrever isso. Preciso pensar. Levanto-me, batendo o lápis contra a minha testa. Tive uma ideia, vou falar do nada, pois nada é alguma coisa, eu acho. Pensar em como o pobre e pequeno pássaro bate em minha janela, já não é mais tão interessante quanto escrever a respeito do nada. “Tum Tum, Tum Tum”, só se ouve seu bico batendo indo de encontro à janela. As patas roçam, arranhando assim o vidro. O bichano demora um pouco para desistir, insiste um pouco mais... Pronto, já se foi. Voltemos ao nada. O sol já não estava alto para que eu pudesse desfrutar um pouco mais da tarde que parecia estar perfeita, e a noite já perdurava. Uma mariposa sobrevoa sobre a minha cabeça, posso ouvir o tilintar do seu bater de asas amedrontando o meu raciocínio. E eu aqui, no nada. Nada deve significar alguma coisa, crises de quem quer escrever. Já pensei em sair, tomar alguma coisa, refrescar minhas ideias, e então me lembrei: - Como vou refrescar algo que eu, ainda, não tenho? Por conseguinte, volto para o meu cantinho. Aquele ali, seguindo o corredor principal o último quarto da casa. Cômodo até que espaçoso, menos mal. Decidi tirar um cochilo, mas não durou mais do que vinte minutos. Debruçado sobre minha cama, olhando para livros, folhas e lápis, levantei. Caminhar pela avenida me faria bem. Sai. Revista Linguasagem – 21° Edição www.letras.ufscar.br/linguasagem Estava às portas das horas altas da noite, e eu caminhando pela Avenida Coelho no centro da cidade. O lugar estava frio, calmo, desértico. Meus cabelos acompanhavam o balançar das folhagens das palmeiras, e com todo tipo de sentimento fraternal já conhecido, fazia o papel de unir meus pensamentos com o vento, que iam e viam sobrevoando longas distâncias e por alguns momentos não conseguia distingui-los. Acomodei-me logo num banco, em uma praça ali perto, tirei um livro do bolso para ler. Começava a entender o porquê das crises dos escritores. Tantas ideias, inúmeros pensamentos que ficavam, às vezes, distantes outrora tão perto que solidificam travados quando ouso passar para o papel. Fiquei precavido naquela situação, sozinho, em uma praça que ligava a avenida, ruas e ruelas que, por sorte estava bem iluminada. Já sentado, folheando algumas páginas do meu livro, escutei: - Poeta não é somente o que escreve. É aquele que sente a poesia, se extasia sensível ao achado de uma rima à autenticidade de um verso. Respirei fundo e, vagarosamente olhei para minha direita e vi uma senhora sentada. Num pulo, caí do banco e saí aterrorizado catando mamona, goiaba, pequi e tudo mais que eu via pela frente. Estava desconcertado, não tinha visto chegar, não ouvi seus passos, muito menos quando se sentou, não fizera um barulho. Tratei em me desculpar, foi um pouco embaraçoso. - Perdoe-me, senhora ... Eu, eu ... Não a vi sentando ao meu lado. Limpando as frestas de areia que se alojaram em minha roupa, olhei delicadamente ao rosto da pobre senhora que me assombrou, de cabelos bem brancos, o nariz um pouco avantajado, um chale feito à mão em volta dos ombros e que descia para os braços até chegar às mãos, aparentemente frágeis, mas que lhe renderam forças para escrever tudo aquilo que lhe rodeava, um terninho azul escuro com bolinhas brancas com uma saia bem longa e sapatinhos pretos. Olhando-a com mais calma, não parecia uma personagem assustadora, mas serena, com olhos atentos a sua volta. Quando dei por mim, de quem estava sentado ali no banco ao meu lado, decidi voltar para o chão onde tinha acabado de levantar. Por algum tempo, fechei os olhos, e quando os abri, ela continuava lá. - Boa noite! Tudo bem? , indaguei atrevido e atemorizado. Revista Linguasagem – 21° Edição www.letras.ufscar.br/linguasagem - Consegue aprender tudo o que precisa esta noite começando a conversa assim? , respondeu diretamente. - Aprender? , questionei bruscamente. Olhei para aquele céu negro, com nuvens ligeiramente azuladas, que de um tom tão marinho que poderia difundir-se facilmente com a escuridão da noite, a não ser pelos clarões e lampejos irradiados pela lua, um branco tão vivo quanto de uma pérola. Começamos a conversar, em poucos minutos ali sentados, eu já me acostumara. Não sei como, mas já estava tão perturbado tentando encontrar algo - que nem mesmo eu sabia o quê, que conversar face a face com Cora Coralina, já não era impossível. Cora me disse que não se sabe se a vida é curta ou longa para nós, mas sabe que nada do que vivemos tem sentido, se não tocarmos o coração das pessoas. Muitas vezes basta ser colo que acolhe, braço que envolve, palavra que conforta, silêncio que respeita, alegria que contagia, lágrima que corre, olhar que acaricia, desejo que sacia, amor que promove. E isso não é coisa de outro mundo, é o que dá sentido à vida. É o que faz com que ela não seja nem curta, nem longa demais, mas que seja intensa, verdadeira, pura enquanto durar. E ainda completou, dizendo: - Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina. Abri os olhos com o tilintar do bater de asas de uma mariposa sobrevoando a minha cabeça, perturbando o meu raciocínio. Debruçado sobre minha cama, olhando para livros, folhas e lápis, levantei. Encontrei o que não estava perdido. Não me encontrei com Cora, mas com a literatura. Como ela mesmo diz, o que vale na vida não é o ponto de partida e sim a caminhada. Caminhando e semeando, no fim terás o que colher. Letras, frase, parágrafo e livro. Gastei toda a minha madrugada e, até agora, só consegui escrever isso aqui.