DESENVOLVIMENTO E POLÍTICAS SOCIAIS NO BRASIL CONSIDERAÇÕES SOBRE AS TENDÊNCIAS DE UNIVERSALIZAÇÃO E DE FOCALIZAÇÃO Maria Raquel Lino de Freitas RESUMO O trabalho discute os principais traços e tendências das políticas sociais brasileiras observando suas transformações no cenário de desenvolvimento econômico e político do país, bem como as suas implicações no processo de acumulação e de hegemonia. Identifica-se neste cenário uma tendência à sobreposição do caráter focalizante ou residual sobre o caráter universalizante das políticas sociais, tendência esta que mantém relação direta com o padrão de políticas econômicas impresso no país. O texto se divide em duas partes. A primeira discute o conceito de desenvolvimento numa perspectiva crítica, tomando como parâmetro o ideal de “desenvolvimento como liberdade” na ótica de Amartya Sen (2000). Para este autor, são privações de liberdade a extrema pobreza, a fome coletiva, a ausência de direitos básicos, a carência de oportunidades, a opressão e a insegurança econômica, política e social. Nesta perspectiva, a eliminação da privação de liberdades é constitutiva do desenvolvimento, configurando-se em seus próprios meios e, simultaneamente, seus próprios fins. A segunda parte discute as principais transformações das políticas sociais brasileiras no cenário de desenvolvimento econômico do país. Ressalta-se a habilidade histórica do Estado em reproduzir, mesmo em momentos de crise econômica, a hegemonia do capital, garantindo a sua legitimidade ao mesmo tempo em que sustenta o poder econômico nas mãos da elite. Ao discutir a questão da focalização e da universalização, argumenta sobre a importância de se pensar as políticas sociais no contexto de um projeto de país, reconhecendo não ser papel “exclusivo” das políticas sociais a redução efetiva da pobreza. PALAVRAS-CHAVE Estado - Desenvolvimento - Políticas Sociais - Universalização/focalização. INTRODUÇÃO O debate sobre as tendências de universalização e de focalização das políticas sociais tem sido recorrente, sobretudo no meio acadêmico e no âmbito das instituições que lidam com os processos de planejamento, implementação e avaliação destas políticas. A discussão é complexa e, em boa medida, os argumentos tem como referência as noções de direito asseguradas na Carta Constitucional de 1988. Para além da análise positiva restrita à esfera do Estado e do volume de recursos, propõe-se um olhar dialético sobre a histórica brasileira, observando o padrão de relações entre o Estado, o mercado e a sociedade que se faz presente até os dias atuais, não obstante as conquistas legais que foram consolidadas nas décadas de 1980 e 1990. OBJETIVOS Objetivo Geral Contribuir para a revisão do modo de pensar as tendências de universalização e de focalização das políticas sociais brasileiras, apontando para a importância de se transcender o espaço de reflexão circunscrito no papel do Estado, ampliando o olhar por meio de um espectro sistêmico que permita observar a relação articulada e complementar entre os condicionantes estruturais dos sistemas de proteção social, em que pese as funções da política social no bojo da contradição capital/trabalho e os condicionantes conjunturais específicos da realidade brasileira. Objetivos Específicos a) abordar de modo crítico o conceito predominante de “desenvolvimento” que orienta as análises mais recorrentes sobre as políticas sociais, e; b) discutir o papel do Estado como agente articulador da hegemonia capitalista, apontando para a influência desta dinâmica na conformação do padrão predominante das políticas sociais brasileiras. METODOLOGIA Parte-se do pressuposto de que as forças que influenciam o processo de definição dos diferentes modelos de políticas sociais emergem do padrão de relações que se estabelece entre a sociedade, o mercado e o Estado, em que pese a tradição histórica deste padrão e a estrutura capitalista do sistema. Nesta perspectiva, a conformação do caráter das políticas sociais não se define somente pela força da lei ou pela afirmação positiva de que o Estado seria o garante de cidadania, mas pela dinâmica da sociedade organizada no sentido de processar o controle sobre o Estado e o mercado, segundo Polanyi (2000), as duas funções vitais da própria sociedade. Fundamenta este pressuposto os escritos de Karl Marx destinados à contribuição para a crítica da economia política, onde o autor apresenta o fio condutor do seu pensamento que fora posteriormente desenvolvido nos estudos sobre o capital. Parte da idéia de que não é a vontade dos homens que dá ao Estado a sua estrutura, mas sim a situação objetiva das relações entre eles. Antonio Gramsci acrescentou ao marxismo a idéia de ação política como prática advinda de uma esfera denominada sociedade civil, em relação constante com o Estado. O conceito de “Estado ampliado” em Gramsci é tomado como uma importante referência para a análise aqui pretendida. O conceito de desenvolvimento é abordado numa perspectiva crítica à ótica tradicional da economia que o considera como processo circunscrito na esfera econômica, como um conjunto de finalidades “em si”, orientado tão somente pela magnitude das taxas de crescimento e pela versão comum da “teoria do crescimento do bolo”. Argumenta-se que este conceito de desenvolvimento não sustenta a necessidade de uma abordagem complexa e sistêmica que inclua as políticas sociais no cenário global, destituídas da pretensão de combater “por si só” as diferentes formas de pobreza e a desigualdade, provenientes da ação do mercado. Lembrando Logue (1979) apud Esping- Andersen (1991), o Estado tenta reduzir as desigualdades por meio das políticas sociais após a distribuição da renda efetuada pelo mercado, de onde se conclui que quanto mais desigualdades o mercado gerar, maiores deverão ser os esforços do Estado em direção às tentativas de minimização destas desigualdades causadas pelos critérios de distribuição de renda. RESULTADOS 1. Sobre o Conceito de Desenvolvimento Levando em conta que as políticas sociais têm função estratégica no bojo da contradição capital/ trabalho, os traços e as tendências predominantes destas políticas podem influir e serem influenciadas pelo padrão de relações existente entre o Estado, o mercado e a sociedade em diferentes conjunturas. A análise do modelo de desenvolvimento econômico, na sua relação com o Estado e com a sociedade é, portanto, essencial para se pensar os meios para a conformação de novos rumos para as políticas sociais. Considerando os determinantes históricos, acredita-se que a reflexão sobre novos rumos para as políticas sociais deve ser feita no âmbito de um novo projeto de país orientado por um novo padrão de relações entre Estado e sociedade na perspectiva gramsciana de "Estado ampliado”. Importa focalizar o movimento de correlação de forças hegemônicas e contra-hegemônicas processadas por meio de projetos individuais e coletivos, buscando identificar a potencialidade capaz de fazer emergir uma nova consciência que se materialize na prática política em constante relação com o desenvolvimento econômico. Para iniciar a discussão sobre o conceito de “desenvolvimento” tomar-se-á como referência a idéia de “desenvolvimento como liberdade” trabalhada por Amartya Sen (2000). Argumenta o referido autor que a eliminação de privações de liberdades substanciais são constitutivas do desenvolvimento, sendo estas a pobreza extrema, a marginalização social, a carência de oportunidades, a opressão e a insegurança econômica, política e social, enfim, a ausência de liberdade de escolhas e de oportunidades das pessoas para exercer sua condição de agente. Entende-se que os processos de eliminação dessas privações de liberdades são também processos fundantes do desenvolvimento. A liberdade é considerada, então, simultaneamente, como o principal fim e o principal meio de desenvolvimento. Deve-se reconhecer a existência de um dilema estrutural embutido no conceito de desenvolvimento de Amartya Sen, pois, levando em conta que o capitalismo se orienta pela lógica da acumulação, não há como refutar o pressuposto de que no sistema capitalista de produção o mercado não se permite ser meio, já que ele é o seu próprio fim. Entretanto, a contribuição maior deste conceito para a análise que se pretende neste trabalho é o significado de um reforço teórico ao ideal de desenvolvimento ancorado na equalização de oportunidades, em contraposição ao modelo histórico predominante de desenvolvimento econômico no Brasil, que tem como marca maior a exclusão como elemento vital do seu dinamismo. Como um “fim em si mesma” a economia brasileira se desenvolve, à revelia das seqüelas que corroem o tecido social, sendo, a partir deste contexto planejadas as políticas sociais de caráter predominantemente focalizador. A idéia de desenvolvimento como liberdade não tem possibilidade de aproximação comparativa com a idéia de desenvolvimento referenciada nos ideais liberais do final do século XVIII, na atualidade, vigorosamente reencarnados em nível mundial na estrutura do projeto neoliberal. Enquanto os ideais liberais vinculam-se aos princípios da liberdade do movimento de mercado tomando o Estado como árbitro da sociedade a favor da acumulação do capital, o desenvolvimento como liberdade vincula-se aos princípios da equalização de oportunidades, reconhecendo que o Estado, por meio do poder político de suas diferentes jurisdições em diferentes localidades pode criar um ambiente jurídico-institucional e de infra-estrutura mais favorável para um tipo de desenvolvimento ancorado nos processos de participação social. Se for o caso de se pensar as políticas sociais sob o ponto de vista da liberdade como a perspectiva norteadora do processo de desenvolvimento, há que se levar em conta um duplo dilema: um de natureza estrutural, e outro, especificamente no caso brasileiro, de natureza política, referindo-se ao papel do Estado na sua relação com a dinâmica social. Sobre o primeiro, pode-se dizer da existência de um denominador comum nos diferentes modelos de proteção social, sendo este o reconhecimento de que é após a distribuição da renda efetuada pelo mercado é que o Estado tenta reduzir as desigualdades causadas pela ausência de equalização de oportunidades efetuada pelo mercado. Sobre o segundo, levando em conta a especificidade do Estado brasileiro neste contexto, pode-se perceber quase toda a origem do agravamento do problema, devido ao alto nível de desigualdade que é gerado pelo mercado, e, em contrapartida, a notável ineficácia do Estado na implementação de políticas sociais compatíveis com a necessidade de minimizar tais desigualdades. No caso brasileiro, a dinâmica econômica vem sendo reinterpretada desde a década de 1930 sob a orientação do modelo dual sociedade moderna/sociedade tradicional, por onde se crê que a sociedade passava por uma situação de atraso (ou subdesenvolvimento) para a situação de desenvolvimento como um ciclo de etapas. Nesta perspectiva, vem-se trabalhando com o pressuposto de que as passagens de um ciclo a outro são inteligíveis economicamente “em si”, proclamando a idéia de que o bom caminho que toda nação deveria seguir para se desenvolver é passar de uma sociedade tradicional para uma sociedade de consumo de massa. Em contraposição ao modelo dual, a análise de Francisco de Oliveira (2003), sob um enfoque dialético, demonstra que a transição do modelo de produção agrárioexportador para o modelo industrial se deu de modo complementar, mostrando uma simbiose e uma organicidade como uma unidade de contrários. Cita o autor: A expansão do capitalismo no Brasil se dá introduzindo relações novas no arcaico e reproduzindo relações arcaicas no novo. A introdução das relações novas no arcaico libera força de trabalho que suporta a acumulação industrial-urbana e em que a reprodução das relações arcaicas no novo preserva o potencial de acumulação liberado exclusivamente para os fins de expansão do próprio novo. (Oliveira:2003, p.60) De fundamental relevância é o reconhecimento de que o ator principal deste elo orgânico foi o Estado de caráter populista. O populismo brasileiro teve especificidades no processo de expansão do sistema, a exemplo das leis trabalhistas que criaram novas formas de relação entre o capital e o trabalho, estabelecendo a forma de junção entre o arcaico e o novo. Outra especificidade foi o pacto que o Estado estabeleceu com os distintos mas não antagônicos setores da economia. A legislação trabalhista, muito antes de afetar as relações de produção agrária, preservou um modelo de acumulação adequado para a expansão industrial. Vale ainda ressaltar que a partir dos anos 1950 o Estado estabeleceu em termos claros um programa geral para atrair a iniciativa privada, como base do desenvolvimento econômico. Identifica-se nitidamente, como especificidade do caso brasileiro, o Estado na posição de manipulador de incentivos da acumulação do capital e não de controlador de decisões orientado pelos interesses do bem-estar social. Esta situação inverte a tese de Karl Polanyi (2000) que supõe a economia e a política, supostamente o mercado e o Estado as duas esferas vitais da sociedade, devendo portanto, por ela serem controlados. No Brasil, há uma tradição da apropriação da esfera social pela esfera econômica, apropriação esta historicamente legitimada pela esfera política. Considerando a forte presença destas tendências históricas no sistema brasileiro, as políticas sociais inserem-se, portanto, em um contexto onde os interesses do capital se legitimam na esfera pública. O ideal de um modelo de desenvolvimento como liberdade, ancorado na equalização de oportunidades e mediado por um Estado provedor de um ambiente jurídico-institucional e de infra-estrutura que se confronte com os interesses do capital a favor do bem estar social necessita de uma perspectiva sistêmica que considere que não constitui papel isolado e exclusivo das políticas sociais combater a pobreza por meio de políticas focalizadas. De igual modo, as análises sobre os dilemas de implementação das políticas de caráter universal e redistributivo, de acordo com a Carta Constitucional de 1988, necessitam de um paradigma mais relacional sobre as diferentes esferas do sistema do que pontual, com enfoque exclusivamente voltado para o papel do Estado enquanto agente “garantidor” e “por si” dos direitos sociais. 2. Especificidades das desenvolvimento Políticas Sociais Brasileiras no contexto do Esta parte objetiva discutir as políticas sociais brasileiras numa perspectiva histórica, observando suas transformações no cenário de desenvolvimento econômico e político do país, bem como as suas possíveis implicações no processo de acumulação e de hegemonia. Identifica-se neste cenário uma tendência à sobreposição do caráter focalista ou residual sobre o caráter universalizante das políticas sociais, tendência esta que mantém relação direta com o padrão de desenvolvimento econômico do país. Observa-se no Brasil um quadro de pobreza global no contexto de uma secular convivência com o drama da desigualdade, não obstante os períodos de crescimento econômico continuado que ocorreram no país a partir de 1930. Nesta década, a hegemonia do modelo agrário exportador inicia um processo de metamorfose que, ao gestar em seu próprio núcleo elementos do modelo urbano-industrial, sem perder o controle do padrão de dominação econômica e política, vai redefinindo os traços do modelo econômico que irá se configurar na nova hegemonia do modelo urbanoindustrial, alcançando suas bases de consolidação no período de 1950 a 1970. Desde o período colonial, o Estado brasileiro desenvolveu ações fragmentadas na área social. A assistência ficava a cargo de irmandades religiosas, das sociedades de auxílio mútuo e às Santas Casas de Misericórdia (Carvalho:2004). A partir de 1930, no contexto da política populista de Getúlio Vargas, surge um moderno Estado de Bemestar social. Entra em cena a Previdência social com os seus mecanismos de controle das classes subalternas e principalmente das classes operárias, tentando superar a crise de hegemonia que vinha sofrendo o Estado oligárquico. Neste período criou-se o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e uma vasta legislação trabalhista e previdenciária. A integração corporativista da Previdência Social no cenário político já era um meio de incentivo e fortalecimento dos mecanismos do mercado, facilitando, desse modo, a realização econômica do liberalismo no Brasil. Na década de 1970, com o projeto desenvolvimentista em evidência, a noção de progresso e de crescimento econômico mantém a hegemonia do modelo urbanoindustrial, aguçando a contradição capital/trabalho, fazendo emergir um cenário social caótico, sobretudo nos grandes centros industriais como a capital de São Paulo. Na década de 1980 a hegemonia deste modelo de acumulação convive com uma significativa expressão contra-hegemônica da sociedade civil que se manifesta por meio de movimentos sociais e demais formas de organização e participação política. Esta década foi denominada pelos economistas da época de “década perdida”, devido ao decréscimo do índice do Produto Interno Bruto concomitante à emergência de um processo de redemocratização, sobretudo a partir da Nova República. Os anos 90 iniciam com a marca do neoliberalismo com sua proeminente força ideológica, não encontrando dificuldades para fortalecer a hegemonia do modelo de acumulação até então vigente. Segundo Draibe (1992), o período que compreende os anos de 1964 a 1977 é identificado como o período da consolidação do sistema de proteção social, superando a forma fragmentada e a sociabilidade seletiva do período anterior, abrindo espaços para tendências universalizantes e políticas de massa com uma cobertura relativamente ampla. A autora conclui, a partir de tais características, que, até meados de 1970, o padrão das políticas sociais brasileiras poderia ser classificado como meritocrático particularista, reproduzindo o sistema de desigualdades sociais já existentes, com aspectos redistributivos e igualitários restritos à educação básica e à saúde de emergências. No final da década de 1970 e a partir de 1980 os programas assistenciais voltam-se para a “distribuição gratuita de bens e serviços sociais”, atribuindo a estes programas o estigma de “face pobre da política social”, fértil campo para as práticas assistencialistas e clientelistas. Sonia Draibe (1992) construiu possíveis cenários de desenvolvimento da proteção social brasileira a partir de 1990, compondo três quadros que os descreve: . mínima proteção social - prevê a manutenção do atual padrão meritocrático particularista; . reversão conservadora - indica um processo de regressão a um padrão seletivo ou residual de proteção social; . nova proteção social - um “ambicioso programa de supressão da pobreza”, atuando em duas pontas: mínimos sociais universalizantes garantidos e focalização sobre as camadas carentes da população. A partir deste cenário de possibilidades, Draibe concluiu que não haveria indícios de implantação de um modelo universalizante, com base na constatação de que a especificidade que diferencia o padrão das políticas sociais brasileiras dos demais padrões de países capitalistas desenvolvidos, é exatamente o papel do Estado. A tendência histórica sinaliza que o estado brasileiro não conseguiria, ao contrário do exemplo de outros Estados controlados democraticamente pela sociedade civil, na década de noventa, desenvolver o necessário esforço da capacidade de coordenação e controle das políticas de bem-estar social, de modo a implementar os princípios universais e redistributivos assegurados na Constituição Brasileira de 1988. Na década de 90, a hegemonia do modelo neoliberal revaloriza o setor voluntário da sociedade. Emerge um novo modelo de proteção social, instituído como um arranjo plural ou misto em que ocorreria a desresponsabilização do Estado sem a diminuição do nível de bem-estar. Este modelo se desenvolve numa perspectiva de “sociedade de bem-estar”, em contraposição a de um Estado de bem-estar (Pereira:2003). O Estado passa a dividir com a sociedade civil as suas responsabilidades sociais, sob a égide do discurso de participação e de solidariedade. Entram em cena vários atores como a família, as organizações sem fins lucrativos, ONGs e organizações filantrópicas como agentes do bem-estar. O principal impacto desse modelo plural ou misto é a tendência ao desmonte dos direitos sociais e a diminuição da responsabilidade do Estado com relação às políticas sociais, concomitante à crise do Welfare State face à globalização e à crise da sociedade do trabalho como um fenômeno que resulta na incapacidade do Estado de ser o garantidor da solidariedade e o reparador das disfunções sociais. Carlos Montaño (1999) chama a atenção para a força ideológica do projeto neoliberal, que, na nova fase da expansão financeira, tenta encobrir a estrutural diferença entre a lógica do mercado e a lógica da sociedade civil, como se o compromisso empresarial fosse, em primeiro lugar, o do atendimento às necessidades sociais, tentando substituir o conceito gramsciano de “sociedade civil” enquanto arena de luta de classes e momento constitutivo do Estado ampliado, pelo que se nomeia de “terceiro setor”. No caso brasileiro, à luz da teoria desenvolvida por Sônia Draibe, percebe-se que a década de noventa reforçou os impulsos do padrão seletivo ou residual de proteção social que compõe o quadro da reversão conservadora. A tendência ao modelo de políticas sociais universalizantes vem sofrendo sucessivos ataques pela ofensiva neoliberal, materializada no modelo plural ou misto de bem-estar social que vem sendo implementado no Brasil. De acordo com Theodoro e Delgado (2003), a política social é hoje composta por um amplo conjunto de políticas, programas e ações, agregadas em três grupos: a) aquelas que respondem pela garantia dos direitos sociais básicos estruturados no aparelho do Estado; b) aquelas que, diferentemente do primeiro grupo, dependem da iniciativa dos governos por meio de ações e programas temporais, e; c) aquelas que correspondem a situações emergenciais e a projetos transitórios, e que, em geral, atendem a uma ampla e difusa demanda social ainda não estruturada no aparelho de Estado. Esses três agrupamentos expressam o desenho da política social, conjugando de forma diferenciada, o atendimento a direitos, a garantia de oportunidades e o enfrentamento de situações de vulnerabilidade social. Pode-se perceber o cenário de complexidade em que se coloca a discussão sobre focalização e universalização. Boa parte dos autores que discutem sobre a importância de se implementar políticas sociais focalizadas, se orienta pelo argumento do melhor nível de eficiência e eficácia na alocação dos recursos e pretensão de redução da desigualdade e da pobreza. Este argumento se insere numa visão economicista arcaica, que desvincula a estrutura econômica da estrutura política, reforçando o pressuposto de que é após a distribuição de renda efetuada pelo mercado é que o Estado tenta reduzir as desigualdades por meio das políticas sociais. Para Theodoro e Delgado (2003) o enfrentamento do dilema da alocação do recurso é fundamental para a implementação de políticas sociais inclusivas e universais, entretanto, observam que o desafio maior é forjar um novo regime fiscal e tributário capaz de arcar com um projeto distributivo e de desenvolvimento. Ao reconhecerem que não constitui papel exclusivo da política social a redução efetiva da pobreza, acenam para a importância de um novo projeto de país. A construção de um novo regime fiscal e tributário inserido em um projeto mais amplo, ou como os autores acima referidos denominam, “um novo projeto de país”, integra necessariamente um novo conceito de desenvolvimento. O conceito de desenvolvimento como liberdade poderia ser apontado como uma referência interessante, sobretudo porque reconhece que a pobreza deve ser vista como a privação de capacidades básicas, e não meramente como baixo nível de renda. Se a renda é um meio fundamental para se obter capacidades, a redução da pobreza da renda, não pode, em si, ser a motivação suprema de políticas de combate à pobreza. CONCLUSÕES Na conjuntura histórica brasileira identifica-se o desenho de uma situação que vem se definindo e se reafirmando desde a década de 1930, não obstante as mudanças nas esferas políticas e econômicas brasileiras. Este desenho pode ser visualizado pela identificação do perfil de um Estado hábil no seu papel de articulador de hegemonia combinado a um padrão de políticas de desenvolvimento ancorado essencialmente na lógica da acumulação do capital e a uma sociedade com marcadas características de subserviência aos poderes oficiais instituídos pelas camadas dominantes e de comprometida condição de participação em projetos coletivos. O sistema de proteção social brasileiro apresenta uma tradição histórica de tendência focalizante e convive, na atualidade, com a proposição universalizante introduzida na constituição brasileira de 1988. Prevalece a tendência da focalização no modo de implementação dos programas e serviços, enquanto o discurso oficial aponta para a universalização e o “combate à pobreza”. As políticas sociais brasileiras não integram um projeto nacional amplo que inclua um regime fiscal e tributário capaz de arcar com um projeto de desenvolvimento mediado pela equalização de oportunidades. Na perspectiva da focalização, as políticas sociais tendem assumir a função de “gestão da pobreza e da miséria” (Theodoro e Delgado:2003), atuando após o mercado, como forma de oferecer paliativo para as distorções sociais geradas na esfera econômica. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CAMARGO, José Marcio. Focalizar versus universalizar. In: Políticas sociais: acompanhamento e análise. Brasília: IPEA, Agosto/2003. CARVALHO, Murilo. Cidadania no Brasil: um longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. DRAIBE, Sônia Miriam. Brasil: o sistema de proteção social e suas transformações mais recentes. Biblioteca NEPP, julho de 1992. ESPING-ANDERSEN, Gosta. As três economias políticas do Welfare State. Revista Lua Nova, n.24, 1991. MARX, Karl. 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