A importância da linguagem no desenvolvimento psíquico do indivíduo
Ana Catarina da Costa Barros
Santa Casa da Misericórdia de Lisboa
Isa Margarida Vitória Severino
Instituto Politécnico da Guarda
A linguagem representa um papel fundamental na interacção do ser
humano com o meio e subsequente formação de vínculos. Permite ao indivíduo
estruturar o seu pensamento, traduzir o que sente, expressar o que já conhece e
comunicar com os demais.
As dificuldades manifestadas por alguns indivíduos ao nível da aquisição
e/ou domínio da linguagem remetem para repercussões profundas a outros
níveis, nomeadamente ao nível da comunicação e consequentemente da
sociabilidade.
Pessoas com transtornos específicos de linguagem tendem a encontrar
dificuldades ou limitações na sua vida social. Esta situação pode suscitar
problemas emocionais secundários, gerados pelas próprias dificuldades de
comunicação, pois são, tendencialmente, mais isoladas, menos interactivas,
mais ansiosas e, acima de tudo, menos confiantes na comunicação.
Neste trabalho, e atendendo ao contexto profissional das intervenientes,
apresentam-se exemplos de alterações da linguagem – afasia e gaguez. No que
respeita à gaguez, pretende-se abordar este tipo de alteração da linguagem
falada, à luz dos aspectos psicológicos que podem estar envolvidos. Este
problema será ilustrado com um caso clínico em que a gaguez surge como
expressão de um conflito na relação com as figuras parentais, nomeadamente
uma vivência de abandono materno.
1. Introdução
Neste congresso dedicado à Aquisição da Linguagem, muitas considerações já
foram tecidas sobre o tema. Apesar de a Linguagem ter sido já objecto de várias
investigações, continua a suscitar muito interesse razão por que se prossegue ainda o seu
estudo e se promovem espaços, como é o caso deste congresso, destinados à reflexão e
promoção de debates sobre esta questão.
As reflexões em torno deste tema não se esgotam no tempo, bem pelo contrário. A
Linguagem mantém uma relação estreita com o pensamento, possibilita a transmissão de
estados de alma, sentimentos, a aquisição e expansão de novos conhecimentos, razões que
justificam o interesse de diferentes ramos da ciência, nomeadamente a Linguística, a
Psicologia, a Psicanálise, a Pedagogia, a Filosofia, entre outros.
Assim, pretendemos fazer uma incursão pelo tema deste congresso, de modo a
reflectir sobre a relação que a linguagem estabelece com o pensamento e, fazendo jus ao
título da comunicação, o modo como influi no desenvolvimento psíquico do indivíduo.
Por fim, analisaremos as causas subjacentes às dificuldades sentidas ao nível da
aquisição/domínio da linguagem e as respectivas repercussões.
2. Aquisição da linguagem.
Recordando sumariamente as principais teorias da aquisição da linguagem
defendidas por Chomsky, Piaget e Skinner, encontramos diversas dimensões que a
atravessam, salientando-se o enfoque entre inato e adquirido (Parot, 1978:115-124).
Chomsky defende que o que constitui o motor do desenvolvimento da criança são
as suas estruturas inatas. Piaget encontra na evolução cognitiva o veículo para a evolução
da linguagem, descrevendo o modo como, por mecanismos de assimilação e acomodação,
o sujeito atinge fases ou estados de equilíbrio. Na concepção de Skinner, o meio tem um
papel central na explicação dos comportamentos, sublinhando a importância do
condicionamento operante.
Encontramos também na relação do sujeito com o outro, enquanto ser social, uma
base fundamental para o desenvolvimento da linguagem. No que respeita ao acesso à fala,
a relação precoce mãe/criança adquire um lugar fundamental.
Annie Anzieu (1979:121), situando-se no ponto de vista psicanalítico, comenta que
a criança tem acesso à fala “através de toda a dialéctica do desejo que endereça à mãe, e
do desejo em que a mãe o mantém”. A autora prossegue, referindo que a linguagem resulta
destes investimentos recíprocos entre um e o outro, já que a criança começa por ser
banhada pela voz da mãe, depois pelas outras vozes que a rodeiam, assim como o é pelo
acto da amamentação, pelos barulhos que ouve, pelos objectos que vê. Dificuldades nesta
interacção traduzem a maior parte das alterações da linguagem na criança, tanto na sua
forma oral como na escrita.
Assim, segundo pensamos, as perturbações de aquisição da linguagem na criança
estão em estreita ligação com a problemática afectiva.
A intervenção nestes casos beneficia de ser trabalhada de forma multidisciplinar e
adaptada a cada criança. Neste âmbito incluem-se a terapia da fala, a psicoterapia (esta
com vista à prevenção e tratamento de problemas emocionais associados), um adequado
enquadramento escolar, entre outras respostas. Sempre que necessário deve-se recorrer a
técnicas de comunicação total e linguagem gestual, na medida em que facilitam a
linguagem oral e não prejudicam o seu desenvolvimento.
2. Linguagem, expressão de pensamento.
A aquisição da linguagem, nas suas diferentes formas, permite-nos expressar os
pensamentos, manifestar os anseios e emoções e processa-se em simultâneo com o
desenvolvimento do pensamento, uma vez que, de acordo com Davidson, “falar é
expressar pensamento”. Aprendemos a pensar à medida que aprendemos a expressarmonos nas diferentes linguagens. O processo existente entre o desenvolvimento do
pensamento e da linguagem encontra-se, assim, relacionado.
A primeira função da linguagem consiste em possibilitar ao Homem o exercício da
faculdade de pensar. Para além de ser encarada como instrumento do pensamento, a
linguagem deve ser entendida como matéria do próprio pensar, uma vez que constitui o
meio de comunicação humana que estabelece a mediação entre o homem e o mundo e a
matéria do próprio pensar. Herculano de Carvalho considera que a Linguagem tem uma
função «interna», dado que «o conhecimento é algo que se realiza no interior do próprio
sujeito falante» e acrescenta:
“Esta função interna, que consiste no conhecimento, deve considerar-se a função
primária quer do ponto de vista do sujeito falante quer sob a perspectiva da própria
comunidade” (Carvalho, 1967:34).
A complexidade das relações sociais implica a criação de um processo de
simbolização capaz de viabilizar a cooperação e a comunicação entre os vários indivíduos.
As trocas que entre eles se estabelecem, a necessidade de designar realidades, de planificar
tarefas, transmitir informações, são factores que concorrem para o desenvolvimento da
linguagem. A linguagem é, para além de um instrumento de comunicação da sociedade,
um veículo transmissor de valores culturais que caracterizam essa mesma sociedade.
Podemos encontrar, também, dentro da perspectiva e técnica psicanalítica esta
estreita interacção entre pensamento e linguagem. Quando o indivíduo é convidado a
associar livremente as suas ideias no divã, esta dinâmica vai permitir a organização do
pensamento através da linguagem e assim aceder ao seu inconsciente, permitindo ao
paciente e ao analista a compreensão profunda das motivações subjacentes ao sujeito.
3.1. Linguagem, expressão de pensamento?
André Joffily Abath, porém, questiona, ou mesmo refuta esta ideia, na sua
dissertação de mestrado Linguagem e pensamento: da herança behaviorista a um ponto de
vista inatista, considerando que:
“as vítimas de afasia sofrem de um profundo retardamento, mas mantêm as
faculdades linguísticas intactas. Não são capazes de realizar tarefas ordinárias:
arrumar um sapato, pegar num copo, mas mantêm um discurso fluente” (Abath,
2002: 83).
Para Abath estes argumentos contrariam a ideia defendida por Davidson, uma vez
que argumenta que a linguagem não é condição necessária para o pensamento.
Mas será que podemos ser tão contundentes no que concerne a esta questão?
3.1.1. Relato de um caso.
Tomemos o exemplo de um episódio verídico que suscitou a escrita de um relato
autobiográfico, vivencial, por que passou o escritor José Cardoso Pires. O autor expõe em
De Profundis Valsa Lenta a história de um José diferente de si.
É curioso perceber, quer pela própria história quer pelas ilustrações que lhe servem de
suporte, a imagem que este eu apresenta de si, ou de um eu transfigurado. Por todo o relato
perpassa a ideia de um sujeito alheado, sem referências e sem vontade. Esta mesma ideia
tem representação no desenho de Mário Eloy que figura na capa da obra e ilustra a
imagem de um ser decapitado e amordaçado pela incapacidade de expressão e de
pensamento.
Desenho de Mário Eloy
As alterações desencadeadas pelo cérebro “desgovernado” alastram-se e aniquilam as suas
faculdades – o poder de se exprimir, de comunicar e de se relacionar –, como explica
António Lobo Antunes, o neurocirurgião que o acompanhou, na “carta a um amigo- novo”:
“O grande choque para mim foi o seu discurso. Não havia dúvida. O José
Cardoso Pires sofria de uma afasia fluente grave, ou seja não era capaz de
gerar palavras e construir as frases que transmitissem as imagens e os
pensamentos que algures no seu cérebro iam irrompendo. A sua fala era um
desconsolo: atabalhoada, incongruente, polvilhada de parafasias – palavras em
que os fonemas estavam parcial ou totalmente substituídos. Sem fala, escrita e
leitura, a Agência Lusa foi peremptória: morte cerebral, diagnóstico
escandalosamente errado do ponto de vista médico, mas humanamente
certeiro” (Pires, 2000: 12).
Assim, atendendo ao episódio narrado, e ao próprio conceito de afasia1, definido como:
1. “indecisão de ânimo perante um obstáculo, caracterizada pela dificuldade em
falar ou em afirmar alguma coisa”;
2. “perturbação ou perda completa ou parcial da capacidade de falar, de
compreender a língua falada ou escrita devido a lesões dos centros nervosos
cerebrais.”
Será que ainda podemos considerar, indo ao encontro de Joffily Abbath que “as
vítimas de afasia (…) mantêm as faculdades linguísticas intactas”?
José Cardoso Pires, apesar de ter os sentidos obliterados, manifestou, em
determinadas ocasiões, relutância em comunicar:
“porque muitas vezes cortava as frases ou parava de se exprimir fazendo um gesto
de desistência com um sorriso de resignação. Deixem não vale a pena, era o que
aquilo significava” (Pires, 2000: 28).
À semelhança do escritor, também os indivíduos com dificuldades na
aquisição/domínio da linguagem manifestam dificuldades ao nível da comunicação e
consequentemente da sociabilidade. Revelam um elevado índice de ansiedade, aliado à
falta de confiança, como poderemos constatar por alguns exemplos que de seguida
abordaremos.
4. Perturbação da aquisição da linguagem: o caso da gaguez.
A História é fértil em exemplos de homens famosos, de entre os quais podemos
encontrar casos de gaguez. Demóstenes, o grande orador ateniense, é um deles. Para
corrigir a sua gaguez, declamava longas tiradas com a boca cheia de pedrinhas e
discursava diante das ondas do mar para se habituar ao barulho das multidões.
1
Cf. Dicionário da Língua Portuguesa, Academia Real das Ciências, Lisboa, I vol., p.100.
João do Santos, psicanalista com notável contributo na área da educação, fez
reflexões várias sobre a gaguez, chamando a atenção para as frequentes tentativas de
correcção desta dificuldade, tais como falar devagar, pensar bem antes de falar, entre
outras recomendações. Na sua intervenção motivava precisamente a que a criança falasse
o mais possível.
O autor equacionava a gaguez como o medo de falar, medo de gaguejar. Assim,
considerava essencial não inibir os pensamentos e não transformar a palavra na única
forma de comunicação com os outros, fomentando o livre “atirar para fora dos
pensamentos” (Santos 1988:134).
Pelas suas palavras, a propósito destes pacientes:
“Se eles pensam muito bem as palavras e fazem discursos assim um bocado
assépticos, sem emoção, procurando evitar a emoção, naturalmente há um
processo de inibição e portanto é preciso desinibir a fala e é preciso
aconselhar num sentido de uma maior liberdade de falar, de exprimir-se”
(Santos, 1990:79).
A gaguez é uma perturbação da linguagem falada, que surge por norma entre os 2 e
os 6 anos. Para o referido autor, é possível observar determinadas condições na criança
com este tipo de dificuldade: uma certa debilidade motora, algum atraso ao nível da
motricidade; uma fase de vida evolutiva, isto é, tendencialmente o grupo etário atrás
mencionado; uma certa emotividade, ou existência de episódio de choque emocional. Este
sintoma pode ver-se enquanto resultado da acção e reacção das ansiedades dos pais e da
criança, como uma espécie de expressão do conflito que há entre a ansiedade de uns e a
ansiedade de outros.
Evoquemos o exemplo clínico de uma mulher com gaguez que inicia psicoterapia
de apoio devido à sua forte ansiedade em lidar com exigências profissionais ligadas à
comunicação. Face ao sintoma, moderado, era saliente o desfasamento entre o observável
e a forma como era sentido pela própria, permanecendo o sentimento de desvalorização e a
humilhação experienciada.
À hesitação no início das palavras, juntavam-se variados momentos pessoais e
profissionais de igual descontinuidade em que frequentemente era escolhida a opção
menos favorável para si. Tratavam-se de soluções encontradas que a remetiam para um
lugar em que era maltratada, por incapacidade de atacar o objecto hostil.
De facto, tinha ocorrido uma situação de abandono materno no momento da
relação precoce mãe/bebé, momento chave das trocas linguísticas. Supõe-se que tal possa
ter gerado uma desconfiança relativamente ao outro, o qual passa a ser visto como mau.
Desta forma, expressar os sentimentos de ódio, os pensamentos e posteriormente as
palavras, não se torna possível, assim como não é possível atacar o objecto ausente e
idealizado (mãe ausente).
Indo ao encontro desta linha de pensamento, cite-se a autora Annie Anzieu
(1979:126):
“O empenho do gago em qualquer cura é uma das maiores dificuldades encontradas
nas nossas relações com estes «doentes» (…). O gago não se pode empenhar numa
relação, pelo facto de viver qualquer relação de uma forma persecutória,
perseguição”.
Nesse trabalho sobre a gaguez, inserido na obra Psicanálise e Linguagem, a autora
formula que as palavras podem ser sentidas como objectos destruidores, carregados de
agressividade. Aqui é possível fazer uma ligação à fase anal do desenvolvimento libidinal,
sendo o sintoma uma manifestação de conflitualidade anal da comunicação, consideração
que também se verifica em Teresa Ferreira (2002:158).
Face às diversas contribuições enunciadas, pensa-se que é importante, na
abordagem terapêutica desta problemática, fomentar a livre expressão de pensamentos,
processo que eventualmente fará emergir sentimentos hostis, os quais, ao se tornarem
conscientes, promovam uma transformação que impeça a auto-destruição, o voltar da
hostilidade contra o próprio.
Concluímos, voltando ao ponto de partida, que a linguagem mantém uma estreita
relação com o pensamento e, nos casos analisados, percebemos que perturbações ao nível
da linguagem têm repercussões a outros níveis, condicionando a relação do individuo
consigo mesmo e com os outros.
Nesta participação conjunta esperamos ter estabelecido, ainda que de forma breve,
uma conexão entre a linguagem e a sua importância na psique do indivíduo, à luz de vários
contributos.
Referências Bibliográficas
Abath, André Joffily. (2002). Linguagem e pensamento: da herança behaviorista a um
ponto de vista inatista. Lisboa: Faculdade de Letras.
Anzieu, Annie. (1979). “A fala, metáfora do corpo.” In Anzieu, Didier. Psicanálise e
Linguagem. Lisboa: Moraes.
Carvalho, Herculano de. (1967). Teoria da Linguagem. Coimbra: Coimbra Editora.
Chomsky, Noam. (1997). Reflexões sobre a linguagem. Lisboa: Edições 70.
Chomsky, Noam. (1971). Linguagem e pensamento. Petrópolis: Vozes Limitada.
Ferreira, Teresa. (2002). Em defesa da criança. Teoria e prática psicanalítica da infância.
Lisboa: Assírio & Alvim.
Parot, Françoise. (1978) “Algumas notas sobre as teorias da aquisição da linguagem:
Piaget, Chomsky, Skinner” in Análise Psicológica N.º1 – Outubro, 1978, 115-124.
Pires, José Cardoso. (1997). De profundis, valsa lenta. Lisboa: Publicações Dom Quixote.
Santos, João. (1988). Se não sabe porque é que pergunta? Conversas com João Sousa
Monteiro. Lisboa: Assírio & Alvim.
Santos, João. (1990). Eu agora quero ir-me embora. Conversas com João Sousa
Monteiro. Lisboa: Assírio & Alvim.
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