Revista Linguasagem – 21° Edição
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O IMAGINÁRIO INFANTIL: UMA VIAGEM PELO OLHAR DE LISPECTOR1.
Carla Rosane da Silva Tavares Alves2
Introdução
Clarice Lispector é uma das mais importantes escritoras da literatura brasileira e uma
ficcionista singular que, como assinala a crítica, desde sua iniciação nas letras, recusou a fixidez dos
gêneros literários, por considerá-la um entrave na busca da essência que marca seus escritos.
Felicidade clandestina (1998) é uma obra que reúne diversos contos produzidos em diferentes
períodos, alguns, inclusive, como coloca Marina Colasanti, na contracapa da obra, retrata fragmentos
da vida infanto-juvenil da autora, como o próprio conto que intitula a obra, dentre outros que,
igualmente, escondem resquícios de uma infância marcada por fatos que por muito tempo
permaneceram em sua memória e, como se vê, desabrocham nas páginas desse livro, não de uma forma
meticulosamente ordenada, mas como substrato de sua produção acentuadamente poética.
A leitura de Felicidade clandestina oportuniza um passeio que leva à descoberta de diferentes
tesouros. Com o intuito de conhecer um pouco a respeito da riqueza desses tesouros, o presente estudo
tem por objetivo fazer uma análise e reflexão acerca dos contos “Felicidade clandestina” e “Miopia
progressiva”, que apresentam em sua temática a preocupação com a criança.
Natureza e fundamentos básicos da literatura infantil
Considerando que a análise proposta tem como elemento central o enfoque dado pela autora à
criança, torna-se interessante levantar alguns fundamentos da literatura infantil, partindo de sua
natureza e ideologia.
Clarice Lispector também escreve para o público infanto-juvenil e, pelas suas construções
carregadas de criatividade, tem a capacidade de encantar as novas gerações. Entretanto, na obra em
apreço, não é este seu público alvo, embora, nos contos selecionados seja a camada da sociedade
escolhida como referencial das personagens, detalhando suas preocupações, afeições, fraquezas,
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O presente texto sintetiza as conclusões de um Projeto PIBIC-UNICRUZ (2011-2012), sob nossa coordenação, bem como
dá continuidade a estudos de nossa autoria, iniciados na disciplina de Literatura Brasileira, ainda por ocasião do Mestrado.
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Doutora em Letras (UFRGS). Professora, Coordenadora do Curso de Letras da UNICRUZ e Coordenadora do GEPELC –
Grupo de Estudos, Pesquisa e Extensão em Linguagens e Comunicação, ao qual está vinculado a pesquisa. E-mail
[email protected]
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crenças e ilusões. A criança é, pois, mostrada como realmente é em sua essência; não havendo
compromisso com qualquer tipo de mitificação, intenção doutrinária ou pedagógica.
Quando se fala em literatura infantil, vem logo à mente a relação paradoxal criada entre o
adulto que escreve a respeito de algo que seja do interesse da criança que lê. É o predomínio da
unilateralidade. Escritor e leitor: duas figuras distanciadas não só pelos limites da criação literária, mas
por um mundo referencial, crítico e ideológico. E, por contraditório que pareça, está aí justamente o
eixo de aproximação que confere a alguns privilegiados o contato direto com o mundo infantil. Mais do
que técnica, exige-se poder criador para, num virar de páginas, jogar esse tipo de leitor no enredo que
prenda sua atenção.
Para garantir o público infantil, muitas vezes, se observa o emprego de “mecanismos
educacionais como veículo do ideário burguês” (LUCAS Apud ZILBERMANN & MAGALHÃES,
1982, Prefácio), como forma disfarçada de inserir a criança no mundo das regras, normas e leis adultas.
É, pois, um trabalho de lenta lapidação do futuro cidadão que, para usufruir dos bens culturais, precisa
– na visão do mundo adulto - passar por um processo de inculcação ideológica que lhe permita se
adequar às exigências da sociedade vigente.
Nesse mister, parte-se da compreensão do ideário burguês e, no aprofundamento do
conhecimento das relações sociais, pode-se avançar até à crítica do sistema, mas nunca sem o dote de
tal saber. Para criticar coerentemente e/ou modificar é preciso conhecer, saber o que é e o que propõe o
sistema dominante.
Em tal processo, mais do que qualquer instituição, a escola tem a incumbência de, através da
educação sistematizada, perpetuar as tradições, as raízes culturais e a própria razão de ser da
organização social. Tendência tradicional ou progressista? Críticas à parte, a escola, independente de
época ou sistema sociopolítico vigente, continua transmitindo valores, formando crenças e indicando
caminhos. Manter ou mudar é o diferencial entre a reprodução e a criação.
Magalhães e Zilberman (1982) indicam saídas à literatura infantil para escapar desse estigma,
dentre as quais, textos não fechados, que permitam a participação ativa do leitor, na sua produção e
interpretação.
A literatura infantil apresenta-se como um estimulante veículo de entretenimento e lazer,
como um forte aliado do desenvolvimento da imaginação, do pensamento criativo e da linguagem e
expressão. Da mesma forma, é inegável a sua função pedagógica na captação do mundo real e na
doutrina dos padrões culturais burgueses.
A História mostra que esta modalidade literária se assenta no binômio educação-diversão; suas
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raízes se prendem ao ensino veiculado pelo livro didático e, de longa data, mais precisamente desde o
século XVIII, imprime a visão da “moral utilitária”, cuja base teórica é ensino e entretenimento.
Entre autor e leitor se estabelece uma relação dialógica que passa pelo domínio de um jogo;
um jogo de palavras, de pensamentos, de ideias e ações. Quem o dita, quem o impõe? Não há como
fugir da resposta; tudo gira em torno do instrumento ideológico e comunicador de um adulto autor.
Dessa forma, a criança exerce uma posição neutral; é envolvida num processo de massificação
cultural, no qual é submetida, forçosamente, a ideologia e valores transmitidos pelo autor.
A literatura infantil cumpre, assim, o papel de “[...] preparar a criança burguesa para assumir
sua função dirigente e a criança pobre para converter-se em mão de obra” (LUCAS Apud
ZILBERMANN & MAGALHÃES, 1982, Prefácio). Opera-se aqui, como reprodução do sistema
socioeconômico e cultural, a divisão entre dominantes e dominados, letrados e não letrados.
As histórias infantis estabelecem uma comunicação, na qual são apresentados à criança os
valores que a classe hegemônica deseja que sejam reproduzidos, bem como um modelo ideal de sujeito
útil à sociedade. É instituindo, assim, sutilmente, o modus vivendi que se espera, a exemplo do que faz
a instituição escolar, como se vê a seguir:
À caça do sonho, todos os conceitos pedagógicos estão voltados
para a criança no sentido de dizer no que ela deve se tornar. O
objetivo da pedagogia só será atingido, se ela conseguir realizar um
sujeito senhor de sua própria linguagem e de seus atos, dirigido pela
razão e pela lógica, sujeito do consciente e destituído de conflito.”
ZILBERMANN & MAGALHÃES, 1982, p. 43)
Como se percebe, o sonho exerce função similar à edição de modelos, visto que sempre se
volta ao alcance da perfeição, seja como indicativo de padrão estético ou narrativo. Entretanto, não se
pode perder de vista a história de vida dessa criança, desse leitor que, perseguindo ou não um “sonho”,
sob o efeito ou não da ação pedagógica, possui uma bagagem cultural que não pode ser desconsiderada,
sob pena de descaracterização.
Por outro lado, a ação pedagógica só se cumpre verdadeiramente, se, mais do que indicar
rumos, ela despertar a imaginação criadora e a capacidade reflexiva.
O jogo e a fantasia vão perdendo espaço, na vida da criança, à medida que o seu referencial de
mundo vai se alargando, através da introdução da ideologia pela família e escola. Eles mantêm-se
latente na criança, mas vão se subordinando aos momentos de privacidade em que ela pode extravasar
suas emoções, pois tem início o funcionamento do mecanismo de censura. Com o enfraquecimento da
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fantasia, vai deixando de existir, também o “faz de conta”, pois a criança não sente mais necessidade de
criar um interlocutor fictício, como lembram Zilbermann e Magalhães (1982).
Em âmbito escolar, observa-se a superficialidade no tratamento e exploração da sonoridade na
literatura infantil que, na fase de alfabetização, passa a ser substituída pelo árido ensino de gramática
ou por algum tipo de exploração textual que retira toda a poesia e essência da criação literária. São, na
realidade, os excessos didáticos que conduzem a criança a um processo mecânico, responsável pelo seu
desinteresse pela prosa ou poesia.
“Felicidade clandestina”
O conto “Felicidade clandestina” relata a história de uma menina que tem um gosto especial
pela leitura. Descobrindo que uma colega – menina física e psicologicamente destoante do grupo, filha
de um livreiro - tem à sua disposição (e não lê) As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, a
personagem protagonista enche-se de esperança ao saber que lhe seria emprestado. Vai à casa da
“amiga” e tem a inesperada informação de que o livro já havia sido emprestado para outra colega. A
partir daí, a protagonista passa a ir diariamente à residência da filha do livreiro, sempre com a inocente
expectativa de obter o tão sonhado livro, porém, a cada dia, lhe é dada uma desculpa e lhe é dito para
retornar, no dia seguinte.
O tempo vai passando e a antagonista tranquilamente desenvolve seu plano de possuir a
menina sob seu controle; joga com sua esperança e usa como arma tão somente a probabilidade de
empréstimo de um livro, cuja aquisição foge às possibilidades da protagonista.
Depois de vários dias, a mãe da antagonista, percebendo a presença de uma menina,
diariamente à porta de sua casa, desconfia e toma conhecimento da crueldade que sua filha vem
fazendo. Desmascara-a, dizendo que o livro sempre estivera em casa. Refazendo-se do choque pela
“[...] descoberta horrorizada da filha que tinha” (LISPECTOR, 1998, p. 11)3, determina o empréstimo
do livro por tempo indeterminado.
A menina recebe o livro e não o lê de imediato, finge que não o tem, “[...] só para depois ter o
susto de o ter” (p.12). Ao abri-lo, faz a leitura aos pouquinhos, entrecortada por outras coisas; finge que
não sabe onde o guardou, para sentir o prazer de possuir o livro pelo tempo que quiser e degustá-lo
lentamente. Tudo isso lhe dá uma enorme felicidade e a consciência de que, para ela, “a felicidade
sempre iria ser clandestina [...]” (p. 12). E assim, sentada numa rede, não se vê mais como uma criança
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Nas citações a seguir, referentes à obra em estudo serão mencionadas apenas as páginas.
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diante de um livro, sonhado, mas “[...] uma mulher com seu amante” (p. 12).
“Felicidade clandestina” fala das vivências da criança, escrito para um público adulto e,
embora não fosse esse seu objetivo, não há nada que o impeça de ser lido também pela criança.
Evidente é que uma leitura feita pelo público mirim teria uma profundidade menor, mas, não há duvida
quanto à capacidade de assimilação e entendimento.
O conto, trabalhado com uma linguagem simples, encanta justamente pela naturalidade que
transmite, permitindo a apreensão de sua história, mesmo por uma criança. Ressalta-se, todavia, que,
com essa afirmação, não se está, em absoluto, reduzindo o nível de qualidade deste texto literário; ao
contrário, destaca-se a excelência de que é dotado, capaz de atingir um público de diferentes faixas
etárias.
Em seu enredo está presente a figura do jogo infantil, com uma roupagem diferente daquela
usada pela criança no seu dia a dia ou, ainda, daquela empregada na literatura infantil, como forma de
diversão e entretenimento. É um jogo visto pela personagem protagonista como perverso e desumano,
no qual a menina “[...] gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados”
(p. 9), sabendo que possui um objeto de interesse de sua colega, predispõe-se a emprestá-lo. Ela não o
nega, pois, se assim o fizesse, não haveria parceira para o jogo. Com habilidade, cria desculpas que
protelam a entrega do objeto, tendo o cuidado de não tornar impossível tal entrega, sob pena de ocorrer
abstenção ou desistência, por parte da parceira no jogo, como mostra o recorte: “Às vezes ela dizia:
pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a
outra menina” ( p. 11).
Retardando a entrega, sempre para o dia seguinte, ela mantém concentrado sobre si o interesse
da colega que, apesar de aos poucos ir desenvolvendo consciência a respeito do “[...] plano secreto da
filha do dono da livraria [...]” (p. 10), continua indo diariamente àquela casa com o intuito de conseguir
o objeto de seu prazer: o livro.
A felicidade, traduzida pelo acesso ao livro, passa a ter data marcada para acontecer,
entretanto, existe uma condicionante: sempre uma desculpa nova que impede o momento de sentir o
livro em suas mãos. Não há uma varinha mágica e, por isso, a felicidade é sempre adiada, ou melhor,
lhe é praticamente roubada, pois, a cada dia, a menina, depois de inflar-se de esperança, vai em busca
da obra e retorna, não só com as mãos vazias, mas também com o coração abatido.
Outro elemento da literatura infantil presente nas páginas do conto é a fantasia, disfarçada na
máscara de duas crianças: a menina boa, que sonha com um livro que não pode comprar e, para sentir o
prazer de lê-lo, submete-se com humildade ao jogo da menina má que, como a bruxa dos contos de
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fada, tripudia a criança inocente. As palavras da narradora ilustram o comportamento da menina má:
“[...] talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho” (p. 9).
Não é um príncipe ou a beleza da Branca de Neve que está em jogo, é um livro, cujo teor nem
é de conhecimento da menina má, mas representa um fator de domínio sobre a menina boa. Portanto
passa a ser usado como estratégia de poder e dominação, tanto quanto em qualquer conto de fada.
Sutilmente, a narradora fala da inveja, que também está estampada em muitos contos infantis,
como alavanca para desenvolvimento do tema, a exemplo da própria Branca de Neve e os sete anões. É
o que se percebe em: “Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente
bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres (p. 9.).
Mas aqui não há o herói na figura do príncipe que vem para salvar a menina boa. A heroína é a
própria mãe da menina má que, como figura materna, é vista pela criança como a personificação da
justiça, pondo fim ao desiderato cruel e fazendo a mediação entre o bem e o mal, a fim de que haja
equilíbrio: a menina má é desmascarada e, por isso, deve provar o seu próprio veneno, ou seja, o de ser
descoberta pela sua mãe; a menina boa tem a recompensa traduzida pela posse do bem, o livro que
tanto deseja, pelo tempo que bem quiser.
Como uma das características da protagonista - que normalmente aparece em histórias
infantis, como forma de estabelecimento de modelos para a sociedade vigente observa-se a humildade e
o seu desapego ao material. Tal caracter é transmitido por: “Entendem? Valia mais do que me dar o
livro: “pelo tempo que eu quisesse” é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de
querer” (p. 11).
Da mesma forma, o trecho destacado permite perceber a satisfação da garota com a vitória
alcançada sobre sua antagonista, pois esta teve que se submeter à sentença proferida por sua mãe,
proclamando o direito pleiteado e que, maldosamente, era negado pela filha.
Esta questão também sugere a seguinte leitura: se o livro lhe fosse dado estaria rompida a
relação de submissão estabelecida com sua algoz, que, deixando de ser proprietária, teria cumprido
com o castigo que lhe fora imposto. Entretanto, mantendo-a com a propriedade e a protagonista com a
posse, é como se o castigo se prolongasse, fazendo-a provar o sabor da mesma espera a que submetera
a protagonista. Dessa forma, a exemplo dos contos infantis, tem-se aqui também um prêmio ao bom, ao
justo e um castigo ao mau.
Restabelecido o equilíbrio, a protagonista, quem sabe, revelando trauma pela angustiosa
espera, passa a brincar consigo mesma de esconde-esconde, fingindo não saber onde está o livro e, com
isso, adiando a satisfação de seu prazer, a fim de obter um prazer maior, o de levar o “susto” de possuí6
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lo, quando acreditava não tê-lo.
Através da narrativa se compreende as relações que a personagem-criança estabelece com sua
realidade imediata: uma colega mesquinha que escamoteia um livro, e o mundo maior:
metamorfoseado no próprio “livro” com toda a riqueza que se espreita em cada página e que é o objeto
de seu encanto e prazer.
Por outro lado, pela expressão do desejo de ler o livro, por parte da protagonista, pode-se
inferir sobre a necessidade de alargamento de sua visão de mundo e do domínio linguístico que possui,
embora isso não se traduza em suas palavras, obviamente por uma decorrência natural da idade.
Nesse sentido, é interessante lembrar o que diz Peukert (Apud Zilberman in ZILBERMAN &
MAGALHÃES, 1982, p. 13) quanto à tarefa de preenchimento de lacunas, de função de conhecimento
da literatura infantil: “o ler relaciona-se com o desenvolvimento lingüístico [sic] da criança, com a
formação da compreensão do fictício, com a função específica da fantasia infantil, com a credulidade
na história e a aquisição de saber.”
Dentre os elementos que constituem o universo de busca da protagonista, está, também, a
ampliação de seu referencial, de seus conhecimentos. E assim, como um tributo à sua espera, sem
desistência, a personagem descobre a felicidade, mas, dado aos resquícios do sofrimento e da
humilhação passados, é sentida clandestinamente, até como única forma admissível de sentir prazer
com o livro obtido de sua algoz, pois ela, a menina boa, tinha “orgulho e pudor”, era, na realidade,
“uma rainha delicada” (p. 12). Nessas condições, nada mais natural do que sentir a felicidade
clandestina, o que, segundo ela, passou a ser a sua forma de sentir-se feliz.
Mais do que um livro, aquele, conseguido à custa de tanta paciência, humilhação e
perseverança, atingiu um status superior. Representando para a personagem mais do que As reinações
de Narizinho, simboliza até mesmo uma fase de seu próprio amadurecimento. Ela encara o livro como
uma verdadeira personificação e, como tal, lhe dá um valor especial, traduzido metaforicamente nas
seguintes palavras: “Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com seu amante“
(LISPECTOR, 1998, p. 11).
“Miopia progressiva”
Em “Miopia progressiva”, um menino míope e precoce, intencionalmente, joga com as pessoas,
modelando seu comportamento, conforme deseja ser visto: “inteligente”, “bem comportado”, “dócil”
ou até mesmo um “palhaço” ou, ainda, “triste”, o que concretamente aconteceria pelas primeiras
palavras que dissesse. Satisfaz-se em ver as reações e ouvir os elogios ou comentários a seu respeito,
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chegando ao ponto de ensaiar ou repetir suas frases que julga de maior “sucesso”.
Então, recebe a informação de que passará um dia inteiro na casa de uma prima. Sabendo que a
prima é casada e não tem filhos, considera que ficará “[...] totalmente à mercê do amor sem seleção de
uma mulher” (p. 20), o que representa, na sua visão, “[...]. uma estabilidade ameaçadora: seria
permanente, e na certa resultaria num único modo de julgar, e isso era estabilidade” (p. 21). Na semana
que antecede ao passeio, começa a levantar hipóteses a respeito do comportamento que lhe seria mais
conveniente adotar. Excitado com suas próprias ideias, passa a traçar seu perfil.
O poder de escolher como ser visto lhe confere um estranho prazer, manifestado por um gesto
que, com o correr do tempo, iria se afirmar em sua vida, o de “[...] endireitar os óculos [...]” (p. 20),
Da mesma forma, dá-lhe segurança ter a consciência de que aquilo que ele decidisse em nada
modificaria sua verdadeira essência, pois “tratava-se de criança precoce – era superior à instabilidade
alheia e a própria instabilidade” (p. 20).
Ao chegar a casa, a descrição que imaginara da prima omitia um detalhe que,
momentaneamente, desequilibra seu horizonte de expectativa: um dente de ouro. Outro bem mais
complexo, como o tratamento sem sal que lhe é dedicado, tira-lhe o entusiasmo. Sente-se, de início,
ofendido, depois, não mais. À medida que o dia vai passando, tenta aplicar sua técnica, no intuito de
parecer inteligente ou observador. Percebendo que não obtém êxito, ele decide “[...] brincar de “não ser
julgado” (p. 23).
Em meio à naturalidade da prima, o menino descobre-se amado por ela, mas sente que é um
amor diferente; “[...] era um amor pedindo realização, pois faltava à prima a gravidez, que já é em si
um amor materno realizado“ (p. 23).
O protagonista aprecia a estabilidade de sentimentos, porém não havia experimentado até,
então, um tipo de estabilidade: a “[...] do desejo irrealizável, inatingível” (p. 23). O de ser mãe. E
assim, o menino apaixona-se pela ideia do irrealizável, sendo este o ponto em que, embora sendo
míope, vence a cegueira que o impedia de ver a essência das coisas.
Neste conto, a figura do jogo infantil aparece de maneira bem explícita, mostrando ao leitor a
necessidade de uma criança de ser bem aceita no mundo dos adultos. Um leitor desavisado, à primeira
vista, poderia pensar que está diante de uma mente mirim maquiavélica, devido à habilidade do menino
em manipular as coisas e pessoas.
Conhecendo melhor a personagem, o leitor verifica tratar-se de um garoto precoce, mas
emocionalmente carente, que, para se sentir bem, precisa da aprovação do adulto. Para obter um
julgamento de valor que lhe seja favorável, pesquisa intuitivamente a maneira mais apropriada para,
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aos olhos de seu interlocutor, parecer inteligente ou comportado. A fim de desenvolver seu engenho,
lança mão do jogo, uma das atividades mais próprias da infância, não havendo necessidade do
estabelecimento de normas rígidas, como prevê a definição literal da palavra. O jogo para o menino
tem, na realidade, uma dupla face: é uma atividade lúdica, mas também um fator que determina êxito
no seu ingresso ao mundo adulto. É, pois: “[...] um modo e uma condição de realizar determinadas
ações: exploração do mundo sem obrigatoriedade, apenas pela necessidade de adaptar-se e equilibrar a
tensão” (MAGALHÃES Apud ZILBERMAN & MAGALHÃES, 1982, p. 25).
Assim, a personagem relaciona-se com o interlocutor, não como um adulto em miniatura, mas
como uma criança criativa que encontrou a fórmula de se divertir, através da brincadeira, e ser bem
sucedida num mundo competitivo, não criado pela criança, mas determinado pelas exigências do
adulto, que passa a estabelecer regras até mesmo para o convívio em sociedade, definindo padrões de
rendimento que enquadram os homens dentro de certas categorias. Prova disso é sua constatação, pelo
olhar da narradora, em relação ao outro: o adulto: “Se era inteligente, não sabia. Ser ou não inteligente
dependia da instabilidade dos outros” (p. 17).
É interessante notar a habilidade da personagem ao usar o jogo até para se autodescobrir, pois,
como criança ainda não atingira a consciência global sobre si mesma, o que é possível de se perceber
em: “Assim, pois, quando era considerado inteligente, tinha ao mesmo tempo a inquieta sensação de
inconsciência: alguma coisa lhe havia escapado. A chave de sua inteligência também lhe escapava“ (p.
17).
Por outro lado, a personagem revela o processo de socialização, no qual a criança vai se
apropriando, aos poucos, do código cultural do meio em que vive, como forma natural de sobrevivência
intelectual. Assim, ela vai internalizando os princípios, normas e leis vigentes da sociedade, num
dinamismo crescente, desde a família até os grupos mais afastados. É o que ocorre com o menino que
se exercita primeiramente na família imediata e, após, estende-se à casa da prima.
Pensar na função do jogo, dentro do universo infantil, significa compreender o papel da
brincadeira como forma de exploração do mundo ao redor e mecanismo de alcance de uma espécie de
satisfação pessoal. É o alcance de um desejo acalentado; no caso de “Miopia progressiva”, o desejo de
atingir a excelência, dentro da expectativa do adulto. Essa percepção mostra, no dizer das autoras que:
A criança joga sem pensar porque joga, mas jogando ela atinge uma
generalização do afeto. Objetos e situações do mundo real são
tomados em uma representação que permite tanto a repetição de
experiências agradáveis quanto a alteração ou reorganização de
fatos não aprazíveis numa tentativa de adaptação a eles
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(MAGALHÃES Apud ZILBERMAN & MAGALHÃES, 1982, p
26).
A personagem revela esse sentimento ao reestruturar seu comportamento, quando percebe que,
no tabuleiro armado, não há parceiro para o jogo. Como a prima não usa o mesmo código, o menino se
adapta à realidade dela e diz para si mesmo que, então, passará um dia inteiro brincando de “não ser
julgado”. Já que a prima não participa do jogo, o menino encontra uma nova maneira de continuar
jogando sem alijá-la do processo. Por outro lado também é uma estratégia de não se deixar vencer pelo
adulto que insiste em não participar da ação exploratória de seus próprios sentimentos.
Também é de se notar que o garoto possui discernimento capaz de entender que o jogo não
modifica sua verdadeira conduta; é apenas uma brincadeira, um faz de conta. E ele sabe disso: “Outra
coisa que o ajudava era saber que nada do que ele fosse durante aquele dia iria realmente alterá-lo [...]
era superior à instabilidade alheia e à própria instabilidade“ (LISPECTOR, 1998, p. 20).
É possível acreditar que a personagem já possui um referencial da ideologia vigente, recebida
através da família e das pessoas com as quais convive, o que se denota no tipo de comportamento que
ela busca espelhar. Como se vê, o menino procura apresentar um modelo socialmente aceito e
elogiável, o que corrobora com o tipo de cidadão que se quer para uma sociedade produtiva. Assim,
pelo menos em tese, até prova em contrário, é bem mais provável que a figura inteligente e
observadora, tanto quanto usufrui os bens culturais, é capaz de oferecer maior produtividade para o
sistema vigente. Portanto, é um modelo que deve ser ratificado dentro dos moldes de uma sociedade
utilitarista.
Tal referencial se expressa, também, pelas noções antitéticas de estabilidade e instabilidade,
acerto e erro, segurança e receio que giram na mente do garoto, copiadas de um modelo adulto e que
orientam seu prazer atávico em premeditar o comportamento, porque, afinal, são peças de um tabuleiro
que ele aprendeu a armar.
No fundo, a etapa da brincadeira que consiste em não ser julgado é a que oportuniza à
personagem maior liberdade, tanto que, ao imaginar que a institui, abre uma porta como se,
simbolicamente, estivesse se libertando de alguma coisa: “[...] por um dia inteiro ele não seria nada,
simplesmente não seria. E abriu a porta num safanão de liberdade” (p. 23).
Outra prova disso é que o menino só se sente amado pela prima, quando assimila a naturalidade
com que a mesma o trata, sem artifício, sem conceitos nem exagero. Ao se descobrir amado (vítima de
um “amor errado”, pois fora dos limites de suas previsões lúdicas), através de uma onisciência seletiva
da narradora, mergulha, aos poucos, na cosmovisão dos sonhos e esperanças do universo da prima.
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Nesse mergulho, envolve-se, mais uma vez, com o desejo do “outro”: a maternidade impossível da
prima. Atrai-se “[...] pela primeira vez [...] pelo extremo impossível” (p. 23).
É nesse ínterim que ele descobre o mundo real, como se vencesse a miopia que organicamente
reduz sua visão: “E foi como se a miopia passasse e ele visse claramente o mundo [...] Foi apenas como
se ele tivesse tirado os óculos, e a miopia mesmo é que o fizesse enxergar” (p. 24).
Metaforicamente, os óculos representam a maneira como o menino vê o mundo: uma
brincadeira, um jogo. Ao retirá-los, é como se pudesse, finalmente, enxergar a verdade das coisas, das
pessoas e do mundo. Essa descoberta é incorporada em seu comportamento, como um hábito que
persiste “[...] para o resto da vida: cada vez que a confusão aumentava e ele enxergava pouco, tirava os
óculos [...] fitava o interlocutor com uma fixidez reverberada de cego" (p. 24).
Conclusão
Através da análise dos contos “Felicidade clandestina” e “Miopia progressiva”, que integram a
obra Felicidade clandestina (1998), de Clarice Lispector, foi possível levantar alguns indicadores
presentes na literatura infantil, à luz dos próprios fundamentos desse ramo literário. Partiu-se,
inicialmente, do estudo de questões referentes à própria tradição pedagógica, tão arraigada na literatura
infantil, desde o seu surgimento lá no século XVIII. Verificou-se a força do didatismo e da tradição da
transmissão do modelo cultural burguês, como mecanismo de inculcação ideológica que perpassa
também o mundo infantil, num processo preparatório para a formação das consciências produtivas, no
interesse do poder político-econômico vigente.
Com essa visão, fez-se um estudo dos referidos contos, oportunidade em que se constatou a
beleza e sensibilidade de sua proposta literária que, conforme dito no decorrer do trabalho, embora
escrito para outro tipo de público, pode ser, seguramente, conhecido pela criança, ressalvada a
profundidade de sua leitura.
Os textos escolhidos trazem em suas páginas a criança como protagonista do enredo e não
figuram resquícios do didatismo, da intenção pedagógica ou da pretensão de formação de um leitor
burguês, como se observa em muitos livros infantis. Nesse processo criativo de expansão para o mundo
adulto, Lispector situa o jogo como elemento integrador das personagens num mundo cada vez mais
crescente. Assim, o jogo está presente em “Felicidade clandestina”, através da antagonista que usa de
seu poder para ofuscar o prazer da protagonista em apropriar-se de um objeto, representado por um
livro, que ela, a “menina má”, nem tem interesse em decodificar. Em contrapartida, a personagem
principal, quem sabe condicionada pelo processo vivido, entra num círculo de esconde-esconde,
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retardando o prazer de encontrar o tão sonhado livro, só para desfrutar da alegria de ter em suas mãos o
que lhe parecera impossível. Ou, a exemplo do que anuncia o próprio título, como uma forma de viver
clandestinamente a felicidade que julgara lhe ser roubada. É o jogo que se repete com uma cara
renovada, associado à atraente fantasia – ingrediente indispensável ao leitor infantil – de ver-se não
apenas diante de um livro, mas, muito mais do que isso, da essência do que ele representa para a
protagonista, transfigurado na mimese de um “amante”.
Em “Miopia progressiva”, o jogo toma novas roupagens. É a criança que, no intuito de
agradar, procura assumir o comportamento que julga ser aprovado pelo adulto.
Numa escala de valores, seria possível dizer que essa modalidade é característica do adulto
que tenta impressionar o interlocutor, a fim de atingir objetivos de ordem social, econômica ou política,
dentre outros. É, na realidade, uma amostra do que tantas vezes é feito em sociedade, onde os interesses
são outros, mas o propósito é o mesmo: ser bem aceito e, com isso, ocupar novos espaços ou, ainda,
auferir novas vantagens.
A personagem não faz outra coisa senão reproduzir comportamentos positivos, os quais, de
alguma maneira, renderão elogios ou considerações abonatórias, elevando o seu ego. Não tem, contudo,
a consciência adulta, obviamente como resultado da necessária coerência do perfil da personagem,
afinal é apenas um menino, embora precoce.
O contraponto usado pela autora reside na prima que mostra ao menino o caminho da afeição,
da naturalidade e da aceitação do outro, como pessoa e não como peça inteligente de um jogo.
Dessa forma, os contos escolhidos, a exemplo do que faz a literatura infantil, seduzem pela
linguagem narrativa, entretanto, diversamente, em sua relação com o destinatário não têm a pretensão
de se tornar didatistas ou pedagógicos, revelando a visão adulta como condutora da mente infantil. São,
pois, uma excelente proposta de leitura também para o público mirim, embora não tenha passado pelos
projetos de sua autora.
Referências
CADEMARTORI, Ligia. O que é literatura infantil. São Paulo: Brasiliense, 1986.
COELHO, Nelly Novaes. Panorama histórico da literatura infantil/juvenil. São Paulo: Quíron,1985.
LISPECTOR, Clarice. Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
ZILBERMAN, Regina & MAGALHÃES, Lígia Cademartori. Literatura infantil: autoritarismo e
emancipação. São Paulo: Ática, 1982.
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Referências consultadas
BRASIL, Assis. Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Organização Simões Editora, 1969.
COELHO, Nelly Novaes. O conto de fadas. São Paulo: Ática, 1998.
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O imaginário infantil: uma viagem pelo olhar de Lispector, por Carla