PERDAS E LUTOS – Quando experimentamos fins de mundos1 Ana Lucia Rocha2 Resumo: Estou para fazer reforma em casa: pintar paredes, trocar portas, acomodar melhor as novas tecnologias que se espalharam pela casa. E essa casa nesse momento me diz – o tempo passou. Percebi que o que estava me povoando ruidosamente nessa questão da reforma é que não dava para deixar de lidar também com a presença ativa do tempo em mim. É um transtorno fazer reforma, mas de qualquer modo, nas paredes é só passar tinta nova por cima das camadas velhas. Já comigo a questão é diferente. Como vivo e como lido com os “comigos” que aqui estão, os que estão se dissipando ou os que se organizando. Que casa organizo nessa marca dos 62 anos; como preparar um bom ninho, se tudo continuar na linha da vida, para a mulher de 70? É desse cotidiano de finalizações, de trânsitos, de turbulências que se compõe o texto. E quanto mais vivo mais vontade tenho de encontrar jeitos-agenciamentos que me ajudem no trânsito, nem um pouco ameno, das passagens da vida. 1 Capitulo 49 (Perdas e Lutos – lidando com finalizações na perspectiva de Stanley Keleman) no livro: Intercambio das Psicoterapias – Como cada abordagem psicoterapêutica compreende os transtornos psiquiátricos. PAYÁ, R. (org) São Paulo: Roca, 2011. 2 Ana Lucia Rocha: psicoterapeuta corporalista em conexão com Stanley Keleman, Deleuze e Guattari. Analista institucional. E-mail: [email protected] ALEGRAR nº11 - jun/2013 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br Quando experimentamos fins de mundos Em certo momento de nossas vidas, o “como éramos”, que até então nos particularizava e proporcionava um funcionamento próprio e costumeiro de estar no mundo, não tem mais condições de prosseguir do modo conhecido e contínuo – isso pode nos suceder quando nos deparamos com finalizações que atravessam de inúmeras maneiras as nossas vidas. Vivenciamos o corte das conexões que produziam um modo de existir no mundo e nos arremessamos e somos arremessados para zonas puras ou mescladas de dor, de supetão, de desconhecido, de irresolução, de indecidível ou ainda de desembaraços, de desejos ou de revigoramento. Finalizar entrelaça dois campos de acontecimentos e experimentações: o campo da despedida de alguém ou de algo, que geralmente implica em múltiplos desdobramentos e despedidas, e um segundo campo onde vivemos a experiência do morrer de nós mesmos, quando experimentamos modos de ser, de conectar-nos e de viver se alterarem ou se dissolverem. Percebemos também os efeitos das finalizações em nossas vidas quando, em inúmeros episódios, nos damos conta do quanto os territórios de vida que nos constituíam se abalaram em movimentos de desterritorialização ou reterritorialização, ou ainda constatamos territórios existenciais que se esgarçaram, pois não possuem mais conexões para continuar se tecendo e se sustentar. Paul Auster(1999) no livro “A invenção da solidão” narra o que lhe sucedeu com a experiência da morte súbita do seu pai. Deparamo-nos com uma narrativa contundente e franca escrita a partir da terceira semana da morte do pai. Neste relato, ele nos descreve desde o recebimento da notícia da morte até as tarefas de encaminhar o que fazer com a casa do pai e seus objetos junto com a sua família. Destaco um trecho dessa narrativa, quando ele desocupa a casa do pai: “Se houve um único momento pior para mim ao longo desses dias, foi quando caminhei através do gramado da frente. Debaixo de chuva, para despejar um monte de gravatas do meu pai na caçamba de um caminhão da Legião da Boa Vontade. Devia ter mais de cem gravatas, e muitas delas eu recordava da infância; os desenhos, as cores, os feitios que ficaram impregnados na minha consciência mais tenra, tão nitidamente quanto o rosto do meu pai. Ver a mim mesmo me desfazendo dessas gravatas como se fossem lixo era algo intolerável para mim, e foi aí, no exato instante em que as despejei no caminhão, que cheguei mais perto das lágrimas. Mais do que ver o caixão ser baixado na terra, o ato de jogar fora aquelas gravatas me pareceu personificar a idéia do sepultamento. Afinal compreendi que meu pai estava morto.” ALEGRAR nº11 - jun/2013 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br Dar-se conta de fins não é resultado linear de um bloco de compreensão formulado e absorvido nos eventos que socialmente demarcam o que aconteceu. Provavelmente consistirá em uma sequência aleatória de ações e momentos vividos, sendo eles de natureza inusitada, pequena e subjetiva, em que teceremos um campo de compreensão do fim que nos aconteceu. Fernando Pessoa (1999), relatando a saída do “moço do escritório”, salienta essas três camadas presentes nas finalizações, ou seja, a despedida, um certo morrer de si e os movimentos de desterritorialização: “Foi-se hoje embora, diz-se que definitivamente, para a terra que é natal dele, o chamado moço do escritório, aquele mesmo homem que tenho estado habituado a considerar como parte desta casa humana, e, portanto, como parte de mim e do mundo que é meu. Foi-se hoje embora. No corredor, encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida, dei-lhe eu um abraço timidamente retribuído, e tive contra-alma bastante para não chorar, como, em meu coração, desejavam sem mim meus olhos quentes. Cada coisa que foi nossa, ainda que só pelos acidentes do convívio ou da visão, porque foi nossa se torna nós. O que se partiu hoje, pois, para uma terra galega que ignoro, não foi, para mim, o moço do escritório: foi uma parte vital, porque visual e humana, da substância da minha vida. Fui hoje diminuído. Já não sou bem o mesmo. O moço do escritório foi-se embora. Tudo que se passa no onde vivemos é em nós que se passa. Tudo que cessa no que vemos é em nós que cessa. Tudo que foi, se o vimos quando era, é de nós que foi tirado quando se partiu. O moço do escritório foi-se embora.” Os processos das finalizações são experiências plurais e multidirecionais: diversas sensações, estados sentimentais mutantes, vertigens, hesitações, densidades, espaços e tempos compostos de vácuos, lascas imaginativas, pensamentos díspares, enroscos ou esboços heterogêneos para se dizer no acontecimento, variações na potência de agir, zonas ora resolutas ora inconstantes de desejos, intenções e ações. Nas finalizações somos também provocados e incitados a fazer mudanças; nesses polos e nas suas passagens fervilha outra gama de percepções, de experiências e de eventos internos e externos que virão a se constituir na matéria-prima para a vida-emnós se metamorfosear e, se possível, prosseguir. Vou usar de uma analogia que me ajuda a visualizar o que nos sucede na experiência das finalizações. Vamos nos imaginar dirigindo um carro em uma estrada com intensa neblina. Não conseguimos olhar à distância; teremos de diminuir a velocidade e ALEGRAR nº11 - jun/2013 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br identificar, passo a passo, onde se está e o que fazer. Não adianta querer ver ao longe ou acender o farol alto para ver mais. Isso acaba nos remetendo a uma sensação de impotência porque não conseguiremos alcançar maior clareza do que é possível no momento. Só temos acesso ao que está muito próximo de nós. Também não nos serve contar apenas com os conhecimentos prévios dessa estrada porque isso não tem como garantir o que está acontecendo nela e ao seu redor neste momento. Dirigir na neblina exige a disposição de fazer a experiência no presente puro e sem poder convocar um modo habitual de dirigir nas estradas. Dirigir na neblina é uma ação constante aonde vamos decifrando a cada passo as condições do caminho, interagindo com o que é possível perceber e, assim, avançamos mais um pouco. Este artigo está sendo escrito visando às situações de finalização que podemos acessar e trabalhar em nós, pois sabemos que, quando anunciamos para nós mesmos que estamos lidando com finalizações, significa que muitos outros aspectos já foram encarados e incorporados. Em um primeiro momento do texto, apresentarei alguns aspectos reflexivos relacionados ao assunto proposto; e um segundo momento, uma metodologia trazida por Stanley Keleman que nos ajuda, nos momentos de transição de vida, a fazermonos boa companhia e a exercermos ações que colaborem no prosseguimento da vida se constituindo em nós. I. UMA CARTOGRAFIA CONCEITUAL A vida se autoconstruindo nos encontros Diz Clarice Lispector (1980): “... Eu costumava pingar limão em cima da ostra viva e via com horror e fascínio ela contorcer-se toda. (...) Não gosto é quando pingam limão nas minhas profundezas e fazem com que eu me contorça toda. Os fatos da vida são o limão na ostra?” O árduo e o fascínio de nossas trajetórias de vida é que elas vão se construindo, se tecendo e se modificando no interjogo com o acaso dos acontecimentos que atravessam inexoravelmente nossos modos e mundos. Em um aspecto, nós não temos escolha; não podemos escolher não ser afetados por aquilo que atravessa e modifica as nossas vidas. Mas receber as lascas do desconhecido e do novo ativadas pelos acontecimentos pressupõe uma escolha: um corpo que possibilite ir além das identidades e dos territórios já existentes e demarcados e que dê suporte às percepções mutantes que irrompem na experiência do inédito. ALEGRAR nº11 - jun/2013 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br Diz Stanley Keleman (1997): “Experiências mutantes são processo – elas expandem ou explodem o mundo, ou encolhem e cortam o contato com ele. Uma percepção mutante não é um sinal de doença ou insanidade. (...) Mas o que posso vir a ser pode não caber na definição cultural da normalidade ou usualidade. A cultura nos diz como enganchar nossas vidas na memória e na projeção. Assim, nos agarramos ao passado ou ao futuro e os comparamos com o presente. A experiência diz que minha vida é processo.” Se consideramos possível nos desalojar de nós mesmos, no modo como nos reconhecemos, podemos experienciar o efeito das percepções mutantes em nossas vidas. Nessa experimentação ativa exploraremos essas percepções, de inúmeras formas e em diferentes matizes, até que, na continuidade desse exercício, caso componha conosco aumentando a nossa potência, chegaremos a ponto de incubar outros jeitos de ser, outros modos de compor com os outros e de habitar o mundo. A experiência de ser afetado e ver abismar certos modos de ser e viver não é nada pacífica. Configura-se em uma zona de turbulências e desassossegos, onde ora pendemos na direção das diferenças que vão brotando e nos transformando, ora pendemos para nos cobrir com o manto das certezas do passado tomados pelo amor próprio depositado naquilo que já havíamos construído e sido. Em certo momento, essa delicada experiência que vai se fazendo no próprio cotidiano, onde continuaremos sendo afetados pelos outros encontros e seus efeitos, pode ter a indicação de que certo limiar de resistência diminuiu, ou que certo limiar de tolerância do que antes se tolerava foi rompido. Produzem-se fissuras; fissuras no pensamento, na imaginação, nas atitudes ou nas ações. Esse trânsito intenso e tencionado indo na direção do próximo passo, é bem descrito por Clarice Lispector(1980: “Que Deus me ajude: estou sem guia e é de novo escuro. Terei que morrer de novo para de novo nascer? Aceito. Vou voltar para o desconhecido de mim mesma e quando nascer falarei em “ele” ou “ela”. Por enquanto o que me sustenta é o “aquilo” que é um “it”. Criar de si próprio um ser é muito grave. Estou me criando. E andar na escuridão completa à procura de nós mesmos é o que fazemos. Dói. Mas é dor de parto: nasce uma coisa que é. É-se.” (...) “Não vê que isto é como filho nascendo? Dói. Dor é vida exacerbada. O processo dói. Vir-a-ser é uma lenta e lenta dor boa. É o espreguiçamento amplo até onde a pessoa pode esticar. E o sangue agradece. Respiro, respiro.” ALEGRAR nº11 - jun/2013 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br Morrer de novo para de novo nascer não são campos de experiência estanques. Constituem um imbricado e entrelaçado campo de subjetivação no qual as fissuras que nos habitam, reverberando em nós, podem ganhar força, engendrando estados inéditos de pensamento, atitude ou ação que modificam certa composição da subjetividade para si e no mundo. Tais composições vão constituindo um presente que, simultaneamente, nos despoja e nos diferencia do passado. Essa experiência sempre inaugural de habitar as diferenças que nos lançam, de limiar em limiar, a estados inéditos, requer um estatuto. O estatuto de que somos de natureza processual, seres em autoconstrução que, como tudo no mundo, se encontram sempre na beirinha do presente, em uma incessante produção de si e de mundos. Nesse estatuto, o que constitui nossa experiência de existir é ser esse processo em autoconstrução ininterrupto, produzindo-se no entrecruzamento dos acontecimentos internos e externos, em um mix daquilo que já nos constitui e pela fragilidade do novo que vai se formando. Mudando destinos de vida As novas configurações, o que vai nascendo-em-nós e nos constituindo, e ainda os territórios existenciais que vão ganhando consistência e imprimindo outros jeitos de circular no mundo, não substituirão o que já vivemos anteriormente. O que está se configurando também não tem a missão de apagar ou reconstruir as conexões do passado, nem de tirar o mérito do que já vivemos. Freud relembra a morte de sua filha ao escrever a Ludwig Binswanger quando este vive o luto de seu filho: “Sabemos que depois de tal perda, o luto agudo vai se atenuar, mas continuamos sempre inconsoláveis, sem encontrar substituto. Tudo que ocupa esse lugar, ainda que o ocupe inteiramente, continua sendo sempre outra coisa. E, no fundo, é bom que seja assim. É o único meio de perpetuar esse amor que não se quer abandonar por preço algum.”(Roudinesco, 2005) A natalidade do novo só se faz possível se formos construindo a possibilidade de nos diferir em nós mesmos, tornando-nos outros. Quem sabe seja esse o nosso destino encarnar as diferenças instaurando outros valores e outras formas de ser e viver. Sempre outra coisa... Experiência da multiplicidade e das diversidades ao longo da jornada humana. Francisco Ortega desenvolveu a idéia de “pensar sem corrimãos”. Tomo a liberdade de adaptar esse conceito à experiência do processo de existencialização: viver sem ALEGRAR nº11 - jun/2013 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br corrimãos é abrir-se “ao acontecimento e ao contingente, desenvolver um pensar intempestivo, criativo e inovador, passível de fazer da experimentação seu modus operandi”. (Ortega, 2000) Viver sem corrimãos, sem balizas fixas, é por em experimentação tanto o pensar como o viver. É pedir ao conhecimento que este não se oponha à vida, que não a meça que não a ordene. É pedir a suspensão do julgamento, é hesitar diante dos protocolos e as convicções estabelecidas, é inibir a ação de um certo juiz-em-nós viciado em valorizar aquilo que deveria ser, ou viciado em só reconhecer aquilo que já possui validade e reconhecimento no quadro de referências. Viver sem corrimãos é acionar um conhecimento que possa aprender a se dizer a partir do que é, do que se está vivendo, ou seja, um pensamento que afirme a vida em seu presente. Deleuze (2001), na interface com Nietzsche, afirma que “pensar significaria o seguinte: descobrir, inventar novas possibilidades de vida.” E Deleuze nos traz, na sequência, uma citação de Nietzsche quando analisa a vida dos pensadores: “O que essas vidas possuem de surpreendente, é que dois instintos inimigos, que apontam para sentidos opostos, parecem ser forçados a andar sob o mesmo jugo: o instinto que tende para o conhecimento é constantemente constrangido a abandonar o solo onde o homem costuma viver e lançar-se no incerto, e o instinto que quer a vida vê-se forçado a procurar incessantemente, tateando, um novo meio onde possa estabelecer-se.” Pensamento e vida em uma ação conjunta que nos convoca a nos desprender de nós mesmos para prosseguir formando a vida no que ela enfrenta. Pensamento e vida se fazendo companhia para ultrapassar os limites que lhe são próprios: o conhecimento se associando com o incerto, com aquilo que ainda não tem código, e a vida se associando com os movimentos do vir-a-ser, indo além das condições instaladas da vida até então. Nessa maneira de encarar a vida onde se põe em movimento o pensar e os modos de viver, também cabe desenhar uma identidade, mas esta será desenhada sempre a lápis, pois inúmeras configurações serão feitas ao longo da vida. Na fotografia: clique – “Isto foi” Após o clique de uma máquina fotográfica um instante ficou presentificado em uma foto. Mas é uma estranha presentificação, pois, apesar do clique acontecer em um átimo de tempo, a fotografia sempre é passado. ALEGRAR nº11 - jun/2013 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br Diz Barthes (1980), no livro “A Câmara Clara”, sobre fotografia: “O nome do noema da Fotografia será então “Isto-foi”, ou ainda, o Inacessível. (...) Esteve lá e, contudo, imediatamente separado; esteve absolutamente, indesmentívelmente presente, e, todavia, já diferenciado.” O “Isto-foi” de Barthes se refere ao tempo vivido muito além do tempo do relógio. O noema/sentido da fotografia só nos é despertado quando, longe de um olhar banal, somos tocados e atingidos sensivelmente por uma fotografia, e aí podemos nos deparar com o próximo/distante/não é mais do “Isto-foi”. A fotografia pode ser uma estratégia forjada para suspender o tempo, para ultrapassar a intermitência do tempo, para manter interminável algo significativo. Mas a mínima ação do clique fotográfico cortou o tempo, “Isto-foi”, inacessível e já diferenciado. É fundante nas finalizações demarcar a experiência do “Isto-foi”, quando ensinamos a nós mesmos que o tempo existencial não é de natureza linear, contínua, uniforme. No tempo existencial as finitudes sempre se apresentam, ajudando-nos a reconhecer a tarefa permanente de transformar nossas vidas. Vivemos uma época que possui inúmeros recursos de instantaneidade, de informação, e de previsibilidade. Vivemos também em uma sociedade que almeja a prevenção para a manutenção da saúde, que, entre as suas ações, divulga inúmeras cartilhas que ditam uma série de práticas e cuidados que devem ser cumpridos por todos. O empenho nesses recursos, cuidados e práticas evidencia um ambiente que busca o controle do futuro, onde se procura antecipar ao máximo o que pode nos acontecer na tentativa de neutralizar o impacto dos acontecimentos esvaziando a eclosão do imprevisível, desconhecido e incontrolável. Neste sentido podemos pensar que se pretende uma espécie de presente “eterno”, definitivo e liso, sem inesperados e sem fragilidades. As finalizações, quando ressoam em nossas vidas, rompem essa sensação de segurança do tempo almejada na nossa cultura e nos lançam num tempo restituído na sua força de acontecimento e de intempestividade. Como o clique fotográfico (“Isto-foi”) que diferencia um tempo do outro, assim são os acontecimentos quando atravessam nossos modos de viver. Dá-se um corte na continuidade e no conhecido, rompe-se a temporalidade como é vivida, escapa uma história e se instaura um “novo” passado e um “novo” presente de alguma coisa – e aquelas identidades escritas a lápis começam novamente a se mover. O ato de demarcar o “Isto-foi” no processo das finalizações envolve dar conta de uma ausência. Ausência que pode ser transmutada em memória, experiência essa que se ALEGRAR nº11 - jun/2013 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br dá quando vamos dissolvendo o medo de esquecer ou de negligenciar o que se viveu e podemos ir tecendo a memória de um tempo vivido. Memória que, constituída nesse lugar, nos ajuda a consentir que a vida prossiga para outras direções, dando passagem para novos estágios de vida. Diz Stanley Keleman (1997): “Podemos conceber nossa vida como acontecimento. Podemos nos tornar parte do processo de vida em termos de coisas acontecendo, os eventos e suas expressões. Acontecimentos ocorrem sem um começo ou um fim, e podem nos levar a um nível de existência inteiramente diferente. Assim, posso falar desta ou daquela ocorrência em minha vida (...) como um estágio da minha vida. Minha personalidade está intimamente ligada à continuidade. O conceito de acontecimento permite abrir mão do tempo da cultura e ganhar nosso próprio espaçotempo, um ambiente onde viver nosso processo.” Cantarolar um ritornelo e finalizações Ao reler o que tinha escrito até aqui, dei-me conta que o texto poderia soar meio repetitivo; idéias já apresentadas eram novamente reintroduzidas com outras ligações ou dimensões. Então me vi a pensar se teria sentido tal escrita e se essa forma de escrita tinha algo a ver com o que é próprio do tema das finalizações. Ao intensificar em mim mesma essas percepções, com o mote das perdas e lutos, fui sendo povoada por lembranças, episódios da minha vida e cenas de clientes no consultório. Veio neste momento uma palavra-conceito usada por Deleuze e Guattari: ritornelo, e isso me ajudou entender a direção que estava tomando no texto. O ritornelo faz parte do universo musical. É uma repetição, um retorno, a reiteração de um som, a recorrência ou a retomada de um trecho musical. Deleuze (Deleuze e Guattari, 1997) traz três exemplos mostrando três facetas do efeito de cantarolar um ritornelo no encontro com as forças do caos. Estes exemplos não são graus de enfrentamento do caos e do estranho, são três diferentes funções. Uma criança no escuro, tomada pelo medo, tranquiliza-se fragilmente cantarolando. A canção que ela repete produz no meio do caos um centro estabilizador. Ela canta e dá passos, às vezes acelera e às vezes diminui a velocidade. Diz Deleuze: “mas a própria canção já é um salto: a canção salta do caos a um começo de ordem no caos, ela (a criança) arrisca também deslocar-se a cada instante”. Uma dona de casa liga o rádio e cantarola. Para dar cabo de seus afazeres, faz um muro sonoro com a canção para que tudo que está além, no caos, fique além do “em casa”. Função essa diferente da criança criando um centro, o ritornelo aqui é convocado para que “as forças do caos fiquem mantidas no exterior tanto quanto ALEGRAR nº11 - jun/2013 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br possível, e o espaço interior protege as forças germinativas de uma tarefa a ser cumprida, de uma obra a ser feita.” (Deleuze e Guattari, 1997) No terceiro exemplo se vai além do manter as forças do caos para fora. Nesse exemplo o autor nos inclui: criáramos um círculo que tinha por função fazer fronteiras com as forças do caos e, durante o trabalho de lidar com essas forças, entreabrimos esse círculo numa nova direção, como que nos abrindo para ir na direção das forças do futuro. Fazemos essa saída “cantando uma cançãozinha” arriscando, estremecendo e improvisando. Essa musiquinha pode ser como carregar um pouco do “em casa”, algo que reconhecemos e que nos garanta enquanto fazemos essas tentativas, meio errantes a princípio, de um trajeto que se principia. Podemos associar esse funcionamento do uso de ritornelos com o que se vive nas finalizações. Episódios são lembrados, contados e recontados; sensações e sentimentos muito similares afloram e irrompem sempre novamente em inúmeras situações; lascas de imagens e pensamentos se repetem em diferentes tons, matizes e intensidades; pequenas atitudes são esboçadas inúmeras vezes antes de vingarem como gestos e ações no mundo. É como cantarolar ritornelos que ora se organiza um centro no meio das forças do caos, ora se estabelece um campo onde se experimenta certo conforto e faz fronteira com o caos, deixando-o o mais possível para fora deste campo, e, ora se faz pequenos gestos ou ações inaugurais. Às vezes, inclusive, repetir um ritornelo evocando o tema da própria perda é um jeito de ir se aproximando e constituindo um pensamento onde o impensável possa, por um tempo, surgir e transitar. Lidar com as finalizações não se faz numa sequência evolutiva. Ora é um imergir em um cotidiano sem sentido e ora germinam, rompem ou saltam lascas, traçados e possibilidades até então inauditos. Lidar com as finalizações é se deparar com componentes de passagem e de alternância, componentes ativos e heterogêneos de densificações, de desapegos, de intensificações, de dor, de eliminações, de esgarçamentos, de descobertas, de amplificações, de aprendizagem, de balbucios. E vai e volta e acelera e para e retoma e inaugura, fica forte e fica tênue, e por um fio se esboça novamente, e vai e volta... É como um refrão que se repete numa canção e que nunca é igual a cada vez. É uma repetição, mas esta vai produzindo novas conexões e se diferenciando, visto que cria outros estados de intensidade, outras bifurcações, outras associações, outras composições, outros significados, outros acontecimentos. II. ESTÁGIOS DA EXPERIÊNCIA NAS MUDANÇAS DE VIDA ALEGRAR nº11 - jun/2013 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br A vida se produz numa série diversificada e imbricada de transições. Experimentamos algumas dessas transições de forma gradual, como a passagem entre o final da adolescência e a germinação do mundo adulto, ou como as transições enfrentadas por um casal quando os filhos deixam de morar em casa: esse casal começa a ensaiar outras formas de relação entre eles, bem como a dissolver formas habituais de relação com os filhos, inventando novas formas. Outras transições são mais repentinas, como a morte de uma pessoa significativa, uma mudança brusca na área profissional, uma doença ou uma guinada amorosa ocasionando em separação. Podemos viver essas situações de mudança como fatalidades que imprimem em nós destinos e papéis sociais pré-definidos e fechados ou como zonas de experimentação ativa onde procuramos manejar o que nos sucede. Podemos viver a vida nos processos de mudança como vítimas, escravos, copiadores de estereotipias ou como desbravadores. Afirma Stanley Keleman (1994): “É importante que você se identifique com o processo de suas transições. Como você influiu na sua mudança ou foi vítima dos processos que o forçaram a mudar? E de que modo você pode participar do processo de autoformação, permitindo que o crescimento ocorra com você tendo um papel ativo?” Exercer atividade nesses processos se faz cotidianamente na microatitude, na micropolítica. diferentemente de privilegiar insights generalistas: “O insight pode ser importante, mas saber não é tudo. Alterar sua situação de vida é ser capaz de mudar seu funcionamento. Isso não significa apenas modificar sua mente, mas o modo como você usa a si mesmo”. (Keleman, 1994) Nos processos de mudança podemos experienciar a nós mesmos, captar e ganhar intimidade com as dimensões bioquímicas, emocionais, físicas e sociais que se produzem. Essa intimidade abre o campo para o manejo de si possibilitando assim influenciar na trajetória de nossas vidas. Stanley Keleman, ao focar o manejo de si nas situações de transição, cartografa três estágios do como as mudanças funcionam em nós: endings, middle ground, forming.3 Cada um desses estágios é constituído por uma composição própria de qualidades emocionais, ritmos, sensações corporais, atividades mentais, problemas e desafios específicos. Conhecer esses estágios e o que eles produzem, sintonizando-os com o 3 Finalizações, terreno de transição, estágio de formação. “Endings não apenas significa finalização dos múltiplos elementos de um processo existencial, mas a ponta do fio de acontecimentos. Middle ground se refere a um terreno de transição, informe, pleno de potencialidades” (nota da tradução em KELEMAN, 1994) . ALEGRAR nº11 - jun/2013 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br que se sucede particularmente em nós, pode ser um bom instrumento para o automanejo nas situações de mudança. Vale assinalar que, quando estamos lidando com mudanças abrangentes de vida, como é o caso das perdas e dos lutos, esses três estágios não funcionam como experiências gerais ou únicas. O que está sendo vivido apresenta inúmeros elementos e facetas; cada uma delas será descoberta, acionada e trabalhada em pequenos trechos moleculares ou fragmentos. Poderemos estar no estágio de ending em um fragmento de vida atual e no estágio de forming em outra porção da vida. Cada um desses fragmentos apresenta necessidades, ritmos e graus de maturação próprios. Cada um deles será ativado em diferentes espaços e momentos, irá disparar intencionalidades e disposições particulares e produzirá diversas composições afetivas. Muitas vezes, esses trechos de vida ressoam uns nos outros ou demarcam diferenças, ora incentivam uns aos outros, ora algum deles incita outros para uma nova trajetória, ora dão inputs para algo que germina. Às vezes certos trechos são vividos na sua particularidade; outras vezes, fragmentos se conectam, produzindo composições mais amplas. Endings Interrompem o que estava estabelecido como sequencial e ordenado. Se partes da nossa vida ficaram obsoletas não há condições de prosseguir da forma como se configuravam. Endings são uma desconfiguração, um processo emocional de distanciamento, um retraimento. Não podemos mais agir como agíamos, algo está se extinguindo, relações estão se modificando. Nossas edificações identitárias se corroem, a vida prévia de nosso corpo está ameaçada e invalidada, e não é à toa que somos tomados por ondas de tristeza e medo. Percebemos vácuos e lacunas tanto nos mundos que até então nos constituíam como em nós. Constatamos vazios e vácuos nos estados emocionais, nas sequências rotineiras de comportamentos ou mesmo nas sequências cognitivas. Experimentamos sustos, apreensões, confusões e variadas velocidades de ansiedade. Experimentamos uma tristeza que ultrapassa nossa compreensão; experimentamos desconforto físico e emocional, um estranhamento em nós. Experimentamos lascas soltas de excitação e sentimento sem foco, que não tem como se direcionar nos corpos e mundos presentes. Algo escapa. É um momento de encarar a nós mesmos como desconhecidos e conviver com o desconhecido que se faz ao nosso redor. Mundos anteriormente codificados, com ALEGRAR nº11 - jun/2013 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br rotas e destinos tão familiares, apresentam-se estranhamente desconfortáveis e sem direção. Uma cliente depois de uma separação amorosa, dizia algo assim durante a sessão: “É a mesma casa, o mesmo quarto, a mesma padaria, mas não é. Está tudo diferente; é outra padaria, é outra sala para ver televisão, nem sei ficar na mesa da sala sozinha, fico fumando no terraço quando agora posso fumar por toda a casa, fui fazer compras no supermercado e fiquei perdida, errei nas quantidades e no que comprar, comprei pepino e não gosto...”. O passado que fomos pede para dar um jeito para reverter o quadro, para voltarmos a ser como nos reconhecíamos. E, paradoxalmente, o presente nos mostra que a vida está seguindo. Imperiosamente prosseguimos para frente – a vida não para! A vida quer viver, e esse impulso básico também nos remete a encarar o que é destituído de previsibilidade. Conseguir se sustentar na experiência das finalizações não significa que já conseguimos encontrar uma fonte forte de motivação para dar sentido ao que enfrentamos, ou que vivemos algo de natureza tão agradável que nos faz ter novamente ânimo para prosseguir. Nuno Ramos (2007) escreve um diário sobre a convivência com a sua mulher quando ela estava num quadro de depressão severa. Em um momento do relato, ele descreve o que seria para ele a cura de Sandra: “A cura não é o raio de sol depois da tempestade, nem uma lufada de ar no quarto pestilento, mas haver o quarto, e o sol como o conhecemos, e o vento como desde que somos pequenos. É o mundo ser redondo e o oceano ser salgado. Isso é a cura, o tédio bem-vindo”. Essa expressão do “tédio bem-vindo” é interessante ter presente no árduo processo das finalizações quando quase tudo é vivido com dimensões extras de sensações, memórias e irritabilidades. Acordar com o despertador, tomar o café da manhã e ler alguns minutos o jornal ou interagir com os que estão à volta tratando de banalidades, é esse o tédio bem vindo. Olhar pela janela para ver como está o dia para escolher a roupa no armário para ir ao trabalho. E olhar pela janela só foi para isso mesmo – ver o tempo; e abrir o armário para escolher a roupa só foi para isso mesmo – ir para o trabalho. Viver o tédio bem-vindo. Endings não significam apagar, desconectar. Ao longo da experiência com os endings descobrimos que os sentimentos, as formas de ligação não se exterminam, e sim se transformam, se desdobram. Não rompemos conexões; mudamos direções, formas e destinos. ALEGRAR nº11 - jun/2013 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br Em Berkeley, em uma sessão de psicoterapia com Stanley Keleman, vi-me tomada por uma onda de desmanche e tristeza, e falei para ele que não sabia como iria aproveitar o workshop, que seria com o próprio Keleman, e os dias que o antecediam, estando eu naquele estado. E ele falou algo assim: “Vai passear tristemente, vai fazer compras tristemente, (let’s play) experimenta...”. A minha tristeza foi uma estranha e boa companhia. Ela me territorializou, pois assim pude habitar a minha realidade somática e emocional, um jeito não costumeiro de estar em mim e encarar o que me sucedia. Pude ir vivendo a minha realidade existencial sem desconectar com o mundo. Convivi com velocidades, ritmos, temperaturas, vontades, fantasias e estados musculares diferenciados que se apresentavam em mim, e comecei a modular estes estados em outras formas de funcionamento. Na volta ao cotidiano em São Paulo, aquela experimentação ressoava. E, às vezes, quando batia aquele desassossego, repetia um ritornelo para mim mesma: vá ao cinema tristemente, vá ver sua mãe tristemente. Ao longo de um tempo, pude ir me desapegando de um modo de família nuclear que não existia mais. A razão dessa tristeza e preocupação era que a minha mãe havia adoecido gravemente, e pude, aos poucos, engendrar novas maneiras de relação com ela e com a minha irmã. Os endings nos lançam um problema que pode se transformar em um desafio: viver afirmativamente os estados emocionais quais forem eles, e autorizar o que nos acontece para que a vida-em-nós possa continuar se formando, ou seja, manejando nossos corpos em novos modos de funcionamento para corporificar a nossa realidade existencial presente. Middle Ground Reconhecemos que uma passagem está se dando; estamos em transição; algo acontece em nós; algo impreciso, sem contornos, sem nomes. No middle ground, essa experiência pode ser sustentada por nós e ter maior duração no tempo e no espaço. Estamos em um “entre” germinativo, entre dois mundos, nem um nem outro: entre modos de agir em dado campo, entre modos de funcionar em uma dada relação, entre modos de ser em um mundo social, entre duas formas de encarar um fundamento de vida. Momentos de produção, recepção e incubação, lugar onde coisas podem vir a ser, e profundamente nos toca estar nesse ambiente de nascedouro. Nesse estágio controlamos menos o que experienciamos de diferente, podemos conviver mais de perto com o estranho-em-nós. Um estado que acolhe o que se produz e que está intumescendo e fazendo ligações. Os blocos do passado não estão ALEGRAR nº11 - jun/2013 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br mais tão apegados nem tão nítidos; temos menos a sensação de navegar internamente entre blocos e vácuos e mais a sensação interna de caldos ou marés viscerais com diversas temperaturas, consistências e ondulações. Podemos, nesse momento, endossar o que nos sucede na sua qualidade de informe, de incondicionado, de fora de sequência, de “não sei bem o que é, mas é”. No trecho já citado de Clarice Lispector ela nos fala: “Vou voltar para o desconhecido de mim mesma e quando nascer falarei em „ele‟ ou „ela‟. Por enquanto o que me sustenta é o „aquilo‟ que é um „it‟”. Nos estados de middle ground, somos como esse pronome empregado no inglês que designa coisas, objetos ou que é utilizado para o impessoal. Nesse momento, não somos um eu constituído, um eu sujeito; é um certo mundo-em-nós sem sujeito4, sem linguagem. Emergem em nós mundos híbridos, marés intensas e singulares, é algo que germina em nós. No middle ground, vivemos o ambiente dos sonhos nos momentos mais inesperados. O tempo se apresenta na dimensão de acontecimento; o que acontece no tempo vivido está fora do curso ordinário. É a experiência de um tempo vivo em zigue-zague traçado pelas sensações, pulsos e percepções. Estados intensos que, no tempo do relógio, foram somente segundos, ou então produzimos ondas imensas, levamos até um susto, as horas passaram sem se notar. Brotam em nós movimentos nítidos compostos por sensações, pensamentos, sentimentos, hipóteses imaginárias, nuvens de intuição, espaços que se abrem. Um tumulto que pode ser habitado na sua qualidade de criação, um caos que pode ser vivido na sua dimensão de anunciar outro futuro que nos difere do que fomos até então; estamos nos dispondo a fazer novas conexões. Podemos intensificar essas experiências do middle ground sugerindo a nós mesmos seguir as trilhas das imagens, das sensações, dos sentimentos, dos pensamentos que se produzem em nós. E nesses estados mutantes e sensíveis, podemos captar o mundo-em-nós de outras maneiras; podemos ordenar o “desregramento de todos os sentidos”5, podemos criar um artifício para poder captar, tanto o mundo como nós, com outros tatos, com outros ouvidos, com outros olhos, com outros pensamentos. Nas palavras de Keleman (1994), o middle ground “é como um oceano transbordante de imagens, sensações, sentimentos e necessidades entrando em cena, ensaiando no campo da consciência, antes de passar para o mundo social”. 4 “Deixar de pensar-se como um eu para viver-se como um fluxo, um conjunto de fluxos, em relação com outros fluxos, fora de si e dentro de si” (DELEUZE, 1997). 5 “Chegar ao desconhecido pelo desregramento de todos os sentidos (...) um longo, imenso e raciocinado desregramento de todos os sentidos”. (Rimbaud apud Deleuze, 1997). ALEGRAR nº11 - jun/2013 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br Esse ensaio se faz possível se exercermos a capacidade de aproveitar o que se produz em nós. Stanley Keleman se utiliza de um exemplo que nos indica uma atitude: fazer um silêncio interior, como o da escuta de um som. A chave do aproveitamento do middle ground está em como apurar essa atitude de captar o que se passa em nós. Pausar em si mesmo para se captar. Receber a si mesmo, mergulhar ativamente no como estamos, disponibilizando sensores e pensamento, para saborear o que está acontecendo em si naquele instante. O que se passa aqui? Como é? Como funciona? Por onde circula? Por onde me toma? Para onde me lança? Onde começa a se perder? Como retomo? Como interrompo? Como prolongo? O que conecta? Que imagens aparecem aqui? E se experimento um pouco mais, surgem conexões? No meio das marés profícuas do middle ground, nesse tempo vivido em zigue-zague intensivo e em um clima onírico, corre-se um risco: o de querer que logo irrompa uma resposta, um insight ou uma ação no mundo. O risco é que, nessa vertigem, almejando sair desse estado intenso e que pede passagem, podemos instantaneamente acionar pensamentos e ações estereotipadas ou tentar nomear genericamente o que se passa. Essa saída acelerada e sobrecodificada possibilita uma conexão fraca com o que de fato nos singulariza naquele momento. Inibir a nós mesmos, desacelerar a ação imediata no mundo pesquisando melhor o que nos acontece, possibilita a zona da natalidade. Parece paradoxal, inibir para criar, inibir para ser espontâneo. “Inibição é uma forma de câmera lenta, alterando o ritmo do metabolismo, a velocidade de uma ação e a direção de uma emoção. Paradoxalmente, inibição é espontaneidade. Parar estimula a emergência de outras ações e outros impulsos, a oportunidade de refletir sobre uma situação. Podemos ensaiar outras possibilidades”. (Keleman, 1995) Forming Na vivência do middle ground, ao ensaiarmos essas novas possibilidades, somos surpreendidos por novas composições de nós mesmos. Elas evidenciam outros modos singulares de usarmos a nós mesmos dando direção ao que nos acontece. Descobrimos assim aspectos diferentes em nós, configuramos novas necessidades e imaginamos novas formas de estar no mundo. Ultrapassamos o estágio do middle ground quando essas composições internas pedem passagem, desejam ganhar mundo. Nesse instante tomamos posse do que ALEGRAR nº11 - jun/2013 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br estamos descobrindo, comprometemo-nos com o que estamos experimentando e, assim, autorizamo-nos a entrar em uma zona de ação e testes no mundo. Com a matéria prima das novas possibilidades germinadas no middle ground, no forming, modulamos a nos mesmos na direção de novas formas. Usamos nessa modulagem tanto a engenharia e a plasticidade de nossos tecidos, imagens, sentimentos e pensamentos, como a combinação de trechos e fragmentos dos nossos comportamentos conhecidos. No forming, num mesmo movimento, modulamos a nós mesmos procurando dar passagem às intensidades e criamos sentidos que efetuam e endossam essa passagem. Novas formas, novos modos de ser, novos modos de se dizer, novos modos de constituir territórios existenciais. Essa modulação de si, que dá vida a novas formas, não se produz em uma redoma, vai ser operada no interjogo do pessoal e do social, do mundo de dentro e do mundo de fora. É uma complexa operação porque, usando os nossos corpos-formas cambiantes, provocamos variadas sensações, sentimentos e respostas, tanto em nós mesmos como nos outros, e a partir do efeito dessa experimentação novamente remodulamos a nós mesmos. Afirma Stanley Keleman que a chave é praticar, muitas e muitas vezes, de diferentes modos, até estabilizarmos um novo funcionamento de nós mesmos. Ao longo de um tempo ao explorar, repetir e recombinar uma nova forma, vamos descobrindo novos modos de navegação emocional, aprendendo novos graus de intencionalidade muscular e tatuando e fortalecendo conexões neurais. O forming é um estágio que se caracteriza pela prática e aprendizagem. É um momento de rascunhos de comportamento, hesitações, tentativas e invenções. É uma fase de convivência com êxitos e fracassos. Momentos de assertividade para tomar e retomar o novo que estamos corpando no embate e diálogo com os hábitos automáticos. Stanley Keleman extrai do cotidiano uma experiência prosaica que nos evidencia como o forming se produz: é como aprender a andar de bicicleta. Há, no início, desajeitamentos, dificuldades e pequenas sequências de coordenação. Não se começa com grandes curvas ou descidas íngremes; escolhe-se lugares que apresentam menores dificuldades. Depois é possível desafios para sequências de ações mais complexas e longas, onde também acontecerão novos tropeços, inadequações, descobertas e aprendizagens até que, ao longo de um tempo, a nova habilidade se instaura e se estabiliza. ALEGRAR nº11 - jun/2013 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br As novas formas e os novos territórios existenciais que irão se constituir não se opõem às formas anteriores e não são substituições. No forming, experimentamos a multiplicação de nós mesmos. Somos uma assembléia de corpos que não possui lugares fixos ou hierarquia; essa assembléia não tem configuração definitiva e procura estar aberta a novos membros. Se estivermos criando novos graus na forma do enternecer-se com o outro, não significa abrir mão das formas do enfrentamento. Se estivermos criando formas de independência, de ser sozinho, não estamos negligenciando as formas do compartilhar e do depender. Quanto maior for o nosso repertório de formas e em diversos graus, maior será a nossa possibilidade de darmos conta do que nos acontece nos processos de vida. No forming, temos a nítida experiência do vivo-em-nós que pode prosseguir formando frente ao que lhe acontece quando não submetido à perenidade de uma identidade demarcada. Neste estágio temos que conviver muitas vezes com o começar outra vez. Como exemplo, lembro um alto executivo que, possuindo um conhecimento técnico especializado com reconhecido internacional, foi convidado para por outra empresa para ocupar um cargo bastante parecido com o que desenvolvia até então. Ele aceitou esse desafio. Em relação ao objeto de trabalho, atores e práticas de mercado e muitas outras esferas, ele pôde se experimentar num lugar habitual, maduro e com autoridade. Em outras áreas, como relacionamento com os colaboradores e as instâncias de decisão, ou situações corriqueiras como a circulação física entre os ambientes, ou ainda o timing de operação da empresa, ele teve de aceitar ser um aprendiz e perceber que, apesar da sua notoriedade nesse campo de trabalho, naquele momento e em uma série de situações, ele era um embrião informe nesta nova empresa. Teve que lidar consigo mesmo, com seus anseios e as expectativas da empresa, aceitando o tempo existencial para decifrar e transitar em um novo universo; um tempo para estabelecer novas conexões, fazer novas alianças, incorporar novos ambientes e outras maneiras de produzir, para a partir dessa artesania se perceber tecendo novos territórios existenciais. Podemos ver também este estado embrionário nas relações afetivas, por exemplo, quando um viúvo depois de um longo casamento amoroso, profícuo e sólido, inicia uma nova relação amorosa. Acostumado que estava numa relação estável e de grande partilha, vê-se ora apreciando fazer uma nova ligação e ora considerando restrita uma relação tão incipiente em que a partilha é muito tênue e o repertório em comum é tão pequeno. ALEGRAR nº11 - jun/2013 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br Ora faz gestos em direção à nova companheira que depois percebe que não cabem nessa relação embrionária – pois tais gestos foram acessados do repertório de marido da relação anterior. Ora se vê desajeitado, pois não imaginava que voltaria a viver o terreno do namoro, como se namorar fosse um estágio de uma idade fixa. Ora ele vive a dor do modo da relação anteriormente vivida que não tem jeito de se reabitar e ora se experimenta nessa nova companhia descobrindo novos sentidos e significados para estar junto com alguém que se quer bem. Se aceitarmos ser embriões nas mais diversas faixas de idade e maturidade, no forming fazemos a experiência de que podemos ser outros, incorporar outros jeitos de ser, viver e nos relacionar. Podemos fazer novas ligações, tecer e cuidar de novas redes afetivas e de pertinência, implantar-nos em outros lugares, criar outros papéis, funções e modos no mundo. Podemos construir territórios de vida com outros roteiros, outras vizinhanças, outras conexões,outras satisfações, sentidos e valências. Para finalizar trago um trecho de um artigo de Jeanne Marie Gagnebin (2010): “Em suma: a filosofia não pode nos consolar. Poderia, talvez, nos ajudar a viver uma “vida sem consolação”, para retomar a expressão de Camus no Mito de Sísifo. Esse belo ensaio defende um “pensamento do absurdo” (porque não se encontra um “sentido” último), mas não uma filosofia niilista ou desesperada. (...) Camus, pelo contrário, insiste no esplendor da vida, justamente porque ela é efêmera e mortal, devendo ser vivida plenamente em cada presente. O filósofo cita em epígrafe os versos de Píndaro: “Oh, cara alma, não aspire à vida imortal, Mas saiba esgotar o campo do possível!” ALEGRAR nº11 - jun/2013 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br REFERÊNCIAS AUSTER, P. A Invenção da Solidão. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. BARTHES, R. A Câmara Clara. Lisboa: Edições 70, 1980. 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