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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO – MESTRADO
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM DIREITOS SOCIAIS E
POLÍTICAS PÚBLICAS
Cláudia Taís Siqueira Cagliari
A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO COMO FORMA DE EFETIVAÇÃO DOS
DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES ENTRE PARTICULARES
Santa Cruz do Sul/Roma - Itália, março de 2007.
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Cláudia Taís Siqueira Cagliari
A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO COMO FORMA DE EFETIVAÇÃO DOS
DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES ENTRE PARTICULARES
Dissertação apresentada ao curso de PósGraduação em Direito - Mestrado – Área de
concentração em Direitos Sociais e Políticas
Públicas, da Universidade de Santa Cruz do
Sul - UNISC, como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em Direito.
Orientador: Prof. Dr. Jorge Renato dos Reis
Santa Cruz do Sul/Roma - Itália, março de 2007.
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Aos meus queridos pais, Cleusa e Valter Siqueira, pelo carinho e
estímulo que me ofereceram. Com eles, aprendo cotidianamente
a mais importante das lições: a lição da vida e do amor. Nada
supera o amor. “Ainda que eu falasse a língua dos homens e dos
anjos, se não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como
o sino que tine. E ainda que eu tivesse o dom da profecia, e
conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, (...), se não
tivesse amor, nada seria” (I Coríntios 13, 1-2).
Ao meu marido, Aléssio, companheiro de todas as horas, pela
paciência e pelas injeções de ânimo. Com seu carinho e
compreensão, talvez sem se dar conta, enche a minha vida de
alegria e muito contribuiu para a realização deste trabalho.
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AGRADECIMENTOS
Agradeço ao estímulo do meu querido marido Aléssio; aos meus pais, Cleusa e
Valter, que, na simplicidade, sempre estiveram disponíveis e talvez nem saibam o
quanto ajudaram. Aos meus irmãos Lucas e Luciano, pela paciência e incentivo. E
ao meu amado sobrinho e afilhado Cauan, por iluminar o meu caminho.
Sou grata aos meus professores da UNISC, pelos ensinamentos, amizade e
lições de vida. Pessoas que, por uma série de razões, jamais esquecerei.
Entre eles, agradeço especialmente à professora Doutora Virginia Zambrano,
pelo incentivo e pela aprendizagem oportunizada em sua disciplina no mestrado,
sobre o Direito Privado Constitucional Europeu.
Agradeço à professora Pós-Doutora Sandra Regina Martini Vial, pelo estímulo e
também por me ensinar que não se pode ser verdadeiramente um pesquisador sem
uma postura de humildade.
O maior acontecimento da vida é o amigo. Por isso, muito obrigada aos
afetuosos amigos do mestrado, pelo apoio e pelas redes de trocas e produções
subjetivas que desenvolvemos no decorrer do curso.
Também agradeço ao Grupo de Pesquisa “Constitucionalização do Direito
Privado”, coordenado pelo professor Dr. Jorge Renato dos Reis, da Universidade de
Santa Cruz do Sul – RS, pelas interlocuções e pelo aprendizado compartilhado.
Agradeço especialmente ao meu orientador, paciente e dedicado Professor
Doutor Jorge Renato dos Reis. Muito obrigada por ter acreditado no projeto de
pesquisa que resultou na presente dissertação. Também, pela segura orientação,
confiança e sabedoria transmitida, propiciando, dessa forma, que o presente
trabalho fosse realizado. Ficarei eternamente grata por ter me revelado o fascinante
caminho da pesquisa científica jurídica com o rigor com que esta merece ser tratada.
Deixa para mim o exemplo de um pesquisador, além de ser um brilhante
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conselheiro, extraordinário professor e amigo. Ou seja, admirável companheiro de
caminhada.
Também agradeço à CAPES – Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior – pelo necessário apoio prestado e pela contribuição para
a qualificação e transformação da educação neste país.
Enfim, a todos aqueles que, de forma direta ou indireta, acompanharam-me
neste percurso.
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O estudo do direito – e portanto também do direito
tradicionalmente definido ‘privado’ – não pode prescindir da
análise da sociedade na sua historicidade local e universal, de
maneira a permitir a individualização do papel e do significado
da juridicidade na unidade e na complexidade do fenômeno
social. O Direito é fenômeno social que precisa de cada vez
maiores aberturas; necessariamente sensível a qualquer
modificação da realidade, entendida na sua mais ampla
acepção.
(Pietro Perlingieri)
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RESUMO
Esta dissertação versa sobre a função social do contrato no Direito Civil brasileiro
contemporâneo como forma de efetivação dos direitos fundamentais constitucionais
nas relações contratuais entre particulares. A teoria contratual vem sendo atingida
em seus parâmetros e princípios norteadores, pela efetivação dos direitos
fundamentais. A partir da transformação do Estado, de liberal para social, a
autonomia da vontade, que antes norteava as relações contratuais, assume nova
concepção, ajustando-se ao fim social. Nesse campo teórico, a finalidade deste
estudo é analisar o direito contratual à luz dos princípios e garantias constitucionais,
em especial a função social do contrato, em face da constitucionalização do direito
civil, pois intensas foram as transformações, especificamente, nas relações entre
particulares consagradas, no Brasil, pela Constituição Federal de 1988. O estudo
utiliza o método hipotético-dedutivo, em que têm espaço a interpretação inovadora e
as novas abordagens jurídicas. A partir de um referencial teórico construído através
de pesquisa bibliográfica, este trabalho mostra a evolução da teoria contratual, de
uma visão liberal-individualista para uma visão social, destacada pela diretriz
constitucional da solidariedade social, anunciada como um dos objetivos
fundamentais da República (art. 3º, III, CF brasileira). Decorre disso a ingerência do
Estado na vida dos contratos, resultando em novos vértices da moderna teoria
contratual. O estudo analisa, ainda, a vinculação dos direitos fundamentais nas
relações entre particulares, desde os aspectos terminológicos, até o processo de
constitucionalização do direito privado. Os direitos fundamentais não têm como único
destinatário o Estado, mas vinculam também todos os particulares, isto é, todas as
relações contratuais devem acontecer com observância desses direitos. A partir de
tais considerações, o que se observa é que, na busca de um direito civil
contemporâneo, os contratos devem priorizar a concretização da dignidade da
pessoa humana, na plena realização do Estado Democrático de Direito, que alia a
promoção do bem-estar da coletividade à co-participação do indivíduo, superando a
fronteira entre o direito público e o direito privado. Evidencia-se que a função social
do contrato é um instrumento de efetivação dos direitos fundamentais, na medida em
que proporciona a segurança jurídica a toda coletividade, assegura o justo equilíbrio
nos negócios jurídicos e, também, implica um comprometimento dos operadores do
Direito, em especial, do poder Judiciário, na promoção dos direitos fundamentais na
concretude de cada caso.
Palavras-chave: direitos fundamentais; função social do contrato; relações
interprivadas; constitucionalização.
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RIASSUNTO
Questa dissertazione tratta della funzione sociale del contratto nel Diritto Civile
Brasiliano contemporaneo come forma di effettuazione dei diritti fondamentali
costituzionali nelle relazioni contrattuali fra privati. La teoria contrattuale sta essendo
toccata nei suoi parametri e principi che orientano, dall'effettuazione dei diritti
fondamentali. Partendo dalla trasformazione dallo Stato Liberale allo Stato Sociale ,
all'autonomia della volontà, che precedentemente orientavano le relazioni contrattuali
assumono nuova concezione, adattandosi allo scopo sociale. In questo campo
teorico lo scopo di questo studio è analizzare il diritto civile contrattuale alla luce dei
principi e garanzie costituzionali, specialmente la funzione sociale del contratto, di
fronte alla Costituzione del Diritto civile, poiché le trasformazioni sono state intense,
specificamente nelle relazioni tra privati, convalidate dalla Costituzione Federale del
1988. Lo studio utilizza il metodo ipotetico-deduttivo dove ha luogo l'interpretazione
innovatrice e le nuove relazioni giuridiche. Partendo da un punto di riferimento
teorico costruito attraverso una ricerca bibliografica, questo lavoro mostra
l'evoluzione della teoria contrattuale da una visione liberale individualista ad una
visione sociale, messa in rilievo dalla norma costituzionale della solidarietà sociale,
annunciata come uno degli obiettivi fondamentali della Repubblica (art. 3, III, CFCostituzione Federale Brasiliana ). Da questo decorre l'ingerenza dello Stato nella
vita dei contratti, da cui risultano nuovi vertici della moderna teoria contrattuale. Lo
studio analizza, in più, il vincolo dei diritti fondamentali nelle relazioni fra privati, dagli
aspetti terminologici al processo di costituzionalizzazione del diritto privato. I diritti
fondamentali non hanno come unico destinatario lo Stato, ma vincolano anche tutti i
privati, cioè, tutte le relazioni contrattuali devono accadere con l'osservanza di questi
diritti. Partendo da queste considerazioni, quello che si osserva è che nella ricerca di
un diritto civile contemporaneo, i contratti devono apporre in primo piano il
concretare la dignità della persona umana nella piena realizzazione dello Stato
Democratico di Diritto, che allea la promozione del benessere della collettività alla
compartecipazione dell'individuo, superando la frontiera tra il diritto pubblico ed il
diritto privato. Risulta evidente che la funzione sociale del contratto è uno strumento
per l'effettuazione dei diritti fondamentali, nella misura i cui proporziona la sicurezza
giuridica a tutta la collettività, rassicura il giusto equilibrio nei negozzi giuridici e, in
più, coinvolge un impegno degli operatori del Diritto in modo speciale del Potere
Giudiziario, per la promozione dei diritti fondamentali nella concretizzazione di ogni
caso.
Parole-chiavi: diritti fondamentali; funzione sociale del contratto; relazioni interprivate;
costituzionalizzazione.
8
LISTA DE ABREVIATURAS
ampl.
ampliada
art.
artigo
arts.
artigos
BGB
Bürgerliches Gesetzbuch - (Código Civil Alemão)
CC
Código Civil
CDC
Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078, de 11.09.1990)
CF
Constituição Federal
Code
Código Civil Francês
Coord.
Coordenador
ed.
edição
et al.
e outros
et seq.
e seguintes
In:
parte da obra
inc.
inciso
n./nº
número
Org.
organizador
p.
página, páginas
passim
aqui e ali; em vários trechos ou passagens
rev.
revisada
séc.
século
v.
volume
§
parágrafo
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................
10
1 EVOLUÇÃO DA TEORIA CONTRATUAL...........................................................
1.1 A Teoria dos Contratos....................................................................................
1.1.1 O conceito clássico do contrato....................................................................
1.1.2 A moderna teoria contratual..........................................................................
1.2 Os Princípios Contratuais.................................................................................
1.2.1 Princípios fundamentais do direito contratual clássico..................................
1.2.1.1 Princípio da autonomia da vontade............................................................
1.2.1.2 Princípio da força obrigatória dos contratos...............................................
1.2.1.3 Princípio da relatividade dos efeitos dos contratos....................................
1.2.1.4 Princípio do consensualismo………………………………………………….
1.2.2 A ordem principiológica informadora do direito contratual contemporâneo..
1.2.2.1 Princípio da autonomia privada..................................................................
1.2.2.2 Princípio da boa-fé objetiva........................................................................
1.2.2.3 Princípio da justiça e do equilíbrio contratual.............................................
1.2.2.4 Princípio da função social do contrato.......................................................
13
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2 CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL - A VINCULAÇÃO DOS
DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES ENTRE PARTICULARES..........
2.1 O direito civil-constitucional..............................................................................
2.2 A superação do sistema do direito privado clássico – Dicotomia: Direito
Público X Direito Privado........................................................................................
2.3 As Dimensões dos Direitos Fundamentais.....................................................
2.4 A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais.................................
3 A FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS COMO INSTRUMENTO DE
EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES
INTERPRIVADAS..................................................................................................
3.1 Constituição Federal e a Concepção Social do Contrato.................................
3.2 Função social do contrato e cláusulas gerais..................................................
3.3 A busca da igualdade substancial....................................................................
3.4 Prevalência do interesse social sobre o individual.........................................
3.5 A efetivação do princípio constitucional da pessoa humana através da
função social do contrato.......................................................................................
3.5.1 Origem e desenvolvimento do conceito de dignidade da pessoa humana...
3.5.2 Concepções do conceito de dignidade da pessoa humana e sua
efetivação através da função social do contrato....................................................
88
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136
149
150
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173
177
180
180
185
CONCLUSÃO.........................................................................................................
199
REFERÊNCIAS......................................................................................................
210
OBRAS CONSULTADAS.......................................................................................
228
10
INTRODUÇÃO
As perspectivas e os desafios das demandas sociais, cada vez mais
complexas, e o comportamento do constitucionalismo contemporâneo em face das
mesmas constituem o ponto nevrálgico das discussões no Programa de Mestrado
em Direito da UNISC, com área de concentração em Direitos Sociais e Políticas
Públicas. Dentro do referido Programa, a linha de pesquisa Constitucionalismo
Contemporâneo busca compreender o fenômeno constitucional em seu aspecto de
consolidação jurídica de garantias próprias de uma sociedade altamente complexa,
em razão da pluralidade normativa que lhe é própria.
Assim, sob os atentos olhos da contemporaneidade, esta dissertação aborda
um tema que tem assumido grande relevância nos últimos tempos – a Função Social
do Contrato como efetivadora dos direitos fundamentais nas relações interprivadas.
A finalidade deste estudo é promover a análise do direito contratual à luz dos
princípios e garantias constitucionais, em face da constitucionalização do direito civil,
pois intensas foram as transformações, em específico, nas relações privadas
promovidas com a Constituição Federal de 1988.
A teoria contratual vem sendo atingida em seus parâmetros e princípios
norteadores, pela efetivação dos direitos fundamentais. Atualmente, o contrato é,
sobretudo, um instrumento de desenvolvimento da personalidade humana, ou seja,
o trânsito jurídico de bens e interesses deixa de ser um vazio axiológico para buscar
a promoção e proteção da dignidade da pessoa humana.
Esse instituto jurídico exerce uma função social e apresenta como conteúdo
constante o fato de ser o centro da vida dos negócios. E a sua formulação obedece
a princípios básicos que constituem o alicerce de toda a teoria contratual.
A função social do contrato é um instrumento de que o sistema disponibiliza e
propicia eficácia dos valores fundamentais. Enfim, o contrato, atualmente, tem um
novo papel a desempenhar: cumprir objetivos sociais eleitos pelo sistema. Ele deve
buscar objetivos de prestígio do valor fundante da pessoa humana e ter uma
11
finalidade social e solidária, imposta pelo sistema. É de extrema importância a
necessidade da efetivação da função social do contrato, na atual conformação
constitucional, para que se realize a justiça social.
A partir de tais considerações, o que se observa é que na busca de um direito
civil contemporâneo, os contratos devem priorizar a concretização da dignidade da
pessoa humana, na plena realização do Estado Democrático de Direito.
Diante desse contexto, dispõe-se a refletir sobre a função social do contrato e a
temática de uma nova teoria contratual que busca, através desse instituto, a
realização da justiça contratual.
Esta pesquisa adota o método hipotético – dedutivo1, o qual estabelece que as
teorias sejam testadas através de hipóteses alternativas e falseáveis. O método tem
uma solução provisória, passando por uma teoria de tentativas e eliminação de
erros, surgindo, porém, novos problemas2. E como técnica utiliza-se a pesquisa
bibliográfica e jurisprudencial, contemplando doutrina nacional e estrangeira. O
referencial teórico que norteia o estudo é constituído por autores contemplados na
linha de pesquisa Constitucionalismo Contemporâneo, em especial do direito
privado, cujas abordagens oferecem subsídios teóricos para o estudo do tema
proposto, tanto nacionais como estrangeiros, muito especialmente os autores
italianos, como Pietro Perlingieri.
O presente trabalho apresenta-se dividido em três capítulos: o primeiro
contempla uma noção geral da evolução da teoria contratual desde a concepção
clássica até a moderna teoria contratual; e seus princípios norteadores,
demonstrando o auge da autonomia da vontade no modelo clássico. Analisam-se as
1
2
Conforme definição de VENTURA, Deisy. Monografia Jurídica: uma visão prática. 2. ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 78, o método hipotético-dedutivo preconiza que toda
pesquisa tem sua origem num problema, para o qual se busca uma solução através de tentativas
(conjecturas, hipóteses, teorias) e da eliminação de erros através de testes.
Portanto, a pesquisa científica que adota este método tem início com um problema, o qual deve ser
descrito de forma precisa. A partir de então, busca-se identificar outros conhecimentos e
instrumentos relevantes ao problema, que poderão contribuir para a sua resolução. Após essa
fase, o pesquisador procede à observação, testando aqueles conhecimentos e instrumentos antes
identificados. Nessa fase é observado um determinado objeto da pesquisa. Posteriormente, tem-se
a formulação de hipóteses, ou “descrições-tentativa”. Nesse contexto metodológico, têm espaço a
interpretação jurídica inovadora e as novas abordagens jurídicas.
12
transformações que ocorreram na sociedade contemporânea, pela interferência do
direito público sobre o privado, visando à socialização da teoria contratual.
O segundo capítulo aborda os direitos fundamentais, sua evolução e suas
dimensões, incluindo sua inserção no âmbito privado. Estudam-se o direito-civil
constitucional, os seus reflexos no universo contratual; as modificações no sistema
civil contemporâneo, principalmente as alterações do “direito civil clássico” em
decorrência de sua publicização e constitucionalização.
E, por fim, o terceiro capítulo tem como objeto a análise da função social do
contrato como instrumento de efetivação dos direitos fundamentais nas relações
interprivadas, destacando-se o valor fundamental do princípio constitucional da
dignidade da pessoa humana.
13
1 EVOLUÇÃO DA TEORIA CONTRATUAL
O contrato é um dos institutos3 mais antigos na história da humanidade e
passou por grandes transformações4, desenvolvendo-se de diversas formas. Esse
instituto jurídico tem fundamental importância na existência dos negócios,
considerado um instrumento necessário e indispensável à circulação dos bens.5 O
contrato jurisdiciza o elemento mais comum do cotidiano das pessoas, em todas as
épocas.
Na sociedade hodierna, o cidadão ingressa em relações contratuais para a
satisfação de suas necessidades e desejos, para adquirir e utilizar os bens da vida e
serviços. Assim, o contrato é onipresente na vida de cada um.6
Na visão do direito brasileiro, o contrato sofreu nos últimos 40 anos uma
verdadeira transformação7 institucional, notadamente com o novo Código Civil e,
3
4
5
6
7
Conforme MACHADO, J. Baptista. Introdução ao direito e ao discurso legitimador. Coimbra:
Almedina, 1990, p. 14-19, o contrato não encontra proeminência apenas na área da dogmática
jurídica, alcançando o status de instituto jurídico, mas sim, devido as suas origens sociológicas, o
de instituição, por ser figura social e pré-jurídica que antecede o Direito positivado. Não foi o Direito
que criou a instituição econômica do contrato, ter a ele conferido este nome (contrato) e suas
adjacências jurídicas. Para Machado, o contrato é instituição jurídica: "I - Na linguagem corrente Instituição designa ao mesmo tempo a ação e o efeito de instituir, sendo que instituir significa
introduzir, fundar, ordenar, construir e estabelecer qualquer coisa de estável e durável [...]. Muitas
vezes, sobretudo na linguagem jurídica, utiliza-se a palavra instituição para designar complexos
normativos que se reúnem à volta de princípios comuns e regulamentam um determinado tipo de
relações sociais (ou um determinado fenômeno social); ou, então, para designar a realidade social
que está na base de tais relações (o próprio fenômeno disciplinado pelas ditas normas) [...] A
palavra instituto também serve para designar, os locais ou centros onde determinadas actividades
se processam por uma forma organizada [...] ao seu turno, as instituições da esfera econômica
regulam a produção, distribuição e consumo de bens e serviços dentro da sociedade".
Para TELLES, Inocêncio Galvão. Manual dos contratos em geral. 3. ed. Lisboa: Lex, 1995, p. 65: "A
principal lição que se colhe da história dos contratos, o conhecimento das suas transformações por
entre as vicissitudes dos séculos, é a sua permanente vitalidade, como dúctil, como dócil
instrumento que ora se amplia ora se restringe, ora enfraquece ora adquire novo vigor, e sempre
ao homem serve para satisfazer as necessidades fundamentais da vida de relação".
MILANO, Rodolfo César; MILANO FILHO, Nazir David. Princípios contratuais à luz da Constituição
Federal. Revista da Faculdade de Direito de Guarulhos. Ano 3 – N. 5. Guarulhos: SOGE, jun./dez.
2001, p. 109, destacam que o contrato “surge como uma categoria que serve a todos os tipos de
relações entre os sujeitos de direito e a qualquer pessoa, independentemente de sua posição ou
condição social”.
THEODORO JUNIOR, Humberto. O Contrato e seus princípios. 2. ed. Rio de Janeiro: Aide, 1999,
p.11, defende que “nenhum cidadão consegue sobreviver no meio social sem praticar diariamente
uma série de contratos”. Vivemos no mundo dos contratos, sem que nos demos conta disso.
DANTAS, San Tiago. Evolução contemporânea do direito contratual. Revista Forense. Rio de
Janeiro, v. 139, jan./fev. 1952, p. 7, mencionou duas causas a influenciar a evolução da teoria dos
14
poucos anos antes, com o Código de Defesa do Consumidor. Passou de uma antiga
estruturação no pacta sunt servanda, com base caracteristicamente romano e de
cunho exclusivamente individual, que se adequava ao ideário político do liberalismo
econômico, para um desenvolvimento antagônico de preocupação social em que se
incumbiu ao Estado fazer essa prática a qual se chamou dirigismo contratual.
A moderna teoria geral do contrato abandonou as relações jurídicas individuais
e começou a atender o contratante como integrante de um todo social. Por isso, as
cláusulas deixaram de ser criação especial dos contratantes e passaram a ser
criação do legislador com a tutela de norma cogente e de preceito público. A
autonomia da vontade contratual, conseqüentemente, deu lugar à função social dos
contratos.
O contrato não é, e nem pode ser, de categoria abstrata e universalizante, de
constitutivos inalterados, devido às vicissitudes históricas. Sua definição e conteúdo
conceitual transformaram-se intensamente, seguindo as mutações de valores da
humanidade.
Assim, a partir da ideologia liberal, forma-se o que hoje se denomina modelo
clássico8 de contrato, fundado na liberdade ampla de contratação e na subordinação
absoluta aos termos da avença.
A Revolução Industrial não significou apenas a baliza de uma inédita forma de
produção de bens, mas foi também a idealizadora de uma imensa modificação na
concepção do contrato. Este não mais poderia aceitar um paradigma clássico,
formalmente igualitário e exclusivamente de ordem privada, devendo abarcar em seu
8
contratos: “o sentido solidarista, que prepondera na política contemporânea dos Estados
Democráticos, e a crescente intervenção do Estado nas relações econômicas.”
Conforme ARONNE, Ricardo. Por uma nova hermenêutica dos direitos reais limitados. Rio de
Janeiro: Renovar, 2000, p. 09, por "clássico" entende-se a base de fundamentação científica
dogmática que conformou o Direito Civil a partir do século XIX, chamada civilística clássica. Tal
vertente construiu um Direito Civil identificado com o sentido de codificação - fechado - a partir de
uma pirâmide abstrata de conceitos dos quais derivam as regras positivadas, visando à proteção
de seus três pilares - o contrato, a titularidade e a família, para o que ergueram uma muralha entre
o público e o privado - permeáveis até então, com a formulação de uma teoria própria para o
Direito Civil, preponderante sobre as demais áreas do conhecimento jurídico.
15
conteúdo a interferência estatal tão necessária ao equilíbrio social9, sobrepondo-se o
interesse da coletividade ao até então respeitado como unicamente privado.
Dessa forma, constata-se que o equilíbrio das relações contratuais deve
preponderar, mantendo-se o contrato ainda como ato de autonomia privada, mas
com limites a serem fixados, pois a nova concepção social do instituto determina que
a vontade das partes não é a exclusiva fonte das obrigações, cujos objetivos e
conteúdos passam a ser limitados pela lei.
O princípio regido pelo modelo clássico, chamado de autonomia da vontade,
tem seus efeitos relativizados devido às novas inquietações de ordem social,
tentando uma harmonia entre os interesses abarcados na relação contratual e as
normas de tutela que valorizam a vontade. Desse modo, os novos princípios
adquirem uma função fundamental como garantias de eqüidade.
Diante disso, para compreensão do tema objeto do presente estudo, faz-se
necessário abordar a evolução do direito contratual, evidenciando que o modelo
concebido pelo Estado liberal - autonomia da vontade, que subentendia a igualdade
entre as partes - não mais se ajusta à nossa realidade e aos negócios jurídicos, uma
vez que hoje a leitura que se confere ao contrato não poderá ser a mesma,
demandando do intérprete uma revisão conceitual principiológica.
Para demonstrar isso, explana-se no decorrer deste capítulo a evolução da
teoria clássica dos contratos fundada no Estado Liberal, evidenciando seu
desenvolvimento até sua crise. Chega-se à denominada moderna teoria contratual,
que altera o perfil do negócio jurídico, por meio do enfraquecimento dos princípios
clássicos do contrato, os quais serão analisados posteriormente.
9
LÔBO, Paulo Luiz Netto. O contrato: exigência e concepções atuais. São Paulo: Saraiva, 1996, p.
27.
16
1.1 A Teoria dos Contratos
O contrato, “instrumento jurídico por excelência da vida econômica”10, à luz de
seu desenvolvimento histórico, tem origem nos primeiros tempos da humanidade11.
Quando o homem primitivo, vivendo em tribos, sentiu necessidade de disciplinar as
atitudes de convivência e instituir regras para o sistema de trocas antes do
surgimento da moeda, ocorreu o início daquilo que hoje se conhece como contrato.
A vontade e a ação individual aconteciam de acordo com as necessidades do
grupo social em que os sujeitos estavam inseridos. Daí surgiu a origem do contrato
“como forma regulamentadora da conduta dos homens na busca do necessário
equilíbrio para a vida em sociedade”12.
As civilizações mais antigas não conheciam o contrato como instituto jurídico,
no entanto, experimentaram formas rudimentares, do mesmo modo que os egípcios
e os gregos, instituindo formas e rituais para a promoção de certos ajustes
referentes à condição das pessoas e seus bens patrimoniais, como o casamento, as
permutas etc., os quais se transformaram no instituto jurídico do contrato.13
De acordo com a análise histórica, foi a partir do século V que a previsão a
respeito dos contratos começa a ter configuração.
A partir do Século V antes de Cristo, iniciaram a fluir importantes leis, como
a 'Lex Plaetoria', de 490 A.C., formando o 'jus civile' e o 'optimum jus civium
romanorum', culminando a 'Lex duodecim Tabulorum', de 303 A.C., a qual
representou a vitória dos tribunos da plebe contra os representantes do
patriarcado. Foi justamente na Tábua VI que apareceu a origem da
obrigação e do contrato, ao consignar a norma 'cum nexum faciet
mancipiumque uti lingua nuncupassit ita jus esto'. O vocábulo 'nexum'
exprime um elo, uma cadeia, significando, também, contrato. O conceito de
obrigação emana desta regra, induzindo a concluir que o credor podia
10
GOMES, Orlando. Contratos.25. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 6.
RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 6, comenta esta diretiva
da seguinte maneira: "Desde o momento histórico do aparecimento do homem há indícios da
existência do contrato, no sentido mais amplo, ou, pelo menos, do direito, em sua forma mais
primitiva, segundo o vetusto princípio romano 'ubi societatis, ibi jus'”.
12
DAIUTO, Reynaldo Ribeiro. Introdução ao estudo do contrato. São Paulo: Atlas, 1995, p. 21-22.
13
RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 6-7.
11
17
dispor do corpo de seu devedor no caso de impontualidade ou de
14
inadimplemento da obrigação.
Entretanto, foi o Direito Romano15 que regulamentou os atos solenes
imprescindíveis e aplicáveis aos meios e modos de manifestação da vontade,
principalmente, mediante nexum, sponcio e a stipulatio16, promessa solene realizada
em público que, se não cumprida, sujeitava-se a uma sanção pelo seu nãocumprimento.
Os romanos não tinham um conceito claro do contrato como um instrumento
jurídico regulador dos direitos e obrigações; mas, com a evolução do direito, foram
elaboradas as adjacências do instituto do contrato. Então, o direito romano passou
a diferenciar três formas: a convenção17, o pacto e o contrato.
No Direito Romano, a convergência da vontade de duas ou mais pessoas sobre
uma relação obrigacional era denominada convenção18 - gênero, do qual o contrato
e o pacto eram espécies. Para eles, contrato e pacto não se confundiam, devido a
uma diferenciação entre ambos: no contrato, as relações entre as partes derivavam
14
RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 7.
Conforme GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao estudo do direito. 11. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1986, p. 187, o Direito, naquela época, dividia-se em dois: o público e o privado, a
chamada "summa divisio". “Direito Público e Direito Privado. – Eis aí uma divisão fundamental do
direito conhecida desde os romanos, que consideravam tratar o direito público da coisa pública:
quod ad statum rei romanae spetat, enquanto o direito privado do interesse dos particulares: ad
singulorum utilitatem. Daí Ulpiano assim concebê-los: jus publicum est quod ad statum rei romanae
spectat, privatum quod ad singulorum utilitatem: sunt enin quoedam publice utilia, quoedam
privatim.” Tal distinção remonta ao Direito Romano, que era baseada na natureza dos valores
daquela sociedade, assim, direito público é aquele que diz respeito ao estado ou coisa romana;
privado, às utilidades dos particulares. A distinção está na natureza dos valores: de um lado, o
direito protege os valores que interessam à comunidade abstratamente considerada; de outro,
tutela os interesses dos particulares. FINGER, Julio César. Constituição e direito privado: algumas
notas sobre a chamada contitucionalização do direito civil. In: SARLET, Ingo Wolfang. A
constituição concretizada: construindo pontes com o público e o privado. Porto Alegre: livraria do
Advogado, 2000, p. 85-105. Todavia, é importante frisar que esta divisão dos respectivos ramos
acima, não tem sua origem pacificada, enquanto alguns dizem ter sua origem no Direito Romano,
outros como Finger, defendem ter originado da sistematização procedida por Jean Domat, cuja
obra serviu para a delimitação do conteúdo que foi introduzido no Código de Napoleão. Alegam
que a divisão metodológica entre direito público e privado não tem origem no Direito Romano.
16
GOMES, Orlando. Contratos. 25. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 6.
17
Para FERNANDES, Adaucto. O contrato no direito brasileiro. v. 1. Rio de Janeiro: A. Coelho Filho,
1945, p. 63, a convenção "era um nome geral que compreende toda a classe de contratos, tratados
e pactos de qualquer natureza".
18
BEVlLÁQUA, Clóvis. Direito das obrigações. Belo Horizonte: Paulo Azevedo, 1954, p. 133.
15
18
das obrigações exigíveis através de ações civis, ao passo que o pacto consistia num
mero ajuste, por carecer a sanção da lei civil.19
Os contratos do período obsoleto, bem como todos os atos jurídicos, oferecem
modo rigoroso e sacramental, o que é uma característica de todos os institutos
primitivos, que não apreciam os atos jurídicos senão fundamentados em ritos
solenes.20 Desse modo, no direito romano, a forma era o elemento fundamental dos
contratos, sendo que somente existia contrato quando se obedecia à forma
estatuída pelo Código Civil.21 A percepção do acordo de vontades surge tardiamente
na história romanista, como exceção à regra central do formalismo, quando do
reconhecimento do que se chamou contratos consensuais, que eram a compra e
venda, mandato, locação e sociedade.
A noção romana de contractus pouco ou nada tem a ver com aquela fixada
nos Códigos, hoje em crise: isto porque no Direito Romano o termo, com
conotação objetiva, era utilizado para designar os acordos, reconhecidos
como obrigatórios e providos de actio, discernindo-se de outros acordos,
não obrigatórios e nomeados como pacta. Assim, o contractus - elipse de
negotium contractus - era visualizado como um vínculo objetivo, mais
propriamente servindo para designar as conseqüências do acordo, vale
dizer, a vinculação obrigacional daí decorrente, e não como a manifestação
de duas vontades opostas e convergentes ou a expressão da liberdade ou
autodeterminação individual: nada mais distante, portanto, da concepção
subjetiva ou voluntarista acolhida no primeiro código moderno, o Code
Napoléon, ao qual subjazia o brocardo qui dit contractuel, dit juste, com a
força de uma verdade indiscutível, colocado aí, em primeiro plano, o
22
aspecto subjetivo do vínculo.
Não houve, no direito romano, a elaboração de um entendimento de contrato
enquanto categoria geral, abstrata e formalizadora. Os romanos não aceitavam uma
categoria geral dos contratos, porque todo o sistema contratual apresentava, como
fundamento exclusivo, a tipicidade. Eles não conseguiram alcançar um coeficiente
19
ANDRADE, Christiano Augusto Corrales de. A autonomia da vontade nas relações de consumo.
São Paulo: LED, 2002, p. 14. Ver RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2001, p. 7-8. Complementando esta idéia, Rizzardo define que “a convenção era um termo geral,
que abrangia o pacto e o contrato. Definia-se como o assentimento de duas ou mais pessoas para
formar entre elas algum compromisso, ou para resolver, ou solucionar qualquer obrigação. Pacto
compreendia as convenções não sancionadas pelo direito civil, despidas de ação e de força
obrigatória. O contrato referia-se às convenções previstas e reconhecidas pelo direito civil, dotadas
de força obrigatória e providas de ação”.
20
ANDRADE, Christiano Augusto Corrales de. A autonomia da vontade nas relações de consumo.
São Paulo: LED, 2002, p. 16.
21
DANTAS, San Tiago. Programa de direito civil II: os contratos. Rio de Janeiro: Rio, 1978, p. 150.
22
MARTINS-COSTA, Judith. Crise e modificação da idéia de contrato no direito brasileiro. Revista de
Direito do Consumidor, São Paulo, n. 3, p. 128, set./dez. 1992.
19
de abstração teórica que tolerasse a compreensão do contrato como categoria
autônoma e instrumental e, conseqüentemente, não chegaram à elaboração de uma
teoria geral dos contratos, mesmo que admitissem o contrato enquanto operação
econômica. Não se encontravam presentes as condições cogentes à configuração
do contrato como categoria genérica.
As relações contratuais eram realizadas oralmente, ajustando-se aos costumes
que geravam obrigações para as partes. Posteriormente, esses contratos verbais
passaram por expressivas transformações, perdendo o modo de oralidade e
reconhecendo a forma escrita, considerando-se fundamental o pleno acordo de
vontades dos envolvidos.
No entanto, no direito vigente na época do imperador Justiniano, que mandou
organizar o “Corpus Juris Civilis”23, essa diferenciação foi abandonada, chegando-se
à visão do contrato como meio jurídico apto a produzir obrigação24. Nesse período, o
direito romano abdicou o formalismo e começou a dar importância à vontade das
partes. Isso ocorreu quando a teoria do contrato teve um proeminente
desenvolvimento.
Contudo, para que os contratos fossem válidos, tornaram-se indispensáveis
três elementos: a capacidade das partes, a licitude do objeto e sua possibilidade25 e,
especialmente, o consentimento, tão necessário para que as partes tenham a
liberdade de acolher e alvitrar suas cláusulas, cujo objeto não pode contradizer a lei,
a moral e os bons costumes, sob pena de nulidade.
23
O Direito Privado romano situava-se na família, na propriedade, no contrato e nas sucessões. Em
relação a esses elementos, regulamentados na codificação de Justiniano, baseiam-se no princípio
da autonomia da vontade, de onde se extrai o conceito de liberdade e o preceito da não
interferência do poder público.
24
BESSONE, Darcy de Oliveira Andrade. Do contrato: teoria geral. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense,
1987, p. 9.
25
BEVlLÁQUA, Clóvis. Direito das obrigações. Belo Horizonte: Paulo Azevedo, 1954, p. 135.
20
Assim, verifica-se que, no Direito Romano26, inicialmente o contractum era
concebido como um vínculo jurídico cuja obrigação dele decorrente necessitava da
prática de ato solene. A forma constituía elemento essencial do contrato. Tal
concepção evoluiu na sociedade romana, abrandando-se gradativamente o
formalismo, até que se aproximou da sua antiga declaração, isto é, a total
manifestação de vontade que vincula os indivíduos, gerando direitos e deveres.
Incidiu a organização do contrato, sendo que, conseqüentemente, foram construídas
as bases que ainda hoje persistem, apesar das enormes transformações ocorridas.
Preleciona Nalin27 que a razão do contrato incide em categorias obrigacionais
abstratamente estabelecidas, materializadas no modelo codificado do Code
Napoléon, do qual o estruturalismo filosófico passa por um processo evolutivo que
se estende dos canonistas aos jusnaturalistas.
É necessário destacar que, na evolução histórica do instituto do contrato, a
contribuição dos canonistas, devido à protuberância que conferiram ao consenso e à
fé-jurada, foi garantir à vontade humana a possibilidade de instituir direitos e
obrigações. Alçaram a vontade à qualidade de elemento fundamental do contrato,
fundando-se em razões teocráticas para o cumprimento da vontade manifestada.
Os mesmos evidenciaram uma atenção maior ao consentimento, o que contribuiu
para o desenvolvimento do instituto, pois, relevando o consenso, propalou-se que a
vontade é a fonte das obrigações, começando, assim, a elaboração dos princípios
da autonomia da vontade e do consensualismo, edificados sobre o juízo de que a
obrigação deve surgir basicamente de um ato de vontade declarada28. Nessa época
consagrou-se o princípio pacta sunt servanda29, isto é, os pactos são feitos para
serem cumpridos. Foi aí que o contrato se firmou30.
26
27
28
29
Conforme GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao estudo do direito. 11. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1986, a importância do Direito Romano no Brasil acentuou-se no período que vai de 1750
a 1808. Foi promulgada a Lei da Boa Razão, que estabelecia regras para a interpretação das leis
vigentes e determinava a aplicação, no caso de lacuna, o direito romano, desde que tal exercício
de aplicação fosse compatível com a denominada “boa razão”.
NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva
civil-constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 106.
NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva
civil-constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 107-108.
Nos séculos XVIII e XIX prevaleceu na França o individualismo firmado pela teoria kantiana,
consagrando-se a liberdade e a igualdade política (o homem como centro do universo). Desde
então, as influências advindas das esferas econômicas, políticas e sociais foram impondo
21
O direito canônico defendia a validade e a força obrigatória da promessa. O
simples pacto era satisfatório para originar a obrigação jurídica, porque a
verbalização instituía um comprometimento moral, isto é, o homem tinha de confiar
na mera proliferação da palavra falada, pois esse era o meio de sua pregação
original, sob pena de não vingar a sua fé cristã e, assim, criava um
comprometimento de caráter moral e jurídico para o indivíduo. A partir dessa
concepção, o contrato se funda como um instrumento abstrato e uma categoria
jurídica31. Isso se reflete no CC, no seu art. 107, que preceitua: “a validade da
declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei
expressamente a exigir”, ou seja, a forma é a exceção do solus consensus32.
Como observa Gilissen33, a igreja sempre se mostrou adepta da reverência à
palavra dada. Os textos canônicos do séc. IV e VI já igualavam a mentira ao perjúrio,
considerando necessário manter tanto a promessa feita por simples enunciação
quanto aquela feita por juramento. Buscava-se a espiritualização do contrato, com a
remoção do aspecto formal. Dos canonistas sucedeu-se o jusnaturalismo34.
30
31
32
33
34
transformações ao ponto de adquirir o contrato a concepção de acordo de vontades que
estabelecem um vínculo jurídico capaz de produzir efeitos jurídicos, consagrando-se o princípio do
pacta sunt servanda (a força cogente da vontade dos contratantes). Daí decorre a obrigatoriedade
no cumprimento do que foi livremente acordado. É, portanto, regra endógena que garante a
segurança jurídica, pois já que o acordo foi elaborado de forma livre e consensual (livre de
qualquer vício) nada mais lógico do que seu normal adimplemento.
É para esse sentido que aponta a refinada lição de PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de
direito civil. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 8-9: “Os canonistas, imbuídos do
espiritualismo cristão, interpretavam as normas de direito romano animados de uma inspiração
mais elevada. No tocante ao contrato, raciocinaram que a seu descumprimento era uma quebra de
compromisso, equivalente à mentira; e como esta constituía 'peccatum', faltar ao obrigado atraía as
penas eternas. Não podia ser, para os jurisconsultos canonistas, predominante a sacramentalidade
clássica, mas sobretudo prevalecia o valor da palavra, o próprio consentimento.”
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das
relações contratuais. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 56.
NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva
civil-constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 107.
GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito (lntroduction historique au droit). 2. ed. Trad. A. M.
Hespanha e L. M. Macaísta Malheiros. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995. p. 735.
ANDRADE, Fábio Siebeneichler. Da codificação: Crônica de um conceito. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 1997, p. 42-63. O autor salienta que o jusracionalismo deriva de um momento dentro do
contexto maior que é o jusnaturalismo. Essa vertente contribuiu para a consolidação da idéia de
código e também para a de sistema. Era fundamental para o Direito, tido como ciência, o
desenvolvimento de um sistema, baseado aos das ciências naturais.
22
No Direito Natural encontra-se o embasamento teórico-filosófico35 para a
concepção clássica do princípio da autonomia da vontade. Esse embasamento
surgiu com o amparo de Grotius36, que tratava os homens como livres e iguais. Tais
acontecimentos trazem a questão do que constitui esse direito, ou seja, passa do
divino ao humano, sendo intrínseco ao homem determinado direito subjetivo,
desligando-se de um direito objetivo primordial 37.
Os jusnaturalistas contribuíram no desenvolvimento do contrato38, pois
conferiram destaque à vontade livre dos contratantes, considerada como fonte das
35
36
37
38
Inaugura-se uma fase chamada de representação, tendo como característica essencial a
determinação do sujeito pensante enquanto consciência. O racionalismo destaca-se a partir da
produção teórica de Imanuel Kant, chamado de Metafísica dos Costumes, onde elabora uma
justificação racional do agir humano. Separa o racionalismo de seus pontos de partida empiristas.
Kant se propõe a estudar temas como a Moral, o Direito e a Política através de três obras
fundamentais: Fundamentação da Metafísico dos Costumes ( 1785); Crítica da razão prática (1788)
e Metafísica dos Costumes, (1797). Através destes textos propõe apresentar uma filosofia prática,
em oposição à “filosofia teorética” ou especulativa, que estava sendo usada em período histórico
anterior.
A igualdade sugerida por Grotius deriva de uma percepção divina e formal-abstrata. O
contratualismo, deste filósofo, respeitava a linha do Direito Público mesmo que particularizada a
outros contratualistas, por defini-lo como um fato histórico. Esta teoria também faz referências para
o plano privado, pois foi o fundamento do contratualismo (privado) inserto no Code.
NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva
civil-constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 107.
Nesse sentido, muito bem define ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. São Paulo: Abril
Cultural, 1973, p. 45, segundo o qual "já que nenhum homem possui uma autoridade natural sobre
o seu semelhante, e uma vez que a força não produz nenhum direito, restam, portanto, os
contratos (as convenções) como base de toda autoridade legítima no meio dos homens". Também
sobre o contratualismo é importante salientar que, sob a inspiração de Hobbes e Rousseau,
afirmaram-se os direitos individuais, não apenas contra o Estado, mas contra todo o sistema de
corporação que conduzisse a atividade profissional. A sociedade tinha de ser formada por
indivíduos por mediação de um baldrame voluntário - contratual. Rousseau tem preocupação com
o respeito à vontade geral dos indivíduos que compõem o Estado, além de uma crença na
bondade da natureza humana. Para o filósofo, o homem nasce bom, entretanto, acaba se
degenerando com a contenda existente no ambiente em que está inserido. Conseqüentemente, o
contratualismo ora adquire um feitio pessimista, ora otimista. Também defende a impossibilidade
de renúncia a direitos essenciais, como a liberdade e a igualdade. Para que esses direitos sejam
conservados é necessário um contrato entre os indivíduos. Em sua obra Rousseau apóia uma
forma de associação para a defesa e proteção da pessoa e os bens de cada associação, de
qualquer força comum. E ainda, faz distinção entre a vontade geral e a vontade de todos. Esta
atende somente ao interesse privado e se declara no conjunto de vontades particulares. O
racionalismo da teoria deste autor se declara na forma como ele justifica a titularidade do poder ao
povo, o quaI encontra limites no conteúdo do contrato originário do Estado. Oportuna a observação
de REALE, Miguel. Filosofia do direito. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 308-309. Ele acredita
que Rousseau jamais imaginou o contrato social como fato efetivamente verificado. A concepção
de contrato social proposta por ele é a de “um modelo ideal como pressuposto da convivência
humana, conforme doutrina que depois foi burilada magistralmente por Emmanuel Kant, que
concebeu um contrato originário de puro valor 'transcendental'”. RODOTÁ, Stefano. El terrible
derecho: estudios sobre la propriedad privada. Tradução de Luis Díez-Picazo. Madrid: Editorial
Civitas, 1986, p. 87. O jurista italiano entende que existe uma distinta transformação de perfil entre
Rousseua e Locke. Enquanto para Rousseua a preocupação está na igualdade, para Locke a
principal preocupação reside na liberdade. Tais pontos de vista demonstram um progressivo
23
obrigações. Ou seja, sustentavam que o embasamento racional do nascimento da
obrigação se localizava na vontade livre dos contratantes. Os pensadores da época
deram proeminência à teoria da autonomia da vontade.
À luz do Direito Natural, especialmente devido às idéias de Kant, a pessoa
humana tornou-se um ente de razão, uma fonte fundamental do direito,
pois, é através de seu agir, de sua vontade, que a expressão jurídica se
realiza. Kant chegaria mesmo a afirmar que a autonomia da vontade seria
o único princípio de todas as leis morais e dos deveres que lhes
39
correspondem.
O Direito surge como instrumento de garantia da liberdade, limitando não
propriamente a liberdade, mas o arbítrio: “El Derecho es el conjunto de las
condiciones por las cuales el arbítrio da cada uno puede armonizarse com el arbítrio
de los demás según una ley universal de libertad”40. Desse modo, a liberdade de
contratar consistiria em uma das liberdades naturais do homem, cujas restrições
estariam unicamente na vontade do próprio homem.41-42
39
40
41
42
abandono da propriedade como direito natural por uma visão ‘civil’, havendo uma gradual
substituição do ‘espírito filosófico’ pelo ‘espírito jurídico’, em que o poder público passa a ter
importância no exercício de transferência da propriedade de uma classe para outra.
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das
relações contratuais. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 56.
KANT, Imanuel. La Metafísica de las costumbres. Tradução de Adela Cortina Orts. 2. ed. Madrid:
Tecnos, 1994, p. 39. Na tradução livre: “O Direito é um conjunto das condições pelas quais o
arbítrio de cada um pode harmonizar-se com o arbítrio dos demais segundo uma lei universal de
liberdade.”
Para KANT, Imanuel. La Metafísica de las costumbres. Tradução de Adela Cortina Orts. 2. ed.
Madrid: Tecnos, 1994, o conhecimento pressupõe a sensibilidade e o entendimento. A
sensibilidade dá o conteúdo que é submetido às categorias do entendimento. O conceito puro que
tem origem só no entendimento sem a participação das intuições é chamado noção. Quando esta
noção se torna transcendente, ultrapassando toda a possibilidade de experiência, tem-se a idéia de
razão. Portanto, a idéia é criada pela faculdade da razão, como conceito é produto do
entendimento aliado à sensibilidade. A razão é o conceito fundamental do sistema moral kantiano.
A razão prática é aquela que não se preocupa em traduzir as leis dos fenômenos da natureza, mas
em representar as leis segundo as quais o ser racional, dotado de liberdade deve agir. No âmbito
do dever-ser a razão é a faculdade criadora e não apenas reguladora, porém, o dever-ser exige
uma causa originária que lhe dê fundamento: a liberdade. A ética não pode ser empírica e nem
fundamentar-se em princípios da experiência, mas apenas em princípios a priori. Sendo que os
princípios éticos devem ser necessariamente universais, ou seja, fundamentados nos princípios
puros da razão. Embora a máxima da ação seja subjetiva, a lei moral é objetiva. Kant se pergunta
como é possível ligar a vontade ao ato a priori. A resposta à esta pergunta é a busca pelo princípio
supremo da moralidade, pelo fundamento de moralidade que na abordagem kantiana é
desenvolvida na Fundamentação da Metafísica dos Costumes.
MODUGNO, Franco. Enciclopédia Jurídica. Sistema Giuridico. Roma: Instituto Poligrafico e Zecca
dello Stato, 1993, v. 29, p. 4. De acordo com Kant, a autonomia seria o princípio supremo da
moralidade. Já, segundo Mengoni, ela concebia a ordem social como resultado natural do livre
encontro das forças individuais sobre o mercado, baseada em estruturas simples e estáveis,
colocadas em ordem de princípios jurídicos: propriedade, liberdade contratual e liberdade de
trabalho.
24
O conceito de Direito em Kant43 diz respeito somente a três aspectos: primeiro,
à relação externa e prática de uma pessoa com outra; segundo, não significa a
relação do arbítrio de um com a vontade de outro, mas a relação do arbítrio de um
com o arbítrio de outro; terceiro, essa afinidade mútua do arbítrio não diz respeito à
matéria do arbítrio. Assim sendo, o Direito é o complexo de condições em que o
arbítrio de qualquer um é capaz de coexistir com o arbítrio dos demais, de acordo
com a Lei Universal de Liberdade. Isso faz prevalecer a vontade individual até o
limite determinado pela lei citada.
As normas exteriores só existem no estado civil, ou seja, posteriormente ao
afastamento do homem do estado de natureza e o estabelecimento do Contrato
Social. Existe uma legislação interna (moral) e uma externa (jurídica). A liberdade
interna gera a obrigação moral; e a liberdade exteriorizada motiva a obrigação
jurídica, assegurada por um sistema de coação, no qual o legislador porta-se como
alguém que procura sistematizar e positivar os princípios das categorias a priori que
fundamentam o Direito44.
Kant sempre defendeu a paz perpétua e o direito de liberdade, sendo que para
ele o Direito surge então como instrumento de garantia da liberdade, limitando
qualquer forma de arbítrio, principalmente o estatal. Considerava o Direito como um
conjunto de condições que deveria se harmonizar com o arbítrio e a liberdade de
todas as pessoas.45-46
43
44
45
46
KANT, Imanuel. La Metafísica de las costumbres. Tradução de Adela Cortina Orts. 2. ed. Madrid:
Tecnos, 1994, p. 58 et seq.
KANT, Imanuel. La Metafísica de las costumbres. Tradução de Adela Cortina Orts. 2. ed. Madrid:
Tecnos, 1994, p. 58 et seq.
KANT, Imanuel. La Metafísica de las costumbres. Tradução de Adela Cortina Orts. 2. ed. Madrid:
Tecnos, 1994.
Referente à tese kantiana, BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson
Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 135-136 destaca o seguinte aspecto: “O ponto central
da tese kantiana para o qual eu gostaria de chamar a atenção é que tal disposição moral se
manifesta na afirmação do direito – um direito natural – que tem um povo a não ser impedido por
outras forças de se dar a Constituição civil que creia ser boa. Para Kant, essa Constituição só pode
ser republicana, ou seja, uma Constituição cuja bondade consiste em ser ela a única capaz de
evitar por princípio o guerra. Para Kant a força e a moralidade da Revolução residem na afirmação
desse direito do povo a se dar livremente uma Constituição em harmonia com os direitos naturais
dos indivíduos singulares, de modo tal que aqueles que obedecem às leis devem também se reunir
para legislar. O conceito mesmo de honra, próprio da antiga nobreza guerreira, esvai-se diante das
armas dos que tinham em vista o direito do povo a que pertenciam”.
25
Definindo direito natural como direito que todo homem tem de obedecer
apenas à lei de que ele mesmo é legislador, Kant dava uma definição da
liberdade como autonomia, como poder de legislar para si mesmo. De
resto, no início da Metafísica dos Costumes, escrita na mesma época,
afirmara solenemente, de modo apodítico – como se a afirmação não
pudesse ser submetida a discussão -, que, uma vez entendido o direito
como a faculdade moral de obrigar outros, o homem tem direitos inatos e
adquiridos; e o único direito inato, ou seja, transmitido ao homem pela
natureza e não por uma autoridade constituída, é a liberdade, isto é, a
independência em face de qualquer constrangimento imposto pela vontade
47
do outro, ou, mais uma vez, a liberdade como autonomia.
Partindo dessa concepção, dentro da teoria Kantiana, a vontade individual
consistiria na única fonte das obrigações jurídicas e, conseqüentemente, a única
fonte de justiça. Com isso, adquire eficácia a argumentação de Kant, que coloca o
elemento volitivo no cerne de todas as relações jurídicas privadas. O homem seria o
grande fomentador das relações contratuais, solidificado do direito subjetivo, sempre
tendo como intento formal a igualdade. O individualismo e o subjetivismo se firmam
e motivam conquistas individuais, até hoje preservadas, elencadas como direitos
fundamentais da liberdade e igualdade, sem detrimento de uma presente
funcionalização de tais direitos, à luz da repersonalização e da despatrimonialização
do Direito Civil. Na esteira desse pensamento, não há como negar que os ideais de
um homem livre e igual apresentaram grande valor para a construção do Estado
Democrático de Direito.48
Cumpre destacar que kant também era defensor do contratualismo; principal
filósofo da modernidade, defendeu a necessidade de um pacto no qual o Estado
seria responsável pela sustentação de direitos naturais inalienáveis49, os quais
originam antes dele, com o nascimento do homem.50 Instalada a discussão, pode-se
chegar a uma compreensão de que a teoria Kantiana destacou a liberdade como
obediência às leis. Com a vinculação entre moral, direito e política, estabelecia-se a
47
48
49
50
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro:
Campus, 1992, p. 52, ao se referir ao direito de liberdade.
NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva
civil-constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 108-109.
CRUZ, Paulo Márcio. Política, poder, ideologia e estado contemporâneo. Florianópolis: Diploma
Legal, 2001, p. 102-103.
ALMEIDA, Guilherme Assis de; BITTAR, Eduardo C. B. Curso de filosofia do direito. São Paulo,
Atlas, 2001, p. 270 aduzem que, para Kant, o Estado tem a função instrumental “para a realização
dos direitos; trata-se de um Estado somente de direitos, que regulamenta o convívio das
liberdades. Sua meta é a de garantir as liberdades, de modo a permitir que todos convivam, que
todos subsistam, que todos possam governar-se a si próprios, segundo a lei moral, mas sem
obstruir que os outros também vivam de acordo com seus fins pessoais e próprios.”
26
fundamentação teórica para o desenvolvimento da democracia a partir do
entendimento liberal do Estado de Direito.51 A negociação privada, principalmente
nos contratos, viu nessa proposta de Estado de Direito o que há muito tempo vinha
sendo almejado. A separação do domínio público do privado possibilitou que os
cidadãos contratassem sob a proteção do Estado. Essa proteção se dava de forma
passiva, ou seja, o Estado não estava inserido na relação contratual, apenas
apresentava a função de garantir o seu cumprimento, assegurar a tutela dos direitos,
sem ingerência nas atividades individuais, o que divulga o modo individualista da
teoria.52
Cabe frisar a representação da doutrina kantiana no que diz respeito à
autonomia da vontade em matéria contratual. O amparo, feito pelo filósofo, da
capacidade de autodeterminação de cada cidadão fazia com que pudesse avocar os
compromissos contratuais, tornando o conteúdo da avença lei entre as partes – gozo
da liberdade. Desse modo, o que foi assumido pela vontade própria necessitava ser
assumido sem qualquer questionamento a respeito do negócio jurídico realizado.53
Nessa perspectiva, para os defensores do jusnaturalismo54, a liberdade de
contratar seria uma das liberdades do homem, cujas restrições encontrar-se-iam
apenas na vontade do próprio homem.
[...] convencionalmente sintetizamos como ideologia da liberdade
contratual, documentando a sua adequação aos interesses e às exigências
da sociedade burguesa, alimenta o pensamento jurídico novecentista e
55
informa as grandes codificações daquele século.
As principais codificações do século XIX vêm da França (o code civil de 1804),
Itália (1865) e Alemanha (o Bürgerliches Gesezbucg - BGB, 1896). O Código Civil
51
CRUZ, Paulo Márcio. Política, poder, ideologia e estado contemporâneo. Florianópolis: Diploma
Legal, 2001, p. 103.
52
GOMES, Rogério Zuel. Teoria contratual contemporânea: função social do contrato e boa-fé. Rio de
Janeiro: Forense, 2004, p. 23.
53
GOMES, Rogério Zuel. Teoria contratual contemporânea: função social do contrato e boa-fé. Rio de
Janeiro: Forense, 2004, p. 24.
54
GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito (lntroduction historique au droit). 2. ed. Trad. A. M.
Hespanha e L. M. Macaísta Malheiros. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995, p. 737. A
Escola Jusnaturalista - século XVII - pregando o livre-arbítrio - foi importante fator de laicização do
direito e da sua concepção racional. O direito para esses jusnaturalistas não é forçosamente
cristão, conforme defendiam os canonistas.
55
ROPPO, Enzo. O contrato. Coimbra: Almedina, 1988, p. 40.
27
francês de 1804 (Code)56, criado na época napoleônica, compatibilizou os conceitos
individualistas e voluntaristas com as idéias do Direito Natural Moderno.57 Esse
código garantiu a ausência do Estado das relações negociais e acabou cristalizando
alguns pontos fundamentais que eram afetos à classe que tomou o poder.58 O
Code59 surgiu na transformação do mito jusracionalista da sistematização em
ideologia, tendo como veículo o direito60 e como embasamento a teoria iluminista61.
O jusracionalismo influenciou também advogados e juristas norte-americanos no
período pós-revolucionário; as teorias econômicas e a visão liberal sublinhavam a
importância da liberdade.
O contrato estava regulado no livro terceiro, que abordava os distintos modos
de aquisição da propriedade62. Majorou a aquisição da propriedade privada ao ponto
culminante do direito da pessoa. Estava consagrado o dogma da vontade, e o
contrato deliberado com instrumento de sua convalidação. Nesse sistema, o contrato
é mero instrumento para se adquirir a propriedade - é somente um meio de
circulação de riquezas. Na lição de Roppo, “o instituto do contrato assume, num
certo sentido, uma posição não autônoma, mas subordinada, servil, relativamente à
propriedade”.63
56
A denominação Code Napoléon (Código Napoleão) se deu somente em 1807; ele era sabido como
Code Civil des Français (Código Civil dos Franceses). Em 1814 voltou o nome original, tendo nova
alteração através de decreto (1852), determinando definitivamente o nome Code Napoléon.
57
DEL VECCHIO, Giorgio. Filosofia DeI Derecho, tradução livre. 9. ed. Barcelona: Bosch, 1991, p. 64.
Das concepções de igualdade e liberdade derivam-se dois pilares essenciais da ação
revolucionária burguês de 1789 e dele, o Código Civil de Napoleão. Sobre o afinamento do Code
aos valores do Direito Natural, além de uma mera coincidência temporal, observa-se a presença de
Jean DOMAT como um de seus redatores e ainda, autor da obra Lê lois civiles dans leur ordre
naturel. Quanto à eficácia e relevância do Code, e do modelo de contrato nele inserido, pode-se
concluir que o mesmo foi determinante para o período seguinte dos séculos XIX e XX.
58
GOMES, Rogério Zuel. Teoria contratual contemporânea: função social do contrato e boa-fé. Rio de
Janeiro: Forense, 2004, p. 30.
59
Para LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Tradução de José Lamego. Lisboa:
Calouste Gulbenkian, 1997, p. 56, a aproximação do conteúdo do Code com o Direito Romano é
porque neste já havia uma economia de troca desenvolvida e “oferecia à corrente do tempo, ao
liberalismo, graças ao seu pendor garantir ao indivíduo um domínio irrestrito 'senhorio da vontade'
e para estabelecer à 'autonomia privada', o menor número possível de barreiras”.
60
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p.
181.
61
CAENEGEM, R. C. van. Uma introdução histórica ao direito privado. Tradução de Carlos Eduardo
Lima Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 197.
62
DEL VECCHIO, Giorgio. Filosofia DeI Derecho. Tradução livre. 9. ed. Barcelona: Bosch, 1991, p.
65. Naquela época, o contrato era subordinado em relação à propriedade.
63
ROPPO, Enzo. O contrato. Coimbra: Almedina, 1988, p. 41.
28
Continua o referido autor, explanando que existe uma ligação sistemática em
meio ao contrato e à propriedade, sendo que o contrato e o domínio de contratar
livremente são almejados como meios de expressão da liberdade subjetiva do
indivíduo, libertando-se dos antigos vínculos.
Destaca, ainda, que, em todo
pensamento jurídico-político oitocentista, há a agregação do binômio indissolúvel: a
propriedade e a liberdade. A propriedade (privada) é base legítima da liberdade,
enquanto institui a própria substância daquela. Sem propriedade, não há liberdade;
mas, contrariamente, não pode existir propriedade dissociada da liberdade de gozála, dispor, transferi-la e fazê-la circular sem qualquer limite.64
A partir desta reflexão, fica evidenciado que o Code surgiu na seqüência da
Revolução Francesa e no dealbar da Revolução Industrial, a ponto de ser respeitado
como um produto revolucionário, abarrotado de intentos em relação à burguesia e
sobejando idealismo liberal burguês.65
Foi a primeira grande codificação moderna a refletir a conquista da burguesia66
na revolução de 178967, refletiu as concepções filosóficas, econômicas e políticas da
revolução. O Código Napoleão era o código dos fortes, a epopéia dos burgueses,68
era o anseio dessa categoria que se revelava no seu conteúdo sob a autonomia da
vontade. Nesse contexto histórico-filosófico é que a teoria contratualista fez nascer o
embasamento do direito privado moderno, que se desenvolveu e vigorou até o início
do século XX.
64
ROPPO, Enzo. O contrato. Coimbra: Almedina, 1988, p. 42.
CORDEIRO, António Manuel da Rocha Menezes. Da boa-fé no direito civil. Coimbra: Almedina,
1997, p. 231.
66
BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 72. Quanto à
formação da classe burguesa, Marx distingue duas fases: aquela durante a qual se constitui em
classe, sob o regime do feudalismo e da monarquia absoluta, e aquela em que já constituída em
classe, derruba o feudalismo e a monarquia, para fazer da sociedade uma sociedade burguesa.
67
A Revolução Francesa deu início ao Estado Liberal, baseado na igualdade formal, onde “todos são
iguais perante a lei”. A mesma, marcou a tomada do poder estatal pela burguesia, a qual enfatizou
sua ideologia. Esta revolução foi contra as classes dominantes, ou seja, contra a nobreza e o clero.
O Estado Liberal era o conjunto de todas as pessoas que não pertenciam nem à nobreza nem ao
clero, englobava tanto os burgueses como os operários. É importante destacar que a Revolução
Burguesa tem sua base intelectual no pensamento filosófico de século XVIII – conhecido como o
Século das Luzes. Dentre os intelectuais que influenciaram o pensamento da Revolução, pode-se
citar Montesquieu (o Espírito das Leis) e Rousseau (o Contrato). Montesquieu defendia a divisão
de poderes como forma de proteção aos indivíduos. Enquanto que Rosseau defendia a
codificação, argumentando que deveriam existir três códigos: um político, um civil e um criminal todos possuindo maior clareza, precisão e concisão possíveis.
68
CARVALHO, Orlando de. A teoria geral da relação jurídica; seu sentido e limites. 2. ed. Coimbra:
Centelha, 1981, p. 72.
65
29
O discurso solidificado no Code era de que se todos fossem iguais perante a lei
e livres entre si e o Estado, poderiam estabelecer relações contratuais livremente, e
o que fosse acordado seria eqüitativo. Se o contratado era justo (justiça decursiva da
liberdade e igualdade das partes), o pacto precisava apresentar força obrigatória.
Contratado, assim, com embasamento na autonomia da vontade, nem ao Estado era
lícito intervir no conteúdo da relação contratual, salvo raras exceções de ordem
pública e contrariedade aos bons costumes.
Como já mencionado, na codificação francesa de 1804, o eixo principal é o que
liga a propriedade ao contrato. A liberação da propriedade das incumbências feudais
seria insuficiente se não tivesse sido seguida pela possibilidade de fazer circular os
bens do direito de propriedade, a qual era garantida pela declaração da total
liberdade de contratar.
Como refere Bonavides69, o Code conforma a infra-estrutura do capitalismo
liberal com a superestrutura política, social e jurídica das instituições individualistas.
Completa na esfera civil a faina já consumada na esfera política com o novo direito
público das Constituições pós-revolucionárias.
A ideologia liberalista, que foi a base de toda a Revolução Francesa70, serviu
também como base para o Código Napoleônico de 1804, que possuía, como tríplice
objeto de incidência, com relação ao direito privado: a família, o contrato e a
propriedade. O referido Código era sustentado pelo binômio igualdade/liberdade,
que preceitua que todos os homens nascem livres e iguais, tendo, portanto, igual
capacidade para procurar o que é melhor para si, respeitando-se a vontade de cada
um.
69
70
BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 72.
GOMES, Orlando. Contratos. 25. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 6, referindo-se à formação
histórica e aos pressupostos dos contratos, analisados durante o período da Revolução Francesa,
afirma que “o conjunto de idéias então dominantes nos planos econômico, político e social,
constitui-se uma matriz da concepção do contrato como consenso e da vontade como fonte de
efeitos jurídicos, refletindo-se nessa idealização o contexto individualista do jusnaturalismo,
principalmente da superestimação do papel do indivíduo”.
30
O homem é concebido como possuidor de direitos precedentes e oponíveis a
qualquer ordem jurídica, cujo intuito seria garanti-los, permitindo a dilatação de sua
liberdade. Os direitos de individuais equivaleriam aos direitos de todos,
consagrando-se o princípio da igualdade formal.
Na França, tem-se o modelo de experiência revolucionário-constitucional mais
influente de todos. Um tanto porque a França, quando da Revolução, vinha de seu
apogeu. Um tanto porque ela estava no próprio cerne do continente europeu,
portanto, no palco mais visível para as evidências históricas e a persuasão ou
influência. E um tanto porque os componentes da Revolução francesa, que foi
também revolução constitucionalizante, se universalizaram de modo especial, se
apresentaram exemplares aos olhos do mundo.
Os grandes pilares substanciais do Código Napoleônico estão nos seus artigos
544 e 1.134/171, que dizem respeito ao direito de propriedade e ao direito contratual.
O primeiro artigo traduz a ideologia liberal derivada da Revolução Francesa, também
denota que o direito de propriedade é individual, não se admitindo a propriedade
como bem comum. Logo, o segundo artigo considera o princípio no qual o contrato
faz lei entre as partes.
[...] na afirmação solene da equiparação do acordo privado à lei,
ultrapassa-se um formalismo romanístico e penetra-se no racionalismo.
Recorde-se como, para Hobbes, a lealdade contratual era uma exigência
da paz social, sendo, para Pufendore, de observar santamente, dada a
natureza social do homem, Esta orientação foi mantida e aperfeiçoada em
Domat e Pothier. Mas também aqui o entusiasmo formal transcendeu o
substancial: apenas seriam lei, entre as partes, as convenções legalmente
formadas. De entre as limitações mais variadas, que o tempo iria
agravando, salienta-se, desde o início, a exigência de formalidades
pesadas para a celebração dos contratos mais significativos - os referentes
72
a imóveis [...].
A argumentação que se desenvolveu anteriormente permite destacar que o
Code concedia a tutela jurídica para que o indivíduo pudesse desenvolver, com total
71
72
CORDEIRO, António Manuel da Rocha Menezes. Da boa-fé no direito civil. Coimbra: Almedina,
1997, p. 232: “Art. 544: A propriedade é o direito de gozar e de dispor dos bens da forma mais
absoluta, desde que não se faça deles um uso proibido pelas leis e pelos regulamentos.
Art. 1.134/1: As convenções formadas legalmente valem como lei para aquelas que as fizerem
[...]”.
CORDEIRO, António Manuel da Rocha Menezes. Da boa-fé no direito civil. Coimbra: Almedina,
1997, p. 233.
31
liberdade, a sua atividade econômica. As limitações eram as imprescindíveis a
admitir o convívio social.
Para o Código Francês, a liberdade e a propriedade estão ligadas
indissoluvelmente. Sem propriedade não pode haver liberdade. E as regras
que ligam as pessoas às coisas são justamente os contratos. O contrato
representa o acordo dos contratantes e configura a oportunidade da
burguesia ascendente de adquirir os bens das classes antigas, detentoras
73
de bens, mas de forma improdutiva.
Assim, o contrato é considerado o ponto culminante do individualismo, uma vez
que representa uma segurança para a classe burguesa e para os proprietários. A
nova classe dominante almeja promovê-lo, numa relação de aliança subalterna74, já
que a classe de comerciantes passa a deter o poder econômico. Por outro lado, os
proprietários não poderão ser privados de seus bens, sem sua manifestação de
vontade.
É oportuno considerar que o Código Civil alemão de 1894 (BGB) surgiu como
conseqüência da organização metodológica da pandectística alemã, através de
construções jurídicas de alicerce sistemático que o antecederam.75 Sofreu forte
influência da doutrina liberal-burguesa. Não fugiu do ideal positivista e da estrita
vinculação do juiz à lei76, refletida em rígida estrutura conceitual de clareza e
coerência. Diferentemente, o Code nasceu no ápice da ascensão da classe
burguesa do século XIX, enquanto o BGB surge no início do século XX, submerso a
críticas de cunho socialista por não existirem em seu conteúdo preocupações de
ordem social, colidente com a doutrina individualista. Havia também o alarido dos
excluídos para que tivessem direitos sociais garantidos pelo novo estatuto civil de
contorno a atenuar as implicações devastadoras da Revolução Industrial. Essas
contestações foram atendidas após o primeiro pós-guerra e com a Constituição de
Weimar77 em 1919.
73
VENOSA. Silvio de Salvo. Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos
São Paulo: Atlas, 2003, p. 362.
74
ROPPO, Enzo. O contrato. Coimbra: Almedina, 1988, p. 46.
75
CORDEIRO, António Manuel da Rocha Menezes. Da boa-fé no direito civil. Coimbra: Almedina,
1997, p. 285.
76
WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. 2. ed. Tradução de A. M. Botelho
hespanha. Lisboa: Gulbenkian, 1980, p. 544.
77
Weimar é uma pequena e histórica cidade alemã, que a partir do século XVlII, se tornou um centro
cultural. Foi lá que a Assembléia Constituinte alemã se reuniu, após a Primeira Guerra Mundial,
para promulgar uma constituição que pudesse propiciar a reconstrução da Alemanha.
32
Assim sendo, O BGB78-79 regulou as normas contratuais diferentemente
daquelas previstas no Code. O contrato aparece como subespécie, que abarca
outras figuras compreendidas no conceito de negócio jurídico. A normativa do BGB
apresentava três espécies de regras: uma regulando toda a matéria contratual, outra
para cada um dos tipos de contrato e, ainda, outra para disciplinar o negócio jurídico,
pois o fato de o Código alemão ter sido editado quase um século após o Código
francês positivou o direito em um distinto período histórico.
Para Roppo, no sistema alemão predomina a vontade, sendo impensável o
estudo do contrato sem uma compreensão da teoria dos negócios jurídicos.80 Assim,
sendo o negócio jurídico uma categoria mais ampla que o contrato, este, por si só,
não transfere a propriedade. Tal sistema é adotado em nossa lei civil de 1916 e
mantido no estatuto civil de 2002.
Para o liberalismo econômico do século XIX, o contrato era um dos mais
importantes institutos jurídicos, como instrumento da movimentação de
riquezas na sociedade. Na visão do liberalismo o Estado deveria abster-se
de qualquer intervenção nas relações entre os particulares. Se o indivíduo
era livre tinha a liberdade de contrair ou não obrigações, também tinha o
direito de defender-se contra a imposição de outras obrigações para as
81
quais não tenha manifestado a sua vontade.
A legislação regulava os contratos sob dois princípios básicos: liberdade
contratual e autonomia da vontade. A primeira consistia na faculdade atribuída à
parte de decidir sobre a conveniência e a oportunidade de contratar, na possibilidade
de escolher a outra parte e na alternativa pelo tipo de contrato mais apropriado às
78
Além do Código de Napoleão, o BGB é mais um grande modelo de construção legislativa de um
sistema de direito privado, proporcionado pela história dos ordenamentos continentais,
especialmente aos atos de circulação de riqueza.
79
CORDEIRO, António Manuel da Rocha Menezes. Introdução. In: CANARIS, Claus-Wilhelm.
Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Traduzido por A. Menezes
Cordeiro. Lisboa: Gulbenkian, 1989. O BGB foi elogiado, por muitos juristas, quanto à sua
construção. Decorrência do amadurecimento germânico e de suas diferentes escolas do
pensamento jurídico: a jurisprudência dos conceitos, a jurisprudência dos interesses, o
pensamento do Direito livre, o formalismo neokantiano e o psicologismo.
80
ROPPO, Enzo. O contrato. Coimbra: Almedina, 1988, p. 47.
81
SlLVA, Agathe Schimidt. Cláusula geral de boa-fé nos contratos e consumo. Revista de Direito do
Consumidor, 1996, p. 147. v.17.
33
suas necessidades econômicas. O princípio da autonomia defendia que a parte era
livre para arrazoar e instituir o conteúdo do contrato.82
O Estado Liberal exigia um afastamento quase incondicional entre o Estado e a
Sociedade, que por isso não precisava intervir nas relações entre particulares, mas
necessitava consentir a liberdade contratual como representação do postulado
culminante da autonomia da vontade. O julgador deveria, apenas, fazer um controle
formal da presença ou não da vontade e de um acordo imune de vícios ou defeitos,
sem controlar o conteúdo do contrato. Assim, a lei tinha apenas um papel
interpretativo ou, no máximo, supletivo da vontade.
À luz de uma perspectiva histórica, Roppo observa que a ideologia da liberdade
de contratar assume:
[...] peculiaridades cambiantes nacionais, assume formas específicas,
traduz-se em expressões conexas com as particularidades do contexto
histórico, económico, social e cultural em que actua, Descrever os modos
como a ideologia da liberdade de contratar se exprime na codificação
francesa e na codificação alemã significa delinear os dois grandes sistemas
que (juntamente com o da common law anglo-americano, não traduzido
num texto codificado) adotaram, historicamente, aquela ideologia, no
quadro da evolução jurídica do ocidente capitalista, tornando-se como que
83
modelos para grande parte dos outros sistemas nacionais.
Assim, evidencia-se que a liberdade de contratar, no Code e no BGB, traduziase na ideologia da evolução jurídica do ocidente capitalista, e isso fez com que se
tornassem modelos a outros sistemas nacionais.
Beviláqua destaca o contrato, no Brasil, como um conciliador dos interesses
conflitantes, como um pacificador dos egoísmos em luta. Conforme o autor, essa é a
primeira e mais majorada função social do instituto. Contudo, admite que o contrato
82
MARTINS-COSTA, Judith. Crise e modificação da idéia de contrato no direito brasileiro. Revista de
Direito do Consumidor, São Paulo, n. 3, p. 130, set./dez. 1992. Interessante é a observação de
Martins-Costa, no que se refere à vontade: “A idéia de vontade como expressão suprema e
inderrogável do indivíduo e de sua liberdade intrínseca alcança o Código Napoleônico na forma de
sua síntese: se a lei e o contrato são fontes das obrigações, os efeitos jurídicos que não fluíssem
da vontade seriam derivados da norma, elevando-se a vontade, com este procedimento, à
categoria de lei. Daí o contrato ser considerado fonte primordial das obrigações como e enquanto
manifestação da vontade”.
83
ROPPO, Enzo. O contrato. Coimbra: Almedina, 1988, p. 41.
34
passou a ser um dos modos de garantir a individualidade humana que carece ser
desprendida do coletivismo primitivo.84
Com a Revolução Industrial, a partir do século XIX, a liberdade contratual
atingiu o ápice. Ressalta Buzaid que se passou a impetrar “no contrato aquele clima
de liberdade, que foi o índice marcante do pensamento jurídico democrático e da
filosofia política individualista”.85
Efetivamente, essa revolução não representou somente a baliza de uma
incomum forma de produção de bens, foi ainda uma idealizadora de uma imensa
modificação na visão do contrato, não podendo este permanecer aprisionado a um
paradigma clássico, formalmente igualitário e exclusivamente de ordem privada,
necessitando adicionar em seu conteúdo a influência estatal para o equilíbrio
social86, sobrepondo-se o interesse da coletividade sobre o privado.
Com a referida revolução, a urbanização, a economia de massa, as guerras
européias e a influência do Estado nas relações contratuais eram infalíveis. A
ingerência pública nos contratos provocou reação dos civilistas clássicos, que
acusaram a publicização do direito civil, além da crise da autonomia da vontade e da
crise do contrato.
Portanto, o século XIX desenvolveu, com ampla repercussão, a autonomia da
vontade e a liberdade contratual87. Na época contemporânea, em razão do
84
85
86
87
BEVlLÁQUA, Clóvis. Direito das obrigações. Belo Horizonte: Paulo Azevedo, 1954, p. 130-132,
admite que suas idéias sofriam contestações dos juristas que identificavam a decadência do
contrato. Entre eles: RIPERT, Gaston MORIN e JOSSERAND.
BUZAID, Alfredo. Da ação renovatória: de contrato de locação de imóveis destinados a fins
comerciais. São Paulo: Saraiva, 1958. p. X. Prossegue o autor: “O contrato supõe a liberdade. O
contrato, escreveu Esmein, por sua natureza, respira a liberdade. E quando no começo do Século
XX se falou da doutrina da autonomia da vontade, isto é, da liberdade contratual, como tendo
preponderado de modo absoluto, no decurso do Século XIX, exagerou-se a importância que lhe
deram os redatores do Código Civil e da jurisprudência. As restrições à liberdade contratual, que
resultavam de disposições legais particulares e do princípio da nulidade de convenções contrária à
ordem pública e aos bons costumes, foram sempre consideráveis. Feita esta reserva, é certo que o
Século XIX foi um século de grande liberdade contratual."
LÔBO, Paulo Luiz Netto. O contrato: exigência e concepções atuais. São Paulo: Saraiva, 1996, p.
27.
DANTAS, San Tiago. Evolução contemporânea do direito contratual. Revista Forense. Rio de
Janeiro, v. 139, p. 5, jan./fev. 1952. "Não há exagero em dizer que o direito contratual foi um dos
instrumentos mais eficazes da expansão capitalista em sua primeira etapa..." e "...se é certo que
35
desenvolvimento social e da economia capitalista de produção, o conceito de
contrato88 passou por grandes modificações. Trata-se de uma nova realidade, novas
inquietações surgem, demandando a ingerência do Estado no domínio econômico,
balizando negócios, contendo setores, normatizando, isto é, conduzindo os
negócios da economia. “O contrato deixa de ser apenas um instrumento de
exercício de direitos para ser também instrumento de política econômica”.89
Portanto, com todo esse dirigismo estatal, apresentam-se precários os institutos
privados existentes. Entre eles, o próprio instituto do contrato. Enfim, “a noção de
contrato, até então marcadamente privatística, passa a sofrer influxos das tendências
publicísticas”.90
Vale frisar que, com o ingresso de máquinas no processo de produção, tem-se
uma variação estrutural: a troca do trabalho humano por máquinas, o êxodo rural, o
surgimento de uma nova classe social (a operária); a dilatação do comércio, as
concentrações de capitais para exploração de indústrias (macroempresas); a pugna
pela absorção de mercados, minimização dos custos, preços mais compatibilizados,
salários menores, movimentos de amparo aos trabalhadores; inquietação do homem
com o hipossuficiente, especialmente na relação laboral e nas relações contratuais
(novas técnicas e maneiras de contratação em massa). 91 Portanto, com a renovação da
teoria contratual por meio das disposições sociais e da realidade da sociedade de
massas, o Estado interfere nas relações obrigacionais através da fiscalização e do
comando de certos negócios pela definição de quotas e preços menores evoluindo para
leis limitadoras do poder de auto-regular determinadas cláusulas e ocasionar o
conteúdo de determinados contratos. A ingerência do Estado na formação dos
deixou de proteger os socialmente fracos, criou oportunidades amplas para os socialmente fortes,
que emergiam de todas as camadas sociais, aceitando riscos e fundando novas riquezas".
88
WALD, Arnoldo. Curso de direito civil brasileiro: obrigações e contratos. 13. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1998, p. 183-184. Este autor complementa: “Constituiu assim, o contrato o
instrumento eficaz da economia capitalista na sua primeira fase, permitindo, em seguida, a
estrutura das sociedades anônimas as grandes concentrações de capitais necessárias para o
desenvolvimento da nossa economia em virtude do grande progresso técnico, que exige a criação
de grandes unidades financeiras, industriais e comerciais”.
89
LÔBO, Paulo Luiz Neto. O contrato: exigências e concepções atuais. São Paulo: Saraiva, 1996, p.
19.
90
FILHO, Artur Marques da Silva. Revisão judicial dos contratos. In: BITTAR, Carlos Alberto (Coord.).
Contornos atuais da teoria dos contratos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993. p. 123.
91
BITTAR, Carlos Alberto; BITAR FILHO, Carlos Alberto. Direito civil constitucional. 3. ed. rev. e atual.
da 2. ed. da obra O direito civil na Constituição de 1998. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2003, p. 116-119.
36
contratos passa a ser desempenhada não somente pelo legislador, como, ainda, pelos
órgãos administrativos e pelo judiciário.
Digna de registro também, a II Guerra Mundial foi outro período histórico que
refletiu na teoria geral dos contratos. Devido aos abusos e atentados contra a dignidade
da pessoa humana, as constituições da época arraigaram nos seus textos cláusulas
gerais de proteção da dignidade da pessoa humana92, com representação no direito dos
contratos, discorrendo sobre despatrimonialização e repersonalização do Direito Civil. A
inquietação era a valorização da pessoa humana, em sua dignidade, necessitando
prevalecer sobre as demandas de ordem patrimonial.
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 representou a socialização, o
intervencionismo público, a publicização, a despatrimonialização e a repersonalização
do direito civil, ou seja, a Constituição Federal de 1988 alicerçou a “civilização” do
direito civil.93
Cabe evidenciar que, nos dias atuais, “o contrato tem uma função social, sendo
veículo de circulação da riqueza, centro da vida dos negócios e propulsor da
expansão capitalista”94. Sabe-se que o sistema contratual é importante na vida dos
negócios, porém, muitas vezes, tais negócios não cumprem sua função social
perante a coletividade. Esse instituto continua a existir para vincular as pessoas e
para ser cumprido. E a vontade sempre deverá prevalecer, dentro da licitude da
nova principiologia do contrato. A seriedade do contrato pela sociedade explica a
92
Apenas ao longo do século XX e apenas a partir da Segunda Guerra Mundial, a dignidade da
pessoa humana passou a ser adotada nas Constituições, especialmente após ter sido consagrada
pela Declaração Universal da ONU de 1948. Entretanto, a ação pioneira é aceita como pertencente
à Lei Fundamental de Bonn, de 23 de maio de 1949, responsável por celebrar, no seu art. 1.1., a
seguinte declaração: “A dignidade do homem é intangível. Os poderes públicos estão obrigados a
respeitá-la e protegê-la”. A Constituição da República Portuguesa, promulgada em 1976, expressa,
logo no seu art. 1º, essencial aos princípios fundamentais, que: “Portugal é uma República
soberana, baseada, entre outros valores na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e
empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”. Igualmente, a Constituição da
Espanha, acontece após o fim do franquismo, expressa : “A dignidade da pessoa, os direitos
invioláveis que lhe são inerentes, o livre desenvolvimento da personalidade, o respeito pela lei e
pelos direitos dos outros são fundamentos da ordem política e da paz social”. Na França, apesar
de ter tradição na proteção dos direitos individuais, não se localiza o princípio explicitado no texto
da Constituição de 1958. Com o fim do comunismo no leste europeu, as recentes constituições dos
países que se filiaram a esse tipo de governo totalitário, passaram a cultuar a dignidade do ser
humano.
93
TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 22.
94
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das obrigações: contratos. 5. ed. rev. São Paulo: Saraiva,
2001, p. 5, v. 6. Parte Especial - Tomo l.
37
duração do instituto ao longo dos séculos, assim como sua conformação a distintas
realidades, ainda perante as modificações substanciais.95
Podem-se destacar duas concepções que conceituam e fundamentam a teoria
contratual: a clássica e a moderna96. O contrato, segundo a teoria contratual clássica
e sob a perspectiva do Estado Liberal, incide num instrumento de intercâmbio
econômico entre particulares, pelo qual vigora de maneira ampla e livre o princípio
da autonomia da vontade.
Entretanto, de acordo com a teoria contratual moderna, a imposição
progressiva do Estado Social (fins do século XIX e início do século XX), enfraqueceu
as concepções tradicionais, alcançando o direito contratual de forma a melhorá-Io,
acrescentando-lhe novos princípios, limitadores dos antigos e com o intento de
atender o interesse coletivo.97
O contrato, então, começa a cumprir duas funções fundamentais: a econômica,
relacionada com o respeitável papel que prestam os contratos para a circulação de
riquezas na sociedade; e a social, para a qual o contrato incide num importante
instrumento de civilização, isto é, de educação do povo para a vida em sociedade.
Gomes98, ao discutir a transformação da teoria dos contratos, enfatiza três
importantes fatores: o primeiro diz respeito ao equilíbrio entre as partes contratantes,
que não foi assegurado pelo princípio da igualdade formal dos indivíduos. O
segundo tem relação com as novas técnicas de contratação conferidas pela
massificação dos contratos, a qual salientou o elemento da despersonalização dos
contratantes. E, por fim, o terceiro versa na influência do Estado na vida econômica,
aludindo a Iimitação da liberdade de contratar e a contração da esfera de autonomia
privada.
95
WALD, Arnoldo. Um novo direito para a nova economia: a evolução dos contratos e o Código Civil.
In: DINIZ, M. H.;LISBOA, R. S. (Org.) O direito civil no século XXI. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 92.
96
REIS, Jorge Renato dos. A função social do contrato e sua efetiva vinculatividade às partes
contratantes. Revista do Direito, n. 16, jul./dez. 2001, p. 112.
97
THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato social e sua função. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p.
1-2.
98
GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 7.
38
Nesse escopo, é pertinente identificar e caracterizar os princípios norteadores
da teoria contratual, segundo sua concepção clássica e moderna, uma vez que
novos princípios foram destacados, sem que houvesse abandono dos princípios
tradicionais. Em face disso, será analisado, primeiramente, o conceito clássico do
contrato, para uma melhor compreensão da transformação desse instituto.
1.1.1 O conceito clássico do contrato
Alinha-se oportuna a formulação conceitual da visão clássica do contrato, cuja
origem foi herdada no século XIX, no período do liberalismo na economia e do
individualismo nas relações jurídicas, fundamentada no absolutismo da autonomia
da vontade. O contrato é instrumento econômico entre os indivíduos, em que a
vontade impera ampla e livremente. É a autonomia da vontade que determina a
força do acordo realizado entre os contratantes.
Segundo os ensinamentos de Theodoro Júnior, o sistema contratual clássico
encontra-se infundido no indivíduo e limitado “subjetiva e objetivamente à esfera
pessoal e patrimonial dos contratantes”.99 No referido sistema, estão aliados três
princípios fundamentais:
a) o da liberdade contratual, de sorte que as partes, dentro dos limites da
ordem pública, podem convencionar o que quiserem e como quiserem; b) o
da obrigatoriedade do contrato, que se traduz na força da lei atribuída às
suas cláusulas (pacta sunt servanda); e c) o da relatividade dos efeitos
contratuais segundo o qual o contrato só vincula as partes da convenção,
100
não beneficiando nem prejudicando terceiros).
No que tange a essa concepção, Reis101 acredita que sua origem está na
Revolução Francesa de 1789, quando se deu início ao Estado Liberal, influenciado
pelas teorias de ordem econômica e política, sofrendo ainda influência das teorias
99
THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato social e sua função. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p.
1.
100
THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato social e sua função. Rio de Janeiro: Forense, 2003,
p. 1-2.
101
REIS, Jorge Renato dos. A função social do contrato e sua efetiva vinculatividade às partes
contratantes. In: Revista do Direito, n. 16, jul./dez. 2001, p. 114-115.
39
ético-jurídicas do direito canônico e do direito natural. De acordo com o referido
autor:
O direito canônico contribuiu decisivamente para a formação da visão
clássica do direito, eis que pregava a libertação do direito do formalismo
exagerado e da solenidade que caracterizava o direito romano, defendendo
a força obrigatória da promessa em razão dela própria, e não da
solenidade que eventualmente a cercasse. [...] A vontade é fonte da
obrigação e esta deve nascer fundamentalmente de um ato de vontade,
bastando a sua declaração. Esta declaração deveria ser cumprida em
respeito à palavra dada, isto é, o homem era livre para contratar, mas
contratando, o inadimplemento de sua promessa expressada no contrato,
antes de se constituir uma infração jurídica, constituía-se num pecado
religioso.
A teoria do direito natural, racionalista e individualista, por sua vez,
fundamenta-se basicamente nas idéias de Kant, para quem a pessoa
humana é um ente de razão, uma fonte fundamental do direito, sendo
através de seu agir, de sua vontade, que a expressão jurídica se realiza.
[...] O fundamento racional do nascimento das obrigações encontrava-se na
vontade livre dos contratantes, onde o consentimento era suficiente para
102
obrigar, sob a base do dever de veracidade, que é de direito natural.
A autonomia da vontade, considerada na visão clássica103 como o vetor
principal do direito contratual, alcançou o ápice no liberalismo individualista do
século XIX, conforme se constatou na evolução histórica. Tal princípio reconhece as
partes, a liberdade que ambas têm de acordar o que Ihes é conveniente, servindo
como instrumento dinâmico da expansão capitalista.
Na teoria do direito, a concepção clássica de contrato “está diretamente ligada
à doutrina da autonomia da vontade e ao seu reflexo mais importante, qual seja, o
dogma da liberdade contratual”104. Para essa visão, a vontade dos contraentes é o
componente basilar do contrato, como única fonte e como legitimação para o
surgimento de direitos e obrigações. Apenas a vontade livre e real, isenta de vícios
ou defeitos, pode dar origem a um contrato válido.
102
103
104
REIS, Jorge Renato dos. A função social do contrato e sua efetiva vinculatividade às partes
contratantes. In: Revista do Direito, n. 16, jul./dez. 2001, p. 114-115.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1984, p. 351 afirma que o contrato na concepção tradicional denota o ato produtor
de uma norma. O mesmo autor também observa que o contrato é um negócio jurídico típico, onde
as partes acordam como se conduzir uma em relação à outra. Esse ato é um fato produtor de
Direito. No momento em que a ordem jurídica confere às partes subordinadas ao negócio a
capacidade de regularem suas relações contratuais, respeitando as normas legislativas, ocorreria
a concretização do que hoje denominamos Princípio da Supremacia da Ordem Pública.
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das
relações contratuais. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 54.
40
Observa-se que o papel do direito será o de proteger a vontade e de garantir a
concretização dos fins demandados pelas partes contratantes. A tutela jurídica
limita-se a possibilitar a estruturação de relações jurídicas próprias mediante os
contratos, desinteressando-se pela condição econômica e social dos contraentes, e
pressupondo a existência de uma igualdade e liberdade no momento de adquirir a
obrigação.
Segundo Betti, a manifestação essencial dessa autonomia é o negócio jurídico,
[...] o qual é concebido como um acto de autonomia privada, a qual o direito
liga o nascimento, a modificação ou extinção de relações jurídicas entre
particulares. Esses efeitos jurídicos produzem-se na medida em que são
previstos por normas que, tomando por pressupostos de facto o acto de
autonomia privada, os ligam a ele como sendo a fatispécie necessária e
105
suficiente.
O negócio jurídico representa uma declaração de vontade de uma ou mais
pessoas capazes, com um significado objetivo determinado, visando a efeitos
jurídicos, desde que lícitos e não insultantes da vontade declarada e do
ordenamento jurídico.106 Notadamente, conclui-se que o elemento principal do
negócio jurídico é a manifestação de vontade das partes; e o mesmo passou a ser o
instrumento por meio do qual a vontade dos indivíduos contraiu acepção jurídica –
categoria capital do direito privado.107
Kelsen defende que o negócio jurídico mais importante no Direito108 moderno é
105
BETTI, Emílio. Teoria geral do negócio jurídico. Tradução de Fernando de Miranda. Coimbra:
Coimbra, 1970. p. 98.
106
STOLFI, Giuseppe. Teoria deI negocio giuridico. Pádua: Cedam, 1947. p. 3 define negócio jurídico:
"La manifestazione di voluntà di una più parti che mira a produrre un efetto giuridico e cioè Ia
nascita o Ia modificazione o I'accertamento oppure I'estenzione di un diritto subbietivo". Na
tradução livre: “A manifestação de vontade de mais de uma parte que visa a produzir um efeito
jurídico, isto é, o nascimento, a modificação, a constatação ou mesmo, a extensão de um direito
subjetivo”.
107
FRANÇA, Pedro Arruda. Contratos atípicos. Legislação, Doutrina e Jurisprudência. 3. ed. Rio de
Janeiro: Revista dos Tribunais, 2000, p. 1.
108
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1984, p. 109-286. Após a publicação da obra do positivista Hans Kelsen (1881 –
1973), denominada de Teoria Pura do Direito, ficou entendido no mundo jurídico, de forma
majoritária, a corrente que reconhece o Direito como Ciência. Nesta obra, Kelsen afirmou que a
Ciência do Direito, enquanto conhecimento do Direito Positivo, deve excluir todas as
considerações que são alheias ao seu objeto, visando sempre a purificação do pensamento
jurídico, sem nenhuma pretensão a fundamentações sociológicas, políticas ou filosóficas. Propõe
uma depuração do objeto da ciência jurídica, como medida de garantir autonomia científica para a
disciplina jurídica. Uma ciência das normas que atingisse seus objetivos epistemológicos de
41
o contrato; que o contrato incidiria excepcionalmente em uma proposta e na
aceitação absoluta da mesma. Assim, pela aceitação da oferta, pode-se criar uma
norma109 que vincule o proponente, mesmo contra a sua vontade, pois a proposta
tem força vinculativa.110 Por meio do acordo de vontades, é criada uma norma cujo
teor se determina. Desse modo, entre o contrato como fato produtor de normas
jurídicas e a norma criada, deve-se conservar um afastamento. Em uma visão
clássica, o termo contrato é empregado para ambas as designações.111
Mas, como antes visto, o Estado, na ótica liberal, deveria privar-se de qualquer
intervenção nas relações entre os sujeitos. Portanto, se o indivíduo era livre, tinha
direito igualmente de se proteger contra a responsabilidade de outras obrigações
para as quais não tinha exprimido a sua vontade.112
É importante observar que, em sua interação, o Código Civil brasileiro de 1916
seguiu a interpretação clássica113, instituindo um arquétipo de contrato, centrado na
neutralidade e objetividade, expulsando do ambiente científico os juízos de valor, como já o
haviam feito as demais disciplinas científicas. Apresenta o ordenamento jurídico positivo (conjunto
das normas válidas) como uma pirâmide de normas, onde ficam articulados aspecto estático e o
aspecto dinâmico do Direito. Dentro desta concepção de pirâmide de normas, a noção de
validade formal é o elemento que integra os aspectos referidos acima, pois cada norma retira de
uma outra que lhe é superior, a sua existência e validade.
109
De acordo com KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. 6. ed.
São Paulo: Martins Fontes, 1984, p. 110-116, a distinção entre norma jurídica e proposição
jurídica é fundamental. Primeiramente, a norma jurídica prescreve a sanção que se deve aplicar
contra os agentes de condutas ilícitas. A proposição jurídica (juízo hipotético) conceitua que, dada
a conduta descrita na lei, deve ser aplicada a sanção também estipulada na lei. A forma de
exteriorização do enunciado não é essencial; o que importa, realmente, é o seu sentido. A norma
jurídica, editada pela autoridade, tem caráter prescritivo, enquanto a proposição jurídica, que
advém da doutrina, tem natureza descritiva. Aquela resulta de ato de vontade, enquanto esta
decorre de ato de conhecimento. Dentre outras diferenciações, é no sentido de que a proposição
jurídica descreve a norma jurídica. A partir de um conceito de norma, parte-se para uma
compreensão do que é um sistema de normas, tornando-se necessária a conceituação clara do
que é a norma hipotética fundamental. Qualquer sistema, enquanto conjunto constituído por
elementos constituintes, necessita de uma base e assim também ocorre com o sistema legal de
normas. Valendo-se da estrutura hierárquica das normas, uma norma deve dar validade e eficácia
a todas as outras subseqüentes e posteriores.
110
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1984, p. 354.
111
O modelo oferta-aceitação proposto por Kelsen não se ajusta à moderna teoria contratual.
112
Os principais fundamentos desse modelo liberal de contrato são: a liberdade de contratar, a
obrigatoriedade da convenção e os efeitos desta, atrelando apenas aos contratantes e à boa-fé.
113
O código Civil Brasileiro, mesmo que aprovado em 1916 e vigorado em 01.01.1917, foi elaborado
nos fins do século XIX, ficando vários anos no Congresso Nacional, esperando aprovação. Com
isso sua redação pautou-se pelo liberalismo, ainda que, em outros países o liberalismo estava em
decadência. A organização social e política do Brasil no final do século XIX e início do século XX
refletia um primitivismo patriarcal reforçado por uma sociedade colonial, formada por famílias que
detinham a propriedade territorial e cujos políticos agiam em defesa de seus interesses. Isso fez
42
individualidade, solenizado na igualdade formal que faz lei entre os contratantes, e
sua eficácia é adotada no pacta sunt servanda. Dessa forma, se os contratantes são
livres para solenizar um contrato e o fazem, assumem todas as obrigações
acordadas, carecendo ser cumprido aquilo que foi acertado – princípio da
intangibilidade contratual.114
Esse código seguiu os postulados do Código de Napoleão, repetindo os
valores daquela legislação. Valores baseados no individualismo, autonomia da
vontade, propriedade individual, ou seja, valores advindos do Estado Liberal.
Designadamente no que diz respeito à matéria contratual, o Código Civil abrigou
muitas regras da legislação francesa, principalmente a adoção dos princípios.115
Deve-se lembrar que o Código Civil Brasileiro também foi influenciado pelo
Código Civil Alemão de 1896 (BGB), pelo fato de o contrato ser uma subespécie do
negócio jurídico. Assim sendo, enquanto o Code tinha regras exclusivas ao contrato,
o Código Brasileiro sujeita o contrato às regras que aplicam aos contratos e também
aos negócios jurídicos.
Existe um consenso de que o modelo clássico de contrato, fundamentado nas
concepções de ampla liberdade de contratar e de absoluta sujeição a seus termos,
formou-se a partir da ideologia liberal. Os princípios da igualdade das partes, da
obrigatoriedade dos contratos (pacta sunt servanda), da autonomia da vontade
(liberdade contratual), da relatividade dos contratos (efeitos restritos às partes), e da
intangibilidade destes, se por um lado foram criados para garantir total liberdade
entre os contratantes para dispor de seus interesses da maneira que desejassem,
por outro, essa liberdade mostrou que esse modelo, ao invés de libertar, cada vez
mais aprisionava a parte social ou economicamente mais fraca. A isonomia
114
115
com que o Código Civil refletisse as ambições da classe senhoral, surgindo um perfil bastante
conservador, dando-se maior ênfase ao patrimônio privado do que às pessoas, mantendo os
privilégios da classe burguesa agrária sem avanços em direitos políticos e sociais.
DONNINI, Rogério Ferraz. A Constituição Federal e a concepção social do contrato. In: VIANA, R.
G. C.; NERY, R. M. de A. (Org.). Temas atuais de direito civil na Constituição Federal. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2000, p. 70.
SERPA LOPES, Miguel Maria. Curso de direito civil. 4. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1991,
p. 12 enfatiza que alguns juristas brasileiros já anteviam reflexos do movimento social no direito
brasileiro. Especialmente no que diz respeito à crítica feita ao Código Civil brasileiro por não ter
contemplado em seu conteúdo a definição específica de contrato segundo os limites legais ou
preceitos morais.
43
enfraquecia-se cada vez mais diante do poder econômico das indústrias que se
constituíam e estabeleciam suas condições; a liberdade de escolher com quem
contratar era mitigada pela impossibilidade de contentamento das necessidades do
indivíduo por outros meios senão por meio da aquisição de bens do grande produtor;
o direito de propriedade viabilizou a concentração de capital.116
Com base nessa conjuntura histórica, pode-se dizer que o contrato no seu
entendimento tradicional representou um instrumento de circulação de riqueza,
baseado na liberdade de contratar, na vontade convergente das partes em realizar
tais condições (consensualismo), tornando o teor contratual congruente à lei, ou
seja, obrigando os contraentes nos seus termos.
A análise de Marques chama a atenção para uma abordagem autocentrada
sobre os elementos basilares que caracterizam a concepção tradicional de contrato,
os quais apontam: “(1) a vontade (2) do indivíduo (3) livre (4) definindo, criando
direitos e obrigações protegidos e reconhecidos pelo direito.”117
A concepção clássica do contrato, conforme a autora, não é resultado de um
único momento histórico; representa o ápice da evolução teórica do direito após a
idade média, da evolução social e política nos séculos XVIII e XVX, com a revolução
francesa, o nacionalismo crescente e o liberalismo econômico. O entendimento
dessa teoria clássica estabelece que se analisem igualmente as origens dessa
concepção, levando em consideração o reflexo que essas influências teoréticas e
sociais tiveram no nascimento da autonomia da vontade.118
Esse modelo de contrato, individualista, liberal e centrado na vontade, não
atende aos anseios e necessidades da sociedade contemporânea, haja vista que
não mais se aceita como válida uma relação contratual sem equilíbrio, celebrada
116
117
118
BIERWAGEN, Mônica Yoshizato. Princípios e regras de interpretação dos contratos no novo
Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 26.
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das
relações contratuais. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 54.
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das
relações contratuais. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 55.
44
com carência da boa-fé, sob a defesa de que existe a autonomia privada119 e as
partes são livres para contratar.
Feitas as considerações, neste item acerca do conceito clássico do contrato,
nas linhas que se seguem refletir-se-á sobre a influência decorrente da moderna
teoria
contratual
e
suas
transformações
que
ocorreram
na
sociedade
contemporânea, pela ingerência do direito público sobre o privado, visando à
socialização da teoria contratual.
1.1.2 A moderna teoria contratual
O estudo da moderna teoria contratual procura justificar a superação do
conceito clássico de contrato no ordenamento jurídico, uma vez que esse conceito
dá espaço aos contratos de massa, os quais demandam a influência do Estado em
suas normas; portanto, a ausência do Estado nas relações privadas fica cada vez
mais longínqua.120
A partir do século XX, verifica-se a necessidade de revisão dos principais
fundamentos da Teoria Contratual Clássica, devido à variedade de relações jurídicas
originada
da
concentração
de
pessoas
nas
cidades
e,
sobretudo,
pela
impossibilidade de contratação, quanto ao conteúdo, na sua forma individualizada.121
A exploração desacerbada, pelo liberalismo clássico, do exercício da
autonomia da vontade (liberdade contratual), entra em processo autofágico.
O homem contratante acabou no final do século passado e início do
presente, por se deparar como uma situação inusitada, qual seja, a da
despersonalização das relações contratuais, em função de uma
preponderante massificação, voltada ao escoamento em larga escala, do
que se produzia nas recém-criadas indústrias.
119
120
121
GAZZONI, Francesco. Obbligazioni e contratti. Napoli: Edizione Scientifiche Italiane, 1993, p. 731.
Para este autor, a autonomia é a faculdade de auto-regulamentação dos próprios interesses.
Neste momento, importante se faz destacar que a expressão “Estado do Bem-Estar” se refere a
um modelo de Estado preocupado em estabelecer a igualdade de oportunidades a todos os
cidadãos, criando algumas alternativas de intervenção na economia. Alguns autores se reportam
a esse modelo como Estado Social ou Estado Providência.
GOMES, Rogério Zuel. Teoria contratual contemporânea: função social do contrato e boa-fé. Rio
de Janeiro: Forense, 2004, p. 61.
45
Nesse novo contexto contratual, a moldura descrita pelo Code e códigos
afins, perde o contato, em definitivo, com os fatos da vida; a tão festejada
liberdade contratual não dava mais conta de explicar o fenômeno da falta
de liberdade material, mas não jurídica, daquele que contratava por
122
adesão.
Com o Código Civil francês, o contrato não estava condizente com os
acontecimentos do cotidiano; a liberdade contratual não conseguia esclarecer a falta
de liberdade material. Necessário se faz salientar que, por liberdade contratual, no
conceito clássico, entendia-se a possibilidade de contratar ou não, a escolha do
outro contratante e, também, a eleição do conteúdo do contrato.
Voltando-se os olhos à história, verifica-se que houve uma crise do modelo
clássico de contrato, devido à mudança da maneira de se contratar, não obstante
ainda se fazendo presente o contrato paritário. Por outro lado, é inegável a
declaração de que esse tipo de contrato, na época de relação de mercado, é a
exceção. Nessa linha de pensamento, parece útil considerar a crise do contrato, em
que o ordenamento jurídico não mais dá conta da realidade fática, devido à abrupta
mudança citada acima.
Desde a Revolução Francesa e passando-se pela Industrial, diversas causas
deram origem à mutação da idéia de contrato, refletindo-se no seu regime legal e de
interpretação.
O período da Revolução Industrial123 não só representou o balizador inicial de
produção de bens, como também funcionou como instrumento propulsor de uma
“revolução” na compreensão do contrato, liberando-o do seu paradigma clássico
para incorporar uma interferência estatal, mas necessária como instrumento de
equilíbrio social.124
122
123
124
NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva
civil-constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 111.
Sobre essa questão, interessantes são as ponderações de STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José
Luis Bolzan de. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2000, p. 55-56. Conforme os autores, em função dos movimentos e partidos liberais do século
XIX, ocorreram importantes transformações sociais: “pôs-se fim à escravidão, incapacidades
religiosas (tolerância), inaugura-se a liberdade de imprensa, [...] o sufrágio foi se estendendo até a
universalização; constituições escritas, o governo representativo; livre comércio; eliminação de
taxações, etc.”
BIERWAGEN, Mônica Yoshizato. Princípios e regras de interpretação dos contratos no novo
código civil. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 26-27.
46
Esta crise da teoria contratual ocorreu devido ao descomedimento do poder
econômico em designação do voluntarismo. Gonella, comentando acerca desse
assunto, assinala que:
La crisi del contrattualismo è in stretto rapporto com glisviluppi deI
volontarismo. Le presunzioni filosofiche sull’onnipotenza della volontà si
sono tradotte in presunzioni sull'onnipotenza deI contrato; l'affermazione di
un primao deI volontarismo sull'intellettualismo ha agevolato, nel campo deI
diritto, una tendenza all'abuso dell'arbitrio contrattuale il quale mira a
sostituiri alIa razionalità della legge. L'abuso deI voluntarismo è quindi
causa diretta della crisi deI contrattualismo. Affermandosi l' onnipotenza del
volere, le parti vergono as avere uma signoria assoluta sul contenuto
dell'oblligazione, Ia volontà soggetiva e paricolare afferma Ia sua priorità
125
rispetto Ia norma obiettiva e universale.
A concepção clássica de contrato não mais se adequa aos tempos atuais,
carecendo da interferência estatal nas relações privadas. Também, a faculdade de
ingerência do Estado na economia causou a atenuação da liberdade de contratar,
abolindo, parcialmente, o domínio da autonomia da vontade, o que acarretou a
decadência da teoria da igualdade formal às partes contratantes, que garantia o
equilíbrio contratual. Os efeitos foram: descontentamento e injusto tratamento legal.
Desse modo, fizeram-se necessárias mudanças no regime jurídico do contrato com
a promulgação de leis de proteção à categoria de indivíduos, compensando a
desigualdade por meio de um tratamento jurídico protetivo. Denota, ainda, dotar o
juiz de meios e modos para alterar as disposições do contrato – impensável no
liberalismo, em que prevalecia a vontade das partes, tendo o Estado a função de
garantidor das regras da livre negociação e dos efeitos do não-cumprimento do
contratado, ou de sua anulação.126
En Ia sociedad actual, harto compleja, es notorio que el conflicto
intersubjetivo bilateral no es análogo aI que involucra magnitudes
125
126
GONELLA, Guido. La crise del contrattualismo. Milano: Guiffré, 1959, p. 39. Na tradução livre: “A
crise do contratualismo tem estreita relação com ‘os desenvolvimentos’ do voluntarismo. As
presunções filosóficas acerca da onipotência da vontade são traduzidas em presunções acerca
da onipotência do contrato: a afirmação de um ‘primado’ do voluntarismo sobre o intelectualismo
favoreceu, no campo do direito, uma tendência ao abuso do arbítrio contratual, o qual visa
substituir a razão da lei. O abuso do voluntarismo é, então, causa direta da crise do
contratualismo. Afirmando-se a onipotência do querer, as partes venham a ter uma autoridade
absoluta sobre o conteúdo da obrigação, a vontade subjetiva e ‘particular’ confirma a sua
prioridade referente a norma objetiva e universal.”
GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Função social do contrato: os novos princípios contratuais. São
Paulo: Saraiva, 2004, p. 6.
47
diferentes de indivíduos. Pero por otro lado, Ia relación interpartes no es
indiferente para Ios demás, en un mundo interrelacionado; Io que hacen
dos incide sobre Ios demás. Se trasladan permanentemente valoraciones,
normas y efectos económicos individuales al resto de Ia comunidad,
generándose un nudo de tensión. Estos fenómenos se acentúan en Ia
contratación masiva. EI impacto socioeconómico de Ias cláusulas abusivas
en el seguro, o en Ia venta de inmuebles para vivienda, o en el crédito, no
puede ya ser ignorado. Algo similar ocurre con Ios ‘megacontratos’, o con
Ias ‘redes’ contractuales como Ias referidas a Ia distribución, o producción
127
de bienes.
O repensar do modelo contratual, ou a constatação de sua crise, aparecem
devido à inadequação entre o modelo contratual de gré à gré (paritário)128 e as
relações de massa. O Code e, do mesmo modo o Código Civil brasileiro, foram
elaborados para que sejam considerados na relação jurídica contratual apenas dois
sujeitos (credor e devedor). As relações plúrimas, coletivas, difusas, ou mesmo
massificadas não se acomodam no modelo das codificações modernas.129 Também,
a vontade das partes deixa de ser o componente básico na nova concepção de
contrato,
surgindo
em
seu
lugar
o
interesse
social.
Dessa
maneira,
o
intervencionismo do Estado torna-se necessário para relativizar o antigo dogma da
autonomia da vontade absoluta. O Estado social provocou o enfraquecimento das
concepções liberais130 sobre a autonomia da vontade na interação negocial, e
distanciou o neutralismo jurídico diante da economia.
127
LORENZETTI, Ricardo Luís. Analisis crítico de la autonomia privada contractual. Revista de Direito
do consumidor, São Paulo, v. 14, p. 8-9, abr./jun. 1995. Na tradução livre: “Na sociedade atual, de
alta complexidade, é notório que o conflito intersubjetivo bilateral não é o mesmo que envolve
tantos outros diferentes indivíduos. Mas por outro lado, a relação interpartes não é indiferente
para os demais, em um mundo interrelacionado; o que fazem dois pode causar impacto sobre os
demais. Transferem-se permanentemente valores, normas e efeitos econômicos individuais para
o resto da comunidade, gerando um nó de tensão. Estes fenômenos se acentuam em uma
contradição massiva. O impacto socioeconômico das cláusulas abusivas no seguro, ou na venda
de imóveis para morar, ou no crédito, não pode ser ignorado. Algo semelhante acontece com os
‘megacontratos’, ou com as ‘redes’ contratuais como as referentes à distribuição, e produção de
bens.”
128
NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva
civil-constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 116-117, muito bem asseverou que o contrato
paritário ou bilateral, baseado na plena e irrestrita liberdade contratual, não se compara às
modalidades contemporâneas de contratação: Contrato Coativo ou Obrigatório; Contrato
Necessário; Contrato-Tipo; e Contrato de Adesão.
129
NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva
civil-constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 116.
130
No plano institucional, o liberalismo significou a construção de um Estado em que o poder se fazia
função do consenso, e em que a divisão de poderes se tornava princípio obrigatório; o direito
prevalecia em seu sentido formal e a ética social repudiava as intervenções governamentais. É de
extrema importância ressaltar que, o estado liberal de direito aprofunda substancialmente as
desigualdades sociais, apesar de ter em seus discursos o poder como legitimação da vontade
geral, de limitação do poder e da garantia dos direitos fundamentais de natureza individual. Sobre
este tema ver MORAIS, José Luis Bolzan de. Do Direito social aos interesses transindividuais: o
Estado e o Direito na ordem contemporânea. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996, p. 92. O
48
Cabe relembrar que a concepção clássica que tem na vontade a exclusiva
fonte criadora de direitos e obrigações, constituindo lei entre as partes, conforme a
qual o Estado é somente o garantidor das regras estabelecidas pela vontade dos
contratantes,131 há muito tempo vem sendo contestada pela nova realidade social
que se impõe.132 O Estado se ocupava minimamente em suas funções, as quais se
sintetizavam somente “à mera vigilância da ordem social e à proteção contra
ameaças externas.”133 Daí a designação Estado Mínimo.134 A mínima intervenção
estatal nas relações entre indivíduos também representa a mínima intervenção na
vida dos contratos.
Nesse contexto, o cenário de influência do Estado nas relações contratuais
privadas,135 isto é, o dirigismo contratual,136 tem elucidação na evolução do Estado
131
132
133
134
135
Estado Social surge como resposta do modelo liberal, buscando, “na modificação de suas
próprias funções e na reformulação de sua principiologia original, um refúgio que evite o colapso”.
Pela exposição feita acima, o autor ainda afirma que o Estado deixa de lado o seu feitio
minimalista, passando a ser regulador promotor do bem-estar social, sendo que o aspecto
promocional passa a incorporar o vocabulário político e jurídico do século XX. Importa destacar
que, o liberalismo é um elemento histórico do pensamento constitucional, e tem uma correlação
direta com o chamado Estado de Direito. A evolução das sociedades modernas e as demandas
do progresso contribuíram para o aumento das atividades do Estado com relação aos problemas
cotidianos, que surgiram de acordo com o interesse do povo.
Sobre o papel da vontade individual para a concepção liberal, SILVA, Clóvis V. do Couto e. A
Obrigação como Processo. São Paulo: José Bushatsky, 1976, p. 18 sublinha: "No Estado Liberal,
com a nítida separação entre Estado e Sociedade, assumiu extraordinário relevo a autonomia dos
particulares, sendo-Ihes deferida quase totalmente a formação da ordem privada. Pela teoria do
Direito, a vontade passou então a ser considerada como elemento natural à explicação das
figuras jurídicas, extensiva até àquelas que não a pressupunham".
MORAIS, José Luis Bolzan de. Do Direito Social aos interesses transindividuais. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 1996, p. 97. Os ideais liberais começaram a entrar em choque em razão do
processo de industrialização (final século XVIII e no século XIX), fazendo surgir conflitos. Morais
comprova esta situação, aludindo que: “[...] é a partir da metade do século XVIII, entretanto, que
começam a ocorrer mudanças na própria estrutura dos conflitos, oriundas diretamente do
acelerado processo de industrialização, fazendo com que emerjam profundas divergências nas
relações capital-trabalho, fruto de crises econômicas cíclicas experimentadas pelo paradigma
liberal. Os litígios, fugindo da perspectiva liberal, passam de confrontos meramente individuais a
conflitos coletivos de classe. Com a Revolução Industrial e a conseqüente transformação que se
opera nas relações de produção e consumo, bem como nas relações sociais lato sensu, fazendo
nascer a nominada sociedade de massas, brotaram, também, os interesses difusos, pois a
mônada isolada cede passo ao homem atrelado jurídica ou faticamente ao grupo, embora sua
institucionalização só vá se dar recentemente.”
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado. 18. ed. São Paulo: Saraiva,
1989, p. 234.
Neste ponto, mais uma vez, vale destacar as sempre lúcidas ponderações de Bobbio, que assim
preleciona: “um dos modos de reduzir o Estado aos mínimos termos é o de subtrair-lhe o domínio
da esfera em que se desenrolam as relações econômicas, ou seja, fazer da intervenção do poder
político nos negócios econômicos não a regra, mas a exceção.” BOBBIO, Norberto. O futuro da
democracia. 7. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 129.
ZINN, Rafael Wainstein. O contrato em perspectivas principiológica: novos paradigmas da teoria
49
Liberal para o Social, buscando garantir a igualdade real dos contratantes,
realizando-se, desse modo, a justiça social. Necessário se faz destacar que se
transforma a visão de justiça contratual. Ao passo que, no Estado Liberal, a justiça
contratual derivava da liberdade das partes poderem contratar e estipular as
cláusulas, no Estado Social, a justiça contratual está em proteger a parte mais fraca
desde a fase pré-contratual até a conclusão e execução do contrato.
Também destaca Nery Júnior que o dirigismo contratual não ocorre em
qualquer situação, “mas apenas nas relações jurídicas consideradas como
merecedoras de controle estatal para que seja mantido o desejado equilíbrio entre
as partes contratantes.”137 Na legislação brasileira, existem os seguintes exemplos
de casos de intervenção estatal na liberdade de contratar: os consumidores (Lei
8.078/90 - fornecedor x consumidor), os locatários (Lei 8.245/91 - locador x
locatário), os trabalhadores (Consolidação das Leis Trabalhistas - empregador x
empregados).
136
137
contratual. In: ARONNE, Ricardo (Org.). Estudos de Direito Civil – Constitucional. V. 1. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 97-98, foi feliz quando citou um significativo exemplo de
jurisprudência, a qual apresenta traços característicos do Estado Social, que intervém nas
relações de Direito Privado. Trata-se de um contrato em que um dos contratantes impôs cláusulas
que lhe eram desproporcionalmente benéficas. Constatada a abusividade, o Judiciário interviu,
tutelado o equilíbrio entre as partes. "Ementa: Ação revisional. Contrato de Abertura de Crédito
em Conta de Empréstimo. Possibilidade de revisar. Tanto o sistema de direito civil como CDC
ensejam a intervenção judicial no dirigismo contratual para ajustamento das cláusulas abusivas,
sendo possível o pleito. Aplicabilidade do CDC Inteligência do § 2°, art. 3°, Lei n° 8.078/90. Juros
Remuneratórios. Devem prevalecer no montante ajustado até o implemento do denominado Plano
Real, ficando, após, ao limite sempre referido pelo ordenamento - 12% ao ano. Capitalização.
Anual - ART. 4°, d. n° 22.626/33. Indexador da correção monetária. Sen do utilizada a TR, embora
não convencionada, deve ser adotado o IGP-M. Comissão de permanência. Tema prejudicado
por não ajustado e nem exigido. Matéria devolvida. A pretensão recursal fica limitada As matérias
devolvidas, que não envolve o pleito por compensação inicialmente indicado. Assistência
judiciária. Satisfeito o requisito do preparo e não apreciado o benefício na instância originária, não
é possível suprir um grau de jurisdição. Apelação provida em parte. (Apelação Cível n°
70000327403, Décima Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Des. Paulo
Augusto Monte Lopes, Julgado em 09/08/00)."
Vale lembrar a lição de Bessone, em que destaca que o dirigismo contratual leva a uma nova
conecpção de contrato: "As intervenções legislativas se multiplicam. Tudo vai sendo
regulamentado com minúcia. Os preços das utilidades são tabelados, o inquilino é protegido
contra o proprietário, os agricultores são beneficiados com as moratórias e o reajustamento
econômico, a usura é coibida, a compra de bens a prestação é regulada de modo a resguardar os
interesses do adquirente. Eis aí uma longa série de medidas contrárias à autonomia da vontade e
aos princípios clássicos - pacta sunt servanda - ou o contrato é lei entre as partes". BESSONE,
Darcy de Oliveira Andrade. Do contrato: teoria geral. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 45.
NERY JÚNIOR, N. et aI. Código de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999, p. 436.
50
Nesse ensejo, Lôbo enfatiza quatro causas que levaram ao dirigismo
contratual, quais sejam:
1. o generalizado processo de concentração de negócios e capitais, com a
produção em massa de contratos padronizados, em termos de "take it or
leave it";
2. a crescente substituição das negociações individuais por negociações
coletivas na sociedade industrial;
3. a tremenda expansão das funções assumidas pelo Estado, resultando
em crescimento do dirigismo e de contratos em que o próprio Estado e
suas entidades são partes;
4. o aumento, ao longo do século XX, de certos fenômenos econômicos,
tais como guerras, revoluções, inflação, tendo como resultado a doutrina da
138
frustração do contrato.
Oportuna é a ressalva do referido autor, ao defender que a disparidade
econômica entre os contratantes não é novidade na sociedade capitalista, assim não
é ela a causa do dirigismo estatal, e sim, o interesse social sobre o interesse
individual. O autor acredita que o Dirigismo Contratual tem como ponto de partida
uma economia também dirigida.139
O acontecimento da interferência do Estado140 teve ascendência após a
Primeira Guerra Mundial, quando incidiram sobre ele mudanças sociopolíticas das
sociedades européias até então estáveis, impondo-Ihe, como resultado, a adoção de
normas que atendessem às indigências provenientes da guerra. Isso fez com que
surgisse o fenômeno do dirigismo contratual, fazendo com que houvesse a influência
do Direito Público sobre o Direito Privado pela ingerência estatal na liberdade de
contratar.141
Para regular tal realidade, o direito teve de evoluir, deixando de notar o contrato
como algo inalterável e intangível. Assim, evidentemente, o contrato se modifica
para se adaptar às exigências da nova realidade, passando, segundo Marques,
138
139
140
141
LÔBO, Paulo Luiz Neto. Dirigismo contratual. Revista de Direito Civil, imobiliário, agrário e
empresarial. São Paulo, n. 52, p. 66, abr./jun. 1990.
LÔBO, Paulo Luiz Neto. Dirigismo contratual. Revista de Direito Civil, imobiliário, agrário e
empresarial. São Paulo, n. 52, p. 64, abr./jun. 1990.
Essa interferência estatal (dirigismo contratual) efetiva-se sob três formas: no âmbito legislativo,
judiciário e administrativo.
NERY JÚNIOR, N. et aI. Código de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999, p. 434.
51
[...] de espaço reservado e protegido pelo direito para a livre e soberana
manifestação da vontade das partes, para ser um instrumento jurídico mais
social, controlado e submetido a uma série de imposições cogentes, mas
142
eqüitativas.
Como já mencionado anteriormente, esse instituto jurídico vem sofrendo
modificações expressivas, que começaram, mais intensamente, no período do pósguerra. A partir da Primeira Guerra Mundial, a sociedade começou a sofrer
processos como, por exemplo, o aumento da população mundial, o que suscitou
novas relações jurídicas, massificadas ou coletivas; causando, também, um amplo
desequilíbrio social. Surgem vertentes socialistas, como a doutrina social cristã. Na
Encíclica Rerum Novarum, de 1891, foram pregados os direitos sociais e o direitodever de intervenção estatal na vida econômica e social.143 Com isso, marca-se o
Pensamento Social Cristão144 e reafirma-se a liberdade de contratar atrelada à
justiça natural, que está acima da vontade dos contratantes e tem uma evidente
oposição à concepção liberal.
Posteriormente, com a Segunda Grande Guerra, foram aprofundadas as
transformações, induzindo o Estado a adotar novas atitudes - Estado social – no
qual a preocupação central passou a ser com o coletivo, com o interesse da
sociedade, abandonando a compreensão do contrato como instrumento de
realização puramente individual. Essa mudança, a partir da qual as noções de
eqüidade, boa-fé e segurança passaram a ser o cerne da teoria dos contratos, levou
à socialização da teoria contratual. Essa socialização do contrato145 foi fruto da
transformação e evolução da teoria contratual.146 Portanto, esse novo modelo
142
143
144
145
146
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das
relações contratuais. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 51.
OLIVEIRA, Ubirajaba Mach de. Princípios informadores do sistema do direito privado: a autonomia
da vontade e a boa-fé objetiva. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo, v. 23-24, p. 53,
jul./dez. 1997.
Conforme BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de
política. Brasília: UnB, 2004, CD-ROM. O Pensamento Social Cristão “foi um conjunto de idéias e
doutrinas que, embora inspiradas nos valores do cristianismo, concebem a si mesmas como
inseridas numa sociedade autônoma em relação à comunidade eclesiástica. [...] O problema da
produção capitalista, o fato operário, as mudanças que eles acarretam, constituem a 'questão
social' e são o principal objeto da nova ciência cristã-social.”
Como conseqüência dessa socialização do contrato, tem-se a proteção da tutela objetiva da
confiança. Significa um avanço em relação à teoria contratual.
NOVAIS, Alinne Arquette Leite. A teoria contratual e o código de defesa do consumidor. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 68-69.
52
evidencia que qualquer instituto jurídico está subordinado a uma relatividade
histórica, na disparidade de suas formas e modificações.
A nova concepção de contrato é uma concepção social deste instrumento
jurídico, para a qual não só o momento da manifestação da vontade
(consenso) importa, mas onde também e principalmente os efeitos do
contrato na sociedade serão levados em conta e onde a condição social e
147
econômica das pessoas nele envolvidas ganha em importância.
Dito em outras palavras, o contrato deixa de ser unicamente a autoregulamentação dos interesses das partes, em prol de valores impostos pelo Estado
Social, em que a autonomia da vontade está calcada em novas bases e no
desempenho de uma nova função.
Vale ressaltar que a presumida igualdade, que a autonomia da vontade e a
liberdade contratual proporcionavam às partes, era apenas formal; competia ao
Estado promover uma igualdade substancial, que fosse além daquela que estava
apenas preconizada na ordem jurídica. Nesse sentido, evolui a teoria contratual,
147
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das
relações contratuais. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 210. Sobre isso, também
escreve ZAMBRANO, Virginia. Il tratamento terapeutico e la falsa logica del consenso. Rassegna
di Diritto Civile. Salerno: Edizioni Scientifiche Italiane, 2000, p. 763 e 769-70. “ln effetti, il dibattito
sul fondamento giuridico deI consenso se, cioè, esso vada identificato nel diritto di ciascuno di
autodeterminarsi [...] si è sviluppato nella prospettiva kantiana che attribuisce rilievo aI consenso,
ma a prescindere da una condizione di consapevolezza cui è invece necessario approdare
affinché il consenso possa considerarsi effettivo.”. Tradução livre: “Em efeitos, o debate sobre
fundamento jurídico do consenso se, isto é, é identificado no direito de cada um de
autodeterminar-se [...] desenvolveu-se na prospectiva Kantiana que atribui relevo ao consenso,
mas a prescindir de uma condição de conhecimento a qual é necessário encaminhar a fim de que
o consenso possa considerar-se efetivo”. “Si è osservato, in merito alIa natura giuridica del
consenso, che il suo carattere negoziale andrebbe riconosciuto di pari passo alIa sua
qualificazione come «coelemento di efficacia degli accordi contrattuali» destinato come è ad
incidere sul preventivo assetto di interessi definito dal contratto. ln questo modo si è costretti a
ridurre il consenso aI trattamento ad elemento accessorio rispetto alI’atto di autonomia privata, e
soprattutto ad attribuirvi un riIievo esterno che contrasta con Ia sua intima natura. lnoltre, delIe due
l‘una: o si riconosce che il consenso è espressione deI principio di autodeterminazione, e allora il
giudizio di meritevolezza trova fonte esclusiva nei princípi costituzionali piú volte richiamati [...] o,
per ritenere possibile un giudizio in termini di validità, si è costretti a negare spazio alI’autonomia.”
Tradução livre: “Observou-se, em a natureza jurídica do consenso, que o seu caráter negocial
seria reconhecimento de igual para igual a sua qualificação como ‘coelemento de eficácia dos
acordos contratuais’ destinado como a incidir sobre a preventiva ordem de interesses
determinados do contrato. Neste modo se é obrigado a reduzir o consenso ao tratamento de
elemento acessório no que diz respeito ao ato de autonomia privada e, principalmente, a atribuirse um relevo externo que contrasta com a sua íntima natureza. Além disso, das duas uma: ou se
reconhece que o consenso é expressão do princípio da autodeterminação, e então o juízo de
merecimento encontra fonte exclusiva nos princípios constitucionais mais vezes evocados [...], ou
para tornar possível um juízo em termos de validade, se é constrangido a negar espaço à
autonomia.”
53
seguindo as mudanças sociais e a transformação do Estado.148 Em relação à
evolução da teoria contratual, o Estado passa a ser não
[...] mais apenas o garantidor da liberdade e da autonomia contratual dos
indivíduos; vai além, intervindo profundamente nas relações contratuais,
ultrapassando os limites da justiça comutativa para promover não apenas a
justiça distributiva, mas a justiça social. [...] O Estado liberal assegurou os
direitos do homem de primeira geração, especialmente a liberdade, a vida
e a propriedade individual. O Estado social foi impulsionado pelos
movimentos populares que postulam muito mais que a liberdade e a
igualdade formais, passando a assegurar os direitos do homem de
segunda geração, ou seja, os direitos sociais. O maior golpe foi desferido
quando entrou em cena os direitos de terceira geração, de natureza
transindividuais, protegendo-se interesses que ultrapassa (sic) os dos
figurantes concretos da relação negocial, ditos difusos, coletivos ou
149 150
individuais homogêneos. -
O exemplo mais expressivo dos direitos de terceira geração é a experiência
dos direitos do consumidor, nos quais a teoria clássica foi abandonada por ter suas
pressuposições longínquas da realidade.
O contrato, portanto, transforma-se, para adequar-se ao tipo de mercado,
ao tipo de organização económica em cada época prevalecente. Mas
justamente, transformando-se e adequando-se do modo que se disse, o
contrato pode continuar a desempenhar aquela que é - e continua a ser - a
sua função fundamental no âmbito das economias capitalistas de mercado:
isto é, a função de instrumento da liberdade de iniciativa económica. Está
agora claro que as transformações do instituto contratual, que designámos
em termos da sua objectivação, não contrariam, mas antes secundam, o
princípio da autonomia privada, desde que se queira ter deste princípio
151
uma noção realista e correcta.
148
Sobre isso, GOMES, Orlando. Novos temas de direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 94
afirma: "No contrato contemporâneo, a lei embora ainda se preocupe nos mesmos termos com a
formação do contrato tradicional, se interessa mais pela regulação coletiva, visando a impedir que
as cláusulas contratuais sejam iníquas ou vexatórias para uma das partes. Sua preocupação é
controlar o comportamento daqueles que ditam as regras do contrato, a fim de que não se
aproveitem de sua posição para incluir cláusulas desleais mais do que tornar anulável o negócio
jurídico celebrado com vício do consentimento, vício que nos contratos de massa não tem a
menor relevância".
149
LÔBO, Paulo Luiz Neto. Contrato e mudança social. Revista Forense, n. 722. Rio de Janeiro:
Forense, p. 42-43, dez. 1995.
150
MORAIS, José Luis Bolzan de. Do Direito Social aos interesses transindividuais. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 1996, p. 97. Este autor conceitua interesses transindividuais como:
“conflitos que escapam da dimensão privatista do modelo jurídico liberal e se caracterizam por
uma amplitude não só jurídica em sentido estrito mas, sobretudo, socioeconômico pois, importam,
muitas vezes, no desapego, afastamento e/ou negação dos postulados liberais tradicionalmente
aceitos como meios de sanabilidade das controvérsias. A variabilidade e complexidade destas
questões coletivas implicam a adoção de caminhos distintos para a sua resolução, criando
expectativas também distintas em face à impossibilidade de se determinarem os resultados de
forma antecipada”.
151
ROPPO, Enzo. O contrato. Coimbra: Almedina, 1988, p. 310.
54
Pelas considerações acima, é de se entender que o contrato se modificou
fortemente, pois precisou se ajustar ao novo modo de viver da sociedade. O Estado
social não aboliu o princípio da autonomia da vontade, todavia reduziu sua
importância, já que era considerado um dogma inafastável na teoria contratual
clássica.152 A autonomia privada foi relativizada,153 porquanto a igualdade apenas
formal não passava de utopia inexeqüível, competindo ao Estado promover uma
igualdade material entre os contratantes objetivando à justiça contratual.
Seguindo adiante, pode-se afirmar que a marca da evolução da teoria
contratual foi a superação do dogma da autonomia da vontade como o culminante
balizador do direito contratual, em prol da adoção de novos princípios.
No novo contexto determinado pela política do dirigismo contratual, o contrato
passa por importantes transformações em seu papel e significado, abandonando
uma simples expressão da autonomia da vontade e passando a ser uma estrutura
complexa, com disposições voluntárias e compulsórias. Princípios norteadores como
a função social do contrato e a boa-fé objetiva ocupam respeitável espaço ao lado
da autonomia da vontade na nova teoria contratual.
A redução da intensidade da autonomia privada154, ante o dirigismo estatal,
acarretou o enfraquecimento do contrato como produto da liberdade individual,
152
MARTINS-COSTA, Judith. Crise e modificação da idéia de contrato no direito brasileiro. Revista de
Direito do Consumidor. São Paulo, n. 3, p. 141, set./dez. 1992, assim expõe a sua posição:
"Contemporaneamente, modificado tal panorama, a autonomia contratual não é mais vista como
um fetiche impeditivo da função de adequação dos casos concretos aos princípios substanciais
contidos na Constituição e às novas funções que lhe são reconhecidas. Por esta razão desloca-se
o eixo da relação contratual da tutela subjetiva da vontade à tutela objetiva da confiança, diretriz
indispensável para a concretização, entre outros, dos princípios de superioridade do interesse
comum sobre o particular, da igualdade (em sua fase positiva) e da boa-fé em sua feição
objetiva".
153
NALlN, Paulo R. Ribeiro. Ética e boa-fé no adimplemento contratual. In: FACHIN, Luiz Edson
(Coord.). Repensando fundamentos do direito civil brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro:
Renovar, 2000, p. 179, ensina que "... o princípio da liberdade contratual sofre atual relativização
de sua eficácia, sob pena de violação de outros princípios jurídicos constitucionais, postos no
mesmo plano daqueles fundamentais. Saliente-se, neste sentido, o princípio da igualdade
material, enquanto imperativo ao Estado em tomar pé da exata situação fática (material), para a
remoção dos obstáculos de cunho sócio-econômico, limitativos da concreta liberdade e igualdade
entre os cidadãos".
154
TELLES, Inocêncio Galvão. Manual dos Contratos em Geral. 3. ed. Lisboa: Lex, 1995, p. 62. "O
contrato ganhou por um lado o que perdeu por outro. A autonomia da vontade aumentou em
extensão, mas diminuiu de intensidade, porque hoje é mais débil, mais frouxa do que outrora".
55
chegando-se a afirmar, com isso, o declínio155 e até o a morte do contrato156. Não foi
realmente o que aconteceu, pois a teoria contratual passa a ter um novo contorno
devido à intervenção estatal na ordem econômica. Todavia, de fato, ocorre a sua
transformação157, de modo a atender às novas realidades da sociedade.
Roppo explica a “objetivação do contrato”, cujo conceito deriva da redução à
importância da vontade dos contratantes:
Num sistema caracterizado pela produção, distribuição e consumo de
massa, o primeiro imperativo é, de facto, o de garantir a celeridade das
contratações, a segurança e a estabilidade das relações: mas estes
objectivos requerem, justamente, que as transacções sejam tomadas e
disciplinadas na sua objectividade, no seu desenvolvimento típico; eles
são, portanto, incompatíveis com a atribuição de relevância decisiva a
vontade individual, às particulares e concretas atitudes psíquicas dos
158
sujeitos interessados na troca, numa palavra, com a teoria da vontade.
A autonomia privada no contrato moderno está limitada à vontade do interesse
público. Existe uma interferência cada vez mais definida do público sobre o
particular. É esse dirigismo contratual que induz a uma nova concepção do contrato.
Sobre esse tema, Theodoro Júnior sublinha que:
Ao Estado liberal sucedeu, em nossos tempos, o Estado social, com a
tônica de não apenas declarar direitos individuais e garantias
fundamentais, mas, de torná-Ios realidade, mediante política de efetiva
implantação de medidas compatíveis com a justiça e o bem-estar sociais.
O dirigismo contratual, por meio da multiplicação das regras de ordem
pública, passou a dominar a preocupação dos legisladores, mudando a
159
feição e atingindo até mesmo o âmago do direito das obrigações.
Efetivamente, o entendimento clássico de contrato dá lugar a um novo
modelo160 desse instituto jurídico, embasado em valores e princípios constitucionais
155
Conforme PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 10. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1998, p. 376, alguns autores proclamaram o declínio do contrato, ou ainda, a
transmudação do Direito Civil em Direito Social.
156
GILMORE, Grant. La morte deI contratto. Milano: Giuffrè, 1999, p. IX-XXVII. A expressão utilizada
pelo autor se justifica em função da nova perspectiva desse instituto jurídico e pela crescente
teoria da responsabilização civil, a qual fugia da esfera do Direito dos Contratos.
157
Com a intervenção do direito público sobre o direito privado, instaura-se uma verdadeira crise no
contrato.
158
ROPPO, Enzo. O contrato. Coimbra: Almedina, 1988, p. 298.
159
THEODORO JÚNIOR, Humberto. O Contrato e seus princípios. 2. ed. Rio de Janeiro: Aide, 1999,
p. 16.
160
VILLELA, João Baptista. Por uma nova teoria dos contratos. Revista Forense. Rio de Janeiro, n.
261, p. 34, jan./fev./mar. 1978. Uma nova teoria contratual não representa "um abandono puro e
simples das concepções clássicas".
56
de dignidade e livre desenvolvimento da personalidade humana. Esse novo modelo
é amparado no campo das relações contratuais, no qual se propagam os contratos
de massa, através de equilíbrio real entre as partes contratantes, pelas cláusulas
contratuais gerais, por intermédio da teoria da imprevisão, pela resolução por
onerosidade excessiva e também pela garantia de direitos mínimos ao contratante
vulnerável.161 Assim, “o contrato deixa de ser apenas instrumento de realização da
autonomia privada, para desempenhar uma função social”.162 Referente à distinção
entre as duas concepções da teoria contratual, no escólio de Negreiros “[...] a
unidade e o formalismo do direito contratual clássico são incompatíveis com a
concepção social do contrato, em que certas características das partes contratantes,
antes inteiramente desconsideradas, ganham relevância jurídica.”163
Torna-se evidente que os contratos atuais exigem maior agilidade e fluidez,
não simplesmente quando aplicadas suas cláusulas devido à despersonalização de
seus contratantes, mas, quando na transformação de seus objetos, da imediatez de
fruição mesmo que em relações de longa duração (contratos cativos), da
acumulação de bens ao simples uso deles, da compra e venda ao arrendamento
mercantil, da propriedade imobiliária individual ao time-sharing. São todos contratos
que representam o período hodierno.164
À procura do equilíbrio contratual, na sociedade de consumo moderna, o
direito destacará o papel da lei como limitadora e como verdadeira
legitimadora da autonomia da vontade. A lei passará a proteger
161
162
163
164
Sobre isso, FACHIN, Luiz Edson. O "aggiornamento" do direito civil brasileiro e a confiança
negocial. Repensando Fundamentos do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. Rio de Janeiro:
Renovar, 1998, p. 145, com enfoque na confiança negocial, explica que: "Um claro cenário se
produz em tomo da confiança: o repensar das relações jurídicas nucleadas em torno da pessoa e
sua revalorização como centro das preocupações do ordenamento civil. O tema de tutela da
confiança não pode ser confinado a um incidente de retorno indevido ao voluntarismo do século
passado, nem é apenas um legado da Pandectística e dos postulados clássicos do Direito
Privado. Pode estar além de sua formulação inicial essa temática se for posta num plano
diferenciado de recuperação epistemológica".
MATTIETTO, Leonardo. O direito civil constitucional e a nova teoria dos contratos. In: TEPEDINO,
Gustavo (Coord.). Problemas de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 176179. Continua o referido autor: "Acentua-se o caráter de ordem pública como expressão da lógica
intrínseca dos contratos, sendo esta uma das linhas mestras da ordem econômico-social
constitucional".
NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar,
2006, p. 29.
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das
relações contratuais. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 70-184.
57
determinados interesses sociais, valorizando a confiança depositada no
165
vínculo, as expectativas e a boa-fé das partes contratantes.
O que se depara em crise no movimento massificado dos contratos é o método
oferta-aceitação, mencionado por Kelsen, definido pelo sistema clássico, presente
no Código Civil de 1916, cujas manifestações de vontade são incontestavelmente
valorizadas. Demonstrando essa concepção, Nalin reconhece: “o contrato está em
crise, mas é um estado de angústia na procura de uma identidade com os tempos
atuais”.166 O mesmo autor acredita que isso seja produto da pós-modernidade, cujas
características complexas exigem que o contrato seja adequado à nova realidade
social e econômica. Nesse sentido, persiste em alegar que o contrato não pode ser
analisado fora da conjuntura de mercado, apontando para a sua descrição
meramente teórica como imprópria para a concretização de uma justiça social,
sendo que uma das possibilidades da justiça social, no contrato, passa pelo exame
da liberdade, partindo de uma dimensão da solidariedade.167
Atualmente, parte da doutrina vislumbra uma nova fase, denominada pósmoderna,168 em que se encontra o contrato. Em decorrência da globalização e, com
165
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das
relações contratuais. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 210.
166
NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva
civil-constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 121.
167
NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva
civil-constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 124-125, enfocando essa questão, reflete que
sobre o método ordoliberal: “[...] se estabelece no controle das formações econômicas
monopolísticas, pois a concentração econômica antitética da própria Iiberdade tem como
conseqüência última a aniquilação desta, na medida da eliminação da concorrência relevante e
da não-ingerência estatal em momentos supostamente desnecessários. A partir de um estudo
transdisciplinar que tome, como centro, o contrato, tudo isso é possível, na medida em que a
questão social é considerada, conjuntamente, um problema econômico e jurídico. Nesse contexto,
acaba o contrato por mediar as forças do mercado, sendo o liame inegável entre a concorrência e
o consumo, revelando-se os pólos do produtor/fornecedor e do consumidor. O ajuste entre tais
forças é que acaba por demonstrar o atual perfil do contrato na pós-modernidade, nem tanto livre,
nem tanto dirigido. Revela-se por ser o condutor da ingerência tutelar do Estado na livre-iniciativa,
à medida que a conforma aos interesses da justiça social.”
168
Na ótica de JAYME, Erik. Visões para uma teoria pós-moderna do direito comparado. Tradução de
Cláudia Lima Marques. Revista dos Tribunais. São Paulo, v. 759, p. 27, jan. 1999, na pósmodernidade, "o igual não será negado, mas aparece como sudsidiário, como menor. A
identidade cultural do indivíduo, como a dos povos, é que necessita de atenção" e continua
“...dentre os valores básicos da pós-modernidade destaca-se o reconhecimento do pluralismo, da
pluralidade de estilos de vida e a negação de uma pretensão universal à maneira própria de ser”.
Importante complementar que, o pós-modernismo reconhece que conquistas de valores sociais
do welfare state não devem ser abandonadas, mas compatibilizadas com as novas tendências do
contrato, sem nunca esquecer da preservação da dignidade da pessoa humana. Ver também
FERRAJOLI, Luigi. O direito como sistema de garantias. Tradução de Eduardo Maia Costa. In:
OLIVEIRA JÚNIOR, José Alcebíades de (Org.). O novo direito e política. Porto Alegre: Livraria do
58
ela, da exigência de competitividade e flexibilidade dos mercados, busca-se
identificar um movimento de desregulamentação estatal das relações contratuais.169
Nesse contexto, Marques destaca as marcas mais acentuadas dos tempos
pós-modernos:
Tempos de ceticismo quanto à capacidade da ciência do direito de dar
respostas adequadas e gerais aos problemas que perturbam a sociedade
atual e modificam-se com uma velocidade assustadora. Tempos de
valorização dos serviços, do lazer, do abstrato e do transitório, que acabam
por decretar a insuficiência do modelo contratual tradicional do direito civil,
que acabam por forçar a evolução dos conceitos do direito, a propor uma
nova jurisprudência dos valores, uma nova visão dos princípios do direito
civil, agora muito mais influenciada pelo direito público e pelo respeito aos
direitos fundamentais do cidadão. Para alguns o pós-modernismo é uma
crise de desconstrução, de fragmentação, de indeterminação à procura de
uma nova racionalidade, de desregulamentação e de deslegitimação de
nossas instituições, de desdogmatização do direito; para outros, é um
fenômeno de pluralismo e relativismo cultural arrebatador a influenciar o
direito. Este fenômeno aumentaria a liberdade dos indivíduos, mas diminui
o poder do racionalismo, da crítica em geral, da evolução histórica e da
170
verdade, também em nossa ciência, o direito.
Percebe-se que o direito desenvolve uma nova teoria contratual que confere
regras de limitação à autonomia da vontade171, pretendendo resgatar o equilíbrio,
169
170
171
Advogado, 1997, p. 22. Contrariamente, Ferrajoli acredita que o desafio do direito pós-moderno,
diante da crise do Estado Social, está em descobrir na ciência e no papel do juiz um instrumental
de garantia, de escolhas valorativas que universalizadas, prestigiem os direitos do homem, antes
que do cidadão. STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência Política e Teoria
Geral do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 53 et seq. Deve-se destacar, aqui,
o posicionamento de Morais quando assevera que o Welfare State emerge definitivamente como
conseqüência geral das políticas definidas a partir das grandes guerras, da década de 1930,
embora sua formulação constitucional se deu na segunda década do século XX. Nesse viés,
Morais, frisa que esse Estado (também chamado de Estado Providência ou Social) foi uma
instituição política inventada nas sociedades capitalistas para compatibilizar as promessas da
Modernidade com o desenvolvimento capitalista. Assim, o Estado Democrático de Direito teria a
característica de ultrapassar não só a formulação do Estado Liberal de Direito, como também a do
Estado Social de Direito, impondo à ordem jurídica e à atividade estatal um conteúdo utópico de
transformação da realidade. Ainda oportuno considerar que o Welfare State, com a conseqüente
positivação dos direitos sociais, não é resultado de um processo revolucionário, mas sim, uma
transição tutelada, uma válvula de escape encontrada pela burguesia para evitar a tomada do
poder político pelas classes descontentes.
GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Função social do contrato: os novos princípios contratuais. São
Paulo: Saraiva, 2004, p. 8-9.
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das
relações contratuais. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 168-169.
DONNINI, Rogério Ferraz. A Constituição Federal e a concepção social do contrato. In: VIANA, R.
G. C.; NERY, R. M. de A. (Org.). Temas atuais de direito civil na Constituição Federal. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2000, p. 71. “Essa limitação ao princípio da autonomia da vontade ocorreu
pela interferência do Direito Público sobre o Direito Privado, limitando, em determinadas relações
contratuais, a liberdade de contratar. Nesse campo intervencionista é que se situa a teoria da
imprevisão, que flexibilizou o princípio da intangibilidade contratual”.
59
protegendo os mais fracos e evitando que as expectativas do negócio se frustrem.
Certo é que essa autonomia sofre manifestas limitações, não só em face dos tipos
contratuais impostos pela lei, como também pelas exigências de ordem pública.172
Constata-se, portanto, a crise do contrato, na busca de uma identidade com o
momento contemporâneo. O contrato passa a ser um instrumento essencial nos
negócios, com novas roupagens, devendo ser cumprido não apenas em benefício do
credor, mas também da sociedade.173
Cumpre observar, ainda, que a evolução do pensamento jurídico rumo a uma
nova concepção de contrato - concepção social do contrato174 - contrapõe ao
modelo liberal clássico o modelo contemporâneo, que destaca sob o ponto de vista
dos princípios as transformações de maior acepção para a renovação da teoria
contratual. Essa nova realidade contratual se distancia do individualismo e da
valoração patrimonial que marcava o Código Civil de 1916 e que ainda se encontra
presente no atual Código Civil, procurando adequar os contratos aos princípios e
direitos fundamentais previstos na Constituição Federal. É através dessa nova ótica
dos contratos que se busca instituir o conceito de contrato pós-moderno, que deve
ser funcionalizado e fundamentado pela ótica solidarista da CF.175
Em resumo, o contrato deve continuar sendo instrumento de trânsito jurídico de
bens e de interesses à luz da atual ordem constitucional, refletida no atual
delineamento dos princípios do contrato.
172
173
174
175
THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato social e sua função. Rio de Janeiro: Forense, 2003,
p. 7.
VENOSA. Silvio de Salvo. Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos
São Paulo: Atlas, 2003, p. 368.
MONTEIRO, António Pinto. O Direito do Consumidor em Portugal. In: Revista de Direito
Comparado Luso-Brasileiro, n. 17. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 130. Conforme lembrado
pelo autor, a socialização do contrato insere-se, naturalmente, na socialização, em geral, do
direito civil: “A falada socialização do direito civil é a fórmula por que correntemente se designa
este fenômeno, de acentuação da componente social, conseqüente à superação histórica (dos
pressupostos) do liberalismo e individualismo jurídicos. Pretende-se alcançar uma verdadeira
justiça material (em consonância com as funções que se atribuem ao Estado de Direito Social),
que não ignore, antes tome em devida conta, as desigualdades reais, que, de fato, condicionam e
limitam as possibilidades de realização dos diversos sujeitos. O que teve repercussão em todo o
direito civil e afetou de modo especial dois princípios, o da autonomia privada e o da
responsabilidade civil".
ZINN, Rafael Wainstein. O contrato em perspectivas principiológica: novos paradigmas da teoria
contratual. In: ARONNE, Ricardo (Org.). Estudos de Direito Civil – Constitucional. V. 1. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 88.
60
Feita a exposição a respeito da concepção do contrato, cumpre, no próximo
tópico, abarcar as reflexões no contexto principiológico.
1.2 Os Princípios Contratuais
Inicialmente, cabe destacar que o termo princípio176 é utilizado em vários
campos do saber humano, porém sempre mantendo um sentido comum. De acordo
com Espíndola:
[...] seja lá qual for o campo do saber que se tenha em mente, designa a
estruturação de um sistema de idéias, pensamentos ou normas por uma
idéia mestra, por um pensamento chave, por uma baliza normativa, donde
todas as demais idéias, pensamentos ou normas derivam, se reconduzem
177
e/ou se subordinam.
É importante frisar que cada instituto apresenta peculiaridades em relação aos
princípios que o norteiam. Obedece a regras particulares, havendo certa
regrangência nos princípios genéricos ao se encontrarem com os princípios
específicos de cada instituto.
Conceitualmente, princípios são normas básicas, premissas. Critérios ou
idéias fundamentais de um sistema jurídico determinado. Os princípios
jurídicos não se caracterizam como algo fora do Direito, senão que, na
expressão de Carnelutti, ‘están dentro deI Derecho como el alcohol está en
el vino’. [...] Pode-se dizer que os princípios são ‘verdades fundantes’ de
um sistema de conhecimento, como tais admitidas, por serem evidentes ou
por terem sido comprovadas, ou também, por motivos de ordem prática de
caráter operacional, isto é, como pressupostos exigidos pelas
178
necessidades da pesquisa e da práxis.
Antes de adentrar na conceituação de princípios jurídicos, é necessário realçar
que os princípios refletem o período histórico, ou seja, princípios em épocas distintas
podem não apresentar o mesmo significado, pois podem sofrer alterações devido a
176
177
178
O termo princípio vem do latim principium e tem significação variada. Por um lado, quer dizer
começo, início, origem, ponto de partida; de outro, regra a seguir, norma.
ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de Princípios Constitucionais. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1999, p. 47.
ELESBÃO, Elsita Collor. Princípios informativos das obrigações contratuais civis. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2000, p. 75-76.
61
influências de novos princípios. Isso é o que ocorre com os princípios norteadores do
contrato.
O princípio jurídico consiste numa expressão polissêmica179. Carrió anota que o
conceito de princípio se vincula, pelo menos, a sete significações: idéia de
propriedade fundamental, núcleo básico; fonte geradora, causa ou origem;
finalidade, objetivo, propósito ou meta; premissa, inalterável ponto para o raciocínio,
axioma, verdade teórica postulada como evidente, essência, propriedade definitória;
regra prática de conteúdo evidente, verdade ética inquestionável; e com as idéias de
máxima, aforismo, provérbio.180 Princípios jurídicos são
[...] idéias jurídicas gerais, as quais permitem considerar uma
regulamentação ou norma, como convenientemente fundada por referência
à idéia de Direito ou a valores jurídicos reconhecidos, identificando-se
esses princípios, pelo menos em parte, com os próprios valores jurídicos,
181
tal qual a noção de boa fé ou de justiça distribuitiva.
A vinculação do entendimento e aplicação dos princípios jurídicos às normas
jurídicas é assaz proeminente. Os princípios jurídicos apresentavam, por
determinado momento, status jurídico inferior às normas jurídicas, o que lhe atribuía
uma mínima incidência nos casos concretos182, ou seja, não traziam em seu
conteúdo a normatividade.
Atualmente, tal condição não mais se constata. Os princípios jurídicos, do
mesmo modo como as regras jurídicas, são espécies do gênero norma jurídica.183 -
179
Polissemia significa “ter uma palavra muitas significações”.
CARRIÓ, Genaro R. Notas sobre Derecho Y Lenguaje. 4. ed. Buenos Aires: Editora AbeledoPerrot, 1990, p. 209-210.
181
SZANIAWSKI, Elimar. Apontamentos sobre o princípio da proporcionalidade-igualdade. Revista
trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro, a. 2, v. 5, p. 52, jan./mar. 2001.
182
WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao direito. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, v. 1,
1994, p. 14. O citado autor atribui a incapacidade instrumental-prática dos princípios jurídicos à
formação positivista-legalista responsável pela formação do senso comum teórico de boa parte
dos juristas.
183
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10. ed. Tradução de Maria Celeste Cordeiro
Leite dos santos. Brasília: UnB, 1999, p. 158.
180
62
184
Contudo, sua magnitude é muito maior em função dos critérios de distinção em
relação à regra jurídica.185
Na interpretação e aplicação dos princípios, levam-se em consideração os
valores seguidos pela norma que os presume, e eventuais conflitos entre esses
valores serão decididos de contorno democrático, com a garantia do debate entre os
princípios colidentes, em instância competente do Poder Judiciário.186
Ao passo que a colisão entre regras se decide no plano da validade/ invalidade,
a colisão entre princípios se resolve no nível da ponderação sobre o que cada um
impregna em seu conteúdo para a solução do caso concreto.
184
185
186
SANCHIS, Luis Prieto. Ley, principios, derechos. Instituto de derechos humanos “Bartolome de las
casas”, Universidad Carlos II de Madrid, Dykinson, Madrid, 1998, p. 58. “[…] lo que hace que una
norma sea un principio o una regla no es un enunciado lingüístico, sino el modo de resolver sus
eventuales conflictos: si colisionando con una determinada norma cede siempre o triunfa siempre,
es que estamos ante una regla; si colisionando con otra norma cede o triunfa según los casos, es
que estamos ante un principio.” Na tradução livre: “[…] o que faz com que uma norma seja um
princípio ou uma regra não é um enunciado lingüístico, a não ser o modo de resolver seus
eventuais conflitos: se ao colidir com uma determinada norma cede ou prevalece sempre,
estamos diante de uma regra; se ao colidir com outra norma cede ou prevalece de acordo com a
situação, estamos diante de um princípio.”
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Coimbra:
Almedina, 2000, p. 1123-1125. Na lição de Canotilho, os princípios possuem um alto grau de
abstração, exigindo uma participação maior do intérprete, pois são formulados de forma mais
genérica e têm conceitos vagos e indeterminados. Os princípios trazem o caráter da
fundamentalidade, uma vez que inauguram o sistema de fontes do Direito e traçam a natureza e a
estrutura do sistema jurídico. Os princípios são ‘standards’ juridicamente vinculantes, que se
baseiam na idéia de Direito e de justiça. E ainda, segundo o autor, os princípios possuem
natureza normogética, isto é, a partir deles é que podemos compreender e interpretar todo o
ordenamento jurídico. Como se viu acima, os princípios estabelecem a direção valorativa do
legislador, no entanto, em caso concreto o intérprete e o aplicador devem ponderar a situação
concreta para a aplicação do princípio. Para este jurista, que desenvolveu a construção
principialista do Direito Constitucional, o sistema jurídico “é um sistema normativo aberto de
regras e princípios”, pois as normas do sistema tanto podem apresentar-se como princípios sob a
forma de regras. A distinção entre regras e princípios é uma tarefa particularmente complexa,
como afirma Canotilho. Por isso, o autor sugere alguns critérios para efetuar-se tal distinção: “a)
Grau de abstracção [...]; b) Grau de determinabilidade na aplicação do caso concreto [...];
c)Carácter de fundamentalidade no sistema das fontes de direito [...]; d)Proximidade da idéia de
direito [...]; f)Natureza normogenética [...]”. Sintaticamente, os princípios têm idêntica estrutura das
demais unidades do sistema. Ou seja, o princípio jurídico é norma de hierarquia superior à das
regras, pois determina o sentido e o alcance destas, sob pena de pôr em risco a globalidade do
ordenamento jurídico.
Esta é uma perspectiva diferenciada, tendo por base a linha do processo democrático de
legitimação proposto por Habermas.
63
No campo do Direito, verifica-se que os princípios187 são livremente
determinados pelos homens. O legislador acolhe, no sistema normativo que constrói,
os princípios que deseja vigorantes. Portanto, são mutáveis.
É de extrema importância a existência de determinados princípios (mesmo não
enunciados em texto de direito positivo), pois eles têm um importante papel no
187
IVO, Gabriel. Constituição Estadual – competência para elaboração da Constituição do Estado –
membro. São Paulo: Max Limonad, 1997, p.143 destaca que os princípios constituem-se nos
alicerces de um sistema jurídico. “Eles dão coerência geral ao sistema e funcionam como critérios
de interpretação e integração”. São as idéias centrais de um sistema, que permitem uma melhor
compreensão de seu modo de organizar-se, tendo um sentido lógico e racional. Mesmo eles
sendo próprios a um determinado direito, este mesmo direito pode autorizar a sua
desconsideração. No mesmo sentido, os ensinamentos de BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito
Constitucional. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 259: “[...] não há distinção entre princípios e
normas, os princípios são dotados de normatividade, as normas compreendem regras e
princípios, a distinção relevante não é, como nos primórdios da doutrina, entre princípio e norma,
mas entre regras e princípios, sendo as normas o gênero, e as regras e os princípios a espécie”.
Conforme GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (interpretação e
crítica). São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p. 95-111. “Isso significa que, em cada caso,
ornam-se diversos jogos de princípios, de sorte que diversas soluções e decisões, em diversos
casos, podem ser alcançadas, umas privilegiando a decisividade de certo princípio, outras a
recusando”. Portanto, verifica-se que os princípios possuem um caráter de fundamentalidade do
sistema o que os difere das regras que normalmente são criadas para caracterizar os princípios
para explicitá-los, a fim de facilitar a tarefa dos intérpretes e dos aplicadores do Direito. As regras
devem guardar conciabilidade e conformidade aos princípios, pois seria ilógico afirmar que
aqueles servem para explicitar estes e depois deixar que tomassem sentido oposto ao que
predicam. De acordo com Grau, no Direito, enquanto ordem jurídica, os princípios jurídicos podem
assumir dois sentidos: princípios positivos do Direito e princípios gerais do Direito. Os princípios
são posições normativas, valorados segundo a idéia do válido ou inválido, vigente ou não, eficaz
ou ineficaz. Já os princípios gerais do Direito são valorados pela idéia do falso ou do verdadeiro,
própria da Ciência Jurídica, portanto, posições descritivas e não normativas. Segue o mesmo
autor afirmando que os princípios gerais do Direito são utilizados muitas vezes pela jurisprudência
para fundamentar decisões, passando de princípios descritivos a princípios positivados de
inspiração doutrinal, ou seja, transformando-se em princípios positivados pelo ato decisional que
os veiculou. “Princípio geral do Direito é, assim, princípio ainda não positivado, mas que pode ser
formulado ou (re)formulado pela jurisprudência”. Assim como Canotilho, Grau faz diferenciações
quanto a princípios e diretrizes. Observa que em alguns conflitos os profissionais do Direito
utilizam pautas (Standards) que funcionam como princípios genericamente (princípios ou
diretrizes). E conceitua diretrizes como pautas que estabelecem objetivos de aspecto econômico,
político ou social, enquanto que princípios são as pautas que devem ser observadas porque
correlacionam-se a preceitos de justiça, honestidade ou moralidade. Assim, o referido doutrinador
entende que uma regra e um princípio desempenham a mesma função, a única diferença é
devido a uma questão formal. Ver MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Elementos de Direito
Administrativo. 2. ed. 2ª tiragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, p. 230. É oportuno o
conceito da categoria princípio delineado por Mello em função da magnitude de seu conteúdo, o
qual revela de forma bastante precisa esse instituto jurídico, importante para a consolidação dos
valores constitucionais, segundo o qual: “princípio é, por definição, mandamento nuclear de um
sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas
compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência,
exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a
tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das
diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo”.
Segundo este autor, são os princípios que entendem e orientam a interpretação do sistema
jurídico.
64
processo de aplicação do Direito. Isso os distingue qualitativamente das outras
normas.
Cabe registrar que os princípios são fundamentais para se obter uma
interpretação adequada e uma conseqüente aplicação, ou seja, apontam a direção e
mostram
o sentido a partir do qual devem ser compreendidas as normas. A
enunciação dos princípios tem uma primeira utilidade evidente: ajudar no ato do
conhecimento. Para conhecer o sistema jurídico, é preciso identificar quais os
princípios que o ordenam. Sendo assim, aquele que só conhece as regras, aplica o
Direito pela metade.188-189
Quem avança neste ponto é Alexy. Ele defende que os princípios podem ser
“juízos concretos de dever ser”, pois constituem “razões prima facie” ou razões para
normas. Para ele, a diferença entre princípios e regras está no fato de os princípios
188
189
Neste sentido, é oportuno transcrever as lições de SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de
Direito Público. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 138: “É o conhecimento dos princípios, e a
habilitação para manejá-los, que distingue o jurista do mero conhecedor de textos legais. O leigo
limita seu saber ao texto das regras, não pode aplicá-las com segurança. A aplicação das regras
não se faz de modo isolado, mas em conjunto com todo o ordenamento. Ninguém pode aplicar
uma regra, tem sempre de aplicar todo o Direito.”
É pertinente ainda a conceituação de Dworkin, citado por ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de
Princípios Constitucionais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 64-65, onde este autor diz
que Dworkin estabeleceu dois critérios para a distinção entre regras e princípios: a primeira, a do
tudo ou nada, e a segunda, a do peso ou da importância. “[...] as regras jurídicas são aplicáveis
por completo ou não são, de modo absolutos aplicáveis. Trata-se de um tudo ou nada. Desde que
os pressupostos de fato aos quais a regra se refira [...] se verifiquem, em situação concreta, e
sendo ela válida, em qualquer caso há de ser aplicada. Já os princípios jurídicos atuam de modo
diverso: mesmo aqueles que mais se assemelham às regras não se aplicam automática e
necessariamente quando as condições previstas como suficientes para sua aplicação se
manifestam”. Os princípios possuem uma dimensão de peso ou importância maior. Os princípios
são normas que delineiam as diretrizes e fixam os valores fundamentais a serem perseguidos por
uma sociedade juridicamente organizada. Os princípios caracterizam-se por possuírem uma alta
carga axiológica ou valorativa e uma concretude muito pequena. Já as regras possuem uma
concretude maior, o que lhes permite uma interpretação e aplicação mais imediata e sem a
intermediação de outras regras. Em outras palavras, como os princípios possuem um alto grau de
abstração, normalmente precisam das regras para serem concretizados e diferem das mesmas
no momento de aplicação, pois estas, desde que subssumíveis ao caso concreto, se aplicam,
caso contrário, devem ser afastadas. Por tanto, o conflito entre princípios se resolve na dimensão
de peso e não da validade, ou melhor, princípios colidentes não se excluem de maneira
antinômica, perdendo um deles a existência jurídica, a validade e/ou a vigência; apenas se
afastam diante da hipótese colocada ao juízo decisório, preponderando o princípio com maior
peso para a aplicação no caso concreto. Em vista disso, os princípios possuem uma dimensão de
um maior grau de abstração relativamente reduzida. As regras jurídicas são específicas e não
comportam exceções, ou seja, se há circunstâncias que excepcionem uma regra jurídica e elas
não forem enunciadas, será inexata e incompleta. É preciso estudá-los em conjunto,
dimensionando o peso relativo de cada qual. Porém, não há como predeterminar, para todos os
casos, o peso que terá cada princípio, e qual deverá prevalecer.
65
trazerem ao bojo do sistema jurídico mandados de otimização, ou seja, atuam “[...]
dentro de las possibilidades jurídicas y reales existentes”190; ao passo que as
normas podem ser cumpridas ou não (são determinações). Outra diferença
apresentada pelo autor radica no fato de que os princípios se colidem e as regras se
conflitam. Ou seja, no conflito de regras, estas sairão ou não do sistema, salvo se
houver uma cláusula de exceção. Se há um conflito de regras, uma delas será
inválida. Na colisão de princípios não há regras de (in)validez, mas um cede em
razão do outro. Há uma dimensão de peso, não de validez. No âmbito de princípios,
a colisão entre eles é resolvida pela ponderação, por aquele que tem maior “peso”. A
chamada “Lei de Colisão” aproxima a teoria dos princípios à teoria dos valores. Em
epítome, para Alexy, os princípios são mandatos de otimização, diferentemente das
regras, que são ordenações de vigência, e, portanto, os princípios podem e devem
ser aplicados na medida do possível e com diferentes graus de efetivação. Assim, os
princípios atuarão nas necessidades do caso concreto frente às possibilidades que
ele oferta.191
Denota dizer que os princípios valem como lei, sendo cogentes para decisões
judiciais, e não como mero indicativo dos valores que devem motivar a decisão.
Nada obstante, Alexy distingue princípios e valores, asseverando que aqueles
possuem um caráter deontológico, ao passo que estes, um caráter axiológico.
Lo que en el modelo de los valores es prima facie lo mejor es, en el modelo
de los principios, prima facie debido; y lo que en el modelo de los valores
es definitivamente lo mejor es, en el modelo de los principios,
190
ALEXY, Roberto. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de estudios políticos y
constitucionales, 1993, p. 86. Na tradução livre: “[...] dentro das possibilidades jurídicas e reais
existentes”.
191
ALEXY, Roberto. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de estudios políticos y
constitucionales, 1993, p. 115-137 apresenta os três modelos. No modelo puro de princípios,
estes condensariam mandados (determinações), ainda que mais abstratas. O modelo puro de
regras não resolveria o problema de ponderação, tão necessário no interior do sistema. As
restrições aos direitos fundamentais, nesse caso, deveriam ser feitas por cláusulas de reserva.
Nesse sentido, os direitos fundamentais podem ter reserva simples, onde a restrição se dá pelo
próprio conteúdo do direito fundamental; seu âmbito de proteção, conteúdo que define, será o
limite da restrição a ser feita pelo juiz ou legislador. Já na reserva qualificada, normalmente pela
importância do direito fundamental em pauta, o próprio legislador constituinte fixa no direito em
pauta (no interior da norma constitucional) os limites possíveis à restrição, como ocorre com a
inviolabilidade de domicílio cujas restrições estão no bojo da norma constitucional. E, ainda, o
modelo combinado de princípios e regras que atende aos parâmetros modernos da hermenêutica,
uma vez que os direitos fundamentais reclamam, por vezes, uma versão de regras e em outros
casos uma versão de princípios.
66
definitivamente debido. Así pues, los principios y los valores se diferencian
192
sólo en virtud de su caráter deontológico y axiológico respectivamente.
Desse modo, pode-se dizer que se referem a planos distintos, consistindo os
valores axiomas que se incorporam à ordem jurídica por meio de princípios, de modo
que podem ser vistos como a expressão daqueles.
Bonavides caracteriza os princípios como normas jurídicas:
Princípio é, com efeito, toda norma jurídica, enquanto considerada como
determinante de uma ou de muitas outras subordinadas, que a pressupõe,
desenvolvendo e especificando ulteriormente o preceito em direções mais
particulares (menos gerais), das quais determinam e portanto, resumem,
potencialmente o conteúdo: sejam (...) estas efetivamente postas, sejam, ao
193
contrário, apenas dedutíveis do respectivo princípio geral que as contém.
Como se pôde observar nos conceitos de princípios194-195 no Direito,
apresentados acima, a afirmação de princípio como norma jurídica aparece de forma
direta ou indireta em todos. Essa característica, a normatividade,196 segundo
Bonavides,
“é
qualitativamente
o
passo
mais
largo
dado
pela
doutrina
contemporânea para a caracterização dos princípios”.197
O escopo principal deste estudo é examinar os princípios que norteiam as
relações contratuais. Diante disso, os princípios do modelo clássico devem ser
analisados, ainda que atenuados, uma vez que não foram abandonados os que
vinham informando a teoria do contrato sob o domínio das idéias liberais, mas foramlhes acrescentados outros que vieram a enfraquecer o rigor dos antigos e a
192
ALEXY, Roberto. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de estudios políticos y
constitucionales, 1993, p. 147. Tradução livre: “O que no modelo dos valores é prima facie o
melhor é, no modelo dos princípios, prima facie devido; e o que no modelo dos valores é
definitivamente o melhor é, no modelo dos princípios, definitivamente devido. Assim, os princípios
e os valores se diferenciam somente em virtude de seu caráter deontológico e axiológico
respectivamente.”
193
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 230.
194
Para uma maior comparação das teorias de Dworkin e Alexy, importante consultar: LEIVAS, Paulo
Gilberto Cogo. O Modelo Combinado de Regras e Princípios em Ronald Dworkin e Roberto Alexy.
In: Revista de Processo e Constituição, Porto Alegre, n. 2., Faculdade de Direito da UFRGS, 2005,
p. 213. Também ver: CEZNE, Andréa Nárriman. A teoria dos Direitos Fundamentais: uma análise
comparativa das perspectivas de Ronald Dworkin e Robert Alexy. In: Revista de Direito
Constitucional e Internacional. São Paulo, ano:13, n. 52., Revista dos Tribunais, 2005, p. 51.
195
Para melhor compreender as distinções doutrinárias, ver ÁVILA, Humberto. Teoria do Princípios,
da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2005.
196
A juridicidade ou a normatividade dos princípios passou por três fases distintas: jusnaturalista,
positivista e a pós-positivista.
197
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 230.
67
locupletar-se o direito contratual. Por isso, nas linhas que se seguem, os mesmos
serão apresentados.
1.2.1 Princípios fundamentais do direito contratual clássico
Os princípios que regulam os contratos designadamente na concepção
clássica, ou seja, na concepção liberal, têm como mola propulsora a proteção da
vontade das partes e a imutabilidade dessa vontade. Assim sendo, esse modelo de
contrato é edificado nas idéias de ampla liberdade de contratar e de total submissão
aos seus termos da avença, como se fora lei entre as partes - pacta sunt servanda.
Daí, têm-se os princípios da autonomia de vontade, da obrigatoriedade dos
contratos, da relatividade dos efeitos e o do consensualismo, os quais serão
comentados.
1.2.1.1 Princípio da autonomia da vontade
Etimologicamente, Roppo198 enfatiza que autonomia expressa o poder de
modelar por si, e não por imposição externa, as regras da sua própria conduta. O
princípio da autonomia da vontade é o princípio que atribui aos indivíduos a
faculdade de criar relações no direito.
O princípio da autonomia da vontade199 incide fundamentalmente na liberdade
dos contratantes de escolher celebrar o contrato ou não, e de instituir o conteúdo do
negócio, segundo seus interesses. Desse modo, a autonomia da vontade
corporifica-se na liberdade de contratar ou não contratar; pela liberdade de escolha
com quem contratar e pela liberdade de fixar o conteúdo do contrato. As partes, de
198
199
ROPPO, Enzo. O contrato. Coimbra: Almedina, 1988, p. 128.
O primado da autonomia da vontade é atrelado à escola jusnaturalista. Essa escola, no séc. XVII,
foi fator importante de laicização do direito, da sua concepção racional e, ao mesmo tempo,
universal.
68
forma livre, podem concorrer vontades com o desígnio de criar, modificar ou
extinguir direitos reconhecidos e tutelados pela ordem jurídica.
É na doutrina kantiana que a autonomia da vontade encontra sua baliza
essencial, a partir do momento em que, para Kant, o desígnio do direito é a
liberdade, devendo o direito proporcionar a harmonização da liberdade de cada um
com os demais indivíduos da sociedade. Por meio dessas liberdades individuais se
elevaria à idéia do justo, procedendo, dessa forma, o direito da autonomia do
homem, em benefício da qual não interferisse qualquer vontade superior.200
Conforme aludido anteriormente, com o Code, a liberdade de contratar
transformou-se no fundamento do direito das obrigações. As partes eram livres para
ajustar o objeto de suas relações jurídicas, observando somente as regras de
conduta previstas no ordenamento.
Uma vez consagrada a autonomia da vontade no referido Código, essa
doutrina continuou a ser desenvolvida no século XIX, pela Escola Exegética201, de
acordo com as concepções políticas e filosóficas daquele momento histórico, que
eram o individualismo e o liberalismo.
A liberdade consubstanciada pela autonomia da vontade expressa, na visão
histórica, a abolição dos vínculos de grupo, de corporação, de estado, que
aprisionavam o indivíduo num sistema de incapacidades legais, impedindo o pleno
desenvolvimento da sua iniciativa e de suas potencialidades.202
Todavia, o direito contratual, como destaca Gomes203, não se compõe somente
de normas supletivas, mas também, de normas coativas, que proíbem (proibitivas)
ou ordenam (imperativas) a prática de determinados atos, sendo imprescindíveis em
200
Kant diferenciava autonomia de heteronomia, sendo que autonomia seria o campo da liberdade,
em que o homem estabelece regras para si mesmo, e a heteronomia seria o campo da natureza,
que o homem não pode modificar.
201
A doutrina epistemológico-jurídica denominada exegetismo marcou a ciência do direito no século
XIX, período pós-codificação francesa, pregando que o direito positivo se identifica por completo
com a lei escrita, sendo a função específica do jurista ater-se rigorosamente ao texto legal, para
revelar o seu sentido.
202
ROPPO, Enzo. O contrato. Coimbra: Almedina, 1988, p. 36.
203
GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 25.
69
qualquer regime contratual, o que já era reconhecido mesmo na concepção
tradicional dos contratos, na qual a autonomia da vontade conseguiu maior
amplitude.
A vontade individual é plenamente garantida na celebração de todo contrato,
por ser um instrumento regulador de interesses privados204. É necessário, todavia,
distinguir essa liberdade, na esfera dos contratos: a liberdade de contratar e a
liberdade contratual. Liberdade de contratar é a capacidade de realizar ou não
determinado contrato, ao passo que a liberdade contratual é a possibilidade de
instituir o conteúdo do contrato. A primeira faz referência à possibilidade de cumprir
ou não um negócio; a segunda implica na definição das modalidades de sua
realização205. Essa liberdade “abrange os poderes de auto-regência de interesses,
de livre discussão das condições contratuais e, por fim, de escolha do tipo de
contrato conveniente à atuação da vontade”.206
Silva arroga à autonomia de vontade a faculdade, não ilimitada, de os
particulares vincularem-se, juridicamente, para decidir seus conflitos de interesses,
instituir associações, executar o câmbio dos bens e auxiliar a vida em sociedade.207
No estudo que faz sobre o princípio da autonomia da vontade e o princípio da
liberdade de contratar, Elesbão esclarece:
Chama-se princípio da liberdade de contratar, segundo Pontes de Miranda,
o de se poder, livremente, assumir deveres e obrigações. E princípio da
autonomia da vontade, o de escolher, segundo o próprio interesse, as
cláusulas contratuais. Na realidade, os dois princípios prendem-se à
liberdade de declarar ou manifestar a vontade com eficácia vinculante, e de
poder-se tirar proveito das declarações ou manifestações de vontade
208
alheias, receptícios ou não.
204
ZAMBRANO, Virginia. Il marchio, il consumatore e l’Ecolabel. In: STANZIONE, Pasquale (Org.). La
tutela del consumatore tra liberismo e solidarismo. Salerno: Edizioni Scientifiche Italiane, 1996, p.
251: “La dimensione contrattuale e la relativa disciplina rimediale, in altri termini, continuano ad as
solvere alla funzione di ideale terreno di confronto degli opposti interessi”. Tradução livre: “A
dimensão contratual e a relativa disciplina reparável em outros termos, continuam a exercer a
função de ideal terreno de confronto dos oportunos interesses”.
205
WALD, Arnoldo. Curso de direito civil brasileiro: obrigações e contratos. 13. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1998, p. 184.
206
GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 22.
207
SILVA, Clóvis Veríssimo do Couto e. A obrigação como processo. São Paulo: Bushatsky, 1976, p.
17.
208
ELESBÃO, Elsita Collor. Princípios informativos das obrigações contratuais civis. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2000, p. 111.
70
A liberdade de contratar, no direito privado, segundo Theodoro Júnior,
manifesta-se sob os seguintes aspectos:
a) pela faculdade de contratar e não contratar, isto é, pelo arbítrio de
decidir, segundo os interesses e conveniências de cada um, se e quando
estabelecerá com outrem um negócio jurídico contratual; b) pela liberdade
de escolha com quem contratar; c) pela liberdade de fixar o conteúdo do
contrato, redigindo suas cláusulas ao sabor do livre jogo das conveniências
209
dos contratantes.
Entretanto, não se pode asseverar que a vontade das partes é ilimitada, pois,
segundo Elesbão210, há vezes em que a vontade dos particulares só é dinâmica para
realizar o negócio jurídico, pois todo o ato, em seu conteúdo e efeitos, está
regulamentado pela lei, de tal maneira que os particulares não podem modificá-Io,
ou só podem fazer as modificações produzidas pela própria lei. A primeira limitação
seria aquela que emana das regras jurídicas de natureza cogente, em que o
imperativo jurídico não abre aos particulares qualquer presunção de poderem dispor
de acordo com suas conveniências.
Iniciou-se no século XIX a discussão a respeito da natureza jurídica da
autonomia da vontade. Após a Revolução Industrial, o dogma da autonomia da
vontade passou por uma expressiva modificação, devido à influência estatal, que
demarcava o teor dos contratos de trabalho, buscando se impor à vontade das
partes e afastando o desequilíbrio da relação jurídica.
Através das leis de ordem pública, pronuncia Theodoro Júnior211, o legislador
modifica o decurso do contrato, adequando-o às normas de ordem pública –
dirigismo contratual, e que as obrigações e vedações são determinantes, não
admitindo revogá-las ou modificá-las. Quanto aos bons costumes212, a teoria
209
210
211
212
THEODORO JÚNIOR, Humberto. O Contrato e seus princípios. 2. ed. Rio de Janeiro: Aide, 1999,
p. 14-15.
ELESBÃO, Elsita Collor. Princípios informativos das obrigações contratuais civis. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2000, p. 112.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. O Contrato e seus princípios. 2. ed. Rio de Janeiro: Aide, 1999,
p. 15.
Na lição de RODRIGUES, Silvio. Direito civil: dos contratos e das declarações unilaterais da
vontade. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.17, os bons costumes seriam "regras morais não
reduzidas a escrito, mas aceitas pelo grupo social e que constituem o substrato ideológico
inspirador do sistema jurídico". Sobre essa expressão, notável a conceituação de ROPPO, Enzo.
71
contratual sempre os respeitou como impedimentos éticos que se estabelecem
independentemente de previsão expressa em textos de lei.
1.2.1.2 Princípio da força obrigatória dos contratos
Tal princípio, em sua concepção clássica, consagra o entendimento de que,
obedecidos os requisitos legais para a existência do contrato, a avença se torna
obrigatória entre as partes, que não podem desligar da relação jurídica senão por
outro pacto com esse objetivo - pacta sunt servanda.213
Existe uma regra moral segundo a qual o contrato deve conservar o caráter
sagrado que tira da palavra dada, do dever de consciência imposto ao devedor e da
fé do credor na promessa realizada.214 O art. 1.134 do Código Civil francês
consagrou esse princípio ao dispor: “les conventions légalement formées tiennent
lieu de loi à ceux qui les ont faites. Elles ne peuvent être révoquées que de leur
consentement mutuel, ou pour les causes que la loi autorise. Elles doivent être
exécutées de bonne foi”.215
Esta enunciação legal torna-se dispensável ao alcance que a força obrigatória
do contrato é inserida na própria natureza do instituto. Como adverte Lopes216, sem
a obrigatoriedade, o contrato não cumpriria a sua função jurídico-econômica.
A partir da noção de força obrigatória, considera-se a intangibilidade do
contrato, isto é, as partes não podem modificar unilateralmente as disposições
O contrato. Coimbra: Almedina, 1988, p. 185. Conceitua bons costumes como "aquelas regras
não escritas de comportamento, cuja observância corresponde à consciência ética difundida na
generalidade dos cidadãos e cuja violação é, portanto, considerada moralmente reprovável".
213
“Os pactos devem ser cumpridos".
214
RIPERT, Georges. A regra moral nas obrigações civis. Tradução de Osório de Oliveira. São Paulo:
Saraiva, 1937, p. 44.
215
SANTIAGO, Mariana Ribeiro. O princípio da função social do contrato. Curitiba: Juruá, 2006, p. 37.
"Art. 1.134. As convenções legalmente formadas têm força de lei para aqueles que a fizeram. Não
podem ser revogadas senão por mútuo consenso ou por causas que a lei autorize. Devem ser
executadas de boa-fe.”
216
SERPA LOPES, Miguel Maria. Curso de direito civil. 4. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1991, p.
98-99.
72
contratuais, e nem mesmo o Juiz pode alterá-lo. O acordo de vontades torna-se
irretratável.217
Da força de lei atribuída ao contrato e de sua conseqüente intangibilidade,
decorrem as seguintes conseqüências: a) ‘nenhuma consideração de
eqüidade’ autoriza o juiz a modificar o conteúdo do contrato, a não ser
naquelas hipóteses em que previamente ao ato jurídico perfeito o legislador
já havia instituído o procedimento excepcional de revisão judicial; b) se
ocorre alguma causa legal de ‘nulidade’ ou ‘revogação’, o poder do juiz é
apenas o de pronunciar a nulidade ou de decretar a resolução. Não lhe
assiste ‘o poder de substituir as partes para alterar cláusulas do contrato’,
nem para refazê-lo ou readaptá-lo. Somente a lei pode,
extraordinariamente, autorizar ditas revisões; c) os prejuízos acaso sofridos
por um dos contratantes em virtude do contrato não são motivo para se
furtar à sua força obrigatória. As flutuações de mercado e as falhas de
cálculo são riscos normais na atividade econômica, que as partes
assumem quando se dispõem a contratar. Nem mesmo as considerações
de ‘eqüidade’ podem ser feitas para se enfraquecer o liame jurídico do
contrato. Nessa matéria, o direito se estrutura muito mais à base de
218
‘segurança’ do que de ‘eqüidade’.
Por influência do citado artigo do Code, afirma-se que o contrato faz lei entre as
partes, no significado de corroborar a sua obrigatoriedade e intangibilidade. Por isso,
os contratantes devem cumprir as obrigações pactuadas como se fossem cláusulas
pétreas. Porém, segundo Dantas, lei e contrato têm pontos em comum e outros
pontos em que se diferenciam. Assemelham-se porque ambos são normas de
conduta e normas de composição de conflitos, ou seja, possuem o dúplice papel de
orientar o comportamento de pessoas e de orientar o julgador no momento do litígio.
Por outro lado, distinguem-se radicalmente, pois o contrato é sempre particular,
resulta da vontade das partes, dirige-se a pessoas determinadas e é inspirado em
interesse particular; ao passo que a lei é geral, decorrente do Estado, dirigindo-se
aos cidadãos e aos juízes para que estes a apliquem, levando em consideração o
interesse social.219
Rodrigues pondera que a obrigatoriedade deve ser do ponto de vista social, e
não individual. Aquele que, pela livre manifestação da sua vontade, se obriga, cria
uma perspectiva no meio social, a qual a ordem jurídica deve garantir, estando aí o
217
SANTIAGO, Mariana Ribeiro. O princípio da função social do contrato. Curitiba: Juruá, 2006, p. 37.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. O Contrato e seus princípios. 2. ed. Rio de Janeiro: Aide, 1999,
p. 21-22.
219
DANTAS, San Tiago. Programa de direito civil II: os contratos. Rio de Janeiro: Rio, 1978, p. 153154.
218
73
fundamento da obrigatoriedade220. A obrigatoriedade dos contratos também já se
depara com certos limites, considerados na concepção clássica. Esses limites são a
força maior e o caso fortuito.
Força maior ocorre quando o acontecimento é provocado por um fato da
natureza, que o indivíduo não tem condições de evitar. No caso fortuito, ocorre que o
acontecimento é imprevisível pelo contratante, impossibilitando-o de cumprir a
prestação, independentemente de se tratar de fato vencível. Ambos independem da
vontade do contratante e, dentro do sistema de responsabilidade subjetiva,
funcionam como excludentes da culpabilidade. Abrangem a obrigatoriedade do
contrato, permitindo a extinção da relação contratual, através da resolução por
inexecução contratual involuntária, sem o ressarcimento de perdas e danos.221
Pode-se concluir, assim, que este princípio, na concepção clássica do contrato,
se justificava em face da igualdade que esse arquétipo demandava. Assim, se o
contrato era celebrado entre pessoas com total possibilidade de disposição, em
igualdade real de condições de negociação, o que fosse pactuado entre as partes
deveria ser cumprido.
O princípio da obrigatoriedade é limitado, mesmo pelo próprio princípio da
relatividade, uma vez que o contrato obriga apenas as partes, não se estendendo
essa força obrigatória.
1.2.1.3 Princípio da relatividade dos efeitos dos contratos
O princípio da relatividade dos efeitos do contrato apregoa que o acordo de
vontades vale entre as partes contratantes, não beneficiando, nem prejudicando
terceiros que dele não participaram, já que ninguém pode se tornar devedor ou
credor sem sua plena anuência. Esse princípio norteia a eficácia derivada do
220
RODRIGUES, Silvio. Direito civil: dos contratos e das declarações unilaterais da vontade. 27. ed.
São Paulo: Saraiva, 2002, p.12.
221
SANTIAGO, Mariana Ribeiro. O princípio da função social do contrato. Curitiba: Juruá, 2006, p. 3839.
74
contrato, delimitando sua abrangência. O contrato, resultado do princípio da pacta
sunt servenda, somente produz efeitos entre as partes contraentes.
O estudo da relatividade dos efeitos dos contratos abarca os efeitos contratuais
do ponto de vista subjetivo, ou seja, em relação às pessoas que esses efeitos
atingem, na acepção ativa, passiva ou à oponibilidade. O princípio referido já estava
previsto no Código de Justiniano, que enfatizava: inter alios acta vel iudicata aliis
non nocent.222
Entretanto, como bem ponderou Roppo, “compromissos ou mesmo efeitos
negativos sobre o patrimônio das pessoas podem derivar da vontade das próprias,
ou eventualmente da lei, mas não da vontade de outros sujeitos”.223 Esse
entendimento se baseia no juízo liberalista de que o indivíduo não pode estar
compelido a uma relação jurídica nem desejada, nem imposta por lei, algo sempre
visto como um fator de segurança por evitar surpresas para o indivíduo.
Partindo-se do intento de ser terceiro aquele que é completamente alheio ao
contrato ou à relação sobre a qual ele estende seus efeitos, vale notar que os
sucessores não são considerados terceiros, pois sua posição jurídica procede dos
contratantes, a quem substituem, na avença, como parte. Há uma substituição
imediata, uma vez que os sucessores se investem de todos os direitos creditórios; já
quanto aos débitos do sucedido não ocorre o mesmo fato, pois a substituição se dá
nos limites das forças da herança recebida.
Além da relatividade dos efeitos em relação às partes, Gomes registra que
esse princípio atinge, igualmente, no objeto, do seguinte modo: o contrato tem efeito
somente a respeito das coisas que distinguem a prestação.224
O componente essencial para a construção do princípio é quanto aos efeitos
internos do contrato, isto é, os direitos e obrigações dos contratantes apenas a eles
222
SANTIAGO, Mariana Ribeiro. O princípio da função social do contrato. Curitiba: Juruá, 2006, p. 39.
ROPPO, Enzo. O contrato. Coimbra: Almedina, 1988, p. 129-130.
224
GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 44.
223
75
se limitam, reduzem-se e circunscrevem-se. Seu efeito interno é concernente às
pessoas intervenientes em sua formação e quanto ao objeto pactuado.
Elesbão assinala que a relatividade dos contratos não pode ser interpretada de
maneira absoluta, pois
[...] há certas pessoas que ligadas aos contraentes por interesses outros,
sofrem, até certo ponto, os efeitos do acordo negocial. São as pessoas que
os civilistas franceses denominam de les ayantcause desparties (os que
têm relação com as partes). Em regra, não é possível criar direitos e
obrigações para alguém que não tenha participado da relação contratual.
Mas há contratos que, não se inserindo na regra geral, estendem seus
efeitos a outras pessoas, quer criando-lhes direitos, quer impondo-lhes
obrigações. São exemplos: a estipulação em favor de terceiros (art. 1.098),
que estende seus efeitos a outras pessoas, criando-Ihes direitos e
impondo-Ihes deveres, apesar de elas serem alheias à constituição da
avenca, o contrato coletivo de trabalho (art. 611, da CLT), o contrato de
seguro de vida no CC (art. 1.440), o fideicomisso inter vivos (art. 1733).
São contratos em que o beneficiário, sem ter tido parte no ajuste, pode
225
executá-Io como verdadeiro credor.
Assim, o contrato não pode ir além do objeto pactuado ou atingir pessoas
estranhas aos contratantes, salvo as exceções legalmente permitidas. Portanto, o
princípio da relatividade dos efeitos não é absoluto, uma vez que pode atingir
também a terceiros, determinando-lhes direitos seja impondo-lhes obrigações, como
também repercutindo em toda a coletividade social.
1.2.1.4 Princípio do consensualismo
Os contratos consensuais, como já estudados anteriormente, eram exceções
no direito romano, sendo que a regra do consensualismo se desenvolveu por
influência do direito canônico, nos séculos XIII e XIV. Foi, portanto, no transcurso da
Baixa Idade Média que o respeito à palavra dada se impôs.226
225
226
ELESBÃO, Elsita Collor. Princípios informativos das obrigações contratuais civis. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2000, p. 145-146.
GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito (lntroduction historique au droit). 2. ed. Trad. A. M.
Hespanha e L. M. Macaísta Malheiros. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995, p. 731.
76
Vale dizer que, segundo o princípio do consensualismo, acolhido no Code,
preponderando no séc. XIX e prosseguindo até os dias atuais, o contrato se perfaz
pelo acordo de vontades. A vontade é o elemento gerador do contrato. Em princípio,
não se exige forma especial para o aperfeiçoamento da convenção, bastam as
manifestações de vontade, a que Gomes chama de operação intelectual.227
Em verdade, o princípio do consensualismo preceitua que o simples acordo
tem eficácia para fazer nascer o contrato, não se exigindo forma especial para a sua
constituição. Nossa legislação faz advertências somente a alguns tipos específicos
de contrato nos quais algumas formalidades devem ser respeitadas, por razões de
interesse social, propiciando maior proteção legal.
Strenger salienta que é no campo axiológico que se apresenta a noção
fundamental de vontade, sendo esta um dos fatores constitutivos do valor, visto que
a consciência humana percorre da passividade à atividade em função de dados que
lhe impõem uma tomada de decisão. Adverte também o aludido autor que a função
da vontade no direito foi sucessivamente objeto de diversas pesquisas pelos juristas
e filósofos, o que suscitou inquietas posições a respeito do tema, merecendo realce
o voluntarismo, desenvolvido na fase de ascendência do direito natural, criando a
tendência de se alicerçar o direito sobre a vontade, numa reação ao predomínio de
uma metafísica jurídica.228
Segundo essa corrente voluntarista, que teve enorme prestígio entre os
civilistas franceses no século XIX, deve-se apreciar a vontade interna do indivíduo
como fonte dos efeitos do ato jurídico. Tal idéia influenciou a teoria clássica da
autonomia da vontade, mas atualmente está superada pela noção de que a vontade
declarada impera sobre a vontade interna, e que a vontade só afere efeitos aos atos
jurídicos porque a lei atrela o efeito jurídico à mesma.229
227
GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 36.
STRENGER, Irineu. Autonomia da vontade em direito internacional privado. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1968, p. 40-41.
229
STRENGER, Irineu. Autonomia da vontade em direito internacional privado. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1968, p. 117-118.
228
77
Como se salientou anteriormente, a vontade não deve ser compreendida na
sua definição meramente formal, como fato psicológico individual do querer que se
revela no íntimo, mas na definição de norte concreto em relação a certos interesses,
devendo tornar-se exterior e socialmente reconhecível para auferir relevância e
tutela da ordem jurídica.230
O princípio do consensualismo, entretanto, também não é absoluto. As
exceções à regra são os contratos formais e os contratos reais. Contratos formais,
também chamados de contratos solenes, são os que têm sua validade condicionada
à observância de certas formalidades estabelecidas em lei.231 Já os contratos reais
são aqueles que só se tornam perfeitos e acabados com a entrega da coisa, por
uma das partes, à outra. São exemplos o contrato de penhor, o depósito, o mútuo, o
comodato e a doação de pequeno valor.
Na realidade, existe uma vertente hodierna que considera esses contratos reais
como contratos consensuais condicionais, advertindo o fato de que se constituiriam
pelo acordo de vontades, deixando a entrega da coisa de ser essencial para a
constituição do pacto, sendo apenas sua fase executiva.
Portanto, esse princípio do consentimento recíproco é “fundamento do
contrato”.232
1.2.2 A ordem principiológica informadora do direito contratual contemporâneo
Como se pode perceber, a partir do que foi estudado anteriormente, os
princípios contratuais sofreram algumas mutações em decorrência da evolução pela
qual passou o instituto do contrato. Aliás, tornou-se manifesto que os princípios, na
sua concepção tradicional, já não se mostravam mais apropriados para o novo
230
231
232
ROPPO, Enzo. O contrato. Coimbra: Almedina, 1988, p. 301.
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: teoria das obrigações contratuais e
extracontratuais. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. v. 3, p. 36-37.
MENDONÇA, Manuel Ignácio Carvalho de. Doutrina e prática das obrigações. 4. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1956, p. 183., v. 2.
78
direito contratual, pois se amparavam no rigor da visão liberal, não mais satisfazendo
à realidade.
Foram reconhecidos novos princípios contratuais, designados como princípios
sociais do contrato, que refletem a mudança da função desse instituto jurídico. Para
evidenciar a nova realidade jurídica, serão apresentados os principais e novos
princípios que norteiam o sistema contratual.
1.2.2.1 Princípio da autonomia privada
Na concepção moderna, passou-se a falar em autonomia privada233 como
efeito da revisão do liberalismo econômico e, principalmente, as concepções
voluntaristas do negócio jurídico. Assim, o principal não é a vontade das partes, mas
sim, a auto-regulamentação de seus interesses.234
Sinônimo de autonomia da vontade para grande parte da doutrina
contemporânea, com ela porém não se confunde, existindo entre ambas
sensível diferença que se realça com o enfoque do fenômeno em apreço na
perspectiva da nomogênese jurídica. Poder-se-ia dizer que a expressão
autonomia da vontade tem uma conotação mais subjetiva, psicológica,
enquanto que a autonomia privada marca o poder da vontade de um modo
objetivo, concreto e real. Autonomia da vontade é, portanto, o princípio de
Direito Privado pelo qual o agente tem a possibilidade de praticar um ato
jurídico, determinando-lhe o conteúdo, a forma e os efeitos. Seu campo de
aplicação é, por excelência, o Direito Obrigacional, aquele em que o agente
pode dispor como lhe aprouver, salvo disposição cogente em contrário. E
quando nos referimos especificamente ao poder que o particular tem de
estabelecer as regras do seu próprio comportamento, dizemos, em vez de
autonomia da vontade, autonomia privada. Autonomia da vontade, como
manifestação de liberdade individual no campo do Direito, psicológica,
autonomia privada, poder de criar, nos limites da lei, normas jurídicas. Se
quisermos tornar mais específico o tema, podemos dizer que
subjetivamente, autonomia privada é o poder de alguém de dar a si próprio
um ordenamento jurídico e, objetivamente, o caráter próprio desse
233
234
Atualmente, a expressão mais adequada, em razão da função social dos contratos, é a de
autonomia privada. Contudo, a maioria dos doutrinadores utiliza ambas as expressões.
NORONHA, Fernando. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada,
boa-fé, justiça contratual. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 112. Consigna o autor: "Atualmente,
reconhece-se que nas obrigações contratuais o fundamental não é a vontade das partes, mas
apenas saber-se que o ordenamento jurídico atribui a estes o poder de autoregulamentarem os
seus interesses e relações, na esfera privada".
79
ordenamento, constituído pelo agente, em oposição ao caráter dos
235
ordenamentos constituídos por outros.
Amaral Neto define autonomia privada como: “[...] o poder jurídico dos
particulares de regularem, pelo exercício de sua própria vontade, as relações de que
participam, estabelecendo o seu conteúdo e a respectiva disciplina jurídica”.236 O
autor observa que o negócio jurídico patrimonial é compreendido como a declaração
de vontade voltada à obtenção de efeitos jurídicos previstos no ordenamento.
Exigências de natureza social e promocional dos valores básicos do
ordenamento se sobrepõem aos interesses privados dos indivíduos, entretanto, sem
desnaturá-los ou institucionaliza-los, avocando o Estado como seus interesses,
assumindo sua titularidade.
A nova concepção de autonomia privada manifesta visivelmente a sua relação
com a função social do contrato. A autonomia privada como poder de
autodeterminação não mais encontra justificativa em si, fazendo-se digno de tutela o
ato que a exprime somente quando satisfaça a um papel que o ordenamento aprecie
socialmente útil.237
Com acuidade, observa Gomes que a autonomia privada compreende “o poder
dos indivíduos de suscitar, mediante declaração de vontade, efeitos reconhecidos e
tutelados pela ordem jurídica”.238 Desse modo, pode-se observar que o contrato é
um acordo de vontades livres e soberanas, com o desígnio de fazer lei entre as
partes.
235
NORONHA, Fernando. O Direito dos contratos e seus princípios fundamentais. São Paulo:
Saraiva, 1994, p. 41.
236
AMARAL NETO, Francisco dos Santos. Autonomia privada. Revista do CEJ - Centro de Estudos
Judiciários, Brasília, n. 9, p. 26, set./dez. 1999.
237
PERLINGIERI, Pietro. II diritto civile nella legalità costituzionale. Napoli: Scientifiche Italiane, 1984,
p. 136. Para o autor, "I' autonomia privata come potere di autodeterminazione non trova più
riscontro e meritevolezza in sè: il giudizio di meritevolezza sull'atto di autonomia privata è positivo
soltanto qualora I' atto risponda ad una funzione che I' ordinamento considera utile e sociale." Em
tradução livre: "a autonomia privada como poder de autodeterminação não encontra mais
justificativa e merecimento em si: o juízo de merecimento sobre o ato de autonomia privada é
positivo apenas quando o ato corresponda a uma função que o ordenamento considere útil e
social".
238
GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 22.
80
É de se salientar que a autonomia da vontade existente nos contratos não mais
é absoluta, eis que o sistema jurídico intervém nas hipóteses de demandas
referentes à ordem pública. Os denominados bons costumes também colaboram de
alguma maneira para a diminuição da liberdade de contratar, no comedimento em
que impedem práticas não harmônicas com a moral social e que, por decorrência,
confrontam a opinião pública.
O Estado interfere na relação contratual quando existir desrespeito à
comutatividade, elemento que pode induzir uma das partes ao aniquilamento. Isso
porque o mero entrelace das vontades dos contratantes não significa igualdade e
paridade, como propagava a doutrina dominante do Séc. XIX.
Miranda bem disciplina que “não há autonomia absoluta ou ilimitada de
vontade; a vontade tem sempre limites, e a alusão à autonomia é alusão ao que se
pode querer dentro desses limites”.239
Neste escopo, pode-se conceituar o princípio da autonomia privada como a
liberdade das partes de estipular segundo sua vontade o conteúdo contratual,
indicando para si direitos e obrigações conforme seu consenso e interesse, sendo
seus efeitos tutelados pelo sistema jurídico. Percebe-se, assim, que qualquer que
seja o conteúdo da autonomia privada, deve o mesmo atentar aos valores
promocionais do ordenamento, o que integra sua própria estrutura.
1.2.2.2 Princípio da boa-fé objetiva
É um dos princípios básicos que norteiam a formação do contrato, pois os
contratos devem ser pactuados, interpretados e executados segundo o princípio da
boa-fé.240
239
240
MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Editora Borsoi, 1962, p. 39.
Tomo XXXVIII.
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p.
427-472. Analisando a boa-fé objetiva, pode-se dizer que a mesma desempenha no campo
obrigacional três funções distintas: a) cânone hermenêutico-integrativo do contrato; b) norma de
81
Após a ocorrência das duas guerras mundiais e da Revolução Industrial, que
conduziram o Estado a novas posturas, a função social do contrato adquiriu cada
vez mais amplitude. Prestigia-se cada vez mais o elemento ético da boa-fé que
confere equilíbrio na vontade humana, tendo-se esta sempre atrelada às
necessidades da vida moderna, de tal modo que os contratantes reclamam
segurança do Estado e este passa a garantir a igualdade com a proteção do
economicamente mais fraco e a valorização do interesse coletivo sobre o individual.
O princípio da boa-fé valoriza a pessoa humana, na proporção em que limita a
vontade individual; o contrato passa a ser visto como instrumento de realização
social, havendo de se efetivar com absoluta lealdade entre as partes e assegurando
ao indivíduo sua inserção no contexto social.
Neste ponto, o que importa fixar é que a doutrina faz referência a dois
conceitos distintos: a boa-fé subjetiva, ligada a um conceito psicológico, e a boa-fé
objetiva, pautada num conceito ético. A definição subjetiva conota uma crença, um
estado de ignorância sobre as peculiaridades da situação jurídica que se depara,
capaz de conduzir à lesão de direitos de outrem. Logo, a boa-fé objetiva caracterizase como uma regra de conduta, um dever de agir em conformidade com
determinados arquétipos de correção. De acordo com essa concepção, a lealdade e
a confiança241 recíprocas instituem pressuposições inarredáveis da relação
contratual.
criação de deveres jurídicos; c) norma de limitação ao exercício de direitos subjetivos. Como
cânone hermenêutico-integrativo, a boa-fé objetiva propicia uma melhor especificação do "plano
legal de ordenação do contrato", atuando como via para uma adequada realização, pelo órgão
jurisdicional, do plano de valoração do legislador. Ao atuar como norma de criação de deveres
jurídicos, a boa-fé objetiva explicita a natureza processual da obrigação, em que as posições dos
credores e devedores às vezes se aluem, ensejando que ambos possam exigir da contra-parte
atuações positivas frente à outra. Não se trata de enfraquecer a posição do credor, o qual
continuará a ser o titular da obrigação, podendo exigi-la coativamente do devedor, mas de: a)
atribuir-lhe determinados deveres de conduta em face do sujeito passivo, os quais deverão estar
presentes antes, durante e após o cumprimento das prestações reciprocamente acordadas; e b)
limitar-lhe o exercício de determinados direitos subjetivos, sempre que estes direitos, quando
exercitados, revelem-se abusivos. Tal como ocorre com o dever de prestar, imposto ao sujeito
passivo da obrigação, o dever de boa-fé se aplica a todos os credores, independentemente da
fonte do seu direito de crédito.
241
A ordem jurídica não pode deixar de tutelar a confiança legítima baseada no comportamento.
82
O princípio da boa-fé objetiva tem uma grande amplitude, que parte da doutrina
considera gênero, sendo espécies outros princípios como, por exemplo, o do
equilíbrio contratual e o da função social do contrato.
Já a boa-fé objetiva se apresenta como uma exigência de lealdade, modelo
objetivo de conduta, arquétipo social pelo qual impõe o poder-dever de que
cada pessoa ajuste a própria conduta a esse arquétipo, obrando como
242
obraria uma pessoa honesta, proba e leal.
Pode-se, assim, dizer que a boa-fé objetiva realça a necessidade de as partes
envolvidas interagirem na busca da finalidade do contrato com lealdade, probidade e
honestidade. Esse princípio abre um campo para a revisão judicial dos contratos,
colocando em segundo plano a autonomia da vontade; porquanto, como cláusula
geral do contrato, a boa-fé objetiva procura alcançar o fim do contrato.
A boa-fé objetiva é um valor pertencente à solidariedade que deve existir entre
os cidadãos, ao respeito mútuo e à cooperação. Deve ser notado desde a origem do
contrato até sua execução e, até mesmo, após sua conclusão, como limitação de
direitos.
Os principais deveres decorrentes deste princípio são: os de cuidado,
previdência e segurança; os de aviso e esclarecimento; os de informação; o de
prestar contas; os de colaboração e de cooperação; os de proteção e cuidado com a
pessoa e o patrimônio; os da omissão e de segredo. Cada um se ajusta e se insere
conforme o tipo de contrato solidificado pelas partes.
Portanto, o contrato, além de servir como meio de se atingir o interesse pessoal
de determinados indivíduos (com suas prerrogativas individuais e egoísticas),
também está sujeito a uma influência tácita ou expressa do Estado no ensaio de
procurar atender às finalidades sociais. Dessa forma, não se pode admitir que
contratos sejam celebrados sem a observação dos dispositivos constitucionais que
instituem o princípio da boa-fé, da comutatividade e da dignidade da pessoa
humana, consagrados no art. 1º da CF.
242
REALE, Miguel. A boa-fé objetiva. São Paulo: Espaço Aberto, 2003, p. A2.
83
1.2.2.3 Princípio da justiça e do equilíbrio contratual
O princípio do equilíbrio contratual tem por fundamento proibir possíveis
desequilíbrios entre as vantagens conseguidas pelos contratantes e está de acordo
com o preceito estatuído pelo artigo 3º, inciso III de nossa Carta Magna, que é o
princípio da igualdade substancial.
Assim, a comutatividade, nos contratos, é o princípio essencial de Direito,
porque exige a equivalência das prestações e o equilíbrio delas, no curso
das contratações, pois, por ele, as partes devem saber, desde o início
negocial, quais serão seus ganhos e suas perdas, impondo esse fato a
243
aludida eqüipolência das mencionadas prestações.
Esse princípio norteador dos contratos fundamenta-se na equivalência da
prestação devida e da contraprestação correspondente, provocando equilíbrio entre
as partes. Desse modo, o contrato não pode proteger as injustiças. É uma proteção
à parte hiposuficiente em razão da desigualdade do poder negocial dos contratantes,
permitindo justas prestações e possibilitando o estabelecimento da verdadeira justiça
contratual.
Com o escopo de combater o desequilíbrio contratual, a teoria da igualdade
formal passou por um considerável declínio e, então, busca-se uma igualdade real,
por ser mais dinâmica às necessidades da realidade.
O reequilíbrio da relação jurídica e da equação econômico-financeira
disposta pelos termos contratuais é de suma importância, a fim de que um
dos contraentes, mais especificamente aquele que se encontra
presumivelmente em situação inferior ou vulnerável, possa obter retribuição
244
proporcional à obrigação que contraiu pela formação do contrato.
Ora, certo é que se a justiça contratual é um novo princípio dos contratos, de
direta inspiração constitucional, não há razão para limitá-lo, quando se trate de
afastar cláusulas abusivas, aos contratos de massa e de adesão, sendo que a
apreciação deve se dar com muito mais austeridade.
243
244
AZEVEDO, Álvaro Vilhaça. Teoria geral dos contratos típicos e atípicos: curso de Direito Civil. São
Paulo: Atlas, 2002, p. 29.
LISBOA, Roberto Senise. Manual elementar de Direito Civil. 2. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002, p. 52.
84
Nesse sentido, pode-se dizer que, hoje, nas relações entre particulares,
procura-se assegurar um equilíbrio que garanta a igualdade, por meio da ação de
uma justiça que seja corretiva das desigualdades.
1.2.2.4 Princípio da função social do contrato
Notadamente, a função social do contrato constitui um dos principais pilares da
teoria contratual moderna. O art. 421 do novo Código Civil prescreve que “a
liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do
contrato”.
O princípio da função social do contrato foi abarcado em nossa legislação civil
como uma cláusula geral. Deste modo, percebe-se que, por meio da função social, o
contrato não mais é entendido como uma relação jurídica existente somente para
atender interesse relativo às partes, mas sim arraigada num contexto social que
influencia e até mesmo modifica esse pacto.
O contrato é, portanto, mecanismo de consecução do bem comum, na busca
do interesse social. Não mais há lugar para sua antiga visão individualista e
desumana, visto que o Direito adota uma ótica de valores sociais, de um novo
horizonte para a aplicação dos modernos princípios contratuais.
Há uma harmonização entre o princípio da função social e o da relatividade,
segundo Negreiros:
Assim, na outra ponta do arco histórico traçado a partir do modelo de
contrato fundado na vontade individual, tem-se hoje um modelo normativo
no qual a força obrigatória do contrato repousa, não na vontade, mas na
própria lei, submetendo-se a vontade à satisfação de finalidades que não se
reduzem exclusivamente ao interesse particular de quem a emite, mas
245
igualmente à satisfação da função social do contrato.
245
NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar,
2006, p. 227.
85
Resta claro que a função social desempenha um sistema de proteção e
garantia das partes. É norma de caráter preventivo, como demonstra Santos:
O caráter preventivo da norma é um permanente aviso às partes
contratantes. É como se alertasse de que o direito não vai tolerar nenhum
ato que venha a conspurcar o interesse social, que vulnere a função social,
246
concebida, principalmente, para tutelar a parte menos favorecida.
No Estado Social, exige-se que a ação dos poderes públicos se desenvolva em
benefício de uma maior justiça social. O legislador há de elaborar textos que
permitam uma ordem social mais justa, em favor dos menos favorecidos, de maneira
a atenuar a desigualdade, característica de uma sociedade liberal. Como inicial
efeito da função social do contrato, tem-se que, com embasamento no princípio da
autonomia da vontade, não se poderão estabelecer pactos contrários aos ideais de
justiça.
A partir das considerações anteriormente feitas, nota-se que o Judiciário deve
exercer um controle efetivo sobre o conteúdo contratual, sempre que determinado
ajuste impeça que o contrato exerça a função social exigida em lei. Ou seja, o
judiciário tem um importante papel: realizar a efetivação da justiça contratual, através
da concretização dos direitos fundamentais.
O julgador pode adotar princípios e valores constitucionais nas relações
interprivadas e possibilitar a efetivação dos direitos fundamentais. Esses valores
devem ser interpretados em benefício da efetivação dos direitos fundamentais e se
concretizam no respeito à dignidade da pessoa humana.
Percebe-se, assim, que a função social do contrato deve apresentar
comportamentos positivos (prestações de fazer), de modo a impor uma obrigação de
ação em benefício de outra pessoa e não somente um dever de não causar prejuízo
a outrem.
O contrato é feito para ser cumprido, em suma; e, o contrato, ademais disso,
vive e deve realizar a sua função no ambiente em que está basicamente
presente o princípio de dar a cada um o que é seu, do que o contrato é
246
SANTOS, Antônio Geová. Função social, lesão e onerosidade excessiva nos contratos. São Paulo:
Método, 2002, p. 105.
86
também um instrumento destinado à implementação desse princípio. Desta
forma, o problema, vamos dizer, é de circunstâncias que podem incidir na
medida do sistema positivo, mas nunca poder-se-ia, no meu entender, em
nome da função social, provocar uma verdadeira disfunção e uma negativa
247
da própria razão de ser do contrato.
Como já se disse, em virtude de uma nova compreensão do contrato, deve-se
buscar fundamento nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e
da solidariedade. Assim, há necessidade da efetivação da função social do contrato,
para que se realize a justiça social. Nessa perspectiva, o direito privado teve uma
nova postura, ou seja, uma releitura exigida pelos novos valores sociais. Diante
desse cenário, não se pode falar em contratos sem destacar as diretrizes
constitucionais.
Em sendo assim, as relações contratuais devem ocorrer através da cooperação
e da solidariedade entre os contratantes. Com isso, a função social deve fazer do
contrato um instrumento que busca efetivar e concretizar os direitos fundamentais.
Na mesma esteira de entendimento, os contratos estão submersos nas regras
e princípios constitucionais. Deixam de ter uma visão individual (vontade das partes)
e passam a ter uma visão socializante (justiça social).
O modelo tradicional de contrato, centrado em bases individualista e
patrimonialista, já não é eficaz em sua função primordial. Nos tempos atuais, não se
permite um contrato distante de sua concepção moderna. E a nova concepção social
dos contratos busca a realização da justiça e do equilíbrio contratual. Almeja-se um
contrato constitucionalizado que realize a sua função social, ou seja, mediante a
concretização do princípio da dignidade da pessoa humana. Nessa acepção,
conforme se evidenciou anteriormente, somente os contratos que efetivamente
cumprem sua função social são dignos de receber tutela do Direito.
Dessa maneira, após estudar a concepção tradicional do contrato e a
necessidade de sua constante releitura, o próximo capítulo dedica-se à análise da
ingerência da Constituição Federal de 1988 no direito civil, da superação da
247
ALVIM, Arruda. A função social dos contratos no novo Código Civil. Revista dos Tribunais, São
Paulo, v. 815, set. 2003, p. 30.
87
dicotomia direito público X direito privado e, finalmente, de seus reflexos na
vinculação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares.
88
2 CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL - A VINCULAÇÃO DOS
DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES ENTRE PARTICULARES
Na sociedade romano-germânica, o direito civil sempre foi visto como o locus
normativo privilegiado do indivíduo. Ele era o ramo mais longínquo do direito
constitucional, sendo considerado como a constituição do homem comum. Era
consagrado como o domínio da liberdade individual248 por regular as relações entre
as pessoas privadas, seu estado, capacidade, família e propriedade. Desse modo,
as relações entre o público e o privado apresentavam-se bem diferentes, uma vez
que o direito privado teria alusão ao campo dos direitos naturais e inatos do
indivíduo e o direito público seria emanado pelo Estado para tutelar a vontade da
coletividade.
Com a crise do liberalismo, que defendia a separação entre o Estado e a
sociedade civil e a procedente ingerência do Poder Público sobre a economia, o
direito civil teve seus institutos e funções alterados. Assim sendo, institutos típicos de
direito privado principiaram a contemplar normas de ordem pública. Ou seja, os
institutos, antes privativos do direito civil, passam a sofrer incidência constitucional.
Tepedino lembra que o direito civil perde sua unidade sistemática antes assentada,
de maneira estável, no Código Civil. A partir disso, os princípios constitucionais
assumem o caráter de normas jurídicas privilegiadas na reunificação do sistema
interpretativo, balizando a ação do intérprete.249
Pressupõe-se que, no direito civil, houve transformações econômicas, sociais e
filosóficas, como nos demais ramos do Direito. Assim, o direito contratual também
passou a sofrer a incidência de ordem pública. Evidencia-se a interferência da
248
249
RAMOS, Carmem Lucia Silveira. A constitucionalização do direito privado e a sociedade sem
fronteiras. In: FACHIN, Luiz Edson. Repensando fundamentos do direito civil contemporâneo. Rio
de Janeiro: Renovar, 1998, p. 5. Ramos, assimilando o Estado Liberal, confirma: “A igualdade,
fundada na idéia abstrata de pessoa, partindo de um pressuposto meramente formal, baseado na
autonomia da vontade, e na iniciativa privada, no entanto, veio acompanhada de um paradoxo,
que traduz uma conseqüência do modelo liberal-burguês adotado: a prevalência dos valores
relativos à apropriação de bens sobre o ser, impedindo a efetiva valorização da dignidade
humana, o respeito à justiça distributiva e à igualdade material ou substancial”.
TEPEDINO, Gustavo. Normas Constitucionais e Relações de Direito Civil na Experiência
Brasileira. Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra. Coimbra, n. 48,1998, p. 332-333.
89
Constituição Federal250 nas relações havidas entre os particulares. A proeminência
dos valores e princípios constitucionais no direito civil corrobora a preocupação com
a construção de uma ordem jurídica; situa-se entre esses valores e princípios, o de
dispor de um direito contratual que, além de imprimir operações econômicas, seja
direcionado à efetivação da dignidade da pessoa humana.
Decorre que, para o direito, a tutela da pessoa humana e de sua dignidade
funda a eficácia determinante das inovações no direito civil. Portanto, as
transformações ocorridas na família, no contrato e na propriedade são decorrência
de um direito civil constitucionalizado.251
[...] ao recepcionar-se, na Constituição Federal, temas que compreendiam,
na dicotomia tradicional, o estatuto privado, provocou-se transformações
fundamentais do sistema de direito civil clássico: na propriedade (não mais
vista como um direito individual, de característica absoluta, mas pluralizada
e vinculada à sua função social); na família (que, antes hierarquizada,
passa a ser igualitária no seu plano interno, e, ademais, deixa de ter o perfil
artificial constante no texto codificado, que via como sua fonte única o
casamento, tornando-se plural quanto à sua origem) e nas relações
contratuais (onde foram previstas intervenções voltadas para o interesse de
categorias específicas, como o consumidor, e inseriu-se a preocupação
252
com a justiça distributiva).
No modelo civil clássico, o valor essencial para o indivíduo eram as relações
patrimoniais. A codificação do direito privado divulgava um modelo de sistema,
estabelecendo, “espelho e metáfora do sistema fechado”,253 o que levou ao declínio
do Código oitocentista.254
250
251
252
253
254
LORENZETTI, Ricardo Luís. Fundamentos do direito privado. Tradução de Vera Maria Jacob de
Fradera. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 255-256. Nesse sentido, anota Lorenzetti que
"as constituições mais atuais têm decididamente regulado temas de direito privado, destacando
que a Constituição Brasileira de 1988 é aquela, na América Latina, que tem mais avançado".
GOMES, O. et aI. Estudos jurídicos em homenagem ao professor Caio Mário da Silva Pereira. Rio
de Janeiro: Forense, 1984, p. 166. Segundo Gomes, “houve franco esvaziamento do Código Civil
como estatuto da vida privada, pela imigração para o plano constitucional de princípios gerais
atinentes a instituições privadas, tais como a propriedade, a família e a própria autonomia
privada".
RAMOS, Carmem Lucia Silveira. A constitucionalização do direito privado e a sociedade sem
fronteiras. In: FACHIN, Luiz Edson. Repensando fundamentos do direito civil contemporâneo. Rio
de Janeiro: Renovar, 1998, p. 10-11.
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p.
169.
Para o aprofundamento desse debate, ver GIORGIANNI, Michele. La morte DeI Códice
Ottocentesco. Rivista di Diritto Civile, Padova: Cedam, parte I, XXVI,1980, p. 52-84.
90
Atualmente, evidencia-se a valoração da pessoa humana como titular de
interesses não mensuráveis economicamente, passando o Direito a erigir princípios
e regras tendendo à tutela de sua dimensão existencial. A dignidade da pessoa
humana tornou-se uma inovação do Direito, isto é, de considerar o homem e o que
se pode fazer por ele, numa sociedade política.
Tendo o homem produzido o Holocausto, não havia como ele deixar de
produzir os anticorpos jurídicos contra a praga da degradação da pessoa
por outras que podem destruí-Ia ao chegar ao poder. Como não se pode
eliminar o Poder da sociedade política, havia de erigir em fim do Direito e
no Direito o homem com o seu direito fundamental à vida digna, limitando255
se, desta forma, o exercício do Poder, que tanto cria quanto destrói.
Na realidade, portanto, há uma crise do sistema clássico do direito civil,256 pois
o mesmo não se adapta ao período social em que vivemos.257 Asseverava-se que o
Código Civil de 1916 era a “Constituição do direito privado”258 e que o direito público
não poderia intervir no direito privado. Assim, o Código Civil era considerado o
exclusivo estatuto das relações privadas.
Vê-se, desde logo, que se modifica a função do Código Civil, eis que passam a
existir leis especiais, com o desígnio de regular os novos institutos incididos da
evolução sócio-econômica, isto é, “a disciplina codificada deixa de representar o
direito exclusivo, tornando-se o direito comum, aplicável aos negócios jurídicos em
geral”.259 O Código Civil perdeu o papel de normatizador do direito comum. Temas
importantes são extraídos, surgindo a era dos estatutos, como, por exemplo, o
Estatuto da Criança e o Adolescente (ECA), e o Código de Proteção e Defesa do
Consumidor (CDC). Neste ponto, o que importa fixar é que esse processo denomina255
ROCHA Cármem Lúcia Antunes. Princípios constitucionais da administração pública. Belo
Horizonte: Del Rey, 1994, p. 29.
256
Uma leitura sempre instrutiva sobre esse processo é, por certo, FACHIN, Luiz Edson. Teoria
crítica do direito civil. Rio de janeiro: Renovar, 2000.
257
TEPEDINO, Gustavo. 80 anos do Código Civil brasileiro: um novo Código atenderá às
necessidades do país? Revista DeI Rey, Belo Horizonte: n. 1, p. 17, dez. 1997. Nesse sentido,
bem assinala Tepedino: "As relações patrimoniais são funcionalizadas à dignidade da pessoa
humana e a valores sociais insculpidos na Constituição de 1988. Fala-se, por isso mesmo, de
uma despatrimonialização do direito privado, de modo a bem demarcar a diferença entre o atual
sistema em relação àquele de 1916, patrimonialista e individualista".
258
GIORGIANNI, Michele. O direito privado e as atuais fronteiras. Tradução de Maria Cristina de
Cicco. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 747, p. 41, jan. 1998. Para a autora, esse significado
constitucional era imanente aos Códigos, já que "a propriedade privada e o contrato, que
constituíram, como se sabe, as colunas do sistema, vinham, por assim dizer, 'constitucionalizar'
uma determinada concepção da vida econômica, ligada, notoriamente, à idéia liberal”.
259
TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 5.
91
se descodificação do direito civil,260 que implicou mutação para uma multiplicidade
de estatutos que funcionam como microssistemas do direito privado.
Efetivamente, o ordenamento não está confidenciado aos valores do Código
Civil, nem mesmo aos da legislação extravagante, todavia aos valores e princípios
constitucionais. Ou seja, é o direito constitucional, fundamentado na eficácia
normativa dos princípios e em um sistema jurídico aberto, que admite a
constitucionalização do direito civil.261
Dessa forma, a regulação da vida privada, até então exclusiva do direito
civil, passa a se subordinar à Constituição. Diversos institutos regulados
pelo Código Civil, passam, sob o paradigma da constituição, a ser
positivados pelos microssistemas jurídicos. A Constituição assume o seu
status de lei superior e passa a ser o centro do ordenamento jurídico,
irradiando seus princípios normativos a toda a legislação denominada
infraconstitucional. […] muda o paradigma do direito privado, ao invés da
proteção patrimonial ditada pelo ideal burguês, do sistema liberal, passa-se
a proteger a pessoa humana, ocorre o fenômeno da despatrimonialização
do direito privado, ou seja, em obediência a sua constitucionalização, há a
262
predominância do princípio da dignidade humana.
A expressão constitucionalização do direito civil vem sendo objeto de pesquisa
e discussão exclusivamente em tempos mais atuais, estando ligada às aquisições
culturais da hermenêutica contemporânea, tais como a força normativa dos
260
261
262
FACHIN, Luiz Edson. Limites e possibilidades da nova teoria geral do direito civil. Revista AJURlS,
Porto Alegre, n. 60, p. 205, mar. 1994. Fachin aborda com propriedade que "pode ser a
'descodificação da Teoria Geral do direito civil,’ o caminho de apreensão menos artificial da vida e
dos fatos".
CIFUENTES, Marcela Castro de. Constitución y derecho privado. Revista de Derecho Privado,
Andes, v. 10, n. 18, p. 14, jun. 1996. O fenômeno da "constitucionalização" não se sintetiza à idéia
de Constituição em sentido formal, pois, se assim o fosse, cambiar-se-ia a codificação civil por um
"macrocódigo", o que não procede, conforme defende Cifuentes: “Si bien eI derecho privado debe
acoger e incorporar los principios y valores de Ia nueva Constitución y sobre todo debe propugnar
por Ias medidas que tiendan a evitar o remediar Ia inequidad, no todos los conflictos entre
particulares deben constitucionalizarse. Como lo afirma eI autor Mathias Herdeger 'De llevar todos
los conflictos jurídicos al campo constitucional, cobraría vigencia a metáfora griega del rey Midas,
quien convertía en oro todo lo que tocaba, de manera que arriesgaba su propia vida por falta de
pan. De manera similar, una excesiva constitucionalización del derecho, podría ocasionar un
anquilosamiento del derecho [...]”. Em tradução livre, lê-se que: "Embora o direito privado deva
acolher e incorporar os princípios e valores da nova Constituição e, sobretudo, deva propugnar
pelas medidas que tendam a evitar ou remediar a iniqüidade, nem todos os conflitos entre
particulares devem constitucionalizar-se. Como afirma o autor Mathias Herdeger 'De levar todos os
conflitos jurídicos ao campo constitucional, cobraria vigência a metáfora grega do rei MIDAS, que
convertia em ouro tudo o que tocava, de maneira que arriscava sua própria vida por falta de pão.
De maneira similar, uma excessiva constitucionalizacão do direito poderia ocasionar um
atrofiamento do direito [...]”.
REIS, Jorge Renato dos. A Constitucionalização do Direito Privado e o novo Código Civil. In:
LEAL, Rogério Gesta (Org.). Direitos sociais e políticas públicas: desafios contemporâneos. Santa
Cruz do Sul: EDUNISC, 2003, p. 778-780.
92
princípios, à distinção entre princípios e regras, à interpretação conforme a
Constituição etc.263
O processo de constitucionalização do direito civil264-265-266 alude à troca de seu
cerne valorativo, isto é, no lugar do indivíduo, surge a pessoa. A liberdade individual
dá espaço à solidariedade social.267 Ou seja, a proteção da liberdade individual é
trocada pela força jurídica da solidariedade social. Como lembra Pereira: “É tempo
de reconhecer que a posição ocupada pelos Princípios Gerais de Direito passou a
ser
preenchida
pelas
normas
constitucionais,
notadamente
pelos
Direitos
Fundamentais”.268
É mister, então, o que Perlingieri designa despatrimonialização do Direito,
versando em lenta escolha normativa, que se concretiza entre o personalismo
(superação do individualismo) e o patrimonialismo (superação da patrimonialidade
como fim em si mesma, do produtivismo, antes, e do consumismo, depois, como
valores).269 Portanto, a redução de incidência das normas de direito privado deve-se
dar através de ponderação qualitativa, de maneira que o sistema econômico
produza seus efeitos e alcance seus desígnios sem abandonar a concepção de
conservação da dignidade da pessoa humana.
263
FACCHINI NETO, Eugênio. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito
privado. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 36-37.
264
STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares aos Direitos Fundamentais. São Paulo:
Malheiros, 2004, p. 10. Acerca do termo “Constitucionalização do direito privado”, o autor explana
que o mesmo é gênero do qual a eficácia horizontal dos particulares a Direitos Fundamentais
assume a condição de espécie.
265
MARTINS-COSTA, Judith. Os direitos fundamentais e a opção culturalista do novo Código Civil. In:
SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 62. Oportuna a observação de Martins-Costa quando fala
que a Constitucionalização do Direito Privado e os direitos fundamentais, embora tenham
conexões, não se confundem, pois assumem feições específicas e diferenciadas.
266
TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 1. O primeiro
texto com essa expressão, no Brasil, é de Gustavo Tepedino - “Premissas Metodológicas para a
Constitucionalização do Direito Civil” (12/03/1992). Para uma clássica descrição do processo de
constitucionalização do direito civil, cite-se SAVATIER, René. Du droit civil au droit public. 2. ed.
Paris: L.G.D.J., 1950.
267
NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar,
2006, p. 11.
268
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Discurso de Doutoramento Honoris Causa pela Universidade de
Coimbra. Revista de Direito Comparado Luso-Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 368372, v. 17.
269
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução de
Maria Cristina De Cicco. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 33.
93
Como argumenta Perlingieri, não é satisfatório persistir na asseveração do
valor dos interesses da personalidade no direito privado; é necessário predispor-se a
reconstruir o Direito Civil não com uma redução ou aumento de tutela de situações
patrimoniais, mas com uma tutela qualitativamente diversa.270
A “despatrimonialização”271 do direito civil ocorre a partir da funcionalização das
relações intersubjetivas a princípios-valores como os da dignidade da pessoa
humana, da justiça social e da igualdade272 substantiva. Incide, desse modo, o que
Facchini Neto denomina de “repersonalização do direito civil ou visto de outro modo,
a despatrimonialização do direito civil”.273-274 O ser humano passa a estar no centro
do sistema jurídico, seja sob enfoque do direito público ou privado. Aceita-se que:
“as novas Constituições promulgadas acentuam a hegemonia axiológica dos
princípios, convertidos em pedestal normativo sobre o qual assenta todo o edifício
jurídico dos novos sistemas constitucionais”.275 Conclui-se que a Constituição avoca
a condição de tutelar a vida privada; o Código Civil passa a ter, também, caráter
político; e a cátedra, de aproximar o direito público do privado, a sociedade do
Estado e o direito civil da Constituição.276
270
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução de
Maria Cristina De Cicco. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 34.
271
Quando se fala em despatrimonialização do Direito Civil e à conseqüente despatrimonialização do
contrato, tem-se em vista a renovação do contrato contemporâneo, entre o que se dá atenção
maior ao sujeito do que à produção e ao consumo, sem que se ausente a superação do conteúdo
econômico do negócio.
272
BOBBIO, Norberto. Igualdade e liberdade. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro:
Ediouro, 1996, p. 11-12. Bobbio enfatiza que para a afirmativa ter significação é preciso responder
as seguintes perguntas: a) igualdade entre quem?; e b) igualdade em quê?
273
FACCHINI NETO, Eugênio. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito
privado. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 32.
274
A repersonalização guia ou decorre de uma evidente publicização do Direito Privado, pela
elevação da pessoa ao centro protetivo do sistema jurídico, cujos paradigmas clássicos se
fracionam, pela submissão à dignidade da pessoa humana.
275
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 237.
276
LÔBO, Paulo Luiz Neto. Constitucionalização do direito civil. Revista de Informação Legislativa,
Brasília, n. 141, p. 100-101, jan./mar. 1999. Importante destacar que a crescente intervenção do
Estado nas relações privadas, regulando as normas imperativas, vêm sendo retiradas da órbita
privada, matérias tidas, até então, como dela integrantes. Como observa Lôbo: “A ação
intervencionista ou dirigista do legislador terminou por subtrair do Código Civil matérias inteiras,
em alguns casos transformadas em ramos autônomos, como o direito do trabalho, o direito
agrário, o direito das águas, o direito da habitação, o direito de locação de imóveis urbanos, o
estatuto da criança e do adolescente, os direitos autorais, o direito do consumidor [...]. O Estado
social caracteriza-se exatamente por controlar e intervir em setores da vida privada, antes
interditados à ação pública pelas constituições liberais. No Estado social, portanto, não é o grau de
intervenção legislativa, ou de controle do espaço privado, que gera a natureza de direito público. O
mais privado dos direitos, o direito civil, está inserido essencialmente na Constituição de 1988
94
O respeito à Constituição, fonte suprema, implica não somente a
observância de certos procedimentos para emanar a norma
(infraconstitucional), mas também, a necessidade de que seu conteúdo
277
atenda aos valores presentes (e organizados) na própria Constituição.
O direito civil dirigido para a tutela da dignidade da pessoa humana cumpre
tarefas protetivas, conduzindo-se a uma pessoa localizada concretamente nas suas
relações econômico-sociais.
O desamparo do ponto de vista individualista, garantido pelo CC, e sua
substituição
pelo
princípio
da
solidariedade
social,
causou
uma
intensa
transformação no cerne do direito civil. O Código Civil perde, categoricamente, o seu
papel de Constituição do direito privado. Os textos constitucionais determinam
princípios relacionados a temas antes exclusivos do Código Civil: a função social da
propriedade, os limites da atividade econômica, a organização da família, matérias
típicas de direito privado, passam a integrar uma nova ordem pública constitucional.
Por outro lado, o direito civil, por meio da legislação extracodificada,278 desloca seu
eixo fundamental, que já não se volta tanto para o indivíduo, senão para as
atividades desenvolvidas e os riscos delas decorrentes.279
(atividade negocial, família, sucessões, propriedade). Se fosse esse o critério, então inexistiria
direito privado”.
Assim, independente do grau de intervenção estatal, se o exercício do direito ocorre entre
particulares, ou quando o Estado se relaciona com o particular sem se valer de seu império, o
direito é privado.
277
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução de
Maria Cristina De Cicco. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 9-10, quando expõe: “A
hierarquia das fontes não responde apenas a uma expressão de certeza formal do ordenamento
para resolver os conflitos entre as normas emanadas por diversas fontes; é inspirada, sobretudo,
em uma lógica substancial, isto é, nos valores e na conformidade com a filosofia de vida presente
no modelo constitucional.”
278
TEPEDINO, Gustavo. O Código Civil, os chamados microssistemas e a Constituição: premissas
para uma reforma legislativa. In: ______. (Org.). Problemas de Direito Civil – Constitucional. Rio
de Janeiro: Renovar, 2000, p. 11. "O legislador contemporâneo, instado a compor, de maneira
harmônica, o complexo de fontes normativas, formais e informais, nacionais e supranacionais,
codificadas e extracodificadas, deve valer-se de prescrições narrativas e analíticas, em que
consagra expressamente critérios interpretativos, valores a serem preservados, princípios
fundamentais como enquadramentos axiológicos com o teor normativo e eficácia imediata, de tal
modo que todas as demais regras do sistema, respeitados os diversos patamares hierárquicos,
sejam interpretadas e aplicadas de maneira homogênea e segundo conteúdo objetivamente
definido."
279
TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 7.
95
De fato, a unidade do sistema só pode ser entendida com a imputação da ação
centralizadora à Constituição.280-281 O atual diagnóstico é o de que:
O Código Civil certamente perdeu a centralidade de outrora. O papel
unificador do sistema, tanto nos seus aspectos mais tradicionalmente
civilísticos quanto naqueles de relevância publicística, é desempenhado de
maneira cada vez mais incisiva pelo texto constitucional. Falar de
descodificação relativamente ao Código vigente não implica absolutamente
a perda do fundamento unitário do ordenamento, de modo a propor a sua
fragmentação em diversos microordenamentos e em diversos
282
microssistemas, com ausência de um desenho global.
Nesse
sentido,
é
necessário
reconhecer
os
pressupostos
de
uma
hierarquização normativa e a própria força normativa da Constituição.283 Assim, é
280
281
282
283
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto
Alegre: Fabris, 1991, p. 15-16. Hesse comenta que a Constituição dispõe de força normativa. Faz
uma importante referência a vontade da Constituição, como uma força ativa em orientar a conduta
da sociedade segundo ordens pré-estabelecidas constitucionais. Numa forma de conduzir a
consciência dos responsáveis pela ordem jurídica, não apenas seguindo a vontade do poder, mas
também segundo a vontade de Constituição. Questiona sua tese a partir da existência da relação
entre o poder determinante das forças políticas e sociais e a força determinante advinda do Direito
Constitucional. Inovador, no sentido de perseguir a fundamentação e o alcance dessa
força/vontade constitucional, e diante de algumas respostas buscadas pelo autor, encontra-se
também a fundamentação da própria ciência do Direito Constitucional enquanto uma ciência
normativa do sistema jurídico. Ainda, acrescenta: "Graças à pretensão de eficácia, a Constituição
procura imprimir ordem e conformação à realidade política e social. Determinada pela realidade
social e, ao mesmo tempo, determinante em relação a ela, não se pode definir como fundamental
nem a pura normatividade, nem a simples eficácia das condições sócio-políticas e econômicas
[...]. A Constituição adquire força normativa na medida em que logra realizar essa pretensão de
eficácia. Essa constatação leva a uma outra indagação, concernente às possibilidades e aos
limites de sua realização no contexto amplo de interdependência no qual esta pretensão de
eficácia encontra-se inserida.” Também, importante consultar LASSALE, Ferdinand. A essência da
Constituição. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2001.
TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 13. O
significativo, portanto, é a leitura constitucional que se passa a fazer do Código Civil. "De modo
que, reconhecendo embora a existência dos mencionados universos legislativos setoriais, é de se
buscar a unidade do sistema, deslocando para a tábua axiológica da Constituição da República o
ponto de referência antes localizado no Código Civil."
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução de
Maria Cristina De Cicco. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 6. No mesmo sentido ver
TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 13-14.
“Caso o Código Civil se mostrasse incapaz - até mesmo por sua posição hierárquica - de informar,
com princípios estáveis, as regras contidas nos diversos estatutos, não parece haver dúvida que o
texto constitucional poderia fazê-lo, já que o constituinte, deliberadamente, através de princípios e
normas, interveio nas relações de direito privado, determinando, conseguintemente, os critérios
interpretativos de cada uma das leis especiais. Recupera-se-ia, assim, o universo desfeito,
reunificando-se o sistema”.
TUTIKIAN, Cristiano. Sistema e codificação: o Código Civil e as cláusulas gerais. In: ARONNE,
Ricardo (Org.). Estudos de Direito Civil – Constitucional. v. 1. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2004, p. 20-22. “O conteúdo axiológico da Constituição, propiciado pela normatividade de seus
princípios, conduz a uma interpretação diferenciada do novo Código Civil, livre de postulados
exegéticos e pandectistas, oriundos dos ideais iluministas de igualdade formal e autonomia de
vontade, consagrados pela Revolução Francesa. Substancial relevo é conferido à teoria dos
direitos fundamentais, correlata à teoria material da Constituição. A superioridade hierárquico-
96
impossível falar em direito privado sem antes interpretar suas normas (princípios e
regras) conforme a Constituição.284-285 Essa conformação interpretativa fez com que
fosse “extinguida a idéia de um Direito Civil autônomo em relação ao direito
constitucional”.286-287 Dito de outro modo, o direito privado não pode entrar em
colisão com a Constituição; e também a interpretação que dele se faz deve ser
conforme à Constituição.288 O direito privado funciona, portanto, como complemento
fundamental da Constituição, como garantidor e ordenador de um princípio
constitucional de máximo valor.289 Assim, “el derecho constitucional ofrece al
284
285
286
287
288
289
normativa do Direito Constitucional impede que o Direito Civil seja tido como ramo jurídico
autônomo. Assim, toda a interpretação constitucional, bem como a interpretação da legislação
ordinária conforme a Constituição, leva à concretização dos direitos fundamentais, admitindo-se
sua eficácia nas relações interprivadas, justificada pela escolha axiológica realizada pelo
intérprete na circularidade da hermenêutica espiraliforme. Propugnar-se uma interpretação
centralizadora do Direito Privado no âmbito positivado do Código Civil é negar a real força
normativa da Constituição, fomentando a normatividade dos microssistemas que depõem contra a
unidade axiológica do sistema. A unidade não advém de preceitos legislativos; decorre da própria
ordem instaurada pela Constituição Federal de 1988, razão pela qual não se deve, em um
desvirtuamento interpretativo, interpretar-se a Constituição conforme o Código Civil.”
Sobre o tema, consultar também: BARROSO, Luís Roberto (Org.). A nova interpretação
Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2003; ______. O direito constitucional e a efetividade de
suas normas. 4. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000; SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das
Normas Constitucionais. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de Direitos Fundamentais e princípio da proporcionalidade.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 99. A interpretação conforme a Constituição
diferencia-se da interpretação tradicional, pelo fato de que esta, nas suas várias formas, define o
conteúdo da lei a partir dela própria, sendo que na interpretação conforme, a lei deve ser
interpretada conformemente à Constituição, por meio de um procedimento hermenêutico
escalonado hierarquicamente. Tal percepção insere-se na visão kelseniana de estrutura
gradualista e piramidal da ordem jurídica, uma de cujas consequências é aquela que uma norma
de nível inferior não pode ser interpretada de modo que contrarie a norma de nível superior. O
princípio hermenêutico da interpretação conforme a Constituição, originado e desenvolvido na
Alemanha, significa que uma lei não deve ser declarada nula, sempre que puder ser interpretada
de maneira congruente com a Constituição.
REIS, Jorge Renato dos. A Constitucionalização do Direito Privado e o novo Código Civil. In:
LEAL, Rogério Gesta (Org.). Direitos sociais e políticas públicas: desafios contemporâneos. Santa
Cruz do Sul: EDUNISC, 2003, p. 779.
FINGER, Julio César. Constituição e direito privado: algumas notas sobre a chamada
constitucionalização do direito civil. In: SARLET, Ingo Wolfang. A constituição concretizada:
construindo pontes com o público e o privado. Porto Alegre: livraria do Advogado, 2000, p. 94.
Todo o direito infraconstitucional é direito constitucionalizado, não se podendo ter um direito civil
autônomo em relação ao Direito Constitucional.
GEHLEN, Gabriel Menna Barreto Von. O chamado direito civil constitucional. In: MARTINSCOSTA, Judith (Org.). A reconstrução do direito privado. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais,
2002, p. 185.
HESSE, Konrad. Derecho constitucional y derecho privado. Tradução e introdução de Ignacio
Gutiérrez Gutiérrez. Civitas, 1995, p. 86. De acordo com Hesse: "La libertad privada de Ia persona,
que el derecho civil presupone y para cuya preservación y desarrollo dispone normas y procesos
jurídicos, es requisito indispensable para Ias decisiones responsables y para Ia posibilidad misma
de decidir. Ello funda Ia enorme transcendencia deI derecho privado para el derecho
constitucional. En Ia autodeterrninación y en Ia propia responsabilidad se manifiesta en parte
esencial el tipo de persona deI que parte Ia ley fundamental y deI que depende el orden
constitucional". Em tradução livre, lê-se: "A liberdade privada da pessoa, que o direito civil
pressupõe e para cuja preservação e desenvolvimento dispõe normas e processos jurídicos, é
97
derecho privado directrices e impulsos que son, considerablemente importantes, en
particular, para una evolución adecuada del derecho privado. Corresponde al
derecho constitucional una función de guia”.290 Acrescente-se que “Ia Constitución
no pretende sustituir el ordenamiento jurídico privado vigente, sino antes bien
confirmarlo, en cuanto totalidad y en sus fundamentos decisivos”.291
Mais uma vez, constata-se que a Constituição Federal de 1988292 desprivilegia
o direito de propriedade, concebida no Código Civil de 1916. Ou seja, ruma no
sentido da despatrimonialização dos bens jurídicos, valorizando o conhecimento e a
educação. Isso não denota a supressão do conteúdo patrimonial no direito, mas a
funcionalização do próprio sistema econômico, direcionando-se à produção e
consagrando a dignidade da pessoa humana, bem como o meio ambiente e a
distribuição das riquezas com maior justiça.293
A influência da Constituição no direito privado não revoga o papel deste;
entretanto, limita a atuação do legislador ordinário aos preceitos originados pela
Constituição Federal.
A norma Constitucional torna-se a razão primária justificadora (e todavia
não a única, se for individuada uma normativa ordinária aplicável ao caso)
da relevância jurídica de tais relações, constituindo parte integrante da
normativa na qual elas, de um ponto de vista funcional, se concretizam.
Portanto, a normativa constitucional não deve ser considerada sempre e
somente como mera regra hermenêutica, mas também como norma de
comportamento, idônea a incidir sobre o conteúdo das relações entre
294
situações subjetivas, funcionalizando-as aos novos valores.
290
291
292
293
294
requisito indispensável para as decisões responsáveis e para o a possibilidade mesma de decidir.
Isso funda a enorme transcendência do direito privado para o direito constitucional. Na
autodeterminação e na própria responsabilidade se manifesta em parte essencial o tipo de pessoa
de que parte a lei fundamental e de que depende a ordem constitucional".
HESSE, Konrad. Derecho constitucional y derecho privado. Tradução e introdução de Ignacio
Gutiérrez Gutiérrez. Civitas, 1995, p. 196. Tradução livre: "o direito constitucional oferece ao direito
privado diretrizes e impulsos que são, consideravelmente importantes, em particular, para uma
evolução adequada do direito privado. Corresponde ao direito constitucional uma função de guia".
RIVERA, Julio César. EI derecho privado constitucional. Revista dos Tribunais, n. 725, p. 18, mar.
1996. Em tradução livre: “A Constituição não pretende substituir o ordenamento jurídico privado
vigente, a não ser antes bem confirmá-lo, assim que totalidade e em seus fundamentos decisivos".
No Brasil, o fenômeno da Constitucionalização do Direito Privado ganha proeminência com o
advento da Constituição de 1988, devido à força normativa dessa Carta.
RAMOS, Carmem Lucia Silveira. A constitucionalização do direito privado e a sociedade sem
fronteiras. In: FACHIN, Luiz Edson. Repensando fundamentos do direito civil contemporâneo. Rio
de Janeiro: Renovar, 1998, p. 16.
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução de
Maria Cristina De Cicco. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 12.
98
É preciso ressaltar que, se as Constituições apregoam o princípio da função
social, incumbe ao direito civil dar nova feição ao mesmo, como instrumento de
ação. A função social295 e a boa-fé objetiva instrumentalizam no Código Civil de
2002 o eixo constitucional da solidariedade, um dos escopos basilares da República.
Assim, “a norma constitucional assume, no direito civil, a função de, validando a
norma ordinária aplicável ao caso concreto, modificar, à luz de seus valores e
princípios, os institutos tradicionais”296 .
No direito civil constitucionalizado, cabe ao intérprete reler a legislação civil à
luz da Constituição, de maneira a privilegiar os valores não-patrimoniais, a dignidade
da pessoa humana,297 o desenvolvimento de sua personalidade, os direitos sociais e
a justiça comutativa.298 Nisso consiste o centro da questão. A tutela da dignidade da
pessoa humana envolve não somente os direitos individuais, mas também os
direitos sociais, que reordenam as relações entre o Estado e a sociedade,
estabelecendo uma sociedade mais eqüitativa. Nesse contexto, o magistrado
assume função mais relevante, uma função constitucional, com vistas a dignificar o
homem e erradicar a desigualdade socioeconômica. “A falência da idéia de unidade
295
AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. A Boa-Fé na Relação de Consumo. Revista de Direito do
Consumidor, São Paulo, n. 14, p. 20-32, abr./jun. 1995. Para confirmar esta asserção, basta
pensar na afirmação de Aguiar quando conceitua contrato como função social e ainda ressalta
que o mesmo é visto como um dos fenômenos integrantes da ordem econômica, visualizado
como um fator submetido aos princípios constitucionais de justiça social, solidariedade, livre
concorrência, liberdade de iniciativa, etc., que disponibilizam os fundamentos para uma ingerência
no campo da autonomia contratual.
296
TEPEDINO, Maria Celina Bodin de Moraes. A caminho de um direito civil constitucional. Revista
de Direito Civil. São Paulo, n. 65, p. 29, jul./set. 1993.
297
FINGER, Julio César. Constituição e direito privado: algumas notas sobre a chamada
constitucionalização do direito civil. In: SARLET, Ingo Wolfang. A constituição concretizada:
construindo pontes com o público e o privado. Porto Alegre: livraria do Advogado, 2000, p. 94-95.
“Logo, a Constituição é lei fundamental portadora de valores materiais. Essa ordem de valores, no
momento constituinte, é proclamada de maneira formal, expressando-se positivamente nos
princípios constitucionais, parecendo desnecessário tecer considerações acerca da importância
de tais diretivas como decisão fundamental de uma determinada sociedade. Os princípios
constitucionais, entre eles o da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, inciso IIl), que é sempre
citado como um princípio-matriz de todos os direitos fundamentais, colocam a pessoa em um
patamar diferenciado do que se encontrava no Estado Liberal. O direito civil, de modo especial,
ao expressar tal ordem de valores, tinha por norte a regulamentação da vida privada unicamente
sob o ponto de vista do patrimônio do indivíduo. Os princípios constitucionais, em vez de apregoar
tal conformação, têm por meta orientar a ordem jurídica, para a realização de valores da pessoa
humana como titular de interesses existenciais, para além de meramente patrimoniais. O direito
civil, de um direito-proprietário, passa a ser visto como uma regulação de interesses do homem
que convive em sociedade, que deve ter um lugar apto a propiciar seu desenvolvimento com
dignidade. Fala-se, portanto, em uma despatrimonialização do direito civil, como conseqüência da
sua constitucionalização.”
298
TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 22
99
e totalidade do sistema codificado também serve para justificar a busca de um novo
paradigma do contrato, baseando, nestas premissas, sua mola propulsora”.299
Evidentemente, faz-se necessário que a elaboração do direito seja alicerçada
em princípios, reconhecendo que o núcleo de gravidade do ordenamento vai se
arrastando do sistema codificado para uma casuística judicial pautada pelos
princípios. O conjunto de regras e princípios constitui a feição normativa do
fenômeno jurídico. Com isso, mostra-se superada a teoria tradicional do direito civil,
chegando-se ao ponto de propagar-se a existência de um direito da pósmodernidade.300
Por isso é que se substitui o modelo de sistema fechado, legado dos códigos
oitocentistas, por um modelo de sistema aberto, com um novo Código Civil
abundante em cláusulas gerais.301 Tais cláusulas são dotadas de flexibilidade, sendo
fluentemente adequadas às novas ocorrências do dia-a-dia, aceitando a necessária
mobilidade do sistema jurídico. Trata-se de um novo Código informado pelos
princípios constitucionais fundamentais, preocupado com a dignidade da pessoa
humana.
Realmente, avança-se ao embate da socialização,302 publicização303-304-305,
despatrimonialização e constitucionalização do direito privado306, com insígnia à
299
300
301
302
NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva
civil-constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 87.
Sobre o tema, verificar MARQUES, Claudia Lima. Contratos de time-sharing e a proteção dos
consumidores: crítica ao direito civil em tempos pós-modernos. Revista de Direito do Consumidor.
São Paulo, n. 22, p. 64-86, abr./jun. 1997.
MARTINS-COSTA, Judith. O Direito Privado como um Sistema em Construção: as Cláusulas
Gerais no Projeto do Código Civil Brasileiro. Revista Informação Legislativa, n. 139, Brasília,
jul./set 1998. A autora é enfática ao esclarecer que é apto na modernidade, o modelo de
codificação adotado, destacando a abertura sistemática patrocinada pelas cláusulas gerais: "Por
isso a necessidade de um Código que, estruturado como um sistema aberto, alie aos modelos
cerrados que necessariamente há de conter as janelas representadas pelas cláusulas gerais".
GIORGIANNI, Michele. O direito privado e as atuais fronteiras. Tradução de Maria Cristina de
Cicco. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 747, p. 49, jan. 1998. Sobre esse tema, Giorgianni
sublinha: “Que deste modo, o Direito Privado tenha perdido o caráter de tutela exclusiva do
indivíduo para ‘socializar-se’, como se costuma dizer, não se poderia colocar em dúvida. Não se
deveria duvidar, por outro lado, seja dito incidentalmente, que a atividade econômica privada já
transcende as fronteiras das relações entre indivíduos, e penetrou no centro do corpo social
através de dilatadas dimensões da empresa econômica e através da possibilidade de satisfazer
um número e uma variedade de necessidades antes nem mesmo imagináveis. Esta ‘socialização’
já impregnou intimamente todos os institutos do Direito Privado”.
100
primazia da tutela da dignidade da pessoa humana.307-308 Posto isso, pode-se
afirmar, inclusive, que a dignidade da pessoa humana é interpretada como uma
cláusula que ajuíza uma nova visão do ser humano.
O caminho a percorrer é retomada e decolagem, uma viagem pedagógica
pelo saber jurídico informado pelas premissas críticas e pelos novos perfis
303
304
305
306
307
308
A constitucionalização e a publicização do direito privado, embora se confundam, são institutos
distintos. Na publicização do direito privado, é enfraquecido o espaço da autonomia privada para
a garantia da tutela jurídica da parte hipossuficiente, através da intervenção estatal no legislativo.
Assim, a publicização deve ser entendida como o processo de intervenção legislativa
infraconstitucional, enquanto que a constitucionalização submete o direito aos fundamentos e à
validade constitucionalmente estabelecidos. Portanto, conclui-se que o direito privado,
especialmente o direito civil, foi publicizado e constitucionalizado, com a intervenção estatal no
seu domínio, bem como com a elevação ao plano constitucional dos seus estatutos fundamentais.
Segundo LORENZETTI, Ricardo Luís. Fundamentos do direito privado. Tradução de Vera Maria
Jacob de Fradera. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 221, é necessário uma perspectiva
pública para resolver os problemas privados. A opinião descrita confirma a concepção de que o
termo perspectiva pública parece explicar com exatidão como se deve compreender o fenômeno
da "publicização do direito privado": não há uma invasão de um campo no outro, mas uma nova
perspectiva a incidir sobre os institutos tradicionais do direito privado.
TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 21. A
propósito, é sempre bom recordar a lição de Tepedino, quando afirma que a intervenção do
Estado nas relações civis não significa um agigantamento do direito público em detrimento do
direito civil, mas ao inverso, possibilita que sejam revigorados os institutos do direito civil à luz da
Constituição. BITTAR, Carlos Alberto. O direito civil na Constituição de 1988. 2. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1991, p. 123. “A publicização de diferentes áreas, antes reservadas à
esfera privada, reduz, pois, o campo do referido princípio assim é o que se multiplicam as
proibições à contratação, estende-se o campo de nulidades, fixam-se elementos para a
constituição do contrato. É o que se chama de publicização do contrato.”
Este fenômeno acontece pela inclusão, no plano da norma constitucional, de situações
anteriormente limitadas à lei ordinária, como ocorria com o contrato, família, propriedade e
empresa. Tais institutos não abandonaram suas características tradicionais, pois ainda mantém
um conteúdo de supremacia privatista, porém, estão, de forma gradativa, sendo atraídos pela
norma constitucional. Não é questão de negar o caráter preponderantemente privado das
titularidades, como é no contrato, propriedade, família e empresas. Todas se conservam como
institutos de direito privado, mas quando são levadas à norma constitucional, são influenciadas
pelo direito público. Sua publicização qualifica-as como tendo uma função social, porque o
Estado, frente ao enfraquecimento do liberalismo, torna-se um Estado de social-democracia.
SILVA, Virgílio Afonso da. A Constitucionalização do Direito. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 27.
Silva, neste sentido, observa que a constitucionalização e uma conseqüente consideração dos
efeitos dos direitos fundamentais nas relações privadas, não ameaçam a autonomia do direito
privado e, também, não ameaçam uma das idéias centrais desse ramo do direito, a autonomia
privada. Isso porque, sempre que possível, essa produção de efeitos, para usar uma expressão
consagrada, se dá por intermédio do material normativo do próprio direito privado, o que garante
a sua autonomia. O que muda, se confrontar com a autonomia que o direito privado gozava
especialmente até o século XIX, é o fato de que as normas desse ramo do direito devem ser
interpretadas com fundamento nos princípios de direitos fundamentais.
O reconhecimento da dignidade humana é um dos princípios mais antigos e, talvez o mais latente
da civilização, desde seus primórdios.
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 277-279. Verificam-se,
historicamente, três concepções da dignidade da pessoa humana: a) individualismo: cada homem
cuidando dos seus interesses protege e realiza, indiretamente, os interesses coletivos. Seu ponto
de partida é o indivíduo; b) transpersonalismo: Rejeita-se a pessoa humana como valor supremo.
Ou seja, a dignidade da pessoa humana realiza-se no coletivo; c) personalismo: nega a
concepção individualista ou a coletivista. Rejeitando seja a existência da harmonia espontânea
entre indivíduo e sociedade, seja a subordinação daquele aos interesses da coletividade.
101
do Direito Civil. Conjugando a virada coperniciana que recola papéis e
funções do Código e da Constituição, reafirma a primazia da pessoa
concreta, tomada em suas necessidades e aspirações, sobre a dimensão
patrimonial, e sustenta, por meio da repersonalização, a inegável
309
oportunidade do debate permanente entre os espaços público e privado.
Ao
proceder
dessa
maneira,
fundamenta-se
na
funcionalização
das
titularidades para repensar paradigmas contemporâneos e inserir questões que
abarcam a unitariedade da codificação.310
Convém anotar que a constitucionalização do direito civil ocorre das seguintes
formas: a) Regras jusprivatistas na Constituição: é a inserção de normas-regras de
direito civil no texto constitucional. Ex: regras atinentes à família, casamento,
adoção, divórcio, etc.; b) Garantias dos institutos: a inclusão de institutos de direito
civil na Constituição, confere-lhes imunidade contra o legislador ordinário e até
mesmo, contra o poder de reforma constitucional; c) Programa legislativo: as normas
progressistas consagradas na Constituição funcionam como programa e metas para
o legislador; d) A interpretação orientada pela Constituição: o intérprete deve
inclinar-se pela interpretação que melhor otimize os princípios constitucionais.311
Oportunamente, Mattietto alude que não se deve recear a constitucionalização
do direito civil, sendo que a constitucionalização expressa não somente uma
exigência da unitariedade do sistema e do respeito à hierarquia das fontes, mas
igualmente a via exeqüível para impedir o risco da degeneração do Estado
democrático de direito.312
Na forma como tem sido predominantemente concebida, a constitucionalização
do direito civil313 é o processo de ascensão ao plano constitucional dos princípios
309
310
311
312
313
FACHIN, Luiz Edson. Transformações do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. In: RAMOS,
Carmem Lucia Silveira. Diálogos sobre Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 43.
FACHIN, Luiz Edson. Transformações do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. In: RAMOS,
Carmem Lucia Silveira. Diálogos sobre Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 43.
GEHLEN, Gabriel Menna Barreto Von. O chamado direito civil constitucional. In: MARTINSCOSTA, Judith (Org.). A reconstrução do direito privado. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais,
2002, p. 186-188.
MATTIETTO, Leonardo. O direito civil constitucional e a nova teoria dos contratos. In: TEPEDINO,
Gustavo (Coord.). Problemas de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 169.
SILVA, Luis Renato Ferreira da. A função social do contrato no novo Código Civil e sua conexão
com a solidariedade social. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). O novo Código Civil e a
Constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 127-128. A idéia de
constitucionalização do direito civil, modernamente, pode ser focalizada tanto em um aspecto
102
basilares do direito civil,314 constituindo a fase mais proeminente de transformação
pela qual passou o direito civil. Isso porque o “Direito torna possível, com os seus
instrumentos, a transformação social”315, bem como “a obrigação - não mais livre
escolha - imposta aos juristas de levar em consideração a prioridade hierárquica das
normas constitucionais, sempre que se deva resolver um problema concreto”. Além
disso, da concepção unitária de ordenamento jurídico deriva que “a solução de cada
controvérsia não mais pode ser encontrada levando em conta simplesmente o artigo
de lei que parece contê-Ia e resolvê-Ia, mas, antes, à luz do inteiro ordenamento
jurídico, e, em particular, de seus princípios fundamentais, considerados como
opções de base que o caracterizam”.316
Torna-se indispensável a análise da superação do sistema do direito privado
clássico, bem como o papel essencial da Constituição para o direito civil, como será
feito a seguir, uma vez que estas breves contextualizações levam à idéia de
constitucionalização do direito civil.
2.1 O direito civil-constitucional
Para a construção dos novos paradigmas do Direito Civil, é essencial a
aproximação da Constituição ao Direito Civil,317 com a pretensão de alcançar uma
314
315
316
317
formal, como material. Formalmente, as Constituições passaram a conter disposições que se
encontravam nos Códigos Civis. No aspecto material, significa a fixação da Constituição como a
fonte dos valores que informam as regras de direito civil. A constitucionalização do direito privado
(e mais especificamente do direito civil) representou este deslocamento dos valores que se
encontravam plasmados no Código Civil para a Constituição. Expressivo, portanto, é a leitura
constitucional que se passa a fazer do Código Civil.
LÔBO, Paulo Luiz Neto. Constitucionalização do direito civil. Revista de Informação Legislativa,
Brasília, n. 141, p. 100, jan./mar. 1999.
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução de
Maria Cristina De Cicco. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 3.
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução de
Maria Cristina De Cicco. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 5.
LÔBO, Paulo Luiz Neto. Constitucionalização do direito civil. Revista de Informação Legislativa,
Brasília, n. 141, p. 100-109, jan./mar. 1999. É nestes termos que Lôbo novamente faz referência a
este fenômeno. Alude que os estudos mais recentes dos civilistas têm demonstrado a falácia
dessa visão estática, atemporal e desideologisada do direito civil. Não se trata, apenas, de
estabelecer a necessária interlocução entre os variados saberes jurídicos, com ênfase entre o
direito privado e o direito público (interdisciplinaridade interna). Objetiva-se não somente investigar
a inserção do direito civil na Constituição jurídico-positiva, mas os fundamentos de sua validade
jurídica.
103
leitura atualizada não somente do Código Civil, mas de todo o ordenamento civil.
Apenas em 1988, com a inovação da Constituição Federal,318 há formalmente um
rompimento teórico com o modelo privado clássico.
Como se sabe, a doutrina civil-constitucional319 defende a adoção do princípio
da dignidade da pessoa humana na esfera das relações interprivadas, demandando
uma tutela especial aos interesses não-patrimoniais em colisão com os patrimoniais.
Há uma proposta de tornar o sistema civil mais entoado aos princípios
fundamentais, em específico às necessidades da pessoa; redefinir o fundamento e a
expansão dos institutos jurídicos civis num ensaio de revitalização de cada norma à
luz de um novo juízo de valor. Essa nova concepção “volta-se para a aplicação
direta e efetiva dos valores e princípios da Constituição, não apenas na relação
Estado-indivíduo, mas também na relação interindividual, situada no âmbito dos
318
319
NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva
civil-constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 88-89. Cumpre notar que: “O pensamento do
paradigma constitucional parece tomar grande impulso na Itália, quando, no final da década de
sessenta, busca-se uma releitura do Código Civil e das leis especiais, à luz da Constituição
italiana republicana. Aquela experiência motivou a atual reflexão sobre o nosso Direito Civil, em
função de serem tempos, politicamente, muito próximos. Época italiana na qual se buscava uma
reforma profunda do Código Civil, através da Lei 557/c, de 10.10.1963, em uma frustrada tentativa
para, de uma vez por todas, romper com o sistema fascista que o originara e que não mais dava
respostas democráticas ao regime republicano da atual Constituição. Guardadas as devidas
proporções dos eventos, considera-se muito valoroso o exemplo italiano, pois que, vendo-se
minado, aquele intérprete não deixou de reconhecer a força hierárquica da Constituição, para dela
extrair uma releitura do Direito Civil”.
MORAES, Maria Celina Bodin de. O direito civil constitucional: tendências. In: CAMARGO,
Margarida Maria Lacombe (Org.). 1988-1998: uma década de Constituição. Rio de Janeiro:
Renovar, 1999, p. 124. Na visão de Moraes, fica claro a expressão direito civil constitucional:
“Pode-se falar em ‘Direito Civil Constitucional' em pelo menos dois significados: sob um ponto de
vista formal, é direito civil constitucional toda disposição de conteúdo historicamente civilístico
contemplada pelo Texto Maior; isto é, todas as disposições relativas ao clássico tripé do direito
civil - pessoa, família e patrimônio-, porque presentes na Constituição, compõem o direito civil
constitucional. O outro significado atribuído à expressão 'Direito Civil Constitucional' é o que aqui
nos interessa: de acordo com este segundo significado, é direito civil constitucional todo o direito
civil e não apenas aquele que recebe expressa indumentária constitucional, desde que se
imprima às disposições de natureza civil uma ótica de análise através da qual se pressupõe a
incidência direta, e imediata, das regras e dos princípios constitucionais sobre todas as relações
interprivadas”. AMARAL NETO, Francisco dos Santos. Direito Civil: introdução. 2. ed. Rio de
janeiro: Renovar, 1998, p. 146. Em sentido antagônico, já se afirmou que "Na verdade, o direito
civil constitucional é materialmente direito civil contido na Constituição e só formalmente direito
constitucional".
104
modelos próprios do direito privado”320, tendo como fundamentação os direitos
fundamentais, em torno dos quais transita todo o ordenamento jurídico.321
Isso também conduz a considerações sobre os reais contornos da Constituição
Federal de 1988. Ela traz parâmetros para o controle da atividade econômica
privada. Apreciando-se seu caráter hierárquico no ordenamento jurídico, a
Constituição deve ser utilizada, valendo-se da opção do constituinte pela
interferência nos institutos de direito civil, propriedade, família, atividade empresarial,
contratos,322 relações de consumo.323
A construção desse novo paradigma do Direito Civil e, em especial, do
contrato, no Brasil, passa pelo mesmo reconhecimento que se confere às
normas eminentemente civis, e que alcançaram dignidade constitucional
com a Carta de 1988. Ela trata, notadamente, das regras postas em favor
da pessoa e da sua existência (dignidade, liberdade, igualdade,
inviolabilidade de direito à vida, à segurança, à propriedade etc.),
assumindo a pessoa o centro das atenções do ordenamento jurídico. O
contrato, sob aquele enfoque, âmbito maior do ranço clássico do
patrimonialismo, e seu princípio nuclear (liberdade contratual) não saem
ilesos, pois o princípio da liberdade e da livre-iniciativa jamais podem ser
colocados à margem da dignidade da pessoa humana e da solidariedade
social, visto que a liberdade é encarada enquanto princípio fundamental da
ordem econômica, perseguidora do desenvolvimento da personalidade
324
humana.
A interpretação do direito civil, segundo os princípios e valores constitucionais,
ratifica o caráter hierárquico325 superior da Constituição em relação aos demais
320
TEPEDINO, Maria Celina Bodin de Moraes. A caminho de um direito civil constitucional. Revista
de Direito Civil. São Paulo, n. 65, p. 28, jul./set.1993.
321
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 320.
322
NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva
civil-constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 101-102. Na lição de Nalin, o contrato “é o
instrumento precípuo da circulação de riquezas, não que atualmente, se proponha só a este fim,
mas que nesta conjuntura econômica, pressupõe operadores de mercado. No Brasil de hoje, na
sua ainda e infeliz condição de país emergente, não se apresenta a contratar a grande massa
populacional, pois muitos são excluídos do mercado relevante, do sistema de crédito, e das mais
singelas operações contratuais. No Brasil, todos são provenientes de uma família natural ou civil,
ou, ainda, compõem um núcleo familiar. Mas nem todos podem contratar, por falta de um
patrimônio mínimo disposto ao cidadão em geral, que lhe proporcione crédito e suporte
econômico para contrair dívidas, enfim, para ser operador do direito contratual. A realidade
verificada em países de economia mais avançada, ditos de Primeiro Mundo, não se aplica ao
Brasil no que tange ao mercado relevante, pois, para consumir, antes necessário ser o sujeito de
direito, pretenso contratante, economicamente viável”.
323
TEPEDINO, Maria Celina Bodin de Moraes. A caminho de um direito civil constitucional. Revista
de Direito Civil. São Paulo, n. 65, p. 21, jul./set.1993.
324
NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva
civil-constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 89.
325
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1984, p. 310.
105
dispositivos do ordenamento jurídico. Dessa maneira, as garantias fundamentais
devem ser diretamente aplicáveis nas relações privadas. Porquanto incomodam as
circunstâncias em que os indivíduos percebem-se em posição de subordinação
(fática/jurídica), ao realizarem um negócio.
Esta argumentação sairia ainda fortalecida pelo fato de as normas
constitucionais terem sua eficácia perfilhada, devido à determinação de que “as
normas
definidoras
imediata”.326-327
dos
Desse
direitos
modo,
e
garantias
dá-se
maior
fundamentais
apoio
à
“força
têm
aplicação
normativa
da
Constituição”328, permitindo ao juiz “considerar insubsistente as normas ordinárias
contrárias ao Texto Maior”.329
Nada obstante, a clássica visão do direito civil, de conservar o domínio do
tratamento das questões privadas, tem lesado as tentativas de aplicação direta e
indireta330 aos seus institutos de valores e princípios que têm fonte na Constituição.
Porquanto, “a norma constitucional é parte integrante da ordem normativa, não
podendo restringir-se à mera diretriz hermenêutica ou regra limitadora da legislação
ordinária”331; a normativa principal332, por sua vez, passa a ser a justificação direta
de cada norma ordinária que a ela deve adaptar-se. Importante frisar que as normas
aqui referidas são constitutivas de valores,
326
CF/88, art. 5°, § 1°.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 204.
“Em suma, no Estado liberal do século XIX a Constituição disciplinava somente o poder estatal e
os direitos individuais (direitos civis e direitos políticos), ao passo que hoje o Estado social do
século XX regula uma esfera muito mais ampla: o poder estatal, a sociedade e o indivíduo.”
328
Consultar HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira
Mendes. Porto Alegre: Fabris, 1991.
329
TEPEDINO, Maria Celina Bodin de Moraes. A caminho de um direito civil constitucional. Revista
de Direito Civil. São Paulo, n. 65, p. 29, jul./set.1993.
330
A distinção entre aplicação direta e indireta da Constituição não é fácil, já que leva em
consideração a existência ou não de uma normativa ordinária específica ou não. Mas o que
merece destaque é sua eficácia frente às relações sociais que se apresentam.
331
CORTIANO JUNIOR, Eroulths. Alguns apontamentos sobre os chamados direitos da
personalidade. In: FACHIN, Luiz Edson. Repensando fundamentos do direito civil contemporâneo.
Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 38.
332
TEPEDINO, Maria Celina Bodin de Moraes. A caminho de um direito civil constitucional. Revista
de Direito Civil. São Paulo, n. 65, p. 27, jul./set.1993. “As normas constitucionais, com efeito, são
dotadas de supremacia (decorrente da rigidez constitucional), elegem-se como as principais
normas do sistema, não podem ser contraditas por qualquer regra jurídica, sendo precípuo seu
papel na teoria das fontes do direito civil.” PINTO, Carlos Alberto da Mota. Teoria geral do direito
civil. 3. ed. atual. Coimbra: Coimbra, 1999, p. 72. Destaca Pinto que "Problemas de direito civil,
podem encontrar a sua solução numa norma que não é de direito civil, mas de direito
constitucional".
327
106
[...] as normas não referem realidades a valores, antes, na sua mais íntima
substância, são elas mesmas constitutivas de valores. É certo que
comunicam os seus juízos de valor através de proposições analíticas usando conceitos com valor designativo que, como tais, descrevem
realidades. Mas importa antes do mais ter presente o valor constitutivo, e
não meramente referencial, da norma, a fim de bem compreender que os
seus conceitos não valem por si, antes, têm um caráter instrumental
333
relativamente à actuação do seu escopo, ao qual se subordinam.
Nesse sentido, pensa-se que o Estado deve intervir em todas as relações do
ordenamento, sobretudo nas relações econômicas privadas, de modo inclusivo pelos
filtros das denominadas cláusulas gerais334 do direito civil. Reconhece-se, assim, a
necessidade da aplicação da Constituição às relações privadas. Pois que, “é na
Constituição que se localiza o arcabouço fundamental de amparo ao homem e aos
seus valores mais fundamentais”.335 É, portanto, necessário encontrar na ordem
constitucional critérios de interpretação para motivar as relações privadas,336
fazendo-se necessária uma “releitura do Código Civil e das leis especiais civis à luz
da Constituição Federal”,337 com a cogente identificação de um direito civil mais
compassivo aos problemas e às exigências da sociedade.
Em face do exposto, pode-se afirmar que o fenômeno da “constitucionalização
do direito civil” expressa uma exigência para a verdadeira unidade do sistema, com o
respeito à hierarquia das fontes. Assim sendo, existe o imperativo de uma releitura
do direito civil, tendo como fundamento a ótica apresentada na Constituição.
333
334
335
336
337
ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. Tradução de J. Baptista Machado. 3. ed.
Lisboa: Gulbenkian, 1964, p. LIII.
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p.
341. "As cláusulas gerais têm a função de permitir a abertura e mobilidade do sistema jurídico.
Esta mobilidade deve ser entendida em dupla perspectiva, como mobilidade externa, isto é, a que
'abre' o sistema jurídico para a inserção de elementos extrajurídicos, viabilizando a 'adequação
valorativa', e como mobilidade interna, vale dizer, a que promove o retorno, dialeticamente
considerado, para outras disposições interiores ao sistema".
NALIN, Paulo. Ética e boa-fé no adimplemento contratual. In: FACHIN, Luiz Edson (Coord.).
Repensando fundamentos do direito civil brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar,
1998, p. 181.
Destaca-se a reconstrução de critérios interpretativos proposta por BARROSO, Luís Roberto.
Interpretação e aplicação da Constituição. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 135, para quem "A
Constituição, em si, em sua dimensão interna, constitui um sistema. Essa idéia de unidade interna
da Lei Fundamental cunha um princípio especifico, derivado da interpretação sistemática, que é o
princípio da unidade da Constituição. A Constituição interpreta-se como um todo harmônico, onde
nenhum dispositivo deve ser considerado isoladamente. Mesmo as regras que regem situações
de específicas, particulares, devem ser interpretadas de forma que não se choquem com o plano
geral da Carta. Além dessa unidade interna, a Constituição é responsável pela unidade externa
do sistema”.
TEPEDINO, Maria Celina Bodin de Moraes. A caminho de um direito civil constitucional. Revista
de Direito Civil. São Paulo, n. 65, p. 27, jul./set.1993.
107
No entanto, é sabido que o “direito civil-constitucional”338-339, isto é, o direito
civil transformado pela norma constitucional, tem como base a superação patrimonial
pelos valores existenciais da pessoa humana, que tem primazia no domínio do
direito civil, pois são privilegiados pela Constituição.340 Em outras palavras, nota-se
uma prevalência do sujeito face ao patrimônio.341-342
A patrimonialização das relações civis, que persiste nos códigos, é
incompatível com os valores da dignidade da pessoa humana, adotada
pelas constituições modernas, inclusive pela brasileira (artigo 1°, III). A
repersonalização reencontra a trajetória da longa história da emancipação
humana, no sentido de repor a pessoa humana como centro do direito civil,
338
339
340
341
342
O processo histórico já consagrou a expressão "Direito Civil-Constitucional" no Brasil, não se
encontrando cientificidade na indagação meramente etimológica do tema. A expressão revela a
qualificação constitucional da indagação civil que se faz de algum instituto jurídico, assim como da
sua localização normativa.
FINGER, Julio César. Constituição e direito privado: algumas notas sobre a chamada
constitucionalização do direito civil. In: SARLET, Ingo Wolfang. A constituição concretizada:
construindo pontes com o público e o privado. Porto Alegre: livraria do Advogado, 2000, p. 95.
Sob esse prisma, Finger demonstra que o direito civil constitucionalizado parece estar em busca
de um fundamento ético, que não exclua o homem e seus interesses não-patrimoniais, na
regulação patrimonial que sempre pretendeu ser. Por outro lado, a condição da Constituição
como novo centro geométrico-sistemático incorpora em sua tessitura, elementos mais aptos a
ensejar a produção e aplicação de normas jurídicas próximas a mutável realidade. A natural
evolução do direito parece conspirar contra a tendência centralista e totalizante da codificação.
TEPEDINO, Maria Celina Bodin de Moraes. A caminho de um direito civil constitucional. Revista
de Direito Civil. São Paulo, n. 65, p. 28-29, jul./set.1993.
NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva
civil-constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 248-249. Neste mesmo sentido, cabe menção
as palavras citadas pelo autor: “Quando se faz referência à despatrimonizalização do Direito Civil
e conseqüente despatrimonialização do contrato, tem-se em vista a renovação dos propósitos do
contrato contemporâneo, dentre o que se destaca atenção maior dispensada ao sujeito do que à
produção e ao consumo, sem que, com isso, se sustente a superação do conteúdo econômico do
negócio, mesmo que, minimamente, retratado. E nem poderia ser diferente, pois não se está a
tratar do contrato à luz de uma economia planificada, mas sim, em livre mercado, não obstante
funcionalizado. A despatrimonialização guarda relação com a mudança que vai ocorrendo no
sistema entre personalismo (superação do individualismo) e patrimonialismo (superação da
patrimonialidade voltada a si mesma, primeiramente do ‘produtismo’ e, mais atualmente, do
consumismo) [..]. Há, na perspectiva ora abordada, verdadeira superação, ou, no mínimo,
renovação da lógica jusprivatística, da qual não escapam dois de seus pilares fundamentais,
quais sejam: a propriedade e a autonomia negocial. O processo de modificação do
patrimonialismo ao pessoalismo ocasiona a ruptura da lógica individualista do ter, substituída, ou,
ao menos, mitigada, por aquela outra, do ser. A relação obrigacional patrimonial acaba por ser
ferramenta de desenvolvimento de um papel, direto ou indireto, de atuação do valor constitucional
da dignidade humana. Despatrimonilização, dignidade da figura do contratante e função social do
contrato encontram o seu fio condutor na figura do homem e no seu livre desenvolvimento,
refundando-se o Direito Civil em torno do respeito aos valores da pessoa. A autonomia contratual,
antes de ser instrumento de circulação de riquezas, no atual estádio de desenvolvimento
constitucional, presta-se ao livre desenvolvimento da pessoa do contratante, sem que dela se
possa excluir um quase inevitável conteúdo patrimonial mínimo”.
PERLINGIERI, Pietro. "Depatrimonializzazione" e diritto civile. In: Scuole, tendeze e
metodi: problemi del dirittol civile. Napoli: Edizione Scientifiche Italiane, 1988, p. 177. Perlingieri
discorre que a despatrimonizalização do direito civil não denota a extinção do conteúdo
patrimonial no direito, mas a operacionalização do sistema econômico, com diversificação na sua
valoração qualitativa.
108
passando o patrimônio
343
necessário.
ao
papel
de
coadjuvante,
nem
sempre
Conseqüentemente, a conexão entre a eficácia normativa dos princípios e a
abertura do sistema jurídico por meio da aplicação dos princípios constitucionais é o
que fundamenta metodologicamente a reconstrução do direito civil, em particular do
direito dos contratos, através dos princípios constitucionais.344 Di Majo lembra que
seria possível colocar em dúvida que a interpretação do contrato, assim como sua
conclusão, possa ser objeto de normas jurídicas. A hipótese levantada pelo autor é
de que:
[...] se il contratto è un fatto giuridico e questo fatto si identifica con l’accordo
della volontà di due parti diretto a dare vita ad effetti giuridici, non ha senso
porre delle regole per interpretare Ia volontà delle parti. La volontà delle parti
può essere oggetto di accertamento, come, del resto, tutti i fatti giuridici.
Per tale accertamento potrebbero richiamarsi regole di carattere logico, non
giuridico. Si tratra infatti di ricostruire una realtà storica, non giuridica. È
codesta sostanzialmente l’obiezione che si è sempre rivolta contro l’utilità e
persino Ia legittimità delIe c.d. regole ermeneutiche dirette appunto a
345
disciplinare l’interpretazione dei contratti
.
No entanto, o mesmo autor ressalta que esta é uma objeção que se originou a
partir da identificação do negócio e/ou do contrato com a simples vontade das
partes, ou seja, no âmbito “das concepções voluntárias do contrato”. Nessa
343
344
345
LÔBO, Paulo Luiz Neto. Constitucionalização do direito civil. Revista de Informação Legislativa,
Brasília, n. 141, p. 103, jan./mar. 1999. Também ver CARVALHO, Orlando de. A teoria geral da
relação jurídica; seu sentido e limites. 2. ed. Coimbra: Centelha, 1981, p. 90-92. Carvalho,
também julga oportuna a repersonalização de todo o direito civil, ao salientar: “restaurar a
primazia da pessoa é, assim, o dever número um de uma teoria do direito que se apresente como
teoria do Direito Civil”; e, "é esta valorização do poder jurisgênico do homem comum, é esta
centralização do regime em torno do homem e dos seus imediatos interesses que faz do Direito
Civil o foyer da pessoa, do cidadão puro e simples".
TEPEDINO, Gustavo. Editorial: Dez Anos de Proteção ao Consumidor. Revista Trimestral de
Direito Civil, Rio de Janeiro, v. R, p. III, jan./mar. 2001. “Os princípios constitucionais da
solidariedade social (art. 3°, I, CF), do valor soc ial da livre iniciativa (art. 1°, IV, CF), da digni dade
da pessoa humana (art. 1°, III, CF) e da igualdade substancial (ali. 3°, III, CF) foram trazidos ao
cotidiano das relações jurídicas privadas, ganhando densidade normativa e informando a nova
teoria contratual.”
DI MAJO, Adolfo. L’interpretazione del contrato. In: BESSONE, Mario (Org.). Istituzioni do Diritto
Privato. 11. ed. Torino: G. Giappichelli Editore, 2004, p. 622. Em tradução livre: “[...] se o contrato
é um fato jurídico e este fato se identifica com o acordo da vontade de duas partes diretamente
ligadas a dar vida a efeitos jurídicos, não tem sentido colocar regras para interpretar a vontade
das partes. A vontade das partes pode ser objeto de verificação como, do restante, todos os
fatos jurídicos. Por tal acordo poderiam chamar a atenção regras de caráter lógico, não jurídico.
Trata-se de fato de reconstruir uma realidade histórica, não jurídica. É essa fundamentalmente a
objeção que se revolta contra a utilidade e até a legitimidade das assim ditas regras
hermenêuticas dirigidas precisamente a disciplinar a interpretação dos contratos”.
109
perspectiva, o contrato é regido essencialmente pela vontade das partes. Quando é
o contrato uma manifestação e/ou declaração destinada a conciliar as partes,
manifestação e/ou declaração dotada de sentido jurídico, o juízo pode mudar.
Entretanto, o significado da declaração não pode ser um procedimento meramente
empírico, mas um procedimento regulado por normas e/ou critérios determinados
por elas. Para Di Majo, “il contratto è una dichiarazione dotata di senso e/o significato
giuridici”346. É a individualização de tal senso que consentirá ao intérprete ligar
àquela declaração efeitos jurídicos correspondentes. Nessa individualização estão
implicadas regras legais de interpretação e não pertencentes à lógica comum. A
interpretação é uma operação hermenêutica guiada por critérios jurídicos, cujo
resultado deve ser a atribuição de um sentido e/ou significado ao contrato,
conforme a ‘comum intenção das partes’. No entanto, o autor reitera que essa
‘comum’ intenção, não necessariamente, deve identificar-se com aquela ‘efetiva’.
La tendenza naturalmente è per questa identificazione. Ma, ove ciò non sia
possibile perché dubbi permangono, si procederà per l’attribuzione di senso
utilizzando altri criteri. Non per questo tuttavia si è fuori deIla funzione che
caratterizza le norme sulla interpretazione per coIlocarsi sul terreno della
347
integrazione.
Cabe entrever que a normativa civil conformada pela Constituição348-349 é
constituída de regras e princípios normativos constitucionais coesos no ordenamento
jurídico.
346
Predomina
a
visão
sistemática
do
Direito
e,
principalmente,
a
DI MAJO, Adolfo. L’interpretazione del contrato. In: BESSONE, Mario (Org.). Istituzioni do Diritto
Privato. 11. ed. Torino: G. Giappichelli Editore, 2004, p. 622. Tradução livre: “[...] o contrato é uma
declaração dotada de senso e/ou significado jurídico”.
347
DI MAJO, Adolfo. L’interpretazione del contrato. In: BESSONE, Mario (Org.). Istituzioni do Diritto
Privato. 11. ed. Torino: G. Giappichelli Editore, 2004, p. 626. Na tradução livre: “A tendência
naturalmente é pela identificação. Mas quando isso não for possível porque dúvidas permanecem,
proceder-se-á a atribuição do sentido utilizando outros critérios. Não por isso, todavia, estar-se-á
fora da função que caracteriza as normas sobre a interpretação para colocar-se no campo da
integração”.
348
NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva
civil-constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 91. Enfim, pode-se concluir, com Nalin,
segundo o qual: “A Constituição não se limita aos seus aspectos positivos, dela fazendo parte
uma normativa mais ampla, composta pelos valores e princípios abstratos e concretos que
reúne”.
349
GOMES, Rogério Zuel. Teoria contratual contemporânea: função social do contrato e boa-fé. Rio
de Janeiro: Forense, 2004, p. 93. Ao escrever sobre o tema constitucional, Gomes declara: “Por
meio de princípios, a Constituição acaba proporcionando a fragmentação de conceitos jurídicos,
conferindo uma maior flexibilidade para, diante do fato real, fazer prevalecer os valores contidos
em seus dispositivos, que significam muito mais que princípios gerais de direito, ao contrário do
que querem alguns civilistas que negam a sua aplicabilidade a casos concretos, por inexistência
de lei infraconstitucional prevista especificamente para esta situação”.
110
institucionalização do contrato350, que tem seu culminante fundamento na CF.351
Além disso, a normativa civil consagrada na Constituição não tem o desígnio de
esgotar as matérias relacionadas às relações civis. Trata-se de um paradigma que
se explica constitucionalmente. “A Constituição é, em relação ao direito civil, não
uma estranha ou invasora, mas o próprio motor de reflexão, a partir do qual orbitam
as demais fontes normativas, inclusive o Código Civil, que há muito perdeu a
posição central que tinha no direito privado.”352 Ela, na condição de lex superior, é
que unifica em torno de si todo o complexo de normas que compõem o ordenamento
jurídico, expressando uma ordem material de valores.353 Impõe-se então a relação
entre a Constituição e o direito civil, como direito comum, abandonando-se de vez a
tradição do pensamento jurídico.
A Constituição contém, na verdade, uma ‘força geradora’ do direito privado.
As suas normas não são meras directivas programáticas de caráter
indicativo, as normas vinculativas que devem ser acatadas pelo legislador,
pelo juiz e demais órgãos estaduais. O legislador deve emitir normas de
Direto Civil não contrárias à Constituição; o juiz e os órgãos administrativos
354
não devem aplicar normas inconstitucionais.
As influências da Constituição em segmentos do Direito, mesmo em ramos
diversos do clássico Direito Privado, fazem concluir que a Constituição não está tão
longínqua da vida em sociedade. A Constituição acaba ocupando espaço legislativo
e social que deveria ser alocado ao Código Civil - a tutela do “homem ser”. Como a
sociedade brasileira atualmente percebe a acuidade dos valores existenciais do
homem, algum texto de lei é chamado a tutelar esses “novos direitos” e, na ausência
de uma lei infraconstitucional que os abrigue, passa a existir a Constituição. A
vigência de um novo Código Civil não extrai da Carta Constitucional toda a sua
350
351
352
353
354
A unidade e o formalismo do direito contratual clássico são inconciliáveis com a concepção social
do contrato, em que certas características das partes contratantes, antes desconsideradas,
ganham relevância jurídica. O contrato, instrumento de circulação dos interesses do homem, quer
sejam eles materiais ou imateriais, não fica livre do ímpeto constitucional.
A esse propósito, conferir FLÓREZ-VALDÉS, Joaquín Arce y. El derecho civil constitucional.
Madrid: Civitas, 1986, p. 174.
MATTIETTO, Leonardo. O direito civil constitucional e a nova teoria dos contratos. In: TEPEDINO,
Gustavo (Coord.). Problemas de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 182.
FINGER, Julio César. Constituição e direito privado: algumas notas sobre a chamada
constitucionalização do direito civil. In: SARLET, Ingo Wolfang. A constituição concretizada:
construindo pontes com o público e o privado. Porto Alegre: livraria do Advogado, 2000, p. 94.
PINTO, Carlos Alberto da Mota. Teoria geral do direito civil. 3. ed. atual. Coimbra: Coimbra, 1999,
p. 82. A respeito dessa relação consultar BEVILAQUA, Clóvis. A Constituição e o Código Civil. In:
BONFIM, Benedito Calheiros (Org.). Escritos esparsos de Clóvis Bevilaqua. Rio de Janeiro:
Destaque, 1995.
111
potencialidade; ao oposto, ela serve de elo de comunicação entre os cidadãos e um
novo texto civil.355
É evidente, portanto, que o paradigma proposto da constitucionalização do
Direito Civil, descompromissado com a leitura da interpretação da normalística civil,
direta ou indireta, tem como proeminência o reconhecimento da eficácia da norma
constitucional, independentemente da existência de normas ordinárias, contundente
nas relações interprivadas.356
Resta claro que, além do papel hermenêutico, as normas constitucionais têm
real caráter de direito substancial.357 A Constituição358 é dotada de elementos
355
356
357
358
NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva
civil-constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 103.
NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva
civil-constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 89.
ALEXY, Roberto. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de estudios políticos y
constitucionales, 1993, p. 505. Esse autor assim expõe a sua posição: “El hecho de que en una
Constitución estén recíprocamente vinculados elementos procedimentales y materiales tiene
grandes consecuencias para el sistema jurídico en su totalidad. Significa que, a más de los
contenidos del sistema jurídico que desde el punto de vista de la Constitución son meramente
posibles, existen unos contenidos que son constitucionalmente necesarios y otros que son
imposibles.
El hecho de que las normas iusfundamentales determinen los contenidos
constitucionalmente necesarios e imposibles, constituye el núcleo de su fundamentalidad formal.
A la fundamentalidad formal se suma la fundamentalidad material. Los derechos fundamentales y
las normas iusfundamentales son materialmente fundamentales porque con ellas se toman
decisiones sobre la estructura normativa básica del Estado y de la sociedad”. Na tradução livre,
lê-se: “O fato de que em uma Constituição estejam reciprocamente vinculados elementos
procedimentais e materiais tem grandes conseqüências para o sistema jurídico em sua totalidade.
Significa que, ademais dos conteúdos do sistema Jurídico que desde o ponto de vista da
Constituição são meramente possíveis, existem conteúdos que são constitucionalmente
necessários e outros que são impossíveis. O fato de que as normas jusfundamentais determinem
os conteúdos constitucionalmente necessários e impossíveis constitui o núcleo de sua
fundamentalidade formal. À fundamentalidade formal se soma a fundamentalidade material. Os
direitos fundamentais e as normas jusfundamentais são materialmente fundamentais porque com
elas se tomam decisões sobre a estrutura normativa básica do Estado e da sociedade".
HÄBERLE, Peter. Teoría de la Constitución como ciencia de la Cultura. Traducción e introducción
de Emílio Mikunda. Madrid: Tecnos, 2000, p. 34. A Constituição, segundo Häberle, não significa
única e exclusivamente um ordenamento jurídico para juristas, mas serve de elo condutor para
todo cidadão, mesmo leigo em relação ao que a ciência jurídica se refere. A Constituição não se
limita só a ser um conjunto de textos jurídicos ou um mero compêndio de regras normativas, mas
é a expressão de lutas e conquistas de um determinado momento histórico, é um meio de autorepresentação própria de todo um povo, especialmente de seu legado cultural e fundamento de
suas esperanças e desejos. Interessante o pensamento de MATTEUCCI, Nicola. Organización
del Poder y Libertad. Madrid: Editora Trotta, 1998, p. 23. “[…] con ‘constitucionalismo’ se indica no
tanto un período histórico, en el que tendría su explicación, ni una corriente de ideas políticas y
sociales, en la que encontrase su propia unidad, sino un ‘tipo ideal’ para reflexionar sobre la
realidad histórica, o una categoría analítica para sacar a la luz y mostrar aspectos particulares de
la experiencia política.” Na tradução livre: “[…] com ‘constitucionalismo’ se indica nem tanto um
período histórico, no que teria sua explicação, nenhuma corrente de idéias políticas e sociais, em
que encontrasse sua própria unidade, a não ser um ‘tipo ideal’ para refletir sobre a realidade
112
normativos substanciais, capazes de regular circunstâncias jurídicas presentes na
vida de relação, não apenas de formas e procedimentos prestáveis pela ação
estatal.359
Nessa linha, é possível dizer que a releitura da legislação ordinária à luz das
normas fundamentais, compreendida, por um lado, como interpretação360-361 a partir
dos princípios constitucionais e, por outro, como justificação da normativa ordinária,
359
360
361
histórica, ou uma categoria analítica para tirar a luz e mostrar aspectos particulares da
experiência política."
CITTADINO, Gisele. Judicialização da política, constitucionalismo democrático e separação de
poderes. In: VIANNA, Luiz Werneck (Org.). A democracia e os três poderes no Brasil. Rio de
Janeiro: IUPERJ/FAPERJ, 2002, p. 26. Pela primeira vez na história brasileira uma Constituição
definiu os objetivos fundamentais do Estado e, ao fazê-lo, orientou a compreensão e interpretação
do ordenamento constitucional pelo critério do sistema de direitos fundamentais. Em outras
palavras: a dignidade humana é vista como o valor essencial que dá unidade de sentido à
Constituição Federal. Espera-se, que o sistema de direitos constitucionais, visto como expressão
de uma ordem de valores, oriente a interpretação do ordenamento constitucional em seu
conjunto.
A interpretação é tema de destaque no direito contemporâneo, dado a destacada função que a
norma constitucional ocupa na ciência jurídica. A Constituição sempre pleiteia dos seus
intérpretes resposta imediata à evolução dos institutos democráticos nos Estados, devendo
sempre procurar dar sentido às normas constitucionais com o fim de efetivar os valores
consagrados na CF. No momento em que a efetividade da Constituição é fundamental para o
desenvolvimento dos valores, a interpretação constitucional é basilar para propiciar segurança
jurídica. Pode-se afirmar que a Constituição distingue-se no ordenamento jurídico não só em
razão de sua circunstância topográfica, mas por ter normas qualitativamente distintas das normas
jurídicas infraconstitucionais. É uma norma qualitativamente distinta das demais, por aliar um
sistema de valores essenciais que se constituem na ordem de convivência política e informar todo
o ordenamento jurídico.
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional – A sociedade aberta dos intérpretes da
Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procediental” da Constituição.
Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997. Häberle,
na sua obra, embasado na existência de uma sociedade democrática, aberta e pluralista, defende
teoria baseada na premissa de que todo aquele que vive a constituição está legitimado a
interpretá-la. É difícil de imaginar uma interpretação da constituição sem a participação do
cidadão ativo e sem as potências públicas; a legitimação plúrima é expressão do direito
fundamental à cidadania. Para Häberle, a Constituição seria um processo público, tendo como
origem um texto constitucional escrito que se desenvolve no tempo, por meio da interpretação, da
qual participam todos os conformadores da realidade constitucional. Faz uma síntese entre a
Constituição e a realidade constitucional, enfatizando o papel fundamental dos sujeitos que
acomodam esta realidade. Analisa as implicações de uma revisão da metodologia jurídica
tradicional (sociedade fechada) e trabalha uma metodologia centrada no modelo aberto e
pluralista de sociedade, tendo como ponto basilar o problema dos participantes do processo de
interpretação constitucional. Salienta que a interpretação tem sido tradicionalmente considerada
como uma atividade dirigida, de modo consciente e intencional, à compreensão e explicitação do
sentido de um texto. Evidentemente, esta concepção é precária à apreciação hermenêutica
realista, tornando-se imprescindível um conceito mais amplo de interpretação que reconheça a
relevância do espaço público na sociedade aberta. Por isso, ele sugere a tese de que não é
aceitável um número limitado de intérpretes da Constituição, na medida em que todos os órgãos
estatais e potências públicas, assim como todos os grupos e cidadãos, encontram-se
submergidos neste processo de interpretação, que deverá ser tão mais aberto quanto mais
pluralista for uma sociedade. Assim, ao processo hermenêutico constitucional estão vinculados
todos os integrantes da sociedade pluralista. Há uma constitucionalização dos intérpretes da
Constituição.
113
sob o contorno funcional, com embasamento na normativa constitucional, incide em
uma metodologia favorável para perseguir constantemente.362
A partir destes breves parágrafos, evidencia-se que há um processo evolutivo
do direito civil, ou seja, a entorse do centro valorativo da liberdade do indivíduo em
rumo à dignidade da pessoa humana e à solidariedade social. Os valores
individualistas deixam de ser único fundamento axiológico. Desse modo, as
transformações do direito civil são alterações de caráter essencial refletidas em todo
o sistema de direito privado. Tal mudança é notadamente manifesta no direito
contratual. Pois, a vontade contratual deixou de ser o núcleo do contrato, cedendo
lugar a outros valores e institutos jurídicos, fundados na Carta. A vontade surge
como mera função de impulso, quando não completamente inexistente, no âmbito
das relações de adesão e do contrato obrigatório, ambas conseqüências da
massificação negocial.363
O contrato, sob aquele enfoque, não sai ileso, porque os princípios da
liberdade e da livre-iniciativa não podem ser assentados à margem da dignidade da
pessoa humana e da solidariedade social, visto que a liberdade é um princípio vital
da ordem econômica, perseguidora do desenvolvimento da personalidade
humana.364
Conclui-se, portanto, que “a renovação do direito civil brasileiro tem no
chamado ‘direito civil constitucional’, o seu mais firme ponto de apoio”.365
Infelizmente, com muita assiduidade, ignoram-se as potencialidades do direito civil
constitucional, que surgiu para ser executado e não para permanecer aprisionado às
páginas dos livros.366 Este novo direito civil, influenciado pelos princípios e valores
362
MATTIETTO, Leonardo. O direito civil constitucional e a nova teoria dos contratos. In: TEPEDINO,
Gustavo (Coord.). Problemas de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 169.
363
NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva
civil-constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 93.
364
NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva
civil-constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 89.
365
MATTIETTO, Leonardo. O direito civil constitucional e a nova teoria dos contratos. In: TEPEDINO,
Gustavo (Coord.). Problemas de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 163.
366
MATHIEU, Bertrand. Droit costitutionel et droit civil: "de vieilles outres pour un vin nouveau". Revue
trimestrielle de droit civil, Paris, n. 1, p. 59-66, jan./mar. 1994. Mathieu utiliza a expressão ''velhos
odres para um vinho novo" (de vieilles outres pour un vin nouveau) para designar a descoberta de
um direito constitucional aplicável ao direito civil, ou de um direito civil com valor constitucional.
114
constitucionais, está ajustado com a dignidade da pessoa humana, corroborando a
superação da antiga dicotomia entre o direito público e o direito privado.
2.2 A superação do sistema do direito privado clássico – Dicotomia: Direito
Público x Direito Privado
A distinção entre direito público e direito privado367-368-369 constitui uma noção
histórica,370-371 tradicionalmente predominante em todo o direito civil codificado372. O
367
368
369
370
Salienta a crucial relação entre direito constitucional e direito civil, que, na sua opinião, são os
dois pilares da ordem jurídica. A expressão que usa, a partir daí, é "direito constitucional civil".
FACCHINI NETO, Eugênio. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito
privado. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 17-18. "A novidade que ocorre no direito privado,
nesse período histórico, é que o direito se torna estatal burguês. Estatal, porque pela primeira vez
na história do direito o legislador se ocupa de forma sistemática e abrangente do direito privado,
já que nos períodos históricos precedentes os governantes sempre se preocuparam em
disciplinar apenas as relações jurídicas que hoje seriam enquadradas no direito público (como a
tributação, o direito penal, a organização administrativa), e quando estabeleciam regras sobre
direito privado, o faziam de forma pontual e não sistemática. [...] E a partir da ruptura simbolizada
pela Revolução Francesa, que marca o ingresso na era contemporânea, o direito privado torna-se
também burguês, no sentido de que o direito privado passa a espelhar a ideologia , os anseios e
as necessidades da classe socioeconômica que havia conquistado o poder em praticamente
todos os Estados ocidentais”
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de Luís Carlos Borges. 2. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 203-204. Para Kelsen, os direitos público e privado estão
centrados na distinção de tratamento entre as relações jurídicas em que ambas as partes são
iguais, e nas relações jurídicas em que uma das partes está em posição de superioridade. "[...]
refere-se à maneira como se realiza a relação jurídica, ao método por meio do qual se cria o
dever individual ao qual corresponde o direito do sujeito que é considerado igual ou superior ao
sujeito do dever. A distinção entre direito privado e público que a teoria em discussão tem em
mente diz respeito à criação da norma secundária que determina, para um caso concreto, a
conduta cujo oposto é o delito”. Em outra obra, intitulada Teoria Pura do Direito. Tradução de
João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1984, p. 378-379, o mesmo autor
escreve que: “[...] o direito privado representa uma relação entre sujeitos em posição de igualdade
- sujeitos que têm juridicamente o mesmo valor - e o Direito público uma relação entre um sujeito
supra-ordenado e um sujeito subordinado - entre dois sujeitos, portanto, dos quais um tem, em
face do outro, um valor jurídico superior. A relação típica de Direito público é a que existe entre o
Estado e o súbdito”.
BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. Brasília: Universidade de
Brasília, 1984, p. 83. Bobbio diferencia público e privado fundamentado nas relações que, se
forem de subordinação, estarão encobertos pelo direito público, e se de coordenação, estarão
protegidas pelo direito privado. Ou seja, o direito privado dá proteção aos interesses particulares,
e o direito público tutela os interesses coletivos.
FACCHINI NETO, Eugênio. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito
privado. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 16-17. Em determinados momentos históricos,
prevaleceu o direito privado; em outros, o direito público e, ainda, em outros, prevaleceu o direito
como sistema único, unindo o direito público e privado. No período mais intenso da era medieval,
houve certa absorção do público pelo privado, derivado da primazia da propriedade territorial
115
direito privado insere-se no domínio dos direitos naturais e inatos dos indivíduos; ao
passo que o direito público é aquele emanado pelo Estado para a tutela de
interesses coletivos. Essa visão vem desde os romanos.373 Portanto, existia a esfera
371
372
373
sobre os demais institutos econômico-político-jurídicos. No final da Idade Média, já se observa
uma interpenetração entre o público e o privado, prevalecendo um em determinadas situações, e
outro diante de outras. Por volta do século XVIII, passa-se a realçar a diferenciação entre a esfera
das relações políticas, entre sociedade civil e Estado. É nesse contexto histórico que se revela a
mais intensa divisão dicotômica entre público e o privado e suas derivações. O Direito Público
passa a ser visto como o ramo do Direito que disciplina o Estado, sua estruturação e
funcionamento, ao passo que o Direito Privado é compreendido como o ramo do direito que
disciplina a Sociedade civil, as relações intersubjetivas e o mundo econômico (sob o signo da
liberdade). Após a Revolução Francesa, o Direito Privado passa a ser o centro do sistema
jurídico, e a proteção aos direitos individuais, com a proclamação da Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão em 1789, passa a ser o marco do Estado Liberal. RAMOS, Carmem Lucia
Silveira. A constitucionalização do direito privado e a sociedade sem fronteiras. In: FACHIN, Luiz
Edson. Repensando fundamentos do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998,
p. 4. Oportunamente, Ramos esclarece sobre o liberalismo jurídico (século XIX), onde o mesmo
consagrou a completude e unicidade do direito, que passou a ter como fonte única o Estado, com
seu poder ideologicamente emanado do povo, a neutralidade das normas com relação a seu
conteúdo, e a concepção do homem como sujeito abstrato, como os produtos fundamentais do
Estado de Direito. E assim, durante décadas, o direito público e privado diferenciaram-se em
razão da destinação de suas regras. O direito privado, sempre tutelando as relações entre
particulares; e o direito público, a organização estatal e as relações entre Estado e cidadãos
privados.
SILVA, Clóvis Veríssimo do Couto e. O direito civil brasileiro em perspectiva histórica e visão de
futuro. Revista de Informação Legislativa, Brasília, n. 97, p. 163, jan./mar. 1988. O sistema
clássico do direito civil está em crise, ou seja, não mais se ajusta com a realidade atual. No
entanto, a crise do sistema privado clássico suscita, antes de mais nada, questões concernentes
à sua historicidade. É, para esse norte, que aponta a refinada lição de Silva: “Para conhecer a
situação atual de um sistema jurídico, ainda que em suas grandes linhas, é necessário ter uma
idéia de seu desenvolvimento histórico, das influências que lhe marcaram as soluções no curso
dos tempos. De outro modo, ter-se-á a justaposição de soluções jurídicas, sem que se defina a
sua estrutura íntima. Convém, assim, examinar a posição do direito de determinado país em face
dos Códigos mais influentes e, nesse caso, não haverá dúvida que a questão é a de saber em
que medida o direito privado brasileiro, especialmente o Código Civil Brasileiro, sofreu influência
do Código Napoleônico, ou do Código Civil Germânico, de 1900, levando-se em conta o fato de
que ele foi publicado em 1916”.
MORAES, Maria Celina Bodin de. O direito civil constitucional: tendências. In: CAMARGO,
Margarida Maria Lacombe (Org.). 1988-1998: uma década de Constituição. Rio de Janeiro:
Renovar, 1999, p. 121. O tema mereceu a atenção de Moraes: "A unidade do sistema do Direito
civil não pode mais ser dada pelo Código Civil. Diante da proliferação dos chamados
microssistemas, fez-se necessário reconhecer que o Código não mais se localiza no centro das
relações de Direito Privado. Este pólo foi deslocado, a partir da consciência da unidade do
sistema e do respeito à hierarquia das fontes normativas, para a Constituição, base única dos
princípios fundamentais do ordenamento jurídico".
CRETELLA JÚNIOR, J. Curso de Direito Romano: o direito romano e o direito civil. 9. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1995, p. 25-26. “Preocuparam-se também os romanos em dividir o direito,
mostrando, na classificação dicotômica de Ulpiano, reproduzida por Justiniano, que o estudo
deste compreende dois ramos principais: o público e o privado, sendo o primeiro o que tem por
finalidade a organização da república romana e o segundo o que diz respeito ao interesse dos
particulares [...]. O critério romano da distinção entre os dois ramos do direito - público e privado é o critério finalístico ou teleológico. É o fim (e não a origem e as sanções, ou o objeto, como
fazemos hoje) que serve de marco separador entre os dois campos: a ordem pública, a
organização da república romana, do Estado romano – eis o campo do direito público, regulado
pelas formas do jus publicum; a utilidade, o interesse particular – eis o âmbito do jus privatum.
Dentro do espírito do direito romano e colocando-nos no ângulo objetivo, é possível chegar à
116
do Estado contraposta à da sociedade civil. Houve uma crescente complexidade do
direito e de suas instituições. Isso denota que essa distinção precisa ser revista374375 376
-
, pois:
seguinte definição: direito é o conjunto das regras de justiça ou de utilidade social relativas à
organização dos poderes públicos, à família e às relações econômicas dos homens.”
374
ÁVILA, Humberto. Repensando o "princípio da supremacia do interesse público sobre o particular."
Revista Trimestral de Direito Público, v. 24. São Paulo: Malheiros, 1992. O autor defende a idéia
de que o direito público e direito privado, aparentemente, nada têm em comum; suas dinâmicas,
pragmáticas e dogmáticas, são distintas, não se tocam, não interagem, não se relacionam, salvo
no estado de uma pseudo-supremacia do público sobre o privado.
375
ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. 10. ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2004, p. 59-70. Também Arendt, em sua obra clássica A condição humana,
explica as origens da dicotomia Direito Público/Direito Privado, vinculando-a à estrutura sócioeconômica da civilização romana. A esfera pública é conceituada no seguinte aspecto: “O termo
<<público>> denota dois fenômenos intimamente correlatos mas não perfeitamente idênticos.
Significa, em primeiro lugar, que tudo o que vem a público pode ser visto e ouvido por todos e tem
a maior divulgação possível. Para nós, a aparência – aquilo – que é visto e ouvido pelos outros e
por nós mesmos – constitui a realidade. Em comparação com a realidade que decorre do fato de
que algo é visto e escutado, até mesmo as maiores forças da vida íntima – as paixões do
coração, os pensamentos da mente, os deleites dos sentidos – vivem uma espécie de existência
incerta e obscura, a não ser que, e até que, sejam transformadas, desprivatizadas e
desindividualizadas, por assim dizer, de modo a se tornarem adequadas à aparição pública”. E
continua a referida autora: “Em segundo lugar, o termo <<público>> significa o próprio mundo, na
medida em que é comum a todos nós e diferente do lugar que nos cabe dentro dele. Este mundo,
contudo, não é idêntico à terra ou à natureza como espaço limitado para o movimento dos
homens e condição geral da vida orgânica. Antes, tem a ver com o artefato humano, com o
produto de mãos humanas, com os negócios realizados entre os que, juntos, habitam o mundo
feito pelo homem. Conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas interposto
entre os que nele habitam em comum, como uma mesa se interpõe entre os que se assentam ao
seu redor; pois, como todo intermediário, o mundo ao mesmo tempo separa e estabelece uma
relação entre os homens”. Com relação à esfera privada, Arendt traz os seguintes ensinamentos:
“É em relação a esta múltipla importância da esfera pública que o termo <<privado>>, em sua
acepção original de <<privação>>, tem significado. Para o indivíduo, viver uma vida inteiramente
privada significa, acima de tudo, ser destituído de coisas essenciais à vida verdadeiramente
humana: ser privado da realidade que advém do fato de ser visto e ouvido por outros, privado de
uma relação <<objetiva>> com eles decorrente do fato de ligar-se e separar-se deles mediante
um mundo comum de coisas, e privado da possibilidade de realizar algo mais permanente que a
própria vida. A privação da privatidade reside na ausência de outros; para estes, o homem
privado não se dá a conhecer, e portanto é como se não existisse. O que quer que ele faça
permanece sem importância ou conseqüência para os outros, e o que tem importância para ele é
desprovido de interesse para os outros [...]. Parece ser da natureza da relação entre as esferas
pública e privada que o estágio final do desaparecimento da esfera pública seja acompanhado
pela ameaça de igual liquidação da esfera privada. Nem é por acaso que toda a discussão veio a
transformar-se num argumento quanto à desejabilidade ou indesejabilidade da propriedade
privada. Pois a palavra <<privada>> em conexão com a propriedade, mesmo em termos do
pensamento político dos antigos, perde imediatamente o seu caráter privativo e grande parte de
sua oposição à esfera pública em geral; aparentemente, a propriedade possui certas qualificações
que, embora situadas na esfera privada, sempre foram tidas como absolutamente importantes
para o corpo político”.
376
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. 4. ed. São Paulo. Atlas, 2003,
p. 133 et seq. Ferraz Júnior ao se referir à dicotomia trazida pelos romanos, qual seja, esfera
privada e esfera pública, esclarece que a primeira compreendia o terreno das necessidades e
envolvia atividade do homem voltada para a sobrevivência. Junto com ela o cidadão exercia uma
outra atividade, a pública, chamada ação que consistia na convivência com outros homens, na
discussão de temas importantes, troca de experiências e adoção de estratégias comuns. Essa
atividade era exercida na polis ou cidade, de onde surgiu a expressão animal político.
117
A divisão dicotômica em direito público e direito privado, de remotas
origens romanas, se desfigura ante a trepidação do século, em que o
interesse individual, o social e o estatal se entrelaçam de tal forma que nem
377
sempre é fácil estabelecer suas fronteiras e as suas prioridades.
A divisão entre esses dois ramos era bem clara, tanto que Ludwig observa
que tem sido classicamente considerada como uma grande dicotomia.378-379 De
acordo com essa concepção, as esferas do público e do privado condicionam-se
e delimitam-se reciprocamente, não dando lugar a uma terceira esfera, isto é,
uma vai até onde começa a outra.
O direito privado e o direito público são filhos do mesmo berço e buscam o
mesmo fim, não isoladamente, mas paralelamente, afluindo sucessivamente no
trabalho para a obra comum.380 O direito forma “uma unidade conceitual no plano
filosófico, uma unidade orgânica no plano científico, uma unidade teleológica no
377
378
379
380
MEIRA, Silvio Augusto de Bastos. O direito vivo. Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 1984, p.
285.
LUDWIG, Marcos de Campos. Direito público e direito privado: a superação da dicotomia. ln:
MARTINS-COSTA, Judith (Org.). A reconstrução do Direito Privado. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002, p. 102.
MARTINS-COSTA, Judith. Mercado e solidariedade social entre cosmos e táxis: a boa-fé nas
relações de consumo. In: MARTINS-COSTA, Judith (Org.). A reconstrução do Direito Privado.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 623-624. “A divisão dicotômica entre direito público e
direito privado apresentou-se como necessidade na construção do Estado liberal oitocentista. O
Estado Democrático de Direito, assinala Tarso Genro, fundou-se na separação entre legalidade e
ética social, o que foi importante para permitir o seu processo de afirmação histórica no século
XIX, mas resultou no positivismo legalista. Fundou-se, por igual, na separação entre Estado e
sociedade, na base da qual estava a convicção de que deveria o estado não tanto dirigir a
sociedade, mas exercer sobre ela o poder de império de um ius iurisdictionis aplainador,
dicotomizando inclusive as ordens ou formas de regulação jurídica contidas no seu interior: para
um grupo de relações, o direito público, para outro, o direito privado. E essa mesma dicotomia
apresentou-se como conseqüência (e por vezes como causa) de outras trabalhadas dicotomias:
Estado e sociedade civil, política e economia, Direito e Economia, lei e contrato, relações (sociais)
de verticalidade e relações (sociais) de horizontalidade, Constituição e Código Civil, normas de
organização, normas de conduta, interesse público e interesse privado. Hoje, como se sabe, os
dados da equação dicotômica foram alterados. Nas democracias contemporâneas, o Estado não
é instância alheia à sociedade, está sujeito à dinâmica dos movimentos sociais,
responsabilizando-se pelas condições da vida coletiva. Mudada a compreensão do papel do
Estado e a sua articulação com a sociedade civil, a Constituição passou a ter, desde a segunda
metade do século XX, fundamentalmente modificado o seu modelo. De mero conjunto de normas
de organização da estrutura política do Estado, passa a receber, positivamente as declarações
dos direitos humanos, acresce-lhes outros, direitos sociais e direitos difusos, renomeia-as sob o
título de direitos fundamentais, soma-Ihes garantias, também ditas fundamentais, traz para o seu
corpus matérias de direito privado e arrola valores e objetivos e deveres, imputando a sua
implementação tanto ao Estado quanto à sociedade. Mais do que tudo, a Constituição passa a
colimar fins de ordem política, econômica, social a implementar políticas, ‘normas-objetivo’, fins
que vinculam o Estado e a comunidade.”.
MEIRA, Silvio Augusto de Bastos. O direito vivo. Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 1984, p.
285.
118
plano social”.381 Mesmo se didaticamente tratados em separado, como é notório, não
há como denegar que o direito público e o direito privado se complementam.382 Tal
abordagem denota que a distinção entre direito privado e público está sob tensão,
pois hoje em dia “torna-se difícil individuar um interesse particular, que seja
completamente autônomo, independente, isolado do interesse dito público”.383 Os
interesses individual, social e estatal moldam-se de tal contorno que nem sempre é
possível instituir suas prioridades e limites. A divisão do direito não pode continuar
aportada aos clássicos conceitos, mas transforma-se em distinção “quantitativa”:
Técnicas e institutos nascidos no campo do direito privado tradicional são
utilizados naquele do direito público e vice-versa, de maneira que a
distinção, neste contexto, não é mais qualitativa, mas quantitativa. Existem
institutos em que é predominante o interesse dos indivíduos, mas é,
também, sempre presente o interesse dito da coletividade e público; e
institutos em que, ao contrário, prevalece, em termos quantitativos, o
interesse da coletividade, que é sempre funcionalizado, na sua íntima
essência, à realização de interesses individuais e existenciais dos
384 -385
cidadãos.
381
382
383
384
385
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998,
p. 11. Embora aponte a dificuldade da distinção, não está entre os que a negam.
SALDANHA, Nelson. O jardim e a praça: o privado e o público na vida social e histórica. São
Paulo: Edusp, 1993, p. 119-120. É a posição defendida por Saldanha: "A liberdade pode ser
disciplina, a autoridade pode ser o diálogo, o poder pode ser justiça; o público e o privado se
complementam. Deste modo, é correto pretender que no jardim exista algo de praça, e que a
praça tenha algo de jardim".
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução de
Maria Cristina De Cicco. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 53. Prossegue o autor: “As
dificuldades de traçar linhas de fronteira entre direito público e privado, aumentam, também, por
causa da cada vez mais incisiva presença que assume a elaboração dos interesses coletivos
como categoria intermediária (tome-se, como exemplo, o interesse sindical ou das
comunidades)”. TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar,
2004p, p. 19-20. No mesmo sentido, Tepedino qualifica a summa divisio do direito em público e
privado como um "preconceito a ser abandonado", considerando que “A interpenetração do direito
público e do direito privado caracteriza a sociedade contemporânea, significando uma alteração
profunda nas relações entre o cidadão e o Estado. O dirigismo contratual antes aludido, bem
como as instâncias de controle social instituídas em uma sociedade cada vez mais participativa,
alteram o comportamento do Estado em relação ao cidadão, redefinindo os espaços do público e
do privado, a tudo isso devendo se acrescentar a natureza híbrida dos novos temas e institutos
vindos a lume com a sociedade tecnológica. Daí a inevitável alteração dos confins entre o direito
público e o direito privado, de tal sorte que a distinção deixa de ser qualitativa e passa a ser
meramente quantitativa, nem sempre se podendo definir qual exatamente é o território do direito
público e qual o território do direito privado. Em outras palavras, pode-se provavelmente
determinar os campos do direito público ou do direito privado pela prevalência do interesse
público ou do interesse privado, não já pela existência de intervenção pública nas atividades de
direito privado ou pela exclusão da participação do cidadão nas esferas da administração
pública”.
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução de
Maria Cristina De Cicco. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 54.
PERLINGIERI, Pietro. Istituzioni di Diritto Civile. 3. ed. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2005,
p. 24-25. “Il diritto, inteso come materia di studio, è frazionato in una pluralità di settori (diritto
privato, costituzionale, penale, processuale, ecc.). Questa frantumazione ha una mera finalità
didattica e non si ripercuote sull’unitarietà deIl’ordinamento. In realtà il diritto non va studiato per
119
Nesse contexto, não compete ver o direito privado e, principalmente, o direito
civil como antítese do direito público, como lugar em que os particulares encontramse
protegidos
das
interferências
do
Estado.386
A
atividade
do
Estado,
contemporaneamente, deve ser pautada pela ação do valor constitucional do
respeito à dignidade da pessoa humana (art. 1°, inc . III da CF/88).
386
settori ma per problemi, nella consapevolezza che esistono princípi fondamentali del complessivo
sistema. Non sorprenda quindi Ia trattazione di talune delle successive questioni sotto il nome di
‘princípi’. [...] In sintesi: sono di diritto privato le regole e i princípi - reIativi alla disciplina dei
comportamenti individuali - riconducibili aI principio di eguaglianza; sono di diritto pubblico le
norme che istituiscono una differenza tra soggetti comuni (i “privati”) ed altri soggetti, definiti enti,
investiti di autorità (individuabili perché qualificati “pubblici”). Occorre sempre individuare Ia
1
ragione e Ia giustificazione costituzionale della disparità. Tutti sono eguali davanti alla legge (3
cost.); Ia legge non ha autorità superiore rispetto alla persona, ma ha autorità se serve Ia persona
[...]. Pertanto I’etichetta didattica tradizionale ‘diritto privato’ appare inadeguata e va sostituita con
‘diritto civile’, inteso come il diritto in condizioni di eguaglianza, il diritto dei cives titolari di diritti nei
confronti non soltanto degli altri cittadini ma anche dello Stato e del mercato”. Tradução livre: “O
direito, entendido como matéria de estudos, e fracionado em uma pluralidade de setores (direito
privado, constitucional, penal, processual etc...). Essa fragmentação tem uma mera finalidade
didática e não repercute sobre a unicidade da ordem. Em realidade, o direito não é estudado por
setores, mas por problemas, no conhecimento existem princípios fundamentais do complexo
sistema. Não surpreenda, portanto, o tratado de algumas das sucessivas questões sob o nome de
‘princípios’. [...] Em síntese: são de direito privado as regras e os princípios – relativos à disciplina
dos comportamentos individuais que reconduzem ao princípio da igualdade; são de direito público
as normas que instituem uma diferença entre sujeitos comuns (os “privados”) e outros sujeitos,
definidos entes, investidos de autoridade (individuáveis porque qualificados “públicos”). É
necessário sempre individuar a razão e a justificação constitucional da desigualdade. Todos são
1
iguais perante a lei (art. 3 cons.); a lei não tem autoridade superior sobre a pessoa, mas tem
autoridade se serve para a pessoa [...]. Portanto, a forma didática tradicional ‘direito privado’
parece inadequada e é substituída por ‘direito civil’, compreendido como o direito em condições
de igualdade, o direito dos cíveis titulares de direitos nos confrontos não somente dos outros
cidadãos, mas também do Estado e do mercado.”
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução de
Maria Cristina De Cicco. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 54-55. A rigor, porém, como
observa Perlingieri: “Existem pontos de confluência tão precisos entre o privado e o público que
seria mais correto falar de Direito Civil do que de Direito Privado. Não é somente uma mudança de
etiqueta. O Direito Civil não se apresenta em antítese ao Direito Público, mas é apenas um ramo
que se justifica por razões didáticas e sistemáticas, e que recolhe e evidencia os institutos
atinentes com a estrutura da sociedade, com a vida dos cidadãos como titulares de direitos civis.
Retorna-se às origens do direito civil como direito dos cidadãos, titulares de direitos frente ao
Estado. Neste enfoque, não existe contraposição entre privado e público, na medida em que o
próprio direito civil faz parte de um ordenamento unitário. [...] A superação desta contraposição
pode ter uma função exposiva no estudo do direito. Alguns direitos civis não encontram tutela,
reconhecimento ou disciplina do Código Civil, mas, por exemplo, no Texto Constitucional. Alguns
direitos ou deveres, que no plano das relações sociais ou civis se traduzem em situações
existenciais mesmo de relevância civilística, não encontrando a sua disciplina no Código Civil, mas
naquele Penal ou nas leis “especiais” do Direito Administrativo. Daí a confirmação da unidade do
ordenamento”.
120
Essa argumentação é fortalecida, ainda, pela sustentação da tese de unidade
do ordenamento jurídico, mostrando-se superada a clássica dicotomia direito público
X direito privado.387
Acolher a construção da unidade (hierarquicamente sistematizada) do
ordenamento jurídico significa sustentar que seus princípios superiores, isto
é, os valores propugnados pela Constituição, estão presentes em todos os
recantos do tecido normativo, resultando, em conseqüência, inaceitável a
rígida contraposição direito público-direito privado. Os princípios e valores
constitucionais devem se estender a todas as normas do ordenamento, sob
pena de se admitir a concepção de um ‘mondo in frammenti’, logicamente
388
incompatível com a idéia de sistema unitário.
Diante disso é que se torna imperativo harmonizar o interesse coletivo e dos
particulares, pois apresenta-se um quadro de abandono da dicotomia clássica.
Atualmente, não mais se pode acolher a separação do Estado e da sociedade civil de um lado, a Constituição como lei do Estado e, de outro, o direito privado como
ordenamento da sociedade civil389-390 e que vê determinadas normas constitucionais
como intromissões em uma esfera reservada aos particulares. Tal concepção
pressupõe o direito privado como uma dimensão rígida, apolítica e aistórica. Ao
contrário, é mister trazer a lume o valor político das normas de direito privado e
determinar as suas funções em relação ao sistema sóciopolítico-econômico.391 A
publicização do direito regulador das relações privadas e a concomitante
387
AMARAL NETO, Francisco dos Santos. Direito Civil: introdução. 2. ed. Rio de janeiro: Renovar,
1998, p. 150. Amaral admite, a propósito, que: "Superando a clássica dicotomia direito públicodireito privado, os princípios fundamentais do direito privado deslocam-se para os textos
constitucionais".
388
TEPEDINO, Maria Celina Bodin de Moraes. A caminho de um direito civil constitucional. Revista
de Direito Civil. São Paulo, n. 65, p. 25, jul./set. 1993. Complementa a autora: “[...] a separação do
direito em público e privado, nos termos em que era posta pela doutrina tradicional, há de ser
abandonada. A partição, que sobrevive desde os romanos, não mais traduz a realidade
econômico-social, nem corresponde à lógica do sistema, tendo chegado o momento de
empreender a sua reavaliação".
389
PRATA, Ana. A tutela constitucional da autonomia privada. Coimbra: Almedina, 1982, p. 28.
390
Também não pode ser entendido que o Código Civil venha sendo substituído pela Constituição.
Ele conserva seu papel e espaço, disciplinando a essência das relações jurídicas privadas.
Atualmente, estas tornaram-se qualificadas pela norma pública, emprestando-lhe relevo maior, na
medida em que respeita dois objetivos: satisfazer os particulares e preservar o interesse social.
391
RIPERT, Georges. O Regimen Democrático e o Direito Civil Moderno. Tradução de J. Cortezão.
São Paulo: Saraiva, 1937, p. 11-17. Ripert aborda a questão, na seguinte definição: “O jurista que
ensina o direito privado não vive num mundo insensível à ação da política" e que "É impossível
separar a história do direito privado da história das transformações do direito público". AMARAL
NETO, Francisco dos Santos. Direito Civil: introdução. 2. ed. Rio de janeiro: Renovar, 1998, p.
104. Na perspectiva de Amaral, fica evidenciado que o direito civil é um fenômeno cultural em que
está presente a historicidade, "no sentido de que veio se formando gradativamente, desde os
primórdios da civilização ocidental, até se transformar em um dos mais importantes ramos da
ciência".
121
privatização das normas aplicáveis à atividade do Estado tornaram menos nítida a
distinção entre direito público e direito privado, consistindo em fenômeno
reconhecido, como regra, nos sistemas jurídicos romanistas atuais.392
A superação da dicotomia direito público X direito privado incide, ainda, em
efeito da mutação da função do Estado que, de mera organização estrutural, passa
a controlar as relações privadas, limitando a autonomia da vontade, objetivando
contrapesar as relações. Em vista de tornar perceptíveis algumas das inovações,
Perlingieri entende que ocorreu a unificação desses dois ramos do direito - público X
privado. O autor aduz, ainda, que o Estado moderno não é caracterizado por uma
relação entre cidadão e Estado, em que um seria subordinado ao poder, à soberania
e, por vezes, ao arbítrio do outro, mas por um compromisso constitucionalmente
garantido de realizar o interesse de cada pessoa. O “Estado tem a tarefa de intervir e
de programar na medida em que realiza os interesses existenciais e individuais, de
maneira que a realização deles é, ao mesmo tempo, fundamento e justificação da
sua intervenção”.393 Em resumo, acredita-se que a Constituição teve o papel de
unificar os dois ramos.
Atualmente não é possível conceber a idéia de incompatibilidade entre direito
público e direito privado, entendendo-os de maneira fragmentada, como se fossem
compartimentos lacrados, estanques e muito distantes entre si. A dicotomia clássica
do direito positivo vem perdendo campo, dando lugar a novas interpretações desses
dois ramos do direito, o que demonstra seu entrelaçamento e sua interação.
Evidencia-se que não se afastam, como também não se repelem; pelo contrário,
devem coexistir, principalmente porque, não importando o foco - se de direito público
ou de direito privado – a intenção é sempre a mesma, a de regular todas as relações
jurídicas da melhor maneira para que ocorra a preservação da dignidade humana.
Constituição Federal e Código Civil não se excluem, ao contrário, convivem e
permitem a unificação do sistema.
392
393
RAMOS, Carmem Lucia Silveira. A constitucionalização do direito privado e a sociedade sem
fronteiras. In: FACHIN, Luiz Edson. Repensando fundamentos do direito civil contemporâneo. Rio
de Janeiro: Renovar, 1998, p. 11.
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução de
Maria Cristina De Cicco. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 54.
122
Claro que a classificação abordada acima ainda permanece, e ocorre porque é
útil, no plano didático, como também benéfica do ponto de vista operacional, pois
beneficia a pesquisa, o aprimoramento e a sistematização de um gênero e outro.
Não se pode esquecer que o Direito é uma ciência394, e como tal necessita ser
analisado em suas diversas amostragens.
É necessário buscar critérios de distinção, mas alerta-se que tal tarefa deverá
afastar duas falsas premissas: a concepção da contraposição entre os ramos do
direito e a idéia de completude do Código Civil. Pode-se chegar a um entendimento
de que houve a superação da dicotomia direito público X direito privado no arquétipo
liberal. Todavia, não se quer alegar que houve a morte do direito privado, ou sua
sucumbência em face do direito público. O que se quer transpor é o juízo de que,
presentemente, deve-se fazer uma releitura do direito privado, a qual deve a ele
coligar novos valores, os quais estão consagrados na vigente Constituição.
Para tanto, é necessário reconhecer que permanecem o direito privado e o
público. Nada obstante, é notório que esses ramos não mais contenham o cunho
liberal, isto é, o Código Civil, como constituição dos interesses privados, e a
Constituição, propriamente dita, como diploma público. E além disso, não há mais
como proferir que há normas exclusivamente de direito público e normas
exclusivamente de direito privado, posto que as diferentes leis especiais divulgam
eminentemente um caráter público.
Assim sendo, como bem assevera Ludwig, não há uma incursão de um campo
no outro, mas uma nova perspectiva a ocorrer sobre os institutos tradicionais do
394
REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 1986.p 317. “A Ciência
do Direito estuda o fenômeno jurídico em todas as suas manifestações e momentos. Aos
cientistas do Direito interessa essa experiência não apenas já aperfeiçoada e formalizada em leis,
mas, também, como vai aos poucos se manifestando na sociedade, nas relações de convivência.
A Ciência do Direito é, portanto, uma ciência complexa, que surpreende o fato jurídico desde as
suas manifestações iniciais até aquelas em que a forma se aperfeiçoa. Há, porém, possibilidade
de se circunscrever o âmbito da Ciência do Direito no sentido de serem estudadas as regras ou
normas já postas ou vigentes. A Ciência do Direito, enquanto se destina ao estudo sistemático das
normas, ordenando-as segundo princípios, e tendo em vista a sua aplicação, toma o nome de
Dogmática Jurídica.” Assevera Reale que existem dois fatores que diferenciam o direito público do
direito privado. O primeiro leva em consideração o conteúdo da norma; o outro enfatiza o aspecto
formal da relação jurídica. Assim, quanto ao conteúdo, as normas privadas são aquelas que
regulamentam interesses particulares, enquanto as públicas almejam o interesse geral. No que diz
respeito ao aspecto formal, se a relação é de coordenação, tem-se direito privado; se a relação é
de subordinação, trata-se do direito público.
123
direito privado. Efetivamente, não mais se imagina o direito privado como um feudo,
dentro do qual imperava a vontade absoluta de um senhor. Também não logra
continuar a idéia do direito privado como ramo jurídico constituído somente por
normas dispositivas - em oposição ao direito público, reino das normas cogentes, ou
de ordem pública. O direito privado, hoje em dia, aprecia normas de ordem pública;
do mesmo modo, o direito privado contém normas de interesse comum; também os
institutos de direito privado têm marcada função social.395
Nessa perspectiva, o contrato, como um dos institutos do direito civil,
acompanha esse destino, qual seja: estar submerso nas regras e princípios
constitucionais. O mesmo passa, desse modo, de uma visão meramente individual,
em que prevalecia a vontade das partes, para uma visão socializante, que prima
pela justiça social.
À luz de uma perspectiva histórica, observa-se que a Constituição é, em
relação ao direito civil, a ferramenta de sua reflexão. Também é concludente afirmar
que a superação da dicotomia direito público X direito privado beneficia que se
perfilhe a incidência dos valores e princípios constitucionais na esfera civilística,
primaziando a pessoa humana, sua dignidade, personalidade e seu livre
desenvolvimento.396
2.3 As Dimensões dos Direitos Fundamentais
Os direitos fundamentais397 têm importância no direito privado pelo fato de que,
além de regerem as relações entre indivíduo e Estado (sentido vertical), também
regem as relações interprivadas (sentido horizontal).
395
396
397
LUDWIG, Marcos de Campos. Direito público e direito privado: a superação da dicotomia. ln:
MARTINS-COSTA, Judith (Org.). A reconstrução do Direito Privado. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002, p. 99. Prossegue o mesmo autor: “o conceito de ordem pública não é exclusivo
do direito público, equívoco em grande parte responsável pela concepção dicotômica do discrime
entre o direito público e o direito privado”.
TEPEDINO, Maria Celina Bodin de Moraes. A caminho de um direito civil constitucional. Revista
de Direito Civil. São Paulo, n. 65, p. 26, jul./set.1993.
Os direitos fundamentais estão ligados a sua “fundamentalidade” que pode ser estudada no
sentido material e formal. Esta última está vinculada ao sistema constitucional positivo. A
124
Inicialmente, cumpre destacar que os direitos fundamentais, como qualquer
direito, são históricos. Nascem, e se modificam; não são estagnados; pelo contrário,
têm a particularidade de ajustar-se aos anseios sociais de cada período. Eles foram
erigidos ao longo da história da humanidade e, hoje em dia, sua compreensão
abarca um produto da contração de diversas fontes, incluindo tradições arraigadas
nas diversas civilizações, até o ajuste dos pensamentos filosófico-jurídicos, das
idéias surgidas com o cristianismo e o direito natural.
A evolução histórica dos direitos fundamentais até o seu reconhecimento nas
primeiras Constituições escritas, atravessa três fases. A primeira denomina-se fase
pré-história, que se estenderia até o século XVI; em seguida, derivou-se a etapa
intermediária,
que
corresponderia
ao
período
de
elaboração
da
doutrina
jusnaturalista e da afirmação dos direitos naturais do homem; e, finalmente, aparece
a fase da constitucionalização, com origem em 1776, com as contínuas declarações
de direitos dos novos Estados americanos.398
398
Constituição Federal de 1988 confere dignidade e proteção especiais aos direitos fundamentais,
seja pontuando que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação
imediata (art. 5°, § 1°), seja consentindo a conclu são de que os direitos fundamentais estão
resguardados, não apenas perante o legislador ordinário, mas também, contra o poder
constituinte reformador (agregam o rol das cláusulas pétreas – art. 60 da CF/88). Por outro viés, a
fundamentalidade material se origina do pressuposto de que os direitos fundamentais refletem
sobre a composição da sociedade e do Estado. No Título II (arts. 5° a 17) da Constituição Federal
está escrito: “Dos direitos e garantias fundamentais”. O primeiro artigo desse título, ou seja, o art.
5°, asseverara no seu § 2° que “os direitos e garan tias expressos nesta Constituição não excluem
outros decorrentes do regime e dos princípios por ele adotados, ou dos tratados internacionais em
que a República Federativa do Brasil seja parte”. A referida norma consente que outros direitos
ainda que não estejam expressos na Constituição, e, mesmo não arrolados no Título II, sejam
considerados direitos fundamentais. Portanto, a Constituição, em seu artigo 5°, § 2°, institui um
sistema constitucional aberto à fundamentalidade material. Assim, se a Constituição enumera
direitos fundamentais no seu Título II, isso não evita que direitos fundamentais estejam arraigados
em outros dos seus Títulos, ou mesmo, fora dela. Para a caracterização de um direito
fundamental, a partir de sua fundamentabilidade material, é indispensável a análise de seu
conteúdo, ou seja, se este apresenta conteúdo que seja fundamental sobre a estrutura do Estado
e da sociedade, como também no que diz respeito a posição que este ocupa com relação a
pessoa humana.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2005, p. 70.
125
Neste quadro, existe a afirmação histórica399-400 e jurídica de que há a
ampliação desses direitos à época da modernidade401, quando esse processo pode
ser, segundo Steinmetz, dividido em três fases, conforme segue:
(i) a da positivação, identificada na conversão de direitos havidos como
naturais em direitos positivos; (ii) a da generalização, materializada com o
advento do Estado Social de Direito (Iembre-se que, inicialmente, o Estado
Liberal de Direito não incorporava os interesses da maioria da população e
os direitos civis e políticos eram direitos das classes proprietárias); e, por
fim, (iii) na segunda metade do século XX, há o processo de
internacionalização dos direitos fundamentais. É a atual fase do seu
devenir histórico, inaugurada com a Declaração Universal dos Direitos do
402
Homem de 1948.
Quanto à origem da expressão “direitos fundamentais”403-404, Bonavides
apresenta dois critérios formais para caracterização, seguindo a conceituação
estabelecida por Schmitt. De acordo com o primeiro critério, “podem ser designados
por direitos fundamentais todos os direitos ou garantias nomeados e especificados
no instrumento constitucional”. E quanto ao segundo, “são aqueles direitos que
receberam da Constituição um grau mais elevado de garantia ou de segurança; ou
399
Sobre a formação e a evolução histórica dos direitos fundamentais, consultar COMPARATO, Fábio
Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 1999.
400
ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria geral do Estado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p.
390. O estudo da evolução dos direitos fundamentais confunde-se com a própria história do
Estado de Direito. De acordo com o autor citado, uma antiga preocupação do Estado de Direito
consiste na criação de instâncias de controle que fiscalizem os órgãos do Estado, para que não
ultrapassem as suas competências.
401
PECES-BARBA MARTINEZ, Gregório. Derecho y derechos fundamentales. Madrid: Centro de
Estudios Constitucionales, 1993, p. 326. De acordo com o autor, o conceito de direitos
fundamentais se produzirá na história a partir da modernidade. Quando em estudos históricos
atuais se fala dos direitos fundamentais na Idade Antiga ou na Idade Média se está utilizando
impropriamente esta expressão. As idéias de dignidade, de liberdade e de igualdade se
encontram na história antes do Renascimento, porém não se formularão como direitos até o
mundo moderno.
402
STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares aos Direitos Fundamentais. São Paulo:
Malheiros, 2004, p. 93.
403
QUEIROZ, Cristina M.M. Direitos Fundamentais (Teoria Geral). Coimbra: Coimbra Editora, 2002,
p. 26. Conforme a autora, a expressão “direitos fundamentais” tem origem na Constituição alemã
aprovada na Igreja de São Paulo em Francoforte (1848). Em seu texto trazia um item específico
sobre os “direitos fundamentais do povo alemão” (art. IV/ § 25). O qualificativo “fundamentais” já
referia-se a direitos “reconhecidos” e não a direitos criados pelo Estado.
404
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976.
Coimbra: Almedina, 2004, p. 19 e 21. “Os direitos fundamentais começaram por ser obra do
pensa mento humano e duram como explicitações, condicionadas em cada época, da autonomia
ética do Homem, um valor em que se transcende a História e está para além do direito positivado.
Nesta dimensão, os direitos fundamentais «gozam de anterioridade relativamente ao Estado e à
Sociedade: pertencem à ordem moral e cultural donde um e outra tiram a sua justificação e
fundamento»” e “[...] os direitos fundamentais, tais como os entendemos hoje, são verdadeiros
direitos ou liberdades, reconhecidos em geral aos homens ou a certas categorias de entre eles,
por razões de «humanidade». São, nessa medida, direitos de igualdade, universais, e não direitos
de desigualdade, estamentais”.
126
são imutáveis [...], direitos unicamente alteráveis mediante lei de emenda à
Constituição”.405 A estes critérios formais, também adiciona-se o critério material,
que é variável de acordo com a ideologia, modalidade de Estado, espécie de valores
e princípios consagrados pela Constituição.406
São diversos os conceitos de direitos fundamentais407-408, ou seja, a doutrina
usa distintos termos para designá-Ios: direitos naturais, direitos humanos409-410-411,
405
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 515.
ESPANHA: Tribunal Constitucional. Recurso Prévio de Inconstitucionalidade. Referência-número:
53/1985; Ficha-aprovação: 11-04-1985; Publicação: 18-05-1985. Projeto de Lei orgânica de
reforma do artigo 417 do Código Penal espanhol (B.O.C.G., 30 de novembro de 1983). Disponível
em: <http://www.espanha.tribunalconstitucional.com> Acesso em: 12 nov. 2006. Muito bem
decidiu o Tribunal Constitucional da Espanha, trazendo o seguinte entendimento: “De la
obligación del sometimiento de todos los poderes a la Constitución no solamente se deduce la
obligación negativa del Estado de no lesionar la esfera individual o institucional protegida por los
derechos fundamentales, sino también la obligación positiva de contribuir a la efectividad de tales
derechos, y de los valores que representam, aun cuando no exista uma pretensión subjetiva por
parte del ciudadano. Ello obliga especialmente al legislador, quien recibe de los derechos
fundamentales “los impulsos y líneas directivas”, obligación que adquiere especial relavancia allí
donde um derecho o valor fundamental quedaria vacío de no establecerse los supuestos para su
defensa”. Tradução livre: “Da obrigação da sujeição de todos os poderes à Constituição não
somente se deduz a obrigação negativa do Estado de não lesionar a esfera individual ou
institucional protegida pelos direitos fundamentais, mas também a obrigação positiva de contribuir
para a efetividade de tais direitos, e dos valores que representam, inclusive quando não exista
uma pretensão subjetiva por parte do cidadão. Isto obriga especialmente o legislador, que recebe
dos direitos fundamentais ‘os impulsos e linhas de direção’, obrigação que adquire especial
relevância ali onde um direito ou valor fundamental
ficaria vazio de não estabelecer as
hipóteses para sua defesa”.
407
PECES-BARBA MARTINEZ, Gregório. Lecciones de Derechos Fundamentales. Madrid: Editorial
Dykinson, 2004, p. 109. “Sin la positivación los derechos no se completan, sólo son ideales
morales, valores, que no lo son plenamente hasta que no enraizan en la realidad. [...] Sólo tienen
sentido como moralidad crítica si pretenden ser Derecho positivo, y si tienen una posibilidad,
aunque sea remota, de serlo alguna vez. Si esta posibilidad no existe, no podemos hablar de
derechos fundamentales.” Na tradução livre da autora, lê-se: “Sem a positivação dos direitos não
se completam, somente são ideais morais, valores, que não o são plenamente até que não
enraízem na realidade. [...] Somente têm sentido como moralidade crítica se pretendem ser
Direito positivo, e se têm uma possibilidade, ainda que remota, de sê-lo alguma vez. Se essa
possibilidade não existe, não podemos falar de direitos fundamentais”.
408
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2005, p. 70. “Os direitos fundamentais, como resultado da personalização e
positivação constitucional de determinados valores básicos (daí o seu conteúdo axiológico),
integram, ao lado dos princípios estruturais e organizacionais (e assim denominada parte
orgânica ou organizatória da Constituição), a substância propriamente dita, o núcleo substancial,
formado pelas decisões fundamentais, da ordem normativa, revelando que mesmo num Estado
constitucional democrático se tornam necessárias (necessidade que se fez sentir mais
contundente no período que sucedeu a Segunda Grande Guerra) certas vinculações de cunho
material para fazer frente aos espectros da ditadura e do totalitarismo”
409
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro:
Campus, 1992, p. 32-45. Os Direitos Humanos são, de fato, um fenômeno social da civilização
humana, conforme cada momento histórico das sociedades, afirmando Bobbio que “Sabemos
hoje que também os direitos ditos humanos são o produto não da natureza, mas da civilização
humana; enquanto direitos históricos eles são mutáveis, ou seja, suscetíveis de transformação e
de ampliação” e ainda continua ressaltando que os Direitos Humanos não nascem todos de uma
vez, são históricos e se formulam conforme as circunstâncias sócio-histórico-político-econômicas.
406
127
direitos do homem412-413, direitos individuais, direitos públicos subjetivos, liberdades
fundamentais, liberdades públicas e direitos fundamentais do homem, dificultando
qualquer tentativa de conceituá-los concisa e sinteticamente.414
410
411
412
413
414
MORAIS, José Luis Bolzan de. As crises do Estado e da Constituição e a Transformação Espacial
dos Direitos Humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 62-65. Os Direitos Humanos
são universais, cada vez mais se projetando no sentido de seu aumento objetivo e subjetivo,
mantendo seu caráter de temporalidade. Como são históricos, não definitivos, exigem a todo o
instante o reconhecimento de situações novas, como também o aperfeiçoamento de novos
instrumentos para que sejam resguardados e efetivados. São considerados como o conjunto de
valores históricos que são básicos e fundamentais, que dizem respeito à vida digna, no aspecto
político, jurídico, econômico, psíquico, físico e afetivo das pessoas e do meio em que estas vivem.
Dirigem-se a todos, da mesma forma que o compromisso de concretizar tais direitos é dirigido
para todos. Necessariamente são universais, mas esta universalização não significa uma
homogeneização dos indivíduos ou seus cotidianos. Deve-se ter sempre presente a idéia de que
o sujeito dentro de uma identidade construída a partir de sua inserção coletiva e institucional
diante do Estado, pois este está sempre presente na história dos Direitos Humanos.
PÉREZ LUNO, Antonio-Enrique. Derechos Humanos, Estado de derecho y Constitución. 3. ed.
Madrid: Tecnos, 1990. p. 80. O conceito de direito fundamental presume o conceito preliminar de
direitos humanos. É a posição de Pérez Luno, que, assim define direitos humanos: “uno conjunto
de facultades e instituciones que, em cada momento histórico, concretan las exigencias de la
dignidad, la libertad y la igualdad humanas, las cuales deben ser reconocidas positivamente por
los ordenamientos jurídicos a nível nacional e internacional.” Em tradução livre: “Um conjunto de
faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concretizam as exigências da
dignidade, liberdade e igualdade humanas, as quais devem ser reconhecidas positivamente pelos
ordenamentos jurídicos em nível nacional e internacional”.
Alguns autores defendem que os direitos humanos ou direitos do homem podem ser entendidos
como os direitos válidos para todos os homens em todos os lugares, pelo simples fato de serem
homens. Os direitos fundamentais podem ser compreendidos como direitos do homem, jurídicoinstitucionalmente garantidos e limitados no espaço e no tempo, ou seja, direitos que o direito
positivo vigente de cada Estado assim qualifica. Conforme SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos
direitos fundamentais. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 47, foi Paine quem
popularizou em sua obra a expressão ”direitos do homem” no lugar de “direitos naturais”.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Coimbra:
Almedina, 2000, p. 387. Canotilho distingue, segundo a origem e significado, as expressões
“direitos do homem” e “direitos fundamentais”: “[..] direitos do homem são direitos válidos para
todos os povos e em todos os tempos (dimensão jusnaturalista-universalista); direitos
fundamentais são direitos do homem, jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espaciotemporalmente. Os direitos do homem arrancariam da própria natureza humana e daí o seu
caráter inviolável, intemporal e universal; os direitos fundamentais seriam os direitos
objectivamente vigentes numa ordem jurídica concreta”.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros Editores,
2002, p 175. Segundo o autor, cada termo tem uma característica própria, daí constituir a
expressão "direitos fundamentais do homem", uma vez que “[...] além de referir-se a princípios
que resumem a concepção do mundo e informam a ideologia política de cada ordenamento
jurídico, é reservada para designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e
instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as
pessoas. No qualificativo fundamentais acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas
para designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ele concretiza
em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas. No qualificativo
fundamentais acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa
humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive; fundamentais do homem
no sentido de que todos, por igual, devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas
concreta e materialmente efetivados”.
128
A
doutrina
contemporânea
já
tem,
predominantemente,
consolidado
entendimento de que esses termos não devem ser empregados como sinônimos. E
a elucidação concludente para sustentar uma distinção é a de que o termo direitos
fundamentais refere-se aos direitos reconhecidos e positivados na esfera do direito
constitucional positivo de determinado Estado; ao passo que a expressão direitos
humanos guardaria relação com os tratados internacionais, por referir-se àquelas
posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano, independentemente de sua
vinculação com determinada ordem constitucional, e que almejam à validade
universal, para todos os povos e tempos, revelando um inequívoco caráter
supranacional (internacional). A expressão direitos do homem, de conotação
marcadamente jusnaturalista, abarca os direitos naturais, não positivados, com
pretensão à aceitação universal. Alguns autores concebem-na como uma “préhistória” dos direitos fundamentais.415-416
No âmbito das respectivas terminologias, é de se destacar o uso da expressão
direitos fundamentais, à qual parece apropriada a significação de Sarlet. O autor
considera que os direitos fundamentais carecem ser reconhecidos e garantidos em
um ordenamento constitucional, uma vez que estes
[...] possuem sentido mais preciso e restrito, na medida em que constituem
o conjunto de direitos e liberdades institucionalmente reconhecidos e
garantidos pelo direito positivo de determinado Estado, tratando-se,
portanto, de direitos delimitados espacial e temporalmente, cuja
denominação se deve ao seu caráter básico e fundamentador do sistema
417
jurídico do Estado de Direito.
415
416
417
Neste sentido, convêm ressaltar que é importante a distinção utilizada entre direitos do homem,
direitos humanos e direitos fundamentais, segundo as conclusões do Grupo de Pesquisa
Constitucionalização do Direito Privado, coordenado pelo professor Dr. Jorge Renato dos Reis, da
Universidade de Santa Cruz Sul, RS: "DIREITOS DO HOMEM = são os direitos naturais com
pretensão à aceitação universal não positivados e DIREITOS FUNDAMENTAIS = são direitos
constitucionalmente positivados, direta ou indiretamente, consistentes em normas de fundamental
importância ao convívio social, assim reconhecidas pelo constituinte, as quais aspiram à
igualdade e à universalidade"; e ainda, “DIREITOS HUMANOS = são direitos naturais com
pretensão à aceitação universal, positivados em tratados internacionais” (UNISC. Grupo de
Pesquisa
em
Constitucionalização
do
Direito
Privado.
Disponível
em
<http://www.direitosfundamentaiseprivado.blogspot.com> Acesso em: 10 dez. 2006).
SCHÄFER, Jairo Gilberto. Direitos fundamentais: Proteção e Restrições. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2001, p. 26. “[...] os direitos fundamentais em sentido próprio, são, essencialmente,
direitos do homem individual livre, e por certo, direito que ele tem frente ao Estado, decorrente o
caráter absoluto da pretensão, cujo exercício não depende de previsão em legislação
infraconstitucional, cercando-se o direito de diversas garantias com força constitucional,
objetivando-se sua imutabilidade jurídica e política.”
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2005, p. 37.
129
Os
direitos
fundamentais,
no
Estado
constitucional
contemporâneo,
prosseguem atuando como limites ao poder do Estado. No entanto, a vinculação é
muito mais estrita, forte e abrangente. Ou seja, os direitos fundamentais418, como
direitos de defesa, operam como reais limites aos poderes públicos. Constituem
“uma categoria especial de direitos.”419 Assim, os mesmos são
garantias
designadas a todos os cidadãos, e para assegurar a sua concretização, as normas
que os tutelam são apreciadas como verdadeiras normas condutas obrigatórias, seja
frente ao Estado, seja frente aos particulares.
Posta a questão nestes termos, é também importante enfatizar que a doutrina
contemporânea, no que tange à evolução dos direitos fundamentais, apresenta-os
classificados por dimensões ou gerações420-421, em ajuste com a ordem cronológica,
418
419
420
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Coimbra:
Almedina, 2000, p. 371. Para Canotilho, a positivação de direitos fundamentais significa a
incorporação na ordem jurídica positiva dos direitos considerados “naturais” e “inalienáveis” do
indivíduo. Segundo o autor: “Não basta uma qualquer positivação. É necessário assinalar-lhes a
dimensão de Fundamental Rights colocados no lugar cimeiro das fontes de direitos: as normas
constitucionais. Sem esta positivação jurídica, os ‘direitos do homem são esperanças, aspirações,
ideais, impulsos, ou, até, por vezes, mera retórica política’, mas não são direitos protegidos sob a
forma de normas (regras e princípios) de direito constitucional (Grundrechtsnormen).”
STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares aos Direitos Fundamentais. São Paulo:
Malheiros, 2004, p. 82-85. Prossegue o mesmo autor: “Contudo, a teoria dos direitos
fundamentais como limites ao poder carece, em parte, de atualidade quando reduz o fenômeno
do poder somente ao poder do Estado. No contexto das sociedades contemporâneas, é um
equívoco elementar, próprio do liberalismo míope e dogmático, associar o poder exclusivamente
ao Estado, como se o Estado tivesse o monopólio do poder ou fosse a única expressão material e
espiritual do poder. Há muito o Estado não é o único detentor de poder - talvez nunca tenha sido
o único. No mundo contemporâneo, pessoas e grupos privados não só detêm poder político,
econômico e ideológico como também desenvolvem lutas de e pelo poder, (i) ora no seio do
Estado, com o objetivo de ocupação de espaços estratégicos de poder e eventual obtenção de
vantagens (‘apropriação privada do Estado’), (ii) ora com o Estado, hipótese na qual grupo(s)
privado(s) se aliam aos governantes e/ou à burocracia estatal para fragilizar, restringir, neutralizar
ou até impedir a ação de outro(s) grupo(s) privados, e (iii) ora contra o Estado, e.g., ataques
especulativos orquestrados por megagrupos financeiros privados nacionais e, sobretudo,
internacionais.”
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Direitos fundamentais, processo e princípio da
proporcionalidade. In: GUERRA FILHO, Willis Santiago (Coord.). Dos direitos humanos aos
direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 13. Alguns autores preferem
o termo dimensão. Neste contexto, de acordo com o conceituado jurista Guerra Filho: "que em
vez de 'gerações' é melhor se falar em 'dimensões de direitos fundamentais', nesse contexto, não
se justifica apenas pelo preciosismo de que as gerações anteriores não desaparecem com o
surgimento das mais novas. Mais importante é que os direitos gestados em uma geração,
quando aparecem em uma ordem jurídica que já traz direitos da geração sucessiva, assumem
uma outra dimensão, pois os direitos de geração mais recente tornam-se um pressuposto para
entendê-Ios de forma mais adequada - e, conseqüentemente, também para melhor realizá-Ios.
Assim, por exemplo, o direito individual de propriedade, num contexto em que se reconhece a
segunda dimensão dos direitos fundamentais, só pode ser exercido observando-se sua função
social, e com o aparecimento da terceira dimensão, observando-se igualmente sua função
ambiental".
130
na qual passaram a ser reconhecidos constitucionalmente. Sarlet lembra que o
“reconhecimento progressivo de novos direitos fundamentais tem o caráter de um
processo cumulativo, de complementaridade, e não de alternância, de tal sorte que o
uso da expressão ‘gerações’ pode ensejar a falsa impressão da substituição
gradativa de uma geração por outra”.422 Assim, prefere-se o termo “dimensões” dos
direitos fundamentais, pois produz o entendimento de que os mesmos encontram-se
em “permanente processo de expansão, cumulação e fortalecimento”.423 Deste
modo, a moderna doutrina tem preferido o termo “dimensões”. As três primeiras
dimensões abriram passagem para uma nova concepção de universalidade desses
direitos:
A nova universalidade dos direitos fundamentais os coloca assim, desde o
princípio, num grau mais alto de juridicidade, concretude, positividade e
eficácia. É universalidade que não exclui os direitos da liberdade, mas
primeiro os fortalece com as expectativas e os pressupostos de melhor
concretizá-Ios mediante a efetiva adoção dos direitos da igualdade e da
424
fraternidade.
Na esteira de argumentação sobre os direitos fundamentais, ressalta-se a
verificação de que estes são “fruto de reivindicações concretas, geradas por
situações de injustiça e/ou de agressão a bens fundamentais e elementares do ser
421
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 525.
Assinala Bonavides que “força é dirimir, a esta altura, um eventual equívoco de linguagem: o
vocábulo ‘dimensão’ substitui, com vantagem lógica e qualitativa, o termo ‘geração’, caso este
último venha a induzir apenas sucessão cronológica e, portanto, suposta caducidade dos direitos
das gerações antecedentes, o que não é verdade. Ao contrário, os direitos da primeira geração,
direitos individuais, os da segunda, direitos sociais, e os da terceira, direitos ao desenvolvimento,
ao meio ambiente, à paz e à fraternidade, permanecem eficazes, são infra-estruturais, formam a
pirâmide cujo ápice é o direito à democracia; coroamento daquela globalização política para a
qual, como no provérbio chinês da grande muralha, a Humanidade parece caminhar a todo vapor,
depois de haver dado o seu primeiro e largo passo. Os direitos da quarta geração não somente
culminam a objetividade dos direitos das duas gerações antecedentes como absorvem - sem,
todavia, removê-Ia - a subjetividade dos direitos individuais, a saber, os direitos da primeira
geração. Tais direitos sobrevivem, e não apenas sobrevivem, senão que ficam opulentados em
sua dimensão principal, objetiva e axiológica, podendo, doravante, irradiar-se com a mais sublime
eficácia normativa a todos os direitos da sociedade e do ordenamento jurídico”.
422
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2005, p. 47-53. Compartilhando as interpretações de Bonavides e de Sarlet,
substituem-se os termos "gerações", "eras" ou "fases" por "dimensões", pois esses direitos não
são substituídos ou alterados, mas decorrem num processo de fazer-se e de complementaridade
permanente.
423
TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. v.
I. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1997, p. 24-25.
424
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São ‘Paulo: Malheiros, 1997, p. 526.
131
humano”.425 Com base no exposto acerca dos conceitos e apontamentos
apresentados até então, cumpre traçar a classificação das dimensões dos direitos
fundamentais consagrada pela doutrina: direitos de primeira, segunda, terceira e
quarta dimensões, havendo doutrinadores que ainda defendem a existência de uma
quinta dimensão.426 Embora exista divergência no que se refere ao domínio
terminológico
dos
direitos
fundamentais, deve-se
apreciar que,
quanto à
classificação tradicional que guia a compreensão desses direitos, os entendimentos
apresentam-se convergentes.427
Os direitos fundamentais de primeira dimensão428 têm origem no direito
francês; no período de predomínio do pensamento liberal-individualista-burguês,
nascem as primeiras constituições, objetivando proteger o indivíduo frente ao
Estado.429
Os direitos da primeira geração são os direitos da liberdade, os primeiros a
constarem do instrumento normativo constitucional, a saber, os direitos
civis e políticos, que em grande parte correspondem, por um prisma
histórico, àquela fase inaugural do constitucionalismo do Ocidente [...]. Os
direitos de primeira geração ou direitos da liberdade têm por titular o
indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou
atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais
característico; enfim são direitos de resistência ou de oposição perante o
430
Estado.
425
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2005, p. 61.
426
Sobre as gerações ou as dimensões dos direitos fundamentais, consultar BOBBIO, Norberto. A
Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992;
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 1997; SARLET,
Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2005; ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de
1976. Coimbra: Almedina, 2004; e REIS, Jorge Renato. A Concretização e a efetivação dos
direitos fundamentais no Direito Privado. In: LEAL, Rogério Gesta (Org.). Direitos Sociais e
Politicas Públicas: desafios contemporâneos. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2004, tomo 4.
427
REIS, Jorge Renato. A Concretização e a efetivação dos direitos fundamentais no Direito Privado.
In: LEAL, Rogério Gesta (Org.). Direitos Sociais e Politicas Públicas: desafios contemporâneos.
Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2004, tomo 4, p. 995.
428
MORAIS, José Luis Bolzan de. Do Direito Social aos Interesses Transindividuais. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 1996, p.163-164. Refletindo sobre essa questão, Morais acredita que os
direitos de primeira dimensão “correspondem a uma primeira fase do constitucionalismo do
ocidente e referem uma titularidade individual, uma oponibilidade ao Estado como possibilidade
de resistência, apresentando-se como faculdades ou atributos da subjetividade. caracterizam-se,
portanto, pelo seu caráter negativo, refletindo a separação do Estado/ Sociedade Civil.”
429
REIS, Jorge Renato. A Concretização e a efetivação dos direitos fundamentais no Direito Privado.
In: LEAL, Rogério Gesta (Org.). Direitos Sociais e Politicas Públicas: desafios contemporâneos.
Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2004, tomo 4, p. 995.
430
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São ‘Paulo: Malheiros, 1997, p. 517.
132
Assim, versam em direitos de resistência e oposição do indivíduo contra o
Estado, determinando deste uma conduta negativa, são eles: direito à vida, à
liberdade, à propriedade e à igualdade perante a lei (formal), sendo adicionados a
esse rol outras liberdades, as chamadas liberdades de expressão coletiva e os
direitos de participação política e algumas garantias processuais.431 Possuem um
cunho individualista e delimitam o campo de não-intervenção do Estado. Resta
observar que os direitos de primeira dimensão são os direitos civis e políticos, que
correspondem à fase inaugural do Constitucionalismo Ocidental.
É significativo lembrar que a primeira dimensão de direitos fundamentais, numa
linha de tempo, é paralela à primeira percepção de Estado de Direito, o chamado
Estado Liberal, tendo o papel de proporcionar segurança pública, abstendo-se de
regular o comércio, “para que suas ‘leis naturais’, especialmente a livre concorrência,
auto-regulamentem as relações existentes na sociedade de ‘livre-mercado’”.432
Assim sendo, cumpre destacar que o desígnio da constitucionalização dos
direitos fundamentais, nesse momento histórico, foi o de limitar e controlar os abusos
do Estado. É precisamente este o sentido do enunciado de Bonavides, ou seja,
defende a concepção de que o conceito dos direitos fundamentais produzia um
status negativus em relação à liberdade humana, que era vista apenas como meio
de oposição ao Estado.433
Por muito tempo, estes direitos não eram nada mais do que deveres de
abstenção do Estado, que deveria manter-se inerte para não violá-los. O
essencial era salvaguardar as liberdades privadas do indivíduo, o que
impunha o estabelecimento de limites ao exercício do poder político. O
Estado era visto como um adversário da liberdade e, por isso cumpria
434
limitá-lo, em prol da garantia dos direitos do homem.
Os direitos de segunda dimensão têm consagração no século XX, nas
constituições organizadas depois da Segunda Guerra Mundial e nos pactos
431
REIS, Jorge Renato. A Concretização e a efetivação dos direitos fundamentais no Direito Privado.
In: LEAL, Rogério Gesta (Org.). Direitos Sociais e Politicas Públicas: desafios contemporâneos.
Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2004, tomo 4, p. 996.
432
PORTO, Pedro Rui da Fontoura. Direitos Fundamentais Sociais – considerações acerca da
legitimidade política e processual do Ministério Público e do sistema de justiça para sua tutela.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p.55.
433
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 517.
434
SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2000, p.23.
133
internacionais
consolidados
naquele
momento.
Nascem
do
impacto
da
industrialização e de seus conseqüentes problemas sociais e econômicos. O
surgimento de uma nova tensão social, polarizada pela burguesia e proletariado,
gerou movimentos reivindicatórios e o reconhecimento progressivo de direitos e fez
com que o Estado assumisse um procedimento ativo na efetivação da justiça social
em relação ao indivíduo.
Os direitos de segunda dimensão são os direitos
econômicos, sociais e culturais, assim como as liberdades sociais.435
Direitos fundamentais de segunda geração: direitos sociais, culturais,
econômicos. São direitos positivos, pois reclamam a presença do Estado
em ações voltadas à minoração dos problemas sociais e exigem uma
atividade prestacional do Estado. Também são chamados de ‘direitos de
436
crença’, pois trazem a esperança de uma participação ativa do Estado.
Percebe-se que, mesmo depois do reconhecimento dos direitos de primeira
dimensão, os quais exigiam do Estado uma conduta negativa, o Estado necessita
atuar, não se omitindo. A diferenciação desses direitos é o seu status positivo437,
“uma vez que se cuida não mais para evitar a intervenção do Estado na esfera da
liberdade individual, mas, sim, [..] de propiciar um ‘direito de participar do bem-estar
social’”.438 Em resumo: o Estado Liberal cede lugar para a questão social,
concebendo o Estado do Bem-estar, igualmente chamado de Estado-Providência ou
Welfare State. As expressões correspondem também ao Estado Social de Direito.
Passa-se, então, a exigir do Estado uma participação, ou seja, um retorno
social. Desse modo caracterizam-se os direitos de segunda dimensão, também
chamados de direitos sociais.
435
REIS, Jorge Renato. A Concretização e a efetivação dos direitos fundamentais no Direito Privado.
In: LEAL, Rogério Gesta (Org.). Direitos Sociais e Politicas Públicas: desafios contemporâneos.
Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2004, tomo 4, p. 996-997.
436
CAPEZ, Fernando. Direito constitucional. São Paulo: Damásio de Jesus, 2005, p. 221.
437
PORTO, Pedro Rui da Fontoura. Direitos Fundamentais Sociais – considerações acerca da
legitimidade política e processual do Ministério Público e do sistema de justiça para sua tutela.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p.58. Em suas palavras, a transformação de função
assumida pelo Estado “Trata-se, pois, da alteração da visão de Estado meramente garantidor das
liberdades individuais, para a concepção de Estado obrigado a prestações sociais tendentes à
obtenção de uma maior igualdade social, donde decorre o elevado cunho ideológico desses
direitos, resultantes de reflexões antiliberais, desenvolvidas, notoriamente, na primeira metade do
Século XX.”
438
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2005, p. 55.
134
A utilização da expressão ‘social’ encontra justificativa, entre outros
aspectos [...], na circunstância de que os direitos de segunda dimensão
podem ser considerados uma densificação do princípio da justiça social,
além de corresponderem à reivindicações das classes menos favorecidas,
de modo especial da classe operária, a título de compensação, em virtude
da extrema desigualdade que caracterizava (e, de certa forma, ainda
caracteriza) as relações com a classe empregadora, notadamente
439
detentora de um maior ou menor grau de poder econômico.
E é nesse Estado Social que emergem os direitos de segunda dimensão, que
“nasceram abraçados ao princípio da igualdade, do qual não se podem separar, pois
fazê-lo equivaleria a desmembrá-los da razão de ser que os ampara e estimula.”440
O importante a ressaltar é, pois, a questão sobre esses direitos. Antagônico do
que se entende, reportam-se à pessoa individual, de tal modo como os direitos de
primeira dimensão, não podem ser confundidos com os direitos coletivos e/ou
difusos.441
De terceira dimensão442-443, há os direitos fundamentais não direcionados de
maneira direta à pessoa individual, e sim à proteção de grupos humanos, como
família, povo, nação etc. São os chamados direitos de fraternidade ou solidariedade.
E para sua concretização exigem-se diligência e responsabilidade intensa em âmbito
mundial. Entre esses direitos estão abarcados os de titularidade coletiva e difusa.444
439
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2005, p. 56.
440
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São ‘Paulo: Malheiros, 1997, p. 518.
441
REIS, Jorge Renato. A Concretização e a efetivação dos direitos fundamentais no Direito Privado.
In: LEAL, Rogério Gesta (Org.). Direitos Sociais e Politicas Públicas: desafios contemporâneos.
Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2004, tomo 4, p. 997.
442
Exemplos desses direitos, consensualmente, mais citados: o direito à paz, à autodeterminação dos
povos, ao desenvolvimento, ao meio ambiente e qualidade de vida, bem como o direito à
conservação e utilização do patrimônio histórico e cultural e o direito de comunicação.
443
SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. Processo Constitucional e a efetividade dos Direitos
Fundamentais. In: SAMPAIO, J. A. L.; SOUZA CRUZ, A. R. de (Coord.). Hermenêutica e
Jurisdição Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 210. “Se a liberdade (especialmente a
individual) marcou o primeiro momento histórico moderno da conquista dos direitos fundamentais
(dominando a própria concepção dos direitos da primeira geração), coube ao terceiro mote da
trilogia revolucionário setecentista, refeito e rebatizado, assinalar a conquista dos direitos
denominados de ‘terceira geração’: a solidariedade social juridicamente concebida e exigida colore
o constitucionalismo e tinge com novas tintas o princípio da dignidade humana. Agora, não mais
apenas o homem e o Estado, ou o homem e o outro, mas principalmente, o homem com o outro.”
444
REIS, Jorge Renato. A Concretização e a efetivação dos direitos fundamentais no Direito Privado.
In: LEAL, Rogério Gesta (Org.). Direitos Sociais e Politicas Públicas: desafios contemporâneos.
Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2004, tomo 4, p. 997.
135
Há, ainda, os que se inserem nesta categoria (terceira dimensão) como as
garantias contra manipulações genéticas, o direito de morrer com dignidade e o
direito à mudança de sexo, advertindo que, para alguns, já seriam direitos de quarta
dimensão. Não obstante a isso, verifica-se que tais direitos correspondem a novas
roupagens do princípio da dignidade humana, encontrando-se conectados ao
conceito de liberdade-autonomia e da proteção da vida e outros bens basilares
contra influência do Estado e particulares.445
Alguns doutrinadores defendem a existência de direitos de quarta dimensão446.
O pioneiro desse juízo foi Bonavides, que explica: “a globalização política na esfera
da normatividade jurídica introduz os direitos da quarta geração, que, aliás,
correspondem à derradeira fase de institucionalização do Estado Social.”447 Dentro
dessa grandeza foram abrigados: o direito à democracia, à informação e ao
pluralismo. Sendo que, desses direitos, “depende a concretização da sociedade
aberta do futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, para a qual parece o
mundo inclinar-se no plano de todas as relações de convivência”.448
Cabe, por fim, destacar, que esses direitos fundam uma nova etapa de
prestígio dos direitos fundamentais, distante dos direitos precedentes. Não se trata
de vestir de nova roupagem exigências já arraigadas nos direitos de primeira
dimensão.
Além disso, cumpre reconhecer que alguns dos clássicos direitos
fundamentais da primeira dimensão (assim como alguns da segunda)
estão, na verdade, sendo revitalizados e até mesmo ganhando em
importância e atualidade, de modo especial em face das novas formas de
agressão aos valores tradicionais e consensualmente incorporados ao
patrimônio jurídico da humanidade, nomeadamente da liberdade, da
449
igualdade, da vida e da dignidade da pessoa humana.
445
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2005, p. 58.
446
A existência de uma quinta dimensão de direitos fundamentais é preconizada por OLIVEIRA
JÚNIOR, José Alcebíades. Teoria Jurídica e Novos Direitos. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2000, p.
97 et seq.
447
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São ‘Paulo: Malheiros, 1997, p. 524.
448
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São ‘Paulo: Malheiros, 1997, p. 525.
449
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos humanos fundamentais. 5. ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2005, p 61.
136
Portanto, conclui-se que a evolução dos direitos fundamentais se processa não
através da positivação de novos direitos no texto das Constituições, mas sobretudo
“em nível de uma transmutação hermenêutica e da criação jurisprudencial, no
sentido do reconhecimento de novos conteúdos e funções de alguns direitos já
tradicionais.” 450-451
Assim, destaca-se que os direitos da primeira, segunda e terceira dimensões
gravitam em torno dos três postulados fundamentais da Revolução Francesa, quais
sejam, a liberdade, a igualdade e a fraternidade. Não obstante, esta tríade encontrase inacabada, visto que não alude o mais vital dos direitos, ou seja, o direto à vida e
ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana.
2.4 A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais
A multiplicidade dos aspectos envolvidos na discussão a respeito da vinculação
dos particulares aos direitos fundamentais evidencia-se já pela variedade
terminológica, uma vez que acabou sendo versada sob múltiplos títulos,
especialmente: “eficácia privada”, “eficácia em relação a terceiros” ou “eficácia
externa” (“Drittwirkung”) e “eficácia horizontal” dos direitos fundamentais, assim
como, “eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares” ou mesmo
“vinculação dos particulares - ou entidades privadas - aos direitos fundamentais”.
Essas duas últimas terminologias constituem a forma mais precisa e autêntica para
traduzir a dimensão específica do problema.452 Assim, é objeto dessa discussão a
450
451
452
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos humanos fundamentais. 5. ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2005, p 62.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet.
Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2002, p.113.
“Pode ocorrer, ainda, que alguns chamados novos direitos sejam apenas os antigos adaptados às
novas exigências do momento. Assim, por exemplo, a garantia contra certas manipulações
genéticas nada mais expressa do que o clássico direito à vida confrontando com os avanços da
ciência e da técnica.”
STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares aos Direitos Fundamentais. São Paulo:
Malheiros, 2004, p. 101. Desde o seu surgimento (década de 50 do século XX – Alemanha), o
tema da eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares apresentou-se como
um problema de construção jurídica. Na inexistência de dados normativos positivos imediatos,
exigiu-se, da jurisprudência e dogmática constitucionais, fundamentações desenvolvidas por
complexas mediações argumentativas. Isso permitiu um acúmulo teorético e metódico notável. E
137
vinculação dos particulares aos direitos fundamentais453 nas relações que possuem
como partes somente os entes privados, ou seja, afastando as relações com o
Estado.454-455
Há, ainda, outra questão relevante: o problema da eficácia entre particulares
não abarca todos os direitos fundamentais. Existem direitos unidirecionais, isto é,
que vinculam exclusivamente os poderes públicos, como por exemplo, dos direitos
de nacionalidade e dos direitos políticos. Logo, os direitos fundamentais
bidirecionais, além de vincular os poderes públicos, ainda vinculam os particulares. É
importante enfatizar que os poderes públicos estão atrelados a todos os direitos
fundamentais, ainda que, visivelmente, não figurem como sujeitos destinatários.456457
esse acúmulo indica um consenso em favor da vinculação dos particulares a direitos
fundamentais.
453
Nas discussões sobre esse tema, são referenciais teóricos: ALEXY, Roberto. Teoría de los
Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de estudios políticos y constitucionales, 1993;
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976.
Coimbra: Almedina, 2004; CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos Fundamentais e direito privado.
Coimbra: Almedina, 2003; CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estudos sobre Direitos
Fundamentais. Coimbra: Coimbra editora, 2004; MENDES, Gilmar Ferreira. COELHO, Inocêncio
Mártires. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica constitucional e Direitos Fundamentais.
Brasília: Brasília Jurídica, 2002; QUEIROZ, Cristina M. M. Direitos Fundamentais (Teoria Geral).
Coimbra: Coimbra editora, 2002; SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais e direito privado:
algumas considerações em tomo da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais. In:
_____ (Org.) A Constituição concretizada: construindo pontes com o público e o privado. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2000; SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e relações
privadas. Rio de Janeiro; Lumem Júris, 2004; STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares
a Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2004; UBILLOS, Juan María Bilbao. Em qué
media vinculan a Ios particulares Ios derechos fundamentales? In: SARLET, Ingo Wolfgang.
(Org). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2003.
454
REIS, Jorge Renato dos. A vinculação dos particulares aos Direitos Fundamentais nas relações
interprivadas: breves considerações. In: LEAL, Rogério Gesta, REIS, Jorge Renato dos (Orgs.)
Direitos Sociais & Políticas Públicas. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2005, t. 5, p. 1499.
455
Nesta linha de argumentação, colhe-se a lição de Sarlet: "Como já anunciado, ocupar-nos-emos,
doravante, com a problemática da vinculação dos particulares (pessoas físicas ou jurídicas) aos
direitos fundamentais. Em suma, cuida-se de saber até que ponto pode o particular
(independentemente da dimensão processual do problema) recorrer aos direitos fundamentais
nas relações com outros particulares, isto é, se, quando, e de que modo poderá opor direito
fundamental do qual é titular relativamente a outro particular, que, nesse caso, exerce o papel de
destinatárío (obrigado), mas que, por sua vez, também é titular de Direitos Fundamentais?"
456
STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares aos Direitos Fundamentais. São Paulo:
Malheiros, 2004, p. 59.
457
A eficácia horizontal dos direitos fundamentais, por sua vez, não significa atribuir um efeito externo
aos direitos fundamentais, e sim determinar que estes valham não apenas nas relações verticais
que são estabelecidas entre o Estado e os particulares, mas também nas próprias relações
interprivadas, ou seja, nas relações bilaterais e horizontais estabelecidas entre os particulares.
138
Com efeito, o Estado458 passa a aparecer como devedor de postura ativa, na
acepção de proteção absoluta e global dos direitos fundamentais, que versam sobre
valores que necessitam ser protegidos e promovidos por este ente, já que alcançam
uma irradiação em todo o ordenamento jurídico459. Sobressaem-se dois aspectos
importantes: a constatação de que direitos fundamentais460-461 como princípios e
valores constitucionais aplicam-se em toda a ordem jurídica (inclusive privada), bem
como, a necessidade de proteção aos particulares não somente perante o Estado,
todavia, também, por meio do Estado, perante outros particulares.462
[...] (i) o poder como fenômeno social amplo nas sociedades capitalistas
contemporâneas, (ii) a ação dos poderes privados ante a vigência de
constituições com pretensões de normalização de múltiplos e significativos
âmbitos da vida social, e (iii) a contínua ampliação e multifuncionalização
dos direitos fundamentais exigida pelas transformações sociais ocorridas ao
longo do século XIX e XX explicam e justificam a necessidade e função
sociais da eficácia de direitos fundamentais entre particulares.
Desconsiderar essa possibilidade eficacial é não tomar os direitos
463
fundamentais a sério.
Na Constituição Federal, falta uma imposição expressa da eficácia abordada.
Entretanto, essa ausência não exclui o tema de uma fundamentação constitucional,
uma vez que, se por um lado, o texto constitucional não prescreve esta
458
459
460
461
462
463
Sua atuação seria limitadora da autonomia privada como também da respectiva liberdade
negocial.
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976.
Coimbra: Almedina, 2004, p. 248. “Por um lado, não pode pura e simplesmente remeter o Estado
para a categoria fixa do «inimigo público». Os direitos fundamentais ganham uma dimensão
objectiva, são também valores constitucionais que aos poderes cabe respeitar, mas igualmente
fazer respeitar como interesses públicos fundamentais – esbate-se o antagonismo substancial
indivíduo-Estado, que tinha sido a força impulsionadora dos direitos do homem. Por outro lado,
torna-se patente que os indivíduos não estão isoladamente contrapostos ao Estado como
pressupunham as teorias liberais-burguesas.”
SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais e direito privado: algumas considerações em tomo
da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais. In: _____ (Org.) A Constituição
concretizada: construindo pontes com o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2000, p. 119.
Em relação a eficácia horizontal existe uma problemática que ocorre nas relações entre
particulares onde há dois ou mais titulares de direitos fundamentais, sendo impossível assegurar
uma vinculação, ou seja, eficácia, parecida àquela que incide sobre o Poder Público. Além da
incidência das normas, como valores objetivos, sobre as relações entre particulares, um particular
pode garantir o seu direito em relação a outro, analisadas as peculiaridades da situação concreta
e ocasional de direitos.
Existem críticos que argumentam que também existe relação de natureza vertical no caso de
desigualdade entre dois particulares (hipótese de poder econômico social).
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976.
Coimbra: Almedina, 2004, p. 249.
STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares aos Direitos Fundamentais. São Paulo:
Malheiros, 2004, p. 96.
139
possibilidade, por outro lado, também não a exclui expressamente, isto é, a falta de
uma fundamentação imediata e simples não afasta a formulação de uma
fundamentação mediata.464
Neste quadro, parece acertada a tese sustentada por Steinmetz, ao
desenvolver a fundamentação constitucional. O autor inspira-se nos basilares
argumentos jurisprudenciais e no direito comparado, ajustando-os à norma
constitucional brasileira, e fundamenta-se em dados positivos peculiares da
Constituição Federal.465 Pode-se afirmar que os fundamentos apresentados
confirmam o juízo de que a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais
não constitui uma “faculdade constitucional”, mas uma imposição básica da CF.466467
O primeiro fundamento defendido pelo autor encontra seu alicerce no princípio
da
supremacia
da
Constituição,
também
denominado
princípio
da
constitucionalidade, pelo qual a Constituição não só se torna fonte direta e imediata
dos direitos fundamentais468, como também, normatiza, além das relações intraestatais e verticais (Estado/indivíduo), os âmbitos sociais, econômicos e culturais
nos quais se estabelecem as relações entre particulares.469 Portanto, as normas de
direitos fundamentais, devido a sua supremacia normativa, encontram-se capazes
de incidir também sobre as relações jurídicas entre particulares, independentemente
da vigência de regulações legislativas mediadoras. Em resumo: a eficácia jurídica de
464
STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares aos Direitos Fundamentais. São Paulo:
Malheiros, 2004, p. 102.
465
Além de argumentos jurídicos, também há argumentos éticos, históricos e sociológicos.
466
STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares aos Direitos Fundamentais. São Paulo:
Malheiros, 2004, p. 102-103.
467
STEINMETZ, Wilson. Colisão de Direitos Fundamentais e princípio da proporcionalidade. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 23. “Ao que parece, a dogmática dos direitos fundamentais
é o setor mais universal da dogmática jurídica contemporânea. Isso é evidente pelo interesse
científico crescente pelos direitos fundamentais, não só dos constitucionalistas, como também dos
civilistas, penalistas, processualistas, administrativistas, tributaristas, laboralistas e
internacionalistas. Tornou-se lugar comum dizer que os direitos fundamentais são o centro
gravitacional do sistema jurídico, seja em nível nacional, seja em nível internacional.”
468
STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares aos Direitos Fundamentais. São Paulo:
Malheiros, 2004, p. 103. Essa categoria especial de direitos vincula diretamente o Poder
legislativo, executivo e o judiciário. Todos os atos, normativos ou fáticos, precisam ser conformes
ou não-contrários à Constituição.
469
Na CF, há textos de normas sobre economia, educação, cultura, desporto, ciência, tecnologia,
comunicação social, família, criança, adolescente, idoso e índios.
140
normas de direitos fundamentais nas relações jurídicas entre particulares não fica,
necessariamente e sucessivamente, dependente da mediação legislativa.470
O segundo fundamento, conseqüência do primeiro, incide na unidade material
do ordenamento jurídico. Uma das funções da Constituição, como norma
fundamental, é servir de parâmetro para a unidade (formal e material) do
ordenamento jurídico. Os direitos fundamentais fazem parte desse núcleo material e
atuam como elementos de unificação material do ordenamento jurídico; assim,
incidem sobre o sistema privado, que é também parte desse ordenamento. Em
outras palavras: a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais é exigência
e resultado da unidade material do ordenamento jurídico.471
A eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares também
pode ser fundamentada na dimensão objetiva dos direitos fundamentais472-473 470
471
472
473
STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares aos Direitos Fundamentais. São Paulo:
Malheiros, 2004, p. 103-104.
STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares aos Direitos Fundamentais. São Paulo:
Malheiros, 2004, p. 104.
STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares aos Direitos Fundamentais. São Paulo:
Malheiros, 2004, p. 104. Esse é o principal e decisivo argumento de justificação desenvolvido na
jurisprudência e na dogmática constitucionais alemãs. Também, esse argumento de
fundamentação é proeminente no marco da CF, porque há um catálogo de direitos fundamentais,
direitos que operam a um só tempo como direitos públicos subjetivos e valores da comunidade
juridicamente objetivados. Fala-se em direitos fundamentais como princípios objetivos ou normas
objetivas de princípio, ou, ainda, no caráter objetivo dos direitos fundamentais como princípios.
Steinmetz faz o seguinte questionamento e, conseqüentemente, responde: “Contudo, que é ou
em que consiste o caráter objetivo dos princípios? Na literatura, não há resposta completa a essa
pergunta. Não raras vezes a atribuição de uma dimensão objetiva aos direitos fundamentais mais
parece uma ‘intuição jurídica’ do que propriamente uma construção racional, analiticamente clara
e precisa. De qualquer forma, o mínimo que se pode dizer é que se trata de uma construção
jurídica sumamente abstrata, e, em conseqüência desse nível de abstração, demasiado
imprecisa. Mesmo nos melhores textos sobre o tema é comum, aqui e ali, uma linguagem
perifrástica. Os confins teóricos e dogmáticos da tese da dimensão objetiva dos direitos
fundamentais ainda não estão satisfatoriamente definidos. Contudo, é inegável que o uso da tese
da dimensão objetiva é altamente funcional e útil e tem permitido, no âmbito de vigência dos mais
diferentes ordenamentos jurídicos, resolver - se artificialmente ou não é outra questão problemas de interpretação e aplicação dos direitos fundamentais que de outra forma talvez não
fosse possível”.
ALEXY, Roberto. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de estudios políticos y
constitucionales, 1993, p. 508-509. Uma resposta interessante à pergunta sobre o que é o caráter
objetivo dos direitos fundamentais como princípios é formulada por Alexy. A partir da construção
da jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão, Alexy fala sobre o provável significado do
caráter objetivo dos direitos fundamentais como princípios. Para o filósofo e jurista alemão, a
única interpretação plausível é “[...] aquélla según la cual lo objetivo es lo que queda cuando se
prescinde o se hace abstracción del costado subjetivo de los principios isfundamentales”.
Tradução livre: "[...] aquela segundo a qual o objetivo é o que permanece quando se prescinde ou
se faz abstração do flanco subjetivo dos princípios jusfundamentais". Para que o caráter objetivo
apareça, é necessário fazer uma tríplice abstração: do titular do direito fundamental, do
141
terceiro fundamento – isto é, o teor das normas de direitos fundamentais, além de
aferir ao indivíduo direitos subjetivos de defesa contra o Estado, também forma um
sistema de valores - ordem objetiva de valores, cujo cerne são o livre
desenvolvimento da personalidade humana e sua dignidade - com incidência sobre
todos os âmbitos jurídicos, incluindo o âmbito do direito privado.474
Outro fundamento assinalado pelo autor reside no princípio constitucional
da dignidade da pessoa475. Na CF (art. 1º, III), a dignidade da pessoa - na linguagem
da CF, “dignidade da pessoa humana” - é majorada à condição de fundamento da
República Federativa do Brasil. É um princípio constitucional fundamental autônomo
que se projeta sobre todas as normas constitucionais e infraconstitucionais, incidindo
de forma direta ou imediata sobre casos concretos específicos. Trata-se de uma
norma-princípio constitucional fundamental que vincula os poderes públicos e
também os particulares, sendo que a CF normatiza, principiologicamente, esferas da
vida nas quais o Estado não participa ou não o faz diretamente, esferas onde
destinatário do direito fundamental (sujeito obrigado) e de determinadas peculiaridades de seu
objeto. Alexy toma como exemplo a liberdade de opinião: o titular é o indivíduo; o destinatário, o
Estado; e o objeto, a omissão de intervenções estatais na liberdade de opinião. Fazendo a
abstração do flanco subjetivo, isto é, do titular, tem-se o princípio objetivo cujo conteúdo é o dever
prima facie do Estado de omitir intervenções na liberdade de opinião. Então é preciso realizar a
abstração do destinatário (do obrigado) e de determinadas peculiaridades do objeto (omissão de
intervenções estatais). Assim, “a través de esta triple abstracción, el derecho de a frente al Estado
para que éste no le impida las manifestaciones de opinión se convierte en un simple deber ser de
la libertad de opinión”. Em tradução livre: “mediante essa tríplice abstração, o direito de a [titular]
ante o Estado para que este não lhe impeça as manifestações de opinião se converte em um
simples dever ser da liberdade de opinião”.
474
STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares aos Direitos Fundamentais. São Paulo:
Malheiros, 2004, p. 106.
475
STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares aos Direitos Fundamentais. São Paulo:
Malheiros, 2004, p. 113-116. “A expressão 'dignidade da pessoa' - ou 'dignidade humana’ - é
vaga. Em razão dessa vagueza, ante os diferentes casos concretos de interpretação e aplicação
do princípio constitucional da dignidade da pessoa, nas quais se investiga se houve ou há a
violação do princípio, nem sempre o campo de referência (interpretativo e aplicativo) está bem
definido. Há casos em que é evidente a violação da dignidade da pessoa; em outros, a nãoviolação. Contudo, há casos-limítrofes (casos de limites de aplicação) em que há dúvidas sobre a
violação ou não da dignidade da pessoa, isto é, se o princípio aplica-se ou não. É o que, na teoria
geral do direito, chama-se ‘zona de penumbra’ ou ‘zona cinzenta’. [...] pode-se dizer que o
princípio constitucional fundamental da dignidade da pessoa ordena: (i) o respeito à pessoa como
ser autônomo, livre e valioso em si mesmo; (ii) o reconhecimento de cada pessoa,
independentemente das particularidades (traços ou características) e vicissitudes pessoais e
sociais, como ser singular, único e irrepetível; (iii) o reconhecimento de cada pessoa como uma
manifestação concreta da humanidade; (iv) a criação de condições, oportunidades e instrumentos
para o livre desenvolvimento da pessoa. Em contrapartida, o princípio constitucional da dignidade
da pessoa proíbe: (i) a ‘coisificação’ ou a ‘objetualização’ da pessoa; (ii) a ‘funcionalização’
(política, social, econômica, religiosa, científica, técnica) da pessoa; (iii) a privação, da pessoa, de
condições e de meios para uma sobrevivência livre, autônoma e decente; (iv) humilhações ou
vexações da pessoa; (v) a submissão da pessoa a uma posição servil; (vi) a eliminação total da
vontade e da possibilidade de livre escolha da pessoa.”
142
prevalece a ação dos particulares (enquanto detentores de poderes econômico,
social e cultural) e potencialidades violadoras da dignidade humana. Em epítome, a
otimização do respeito e da promoção à/da dignidade da pessoa em todos os
campos da vida social exige a vinculação dos particulares a direitos fundamentais;
direitos que são a expressão, em nível menos abstrato, da dignidade da pessoa.476
Estes são os fundamentos básicos e de maior alento dogmático apresentados
pelo autor. Contudo, ainda são enfatizados outros dois fundamentos adicionais e de
reforço à vinculação dos particulares aos direitos fundamentais.477 São eles: o
princípio constitucional da solidariedade478, que se projeta sobre todo ordenamento
jurídico e que exige do Estado ações positivas, normativas e fáticas, em prol do
bem-estar geral das pessoas, entre elas, a garantia efetiva dos direitos fundamentais
e o princípio da aplicação imediata dos direitos fundamentais479.
Acredita-se que, mesmo sendo aceita a possibilidade de vinculação dos
particulares aos direitos fundamentais, merece proeminência outro aspecto que tem
gerado grandes discussões doutrinárias, que diz respeito à aplicabilidade desses
direitos nas relações interprivadas.480 Nesse sentido, Fradera afirma que parte da
doutrina argumenta que a aplicabilidade deve ser operada de forma mediata, ou
seja, “através de lei ordinária, porquanto é o legislador ordinário que deve adequar a
476
477
478
479
480
STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares aos Direitos Fundamentais. São Paulo:
Malheiros, 2004, p. 117.
MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2004, p. 166. “O problema que se coloca diante da eficácia horizontal é o de que nas
relações entre particulares há dois (ou mais) titulares de direitos fundamentais, e por isso é
impossível afirmar uma vinculação (eficácia) semelhante àquela que incide sobre o Poder Público.
De qualquer forma, também diante da eficácia em relação aos particulares, vale a distinção entre
a dimensão objetiva e a dimensão subjetiva dos direitos fundamentais. Assim, além da incidência
das normas, como valores objetivos, sobre as relações entre particulares, um particular pode
afirmar o seu direito em relação ao outro, consideradas as particularidades da situação concreta e
eventual colisão de direitos.”
Na CF, o princípio da solidariedade está formulado expressamente: “Art. 3°. Constituem objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e
solidária”.
CF/88: § 1º do art. 5º, determina que “as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais
têm aplicação imediata”. Na literatura constitucional, diz-se que se trata do princípio da
aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais.
UNISC. Grupo de Pesquisa em Constitucionalização do Direito Privado. Disponível em
<http://www.direitosfundamentaiseprivado.blogspot.com> Acesso em: 10 dez. 2006. Conforme
enunciado, eficácia direta é a utilização direta da norma constitucional (direitos fundamentais)
como fonte normativa para a solução de conflitos entre particulares; eficácia indireta: É a
utilização da norma constitucional (direitos fundamentais) como fonte normativa para a solução de
conflitos entre particulares, após feita a análise da norma infraconstitucional, afastando-a ou
integrando-a à norma constitucional.
143
generalidade do preceito constitucional às especificidades das relações jurídicas de
natureza privada”.481 Defendendo essa mediatidade, sustenta a existência de um
conflito entre os princípios da igualdade e liberdade, incidentes, por exemplo, em um
contrato, onde a aplicação imediata do primeiro princípio resultaria numa redução do
segundo, abordando o tráfico jurídico.
Não é essa, contudo, a visão de outra parte da doutrina. Ao contrário, sustenta
o entendimento da aplicabilidade imediata482 dos direitos fundamentais nas relações
entre particulares. Esse posicionamento encontra-se edificado na força normativa da
Constituição e no princípio da unidade do ordenamento jurídico.
Portanto, sustenta-se como definição básica que, na ordem constitucional
brasileira, direitos fundamentais vinculam direta ou imediatamente os
particulares. Clarifique-se, porém, que não se trata de uma eficácia linear,
absoluta, universal e definida, abstratamente, de uma vez por todas. É, isto
483
sim, uma eficácia imediata ‘matizada’ ou ‘modulada’.
Assim também Sarlet adota essa posição e salienta o imperativo de se adotar
soluções diferenciadas aos casos concretos, não se admitindo a existência de
soluções uniformes, tendo inviabilidade uma eficácia direta de feições absoluta. Isso
porque, a eficácia direta nas relações entre particulares e a intensidade da
vinculação destes aos direitos fundamentais deve ser pautada pelas circunstâncias
do caso concreto.484
481
482
483
484
FRADERA, Véra Maria Jacob de. O direito dos contratos no século XXI: a construção de uma
noção metanacional de contrato decorrente da globalização e sob influência da doutrina
comparatista. In: DINIZ, M. H.; LISBOA, R. S. (Org.). O direito civil no século XXI. São Paulo:
Saraiva, 2003, p. 559.
SILVA, Virgilio Afonso da. A Constitucionalização do Direito – Os direitos fundamentais nas
relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 58. Silva aponta que “prescrever que
os direitos fundamentais têm aplicação imediata não significa que essa aplicação deverá ocorrer
em todos os tipos de relação ou que todos os tipos de relação jurídica sofrerão algum efeito das
normas de direitos fundamentais”.
STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares aos Direitos Fundamentais. São Paulo:
Malheiros, 2004, p. 273-274. Prossegue o autor: “A eficácia imediata ‘matizada’ ou ‘modulada’ de
direitos fundamentais nas relações entre particulares [...] é adequada ao fomento e ao alcance da
máxima efetivação possível dos direitos fundamentais e é consistente e conseqüente com o
conceito de uma Constituição como estrutura normativa básica do Estado e da sociedade e com a
posição preferencial dos direitos fundamentais na ordem constitucional da República Federativa
do Brasil. Ademais, a eficácia imediata ‘matizada’ é compatível com o projeto de superação da
contraposição ‘eficácia mediata versus eficácia imediata’ em direção às ‘soluções diferenciadas’”.
SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais e direito privado: algumas considerações em tomo
da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais. In: ______ (Org.) A Constituição
concretizada: construindo pontes com o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2000, p. 157.
144
[...] no âmbito da problemática da eficácia dos direitos fundamentais nas
relações entre particulares, vislumbra-se inequivocadamente a necessidade
- em face de conflito entre a autonomia privada (e liberdade contratual) e
outros direitos fundamentais - de uma análise tópico-sistemática, calcada
nas circunstâncias especificas do caso concreto e que, de modo geral,
deverá ser tratada de forma similar às hipóteses de colisão (conflito) entre
direitos fundamentais de diversos titulares. A meta posta é a de buscar-se
sempre uma solução embasada na ponderação dos valores em pauta,
norteada pela busca do equilíbrio e concordância prática [...], caracterizada,
em ultima instância, pelo não-sacrifício completo de um dos direitos
fundamentais em questão, assim como pela preservação, na medida do
485
possível, da essência de cada um.
O importante a ressaltar é, pois, a teoria da eficácia irradiante486; decorrência
da interpretação da dimensão objetiva dos direitos fundamentais, permite o
condicionamento de todo o sistema tanto jurídico como legislativo aos valores
determinantes de tais direitos. A teoria da eficácia confere à ordem jurídica uma
interpretação mais humanitária e envolvente das garantias constitucionais, a
dignidade da pessoa, igualdade substantiva, justiça social.487 Pode-se considerar
485
486
487
SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais e direito privado: algumas considerações em tomo
da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais. In: _____ (Org.) A Constituição
concretizada: construindo pontes com o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2000, p. 159.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2005, p. 378-379. “Nas relações entre particulares – para além da vinculação das
entidades dotadas de algum poder social e afora as hipóteses excepcionais ventiladas – é
possível sustentar, em qualquer hipótese, ao menos uma eficácia mediata (ou indireta) dos
direitos fundamentais, no âmbito do que os alemães denominaram eficácia irradiante
(Ausstrahlungswirkung), que pode ser reconduzida à perspectiva jurídica-objetiva dos direitos
fundamentais. Isto significa, em última análise, que as normas de direito privado não podem
contrariar o conteúdo dos direitos fundamentais, impondo-se uma interpretação das normas
privadas (infraconstitucionais) conforme os parâmetros axiológicos contidos nas normas de
direitos fundamentais, o que habitualmente (mas não exclusivamente) ocorre quando se trata de
aplicar conceitos indeterminados e cláusulas gerais do direito privado. Neste contexto, a função
jurídico-objetiva dos direitos fundamentais ‘traduz o seu reconhecimento como princípios
imediatamente conformadores da ordem jurídica, dotados de um efeito irradiante para as relações
sociais em que não participam entidades públicas, ou entidades a que tenham sido atribuídas
prerrogativas de direito público’. De acordo com a orientação dominante no Tribunal Federal
Constitucional da Alemanha, os direitos fundamentais exercem sua influência na esfera do direito
privado por intermédio dos dispositivos que regem cada área específica do direito, de modo
especial, por meio de cláusulas gerais e dos conceitos carentes de interpretação e integração.
Uma desconsideração desta eficácia irradiante, por outro Juízo, inclusive por intermédio de
controle das decisões judiciais atentatórias à Constituição e, de modo especial, aos direitos
fundamentais, por parte da jurisdição constitucional, ente nós exercida, em última instância, pelo
Supremo Tribunal Federal”.
Atualmente também se questiona o modelo liberal, principalmente na Europa, ganham relevância
teorias que pregam a nacionalização, democratização e humanização dos meios de produção,
todas, possuindo como base a idéia de intervenção do Estado nas relações privadas. Parte-se do
consenso de que os conceitos de liberdade e igualdade, que foram pressupostos da Revolução
Francesa, em 1789, não podem ser vistos e considerados em seu entendimento literal, ou seja,
como idéias literais. Os homens não nascem iguais, como também não vivem em condições de
igualdade. Alguns, por possuírem maior inteligência ou recursos econômicos, estão em posição
privilegiada em relação a outros. Para uns as oportunidades de crescer são maiores, enquanto
para outros são escassas. Uns podem investir, enquanto outros não possuem participação na
145
essa teoria de reflexão da dimensão objetiva como princípio hermenêutico e também
como mecanismo de controle da constitucionalidade.488 Assim, fortalecidos pela
eficácia irradiante, os direitos fundamentais tomam o lugar de eixo central no
ordenamento, norteador da legislação e jurisdição.
No caso brasileiro, este processo assume um relevo especial, em razão da
riqueza axiológica da Constituição de 1988, que conferiu absoluta
centralidade e primazia aos direitos fundamentais e está fortemente
impregnada por valores solidarísticos, de marcada inspiração
489
humanitária.
Com efeito, as novas leis adotadas devem estar imersas numa construção de
garantias constitucionais sob o prisma de proteção de valores de uma vida digna ao
homem.490 Como já citado, no Brasil, o aspecto é dado ao valor axiológico da
constituição de 1988, que permitiu o alcance na interpretação de outros ramos do
direito nesse mesmo contexto constitucional. O encontro do direito civil à ordem
constitucional dá-se nessa seara em que a questão fundamental é o princípio da
dignidade humana.
Para regular a produção de efeitos dos direitos fundamentais nas relações
privadas é necessário um modelo mais flexível que os modelos propostos
normalmente pela doutrina e pela jurisprudência. Esse modelo pressupõe
que, sempre que possível, os efeitos dos direitos fundamentais se farão
sentir nas relações privadas por intermédio do material normativo do próprio
direito privado. Isso significa conferir primazia à mediação que o legislador
ordinário faz entre a ordem constitucional e a ordem privada. Em alguns
488
489
490
produção de riquezas. Considerados materialmente desiguais, nota-se que a liberdade nas
relações privadas não poderá ser levada ao extremo, pois seu excesso poderá levar a injustiças,
principalmente nas relações contratuais, onde uma das partes, que é materialmente mais forte,
aproveita-se da fraqueza e sujeição alheia para captar-lhe a vontade. É justo que o sistema trate
as pessoas como desiguais, e, nas relações privadas, proteja a parte mais fraca para propiciar
uma situação de equilíbrio entre elas, como também para impedir a prevalência de interesses
unilaterais. O ente encarregado para este encargo é o Estado, e o instrumento para alcançar este
objetivo é o Direito. Necessária a releitura dos conceitos de liberdade e igualdade diante do
chamado Estado Social, que está mais comprometido com a coletividade, ao contrário do
chamado estado burguês, que é aparelhado para atender os interesses de uma minoria, e via de
regra, são os detentores do poder econômico.
SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lúmen Júris,
2004, p. 155.
SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lúmen Júris,
2004, p. 156.
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto
Alegre: Fabris, 1991, p. 15. “A Constituição não configura, portanto, apenas expressão de um ser,
mas também de um dever ser; ela significa mais do que o simples reflexo das condições fáticas
de sua vigência, particularmente as forças sociais e políticas. Graças a pretensão da eficácia, a
Constituição procura imprimir ordem e conformação à realidade política e social. [...] A força
condicionante da realidade e a normatividade da Constituição podem ser diferenciadas; elas não
podem, todavia, ser definitivamente separadas ou confundidas.”
146
casos, seja por omissão, seja por insuficiência legislativa, os efeitos dos
direitos fundamentais somente podem ser direitos, havendo a necessidade,
portanto, de uma aplicação direta dos direitos fundamentais no nível
interprivados. Esse modelo pretende, portanto, romper com a dicotomia
entre efeitos diretos e indiretos, conciliando-os na mesma construção
491
teórica.
Acima de tudo, cumpre registrar que, não obstante a discussão sobre a forma
como se deve dar essa vinculação dos direitos fundamentais nas relações privadas,
observa-se uma tendência de desamparo ao longo dos anos, das posições radicais
de defesa de um ou outro lado.492 Não existe, no Brasil, presentemente, uma
vertente exclusiva e excludente da inexistência de qualquer possibilidade de
vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, como também, do
condicionamento absoluto dos particulares a esses direitos como se fosse poder
público.
Diante dessa realidade, ganham força o dirigismo contratual, a função social do
contrato e a funcionalização do direito de propriedade. As titularidades jurídicas,
atualmente, não são vistas somente como bens de interesse individual, mas sim
como detentoras de uma potencialidade social. A propriedade já não mais é um
direito absoluto e perpétuo, ou seja, ela segue como um direito individual, mas sem
esquecer os anseios coletivos. O contrato, que é fundado na autonomia da vontade,
segue obrigando as partes; porém, está submetido ao princípio da supremacia da
ordem pública, relatividade e, principalmente, da boa-fé.
A visão social das relações privadas acaba por impor uma nova postura do
poder público. O Estado é garantidor do equilíbrio na ordem privada; por isso, alguns
institutos básicos do direito privado devem ser disciplinados pela Constituição
Federal, que é considerada o instrumento delimitador e regulador das funções
estatais.
É neste contexto que assume relevo a assim denominada [...] perspectiva
(ou dimensão) jurídico-objetiva dos direitos fundamentais, de acordo com a
qual estes exprimem determinados valores que o Estado não apenas deve
491
492
SILVA, Virgilio Afonso da. A Constitucionalização do Direito – Os direitos fundamentais nas
relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 28.
REIS, Jorge Renato dos. A vinculação dos particulares aos Direitos Fundamentais nas relações
interprivadas: breves considerações. In: LEAL, Rogério Gesta, REIS, Jorge Renato dos (Org.)
Direitos Sociais & Políticas Públicas. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2005, t. 5, p. 1510.
147
respeitar, mas também promover e zelar pelo seu respeito, mediante uma
proposta ativa, sendo, portanto, devedor de uma proteção global dos
direitos fundamentais. A propósito, verifica-se que a doutrina tende a
reconduzir o desenvolvimento da noção de uma vinculação também dos
particulares aos direitos fundamentais ao reconhecimento da sua dimensão
objetiva, deixando de considerá-los meros direitos subjetivos do indivíduo
perante o Estado. Há que acolher, portanto, a lição de Vieira de Andrade,
quando destaca os dois aspectos principais e concorrentes da problemática,
quais sejam, a constatação de que os direitos fundamentais, na qualidade
de princípios constitucionais e por força do princípio da unidade do
ordenamento jurídico, se aplicam relativamente a toda a ordem jurídica,
inclusive privada, bem como a necessidade de se protegerem os
particulares também contra os atos atentatórios aos direitos fundamentais
493
provindos de outros indivíduos ou entidades particulares.
Por um contexto cada vez mais caracterizado, é conclusivo que os particulares
estão vinculados aos direitos fundamentais nos negócios celebrados, já que a visão
atual de Constituição não está limitada a interceder nas relações entre Estado e
particulares, uma vez que se trata de Lei Fundamental do Estado e da sociedade, e
designa-se a regulamentar todas as relações sociais, ainda que constituídas entre
sujeitos privados.494
Naturalmente importante, nesse contexto, é a constatação de que existem
situações de desigualdades nas relações privadas quando uma das partes possui
supremacia econômica e, para que não exista uma situação de mera “submissão de
uma parte com relação a outra”, devido a essa desigualdade que é inerente, faz-se
necessário que entre as relações privadas também ocorra o respeito aos direitos
fundamentais.
493
494
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2005, p. 374-375.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2005, p. 376. “Sem adentrar especificamente o mérito destas concepções e das
variantes surgidas no seio da doutrina constitucional, é possível constatar [...] uma substancial
convergência de opiniões no que diz com o fato de que também na esfera privada ocorrem
situações de desigualdade geradas pelo exercício de um maior ou menor poder social, razão pela
qual não podem ser toleradas discriminações ou agressões à liberdade individual que atentem
contra o conteúdo em dignidade da pessoa humana dos direitos fundamentais, zelando-se, de
qualquer modo, pelo equilíbrio entre estes valores e os princípios da autonomia privada e da
liberdade negocial e geral, que, por sua vez, não podem ser completamente destruídos. Ainda
neste contexto, sustentou-se, acertadamente, que em qualquer caso e independentemente do
modo pelo qual se dá a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais (isto é, se de forma
imediata ou mediata), se verifica, entre as normas constitucionais e o direito privado, não o
estabelecimento de um abismo, mas uma relação pautada por um contínuo fluir, da tal sorte que,
ao aplicar-se uma norma de direito privado, também se está a aplicar a própria Constituição. É
justamente por esta razão que, para muitos, o problema da vinculação dos particulares aos
direitos fundamentais constitui, em verdade, mais propriamente um problema relativo à
conciliação dos direitos fundamentais com os princípios basilares do direito privado.”
148
Também, evidencia-se que nenhuma das teorias sobre a eficácia dos direitos
fundamentais nas relações privadas pode ser afastada, porque é plausível a
aplicação de todas elas, dependendo do fato real. Portanto, “eficácia mediata e
eficácia imediata não são formas incompatíveis. Onde termina (ou não há) a
possibilidade de viabilização da primeira inicia a atuação da segunda”.495 A
problemática está em decidir, no caso concreto, as circunstâncias em que haverá a
incidência direta das normas constitucionais, e as circunstâncias em que a aplicação
deverá ocorrer através da mediação legislativa.
O próximo capítulo terá como elemento central a função social do contrato sob
a influência da Constituição Federal de 1988, que está renovando a dogmática
contratual, assim como a função social do contrato como instrumento de efetivação
dos direitos fundamentais nas relações entre particulares. O objetivo é refletir a
respeito do entendimento contemporâneo desse tema, compreendido em sua
universalidade, através das cláusulas gerais, a busca da igualdade substancial e a
prevalência do interesse social sobre o individual, bem como os principais desafios e
perspectivas dessa nova concepção.
495
STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares aos Direitos Fundamentais. São Paulo:
Malheiros, 2004, p. 266. Continua o referido autor: “Ambas são exigências da (e garantem a)
eficácia de direitos fundamentais como princípios objetivos de todo o ordenamento jurídico.”
149
3
A FUNÇÃO
EFETIVAÇÃO
SOCIAL
DOS
DOS
CONTRATOS
DIREITOS
COMO
FUNDAMENTAIS
INSTRUMENTO
NAS
DE
RELAÇÕES
INTERPRIVADAS
Com a Constituição Federal de 1988, característica de um Estado social, onde
há ingerência do Estado no campo privado, o contrato deixou de ser um instrumento
de concretização meramente individual, para realizar uma função social, voltada
para a coletividade. A influência do direito público sobre o privado destacou, no
ordenamento jurídico, os valores e princípios constitucionais, dando primazia à
pessoa humana e a sua dignidade. Nesse contexto, torna-se imperativo fazer uma
releitura do direito contratual à luz dos princípios e garantias constitucionais. O
grande sinal da incidência desses valores constitucionais e da interferência do
Estado nas relações contratuais privadas foi a relativização do princípio da
autonomia da vontade como culminante balizador do direito contratual, limitando-se
à liberdade de contratar, para que fossem impedidos descomedimentos nas relações
contratuais. Isso traduz uma inquietação com a edificação de uma ordem jurídica
mais compassiva para com os problemas da sociedade contemporânea.
Nesse sentido, ainda, é objeto do presente capítulo traçar algumas
considerações sobre a função social do contrato, também, como cláusula geral que,
enquanto forma legislativa impregnada de deliberada fluidez, reenvia o juiz a um
princípio haurido do próprio ordenamento. Para que isso ocorra, é necessário
respeitar o princípio da igualdade substancial e, com efeito, a prevalência do
interesse social sobre o individual.
Também, abordar-se-á o princípio da dignidade da pessoa humana como
paradigma do direito privado. O tema ganha relevância neste âmbito do
ordenamento jurídico não só no que se refere ao dogma civilístico da autonomia
privada, como também, no que tange à própria pessoa e à efetivação dos direitos
fundamentais nas relações entre particulares.
150
3.1 Constituição Federal e a Concepção Social do Contrato
A argumentação que se desenvolveu anteriormente permite destacar que a
Constituição Federal de 1988 interveio e modificou o modelo clássico de contrato
fundamentado em interesses individuais496, imperando o interesse social. A ação
estatal sobre os contratos é de importância basilar, devido a sua forma como
instituto essencial da economia de mercado, resultando na transformação dos
contratos em instrumentos eficazes regressados ao abarcamento não somente dos
fins aspirados pelas partes, mas também, uma vez acomodados pelo Estado, no
alcance dos fins da ordem econômica.497-498
A nova visão do contrato é uma concepção social que não deve contradizer a
noção de justiça. Essa é a função social do contrato atualmente exaltada,
intensamente atrelada ao conceito de justiça comutativa.499
[...] o interesse fundamental da questão da função social está em despertar
a atenção para o fato de que a liberdade contratual não se justifica, e deve
cessar, quando conduzir a iniqüidades, atentatórias de valores de justiça,
que igualmente têm peso social (sic). O problema, também aqui, estará na
500
determinação do ponto em que liberdade e justiça se equilibrem.
496
497
498
499
500
O modelo liberal de contrato tornou-se inadequado, incompatível com uma função que ultrapassa
a autonomia e o interesse dos indivíduos contratantes.
A intervenção estatal nas relações jurídicas privadas é característica do Estado social, em
decorrência das transformações da sociedade que passou a ser industrializada, de consumo e
massificada. Assim, as relações contratuais passaram a ter um enfoque social.
SILVA, Luis Renato Ferreira da. A função social do contrato no novo Código Civil e sua conexão
com a solidariedade social. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). O novo Código Civil e a
Constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 137. Aqui também importa consignar,
entre outros, a contribuição de Silva, que afirma: “são os contratos que mantém a agilidade das
relações econômicas em uma sociedade de mercado, uma ‘sociedade de direito privado’, na qual
o direito privado assume um ‘papel constitutivo’ e que deve conjugar tanto um aspecto utilitarista
(de maximização das oportunidades econômicas) quanto um aspecto ético (de comportamento
médio de oportunidades e vantagens recíprocas). Assim, mesmo quem adote um ponto de vista
mais liberal do direito, afastando intervenções maiores nas atividades privadas, reconhece que há
um campo em que o Estado se imiscui para permitir a utilidade e a eticidade das relações
contratuais. Por isso, pode-se dizer que o contrato cumprirá a sua função social na medida em
que permita a manutenção das trocas econômicas. Como instrumento de circulação de riquezas,
ele estará atendendo às razões de seu reconhecimento jurídico na medida em que estiver
mantendo esta circulação”.
DONNINI, Rogério Ferraz. A Constituição Federal e a concepção social do contrato. In: VIANA, R.
G. C.; NERY, R. M. de A. (Org.). Temas atuais de direito civil na Constituição Federal. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2000, p. 73.
NORONHA, Fernando. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada,
boa-fé, justiça contratual. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 81-82.
151
Perlingieri assevera que a interpretação mais eficaz é a que determina o
binômio liberdade-igualdade dentro do juízo de “igual dignidade social”.501 Já, Pina
preleciona o conceito de “igual liberdade para todos” 502, entendendo que a liberdade
ou a autonomia privada503 precisa ser abrigada pelo Estado, garantindo uma
igualdade nas relações privadas. Isso significa buscar “um novo equilíbrio entre os
interesses dos particulares e necessidades da coletividade”.504 O desenvolvimento
do Estado liberal para social505, visto a partir de uma perspectiva histórica, acarretou
intensas transformações para a relação contratual, assegurando um tratamento
igualitário e digno.
Esse tratamento, abarcado na Carta Magna brasileira (art. 1º, inc. III), refletiu
igualmente na constituição do contrato. Limita-se à liberdade total para considera-Ia
501
502
503
504
505
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução de
Maria Cristina De Cicco. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 37. Em linguagem simples, o
argumento de Perlingieri sobre essa expressão parece ser o seguinte: "igual dignidade social
como o instrumento que confere a cada um o direito ao respeito inerente à qualidade de homem,
assim como a pretensão de ser colocado em condições idôneas a exercer as próprias aptidões
pessoais, assumindo a posição a estas correspondentes".
PINA, Antonio López. La garantía constitucional de Ios derechos fundamentales. Madrid: Servicio
de publicaciones de Ia Facultad de Derecho, Universidad Complutense - Editorial Civitas, 1991. p.
21.
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução de
Maria Cristina De Cicco. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 220 e 228. Perlingieri, ao tratar
da autonomia privada do proprietário, fundamentado na Constituição italiana (art. 41, § 3°), afirma
que os atos negociais do proprietário não estão limitados somente aos fins anti-sociais ou nãosociais, mas precisam concretizar o projeto constitucional em que estão inseridos, para terem
reconhecimento jurídico, e tais projetos nem sempre se relacionam ao outro contratante. Os atos
da pessoa jurídica titular de propriedade, que exerce atividade empresária, por exemplo, não
podem causar danos ao homem, à saúde da comunidade, ao meio ambiente, de acordo com a
sistemática constitucional adotada de tutela destes valores. Ao oposto, a autonomia privada do
proprietário deve se guiar pelo bem-social, liberdade e dignidade humana.Também, acredita que
a “livre-iniciativa econômica, mesmo sendo uma noção autônoma em respeito àquela de
propriedade, deve ser estudada também no âmbito desta”.
GALGANO, Francesco. II diritto privato fra Codice e Costituzione. 2. ed. Bolonha: Zanicheli, 1979,
p. 152.
Além de o Estado Social apresentar uma Constituição que trata da ordem econômica e social,
portanto, também dirigindo a vida dos contratos privados, há outra que tem uma função
fundamental no ordenamento jurídico: a proliferação dos microssistemas. Estes são leis especiais
que tratam de matérias específicas. A fundamentação para a proliferação dos microssistemas
encontra-se na insuficiência do Código Civil, com seus ideais liberais-individuais de atender a
todas as (novas) demandas (relações) do Estado Social. Evidenciando a característica
multidisciplinar dos microssistemas, cita-se o Código de Defesa do Consumidor (Lei n° 8.078/90),
que traz matéria: de Direito Civil (e.g.: Título I, Capítulo IV - Da Qualidade de Produtos e Serviços,
da Prevenção e da Reparação dos Danos, artigos 12 a 28; Capítulo VI - Da Proteção Contratual,
artigos 46 a 54, de Direito Administrativo (Título I, Capítulo VII - Das Sanções Administrativas,
artigos 55 a 60), de Direito Penal (Título II - Das Infrações Penais, artigos 61 a 80) e de Direito
Processual Civil (Título III, Capítulo I - Das disposições Gerais, artigos 81 a 90; Capítulo II - Das
Ações Coletivas para a Defesa de Interesses, artigos 91 a 100; Capítulo III – Das Ações de
Responsabilidade do Fornecedor de Produtos e Serviços, artigos 101 e 102; e Capítulo IV - Da
Coisa Julgada, artigos 103 a 104).
152
como uma igualdade jurídica substancial, derivada de princípio constitucional. Nesse
contexto, percebe-se que o contrato, sob o aspecto de direito subjetivo e individual,
não pode prejudicar os interesses da coletividade.
É uma nova concepção de contrato no Estado Social, em que a vontade
perde a condição de elemento nuclear, surgindo em seu lugar elemento
estranho às partes, mas básico para a sociedade como um todo: o interesse
506
social.
Nessa ordem de idéias, o objetivo é salientar que o contrato não pode ser
analisado apenas como uma ação que diz respeito às partes, todavia necessita ser
percebido como instrumento de realização do bem comum, conciliando a liberdade
individual e a solidariedade social.507 Surge, então, a necessidade da ingerência do
Estado nas relações contratuais, no desígnio de relativizar o antigo dogma da
autonomia da vontade diante das novas inquietações sociais. Ou seja, o contrato
deve almejar o bem-estar social (princípio da igualdade substancial - CF, art. 3º, inc.
III).
Contratar é um direito basilar do indivíduo, arraigado no direito natural. Por
isso, a livre iniciativa e a autonomia privada encontram-se do mesmo modo
assentadas sob garantias constitucionais e somente são limitadas na adjacência da
lei - princípio da legalidade.
A função mais enfatizada do contrato é a de proporcionar a circulação de
riqueza, transferindo-a de um patrimônio para outro.508 A constituição econômica de
uma sociedade não é interesse individual, mas abrange a todos. Portanto, a função
social do contrato509-510 deve harmonizar os interesses individuais e da sociedade e,
506
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das
relações contratuais. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 211.
507
FERREIRA, Carlos Alberto Goulart. Equilíbrio contratual. In: LOTUFO, Renan (Coord.). Direito civil
constitucional. São Paulo: Max Limonad, 1999, p. 95 e 113, Caderno I. Ferreira reflete que: "[...] a
função social do contrato repousa na harmonia entre a autonomia privada e a solidariedade
social. Fala-se, por isso mesmo, na transformação da moral individualista em moral social, dos
códigos de puros direitos privados em códigos de direito privado social".
508
ROPPO, Enzo. O contrato. Coimbra: Almedina, 1988, p. 12 et seq.
509
REALE, Miguel. O projeto de Código Civil: situação atual e seus problemas fundamentais. São
Paulo: Saraiva, 1986, p. 32. Para o autor, o princípio da função social do contrato é mero corolário
dos imperativos constitucionais concernentes à função social da propriedade e à justiça que deve
nortear a ordem econômica.
510
NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva
civil-constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 223-224. Na atual fase de entendimento da
153
ainda, funda-se na preservação da dignidade da pessoa humana, escopo
fundamental do texto constitucional.
O contrato moderno deverá manter como grande objetivo a circulação de
riquezas. Entretanto, estas trocas econômicas deverão ser justas e úteis.
Além disso, os pactos devem atender aos ditames da justiça social, boa-fé,
equilíbrio entres as partes e deveres de cooperação. As relações contratuais
que estiverem de acordo com estes preceitos estarão cumprindo com a sua
511
função social.
A nova concepção social512-513 dos contratos é a concretização da eqüidade
511
512
513
doutrina nacional acerca da função social do contrato, e constatada a indefinição do tema, Nalin
sugere uma divisão da função social em intrínseca e extrínseca. “A primeira, intrínseca, é relativa
à observância de princípios novos ou redescritos (igualdade material, eqüidade e boa-fé objetiva)
pelos titulares contratantes, todos decorrentes da grande cláusula constitucional de solidariedade,
sem que haja um imediato questionamento acerca do princípio da relatividade dos contratos,
insculpido no art. 1.165 do Code (‘as convenções não produzem efeito que não entre as partes
contratantes ...’), corolário lógico do princípio da liberdade contratual. Seu perfil extrínseco (fim
coletividade), por sua vez, rompe com o aludido princípio da relatividade dos efeitos do contrato,
preocupando-se com suas repercussões no largo campo das relações sociais, pois o contrato em
tal desenho passa a interessar a titulares outros que não só aqueles imediatamente envolvidos na
relação jurídica de crédito. Coletividade, igualdade material, eqüidade e boa-fé objetiva são todas
ferramentas legais disponíveis ao intérprete que atendem à inviolabilidade dos direitos
fundamentais do homem e à inderrogabilidade dos deveres de solidariedade econômica, em
contexto social insuperável imposto à empresa, propriedade e ao contrato, que têm relevante
função social, concretizadora dos valores da pessoa humana”.
.
ZINN, Rafael Wainstein. O contrato em perspectivas principiológica: novos paradigmas da teoria
contratual. In: ARONNE, Ricardo (Org.). Estudos de Direito Civil – Constitucional. v. 1. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 139.
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. A função social do contrato. Revista de Direito
Civil, São Paulo, n. 45, p. 145, jul./set. 1988. "Não é possível negar a urgência que aflui, no
sentido de se recuperar o equilíbrio social, refazendo-se, de alguma forma, as matrizes filosóficas
do Direito. A doutrina da função social emerge, assim, como uma dessas matrizes, importando
em limitar institutos de conformação nitidamente individualista, de modo a atender os ditames do
interesse coletivo, acima daqueles do interesse particular, e, importando, ainda, em igualar os
sujeitos de direito, de modo que a liberdade que a cada um deles cabe, seja igual para todos.”
NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva
civil-constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 233 e 254. O não-cumprimento da função
social dos contratos autoriza o juiz a decretar a nulidade virtual das cláusulas contratuais ou
ainda, do próprio contrato. A nulidade seria mais apropriada do que a anulabilidade para os
contratos que não atendam a sua função social, porque objetiva à tutela de valores sociais, sendo
que a segunda busca a proteção dos interesses individuais. Assim, se a não-funcionalização dos
pactos significa um ataque a valores como o da dignidade da pessoa humana, da justiça social e
da solidariedade, entre outros, sempre que esta ofensa ocorrer deverá ser declarada a nulidade
do contrato. "Mostra-se indiscutível a importância do julgador, na construção desta nova
proposição contratual, sobretudo valorizando a solidariedade constitucional e preenchendo a
cláusula geral da boa-fé”. O Poder Judiciário deverá se conscientizar que o contrato, atualmente,
é uma relação jurídica complexa e solidária. A função social dos contratos deverá ser aplicada
pela conjunção dos valores do Código Civil e da CF. Se contrariado as normas de ordem pública
instituído no CC e na CF, deve-se nulificar as cláusulas ou contratos que os afrontem. Esta
nulidade tem como objetivo garantir a função social do contrato e da propriedade. MELLO,
Adriana Mandim Theodoro de. A função social do contrato e o princípio da boa-fé no novo Código
Civil brasileiro. Revista Jurídica, Porto Alegre, n. 294, p. 38, abr. 2002. Contudo, deve-se ter
precaução na análise dos casos concretos à luz da função social, porquanto a aplicação
154
contratual, isto é, o real equilíbrio entre direitos e obrigações. A justiça contratual514
localiza-se na equivalência das prestações, na proteção da confiança e da boa-fé
das respectivas partes. Assim sendo, o declarante deve responder pela confiança
que o outro contratante depositou nele, garantindo mais segurança às relações
contratuais.
Destaca-se,
também,
que
para
obter
a
eqüidade
contratual,
imprescindível à influência do Estado no sistema contratual que, através das leis,
busca limitar a autonomia privada,
Procura-se, através de mecanismos legais, evitar as desigualdades
econômicas, de forma a equilibrar os interesses das partes. Por isso
mesmo, fala-se em igualdade substancial no sentido de obrigar o Estado,
através de mecanismos legais a intervir nas relações privadas para evitar as
515
desigualdades.
Assim, principiou-se uma legislação intervencionista dos Estados sociais,516
estreitando a autonomia e buscando garantir uma igualdade jurídica substancial.517
514
515
516
517
indiscriminada poderia ter efeito num exagerado enfraquecimento dos interesses individuais dos
contratantes. O que deve acontecer é a harmonização entre os interesses da sociedade e dos
indivíduos. A autora complementa: "Mas não poderá o aplicador do direito arvorar-se de
realizador de políticas sociais tendentes a realizar a redistribuição de riquezas e a política social
que entender mais justa. A autonomia da vontade é garantia que só cede em face do interesse
público e nos termos da lei. Só a deformidade, o absurdo e o teratológico exercício do direito de
contratar, que atente contra a regularidade das relações privadas e leve a aviltar os próprios
fundamentos, as garantias e os valores sociais que sustentam e protegem a liberdade; em que
serão passíveis de invalidação por intervenção do juiz".
NORONHA, Fernando. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada,
boa-fé, justiça contratual. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 215. Como observa, muito
pertinentemente, Noronha, "a justiça contratual é princípio fundamental dos contratos. Se a justiça
costuma ser representada pela balança de braços equilibrados, a justiça contratual traduz,
precisamente, a idéia de equilíbrio que deve haver entre direitos e obrigações das partes
contrapostas numa relação contratual".
FERREIRA, Carlos Alberto Goulart. Equilíbrio contratual. In: LOTUFO, Renan (Coord.). Direito civil
constitucional. São Paulo: Max Limonad, 1999, p. 64.
NERY JÚNIOR, N. et aI. Código de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999, p. 345. Nesse sentido, merece
transcrição a lição de Nery Júnior: "o excesso de liberalismo, manifestado pela preeminência do
dogma da vontade sobre tudo, cede às exigências da ordem pública, econômica e social, que
devem prevalecer sobre o individualismo, funcionando como fatores limitadores da autonomia
privada individual, no interesse geral da coletividade".
DONNINI, Rogério Ferraz. A Constituição Federal e a concepção social do contrato. In: VIANA, R.
G. C.; NERY, R. M. de A. (Org.). Temas atuais de direito civil na Constituição Federal. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2000, p. 76. Oportunamente, o autor escreve: "[...] a intenção do legislador
foi a de superar a noção individualista do direito contratual, buscando, assim, o ideal de justiça,
por meio da concepção social do contrato".
155
Na diretiva da sociabilidade518, é indispensável averiguar a influência da
Constituição Federal nas relações entre os particulares mediante os reflexos dos
valores, princípios e direitos essenciais constitucionais nas relações contratuais. A
partir do exposto, ganha relevância o aspecto de que os contratos assumem cada
vez mais seu aspecto social, com o desígnio de atenuar as desigualdades das
partes contratantes e o desequilíbrio demasiado da prestação de uma das partes.
O dirigismo contratual é encontrado em distintos artigos da Constituição
Federal de 1988. Tem-se, como exemplo, nos Títulos II e VII o art. 5º, inciso XXIII e
art. 170, III,519 que tratam da função social do contrato. Esses dispositivos
determinam que a propriedade atenderá a sua função social.520-521 Assim, a
realização da função social da propriedade apenas acontecerá se igual princípio for
alastrado aos contratos, cujo exercício não interessa unicamente às partes, mas a
toda coletividade.522 Ainda nos mesmos Títulos, o art. 5°, inciso XXXII e 170, inciso
V contemplam a proteção ao consumidor.523 O art. 170 apresenta os princípios
gerais da atividade econômica, os quais devem nortear a vida dos contratos. Os
518
519
520
521
522
523
REALE, Miguel. O projeto de Código Civil: situação atual e seus problemas fundamentais. São
Paulo: Saraiva, 1986, p. 9. A expressão é do professor Reale.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Direitos do Consumidor, a Busca de um Ponto de Equilíbrio
entre as Garantias do Código de Defesa do Consumidor e os Princípios Gerais do Direito Civil e
do Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 17. Ainda, com semelhante enfoque
de atrelamento, o autor citado conclui que "[...] é forçoso reconhecer que nosso Estado se acha
estruturado constitucionalmente à base de compromissos notórios com a autonomia da vontade
(art. 5º, caput, e inciso lI); com a garantia da propriedade privada (arts. 5º, inciso XXII, e 170,
inciso II); com a livre iniciativa (arts. 1°, inciso IV, e 170, caput) e com a justiça e a segurança das
relações jurídicas (valores 'supremos' conforme o Preâmbulo da Carta Magna)".
Como o meio da riqueza, da propriedade circularem é o contrato, logo, o princípio da função
social, também o atinge.
MARTINS-COSTA, J.; BRANCO, Gerson. Diretrizes teóricas do novo Código Civil brasileiro. São
Paulo: Saraiva, 2002, p. 158. Oportuna lembrança de Martins-Costa, quando ressalta: “Assim
como ocorre com a função social da propriedade, a atribuição de uma função social ao contrato
insere-se no movimento da funcionalização dos direitos subjetivos”.
A função social, em geral, traz no seu bojo a idéia de supremacia do interesse público sobre o
privado, e também, do interesse social em detrimento do meramente individual.
Especificamente o art. 5°, no seu inciso XXXII, de termina que o Estado promoverá, na forma da
lei, a defesa do consumidor. A expressão "na forma da lei" expressa a criação de um lei especial
que trata exclusivamente da tutela do consumidor, o que foi efetivado pela Lei n° 8.078 de 11 de
setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), publicada no dia 12 de setembro de 1990.
Importante destacar que o CDC trouxe uma nova concepção contratual, rompendo com a clássica
noção de contrato. O Estado incide na relação contratual, ou seja, na autonomia de vontade, por
intermédio da vedação de cláusulas abusivas e com a conseqüente declaração, através da via
jurídica, de nulidade da cláusula. CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Fundamentos da
Constituição. Coimbra: Coimbra, 1991, p. 99. Importante destacar que os direitos fundamentais
não se encontram compartimentalizados em seção ou capítulo, pois permeiam todo o texto
constitucional, devido a relação entre Estado de Direito Democrático e direitos fundamentais.
156
princípios524 são: soberania nacional, propriedade privada, função social da
propriedade, livre concorrência, defesa do consumidor e do meio ambiente, redução
das desigualdades regionais e sociais, busca do pleno emprego, tratamento
favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e
que tenham sua sede e administração no país. A Constituição, ao garantir a livre
iniciativa, confirma a manutenção do regime capitalista. Porém, este condicionado a
um estágio mais humanizado de forma a permitir a legítima igualdade das partes,
por meio da distribuição eqüitativa da riqueza e conforme os ditames da justiça
social.525 Identifica-se que a ideologia econômica estabelecida é a ordem capitalista
da livre iniciativa, porém limitada pela justiça social fundada nos princípios
destacados. Assim, é adequado que se confira ao contrato uma função social, a fim
de que seja finalizado em benefício dos contratantes, sem colisão com o interesse
público.526 Como se observa, a função social do contrato não existe para impedir
que as partes livremente o concluam, mas para que o acordo de vontades não se
confirme em prejuízo da coletividade, e sim represente um dos seus meios de
afirmação e desenvolvimento.
Nalin defende que “funcionalizar, na perspectiva da Carta de 1988, significa
oxigenar as bases (estruturas) fundamentais do Direito com elementos externos à
sua própria ciência”.527 A busca pela função social dos contratos, em uma
perspectiva constitucional, passaria pela ação de embasamento externo ao direito,
como a sociologia e a filosofia. Assim, poder-se-ia obter uma ordem social mais
justa, atendendo as aspirações da sociedade. O mesmo autor complementa
asseverando que “funcionalizar, sobretudo, em nosso contexto, é atribuir ao instituto
524
525
526
527
OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Empresa – Ordem Econômica – Constituição. Revista dos
Tribunais. São Paulo, a. 87, v. 758, dez. 1998. Sobre esses princípios, Oliveira adverte que são
pressupostos: a soberania (inc. I), a propriedade privada (inc. II), que somente é perdida através
de desapropriação (inc. XXIV do art. 5°), sendo imp rescindível que ela tenha função social (inc.
III). Essencialmente, a ordem econômica assenta-se na livre concorrência (inc. IV), o que
pressupõe igualdade de oportunidade a todos, surgindo a necessidade de defesa contra abusos
do poder econômico. Interessante a defesa do consumidor (inc. V), do meio ambiente (inc. VI),
tudo propiciando caminho para a redução das desigualdades regionais e sociais (inc. VII) e a
liberdade de iniciativa enseja a busca do pleno emprego (inc. VIII).
ALBUQUERQUE, Fabíola Santos. Liberdade de contratar e livre iniciativa. In: RAMOS, Carmem
Lucia Silveira (Coord.). Direito Civil Constitucional: situações patrimoniais. Curitiba: Juruá, 2002,
p. 108.
O § 4° do art. 173 da CF, não admite negócio juríd ico que demande abuso do poder econômico
que objetive à dominação de mercados, à eliminação da concorrência e aumento arbitrário dos
lucros.
NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva
civil-constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 215.
157
jurídico uma utilidade ou impor-lhe um papel social [...]”.528
Nos contratos529, para que se abordasse a idéia de função social, foi
necessário limitar a autonomia da vontade, por meio da superioridade do interesse
coletivo. Outro fator importante na busca dessa função social é a boa-fé, instrumento
cogente para tornar as relações contratuais mais equilibradas. Para que um contrato
atenda ao seu desígnio primordial, de “servir de instrumento de operações
econômicas e veículo de realização da vontade humana na construção da
sociedade”,530 é necessária a sua funcionalização. A justiça contratual, através da
constitucionalização dos contratos e da busca de sua função social, acarretou
também modificações nas obrigações de devedores e credores. O credor era o
onipotente e para quem tudo era aceitável. Entretanto, hoje em dia, credor e devedor
praticamente se equivalem em adjacência de obrigações.531 O devedor começou a
ter direito ao exato adimplemento de sua obrigação, que se funda não somente em
liberação do seu débito, como, ainda, tem relação com um interesse de ordem moral
em cumprir a avença.532
O credor passa a ter um dever de cooperação para com o devedor. Essa
alteração deve-se a uma maior aplicação do princípio da boa-fé. Os contratos não
devem ser vistos como uma simples relação de débito e crédito, e sim como um
528
NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva
civil-constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 215.
529
NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva
civil-constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 225-226. Valendo-se, aqui, da idéia de Nalin,
importante destacar que: “Os deveres laterais, também conhecidos como deveres de proteção, de
conduta ou correlatos, são justamente aqueles que não possuem um desenho legal pré-descrito,
nem chegam a constituir uma prestação específica aos contratantes, mas antes, objetivam criar
um ambiente de tutela à pessoa do contratante e aos seus bens jurídicos (materiais e imateriais),
contra os riscos inerentes ao cumprimento da obrigação principal e das acessórias. Apesar da
ausência de definição de uma obrigação específica, certa conduta lesiva à proteção geral do
contratante pode levar à quebra do contrato, por meio de sua violação positiva. Deveres laterais e
violação positiva do contrato são figuras indispensáveis na atual contratualística, uma vez que a
partir delas se revela a complexidade contratual, demandando do intérprete grande sensibilidade
e conhecimento do sistema. Nelas, [...] reside promissor marco, a partir do qual o contrato,
mesmo voluntariamente executado, não chega a cumprir a sua função social, quando, por
exemplo, atenta contra a dignidade do contratante”.
530
MELLO, Adriana Mandim Theodoro de. A função social do contrato e o princípio da boa-fé no novo
Código Civil brasileiro. Revista Jurídica, Porto Alegre, n. 294, p. 35, abr. 2002.
531
NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva
civil-constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 144-215.
532
NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva
civil-constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 193-198.
158
negócio no qual deve haver múltipla cooperação entre os sujeitos.533 “Nesta idéia de
cooperação entre os contratantes, mas também em relação a terceiros, é que se
concretiza, no direito contratual, a idéia solidarista insculpida no inciso I do artigo 3°
da Constituição Federal”.534
Tal abordagem, tão circunscrita, significa, contudo, que os princípios da
solidariedade, juntamente com o da boa-fé, deverão agir conjuntamente para que se
obtenha a função social do contrato. “São amplas e, logo, imprecisas as bases
conceituais da função social do contrato, ora amarradas à cláusula geral de
solidariedade, ora à quebra do individualismo, tendo em vista a igualdade
substancial, ora à tutela da confiança dos interesses envolvidos e do equilíbrio das
parcelas do contrato”.535 Isso pelo fato de que o tema é recente no Brasil, onde o
desenvolvimento do mesmo foi incitado “[...] recentemente pela Carta de 1988, com
a expressa funcionalização da propriedade”.536
A Constituição Federal afirma que a ordem econômica está “fundada na
valorização do trabalho humano e na livre iniciativa” e tem por finalidade “assegurar
a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social [...]”. (art. 170, caput
da CF). À justiça social incumbe “reduzir as desigualdades sociais e regionais” (art.
3°, inc. I e III da CF). 537-538 Ressalte-se que o texto constitucional deixa claro seu
533
534
535
536
537
538
SILVA, Luis Renato Ferreira da. A função social do contrato no novo Código Civil e sua conexão
com a solidariedade social. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). O novo Código Civil e a
Constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 132-133.
SILVA, Luis Renato Ferreira da. A função social do contrato no novo Código Civil e sua conexão
com a solidariedade social. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). O novo Código Civil e a
Constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 133. Complementa o autor: “[...] dentro
da relação contratual, entre os contratantes, atua a idéia de cooperação por intermédio do
princípio da boa-fé (regra do artigo 422 do Novo Código). Já os reflexos externos das relações
contratuais, ou seja, as relações contratuais enquanto fatos que se inserem no mundo de
relações econômicas e sociais, com isto integrando-se à cadeia produtiva e afetando a esfera de
terceiros, impõem um comportamento solidário, cooperativo, que é atuado pela idéia de função
social no exercício da liberdade contratual (regra do artigo 421 do Novo Código)”.
NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva
civil-constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 221.
NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva
civil-constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 221.
"Art. 170 da CF: A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre
iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social,
observados os seguintes princípios. [...] IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor; [...] VII redução das desigualdades regionais e sociais [...]"
A regulação da atividade econômica atinge diretamente o contrato, sendo que este se demarca
pela função social. O art. 170 da Constituição Federal brasileira segue como princípio estruturante
da atividade econômica, a justiça social.
159
caráter promocional, sua extensão protetora em que o escopo é garantir a todos
existência digna, segundo os ditames da justiça contratual.
Convém, ainda, salientar a apreensão do legislador constituinte na construção
desse dispositivo constitucional, de maneira que aceitasse a conciliação entre a
força de trabalho representada pelos cidadãos e os limites de ação dos outros
cidadãos que empreendem a livre iniciativa. Assim sendo, o Estado deve amparar e
estimular a livre iniciativa na busca do desenvolvimento e do lucro, proteger direitos
do cidadão à existência digna, garantida pela Constituição.539 Nessa perspectiva,
Fachin ressalta que o art. 170 “adota como princípio estruturante da atividade
econômica a justiça social, que por sua vez matiza os princípios específicos
decorrentes, em especial os da redução das desigualdades sociais e regionais e da
proteção do consumidor”.540
A livre iniciativa é apresentada como princípio basilar da República Federativa
do Brasil.541 Esse princípio é alentado no caput do art. 170 e no seu parágrafo único,
in verbis: “É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica,
independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos
em lei”. Permita-se frisar que o texto constitucional aprecia a exploração direta da
atividade econômica, incumbindo ao Estado a função de agente normativo e
regulador (art. 174, da CF) e limitando a liberdade de iniciativa econômica.
No pensamento social contemporâneo, o princípio da livre iniciativa “há de ser
encarado no contexto de uma Constituição preocupada com a Justiça Social e com o
bem-estar coletivo”.542 Essa noção de justiça social existe quando a Constituição
explana seus objetivos fundamentais no seu art. 3°. 543 No que tange a esse assunto,
539
540
541
542
543
GOMES, Rogério Zuel. Teoria contratual contemporânea: função social do contrato e boa-fé. Rio
de Janeiro: Forense, 2004, p. 86.
FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p.
182.
“Art. 1°, inc. IV, da CF: "A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos
Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem
como fundamentos: [...] IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa".
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros Editores,
2002, p. 665.
"Art. 3° - Constituem objetivos fundamentais da Re pública Federativa do Brasil: I – construir uma
sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza
e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem-estar de
160
Popp leciona que, “nestas finalidades precípuas, percebe-se, claramente, a
presença da livre iniciativa, pois não se pode negar que construir uma sociedade
livre, justa e solidária [...] passa por um necessário desenvolvimento econômico e,
este somente pode ser alcançado, de forma democrática, por meio da liberdade de
iniciativa”.544 Esse desempenho do Estado na economia, objetivando proteger a
justiça social, não é conflitante com a livre iniciativa545-546-547. A ordem econômica,
na qual se insere a ordem contratual, caracteriza-se por tentar articular a livre
iniciativa com a justiça social. Portanto, não se pode interpretar a Constituição,
especialmente quanto à ordem econômica e financeira, de forma isolada, tampouco
querer atribuir caráter meramente político ao texto constitucional.548-549 Desse modo,
todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação".
544
POPP, Carlyle. Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e a liberdade negocial: a
proteção contratual no direto brasileiro. In: LOTUFO, Renan (Coord.). Direito civil constitucional.
São Paulo: Max Limonad, 1999, p. 173.
545
Ressalta-se que há outros termos empregados na doutrina com o mesmo significado do princípio
da livre iniciativa, ou seja, liberdade econômica ou iniciativa econômica privada.
546
A própria Constituição dispõe expressamente sobre algumas exceções à livre iniciativa: a)
hipótese de instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa
degradação do meio ambiente, para a qual há exigência de estudo prévio de impacto ambiental,
sob pena de não ser autorizada (art. 225, IV); b) liberdade de controlar a produção, a
comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a
vida, qualidade de vida e do meio-ambiente (art. 225, V); c) a utilização das áreas integrantes do
patrimônio nacional, far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação
do meio-ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais (art. 225, § 4°); e d) o
desenvolvimento de uma atividade econômica impõe uma conduta ecologicamente correta, pois
considerada lesiva ao meio ambiente, o infrator (pessoa física ou jurídica) responderá penal, civil
e administrativamente (art. 225, § 3°).
547
REALE, Miguel. Questões de direito privado. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 95. “A livre iniciativa não
é senão a projeção da liberdade individual no plano da produção, circulação e distribuição das
riquezas, assegurando não apenas a livre escolha das profissões e das atividades econômicas,
mas também a autônoma eleição dos processos ou meios julgados mais adequados à
consecução dos fins visados. Liberdade de fins e de meios informa o princípio de livre iniciativa,
conferindo-lhe um valor primordial, como resulta da interpretação conjugada dos citados arts. 1° e
170. [...] o direito de livre empresa, pertinente tanto à opção pelo fim econômico visado como à
sua organização sendo a forma de retribuição dos serviços livremente eleita pelos interessados.”
548
HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução
de Luiz Afonso Heck. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1998, p. 230. Como bem
assinala Hesse, “o 'status jurídico-constitucional' do particular fundamentado e garantido pelos
direitos fundamentais da Lei Fundamental, é um status jurídico material, isto é, um status de
conteúdo concretamente determinado que, nem para o particular, nem para os poderes estatais,
está ilimitadamente disponível”.
549
NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar,
2006, p. 296. Correta neste contexto, a ponderação de Negreiros, ao lembrar a relevância da
discussão em torno do direito civil e a Constituição: “[...] as relações entre o direito civil e o direito
constitucional e, conseqüentemente, entre a sociedade e o Estado, transformaram profundamente
a tarefa do intérprete do direito contratual, que passa a ser uma tarefa politicamente
comprometida. Afinal, a necessidade de uma permanente composição entre interesses privados e
interesses públicos, liberdade e justiça social, autonomia individual e solidariedade, entre outros
tantos conflitos semelhantes, não mais permite ao civilista uma postura politicamente neutra”.
161
a CF garante um legítimo equilíbrio nas relações privadas550, especialmente as
contratuais.
No Estado social, a liberdade de iniciativa econômica, além de servir de base à
ordem econômica, constitui-se como princípio fundamental, mas não pode concorrer
e nem alastrar-se de encontro com a dignidade da pessoa humana551, pois é
apresentada como valor máximo do ordenamento jurídico, modelador da autonomia
privada. O que se percebe, com base na sistematização proposta, é que a livre
iniciativa não é um princípio isolado e muito menos colidente com os demais. É um
princípio que precisa ser interpretado em conformidade com os outros que informam
a ordem econômica.
Na Constituição brasileira, a dignidade da pessoa humana552 foi erigida ao
550
551
552
Na produção do sistema jurídico privado, o legislador depara três opções: ou dá uma maior
relevância aos interesses individuais, como acontecia no CC de 1916, ou dá preferência aos
valores coletivos, promovendo a socialização do contrato, ou, então, adota uma posição
intermediária, ajustando o individual com o social, conforme regras ou cláusulas abertas
adequadas a soluções eqüitativas e concretas. Essa terceira opção foi a escolhida pelo legislador
brasileiro do CC de 2002.
ALBUQUERQUE, Fabíola Santos. Liberdade de contratar e livre iniciativa. In: RAMOS, Carmem
Lucia Silveira (Coord.). Direito Civil Constitucional: situações patrimoniais. Curitiba: Juruá, 2002,
p. 109. O princípio da dignidade humana é o princípio estruturante norteador da Constituição, isto
é, a interpretação de qualquer princípio deve ser entendida a partir de um todo, como parte
integrante de um conjunto principiológico, cujo apogeu é o princípio da dignidade humana.
LARENZ, Karl. Derecho civil: parte general. Revista de Derecho Privado, Madrid, p. 45-46, 1978.
Na esfera do direito das obrigações, constitui-se pressuposto genérico de validade das relações
jurídicas negociais, o respeito à dignidade da pessoa humana. Larenz denomina-o de
“personalismo ético” e escreve: “[...] el personalismo ético atribuye al hombre, precisamente
porque es 'persona' en sentido ético, un valor en sí mismo - no simplesmente como medio para
los fines de otros - y, en este sentido, una 'dignidad'. De ello se sigue que todo ser humano tiene
frente a cualquier outro el derecho a ser respetado por él como persona, a no ser perjudicado en
su existencia (Ia vida, eI cuerpo, Ia salud) y en ámbito propio del mismo y que cada individuo está
obligado frente a cualquier otro de modo análogo. La relación de respeto mutuo que cada uno
debe a cualquier otro y puede exigir de éste es Ia 'relación jurídica fundamental', Ia cual, según
esta concepción, es Ia base de toda convivencia en una comunidad jurídica y de toda relación
jurídica en particular. Los elementos esenciales de esta relación jurídica fundamental son eI
derecho […] y el deber, así como Ia reciprocidad de los derechos y deberes en Ias relaciones de
Ias personas entre sí.” Tradução livre: “[...] o personalismo ético atribui ao homem, precisamente
porque é 'pessoa' em sentido ético, um valor em si mesmo - não simplesmente como médio para
os fins de outros - e, nesse sentido, uma 'dignidade'. Disso segue que todo ser humano tem,
frente a qualquer outro, o direito a ser respeitado por ele como pessoa, a não ser prejudicado em
sua existência (a vida, o corpo, a saúde) e em âmbito próprio do mesmo e que cada indivíduo
está obrigado frente a qualquer outro de modo análogo. A relação de respeito mútuo que cada um
deve a qualquer outro e pode exigir deste é a 'relação jurídica fundamental', a qual, segundo esta
concepção, é a base de toda convivência em uma comunidade jurídica e de toda relação jurídica
em particular. Os elementos essenciais desta relação jurídica fundamental são o direito [...] e o
dever, assim como a reciprocidade dos direitos e deveres nas relações entre as pessoas."
162
status de princípio fundamental, conforme o disposto no art. 1º, inciso III.553 Como
princípio fundamental, núcleo central da Constituição da República, irradia o seu
conteúdo por todo o texto constitucional, permitindo a asseveração de que o cidadão
precede ao Estado e de que este existe enquanto garantidor desse princípio,
buscando a sua plena efetividade.554 Esse princípio é solidificado em outras
disposições constitucionais, como, por exemplo, o art. 170, que abarca, entre os
escopos de ordem econômica, “assegurar a todos existência digna”.555
O que se pretende sustentar de modo mais enfático é que a dignidade da
pessoa humana, como fundamento da República, acomoda uma cláusula geral de
tutela e promoção dessa pessoa, adotada como valor máximo pelo ordenamento.
Esse princípio é inconciliável com disposições contratuais em que prevalecem
ausência de boa-fé objetiva, transparência e equilíbrio. Assim sendo, obrigações
contratuais que afetam a dignidade do ser humano em geral, ou de alguma pessoa
em particular, precisam ser apreciadas como nulas. Dessa forma, não deve ser
considerado lícito um contrato firmado com fins anti-sociais e, também, com o intento
de lesar interesses protegidos por normas constitucionais. O negócio jurídico é
considerado ilícito se afrontar interesses sociais que podem ser da sociedade, ou a
proteção dos bons costumes e valores sociais, previstos na CF.556
Foi com a Constituição Federal de 1988 que se começou a enfatizar, no Brasil,
princípios que valorizassem o social e a dignidade da pessoa humana. Também,
representou a transformação do Estado liberal para o Estado social, sem a qual,
dificilmente poder-se-ia tratar a questão da busca da função social do contrato, que
tem, entre outros objetivos, o de coibir as desigualdades dentro da relação
553
554
555
556
"Art. 1º: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e
Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como
fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana".
GOMES, Rogério Zuel. Teoria contratual contemporânea: função social do contrato e boa-fé. Rio
de Janeiro: Forense, 2004, p. 102.
BASTOS, C. R.; MARTINS, I. G. S. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva,
1988, p. 425. Na visão de Bastos, tal dispositivo tem grande relevância, pois ele enuncia "que é
um dos fins do Estado propiciar as condições para que as pessoas se tornem dignas".
NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar,
2006, p. 298. A oportuna formulação da autora é convincente quando alega que “[...] é
necessário, contudo, reconhecer o ocaso de uma teoria geral do contrato capaz de ordenar toda a
disciplina contratual em torno de um único princípio. É necessário, pois, assumir, não tanto a crise
do paradigma clássico, mas, sim, a crise de todos os paradigmas que se pretendam únicos e
exclusivos”.
163
contratual. Dessa forma, é somente a partir da CF que realmente se pode arrazoar a
função social no significado que se quer conferir à mesma no novo Código Civil.557
Os princípios558 e valores jurídicos559 pretendem explicitar e esclarecer as
regras legais tipificadas, assim como preencher as lacunas da lei e, também,
suprimir as eventuais contradições desta. Isso implica que esses princípios ou
valores suprapositivos sejam alterados em veracidade jurídica. Atualmente, o
contrato determina a aplicação sistemática de todos os princípios contratuais, não
podendo afastar algum deles para absoluta aplicabilidade de outro, pois devem agir
como instrumentos garantidores da dignidade humana, princípio fundamental do
Estado Democrático de Direito. Assim, a dignidade protegida não é exclusivamente
das partes contratantes, e sim de toda a coletividade, devido à função social do
contrato.
A função social do contrato, por sua vez, é uma forma de concretização do
objetivo constitucional da solidariedade social. Ela acaba por reconhecer a
inserção do contrato no mundo econômico, percebendo seu maior valor
para além da intenção volitiva das partes envolvidas, bem como minorando
alguns efeitos da autonomia. Nessa linha de raciocínio, os terceiros devem
cooperar para o bom andamento das relações contratuais, seja abstendo-se
de feri-las, seja assumindo obrigações originariamente fixadas inter alios.
Com isto estarão sendo solidários com o projeto social do contrato e com o
560
objetivo constitucional.
Note-se, nesse contexto, que se a Constituição Federal561 definiu determinados
557
ZINN, Rafael Wainstein. O contrato em perspectivas principiológica: novos paradigmas da teoria
contratual. In: ARONNE, Ricardo (Org.). Estudos de Direito Civil – Constitucional. v. 1. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 131.
558
DWORKIN, Ronald. Los derechos en serio. Tradução de Marta Guastavino. Barcelona: Ariel, 1999,
p. 72. Esse autor conceitua princípio como “[...] um estándar que ha de ser observado, no porque
favorezca o assegure una situación económica, política o social que se considera deseable, sino
porque es una exigencia de Ia justicia, Ia equidad o alguna otra dimensión de Ia moralidad.” Em
tradução livre: “[...] um padrão que tem de ser observado, não porque favoreça ou assegure uma
situação econômica, política ou social que se considera desejável, mas sim porque é uma
exigência da justiça, da eqüidade ou alguma outra dimensão da moralidade."
559
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução de
Maria Cristina De Cicco. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 6. Vale registrar aqui a lição de
Perlingieri: “O respeito aos valores e princípios fundamentais da República representa a
passagem essencial para estabelecer uma correta e rigorosa relação entre o poder do Estado e
poder dos grupos, entre maioria e minoria, entre poder econômico e os direitos dos
marginalizados, dos mais desfavorecidos”.
560
SILVA, Luis Renato Ferreira da. A função social do contrato no novo Código Civil e sua conexão
com a solidariedade social. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). O novo Código Civil e a
Constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 148-149.
561
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto
Alegre: Fabris, 1991, p. 21. Hesse sustenta que a força normativa da Constituição depende da
164
objetivos e valores como princípios fundamentais, terão de ser apreciadas as
normas infraconstitucionais. Todas as regras conflitantes com os princípios
constitucionais serão consideradas nulas de pleno direito. Da mesma maneira, todos
os atos jurídicos ou suas cláusulas, quando contradizem os princípios, carecem ser
apreciados sem validade, com os efeitos previstos no direito comum.
Por fim, seguindo a linha de entendimento dos princípios constitucionais, é
plausível afirmar que os mesmos estão regressados para a efetivação da igualdade,
na ascensão de uma sociedade justa e solidária, integrada por pessoas que devem
respeito umas às outras, e não por indivíduos em busca de satisfação individual.
Dos pontos esboçados, ressalta-se que a função social do contrato tem o
intento precípuo de, mediante a humanização das relações econômicas e sociais,
designar o fundamento de uma fraternidade e solidariedade mais evidente nas
relações intersubjetivas.
Diante do exposto, analisar-se-ão, posteriormente, as cláusulas gerais no texto
do novo Código Civil, apontadas como a maior renovação do sistema de Direito
Privado, por permitirem a inclusão de modelos valorativos, éticos e metafísicos nos
limites do sistema positivado da codificação. Por isso, a necessidade de um Código
estruturado como um sistema aberto que congregue os modelos cerrados,
essencialmente as janelas representadas pelas cláusulas gerais. E, com isso, os
juízes possuem uma importante tarefa integrativa no que diz respeito à interpretação
e concretização da função social do contrato.
compreensão relativizada de seus princípios e valores: “[...] a Constituição não deve assentar-se
numa estrutura unilateral, se quiser preservar a sua força normativa num mundo em processo de
permanente mudança político-social. Se pretende preservar a força normativa dos seus princípios
fundamentais, deve ela incorporar, mediante meticulosa ponderação, parte da estrutura contrária.
Direitos fundamentais não podem existir sem deveres [...]. Se a Constituição tentasse concretizar
um desses princípios de forma absolutamente pura, ter-se-ia de constatar, inevitavelmente - no
mais tardar em momento de acentuada crise - que ela ultrapassou os limites de sua força
normativa. A realidade haveria de pôr termo à sua normatividade; os princípios que ela buscava
concretizar estariam irremediavelmente derrogados".
165
3.2 Função social do contrato e cláusulas gerais
O princípio da função social dos contratos não foi implementado no
ordenamento jurídico brasileiro como norma casuística. Ao oposto, o legislador do
Código Civil de 2002 preferiu a moderna técnica da cláusula geral para
desempenhar essa tarefa. O próprio ordenamento jurídico reserva-se um poder
genérico de controle sobre os contratos, evitando que contradigam seus fins e
valores. Esse controle é embasado numa distribuição de papéis entre legislador e
juiz.
O legislador, por meio do dirigismo contratual, elabora normas precisas,
coativas, que proíbem ou ordenam a prática de determinados atos, no desígnio de
evitar o desrespeito à ordem pública e aos bons costumes. Porém, torna-se
necessária a atuação do juiz nesse controle das operações contratuais, para que
ocorra uma aplicação justa da norma ao caso concreto. É para admitir essa
participação do juiz que o ordenamento deve ter também dispositivos proibitivos
formulados em termos suficientemente amplos, genéricos e elásticos, que possam
cobrir, ainda, hipóteses singulares não previstas ou não previsíveis na ocasião da
promulgação da norma.562 Tais dispositivos amplos denominam-se cláusulas gerais,
entre as quais o princípio da função social do contrato, positivado no art. 421 do
Código Civil de 2002, é um exemplo.
O princípio da operatividade é um dos três princípios que orientaram a feitura
do novo Código Civil563, e foi devido a esse princípio que o legislador deu à função
562
SANTIAGO, Mariana Ribeiro. O princípio da função social do contrato. Curitiba: Juruá, 2006, p.
115-116.
563
MARTINS-COSTA, Judith. Os direitos fundamentais e a opção culturalista do novo Código Civil. In:
SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 77-78. "Creio que essas características culturalistas do
novo Código viabilizam uma incessante comunicação e complementaridade intertextual entre o
Código e os Direitos Fundamentais, o que é especialmente possibilitado pela conexão entre a
estrutura e a linguagem utilizada. A abertura semântica é garantida pela existência de cláusulas
gerais estrategicamente colocadas, permissivas das três ordens de conexão sistemáticas antes
referidas. É paradigmática, nesse sentido, a cláusula geral do art. 21 (tutela da vida privada), que
poderá - se bem compreendida como 'modelo jurídico prospectivo' - sanar deficiências do próprio
Código Civil, constituindo, por outro lado, via privilegiada para a expansão, nesse domínio, do
princípio da dignidade da pessoa humana contra a indevida intromissão de poderes políticos e
sociais na 'esfera de exclusividade' de cada pessoa.”
166
social do contrato564 a roupagem de cláusula geral565, no intento de que o direito é
criado para ser concretizado, para ser operado e, por isso, a norma de direito deve
ter operabilidade, objetivando impedir equívocos e dificuldades.
Com efeito, é devido à operabilidade566 que se preconiza normas abertas, ao
invés de normas fechadas, para que o progresso social possa gerar a modificação
do seu conteúdo, através da estrutura hermenêutica.567 Tácito no princípio da
operatividade depara-se o princípio da concretitude. Conforme este princípio, o
legislador não deve legislar em abstrato, mas para o indivíduo situado. Isso insinua
atender às necessidades sociais.
Os
Códigos
Civis
que
foram
produto
de
toda
a
evolução
social,
independentemente das particularidades culturais de cada país, valeram-se das
cláusulas gerais como técnica legislativa. A expressão “cláusula geral” é
freqüentemente empregada em dois sentidos, tanto para mencionar uma técnica
legislativa de criação de normas, quanto às próprias normas resultantes desse tipo
de produção legislativa.568
Mello assevera que as cláusulas gerais implicam em avançada técnica
legislativa de proferir, por meio de expressões semânticas relativamente vagas,
princípios e máximas que recepcionam a mais variada sorte de hipóteses concretas
de procedimentos tipificáveis, já ocorridas no presente ou ainda por realizarem-se.569
564
MESSINEO, Francesco. II contratto in genere. Milão: Dott. A. Giuffrè, 1973. t. I, p. 28-29 e 45.
Messineo, em sua obra de 1973, aludia expressamente à "funzione sociale del contratto" [função
social do contrato]. Nesta época, o autor já falava numa transformação do direito civil pela
absorção do "spirito di socialità, attenuando il suo carattere individualistico" [espírito de
socialidade, atenuando o seu caráter individualista], defendendo que essa limitação da liberdade
contratual constituía-se numa outra face da limitação do direito de propriedade.
565
MARTINS-COSTA, J.; BRANCO, G. Diretrizes teóricas do novo Código Civil brasileiro. São Paulo:
Saraiva, 2002, p. 123. São as cláusulas gerais ou conceitos indeterminados que permitirão ao
aplicador do direito descer do plano das abstrações ao terreno por vezes áspero do concreto.
566
É a diretriz que permite ao operador do direito uma maior flexibilidade na realização da equação
jurídica, afastando-a, várias vezes, da mera subsunção e guiando-se sempre pela “ética da
situação”.
567
REALE, Miguel. O projeto de Código Civil: situação atual e seus problemas fundamentais. São
Paulo: Saraiva, 1986, p. 12-13.
568
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p.
286.
569
MELLO, Adriana Mandim Theodoro de. A função social do contrato e o princípio da boa-fé no novo
Código Civil brasileiro. Revista Jurídica, Porto Alegre, n. 294, abr. 2002.
167
Alvim refere-se às cláusulas gerais como conceitos abertos, que não contêm
elementos definitórios mais exaurientes e exigem o preenchimento de espaços “por
obra da atividade jurisdicional à luz da conjuntura e das circunstâncias presentes no
momento de aplicação da lei, tendo como eixo de gravidade o caso concreto”.570
As normas elaboradas sob a técnica das cláusulas gerais escapam ao modelo
tradicional, não mais proferindo uma descrição detalhada da hipótese legal e seus
pressupostos e, também, exonerando a correspondente indicação dos efeitos
jurídicos resultantes do desrespeito à conduta estabelecida pela norma.571 No caso
da função social dos contratos, o art. 421, do Código Civil de 2002, não confere
qualquer sanção expressa para o inadimplemento do princípio.
Entretanto, conforme lembrado por Nery Junior, um Código Civil não pode
fundar-se somente em cláusulas gerais, devendo valer-se também do método
casuístico. O Código Civil de 2002 adotou técnica legislativa mista, utilizando tanto
cláusulas gerais e conceitos legais indeterminados572 quanto métodos da
casuística.573
De acordo com Theodoro Júnior, a função social admite que deveres
acessórios possam ser adicionados ao contrato, porém não podem acarretar uma
incomensurável intervenção judicial, anulando a própria vontade criadora da
convenção, substituindo-a pela sua própria vontade. Acredita que perante a função
social do contrato, a função do juiz não é criativa, mas, somente, repressiva e
sancionatória, à medida que não lhe cabe dar à convenção um sentido ou objetivo
que não tenha sido almejado pelas partes, competindo-lhe apenas aplicar a sanção
570
571
572
573
ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda. A função social dos contratos no novo Código Civil. In:
PASINI, Nelson et al. (Coord.). Simpósio sobre o novo Código Civil brasileiro. São Paulo:
Método/Banco Real, 2003, p. 100.
SANTIAGO, Mariana Ribeiro. O princípio da função social do contrato. Curitiba: Juruá, 2006, p.
118-119.
NERY JÚNIOR, Nelson. Código Civil anotado e legislação extravagante. 2. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2003. Nery Júnior prefere usar a terminologia conceito legal indeterminado ao
invés de conceito jurídico indeterminado, sendo que a indeterminação está no plano legal, sendo
suprida pelo ordenamento jurídico, isto é, a lacuna aparentemente, nesse caso, está na lei e não,
no ordenamento jurídico.
NERY JÚNIOR, Nelson. Código Civil anotado e legislação extravagante. 2. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2003, p. 140.
168
de nulidade, de ineficácia, ou impor a responsabilidade civil aos infratores, segundo
demandar o caso concreto.574
O dever do juiz, numa situação concreta abarcando a aplicação de uma
cláusula geral como a função social do contrato, é analisar e sopesar a conjuntura
do caso e resolver tentando sobrepujar a tensão axiológica latente entre segurança
jurídica e justiça.575
Já Nery Júnior, ao discutir as cláusulas gerais, de modo inclusivo à função
social do contrato, refere-se a “papel criador do juiz” e sua “verdadeira atividade
integrativa”. Segundo o autor, por serem normas de ordem pública, podem ser
aplicadas em qualquer ação judicial, independentemente do pedido da parte, uma
vez que o juiz deve agir ex officio, podendo até, por exemplo, alterar a taxa de juros
adotada no contrato com a finalidade de adequá-Io a sua função social.576 De fato,
no contexto de cláusulas gerais, há uma modificação do papel do juiz, a quem é
consentida a criação de normas jurídicas de abarcamento geral, para além do caso
concreto.
O referido autor enumera como soluções admissíveis para o juiz, no caso da
função social do contrato, por se tratar de cláusula geral: a proclamação de
inexistência do contrato por falta de objeto; a declaração de nulidade por fraude à lei
imperativa (CC/2002, art. 166, VI), pois a norma do art. 421, do CC/2002, é de
ordem pública (CC/2002, art. 2.035, parágrafo único); convalidação do contrato
anulável (CC/2002, arts. 171 e 172); determinação de indenização pelo
desatendimento à função social do contrato etc. Nery Junior assevera que a
vantagem da cláusula geral é dar maior mobilidade à codificação, deixando-a viva e
sempre atualizada, “prolongando a aplicabilidade dos institutos jurídicos, amoldando-
574
THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato social e sua função. Rio de Janeiro: Forense, 2003,
p. 131-132.
575
SANTOS, Antônio Geová. Função social, lesão e onerosidade excessiva nos contratos. São Paulo:
Método, 2002, p. 140.
576
NERY JÚNIOR, Nelson. Contratos no Código Civil: apontamentos gerais. In: FRANCIULLI NETTO,
Domingos et al. (Coords.). O novo Código Civil: estudos em homenagem ao Prof. Miguel Reale.
São Paulo: LTr, 2003, p. 417.
169
os às necessidades da vida social, econômica e jurídica”577, além de impedir o
engessamento da lei.
Em relação às desvantagens das cláusulas gerais, o autor supracitado
especifica o nível de incerteza que dela resulta, “dada a possibilidade de o juiz criar
norma pela determinação dos conceitos, preenchendo o seu conteúdo com
valores”.578 O caráter genérico e aberto das cláusulas gerais579 não pode ser
confundido com a probabilidade de julgamento discricionário do aplicador do direito
no exame do caso concreto. Ainda, é importante destacar que a liberdade e o
subjetivismo resultantes do mencionado sistema não podem proceder em
arbitrariedade.
Lôbo salienta que, pelo temor da influência do Estado nas relações privadas
através do juiz, assim como pela indiscutível indeterminação de conteúdo que
abarca as cláusulas gerais, estas sempre foram vistas com reserva pelos juristas.580
Todavia, de acordo com o autor, elas instituem ferramentas hermenêuticas
imprescindíveis para a sociedade em mutação, para a efetivação da justiça social e
a contenção do fenômeno da massificação contratual.
O Código Civil de 2002 privilegia as cláusulas gerais, através do emprego de
normas abertas, princípios valorativos e conceitos jurídicos indeterminados, que
tendem a nortear o julgador no caso concreto. Elas aparecem como a garantia de
577
578
579
580
NERY JÚNIOR, Nelson. Código Civil anotado e legislação extravagante. 2. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2003, p. 143.
NERY JÚNIOR, Nelson. Código Civil anotado e legislação extravagante. 2. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2003, p. 143.
CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do Direito.
Tradução de Menezes Cordeiro. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. 142.
Como característica da cláusula geral, Canaris salienta o fato de não fornecer os critérios à sua
concretização, os quais devem ser determinados de acordo com o caso concreto. "É
característico para a cláusula geral o ela estar carecida de preenchimento com valorações, isto é,
o ela não dar os critérios necessários para a sua concretização, podem-se, estes,
fundamentalmente, determinar apenas com a consideração do caso concreto respectivo [...] são
sempre caracterizadas, e pelo menos em parte, com razão, como pontos de erupção da
eqüidade.” Ainda complementa que as cláusulas gerais não se confundem com o sistema móvel
fixado por Wilburg, pois este tencionou determinar todos os elementos à "relação de
interpenetração", independentemente das circunstâncias do caso concreto, impossibilitando a
"presença de princípios fundamentais".
LÔBO, Paulo Luiz Neto. Princípios contratuais. In: LÔBO, Paulo Luiz Neto; LYRA JÚNIOR,
Eduardo Messias Gonçalves de (Coords.). A teoria do contrato e o novo Código Civil. Recife:
Nossa Livraria, 2003, p. 15.
170
interesses coletivos, mas não se efetivam somente com proibições, e sim
positivamente, com proteção, fomento e incentivos.
Na perspectiva civil-constitucional, pode-se asseverar que o amparo da
supremacia da dignidade humana, como cláusula geral de interpretação de toda a
ordem jurídica, opera como paradigma do novo direito contratual. Assim, a
codificação muniu o Estado-juiz dos instrumentos imprescindíveis para a efetivação
da justiça contratual.
A moderna técnica de cláusulas gerais de que se valeu o Código de 2002,
possui capacidade para tomar os casos que a experiência social inovadora propõe a
uma adequada regulação, objetivando a formação de modelos jurídicos inovadores,
abertos e flexíveis.581
O constitucionalismo do Estado Democrático de Direito demanda a sujeição
da exegese Constitucional à mecânica da razoabilidade e da proporcionalidade,
dentro da qual um princípio pode momentaneamente atritar com outro, entretanto
nunca um anulará o outro, porque ao intérprete competirá harmonizá-Ios, perante o
caso concreto, propiciando uma incidência que não seja de exclusividade, e sim de
coexistência harmônica.582
Nenhuma cláusula ou norma da espécie pode resumir-se a si mesma, nem
pode ser interpretada somente em face do valor que ela própria exprime. Tudo tem
de ser focalizado a partir do sistema maior e dos valores elevados que constituem a
ordem constitucional como um todo. Deve-se realizar uma ordem constitucional por
581
582
CARVALHO FILHO, Milton Paulo de. Indenização por eqüidade no novo Código Civil. São Paulo:
Atlas, 2003, p. 49.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Coimbra:
Almedina, 2000, p. 1188. Canotilho fala em princípio da concordância prática ou da harmonização
explicando que ele impõe "a coordenação e combinação dos bens jurídicos em conflito de forma a
evitar o sacrifício (total) de uns em relação aos outros". Assim, "o campo de eleição do princípio
da concordância prática tem sido até agora o dos direitos fundamentais (colisão entre direitos
fundamentais ou entre direitos fundamentais e bens jurídicos constitucionalmente protegidos).
Subjacente a ,este princípio está a idéia do igual valor dos bens constitucionais (e não uma
diferença de hierarquia) que impede, como solução, o sacrifício de uns em relação aos outros, e
impõe o estabelecimento de limites e condicionamentos recíprocos de forma a conseguir uma
harmonização ou concordância prática entre estes bens".
171
inteiro.583 Cada vez mais as normas legais rematam conceitos indeterminados e
abertos, o que exige maior atuação dos juízes na interpretação e criação do
Direito.584
Ao completar a norma legal em branco, o juiz tem de levar em consideração a
realidade
da
figura
jurídica,
sua
estrutura
e
funcionalidade,
aplicando
consecutivamente os princípios informativos do sistema. Toda reconstrução
dogmática está, em primeiro lugar, enlaçada aos valores e diretivas do ordenamento,
exigindo do juiz não somente ato de vontade, mas também, ato de conhecimento e
de responsabilidade. Por isso, a Constituição exige, sob pena de nulidade, que toda
decisão judicial seja fundamentada.585 E, nunca se aceitará que os operadores se
separem dos princípios maiores que a ordem constitucional justapõe ao
ordenamento do direito privado. Ou seja, nenhum princípio pode ser dado como
absoluto e de aplicação desvinculada das garantias delineadas pela Constituição
Federal.
Como observa Mello, apenas um sistema jurídico formado por cláusulas gerais,
flexível e apto a recepcionar o desenvolvimento do pensamento e do comportamento
social, consiste em conferir ao mesmo tempo a ordem e a segurança jurídica586
reclamadas pela sociedade multifacetada deste século.587 Assim, a lei passa a ser
percebida não como um limite, mas como um ponto de partida para a criação e
583
GUERRA, Marcelo Lima. Direitos fundamentais e a proteção do credor na execução civil. São
Paulo: RT, 2002, p. 12. “Somente a teoria dos direitos fundamentais pode servir, ao mesmo
tempo, ao propósito de unificar e harmonizar as normas atuais com as preexistentes e àquele de
permitir o desenvolvimento judicial do direito, com a manutenção do valor supremo da ordem
constitucional vigente".
584
OTERO, Paulo. Ensaio sobre o caso julgado inconstitucional. Lisboa: Lex, 1993, p. 34. No
contexto de ordenamentos fundados em grande parte em cláusulas gerais e conceitos vagos,
observa-se "um crescente papel protagonizador do juiz na densificação e concretização
interpretativa do sentido de tais conceitos e, conseqüentemente, do próprio Direito."
585
THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato social e sua função. Rio de Janeiro: Forense, 2003,
p. 122.
586
SANTIAGO, Mariana Ribeiro. O princípio da função social do contrato. Curitiba: Juruá, 2006, p.
126. De acordo com a referida autora, “a aparente insegurança que envolve a função social do
contrato é conseqüência da própria natureza das cláusulas abertas, técnica adotada para a
socialização do contrato no nosso ordenamento jurídico. Já é consenso, entre os doutrinadores,
que é vantajoso para o regulamento jurídico sacrificar parte da segurança jurídica em
determinadas matérias através da positivação por cláusula geral, por ser esta técnica, nesses
temas, necessária para que se atinja a justiça do caso concreto, valor axiologicamente superior à
segurança jurídica”.
587
MELLO, Adriana Mandim Theodoro de. A função social do contrato e o princípio da boa-fé no novo
Código Civil brasileiro. Revista Jurídica, Porto Alegre, n. 294, p. 143, abr. 2002.
172
ampliação do direito.588 As cláusulas gerais não almejam um retorno precedente a
todas as dificuldade da realidade, porém, que essas respostas sejam construídas
pela jurisprudência. Estabelecida a função social como cláusula geral, o aplicador do
direito tem uma respeitável ferramenta para fazer com que haja aplicabilidade
prática, ou seja, operatividade.
O art. 421, do Código Civil de 2002589, que constitui o princípio da função social
do contrato, é um exemplo dessa aplicação da técnica das cláusulas gerais à teoria
geral dos contratos e conjetura a preocupação, revelada pela doutrina, pela
jurisprudência e pelo legislador, de socializar o contrato, limitando a autonomia da
vontade.590 Braga Netto sintetiza que a funcionalidade é um conceito integral em
potencialidades hermenêuticas, toando como elemento acessório na construção de
standards de comportamento, objetivando distinguir os aceitos e desejáveis dos que
são vedados.591
Com efeito, como a função social do contrato é uma inovação no sistema civil,
é natural a ansiedade no meio técnico dos juristas a respeito dos limites dessa
novidade. A existência do princípio da função social do contrato é uma conseqüência
da transformação do Estado liberal em Estado social, que resultou no princípio da
socialidade, já expresso, de modo inclusivo, na Constituição Federal brasileira, que
aborda o valor social da livre-iniciativa e da função social da propriedade, dos quais
deriva naturalmente a função social do contrato, apesar de a Constituição não ter
empregado especificamente esta expressão.
Complementando tal entendimento, pode-se ainda destacar que, para obter o
real significado da função social do contrato, é cogente analisar o princípio
588
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p.
292-299.
589
SANTOS, Antônio Geová. Função social, lesão e onerosidade excessiva nos contratos. São Paulo:
Método, 2002, p. 133. Com o amadurecimento das idéias implantadas pelo Código de 2002, como
é o caso da função social do contrato, o direito vai se sedimentando paulatinamente.
590
SANTIAGO, Mariana Ribeiro. O princípio da função social do contrato. Curitiba: Juruá, 2006, p.
121.
591
BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. A responsabilidade civil e a hermenêutica contemporânea: uma
nova teoria contratual? In: LÔBO, Paulo Luiz Neto; LYRA JÚNIOR, Eduardo Messias Gonçalves
de (Coords.). A teoria do contrato e o novo Código Civil. Recife: Nossa Livraria, 2003, p. 271.
173
constitucional da igualdade, evidenciando a necessidade de sua efetividade
substancial. É o que será examinado a seguir.
3.3 A busca da igualdade substancial
O princípio constitucional da igualdade formal garante que todas as pessoas
tenham tratamento igual, sem qualquer discriminação.592 Na moderna teoria
contratual, começa a existir, embasado no princípio constitucional da igualdade, o
princípio da tutela da parte contratante mais fraca na relação negocial. Esse princípio
não passaria de mera formalidade se o Estado não tratasse de trazê-Io para o
mundo concreto, por meio da elaboração de normas garantidoras dessa igualdade.
Perlingieri contribui para a compreensão da aplicação direta das normas
constitucionais às relações interprivadas. O autor assim expõe, em uma das
passagens de sua importante obra, a sua posição:
Idêntico juízo também deve ser expresso àquela opinião - dita da
‘aplicabilidade (somente) indireta’ - pela qual a norma constitucional poderia
disciplinar uma relação de direito civil unicamente através da concomitante
aplicação de uma norma ordinária, de maneira que, à falta de uma norma
ordinária aplicável ao caso concreto, aquela constitucional não poderia atuar
sozinha. As normas constitucionais - que ditam princípios de relevância
geral - são de direito substancial, e não meramente interpretativas; o
recurso a elas, mesmo em sede de interpretação, justifica-se, do mesmo
modo que qualquer outra norma, como expressão de um valor do qual a
própria interpretação não pode subtrair-se. É importante constatar que
também os princípios são normas. Não existem, portanto, argumentos que
contrastem a aplicação direta: a norma constitucional pode, também sozinha
(quando não existirem normas ordinárias que disciplinem a fattispecie em
consideração), ser fonte da disciplina de uma relação jurídica de direito civil.
Esta é a única solução possível, se se reconhece a preeminência das
normas constitucionais - e dos, valores por elas expressos – em um
593
ordenamento unitário, caracterizado por tais considerações.
592
593
CF /88 - Art. 5° - “Todos são iguais perante a lei , sem distinção de qualquer natureza, garantindose aos brasileiros e aos estrangeiros residentes do País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]”.
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução de
Maria Cristina De Cicco. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 11.
174
O princípio da igualdade594 surgiu para desempenhar o objetivo de igualar os
naturalmente desiguais. A imposição pela força (econômica, política ou meramente
física) transporta a uma posição de acúmulo cada vez maior de poder, majorando a
miséria dos dominados, que, “carentes da proteção entregue ao dominador, são
compelidos a se submeter a toda sorte de imposições, como única forma de atender
aos seus anseios”.595 Enfim, a conclusão do contrato com fundamento no abuso da
força596 não só atenta contra direitos fundamentais e indisponíveis do contratante
que a este se submete, mas também manifesta-se incabível a toda a coletividade,
notadamente quando essa prática generaliza-se e torna-se nascente de injustiça
social, com a propagação da opressão do mais poderoso contra o mais
desfavorecido.
Daí a justificativa da interferência do Estado no domínio privado. Isto é, ainda
que opere individualmente sobre cada contrato, como espécie de contrapeso para a
realização do equilíbrio entre as partes, evitando o descomedimento do mais forte
contra o mais fraco, propiciando uma justa distribuição de riqueza entre si, sua razão
de ser assenta-se no juízo de que a injustiça que acontece em cada contrato,
quando colocados em conjunto, reflete-se num desequilíbrio social que abrange toda
a coletividade.597
594
595
596
597
CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do Direito.
Tradução de Menezes Cordeiro. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. 22.
"Longe de ser uma aberração, como pretendem os críticos do pensamento sistemático, a idéia do
sistema jurídico justifica-se a partir de um dos mais elevados valores do Direito, nomeadamente
do princípio da justiça e das suas concretizações no princípio da igualdade e na tendência para a
generalização.”
BONATTO, Cláudio; MORAES, Paulo Valério Dal Pai. Questões controvertidas no código de
defesa do consumidor. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 30.
Consigna-se a expressão "abuso" da força porque todo negócio, por mais consensual que seja,
sempre contém em si o uso de força; a concessão que uma parte faz à outra durante o negócio,
em última instância, nada mais é senão a submissão de parte de sua vontade em prol de um
interesse maior. Daí o uso dessa força, dentro dos limites da normalidade, ser parte da
negociação. O que não é permitido é o uso exagerado dessa força, com eliminação ou redução
da capacidade negocial da parte mais fraca. Nesse sentido, BECKER, Anelise. Teoria geral da
lesão nos contratos. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 66, enfatiza a respeito da liberdade contratual
que "o consenso quase nunca é o ponto de encontro de duas vontades que, tendo dialogado,
encontraram uma base de entendimento, mas sim a resultante da intensidade e eficácia dos
meios de pressão com que cada um procurou levar o outro a cedências em relação às suas
posições iniciais: negociar não é um exercício de razão, mas um exercício de poder".
O mencionado "contrapeso" que a lei cumpre acerca do contrato não denota a supressão da
liberdade contratual. Como bem esclarece REALE, Miguel. Diretrizes da reforma do Código Civil.
Revista do Advogado, 19:5-12, p. 8, out. 1985, embora o contrato constitui uma manifestação da
autonomia da vontade, isso "[...] não quer dizer que essa vontade deva ser incontrolada; na
medida de seu querer [da parte] nasce uma ambivalência, de uma correlação essencial entre o
valor do indivíduo e o valor da coletividade. O contrato é um elo que, de um lado, põe o valor do
175
No Brasil, bem como em outros países, numerosos impedimentos apresentamse para a realização dessa igualdade no plano substancial. Convive-se em uma
sociedade de contrastes e disparidades sociais e econômicas, não tendo como
considerar que todas as pessoas se acham em igual posição, isto é, com iguais
poderes na ocasião da conclusão de um contrato. Daí o imperativo da
funcionalização de institutos apreciados de campo específico do clássico direito
privado.
A desigualdade real existe a partir da igualdade formal por ser ela um intento
da liberdade de contratar. A liberdade negocial torna-se mais restrita a uma parte e,
como decorrência, o princípio da autonomia da vontade padece devido ao mesmo
processo, permanecendo o aderente incapaz de emanar à determinação do
conteúdo do contrato.598
A
igualdade
substancial
é
também
uma
expressão
que
garante
o
reconhecimento estatal do ato de autonomia privada, enquanto não constitui um
obstáculo que limite concretamente a liberdade dos indivíduos, sua igualdade de
fato, material, que se contém no princípio da igualdade jurídica. Ou seja, a igualdade
que, numa significação mais exata, já exerce proeminente papel no desenvolvimento
do princípio da justiça contratual, do equilíbrio e da distribuição equânime das
prestações, dos riscos e encargos do contrato, de maneira mais ampla, corresponde
a um ideal do sistema, em que o contrato, ao rumo de satisfazer uma função
individual, sirva para tornar os indivíduos substancialmente mais iguais perante as
escolhas valorativas do ordenamento.599
Diante disso, o Estado assume papel de importância ímpar, ou seja, deve
deslocar todos os impedimentos à concretização do princípio constitucional da
igualdade, fazendo-o operar substancialmente nas relações interprivadas, de
maneira a tratar os desiguais de forma também desigual, para que a igualdade
indivíduo como aquele que o cria, mas, de outro lado, estabelece a sociedade como lugar onde o
contrato vai ser executado e onde vai receber uma razão de equilíbrio e de medida".
598
ROPPO, Enzo. O contrato. Coimbra: Almedina, 1988, p. 77.
599
GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Função social do contrato: os novos princípios contratuais. São
Paulo: Saraiva, 2004, p. 125.
176
ultrapasse o sentido meramente formal, e assuma seu caráter material, ou
substancial.
Perlingieri, ao explanar a Constituição Italiana, defende que:
Afirma-se, comumente, que o art. 3 Const. enuncia no § 1 a igualdade
formal e no § 2 aquela substancial; a primeira seria a expressão de uma
revolução praticamente realizada, a segunda, ao contrário, de uma
revolução ‘prometida’. Pela primeira, os cidadãos têm ‘igual dignidade social
e são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, de raça, de língua, de
religião, de opiniões políticas, de condições pessoais e sociais’; pela
segunda, é ‘tarefa da República remover os obstáculos de ordem
econômica e social que, limitando de fato a liberdade e a igualdade dos
cidadãos, impedem o pleno desenvolvimento da pessoa humana e a efetiva
participação de todos os trabalhadores na organização política, econômica
e social do País’. A interpretação dada geralmente a este último parágrafo
exprime, de modo evidente, o estado de dificuldade em que se encontra a
doutrina, e a sua freqüente citação, no mais das vezes, coloca-se na
600
perspectiva de fundação de um direito do contratante frágil.
A Lei Maior brasileira também tem, além do disposto no art. 5º, caput, acerca
da igualdade formal, outros dispositivos nos quais prevê formas de mover os
impedimentos de ordem social e econômica à consecução material da igualdade, por
meio da injunção de edição de normas de tutela do hipossuficiente. Isso porque o
Estado que se pronuncia social, que coexiste com uma sociedade industrializada e,
em resultado, com relações contratuais massificadas e despersonalizadas,
necessitou adotar uma nova concepção das relações econômicas e sociais, de
acordo com Wald, concepção essa que, superando o princípio da igualdade formal
assegurada constitucionalmente, busca corrigir as desigualdades naturais ou
existentes de fato entre seus participantes. “Há, pois, uma tendência no sentido de
proteger o economicamente mais fraco contra o mais forte, o leigo contra o
profissional.”601
O princípio constitutivo da ordem constitucional, como disse Konrad Hesse,
a igualdade tem, segundo ele, essa peculiaridade e significação: é elemento
essencial de uma Constituição aberta; é também, a porta de penetração por
onde a realidade social positiva e impregnada de valores diariamente
ingressa na normativa do Estado. [...] Quem ‘quiser produzir a igualdade
fática, deve aceitar por inevitável a desigualdade jurídica’. O Estado social é
enfim o produtor de igualdade fática. [...] Obriga o Estado, se for o caso, a
prestações positivas; a prover meios, se necessário, para concretizar
600
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução de
Maria Cristina De Cicco. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 44.
601
WALD, Arnoldo. Obrigações e contratos. 12. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 524.
177
comandos normativos de isonomia. Noutro lugar já escrevemos que a
isonomia fática é o grau mais alto e talvez mais justo e refinado a que pode
subir o princípio da igualdade, numa estrutura normativa de direito
602
positivo.
Na experiência brasileira, desse modo, a própria Constituição de 1988 ordena a
elaboração de leis dessa natureza, como forma de tentar garantir a realização da
igualdade substancial603, ao mesmo tempo em que confere ao intérprete o dever de
dar eficácia social imediata aos valores constitucionais nas relações interprivadas.
Assim, as normas constitucionais têm aplicação direta nas relações contratuais. Com
efeito, ao posicionar-se na defesa de uma das partes contratantes, o Estado limita a
liberdade de contratar e faz do pacto um válido instrumento para a obtenção da
justiça social.
Há, pois, inata a cada contrato em particular, uma função social que somente
pode dizer-se cumprida quando se ajustam tanto a satisfação de interesses das
partes como a do interesse coletivo, isto é, desde que sejam conservadas idênticas
igualdade e liberdade aos contratantes, razão pela qual será analisada, a seguir, a
prevalência do interesse social sobre o individual.
3.4 Prevalência do interesse social sobre o individual
Se, por um lado, a função social do contrato é exercida quando garantida, no
aspecto individual dos contratantes, a preservação de seus direitos fundamentais de
liberdade e igualdade - o que não deixa de ser uma prevalência do interesse público
sobre o particular -, de outro, a função social também depende da recepção a
602
603
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 342343.
GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Função social do contrato: os novos princípios contratuais. São
Paulo: Saraiva, 2004, p. 125. A igualdade substancial deixou de ser evidenciada somente como
um dos direitos de primeira geração exigíveis diante do Estado, para permear também as
relações interprivadas, como no exemplo em que alguém testa apenas em favor de seus filhos
homens, mas por este declarado motivo, ou quando alguém, da mesma maneira, contrata com
um, e não com outro, por causa também discriminatório, assim em inconveniente distinção dos
indivíduos, impondo-lhes uma limitação em discordância com o reclamo constitucional de
estabelecimento de relações que, iguais, se mostrem solidárias.
178
determinados interesses que estão além das partes e que podem ser atingidos pelo
contrato, os denominados interesses sociais.
Nessa perspectiva, o reconhecimento de que a dicotomia erigida pelo
individualismo jurídico, considerando os interesses em duas categorias (a pública e a
privada), era escassa para acolher determinados interesses que não se
enquadravam numa ou noutra classe604 - ora pela impossibilidade de serem
individualizados, porque afetos à pessoa arraigada no grupo social, ora por não se
identificarem com a maneira pela qual o Estado vê o bem-estar social605 - gerou uma
terceira categoria, a dos interesses coletivos (ou sociais). Nessa categoria, como
alude Bastos,
Os interesses coletivos dizem respeito ao homem socialmente vinculado e
não ao homem isoladamente considerado. Colhem, pois, o homem não
como simples pessoa física tomada à parte, mas sim como membro de
grupos autônomos e juridicamente definidos, tais como o associado de um
sindicato, o membro de uma farmília, o profissional vinculado a uma
corporação, o acionista de uma grande sociedade anônima, o condômino de
um edifício de apartamentos. Interesses coletivos seriam, pois, os
interesses afectos a vários sujeitos não considerados individualmente, mas
sim por sua qualidade de membro de comunidades ou grupos intercalares,
606
situados entre o indivíduo e o Estado.
Esses interesses sociais, que abrangem os interesses difusos, coletivos e
individuais homogêneos, se por um lado romperam com o clássico conceito da
relatividade dos efeitos do contrato, quando se reconheceu a sua proeminência
sobre a coletividade, por outro lado, enquanto representativa do bem geral da
comunidade, passaram a ser apreciados como limites para o exercício da liberdade
contratual.
Portanto, há contratos que, mesmo acolhendo os interesses individuais dos
contratantes, nem sempre são compatibilizados com o interesse social. Existem
604
605
606
LISBOA, Roberto Senise. Contratos difusos e coletivos. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2000, p. 55.
MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 6. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1994, p. 19-20. O autor expõe que o interesse público pode ser classificado, de acordo
com seu conteúdo, em interesse público primário e secundário: é primário se se refere ao bem
geral da perspectiva da coletividade; é secundário se relativo ao modo como o Estado vê o bem
geral.
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 251252.
179
casos em que há um interesse derivado dos direitos sociais607, que não pode ser
desfavorecido em benefício da liberdade contratual. O contrato, ao instituir um dos
pilares garantidores do equilíbrio social, não só deve funcionar como instrumento de
uma justa circulação de riquezas entre as partes, como também atender aos
interesses sociais que se encontram sobre os particulares, porquanto a proteção aos
direitos sociais é a consagração dos direitos de igualdade e de liberdade.608
A questão assim colocada trouxe a apreciação de que o atendimento à função
social do contrato observa-se tanto da concepção individual-coletiva, uma vez que a
garantia de igualdade de condições aos contratantes, ao aceitar a justa circulação
de riquezas, resulta num bem-estar coletivo, quanto da ótica coletivo-individual, em
que a proteção do grupo social é, em última instância, a garantia da igualdade e da
liberdade individuais.
Para uma reflexão em torno do princípio constitucional da dignidade da pessoa
humana, no próximo tópico serão tecidas breves considerações acerca do sentido e
da função dessa expressão, seu alcance e o que significa dizer, como está inscrito
no inciso III, art. 1º, da Constituição Federal, que o Brasil é uma República
Federativa que tem como fundamento a dignidade da pessoa humana. Importa,
ainda, verificar como a função social do contrato, no seu conteúdo genérico, pode
influenciar situações concretas de preservação da dignidade humana.
607
608
LISBOA, Roberto Senise. Contratos difusos e coletivos. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2000, p. 72. Nesse sentido, Lisboa aponta que "na verdade, trata-se os direitos da personalidade
de direitos sociais, pelo simples fato de que o asseguramento dos direitos físicos, psíquicos e
morais de uma pessoa interessa a toda a sociedade, e não apenas a ela (aliás, é por esse fato
que tais direitos têm, como tônica, a indisponibilidade)".
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros Editores,
2002, p. 277. Como observa Silva, pode-se dizer que “[...] os direitos sociais, como dimensão dos
direitos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou
indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de
vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais.
São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade. Valem como pressupostos do gozo
dos direitos individuais na medida em que criam condições materiais mais propícias ao
auferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o
exercício efetivo da liberdade”.
180
3.5 A efetivação do princípio constitucional da pessoa humana através da
função social do contrato
O Direito existe como criação do homem. E o homem é o fundamento da
sociedade, é o bem maior a ser tutelado pelo Direito. Portanto, este destina-se a
garantir e assegurar proteção a determinados bens jurídicos, tais como a vida, a
liberdade, a saúde, a honra e a integridade física e mental. A par desses direitos
vitais, outros são adjacentes e não menos importantes para efeito de tutela legal,
como a propriedade, a cidadania, o direito à intimidade, a liberdade de expressão, o
direito ao trabalho e aos seus frutos, que surgem no Direito como parcelas de um
princípio maior, que é a dignidade da pessoa humana.609
É importante frisar que qualquer conceito (inclusive jurídico) possui uma
história, e esta precisa ser retomada e reconstruída, para que se possa entender a
sua evolução e assim compreender o seu sentido.
3.5.1 Origem e desenvolvimento do conceito de dignidade da pessoa humana
Não há, nos povos antigos, a concepção de pessoa como se conhece hoje. O
homem, para a filosofia grega, era um animal político ou social. Assim, para
Aristóteles, ser era a cidadania, o fato de pertencer ao Estado, que estava em
particular vinculação com o cosmos, com a natureza610.
O conceito de pessoa, como categoria espiritual e subjetividade, que tem valor
em si mesmo, como ser de fins absolutos, e que, em conseqüência, é detentor de
direitos subjetivos ou direitos fundamentais e possui dignidade, surge com o
609
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição
Federal de 1988. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 62. "Registre-se que a
dignidade da pessoa humana foi objeto de expressa previsão no texto constitucional vigente [...].
Assim, antes tarde do que nunca - pelo menos ainda antes da passagem para o terceiro milênio -,
a dignidade da pessoa e, nesta quadra, a própria pessoa humana, mereceram a devida atenção
por parte da nossa ordem jurídica positivada.”
610
REALE, Miguel. Questões de direito público. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 3.
181
cristianismo, com a denominada filosofia patrística, sendo depois desenvolvida pelos
escolásticos611.
Sarlet menciona expressamente a doutrina de Kant, quando relembra que o ser
humano jamais poderá ser visto como objeto ou mero instrumento para a realização
dos fins alheios. Destaca que tal afirmação não estabelece que jamais se coloque
alguém em situação de desvantagem em prol de outrem, mas sim, que as pessoas
não poderão ser tratadas de tal forma que se venha a negar a importância distintiva
de suas vidas.612
O mesmo autor observa, ainda, que a concepção de dignidade de Kant “parte
da autonomia ética do ser humano, considerando esta (a autonomia) como
fundamento da dignidade do homem, além de sustentar que o ser humano (o
indivíduo) não pode ser tratado – nem por ele próprio – como objeto”.613 Para a
teoria Kantiana, o que diferencia o ser humano e o faz dotado de dignidade é que
ele nunca pode ser meio para os demais, mas fim em si mesmo. É com Kant que se
completa o processo de secularização da dignidade, que abandonou suas vestes
sacrais.
Entretanto, apenas ao longo do século XX, e somente a partir da Segunda
Guerra Mundial, a dignidade da pessoa humana passou a ser reconhecida nas
Constituições, especialmente depois de ter sido consagrada pela Declaração
Universal da ONU de 1948.614 E tem como embasamento a integridade e a
inviolabilidade da pessoa humana numa dimensão que transcende a visão de ser
humano dotado de físico. Considera-se como iniciativa pioneira a Lei Fundamental
611
ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. O princípio da dignidade da pessoa humana e a exclusão social.
Revista Interesse Público, n. 4, 1999.
612
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição
Federal de 1988. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 50-51.
613
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição
Federal de 1988. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 32.
614
BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais: O Princípio da
Dignidade da Pessoa Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 111. “De fato, com o fim da
Segunda Guerra Mundial, e especialmente após a criação da ONU, a discussão a respeito dos
direitos humanos ou fundamentais tomou uma nova dimensão. No âmbito internacional,
Declarações e Pactos sobre esses direitos foram firmados, bem como Organizações e Cortes
criadas para protegê-los. O reconhecimento do dever de respeitar e promover a dignidade da
pessoa humana – embora o conteúdo desta afirmação ainda hoje seja objeto de acirradas
disputas – parecia ser o único ponto de acordo teórico entre os países divididos pela Guerra Fria.”
182
de Bonn (23 de maio de 1949), responsável por celebrar, no seu art. 1.1., a seguinte
declaração: “A dignidade do homem é intangível. Os poderes públicos estão
obrigados a respeitá-la e protegê-la”. Nessa linha, a Constituição da República
Portuguesa, promulgada em 1976, expressa, logo no seu art. 1º, inerente aos
princípios fundamentais, que: “Portugal é uma República soberana, baseada, entre
outros valores na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada
na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”. Da mesma maneira, a
Constituição da Espanha, advinda após o término do franquismo, expressa: “A
dignidade da pessoa, os direitos invioláveis que lhe são inerentes, o livre
desenvolvimento da personalidade, o respeito pela lei e pelos direitos dos outros são
fundamentos da ordem política e da paz social”. Na França, não obstante a sua
reminiscência na amparo dos direitos individuais, não está explicitado o princípio no
texto da Constituição de 1958.
Com o fim do comunismo no leste europeu, as modernas constituições dos
países que se perfilharam a essa forma de governo totalitário, passaram a cultuar,
entre as suas diretivas, a dignidade do ser humano.
Ao examinar o texto da Constituição brasileira de 1988, identifica-se com
clareza no artigo 1º, inciso III, a dignidade da pessoa humana como um preceito
fundamental, que deve contar com toda a proteção assegurada pela própria
Constituição, que permite sejam coibidas todas as ações que resultem em seu
descumprimento. Assim, portanto, pode-se realçar que é essa condição de
fundamento que “lhe assegura uma posição topográfica ambivalente: ela se mantém
no topo do ordenamento, fundamentado, mas se esparge por todo o texto
constitucional – e, via de conseqüência, por todo o ordenamento jurídico”.615
O constituinte616 contemplou a dignidade da pessoa humana, refletindo o
reconhecimento de que o indivíduo institui o objetivo primordial da ordem jurídica.
615
616
ALVES, Gláucia Correa Retamozo. Sobre a dignidade da pessoa. In: MARTINS-COSTA, Judith
(Org.). A reconstrução do Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 226.
BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais: O Princípio da
Dignidade da Pessoa Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 202-203. O constituinte de 1988
fez opção pela dignidade como fundamento do Estado Brasileiro, como também de sua atuação,
dispondo, analiticamente, sobre tal, ao longo do texto constitucional. Quanto à eficácia jurídica em
geral, a modalidade que deve acompanhar as normas que cuidam da dignidade da pessoa
humana é a positiva ou simétrica.
183
Sendo fundamental, traduz a repulsa constitucional às práticas, aos poderes
públicos ou aos particulares que objetivem colocar o ser humano em posição de
desigualdade perante os outros, a desconceituá-lo como pessoa, atenunado-o à
condição de coisa, ou também a privá-lo dos meios necessários à sua
manutenção.617
Com efeito, os textos de direito positivo inseriram em suas disposições o
conceito de dignidade. Este não é mais portanto, apenas um princípio de
filosofia moral, mas também um princípio jurídico. A dignidade da pessoa
humana deve ser assim respeitada tanto como princípio moral essencial
como enquanto disposição de direito positivo. Respeitar a dignidade do
618
homem exige obrigações positivas.
Os princípios constitucionais, especialmente o princípio da dignidade da
pessoa humana619, manifestam as decisões fundamentais do constituinte, devendo
vincular sempre o intérprete em geral e especialmente o Poder Público. O referido
princípio deverá sempre ser o vetor interpretativo geral, orientando o intérprete em
seu ofício.620
A Constituição Federal de 1988 ocupou-se de muitas das condições materiais
de existência dos indivíduos, que são pressupostos de sua dignidade, dedicando a
elas um considerável espaço no texto constitucional e impondo a todos os entes da
Federação a responsabilidade comum de alcançar os objetivos relacionados ao
tema.621
617
618
619
620
621
Interessante a leitura de DANTAS, Ivo. Princípios constitucionais e de interpretação constitucional.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1995, p. 86-90, quando afirma que os princípios fundamentais
formam o núcleo central da Constituição, a irradiar o seu conteúdo sobre esta como um todo,
ostentando hierarquia ante os princípios gerais, que dirigem a sua carga eficacial para subsistema
determinado.
MAURER, Béatrice. Notas sobre o respeito da dignidade da pessoa humana...ou pequena fuga
incompleta em torno de um tema central. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Dimensões da
Dignidade: Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2005, p. 61-87.
É fonte de todos os direitos básicos do cidadão, constituindo também fonte de todos os direitos
fundamentais e é através destes que consegue o seu efetivo conteúdo e alcance normativo.
Preexiste ao reconhecimento dos direitos fundamentais nas Constituições do Estado moderno,
pois foi em decorrência do reconhecimento da necessidade de um mínimo de dignidade para toda
a pessoa humana que se positivaram os atualmente conhecidos direitos fundamentais.
BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais: O Princípio da
Dignidade da Pessoa Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 146.
BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais: O Princípio da
Dignidade da Pessoa Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 191.
184
Sarlet enfatiza a acuidade da evolução apresentada pela Constituição Federal
de 1988:
Igualmente sem precedentes em nossa evolução constitucional foi o
reconhecimento, no âmbito do direito positivo, do princípio fundamental da
dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III, da CF), que não foi objeto de
previsão no direito anterior. Mesmo fora do âmbito dos princípios
fundamentais, o valor da dignidade da pessoa humana foi objeto de
previsão por parte do Constituinte, quando estabeleceu que a ordem
econômica tem por fim assegurar a todos uma existência digna (art. 170,
caput) [...]. Assim, ao menos neste final de século, o princípio da dignidade
da pessoa humana mereceu a devida atenção na esfera do nosso direito
622 623
constitucional. -
A dignidade da pessoa humana foi elemento de expressa previsão
constitucional vigente também em outros capítulos de nossa Lei Fundamental, seja
quando estabeleceu que a ordem econômica tem por escopo assegurar a todos uma
existência digna (artigo 170, caput), seja quando, na esfera social, fundou o
planejamento familiar nos princípios da dignidade da pessoa humana e da
paternidade responsável (artigo 226, § 6º), além de assegurar à criança e ao
adolescente o direito à dignidade (artigo 227, caput).
A Constituição Federal nomeou, portanto, a dignidade da pessoa humana
como valor preponderante do sistema constitucional brasileiro. Reconhece-se aqui,
uma hierarquia axiológica, não apenas por estar a dignidade da pessoa instalada no
622
623
SARLET. Ingo Wolfang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2005, p. 111.
BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais: O Princípio da
Dignidade da Pessoa Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 108-110. A promoção e a
proteção dos direitos humanos e da dignidade humana constituíram um dos fundamentos
ideológicos de organização após a Segunda Guerra Mundial. “O último momento especialmente
marcante no percurso histórico da noção de dignidade da pessoa humana é também o mais
chocante. A revelação dos horrores da Segunda Guerra Mundial transtornou completamente as
convicções que até ali se tinham como pacíficas e ‘universais’. A terrível facilidade com que
milhares de pessoas - não apenas alemãs, diga-se, mas de diversas nacionalidades européias –
abraçaram a idéia de que o extermínio puro e simples de seres humanos podia consistir em uma
política de governo válida ainda choca A reação à barbárie do nazismo e dos fascismos em geral
levou, no pós-guerra, à consagração da dignidade da pessoa humana no plano internacional e
interno como valor máximo dos ordenamentos jurídicos e princípio orientador da atuação estatal e
dos organismos internacionais. Diversos países cuidaram de introduzir em suas Constituições a
dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado que se criava ou recriava (Alemanha,
Portugal e Espanha, e. g., em suas novas Cartas; a Bélgica tratou do tema através de emenda à
Constituição), juridicizando, com estatura constitucional, o tema. Também a Constituição
Brasileira de 1988 introduziu o Princípio, pela primeira vez, em seu artigo 1º, III, desenvolvendo-o
analiticamente ao longo de seu texto [...].”
185
pórtico da Carta Constitucional, como fundamento da República Federativa do
Brasil624, mas por ser ela a base de todos os direitos assegurados na Lex Mater.625
3.5.2 Concepções do conceito de dignidade da pessoa humana e sua
efetivação através da função social do contrato
O postulado da dignidade humana, devido à intensa carga de abstração, não
tem alcançado unanimidade entre os autores, embora se deva ressaltar que as
múltiplas opiniões apresentam-se harmônicas e complementares.
Rocha, afirma que, mesmo se um dado sistema normativo não idealizasse, em
sua expressão, a dignidade humana como fundamento da ordem jurídica, ela
continuaria a imperar e a informar o direito positivo na atual quadratura histórica. A
dignidade da pessoa humana está explícita no sistema constitucional onde os
direitos fundamentais tornam-se reconhecidos e garantidos, mesmo que não
ganhem demonstração afirmativa e direta, tal como agora concebidos e
interpretados, originam-se no homem e para ele concorrem e a pessoa humana e
sua dignidade não são dados como categorias jurídicas distintas.626 Logo, onde é
considerada direito fundamental, tida como centro de direitos, do mesmo modo é
reconhecida como fundamento de todo o ordenamento jurídico e abarcada como
pólo central emanador de conseqüências jurídicas.
Larenz reconhece na dignidade a prerrogativa de todo ser humano ser
respeitado como pessoa, de não ser lesado em sua existência (a vida, o corpo e a
saúde) e de possuir um âmbito existencial próprio.627
624
Art. 1º, III, da Constituição Federal.
Esta é a conclusão de SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos
fundamentais na Constituição Federal de 1988. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.
Para NUNES, Luiz Antonio Rizzato. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. São
Paulo: Saraiva, 2000, p. 16, a dignidade da pessoa humana é o “último arcabouço de guarida dos
direitos individuais e o primeiro fundamento de todo o sistema constitucional”, preponderando,
inclusive, sobre o princípio da isonomia.
626
ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. O princípio da dignidade da pessoa humana e a exclusão social.
Revista Interesse Público, n. 4, p. 23-48, 1999.
627
LARENZ, Karl. Derecho civil: parte general. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1978, p. 46.
625
186
Nesse sentido, Valdés salienta, no que tange à dignidade da pessoa humana,
quatro respeitáveis conseqüências: a) igualdade de direitos entre todos os homens,
por formarem a sociedade como pessoas e não como cidadãos; b) garantia da
independência e autonomia do ser humano, obstando toda coação externa ao pleno
desenvolvimento de sua personalidade, assim como toda atuação que implique na
sua deterioração; c) observação e proteção dos direitos inalienáveis do homem; d)
não admissibilidade da negativa dos principais meios para o desenvolvimento como
pessoa ou a imposição de condições subumanas de vida. O mesmo autor adverte
que a tutela constitucional curva-se em detrimento de violações não apenas do
Estado, mas igualmente pelos particulares.628 Segundo ele, pode-se revelar o
fundamento material da dignidade da pessoa humana na ordem jurídica.
Disso resulta que a interferência do princípio difunde-se nos seguintes
aspectos: a) respeito à igualdade dentre os homens (art. 5º, I, CF); b) impedimento
do ser humano como objeto, deteriorando-se a sua qualidade de pessoa, a implicar
na análise de prerrogativas de direito e processo penal, na restrição da autonomia
da vontade e na consideração aos direitos personalíssimos, entre os quais estão
arraigadas as limitações à manipulação genética do homem; c) garantia de um
patamar existencial mínimo629.
A dignidade da pessoa humana alude a reconhecer o homem como o centro do
universo jurídico. Essa proeminência, que não se conduz a determinados indivíduos,
compreende todos os seres humanos e cada um destes, individualmente
considerados.
628
629
FLÓREZ-VALDÉS, Joaquín Arce y. Los principios generales del derecho y su formulación
constitucional. Madrid: Editorial Civitas, 1990, p. 149.
Importante na tradição doutrinária e jurisprudencial alemã, VAZ, Manoel Afonso. Lei e reserva da
lei; a causa da lei na constituição portuguesa de 1976. Porto: Faculdade de Direito da
Universidade Católica Portuguesa, 1992. 515p. Tese de Doutorado, p. 190, vislumbra na
dignidade da pessoa humana a qualidade de princípio ético, de caráter hierarquicamente superior
às normas constitucionais e, portanto, vinculativo do poder constituinte, de modo que qualquer
regra positiva, ordinária ou constitucional, que lhe contrarie padece de ilegitimidade. Esse,
também é, o pensamento de TALAMINI, Eduardo. Dignidade humana, soberania popular e pena
de morte. Revista Trimestral de Direito Público. São Paulo, n. 11, p. 178-195, 1995, ao defender a
impossibilidade, em face da consideração da dignidade da pessoa humana como valor
suprapositivo, da instituição da pena de morte.
187
Para Nunes, o principal direito fundamental, constitucionalmente, é o da
dignidade da pessoa humana, e está na hora de o operador do Direito ter ação
social orientada pelo princípio fundamental expresso no Texto Constitucional.630
Esse autor entende a dignidade da pessoa humana como válido supra princípio
constitucional que irradia os demais princípios e normas constitucionais e
infraconstitucionais. Por esse motivo, não pode o princípio da dignidade da pessoa
humana ser desconsiderado em algum ato de interpretação, aplicação ou criação de
normas jurídicas.
Na verdade, o respeito ao ser humano – o personalismo ético e a dignidade
– não é mola mestra somente do Direito Civil, mas sim do ordenamento
como um todo, sobretudo a partir da Segunda Guerra Mundial, quando
diversos países, sobretudo os europeus, inseriram em suas Cartas Magnas
tal preocupação. Na Constituição brasileira vigente a dignidade da pessoa
humana foi erigida ao status de princípio fundamental, conforme resta claro
631 632
o disposto no art. 1º, inc. III. -
A dignidade da pessoa humana633, enquanto princípio constitucional, e que
deve ser entendida como primeiro princípio fundamental, põe em evidência o ser
humano, para o qual deve convergir todo o esforço de proteção oferecido pelo
Estado, através de seu ordenamento positivo. O Estado634-635, visto no âmbito geral,
630
631
632
633
634
NUNES, Luiz Antonio Rizzato. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São
Paulo: Saraiva, 2002, p. 50.
POPP, Carlyle. Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e a liberdade negocial: a
proteção contratual no direto brasileiro. In: LOTUFO, Renan (Coord.). Direito civil constitucional.
São Paulo: Max Limonad, 1999, p. 152.
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição
Federal de 1988. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 65. “Consagrando
expressamente, no título dos princípios fundamentais, a dignidade da pessoa humana como um
dos fundamentos do nosso Estado democrático (e social) de Direito (art. 1º, inc. III, da CF), o
nosso Constituinte de 1988 – a exemplo do que ocorreu, entre outros países, na Alemanha -,
além de ter tomado uma decisão fundamental a respeito do sentido, da finalidade e da
justificação do exercício do poder estatal e do próprio Estado, reconheceu categoricamente que é
o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o ser humano
constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal.” Então, o princípio da dignidade
da pessoa humana foi reconhecido pela ordem jurídico estatal, de forma expressa ou
implicitamente, passando a se verificar que a dignidade da pessoa passou sim, a integrar o direito
positivo que está vigente.
MODESTO, Paloma. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações jurídicas privadas. Revista
do Curso de Direito das Faculdades Jorge Amado, v. 2, n. 1. Salvador: Faculdades Jorge Amado,
p. 400. “A norma definidora da dignidade humana não protege apenas os indivíduos em face do
Estado, mas também em face de outros domínios sociais. O Estado assume a função de não
interferir na esfera da liberdade e dignidade das pessoas, como também de impedir agressões
oriundas de terceiros, inclusive dos poderes privados.”
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição
Federal de 1988. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 111. O Princípio da
dignidade da pessoa humana não apenas impõe um dever de abstenção (respeito) do Estado,
mas também condutas positivas tendentes a efetivar e proteger a dignidade dos indivíduos.
188
possui a tarefa primordial de preservar e garantir a dignidade da pessoa humana,
inclusive promovendo-a, através de ações positivas, já que seria essa uma condição
de limite da atividade dos poderes públicos, pois a dignidade necessariamente é
algo que compete a cada um e que não pode ser perdido ou alienado, porquanto,
deixando de existir, não teria limite a ser respeitado pelo Estado.636 Aliás, sem o
Estado seria praticamente impossível ao indivíduo, de forma isolada, realizar suas
necessidades existenciais básicas, razão pela qual caberia àquele ações positivas
no sentido de propiciar aos indivíduos o pleno exercício e fruição da dignidade.
Portanto, o princípio da dignidade da pessoa humana foi reconhecido pela
ordem jurídica estatal, de forma expressa ou implicitamente. Verifica-se que a
dignidade da pessoa passou, sim, a integrar o direito positivo vigente.637
A dignidade638 do indivíduo põe o homem no cerne do sistema jurídico. É a
pessoa o foco da tutela jurídica, devendo esta conservar os mais importantes valores
daquela, como a prerrogativa de ser respeitada como pessoa, de não sofrer dano
em sua integridade física, saúde ou em sua existência, bem como de dispor de
condições adequadas de vida.639 A assunção do ser humano como centro da tutela
jurídica impede admitir-se seja ele colocado na qualidade de objeto de qualquer
interesse, quer do Estado ou de outros quaisquer “poderes privados”.
Nessa linha de raciocínio, sustenta-se que a concretização do programa normativo do princípio da
dignidade da pessoa humana incumbe aos órgãos estatais, especialmente ao legislador, que fica
encarregado de edificar uma ordem jurídica que atenda às exigências do referido princípio. Então,
o princípio da dignidade da pessoa humana impõe ao Estado, além do dever de respeito e
proteção, a obrigação de promover as condições que viabilizem e removam toda sorte de
obstáculos que estejam a impedir às pessoas de viverem com dignidade, inclusive as agressões
de terceiros.
635
Assim sendo, além dessa tutela estatal acerca da dignidade humana, reforçam-se também os
demais princípios que zelam pela paz, pela não-agressão, pela integridade física, moral e
psíquica dos seres humanos assinalados pela ininterrupta resistência às condutas violadoras do
princípio da dignidade humana, e por via de conseqüência, dos direitos humanos. Logo, verificase que há um sistema normativo protetivo intenso e coeso no amparo desses direitos.
636
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição
Federal de 1988. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 111.
637
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição
Federal de 1988. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 66.
638
SILVA, Jair Militão da. A consideração da Dignidade Humana como critério de formulação de
políticas públicas. In: MARCÍLIO, M.L.; PUSSOLI, L. (Org.). Cultura dos Direitos Humanos. LTr,
1998, p. 195. “A História ilustra com muitos exemplos, o valor da afirmação da dignidade humana
como forma de resistência a regimes ditatoriais e mesmo totalitários. Por não ser espontânea, em
nossa sociedade, a defesa da dignidade humana, é preciso que aqueles sensibilizados por essa
necessidade, utilizem-se de meios eficazes e eficientes na luta pela criação de um clima de
respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana.”
639
LARENZ, Karl. Derecho civil: parte general. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1978, p 46.
189
Sarlet assevera que: “[...] o respeito e a proteção da dignidade da pessoa (de
cada uma e de todas as pessoas) constituem-se (ou, ao menos, assim o deveriam)
em meta permanente da humanidade, do Estado e do Direito”.640 Assim, cabe
registrar que a dignidade da pessoa humana tem uma qualidade intrínseca e
característica de cada ser humano que o faz digno da mesma consideração pelo
Estado e comunidade. Isso implica um complexo de direitos e deveres fundamentais
que possam assegurar à pessoa, tanto contra todo e qualquer ato de cunho
degradante e desumano, como também garantindo a ela as condições existenciais
mínimas para que tenha uma vida saudável.641 Esse complexo também deve
propiciar e promover a participação ativa e co-responsável da pessoa em sua própria
existência e na vida em comunidade com os demais seres humanos.
Tal concepção mostra que a dignidade possui uma voz ativa, bem como uma
voz passiva, e que ambas estão conectadas. O autor supracitado defende que é na
santidade e inviolabilidade da vida humana, que é um valor intrínseco de todo e
qualquer ser humano, que encontramos a explicação para o fato de que mesmo
aquele que já perdeu a consciência da própria dignidade merece tê-la, devendo ela
ser considerada e respeitada, acima de qualquer coisa.642
Considerada como um valor intrínseco do ser humano, a dignidade, gera para
o indivíduo o direito de ele decidir de forma autônoma sobre seus projetos
existenciais e de felicidade. Mesmo quando essa autonomia faltar ao indivíduo ou
não puder ser atualizada, ainda assim, ele deve ser considerado e respeitado pela
sua condição humana.643
640
641
642
643
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição
Federal de 1988. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 27.
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição
Federal de 1988. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 59-60.
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição
Federal de 1988. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 41-42. Na lição de Sartet, a
dignidade humana é “qualidade integrante e irrenunciável da própria condição humana, pode (e
deve) ser reconhecida, respeitada, promovida e protegida, não podendo contudo [...] ser criada,
concedida ou retirada (embora possa ser violada), já que existe em cada ser humano como algo
que lhe é inerente”.
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição
Federal de 1988. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 116-120.
190
A dignidade é irrenunciável e inalienável, estabelecendo elemento que
caracteriza o ser humano e dele não pode ser separado, não sendo possível admitir
a probabilidade de determinada pessoa ser titular de uma pretensão que lhe
conceda dignidade. Esta não se faz presente somente onde é aceita pelo Direito,
que poderá exercer papel fundamental na sua proteção e promoção; no entanto, não
é sem motivo que se fundamentou inclusive a desnecessidade de uma significação
jurídica da dignidade humana. Esta é o princípio constitucional de maior hierarquia
axiológica e que conglomera o respeito e proteção à integridade física e psíquica
que assume particular proeminência em período de globalização, privatização e
incremento dos níveis de exclusão. Contudo, esse princípio não pode ser visto no
sentido de que tudo o que faz parte do texto constitucional seja reconduzido ao valor
do princípio da dignidade, sob pena da sua banalização.644 Apenas a dignidade
determinada (ou de determinadas) de uma pessoa é passível de ser desrespeitada,
inexistindo ataques contra a dignidade da pessoa em “abstrato”.645
Vinculada a essa idéia, ligada diretamente ao pensamento kantiano, encontrase a concepção de que a dignidade constitui atributo da pessoa humana
individualmente considerada, e não é um ser ideal ou abstrato, razão pela qual não
deverão ser confundidas as noções de dignidade da pessoa e dignidade humana,
quando esta for referida à humanidade como um todo.646
A dignidade da pessoa647 humana possui a qualidade de princípio fundamental,
constitui valor-guia não somente dos direitos fundamentais, todavia de toda a ordem
jurídica (constitucional ou infraconstitucional). Por tal razão é que, para muitos,
possui características de um princípio constitucional de maior hierarquia axiológicovalorativa.
644
645
646
647
SARLET. Ingo Wolfang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2005, p. 116-121.
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição
Federal de 1988. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 51.
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição
Federal de 1988. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 51-52.
FARIAS. Edilson Pereira de. Colisão de direitos: A honra, a intimidade, a vida privada e a imagem
versus a liberdade de expressão e informação. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1996,
p. 51. Ela é paradigma avaliativo de cada ação do Poder Público e "um dos elementos
imprescindíveis de atuação do Estado brasileiro."
191
Na sua perspectiva principiológica, a dignidade da pessoa atua como um
mandado de otimização que ordena algo, no caso, a proteção e promoção da
dignidade da pessoa, que precisa ser concretizado na máxima medida possível,
considerando as possibilidades fáticas e jurídicas existentes, ao passo que as regras
contêm prescrições imperativas de conduta.648
O conteúdo da regra da dignidade da pessoa decorre apenas do processo de
ponderação que se opera no nível do princípio da dignidade, quando confrontado
com outros princípios, de tal sorte que a regra pode ser absoluta. E, neste raciocínio,
poder-se-á aplicar a lógica do “tudo ou nada”, mas jamais o princípio. Considerandose sempre que a dignidade da pessoa humana constitui princípio de feições
absolutas, sempre e em todos os casos haverá de prevalecer em relação aos
demais princípios.
Quanto à afinidade entre o princípio da dignidade da pessoa humana e os
direitos fundamentais, fazem-se relevantes as lições de Sarlet:
[...] o princípio da dignidade da pessoa humana vem sendo considerado
fundamento de todo o sistema dos direitos fundamentais, no sentido de que
estes constituem exigências, concretizações e desdobramentos da
dignidade da pessoa humana e que com base nesta devem ser
interpretados. Entre nós, sustentou-se recentemente que o princípio da
dignidade da pessoa humana exerce o papel de fonte jurídico-positiva dos
direitos fundamentais, dando-lhes unidade e coerência. Não se pode
desconsiderar, neste contexto, que a liberdade e a igualdade são noções
indissociáveis da dignidade de cada pessoa humana, justificando - como já
visto - o reconhecimento de direitos fundamentais diretamente vinculados à
649
proteção das liberdades pessoais e da isonomia.
Esses ensinamentos levam à abstração do individualismo para que, colocandose sempre no lugar das outras pessoas, possa-se agir, julgar e realizar. A dignidade
da pessoa humana defende a idéia de que tudo se volta para o homem e tem no
homem sua finalidade essencial. Portanto, a dignidade é um estado, uma condição
de todo ser humano, que deve ser tutelada pelo ordenamento positivo e garantida
pela atuação eficaz do Estado.
648
649
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição
Federal de 1988. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 72.
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição
Federal de 1988. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p.115.
192
Portanto, verifica-se que a expressão “dignidade” possui diversos significados,
tem uma amplitude conceitual que extravasa o campo do direito positivo, assumindo
conotações de ordem subjetiva, moral, religiosa e social, entre outras. Apresenta-se
como um conjunto de qualidades intrínseco à pessoa humana e dela indissociável,
de conteúdo inegavelmente axiológico, pois retrata valores próprios do homem, mas
que refletem no coletivo. Tais valores não são passíveis de substituição ou
alteração, nem se sujeitam a qualquer ordem de hierarquia ou classificação, pois
não estão no campo da relatividade. São absolutos e, embora formem um conjunto,
são autônomos em sua individualidade.
A dignidade da pessoa humana é o núcleo essencial dos direitos fundamentais,
a “fonte jurídico-positiva dos direitos fundamentais”, a fonte ética, que atribui unidade
de valor e concordância prática ao sistema dos direitos fundamentais. É qualidade
inerente da essência da pessoa humana, único ser que compreende um valor
interno, superior a qualquer valor, que não aceita substituição equivalente. E a
pessoa650, assim considerada, é a que está situada em sua concreção social e
histórica, a que é perspectivada na subjetividade e na objetividade históricas, o ser
enquanto realidade histórica e idealidade, visualizado na incindível unidade de sua
dimensão social e existencial.651
Portanto, a dignidade da pessoa humana não é uma criação constitucional,
porque é um conceito a priori, um dado preexistente a toda experiência especulativa,
tal como a própria pessoa humana. A Constituição, reconhecendo a sua existência,
transformou-a num valor soberano da ordem jurídica ao declará-la como um dos
fundamentos da República Federativa do Brasil, fundada em Estado Democrático de
Direito. Ou seja, é importante frisar o caráter jurídico-normativo da dignidade, do
reconhecimento de sua plena eficácia na ordem constitucional brasileira, pois foi
guindada à condição de princípio fundamental do Estado Democrático de Direito.
650
651
REALE, Miguel. Pluralismo e liberdade. 2. ed. São Paulo: Expressão e Cultura, 1998, p. 87 e 89.
Reale afirma expressamente que pessoa e convivência histórico-social “são termos que se
exigem reciprocamente, visto que – e este é o ponto essencial – pôr-se como pessoa é pôr-se
como história, como alteridade, como comunidade”. Acrescenta que é também, e ao mesmo
tempo, unidade e individualidade irredutível à mera parte do todo. Por essa razão, o autor traz o
conceito de pessoa traduzindo essa polaridade do ser humano.
MARTINS-COSTA, J.; BRANCO, G. Diretrizes teóricas do novo Código Civil brasileiro. São Paulo:
Saraiva, 2002, p. 182.
193
Desse modo, a dignidade da pessoa humana assume feição de princípio
constitucional fundamental, não afastando a importância de seu papel como valor
fundamental geral, para toda a ordem jurídica, sendo outorgado a este valor uma
maior pretensão de eficácia e efetividade. Considerado como um mandado de
otimização, que ordena algo, no caso, a proteção e promoção da dignidade da
pessoa, deve ser efetivada no maior grau admissível, consideradas as possibilidades
fáticas e jurídicas existentes.652
Conforme argumentado, o referido princípio é valor-guia para todos os
intérpretes da Constituição Federal, objetivando atender e concretizar a dignidade da
pessoa humana. Ele é considerado princípio estruturante, pois é concreto,
consagrado na ordem constitucional, e a partir do qual advêm outros princípios
fundamentais. Usado, na interpretação, para a compreensão global da ordem
constitucional, assume também feição de um conceito maior, para que ocorra
sempre a concretização das outras normas, constitucionais ou não.
A não aplicação desse princípio constitucional suscita nos cidadãos o
sentimento de injustiça. Todos querem e necessitam de igualdade. Sentir-se
injustiçado é exatamente experimentar a carência de algo de que se necessita e de
que se foi privado.653
Deve o princípio da dignidade da pessoa humana ser obedecido e utilizado, se
não de maneira absoluta (pois não existem princípios absolutos), ao menor
sopesado em relação aos demais princípios.
Tem-se, portanto, o princípio da dignidade da pessoa humana como um valor
supremo, que por sua vez serve como alicerce de todas as acepções e de todos os
652
653
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição
Federal de 1988. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 72.
CALMON DE PASSOS, J. J. Direito, Poder, Justiça e Processo. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p.
60, nota 07. Calmom de Passos recorda fantástica história: “Diógenes, o filósofo, foi procurado
por Alexandre, o Grande, que desejava homenageá-lo, dada sua grande admiração pelo sábio, e
indagado pelo poderoso conquistador sobre o que desejava, para que pudesse satisfazê-lo,
respondeu simplesmente: ‘Peço-lhe que se afaste um pouco, para não impedir, com sua sombra,
que continue me aquecendo à luz do sol’. O soberbo, que acreditava poder dar a Diógenes o que
desejasse, estava precisamente privando o filósofo do único bem de que necessitava realmente,
naquele momento e na perspectiva das carências que poderiam infelicitá-lo.”
194
caminhos interpretativos dos direitos fundamentais e do direito como um todo;
determina o limite positivo e negativo da ação do Estado e particulares, e tornou-se
imperioso, porque é constituído em norma-princípio-matriz654 do constitucionalismo
contemporâneo. Esse princípio Permeia o reconhecimento do ser humano como
centro e fim do Direito, sendo de importância fundamental, pois ressoa sobre todo o
ordenamento jurídico. Consiste num mandamento nuclear do sistema, que irradia
efeitos sobre outras normas e princípios. Assim, merece o princípio da dignidade da
pessoa humana ser melhor estudado e, principalmente aplicado.
Ademais,
cumpre
salientar
que
os
direitos
fundamentais
constituem
concretizações do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana,
vinculando diretamente o Estado e particulares. Portanto, neste último caso,
“assumem relevância autônoma apenas onde não se estiver em face de uma
vinculação desde logo expressamente prevista no texto constitucional”.655
Em relação ao sistema contratual656, esse princípio labora conexo à pessoa
humana, em contratos não vistos meramente pelo patrimonialismo, mas de maneira
própria e especial. A proteção ao mais fraco nas relações contratuais não pode ser
muito aberta, abandonando o que dispõe a lei, uma vez que tende a proteger aquele
que acordou o contrato em desvantagem, podendo este ser revisto judicialmente.
Contudo, a dignidade da pessoa humana deve ser protegida e ter aplicação ampla,
em todos os aspectos.
654
655
656
MARTINS-COSTA, J.; BRANCO, Gerson. Diretrizes teóricas do novo Código Civil brasileiro. São
Paulo: Saraiva, 2002, p. 183. “E se a pessoa é o valor-fonte, fonte projetante ou instituidora dos
demais valores, caracterizando uma ‘invariante axiológica-jurídica’ não há como negar a
existência de uma hierarquia entre valores. Terá assim a pessoa humana, além de uma valência
específica no plano ontognoseológico, outra no plano ético, aí como ‘critério objetivo e primordial
de aferição da experiência ético-jurídica, pois a priori pode considerar-se injusta toda ordem social
que redunde em diminuição da dimensão já adquirida in concreto pela pessoa humana em cada
ciclo histórico.”
SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais e direito privado: algumas considerações em tomo
da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais. In:______ (Org.) A Constituição
concretizada: construindo pontes com o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2000, p. 150.
TUTIKIAN, Cristiano. Sistema e codificação: o Código Civil e as cláusulas gerais. In: ARONNE,
Ricardo (Org.). Estudos de Direito Civil – Constitucional. v. 1. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2004, p. 29. “Significativa importância possui a concepção de sistema sobre a realidade contratual
vigente, não somente pela massificação obrigacional, mas pela busca da igualdade e justiça
material entre os partícipes da relação contratual.”
195
Este princípio como informador de todos os demais princípios do campo
contratual, tem aplicação ampla, delimita o contrato e estabelece os limites
a serem observados no cumprimento do mesmo, de forma a resguardar o
equilíbrio necessário e compatibilizar a exigência de seu cumprimento com
os valores essenciais das partes envolvidas, em especial a parte mais fraca
657
que deve ser sobreposta ao objeto de lucro da parte mais forte.
Da mesma forma, assume relevo o argumento de que o princípio da dignidade
da
pessoa
humana,
como
valor
supremo
da
ordem
constitucional
e
infraconstitucional, vincula os particulares nas relações jurídicas privadas aos
direitos fundamentais. Também, opera eficácia limitando o princípio da autonomia
privada, contudo não a suprime, sendo que este versa num bem constitucionalmente
tutelado.
O contrato, mesmo em seguida da relativização do princípio da autonomia da
vontade, continua a ser instrumento de valor fundamental na sociedade. Deixa de
ser mera determinação de vontades, para ser meio de cooperação entre as partes.
Seus resultados refletem sobre toda a sociedade, não apenas entre as partes
contratantes, ensejo pelo qual decidiu o legislador que o contrato deve atender uma
função social e ser fundamentado na boa-fé658, princípios garantidores da dignidade
da pessoa humana. Isso resultou na “funcionalização” da liberdade contratual.
O princípio da função social do contrato busca constitucionalizar os institutos do
direito privado, permeando-os pelos princípios constitucionais. E o fenômeno da
constitucionalização do direito privado alude um comprometimento do magistrado
em prol da concretização e efetivação dos direitos fundamentais nas relações
interprivadas.
Em face do exposto, a teoria dos contratos sofreu uma profunda transformação,
substituindo uma concepção clássica, liberal e individualista, por um modelo aberto,
657
658
MILANO, R. C.; MILANO FILHO, N. D. Princípios contratuais à luz da Constituição Federal.
Revista da Faculdade de Direito de Guarulhos. Ano 3 – N. 5. Guarulhos: SOGE, jun./dez. 2001, p.
115.
NEGREIROS, Teresa. Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé.
Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 222-223. “[...] o princípio da boa-fé, como resultante necessária
de uma ordenação solidária das relações intersubjetivas, patrimoniais ou não, projetadas pela
Constituição, configura-se, muito mais do que como fator de compressão da autonomia privada,
como um parâmetro para a sua funcionalização à dignidade da pessoa humana, em todas as
suas dimensões.”
196
solidário e ético, que tem por desígnio a aplicação dos valores659 e princípios
constitucionais nas relações contratuais. E o princípio da função social do contrato
está fundamentado sobre a ampliação da dignidade social dos indivíduos,
contratantes ou não, tanto internamente (contrato) como externamente (terceiros ao
contrato).
[...] (dignidade da pessoa humana), por se tratar de um valor constitucional
supremo, que se traduz no respeito ao ser humano, significa dizer ser o
ponto central de todo o ordenamento jurídico e para onde converge todo o
espectro de interesses constitucionais. Para tanto, a Constituição Federal
repousa todo o seu manto principiológico na proteção da dignidade da
pessoa humana, ou seja, na concepção de que a pessoa é o fundamento e
660
o fim da sociedade e do Estado.
Uma vez posta a dignidade da pessoa humana como valor supremo da ordem
constitucional, o direito dos contratos deve essencialmente respeitá-la. As
necessidades fundamentais, a pessoa e a sua dignidade passam a ser critério e
medida das adjacências jurídicas dos bens dos contratos. Assim, os contratos que
apresentam em seu conteúdo a função de atender uma necessidade existencial do
contratante necessitam submeter-se a uma rigorosa tutela pelo Estado; díspar dos
contratos reservados à satisfação de preferências que não conformam necessidades
básicas, estes se sujeitam a disciplinamento mais liberal. Ou seja, o bem em
questão decide o nível de proteção do Estado; e a dignidade da pessoa humana
sempre será privilegiada perante os outros valores em conflito.
Ressalta-se que a proteção da dignidade da pessoa humana de uma das
partes não colida com a dignidade das outras pessoas envolvidas ou não na relação
contratual, sendo que a dignidade humana pressupõe a dignidade da coletividade.
Esta deve ser interpretada mediante o princípio da função social do contrato,
apreciando-se seus efeitos e reflexos diante da sociedade. Assim sendo, a teoria
contratual exerce uma função social, que é um importante instrumento de efetivação
dos direitos fundamentais nas relações contratuais, tem como valor superior o
659
660
FLÓREZ-VALDÉS, Joaquín Arce y. Los principios generales del derecho y su formulación
constitucional. Madrid: Editorial Civitas, 1990, p. 101. Reconhece Flórez-Valdés que valores tais
quais a segurança e a legalidade estão predispostos à promoção do que chama de “grandes
princípios”, quais sejam o da justiça (solidarismo social) e o da igualdade, todos recondutíveis ao
valor-base da dignidade da pessoa humana.
HORA NETO, João. O princípio da função social do contrato no Código Civil de 2002. Revista de
Direito Privado, São Paulo, n. 14, p. 45, abr/jun, 2003.
197
princípio da dignidade da pessoa humana, incide numa importante forma de
constitucionalização do direito privado e está prevista no novo Código Civil brasileiro
como uma cláusula geral. A função social do contrato é um limite interno, constante
e de vertente também positiva, promocional de valores básicos do ordenamento.
Enfim, o que se tem é a função social do contrato integrando-lhe o conteúdo,
garantindo que o ato de vontade receba tutela jurídica, desde que seja socialmente
útil e sirva à promoção de valores constitucionais fundamentais, dentre os quais se
destaca a dignidade humana.
Pode-se observar, a rigor, que a legislação atual que conduz a multiplicidade
dos contratos solenizados entre particulares está repleta de princípios e cláusulas
gerais, que tem como escopo assegurar a eficácia dos direitos fundamentais nas
relações privadas. Tais cláusulas servem de subsídio ao intérprete, a fim de tornar
plausível a máxima efetividade constitucional.
Diante dessas circunstâncias, verifica-se que, nos contratos entre privados,
ambos os particulares são titulares de direitos fundamentais e, desse modo, os
direitos produzem efeitos “a favor e a custa de ambos os participantes de uma
relação jurídica, de modo que uma vinculação aos direitos fundamentais somente se
deixa fundamentar sobre a base de direitos fundamentais que se limitam
mutuamente.”661
Afinal, no que tange à concretização e efetivação dos direitos fundamentais nas
relações interprivadas, o adequado seria o alcance na elaboração da norma partir do
legislador. No entanto, quando isso não acontece, o preceito fundamental deve ser
aplicado diretamente, uma vez que este tem primazia e deve produzir eficácia
imediata, na ocorrência dos contratos, o meio seria a função social do contrato. Para
isso, aguarda-se uma contribuição do judiciário662, no escopo de promover a
efetivação dos direitos fundamentais. E esta resulta de um comprometido de garantir
661
HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução
de Luiz Afonso Heck. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1998, p. 284.
662
SCHMIDT DA SILVA, Agathe E. Cláusula Geral de Boa-Fé nos Contratos de Consumo. Revista do
Consumidor, São Paulo, n. 17, p. 149, 1996. “É assim que a Constituição de 1988 exige que a
autonomia privada atenda os ditames da justiça social, tendo na sua base a função social do
contrato, cabendo ao Poder Judiciário a determinação do ponto em que a liberdade e a justiça se
equilibrem.”
198
a primazia na aplicação da interpretação que melhor assegura a efetividade dos
direitos fundamentais. Enfim, os direitos fundamentais formam o núcleo básico de
todo ordenamento constitucional e revelam-se como verdadeiros objetivos que
devem ser buscados pelo Estado Democrático de Direito, pois, uma vez validados
pela comunidade para a qual foram previstos, integram a consciência ético-jurídica.
199
CONCLUSÃO
Sem a pretensão de esgotar o tema, ou mesmo alcançar conclusões inéditas,
este estudo compila idéias e teses acerca da função social do contrato e da
influência dos direitos fundamentais nas relações interprivadas, promovendo uma
reflexão acerca das mesmas.
A função social do contrato corresponde, atualmente, a uma nova concepção
do instituto, pois além de possibilitar a circulação econômica, também deve garantir
e promover valores constitucionais reputados fundamentais, como a dignidade da
pessoa humana. O contrato assume eficácia social, corolário de sua inclusão na
conjuntura das relações entre os indivíduos, portanto seus efeitos se alastram
igualmente diante de terceiros, não-contratantes.
No intuito de refletir a respeito, inicialmente, a presente pesquisa tratou da
conceituação de função social do contrato e da ordem principiológica informadora do
direito contratual clássico e contemporâneo. Inegavelmente, existe um atrelamento
entre o princípio da função social do contrato e a metamorfose dos demais princípios
contratuais, motivo pelo qual o ponto de partida para que se entenda esse princípio
é a realização de um estudo sobre os princípios fundamentais dos contratos. Entre
esses aspectos da teoria contratual, destacam-se sua evolução, importância e
localização no texto constitucional, justamente por ser um limite interno, constante e
promocional de valores básicos do ordenamento jurídico. Os princípios, na sua
concepção clássica, já não mais se mostram apropriados ao novo direito contratual,
pois amparavam-se no rigor da visão liberal, lastreada em dogmas que não mais
satisfazem à realidade atual. Foram reconhecidos novos princípios contratuais,
denominados princípios sociais do contrato, que refletem a mudança na visão desse
instituto jurídico, como o princípio da boa-fé objetiva e o princípio da função social do
contrato.
Ademais, nessa mesma ordem axiológica de idéias, repisa-se a importância
dessa mudança de visão, a partir da qual passou-se a valorizar a pessoa enquanto
ser humano, ao invés de valorizar o patrimônio. O homem deixa de ser um mero
200
objeto, passa a ser percebido no seu sentido axiológico; e a preservação da
dignidade humana torna-se mais respeitável do que o lucro. Enfim, deu-se a
transição do patrimonialismo para o personalismo, e a solidariedade foi reconhecida
como valor jurídico.
Esse princípio garante que o ato de vontade receba tutela jurídica, desde que
seja socialmente útil e sirva à promoção de valores constitucionais fundamentais. Ou
seja, a vontade não fica afastada da formação do contrato, mas o fim normativo
localiza sua origem na incidência do ordenamento, em conformidade ao ato de
iniciativa da parte às escolhas e valores do sistema.
Arrazoa-se que hoje ocorre uma relativização da autonomia privada, com
incidência direta da Constituição nas relações civis. O que se almeja é revitalizar a
dogmática contratual, ajustando-a à realidade econômica e social, tendo em vista
que o direito não pode ficar distante das transformações enfrentadas pela
sociedade.
Como foi visto, a concepção clássica do Código Civil de 1916,
fundamentada no individualismo, apresentava uma estabilidade permanente das
relações jurídicas a respeito das mudanças que ocorriam. O Código Civil era
adotado como algo perfeito e acabado, apto a regular toda a vida privada do
indivíduo. Por sua vez, a positivação de princípios sociais no Código de 2002 não
fez com que as prerrogativas clássicas do Direito Civil perdessem seu valor, mas
que sua apreciação seja feita à luz de valores e princípios, não unicamente de
regras. A Constituição Federal de 1988 unificou não somente um código, mas
também os microssistemas existentes no ordenamento jurídico.
Portanto, com a vigência do Código de 2002, o princípio da função social do
contrato deixou de ser um princípio jurídico implícito, tornando-se princípio explícito,
porque passou a estar expresso no ordenamento jurídico. A natureza da função
social do contrato não se altera em face da sua positivação como cláusula geral
através do art. 421, do Código de 2002. Trata-se de uma norma, uma cláusula geral
que contém um princípio jurídico. Ou seja, o art. 421 é reflexo da releitura que o
ordenamento conferiu ao instituto do contrato ou da própria autonomia privada.
201
Representa um instrumento de garantia e prestígio a valores constitucionais que
ainda precisam ser observados nas relações negociais, principalmente aquelas
intrinsecamente desequilibradas.
Cabe ressaltar que, com a ebulição econômica e social, o Direito entendeu
suas deficiências perante as novas necessidades e inquietações, principalmente
sociais. Necessidades essas que influenciaram a forma clássica e individualista dos
contratos e a função do Estado na economia, fazendo-se imprescindível a busca de
instrumentos apropriados para a solução das dificuldades apresentadas pela nova
ordem social. Então, surge a concepção de que o Estado deveria intervir e dirigir o
fenômeno econômico e social.
O Estado passa de liberal para social, ou seja, as relações intersubjetivas que
privilegiavam a iniciativa do indivíduo (liberalismo) adotam adjacências macroeconômicas, com a atitude do Estado na percepção do bem da coletividade. O
Estado social aliou a promoção do bem-estar da coletividade à co-participação do
indivíduo, superando a fronteira entre o direito público e o direito privado.
Conforme mencionado ao longo deste estudo, o contrato, nesse contexto
histórico, e na condição de instrumento da economia e algoritmo da autonomia
privada e da propriedade como direito natural, adquire um novo aspecto,
relativizando os conceitos de liberdade contratual e autonomia da vontade. Almejase, no nível concreto, a igualdade real entre as partes contratantes, apartando
qualquer feitio de preponderância de uma parte em face da outra.
O Direito desempenha importante função na busca pelo equilíbrio contratual,
permitindo a ação do Estado, conferindo certeza e estabilidade às relações
econômicas, como produto de suas características, a regularidade e a legalidade.
Assim sendo, o Direito tem a finalidade de buscar a justiça substancial (concreta),
conjugando o princípio da propriedade privada com uma economia administrada
pelo Estado, num mercado trajado pela concentração de empresas.
202
Diante da necessidade de intervenção estatal na economia e a decorrente
renovação na dogmática contratual, introduzem-se na Carta Magna mais deveres
sociais no desenvolvimento da atividade econômica, abolindo-se a visão de Código
Civil como Constituição dos direitos civis. As cartas constitucionais avocam
princípios, antes pertencentes unicamente ao Código Civil, enquanto as legislações
extracodificadas igualmente dirigem-se às atividades produzidas pela pessoa (sujeito
de direito), seus riscos e impacto social.
No Brasil, com a Constituição de 1988, procura-se interpretar e valorar o
Código Civil, os diplomas setoriais, conjuntamente, conservando o caráter de
plenitude de cada estatuto e do próprio código, objetivando a tutela da dignidade da
pessoa humana. Inicia-se a “era dos estatutos”. Não se pode deixar de admitir que
os estatutos tratam do direito substantivo e do direito processual, estabelecendo
princípios interpretativos. Tornam-se uma legislação para a consecução de objetivos,
por meio de cláusulas gerais com a linguagem apropriada a cada setor, devendo o
aplicador do direito levar os comandos normativos relacionados a determinadas
situações. Os mesmos formam verdadeiros microssistemas, que por si só acarretam
uma dificuldade, a fragmentação do direito jurídico privado, o que levaria a uma
adoção de normas e princípios colidente num sistema constitucional que situa os
princípios a serem adotados. É concludente a necessidade de uma interpretação da
legislação civil através da “tábua axiológica” trazida pela ordem constitucional de
1988.
Foi nesse sentido que se evidenciou a necessidade imperiosa de adentrar na
ceifa dos princípios constitucionais, em que não podem ser notados de maneira
secundária em relação às leis ordinárias, sendo utilizados apenas como ente
interpretativo na omissão do legislador; portanto, as constituições e o legislador vêmse valendo de cláusulas gerais, as quais abarcam as normas jurídicas aplicáveis aos
casos concretos.
Assim, evidenciou-se, para além da compreensão da sua perspectiva jurídiconormativa, que o princípio da função social dos contratos foi implementado no
ordenamento jurídico como cláusula geral. Essa técnica legislativa aceita uma maior
atuação do juiz, provocando dispositivos proibitivos formulados em termos amplos,
203
genéricos e elásticos, que possam cobrir mesmo hipóteses singulares não previstas
ou não previsíveis na ocasião da promulgação da norma. E isso atribui maior
operabilidade do direito contratual.
Aliás, as cláusulas gerais e conceitos indeterminados, de fato, muito exigem da
atividade integrativa do magistrado. Existe uma fuga do juiz para formas alternativas
de solução de conflitos em que se reclamam novas fórmulas legais, pois o mesmo
deve garantir meios e modos de realizar a jurisdição, observando o novo suporte
axiológico do direito contratual. Ao judiciário, cabe, nas relações jurídicas, a adoção
da promoção dos valores fundamentais do sistema e, principalmente, do reequilíbrio
de relações jurídicas desiguais, característica de um contrato relido à luz dos
princípios constitucionais, entre eles o da função social.
Dito de outro modo, o que se depreende dessa conjuntura é que as cláusulas
gerais continuam a desempenhar papel inafastável, satisfazendo a uma exigência
contemporânea. Essas cláusulas são inelimináveis porque atendem a um modelo
jurídico principiológico e recuado à melhor solução dos casos concretos. Portanto,
exige-se, como papel basilar da doutrina e da jurisprudência, a fixação de conexão
valorativa para efetivação das mesmas cláusulas e a garantia de um efetivo
atendimento a valores constitucionais fundamentais. Clama-se pela garantia de
realização dos princípios maiores de justiça e bem-estar social. Os grandes
princípios, quais sejam o da justiça (solidarismo social) e o da igualdade, são
recondutíveis ao valor-base da dignidade da pessoa humana. Portanto, essa técnica
legislativa é mesmo essencial, uma vez que serve de veículo básico à introdução
dos princípios e ideais éticos no sistema jurídico, a um modelo de ordenamento
principiológico, como é o da Constituição brasileira, pois ela atende a uma realidade
hipercomplexa,
em
constante
transformação.
Procura-se,
neste
particular,
comprovar que as cláusulas gerais respondem, justamente, às necessidades de uma
sociedade plena de relações diversificadas e complexas.
Aplicando essa interpretação civil-constitucional ao instituto do contrato, podese analisá-lo juntamente com a disposição do art. 170 da Constituição Federal de
1988, ao consagrar como princípio da ordem econômica a função social da
propriedade, uma vez que o contrato como veículo de circulação de riquezas deve
204
adotar tal imperativo. O contrato é um dos alicerces da propriedade, ou seja, sua
função social é uma das vertentes da função social da propriedade.
Na seara dos contratos, outro princípio fundamental é o da boa-fé objetiva,
compreendida como obrigação das partes contratantes de agirem de modo que
acatem a economia e a própria finalidade do contrato, mantendo o equilíbrio
material/formal entre as obrigações fundadas no mesmo. Pode-se classificar esse
princípio, ao lado da função social do contrato, como limite à autonomia da vontade
em sua concepção clássica. Portanto, a boa-fé, apesar de não se encontrar
expressa na norma constitucional, deriva desta quando o legislador abordou no art.
1º, inc. III da dignidade da pessoa humana. A boa-fé reflete os interesses sociais,
acrescentando valores à efetivação da dignidade da pessoa humana.
De toda sorte, o contrato é um instrumento que proporciona estabilidade nas
relações jurídicas, conservando sua origem no sistema romano-germânico. Ele vem
adotando aspectos novos, influenciado pelas concepções dominantes. Atualmente,
tem grande importância na vida das pessoas, fazendo com que, cada vez mais,
estabeleçam-se relações negociais para satisfazer suas necessidades e desejos.
A
vida
em sociedade demanda dos indivíduos
uma
cooperação e
conseguimento do bem comum, através dos valores da sociabilidade. Notou-se a
passagem de uma concepção patrimonialista que invadia o Código Civil de 1916,
para a preservação da dignidade da pessoa humana, consolidada pela tábua
axiológica apresentada pela Constituição Federal de 1988 e implantada no sistema
de idéias do novo Código Civil.
O texto constitucional da Carta Magna dispõe em seu art. 170: “A ordem
econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por
fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social [...]”.
Portanto, o contrato, como instrumento de movimentação da ordem econômica,
também está refreado à justiça social e, conseqüentemente, possui uma função
social a ser acolhida. Esta, ao mesmo tempo em que pode enquadrar-se como
princípio da ordem econômica, pode também ser vista como princípio basilar do
205
Estado Democrático de Direito, consoante art. 5º, inciso XXIII da Carta Maior de
1988, ao dispor que a propriedade atenderá sua função social.
Assim posto, significa dizer que a livre iniciativa deve ser cumprida em
conformidade com a função social da propriedade apresentada no texto
constitucional; assim também deve ser com o contrato, entendido como segmento
eficaz da livre iniciativa e, portanto, afetado pela referida cláusula geral.
Os contratos devem-se conformar a dois princípios constitucionais, quais
sejam: a dignidade da pessoa humana (art 1º, inc. III) e o princípio da livre iniciativa
(art. 170, caput). O primeiro por ser a ponto fundamental de todo o ordenamento
jurídico, ou seja, é fundamento e o fim da sociedade e do Estado; o segundo precisa
ser entendido também como a liberdade de contrato, por ser este um dos segmentos
da livre iniciativa, mais especificamente por ser o segmento dinâmico.
Os princípios sociais do contrato precisam ser considerados conjuntamente, de
modo que sua função social passa pela equivalência material e pela boa-fé objetiva,
pela satisfação das pretensões de uma sociedade em constante transformação. O
princípio da equivalência material dá um novo sentido ao princípio clássico do pacta
sunt servanda, no qual preponderava o real cumprimento do contrato da maneira em
que foi celebrado e assinado. Hoje em dia, o contrato obriga as partes nos limites do
comedimento dos direitos e deveres entre elas, impedindo benefícios excessivos de
uma das partes em prejuízo da outra.
O princípio da autonomia da vontade ganha uma releitura nos dias atuais, a
prerrogativa adjudicada aos indivíduos de autodeterminação reprime-se às regras
estabelecidas pela lei e determina que seus fins ajustem-se ao fim social, ou não o
contradigam. Não há como denegar que as partes têm liberdade de contratar, porém
essa liberdade é limitada pelas cobranças de ordem pública e pelas garantias do
bem comum.
Também, o contrato, ao obedecer a sua função social, não pode afastar-se do
princípio da boa-fé objetiva, entendido como conduta ou comportamento leal e
206
honesto reconhecidos socialmente, os quais os contratantes precisam utilizar na
fase pré-contratual, na execução e também após a conclusão do contrato.
Logo, vê-se que se passou de uma visão liberal-individualista de contrato para
uma visão social, destacada pela diretriz constitucional da solidariedade social,
anunciada como um dos objetivos fundamentais da República (art. 3º, III, CF),
apresentando como decorrência a ingerência do Estado na vida dos contratos. E
resultando em novas diretrizes da moderna teoria contratual.
O Estado social tem a tônica de concretizar os direitos e garantias
fundamentais através da política de real implantação de medidas conjugadas como
bem-estar e justiça social. Por isso mesmo, hoje em dia, já se fala em “função social”
dos contratos, asseverando-se, com isso, que o contrato deve ser um instrumento de
viabilização econômica para todos. Assim sendo, em observância ao princípio da
boa-fé e ao princípio fundamental da dignidade humana, não mais se aceita um
contrato celebrado sem uma concepção social.
Perante o disposto na Constituição Federal de 1988, principalmente nos arts.
1º, 3º e 170, não mais se pode conceber um contrato em que prevaleçam o
desequilíbrio, a omissão de boa-fé e eqüidade, a vantagem excedente para um dos
contraentes e a lesão saliente para outro, mesmo nas relações entre particulares,
que continuam sendo reguladas pelo Código Civil. Logo, todos os pactos
consolidados opostamente à noção de eqüidade e dignidade humana não podem
ser lícitos. Assim, todas as regras conflitantes com os princípios constitucionais
devem ser nulas de pleno direito.
Para a concretização desse fim, destaca-se que o que interessa na relação
contratual não mais é a exigência ofuscada de cumprimento do contrato, da forma
como foi assinado ou celebrado, mas sim se sua execução não ocasiona vantagem
exagerada para uma das partes e desvantagem para outra.
207
Não obstante, para obter a eqüidade contratual, o Estado, por meio de
mecanismos legais, começou a interferir na vida dos contratos, ocorrendo o
dirigismo contratual, a partir do qual ele estabelece limites à liberdade de contratar,
impedindo as disparidades econômicas e equilibrando os interesses das partes.
Destaca-se que, ante a perspectiva civil-constitucional, constata-se a existência
de uma nova teoria contratual, pois a nova concepção socializadora do direito dos
contratos é uma decorrência do reconhecimento da relatividade histórica dos
institutos jurídicos. Tem-se, hoje, no Brasil, um direito dos contratos intensamente
renovado, especialmente pelo fato de que há uma complementaridade entre os dois
campos constitutivos do ordenamento, direito público e direito privado.
O reconhecimento da incidência dos valores e princípios constitucionais nas
relações contratuais privadas reflete uma inquietação com a construção de uma
ordem jurídica mais compassiva aos problemas e desafios da sociedade
contemporânea e que seja voltada à promoção da dignidade da pessoa humana.
Como efeito da constitucionalização do direito contratual, tem-se um sistema
contratual mais equilibrado, que garante a observância da equivalência entre as
partes contratantes, objetivando fazer do contrato um instrumento de segurança dos
interesses.
O princípio da função social do contrato é uma realidade da qual não se pode
escapar, independentemente de estar ou não aplicada expressamente no
ordenamento jurídico. Trata-se de um princípio contratual que está no fundamento
de toda a regulamentação do contrato, com o intuito de impedir que aconteçam os
mesmos massacres sociais patrocinados pelo liberalismo contratual exacerbado. A
função social tem o desígnio de firmar o contrato como instrumento que busca
efetivar e concretizar os direitos fundamentais.
Essa eficácia dos direitos fundamentais nas relações interprivadas inexistia,
pois entre particulares havia somente uma igualdade formal perante a lei. Isso
208
tornou-se possível devido ao desenvolvimento evolutivo dos direitos fundamentais,
qualificado por suas dimensões; assim como pela superação da concepção
dicotômica entre o direito público e o direito privado, admitindo-se, desse modo, a
influência do direito constitucional sobre o direito privado.
Merece lembrança, ainda, o fato destacado de que a eficácia desses direitos
passou por uma dilatação, possibilitando uma efetivação dos direitos fundamentais
também no seu sentido horizontal - entre particulares. Estes estão vinculados em
suas
relações
jurídicas,
sejam
contratuais
ou
extracontratuais
a
direitos
fundamentais. Essa vinculação pode ser concebida de distintas formas, e a doutrina
contemporânea é uníssona em reconhecer a vinculação dos particulares a direitos
fundamentais. No reconhecimento de um princípio ou de uma regra, pode-se
asseverar que os direitos fundamentais situam-se na categorização de princípios e
como tal devem ser versados.
Nota-se a irradiação das normas constitucionais, principalmente dos direitos
fundamentais sobre todo o sistema jurídico. Dessa maneira, é manifesto que todas
as regras de direito privado, de modo inclusivo aquelas concernentes aos contratos,
devem ser interpretadas de acordo com a Constituição.
Os direitos fundamentais não têm como destinatário restrito somente o Estado;
eles vinculam todos os particulares, sendo imperiosa a interpretação contratual entre
os mesmos, isto é, todas as relações contratuais devem acontecer com observância
dos direitos fundamentais.
As diferentes teorias sobre a vinculação dos particulares aos direitos
fundamentais transportam à conclusão de que, em determinadas situações, a
incidência dar-se-á de maneira direta, ao passo que em outras, indiretamente, de
acordo com a equivalência da relação contratual, a modalidade de direito
fundamental a ser violada e, também, de acordo com a restrição que ocasionar ao
direito fundamental do outro particular. Todavia, encontrando-se os preceitos de
209
direito privado em consonância com o sistema constitucional, sendo dispensável a
aplicação direta das normas, uma vez que a simples aplicação das regras e
princípios de direito privado permitirá a solução do conflito, com atenção nos direitos
constitucionais.
Além disso, o Código Civil de 2002, ao positivar, mediante uma cláusula geral,
o princípio da função social do contrato, possibilitou a abertura do sistema ao
julgador. Este, perante um caso concreto, pode inserir os princípios e valores
constitucionais nas relações jurídicas interprivadas e possibilitar a efetivação dos
direitos fundamentais.
Assim sendo, está-se diante de um contrato funcionalizado e solidário,
almejado à realização dos valores constitucionais. Por fim, é possível afirmar que,
hoje, os valores devem ser utilizados pelo intérprete em benefício da efetivação dos
direitos fundamentais, e que se concretizam no respeito ao princípio da dignidade da
pessoa humana, qualidade intrínseca e distintiva de cada ser. Tal sentido implica um
complexo de direitos e deveres fundamentais que possam vir a garantir à pessoa as
condições existenciais mínimas para que tenha uma vida saudável. Também visam
a propiciar e promover sua participação ativa nos destinos da própria existência e da
vida, em comunhão com os demais seres humanos.
Por fim, cabe observar que não se buscou, com esta pesquisa, chegar a
conclusões definitivas acerca do tema. Em face de sua complexidade no contexto
atual, certamente, vários pontos continuarão em aberto. Resta, diante disso, realçar
o intuito primordial deste trabalho no que concerne a uma reflexão sobre a função
social do contrato como forma de efetivação dos direitos fundamentais nas relações
interprivadas.
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