CÓDIGO FLORESTAL: PROJETO APROVADO PELO CONGRESSO NACIONAL É UM RETROCESSO PARA O PAÍS E MERECE VETO INTEGRAL Exma. Sra. Presidenta da República, O Instituto Socioambiental - ISA, associação civil sem fins lucrativos, fundada em 1994, qualificada como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP pelo Ministério da Justiça, nos termos da Lei Federal 9790/99, cujo objeto social é a defesa judicial ou extrajudicial dos direitos difusos e coletivos relativos ao meio ambiente, ao patrimônio cultural, aos direitos humanos e dos povos, inscrita no CNPJ sob o no 00.081.906/0002-69, com sede na Av. Higienópolis, 901, sala 30, São Paulo/SP, vem a presença de V. Exa., em decorrência da aprovação pelo Congresso Nacional, em 25/4 deste ano, do PL 1876/99, que revoga o atual Código Florestal brasileiro (Lei Federal 4771/65), apresentar o pedido de veto ao projeto, pelas razões abaixo aduzidas. 1. Introdução O ISA acompanhou de perto o processo de reformulação da legislação florestal brasileira, desde a formação da comissão especial na Câmara dos Deputados em 2009 até a votação final no plenário dessa Casa há poucas semanas. Durante todo o processo, o ISA colaborou com análises e propostas, seja de forma individualizada, seja através de coletivos com empresários (Diálogo Florestal1) ou outras organizações da sociedade civil (Comitê Brasil em Defesa das Florestas2), sempre no objetivo de aprimorar a proposta em discussão e de buscar um entendimento que, de fato, pudesse resolver as justas demandas do setor agropecuário sem, no entanto, desproteger áreas fundamentais para a produção de água, o controle do clima, a conservação da biodiversidade e a prevenção de acidentes. Falamos, portanto, como uma organização que em nenhum momento se furtou ao dever de contribuir e colaborar com o processo, na crença de que ele pudesse, apesar das adversidades, desembocar em uma solução razoável para o país. Sempre entendemos que, em pleno século XXI, qualquer modificação na já quase centenária legislação de proteção às florestas em áreas privadas deveria ser para emprestar-lhe maior eficiência, ou seja, para que ela pudesse ser realmente um instrumento de proteção a áreas que prestam serviços ambientais à sociedade ou que oferecem riscos à ocupação. Isso não significa, necessariamente, aumentar restrições, mas sobretudo 1 O Diálogo Florestal reuniu 52 empresas, sendo 28 do setor de base florestal, e 36 das principais organizações socioambientais em atuação no Brasil, e construiu uma proposta contendo 16 pontos de consenso a respeito dos principais pontos do PL 1876/99, que estava em curso na Câmara dos Deputados. A ideia foi justamente mostrar que é possível haver acordo sobre pontos sensíveis para ambos os lados, abrindo caminho para uma reforma responsável da legislação. Infelizmente, pontos centrais da proposta não foram incorporados no projeto aprovado. 2 O Comitê Brasil em Defesa das Florestas e do Desenvolvimento Sustentável é uma coalizão formada por 163 organizações da sociedade civil brasileira, de diversas áreas de atuação (CNBB, OAB, Via Campesina, organizações ambientalistas, CUT etc.), contrárias ao PL 1876/99 aprovado em maio de 2011 pela Câmara dos Deputados. O comitê entregou aos relatores do projeto no Senado Federal um documento com posicionamento e propostas para melhorar diversos pontos do projeto, sobretudo no que diz respeito aos agricultores familiares e à conservação ambiental. O projeto aprovado pelo Congresso Nacional desconsiderou praticamente todas as sugestões apresentadas pelas organizações do comitê. 1 agregar prêmios e incentivos ao seu fiel cumprimento, pois há uma quase unanimidade na percepção de que a principal falha da lei hoje em vigor é a ausência instrumentos econômicos que apoiem sua implementação. Num contexto em que os instrumentos de conservação previstos na legislação tenham maior eficiência, até mesmo alguma flexibilização nas regras de proteção seria tolerável, pois, na prática, haveria maior conservação. O projeto aprovado pela Câmara dos Deputados, no entanto, não vai nessa direção. Joga fora muito do conhecimento acumulado pela ciência nacional acerca da importância das florestas na manutenção do equilíbrio ambiental. Diminui – e muito – a proteção a áreas ambientalmente importantes, sem se importar com os efeitos que já estamos sentindo pelo avanço imprudente do desmatamento sobre florestas protegidas. Premia os que desmataram ilegalmente, anulando as sanções administrativas e penais a eles impostas, e castiga a sociedade com a perpetuação do dano ambiental. Trata da mesma forma os que desmataram quando a legislação da época assim o permitia, e os que deliberadamente afrontaram o Estado de Direito ambiental. Iguala o agricultor familiar ao grande empresário agrícola, usando a mesma regra para situações socioeconômicas absolutamente distintas. Não traz nenhum novo instrumento para controlar o desmatamento – o único que existia foi desfigurado – e nenhum incentivo econômico concreto para estimular mais produtores a seguir a lei. Ele basicamente revoga a legislação atual, sem propor nada equivalente para proteger nossas florestas nos próximos 40 ou 50 anos. A seguir apresentamos os pontos que, a nosso ver, justificam o exercício, por parte de V. Exa., do dever constitucional de veto presidencial ao projeto em questão (art.66, §1o da Constituição Federal). São razões de ordem ambiental, jurídica, administrativa, econômica e moral, que passamos a expor. 2. Razões para o veto 2.1. O projeto perpetua o dano ambiental (anistia) a áreas ambientalmente importantes, atentando contra o direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado Há vários dispositivos no projeto em questão que mantém ocupações agropecuárias em áreas que, além de estarem legalmente protegidas, em sua maioria, desde 1934, tiveram sua importância reafirmada pelos cientistas reunidos pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC e pela Academia Brasileira de Ciência – ABC. Trata-se das Áreas de Preservação Permanente (APPs) e as Reservas Legais (RLs). Pelas regras atuais todo e qualquer imóvel precisa conservar uma parcela de vegetação nativa, a “reserva legal”. Essa regra existe desde o primeiro Código Florestal, de 1934 (Decreto Federal 23793/34), que determinava a manutenção de 25% do imóvel com cobertura de florestas ou outra forma de vegetação nativa (art.23). Em 1965, com o novo Código Florestal (Lei Federal 4771/65) esse tamanho foi alterado, sendo diminuído para 20% do imóvel em grande parte do país, com exceção da Amazônia Legal, onde o percentual era de 50% e em 1998 foi fixado em 80% por meio da MP 1511, incorporada na MP 2166, até hoje em vigor. Além disso, também devem os proprietários respeitar, desde 1934, as florestas existentes em seus imóveis que sejam necessárias ao controle das erosões, à proteção de ecossistemas únicos ou à regulação do regime das águas. Essas áreas, posteriormente denominadas de Áreas de Preservação Permanente (APPs) na reforma de 1965, deveriam ser preservadas e, se ilegalmente desmatadas, reflorestadas. Trata-se das encostas, topos de morro, nascentes, margens de rios, bordas de chapada e outras áreas estabelecidas no art.2 o do atual Código Florestal (Lei Federal 4771/65). Segundo a SBPC “entre os pesquisadores, há consenso de que as áreas marginais a corpos d’água – sejam elas várzeas ou florestas ripárias – e os topos de morro ocupados por campos de altitude ou rupestres são áreas insubstituíveis em razão da biodiversidade e de seu alto grau de especialização e endemismo, além dos serviços ecossistêmicos essenciais que desempenham – tais como a regularização hidrológica, a estabilização de encostas, a manutenção da população de polinizadores e de ictiofauna, o controle natural de pragas, das doenças e das espécies exóticas invasoras”3. Para os cientistas, “existe amplo consenso científico de que são 3 In O Código Florestal e a Ciência: contribuições ao diálogo. São Paulo, SBPC, 2011. 2 ecossistemas que, para sua estabilidade e funcionalidade, precisam ser conservados ou restaurados, se historicamente degradados”. Sobre a Reserva Legal, os cientistas afirmam que “na Amazônia, a redução das RLs diminuiria a cobertura florestal para níveis que comprometeriam a continuidade física da floresta devido a prováveis alterações climáticas. Portanto, a redução de RLs aumentaria significativamente o risco de extinção de espécies e comprometeria a efetividade dessas áreas como ecossistemas funcionais e seus serviços ecossistêmicos e ambientais”. Ressaltam também a importância de se manter e, principalmente, restaurar as reservas legais nas demais regiões do país, pois “nos biomas com índices maiores de antropização, como o Cerrado, a Caatinga e algumas áreas altamente fragmentadas como a Mata Atlântica e partes da Amazônia, os remanescentes de vegetação nativa, mesmo que pequenos, têm importante papel na conservação da biodiversidade e na diminuição do isolamento dos poucos fragmentos da paisagem”. Desproteção às matas ciliares, encostas íngremes, topos de morro e outras áreas sensíveis O projeto em questão, no entanto, cria a figura da área rural consolidada que seria uma “ocupação antrópica consolidada até 22 de julho de 2008, com edificações, benfeitorias e atividades agrossilvipastoris, admitida neste último caso a adoção do regime de pousio” (art.3o, IV). Utilizando-se desse eufemismo, o projeto desobriga, na prática, a restauração de grande parte das APPs e RLs desmatadas até pouco menos de 4 anos atrás (julho de 2008). Senão, vejamos. O art.61 do projeto prevê a manutenção de atividades agrossilvipastoris (qualquer atividade agrícola, pecuária ou florestal) em APPs com “área rural consolidada”. Em outras palavras, dispensa, de forma genérica, sua recuperação ambiental, revertendo uma regra que existe desde 1934. A única exceção diz respeito às faixas marginais dos pequenos rios e riachos de nosso país, que, pelo disposto no §4o desse mesmo artigo, terão que ser recuperados em metade das área ilegalmente desmatada (faixa de 15 metros de largura, quando a medida de proteção estabelecida no art.4o do mesmo projeto é de 30 metros). Para os rios maiores e para todas as demais APPs (encostas, topos de morro, manguezais, veredas, restingas) não haverá qualquer reflorestamento, mesmo que a área tenha sido ocupada quando já havia proibição expressa na lei. Não há, frise-se, simples reconhecimento de ocupações agropecuárias antigas, realizadas quando a lei era mais permissiva, pois para isso o marco temporal para a “consolidação” deveria ser 1965 ou 1986, e não 2008, como demonstrado na tabela em anexo. Há, portanto, verdadeira anistia a ocupações ilegais. A alegação usada para sustentar essa anistia é a de que, se essas áreas fossem recuperadas, uma enorme produção agrícola seria perdida, milhões de pequenos produtores seriam expulsos de suas terras, e o país teria um prejuízo enorme. No entanto, a regra aprovada se aplica a todas as propriedades rurais do país, e não apenas aos agricultores familiares. Há, portanto, uma deliberada mistura de situações socioeconômicas distintas, tentando justificar a anistia para médios e grandes proprietários com uma suposta benesse aos agricultores familiares. Durante o processo legislativo, o ISA, em conjunto com as demais organizações do Comitê Brasil em Defesa das Florestas, apresentou e apoiou propostas de flexibilização para a agricultura familiar, entendendo que, em virtude de sua importância na produção de alimentos para o país, e de sua relativamente baixa expressividade territorial, seria possível, para esse público, fazer algumas concessões sem, com isso, comprometer a qualidade ambiental. Essas propostas, no entanto, foram solenemente ignoradas ou deturpadas, pois o interesse dos propositores do projeto nunca foi o de beneficiar o pequeno agricultor, mas apenas de usa-lo como fachada para demandas abusivas. Além disso, muitos dados foram produzidos ao longo do processo demonstrando que não haverá impacto significativo na produção de alimentos – seja do pequeno, seja do grande proprietário – caso as APPs venham a ser recuperadas. Estudo encomendado pelo WWF (2009) nos municípios que mais produzem café, uva e maçã – culturas eleitas pelos ruralistas como as que mais seriam afetadas caso fossem restauradas as APPs - mostrou que a produção agrícola nessas áreas é mínima. Em Bento Gonçalves (RS), principal produtor de uvas do país, e situado em área montanhosa, apenas 1% das áreas agrícolas estão situadas em APPs. Em Três Pontas (MG), 3 segundo maior produtor de café de Minas Gerais, menos de 2% das áreas de lavoura estão em APPs. Em outro estudo, realizado na principal bacia produtora de água para a cidade de São Paulo, identificou-se que apenas 1,1% das APPs estavam sendo utilizadas para agricultura, embora mais da metade fosse ocupada por pastagens degradadas (ISA,2007). Por outro lado, estudos elaborados pelo Prof. Gerd Sparoveck, da Faculdade de Agronomia da Universidade de São Paulo (ESALQ/USP), feitos com base em imagens de satélite e modelagens de uso do solo, demonstram que cerca de 80% das APPs degradadas, em todo o país, estão ocupadas por pastagens, e não com agricultura. Com exceção do Espírito Santo, em todos os demais Estados da federação o percentual de APPs com pastagens supera os 50%, chegando a índices próximos ou iguais a 100% em vários deles (AC, PA, RO, TO, RR, CE, PE, PI, SE, RN). Não haveria, portanto, a tão propalada desestabilização da agricultura nacional com a volta da proteção a nossos rios, nascentes e montanhas. A produção pecuária brasileira é notoriamente de baixa produtividade (com exceções pontuais), e todas as experiências em curso de restauração florestal demonstram que houve perdas insignificantes, se houve alguma, na produção pecuária com a recuperação das APPs, justamente porque é possível, sem grandes custos e com modestas melhorias de produtividade, remanejar o rebanho existente no restante da área disponível. Ademais, deve ficar claro que a anistia para restauração das APPs em geral não está circunscrita aos agricultores familiares. Ela é aplicável a todos os imóveis, independentemente do tamanho, o que aumenta o absurdo da regra. O CONAMA aprovou há pouco tempo uma medida (Resolução 425/10) que atende a situação de muitas famílias de agricultores ao permitir a consolidação de determinados tipos de uso agrícola (plantações de lenhosas perenes) em determinados tipos de APPs (encostas e topos de morro). Essa medida é, a nosso ver, muito mais razoável do que simplesmente uma anistia geral. Se, por um lado, a recuperação das APPs não teria impactos significativos sobre a produção agropecuária, por outro, sua não recuperação, como determina o projeto, teria impactos significativos sobre a qualidade de vida de grande parte da população brasileira, sobretudo para aquela que vivem em regiões já excessivamente desmatadas. Muito embora o Brasil ainda tenha cerca de 60% de sua vegetação nativa preservada ou pouco alterada, há várias regiões do país onde o desmatamento acumulado já passou dos níveis aceitáveis. Se olhamos para nossas bacias hidrográficas, veremos que muitas – sobretudo nas regiões mais habitadas – estão em situação calamitosa, com menos de 20% de sua cobertura vegetal original. Estudos científicos apontam que a cobertura vegetal nativa mínima que uma determinada bacia hidrográfica deve ter para conciliar uso econômico e conservação biológica é de 30%4. Segundo METZGER, “paisagens com menos de 30% de habitat tendem a ter apenas fragmentos pequenos e muito isolados, e suportam por consequência comunidades muito empobrecidas, e isso para diferentes grupos taxonômicos”5. Segundo dados do Projeto de Conservação e Uso Sustentável da Biodiversidade Brasileira – PROBIO, do Ministério do Meio Ambiente, o Brasil tem pelo menos 38 bacias hidrográficas de terceira ordem - classificadas segundo o método Otto da Agência Nacional de Águas – com menos de 20% de cobertura vegetal nativa, concentradas sobretudo no Sudeste e Nordeste do país (mapa acima). São índices de cobertura florestal, portanto, muito menores do que o mínimo estabelecido pela Ciência como o limiar para uma paisagem minimanente equilibrada, ou seja, que não provoque alterações profundas na conservação da biodiversidade e no ciclo hidrológico. São índices, inclusive, menores do que os verificados em grande parte dos países europeus, que, ao contrário do que está ocorrendo por aqui, aprimoram suas legislações nas décadas que seguiram ao pós-guerra e iniciaram um vigoroso processo de restauração florestal. Enquanto o Estado de São Paulo tem hoje menos de 17% de vegetação nativa, a Alemanha tem 32%. Enquanto o Rio Grande do Sul tem 19% de sua cobertura original (apenas 7% na área de florestas), a França tem 29%. 4 5 Apud METZGER, Jean Paul. “O Código Florestal tem base científica”, in Conservação e Natureza, 2010, 8(1) Idem 4 O caso do Estado de São Paulo é exemplar, nesse sentido. O relatório de situação da bacia hidrográfica do Rio Pardo, que abriga parte significativa do PIB do agronegócio brasileiro (Ribeirão Preto e região), aponta para uma cobertura vegetal nativa de apenas 12,8%(2009), ainda assim concentrada em alguns poucos municípios. Na bacia Hidrográfica do Tietê- Batalha, outra bacia densamente povoada (Bauru e região), a vegetação nativa conservada, segundo o plano de bacia, é de menos de 7% (2009), o que fez do reflorestamento de matas ciliares ser alçado a uma das metas principais estabelecidas no referido plano. A ausência de áreas com uma cobertura florestal mínima causa prejuízos, não só ambientais, mas também econômicos. Segundo os dados coletados pela SBPC6, o país perde, por ano, cerca de R$ 9,3 bilhões/ano com erosão de solos. Esse mesmo estudo aponta para a importância da manutenção de florestas nativas para a sobrevivência de populações viáveis de agentes polinizadores (insetos, sobretudo), e da importância destes para a produtividade de diversas culturas. Os polinizadores podem ser responsáveis por 50% da produção de soja; de 45 a 75% da produção de melão; 40% da produção de café; 35% da produção de laranja; 88% da produção de caju; 43% da produção de algodão; e 14% da produção de pêssego 7. Há, portanto, impactos econômicos concretos decorrentes do desmatamento excessivo. Isso sem falar em prejuízos mais diretos à 6 7 Idem, ibidem, pg.10 Idem, ibidem, pg.14 5 integridade física da população. Estudo elaborado pelo Ministério do Meio Ambiente após os desastres ocorridos no início de 2011 na região serrana do Rio de Janeiro comprovam que mais de 90% das áreas onde houve deslizamentos estavam ocupadas com pastagens, casas ou obras de infra-estrutura. Não por acaso, a SBPC alerta em seu estudo que “a presença de vegetação em topos de morro e encostas tem papel importante no condicionamento do solo para o amortecimento das chuvas e a regularização hidrológica, diminuindo erosão, enxurradas, deslizamento e escorregamento de massa em ambientes urbanos e rurais”. Inobstante essas evidências, o projeto, em seu art.63, permite a manutenção não só de culturas de espécies lenhosas perenes (cafés, maçãs, uvas etc.) - as quais, se bem manejadas, podem evitar erosão e deslizamentos – como também, em seu §1o, a permanência de pastagens em encostas íngremes e topos de morro que originalmente eram florestas e foram irregularmente derrubados. Vale lembrar que essas áreas se encontram legalmente protegidas desde, pelo menos, 1965. Do perigo de se isentar a restauração de Reserva Legal para imóveis de até 4 módulos fiscais Além da anistia à ocupação das APPs, o projeto aprovado isenta todo e qualquer imóvel de até 4 módulos fiscais (MF) da recuperação da reserva legal ilegalmente desmatada (art.67). A justificativa usada pelos defensores do projeto sustentar essa proposição é de que a manutenção de uma reserva legal, ademais das áreas de preservação permanente, seria insustentável para os pequenos agricultores, que já sobreviveriam com uma área mínima para seu próprio sustento. Em primeiro lugar, há que se ressaltar que, apesar da argumentação exposta acima, essa regra não trata exclusivamente do pequeno agricultor, ou agricultor familiar. Como é de conhecimento geral a Lei Federal 11.326/06 elenca outros critérios socioeconômicos para a qualificação do agricultor familiar que não apenas ou principalmente o tamanho do imóvel. Nem todo proprietário de imóveis até 4 módulos fiscais pode ser enquadrado como agricultor familiar, e portanto não se pode adotar essa presunção geral de que a manutenção de RL nessas áreas é inviável. Não há nada, no projeto, que impeça que um mesmo proprietário tenha 2 ou mais imóveis de até 4 módulos fiscais, no mesmo município ou em municípios diferentes, podendo mesmo ser contíguos entre si, e faça uso desse benefício que deveria beneficiar apenas aqueles que têm um único imóvel. Não faz sentido que um proprietário de terras que, em seu conjunto, somam 8 ou mais módulos – que em algumas regiões do país podem equivaler a mais de 800 hectares – seja dispensado de recuperar sua reserva legal por supostamente ter pouca terra Ademais, o uso do critério “módulo fiscal” para isentar a recuperação da RL vai causar graves inconvenientes na aplicação e compreensão da lei, já que cada município tem módulos com tamanhos diferentes, que variam de 5 a 110 hectares no país. Assim dois imóveis na mesma microbacia, com o mesmo tamanho, mas que se situem em municípios diferentes, podem vir a ter regras diferentes, sendo que para um será cobrada a recuperação da RL, e para outro não, caso o primeiro município tenha módulos de tamanho inferior ao do vizinho. Essa é uma situação bastante comum no país como um todo, e causará uma confusão ainda maior na aplicação da lei, já que vizinhos se sentirão injustiçados pela aplicação de regras tão distintas para situações tão semelhantes. Isso obviamente não contribuirá em nada para a efetividade da lei. Mas o mais grave dessa regra é que ela abre brecha para um sem número de fraudes, que muito dificilmente poderão ser evitadas. Quem conhece o mundo rural sabe que, já hoje, é muito comum um imóvel estar registrado no Cartório de Imóveis em mais de uma matrícula. Isso ocorre porque, ao contrário do que sugere o nome, o imóvel não é “imóvel” no tempo e no espaço, pois divisões e aquisições vão se sucedendo ao longo do tempo. Portanto, uma mesma fazenda pode parecer, aos olhos do Registro de Imóveis, várias fazendas, muitas vezes pertencentes inclusive a proprietários diferentes – familiares do real proprietário, por exemplo – por razões jurídicas (prevenção contra execuções judiciais, tributos etc.). Diante desse cenário, é muito provável que imóveis maiores do que 4 MF venham a ser – quando já não foram – artificialmente desmembrados para se qualificarem como isentos da manutenção da RL. Mesmo que o projeto diga que desmembramentos não serão considerados, sabemos que isso não basta para evitar que ocorra, sobretudo porque não há nenhuma penalização para essa tentativa de fraude. Se essa regra for 6 aprovada os órgãos ambientais terão que ter o ônus de comprovar se realmente aquele imóvel apresentado na matrícula corresponde ao imóvel real, tal como compreendido pelo INCRA, que é a “unidade de exploração econômica”. Isso complicaria de uma forma inimaginável o já excessivamente complexo processo de averbação da RL, pois não há como fazer uma vistoria em cada área. Nenhum dos órgãos estaduais que estão mais avançados no cadastramento de imóveis rurais faz visitas in loco para todos os casos. Seria um custo de transação absolutamente impeditivo. É, portanto, uma regra para ser burlada. E, uma vez sendo, aumentará exponencialmente (tanto em número de imóveis como em área) as áreas onde não deverá haver RL. Isso, por sua vez, impedirá qualquer tentativa de recuperação de alguns de nossos biomas mais ameaçados, como é o caso da Mata Atlântica, pois quase todos – senão todos - os planos oficiais de recuperação se baseiam na recomposição de reservas legais em imóveis particulares. Segundo dados do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), apresentados no estudo “Código Florestal: implicações do PL 1876/99 nas áreas de reserva legal”, apenas com a dispensa de restauração de RL de imóveis de até 4 MF (sem contar as fraudes, como apontado acima), 67% das áreas de reserva legal ilegalmente desmatadas na Mata Atlântica estariam isentas de recuperação. Ou seja, apenas 1/3 do passivo atual seria, na melhor das hipóteses, recuperado. Isso significaria uma anistia de 3,9 milhões de hectares. Mas há situações piores. A caatinga, bioma que vem sofrendo acelerado processo de desertificação justamente por perda da cobertura vegetal nativa, perderia 70% das áreas a serem recuperadas. No país todo, segundo o estudo, seriam quase 48 milhões de hectares de desmatamentos ilegais anistiados. Da desnecessidade de se isentar os imóveis de até 4 módulos fiscais de restaurar a Reserva Legal Ademais, se olharmos para os dados do censo agropecuário do IBGE (2006), perceberemos que o agricultor familiar propriamente dito não precisa dessa anistia para se regularizar. Para esse público, que realmente necessita da terra para sobreviver, e para quem cada hectare pode fazer falta, a simples soma da APP no cálculo da Reserva Legal, como previsto no art.15 do projeto em questão, já resolveria grande parte dos passivos hoje existentes. Agricultura Familiar - Área dos estabelecimentos por utilização das terras Utilização das Terras Brasil Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste Área Hectares Percentual 80.250.453 51,01% 18.737.805 23,35% 17.338.345 21,61% 2.898.493 3,61% 1.964.152 2,45% 16.647.328 54,54% 6.341.225 38,09% 1.974.477 11,86% 476.562 2,86% 287.403 1,73% 28.332.599 59,23% 6.576.078 23,21% 7.345.997 25,93% 1.877.238 6,63% 983.149 3,47% 12.789.019 47,56% 1.781.554 13,93% 3.748.736 29,31% 263.594 2,06% 288.409 2,26% 13.066.591 40,12% 2.004.270 15,34% 2.778.593 21,26% 178.622 1,37% 280.598 2,15% 9.414.915 39,85% 2.034.679 21,61% 1.490.541 15,83% 102.477 1,09% 124.592 1,32% Total Matas e florestas naturais 1 Pastagens baixa produtividade2 Sistemas agroflorestais 3 Terras degradadas e inaproveitáveis 4 Total Matas e florestas naturais 1 Pastagens baixa produtividade2 Sistemas agroflorestais 3 Terras degradadas e inaproveitáveis 4 Total Matas e florestas naturais 1 Pastagens baixa produtividade2 Sistemas agroflorestais 3 Terras degradadas e inaproveitáveis 4 Total Matas e florestas naturais 1 Pastagens baixa produtividade2 Sistemas agroflorestais 3 Terras degradadas e inaproveitáveis 4 Total Matas e florestas naturais 1 Pastagens baixa produtividade2 Sistemas agroflorestais 3 Terras degradadas e inaproveitáveis 4 Total Matas e florestas naturais 1 Pastagens baixa produtividade2 Sistemas agroflorestais 3 Terras degradadas e inaproveitáveis 4 Fonte: Tabela 1112 - Censo Agropecuário 2006, IBGE. Notas: 1- Matas e/ou florestas - naturais destinadas à preservação permanente ou reserva legal; e Matas e/ou florestas - naturais (exclusive área de preservação permanente e as em sistemas agroflorestais) 2- Pastagens - naturais; e Pastagens - plantadas degradadas 3- Sistemas agroflorestais - área cultivada com espécies florestais também usada para lavouras e pastejo por animais Como se depreende da tabela acima, se considerarmos tanto as áreas já cobertas com vegetação nativa, como 7 as demais áreas que não estão sendo utilizadas para finalidades produtivas (que poderiam, portanto, ser recompostas sem perda de produção), em quase todas as regiões do país a situação dos agricultores familiares já estaria regular, ou muito próxima da regularidade. Se a isso somarmos as pastagens com baixa produtividade, nas quais o custo de oportunidade da restauração é baixo, vemos que sobraria área. Vejamos o caso do Sul, talvez a região onde a presença da agricultura familiar é mais forte: 15% da área das pequenas propriedades, em média, já está coberta com vegetação nativa. Se a meta de conservação fosse de 20% 8, faltaria apenas 5% de área para completar a RL. Considerando ainda as áreas usadas com sistemas agroflorestais (que podem ser computados como APP ou RL, segundo art.54) e as terras inservíveis para agricultura, o passivo seria reduzido a pouco mais de 1% da área. Esse restante poderia perfeitamente ser resolvido (inclusive com frutíferas, como prevê o art.54) com o uso de uma parcela ínfima das pastagens de baixa produtividade (21,2% do total), sem implicar em perda alguma de área efetivamente produtiva. Situação muito parecida acontece no Sudeste. No Nordeste, com o simples cômputo das APPs na RL já estaria zerado o déficit da agricultura familiar. O maior passivo estaria na Amazônia, que, no entanto, poderia ser resolvido por via dos zoneamentos, que podem reconhecer, nas áreas já abertas, uma RL de 50%. Não se justifica, portanto, essa anistia para a RL prevista no art.67. Se por um lado os agricultores familiares não precisam dela para se regularizar, ela, por outro lado, pode ser fraudulentamente usada para dispensar a recuperação em imóveis maiores. Art.68: dispensa generalizada de restauração ou manutenção de Reserva Legal com simples alegação do proprietário O art.68 do projeto prevê que um proprietário pode ser dispensado de recuperar sua reserva legal para os atuais índices (20%, 35% ou 80%) caso tenha feito o desmatamento em uma época em que seu tamanho era menor. Em se tratando de Amazônia Legal, a regra faz algum sentido, já que há 15 anos, por meio da MP 1511/96, a RL na região aumentou de 50% para 80%, e nessa época já havia imóveis que haviam averbado sua RL e estavam em plena produção. Ocorre, no entanto, que a regra não está cirscunscrita à Amazônia, aplicando-se a todo o restante do país, no qual, desde o 1934, com o Decreto Federal 23793 (primeiro Código Florestal), a RL é de pelo menos 20% do imóvel9 (antes de 1965 era 25%10). Para o restante do país (fora a Amazônia Legal), portanto, para que um proprietário fosse dispensado, pela regra ao art.68, de restaurar sua RL para os atuais 20% (já computada a APP, como permite o art.15), ele teria que provar que seu imóvel está inteiramente desmatado desde, pelo menos, 1934. Algo obviamente muito difícil de ser comprovado por meios idôneos, seja porque os limites dos imóveis naquela época eram muito diferentes dos atuais (mais de 80 anos de sucessões, divisões, aquisições etc.), seja porque praticamente não existem fotos aéreas dessa época, ou seja porque, mesmo nas regiões mais intensamente ocupadas por atividades agropecuárias, era muito difícil que uma fazenda derrubasse a totalidade das florestas existentes em seu interior, já que o serviço era sobretudo manual e as áreas, em geral, grandes, o que não justificava sua exploração total. Ocorre que, mesmo sendo improvável que alguém possa comprovar, por meios idôneos, que determinada área já estava mais de 80% desmatada em 1934, o projeto abre caminho para uma dispensa generalizada de RL ao aceitar como meio de prova a “descrição de fatos históricos de ocupação da região” (§1 o). Com isso, na prática, o projeto inverte o ônus da prova, permitindo que uma simples alegação seja considerada comprovação suficiente para se dispensar a obrigação ambiental, conferindo ao Estado o ônus de comprovar que a área não estava desmatada na época alegada caso queira garantir um mínimo de equilíbrio ambiental, algo sabidamente impossível, justamente pelas razões acima apontadas. Com essa regra, portanto, grande parte das reservas legais poderão ter sua recuperação dispensada com uma simples alegação do particular interessado, em flagrante prejuízo ao interesse público. Em resumo: praticamente não haverá restauração florestal no país 8 9 10 APP incluída na RL, que é de 20% na região Art.16 da Lei Federal 4771/65 Art.23 do Decreto Federal 23793/34 8 Com a desobrigação quase total de recuperação das matas ciliares promovida pelo art.61, somada à desobrigação total da recuperação dos topos de morro e encostas (que são áreas teoricamente protegidas) promovida pelo art.63, somada ainda com a dispensa de recuperação de Reserva Legal para imóveis de até 4 módulos fiscais promovida pelo art.67 (argumento desenvolvido mais abaixo), mais a possibilidade de dispensa genérica de manutenção de RL promovida pelo art.68 e, por fim, a possibilidade de se utilizar exóticas em até metade da área da RL aberta pelo §3o do art.66, fica claro que, se o projeto for sancionado, não haverá mais qualquer recuperação de vegetação nativa nas regiões já excessivamente desmatadas, nas quais a abertura de áreas ocorreu quase que integralmente antes de 2008. Isso significa que, com a nova lei, regiões inteiras do país estariam condenadas ao desequilíbrio ambiental, na medida em que tampouco existe no projeto um conjunto de medidas de incentivo que tenha alguma efetividade e que possa mudar essa situação. 2.2. O projeto diminui a proteção a áreas ambientalmente sensíveis e permite mais desmatamentos Além de promover uma ampla e irresponsável anistia, o projeto de lei 1876/99 diminui a proteção às florestas existentes em áreas privadas, permitindo, com isso, o aumento do desmatamento legalizado no país, inclusive em áreas reconhecidamente sensíveis e inaptas à ocupação agropecuária ou urbana, como será demonstrado a seguir. Áreas Úmidas ficam desprotegidas: país coloca em risco seu patrimônio e rasga a Convenção de Ramsar Uma das consequências mais graves do projeto é que ele deixa sem proteção as áreas úmidas brasileiras, que, segundo cálculos de PIEDADE et alii (2012), ocupam 20% do território brasileiro e 30% da bacia amazônica. Com a mudança, no caput do art.4o, do critério de medição da faixa de proteção às florestas ripárias (do nível da água nas cheias para o nível de vazante), sem, por outro lado, estabelecer uma proteção específica para essas áreas, como foi sugerido por diversos cientistas aos senadores, as áreas úmidas brasileiras estão totalmente desprotegidas. Deixam de ser áreas de preservação e podem ser legalmente desmatadas. Só na Amazônia, são 400 mil km2 de florestas que poderão ser legalmente derrubadas para dar lugar a atividades absolutamente incompatíveis com essas áreas. Para os pesquisadores do Museu da Amazônia e do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia - INPA, Ênio Candotti e Maria Teresa Piedade11, “além de estocarem água, as áreas alagáveis atuam na sua limpeza, recarregam o lençol freático, regulam os ciclos biogeoquímicos e o clima local. O mesmo acontece com as savanas alagáveis no cerrado como, por exemplo, aquelas do Pantanal, as savanas dos rios Araguaia e Guaporé, e as savanas alagáveis de Roraima. Danos causados às florestas alagáveis e seus ambientes reduziriam dramaticamente a capacidade de estoque das águas com consequências gravíssimas para a vazão dos rios”. Segundo os mesmos especialistas, “deve-se observar que as áreas alagáveis são habitadas, por vezes intensamente, por comunidades que vivem em palafitas ou em flutuantes e que obtêm seu sustento por meio de atividades econômicas adaptadas às áreas periodicamente alagadas. Estima-se que cerca de 60% da população rural da Amazônia está concentrada nas várzeas, áreas alagáveis de maior fertilidade. Estas populações desenvolvem atividades de agricultura familiar com propósitos econômicos e de subsistência: pesca, criação de animais e extração de produtos madeireiros e não madeireiros”. A desproteção das áreas úmidas pode, portanto, não só permitir o desmatamento (e degradação) de imensas áreas de florestas - o que só na Amazônia significaria subtração, legalizada, de uma área equivalente à dos Estado de São Paulo e Rio Grande do Sul juntos- como inviabilizará a sobrevivência de grande parte da população rural amazônica, que hoje vem fazendo dela uso sustentável. Seria, em pleno século XXI, optar pela alternativa sabidamente insustentável. Para esse problema não há veto que resolva, já que não se pode 11 “As áreas úmidas no âmbito do Código Florestal brasileiro”, In O Código Florestal e a Ciência: o que nossos legisladores ainda precisam saber. Brasília, Comitê Brasil em Defesa das Florestas, 2012. 9 derrubar o art.4o, justamente o que define as APPs. Além disso, ao separar artificialmente os apicuns e salgados das demais feições dos manguezais (art.3o, incisos XIV e XV), o projeto não só desconsidera todo o conhecimento científico acumulado, como gera uma imensa confusão jurídica. Segundo artigo escrito pelos maiores especialistas em manguezais do país 12, “não existe apicum (ou salgado, que é a mesma coisa) sem estar associado ao ecossistema manguezal”, ou seja, o apicum é parte de um todo que se chama manguezal. Ademais, ao contrário do que pressupõe o projeto, essas feições têm alta relevância ecológica para a própria manutenção dos manguezais. “É nessa planície hipersalina que se concentram os nutrientes utilizados pelo ecossistema para sintetizar matéria orgânica vegetal e animal, redisponibilizado principalmente pela atividade dos caranguejos nos períodos mais chuvosos”13. Não há razão, portanto, para separar conceitualmente os apicuns (ou salgados) dos manguezais e, menos ainda, para deixa-los sem qualquer proteção, como aparentemente quer o texto. Ao conceituar, no art.3o, os apicuns e salgados como algo separado dos manguezais, abre-se a possibilidade de interpretar que eles não estariam protegidos, mesmo estando claro no art.4o que os manguezais, em toda sua extensão, são APPs. Haverá, no mínimo, uma intensa disputa judicial para se definir se os apicuns estão ou não protegidos pela legislação brasileira. Algo totalmente incompatível com uma das principais demandas dos setores que propõem a aprovação do projeto: segurança jurídica. Deve-se lembrar, por fim, que o Brasil é signatário da Convenção de Ramsar, tendo ratificado-a em 1993. Tanto os igapós e várzeas amazônicas, como os manguezais são considerados áreas protegidas para efeito da convenção. Os signatários desse acordo se responsabilizaram a fazer levantamentos de suas áreas úmidas, classificá-las e realizar estudos para o seu manejo e proteção. Com sua ratificação, o Brasil se comprometeu a “promover atividades de conservação e uso racional das terras úmidas e seus recursos de modo a atingir o desenvolvimento sustentável e a reduzir a pobreza” (artigo 4). Com o projeto aprovado, o país estará fazendo algo diametralmente oposto, o que obviamente suscitará questionamentos judiciais, já que não se pode por lei ordinária derrogar uma convenção ratificada. Projeto permite que áreas com vegetação nativa em encostas, beiras de rio e topos de morro sejam derrubadas a título de “pousio” (art.3o, III) Como já comentado, ao criar a figura da “área rural consolidada” em seu art.3o, o projeto permite que sejam mantidas ocupações agropecuárias e silviculturais em Áreas de Preservação Permanente (artigos 61 e 63) A justificativa que foi utilizada para permitir essa equivocada manutenção indiscriminada de atividades econômicas que são, a priori, incompatíveis com o grau de proteção que essas áreas ambientalmente frágeis deveriam ter, é que a retirada dessas atividades geraria prejuízos econômicos severos para os proprietários e para a sociedade em geral, já que elas estariam em plena produção. Partindo-se desse suposto, observa-se um grave problema na conceituação de área rural consolidada, pois no art.3o, inciso IV ela é definida como “ área de imóvel rural com ocupação antrópica pré-existente a 22 de julho de 2008, com edificações, benfeitorias ou atividades agrossilvopastoris, admitida, neste último caso, a adoção do regime de pousio”. O pousio, por sua vez, é definido no inciso XI do mesmo art.3 o como “prática de interrupção temporária de atividades ou usos agrícolas, pecuários ou silviculturais, para possibilitar a recuperação da capacidade do uso do solo”. O projeto que fora aprovado pelo Senado trazia uma salutar limitação à definição de pousio, ao estabelecer que ele, para se caracterizar como área produtiva em descanso, não poderia ultrapassar 5 anos e mais de 25% da área do imóvel. Ocorre que a Câmara dos Deputados derrubou essa limitação, deixando em aberto o prazo para que se possa considerar uma área improdutiva como “em regime de pousio”. A justificativa adotada pelos deputados para derrubar a limitação foi de que cinco anos seria um prazo muito exíguo, e que cada 12 13 NOVELLI, Yara et alii. “Alguns impactos do PL 30/2011 sobre os manguezais brasileiros”, in O Código Florestal e a Ciência: o que nossos legisladores ainda precisam saber. Brasília, Comitê Brasil em Defesa das Florestas, 2012. Idem, pg.24 10 estado deveria regulamentar a matéria segundo suas próprias realidades. Ora, se a justificativa para a manutenção de atividades agropecuárias em APPs é a importância de sua produção econômica atual, não faz o menor sentido admitir-se que essas áreas possam estar há 10 anos sem nenhuma produção, a título de pousio. É contraditório com o argumento que justifica a manutenção das áreas rurais consolidadas. Não existe, na agricultura moderna, rotação de culturas ou tratos culturais que tenham um ciclo superior a 5 anos. Outra coisa é o pousio inerente à agricultura de corte e queima das populações indígenas e tradicionais, cujo ciclo tampouco é de 10 anos, mas de 20 ou mais anos, mas que de qualquer forma não é o objeto dessa regra, e que já é adequadamente tratado no conceito de baixo impacto. Aprovando-se o projeto como está, estaríamos abrindo caminho para que nascentes, beiras de rio, encostas e topos de morro que estejam em recuperação há décadas possam ser legalmente desmatadas, como se integrassem as atividades produtivas do imóvel rural. Só para a Amazônia isso significa, segundo dados do Terraclass de 2008, 21% das áreas alteradas, ou seja, 150 mil hectares que estão em recuperação – parte disso em APP e uma parte maior em RL - mas que, com essa medida, poderão ser legalmente desmatadas. A Lei Federal 11.428/06, que regulamenta o uso e conservação da Mata Atlântica, permite pousio de 10 anos, mas apenas para “usos tradicionais” (art.26), ou seja, praticado por populações quilombolas, indígenas ou pequenos agricultores, e mesmo assim nas áreas de uso alternativo do solo, ou seja, não em APP ou RL. Fica claro, portanto, que essa brecha, propositadamente aberta pelos deputados, legalizará novos desmatamentos justamente em áreas ambientalmente sensíveis, razão pela qual são declaradas pela legislação, desde 1965, como de preservação permanente. E que, como definido pelo próprio projeto, têm “a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas”. Projeto permite aumento do desmatamento na Amazônia Legal Em vários dispositivos o projeto diminui a Reserva Legal na Amazônia brasileira, abrindo assim espaço para um aumento significativo do desmatamento – legalizado – na região, o que compromete fortemente as metas brasileiras de redução de emissões de gases efeito estufa, além de significar uma ameaça concreta ao equilíbrio ecológico da região. Em primeiro lugar, o art. 13 do projeto repete um erro grave da atual legislação, que é não impor um limite temporal para que o Zoneamento Ecológico Econômico autorize a redução do tamanho da RL de 80% para 50% do imóvel. A lei atual já traz essa deficiência, que incentiva que desmatamentos ilegais sejam feitos na expectativa de que zoneamentos futuros venham legaliza-los, como ocorreu recentemente no Estado do Mato Grosso. É verdadeiro legitimador da política do fato consumado. Em segundo lugar, o projeto permite, em seu art.12, §4o, a diminuição da RL em municípios que tenham mais de 50% de seu território sob a proteção de unidades de conservação ou terras indígenas homologadas. O projeto fala que essa diminuição é para fins de “recomposição”, mas, assim como no item anterior, não estabelece um limite temporal para que isso ocorra. Novamente, é um indutor do desmatamento ilegal, que poderá ser legitimado por decisões municipais. Em terceiro lugar, e como já comentado acima, ao diminuir a proteção ás áreas úmidas, o projeto retira qualquer tipo de proteção a cerca de 30% do bioma amazônico, ou cerca de 400 mil km2 (área equivalente ao do Estado de São Paulo). Por fim, o simples fato de ser um projeto de anistia, que fecha os olhos para ilegalidades cometidas e desautoriza ações de Estado tomadas até muito pouco tempo atrás para combater o desmatamento (sobretudo na Amazônia), o projeto significa, sem dúvida alguma, um enorme incentivo à retomada do desmatamento ilegal, colocando em risco os avanços recentes na política de controle das derrubadas implantada pelo Governo Federal e por alguns governos estaduais. 3. Da ofensa ao direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado estabelecido no art.225 da Constituição Federal 11 Ao impedir a recuperação de regiões que já se encontram sem situação ambiental crítica, e ao permitir o uso agropecuário de áreas ambientalmente sensíveis (nascentes, beiras de rio, áreas úmidas, encostas, topos de morro), o projeto consolida situações insustentáveis, promotoras de constantes problemas ambientais como a falta de água, os deslizamentos de encostas, o sumiço de nascentes, a extinção de espécies da flora e fauna nativa, as enchentes, o desparecimento dos agentes polinizadores, dentre muitos outros. Em resumo, o projeto condena regiões inteiras a permanecerem em constante estado de desequilíbrio. Por outro lado, ao diminuir a proteção às florestas ainda existentes em terras privadas, o projeto, na contramão da história, não só não restringe (como seria de se esperar de uma modificação na legislação florestal em pleno século XXI), como abre mais possibilidades de desmatamento. Tudo isso fere de morte o disposto no caput do art.225 de nossa Carta Magna, que estabelece o direito de todos “ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida”. Ao ignorar solenemente os reiterados avisos da comunidade científica brasileira de que estaria cometendo um grande equívoco ao retirar a proteção a áreas ambientalmente importantes, o Parlamento desrespeitou o princípio da precaução, consagrado no §1o do art.225 e na Declaração do Rio de Janeiro de 1992, e atuou de forma contrária ao determinado em nosso texto constitucional, tolhendo o direito da sociedade a um ambiente equilibrado e seguro. Ademais, ao anistiar desmatamentos ilegais cometidos até pouco menos de quatro anos atrás, sem trazer benefícios ou compensações concretas aos que optaram por cumprir a lei, o Congresso Nacional aprovou um projeto que, além de gerar todos os problemas ambientais já citados, muito claramente incentiva o desrespeito ao Estado de Direito Ambiental. Quem cumprirá as novas regras (que em nada aprimoram as hoje em vigor) se, num passado recente, quem as desrespeitou foi premiado com uma anistia? Dessa forma, o Parlamento brasileiro, numa atitude inédita em sua história, em pleno século XXI, agiu para beneficiar o infrator, para facilitar e perpetuar o dano ambiental. De forma diametralmente contrária, portanto, ao determinado em nossa Lei Fundamental, que determina ser dever do Poder Público “preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas” (art.225, §1o, inciso I). Por fim, ao liberar os proprietários privados de conservar minimamente os recursos naturais existentes em suas terras, permitindo que mantenham atividades econômicas (ou formas de uso da terra, já que em grande parte das áreas não há produção econômica efetiva) danosas ao meio ambiente, o projeto aprovado afronta o princípio da função socioambiental da propriedade, esculpido no art.186 do texto constitucional. Diz o referido artigo que a função social é cumprida “quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei”, a diversos requisitos, dentre eles o da “utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente” (inciso II). Segundo PADILHA, “o princípio da função social possui caráter de dever coletivo, estando o direito à propriedade garantido se sua função social for cumprida, pois a propriedade não pode atender tão só ao interesse do indivíduo, egoisticamente considerado, mas também ao interesse comum, da coletividade da qual o titular do domínio faz parte integrante”14. Claramente manter beiras de rio desmatadas, morros em processo contínuo de erosão, paisagens sem qualquer aptidão à manutenção da biodiversidade nativa, não pode ser considerado um uso adequado dos recursos naturais, e muito menos práticas condizentes com a conservação do meio ambiente. 4. Conclusão Pelas razões anteriormente expostas, e cumprindo com o poder-dever esculpido no art.66, §1o de nossa Carta Magna, solicitamos à Presidência da República que vete, integralmente, o texto do PL 1876/99 aprovado pela Câmara dos Deputados, por ser ele totalmente desprovido de embasamento científico e uma afronta ao direito de todos a um meio ambiente ecologicamente equilibrado. 14 Apud PADILHA, Norma Sulei. Fundamentos constitucionais do Direito Ambiental brasileiro. Rio de Janeiro, Elsevier, 2010, pg. 271. 12 Certos de que V. Exa. cumprirá com o dever que o cargo lhe impõe e com os compromissos públicos assumidos perante a Nação durante a campanha eleitoral que a levou ao cargo, nos despedimos. Brasília, 16 de maio de 2012. Adriana Ramos Secretária Executiva Adjunta Instituto Socioambiental 13