1 UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE DANIELE APARECIDA PEREIRA ZARATIN CARLOS FUENTES E A LITERATURA FANTÁSTICA: CONTINUIDADES E REVELAÇÕES NA NOVELA CONSTANCIA ORIENTADORA: Profª. Dra. Ana Lúcia Trevisan São Paulo 2012 2 DANIELE APARECIDA PEREIRA ZARATIN CARLOS FUENTES E A LITERATURA FANTÁSTICA: CONTINUIDADES E REVELAÇÕES NA NOVELA CONSTANCIA Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Letras. ORIENTADORA: Profª. Dra. Ana Lúcia Trevisan São Paulo 2012 3 Z36c Zaratin, Daniele Aparecida Pereira Carlos Fuentes e a Literatura Fantástica: continuidades e revelações na novela Constancia/ Daniele Aparecida Pereira Zaratin – São Paulo, 2012 152 f. ; 30 cm Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2012. Referências bibliográficas : f. 144-152 1. Literatura fantástica. 2. Literatura mexicana. 3. Fuentes, Carlos. I. Título CDD 868.9921 4 DANIELE APARECIDA PEREIRA ZARATIN CARLOS FUENTES E A LITERATURA FANTÁSTICA: CONTINUIDADES E REVELAÇÕES NA NOVELA CONSTANCIA Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Letras. Aprovada em 31 de julho de 2012. BANCA EXAMINADORA _____________________________________________________ Profª. Dra Ana Lúcia Trevisan – Orientadora Universidade Presbiteriana Mackenzie _____________________________________________________ Profª. Dra. Cristine F. de Mattos Universidade Presbiteriana Mackenzie _____________________________________________________ Profª. Dra. Karin Volobuef Universidade Julio de Mesquita (UNESP) 5 Em memória de minha avó Inês, exemplo maior de amor, dignidade e coragem. 6 AGRADECIMENTOS À Profª. Dra. Ana Lúcia Trevisan, pelos ensinamentos, paciência, confiança em meu trabalho e, principalmente, por me apresentar os textos de Carlos Fuentes. A meu esposo Alexsandro, companheiro, crítico e conselheiro constante, que me ajudou a trilhar este difícil porém gratificante caminho. À minha mãe, fonte de inesgotável amor. À minha avó Inês, meu eterno porto seguro. A meu pai, saudade eterna do que poderia ter sido. A meus irmãos Dimael e Renata, razões do meu viver. À minha tia Silmara, minha eterna gratidão e carinho. À minha prima Fabiana, irmã e amiga de todos os momentos. À Piedade e Mariana, pelas conversas produtivas e apoio constante. À Juliana, Ana Claudia e Anne, grandes amigas e companheiras de jornada. A todos familiares e amigos, que compreenderam e apoiaram minhas constantes ausências por conta do desenvolvimento desta pesquisa. À Universidade Presbiteriana Mackenzie, por me receber e me amparar durante toda a minha trajetória acadêmica, transformando a minha vida através do estudo. A todos os professores do curso de Pós-Graduação em Letras e funcionários da Universidade Presbiteriana Mackenzie, especialmente à Profª. Dra. Aurora Gedra. Às professoras Profª. Dra. Cristine F. de Mattos e Profª. Dra. Karin Volobuef, por me auxiliarem na construção deste trabalho. Ao Profº. Dr. Francisco Javier Ordiz e ao pesquisador Miguel Ángel Fernández, por colaborarem para o desenvolvimento deste estudo. Ao Fundo Mackenzie desenvolvimento deste trabalho. de Pesquisa (MACKPESQUISA), por financiar o 7 El enigma engendra otro enigma. En esto se parecen el arte y la muerte. (Constancia, Carlos Fuentes) 8 RESUMO Neste trabalho de mestrado, analisamos os aspectos da literatura fantástica presentes na novela Constancia (1990), de Carlos Fuentes, a partir de uma linha de investigação que a inclui numa trajetória de outras narrativas fantásticas do autor mexicano. Ao examinar as narrativas de Los días enmascarados (1954), do ciclo narrativo “El mal del tiempo” e de Inquieta Compañía (2004), verificamos a reiteração de determinados eixos nessas obras, entre os quais estão a irrupção do insólito como desestabilizador de uma percepção de realidade racionalista e a presença de personagens femininas ambíguas e reveladoras do sobrenatural. A partir disso, primeiramente, refletimos sobre a manifestação do fantástico nessas narrativas, apontamos quais são esses eixos comuns entre elas e buscamos possíveis interpretações para essas recorrências. Posteriormente, contemplamos a novela Constancia e investigamos de que maneira ocorre a construção do insólito nesse texto tendo em vista os resultados obtidos anteriormente e as teorias postuladas por estudiosos do gênero fantástico e da obra de Carlos Fuentes. Esperamos com isso iluminar novas perspectivas interpretativas sobre essa narrativa, ao produzir uma análise que reflete sobre os procedimentos do fantástico nessa obra (revelações) e sobre a presença de elementos que a inscrevem como parte de uma tradição de outros textos fantásticos do autor mexicano (continuidades). Palavras-Chave: Literatura Fantástica – Literatura Mexicana – Carlos Fuentes 9 RESUMEN En este trabajo de maestría analizamos los aspectos de la literatura fantástica presentes en la novela Constancia (1990), de Carlos Fuentes, a partir de una línea de investigación que la incluye en una trayectoria de otros textos fantásticos del autor mexicano. Al examinar las narrativas de Los días enmascarados (1954), del ciclo narrativo “El mal del tiempo” y de Inquieta Compañía, percibimos la reiteración de determinados ejes en esas obras, entre los cuales están la irrupción de lo insólito como desestabilizador de una percepción de realidad racionalista y la presencia de personajes femeninos ambiguos y reveladores de lo sobrenatural. A partir de eso, primeramente reflexionamos sobre la manifestación de lo fantástico en esas narrativas, señalamos cuáles son esos ejes comunes entre ellas y buscamos posibles interpretaciones para esas recurrencias. Posteriormente, contemplamos la novela Constancia e investigamos cómo ocurre la construcción de lo insólito en ese texto teniendo en cuenta los resultados obtenidos anteriormente y las teorías postuladas por estudiosos del género fantástico y de la obra de Carlos Fuentes. Esperamos con eso aportar nuevas perspectivas interpretativas sobre esa narrativa, al producir un análisis que reflexiona sobre los procedimientos de lo fantástico en esa obra (revelaciones) y sobre la presencia de elementos que la inscriben como parte de una tradición de otros textos fantásticos del autor mexicano (continuidades). Palabras-clave: Literatura Fantástica – Literatura Mexicana – Carlos Fuentes 10 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 12 . 1. LITERATURA FANTÁSTICA: PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS 16 1.1 A literatura fantástica e o contexto hispano-americano do século XX ________ 25 2. CARLOS FUENTES E A LITERATURA FANTÁSTICA 33 2.1 Los días enmascarados: origem da inquietação 34 2.2 O fantástico em “Chac Mool” e “Tlactocatzine, del jardín de Flandes” 37 2.3 “El mal del tiempo”: o ciclo fantástico de Carlos Fuentes 43 2.4 Aura 45 2.5 Cumpleaños 47 2.6 Una familia lejana 50 2.7 Constancia y otras novelas para vírgenes 54 2.7.1 Constancia 55 2.7.2 “La Desdichada” 55 2.7.3 “El prisionero de las Lomas” 58 2.7.4 “Viva mi fama” 61 2.7.5 “Gente de razón” 63 2.8 Instinto de Inez __________________________________________________66 2.9 Inquieta Compañía 69 2.9.1 “El amante del teatro” 70 2.9.2 “La gata de mi madre” 74 2.9.3 “La buena compañía” 76 11 2.9.4 “Calixta Brand” 78 2.9.5 “La bella durmiente” 82 2.9.6 “Vlad” 85 3. CONTINUIDADES E REVELAÇÕES DO FANTÁSTICO EM CONSTANCIA_____90 3.1 A personagem feminina de Carlos Fuentes: constante desvendar de outras realidades_________________________________________________ 113 3.2 O espaço ficcional: intensificador do fantástico 121 CONSIDERAÇÕES FINAIS: TRAJETÓRIAS E ESPELHAMENTOS DO FANTÁSTICO NA NARRATIVA DE CARLOS FUENTES 136 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 143 12 INTRODUÇÃO Este estudo visa analisar os aspectos da literatura fantástica na novela1 Constancia (1990), de Carlos Fuentes. Ao realizar a leitura das narrativas do autor que se alinham com as características do fantástico, observamos que ocorre a reiteração de diversos temas e estruturas, como o protagonismo de figuras femininas responsáveis pelo sobrenatural, a manifestação do insólito como elemento desestabilizador de uma percepção de realidade e a presença de duplos. Partindo dessa hipótese, desenvolvemos este estudo que tem por objetivo examinar o fantástico em Constancia sob duas perspectivas investigativas: a primeira considera a novela como único objeto de análise, em que elaboraremos reflexões sobre os procedimentos narrativos que contribuem para a construção do fantástico nessa obra; aspectos estes que chamaremos de revelações. A segunda perspectiva consiste em investigar a narrativa Constancia considerando-a como parte de um conjunto de outras narrativas fantásticas do autor mexicano. Nesse sentido, examinaremos a referida novela cotejando-a com as demais obras fantásticas de Carlos Fuentes com a finalidade de apontar e refletir sobre reiteração de determinadas diretrizes temáticas presentes em outros textos analisados, o que denominaremos continuidades. Com isso, esperamos ampliar as possibilidades interpretativas sobre as revelações e continuidades presentes em Constancia e demonstrar que o autor mexicano, ao mesmo tempo que inova em suas narrativas, também lança mão de determinados temas no momento de escrevê-las. Carlos Fuentes (1928-2012) é considerado, ainda hoje, um dos maiores expoentes da literatura mexicana e hispano-americana do século XX, por causa de sua atuante presença como escritor, crítico e difusor da literatura e da cultura latino-americanas. A gênese disso se deu durante o movimento conhecido como “boom de la nueva novela hispanoamericana”, ocorrido entre meados das décadas de 50 e 70. Filho de embaixador, Carlos Fuentes morou em vários países do mundo, o que possibilitou o acesso a uma educação diversificada e o convívio com intelectuais desde a sua infância, entre os quais estão nomes como Alfonso Reyes e David Alfaro Siqueiros. Durante 1 Não há um consenso entre a definição do gênero dos textos que fazem parte de Constancia y otras novelas para vírgenes. Fuentes afirma, em entrevista, serem “relatos cortos”. O título da obra denomina as narrativas como “novelas”. O teórico Javier Ordiz diz que são contos. Neste trabalho, adotaremos a expressão “novela”, como sugere o título da obra em língua espanhola. 13 suas férias escolares nesses diversos países, seu pai o enviava ao México para estudar a cultura e a língua de seu país a fim de preservar as suas raízes culturais. Os longos períodos que passou em terras estrangeiras e essas visitas periódicas ao seu país natal colaboraram para que o autor desenvolvesse uma visão panorâmica e crítica sobre a cultura e política da América Latina, especialmente sobre o México, lugar que sempre esteve presente em seu imaginário e que foi retratado ao longo de suas diversas obras. Fuentes estudou Direito na Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM) e em Genebra obteve o título de Doutor na área. Em 1951, volta ao México e assume vários cargos importantes, como o de chefe do Departamento de Relações Culturais do Ministério de Assuntos Exteriores. Nesse período, escreve para jornais e revistas sobre temas culturais, políticos e econômicos, demonstrando simpatia à ideologia marxista disseminada em várias partes do continente, sobre a qual desenvolve uma visão crítica posteriormente. Em 1954, Carlos Fuentes publica seu primeiro volume de contos intitulado Los Días Enmascarados, obra que lhe rendeu o prêmio da revista “Los Presentes”, editada por Juan José Arreola. Em 1958, publica La región más transparente, romance que o faz ascender definitivamente ao cenário literário latino-americano. Nesse mesmo período, Fuentes passa a manter vínculos de amizade com importantes intelectuais latino-americanos, como Octávio Paz, Alejo Carpentier, Lezama Lima, Mario Vargas Llosa, Gabriel García Márquez, José Donoso, Júlio Cortázar, entre outros. Desde então, o mexicano não parou mais de escrever, publicando periodicamente obras literárias, teatrais e ensaísticas, pelas quais recebeu diversos prêmios ao longo das décadas. Influenciado por escritores como Miguel de Cervantes, Honoré de Balzac, Franz Kafka, James Joyce, William Faulkner, Octávio Paz, entre outros, Carlos Fuentes desenvolveu seus textos baseado em temas que discutem, dialogam e se reformulam centrados em determinados eixos: a história do México desde a colonização espanhola até a difícil relação fronteiriça com os Estados Unidos, violências do poder arbitrário, a identidade mexicana e seus diferentes matizes históricos e culturais, o passado pré-hispânico, a presença de tempos superpostos, as memórias de mitologias antigas, bem como as figuras históricas relevantes para o escritor. Nesse sentido, o autor aborda, como poucos, em suas inúmeras obras a América Latina e seus diferentes matizes históricos e culturais, sempre considera a relevância de todos os distintos povos que compõem essa porção do continente, ou seja, índios, europeus, e africanos. 14 Em Constancia y otras novelas para vírgenes (1990), pertencente ao “El mal del tiempo”, ciclo criado por Carlos Fuentes com a finalidade de organizar e inscrever suas novelas fantásticas, o autor mexicano lança mão da mescla entre o fantástico e os temas assinalados anteriormente. Esta obra apresenta cinco novelas que foram construídas para serem lidas de maneira independente e/ou conjunta, já que elas dialogam entre si por meio de diversos aspectos comuns, como o diálogo com as diferentes formas de arte. Escrito entre 1987 e 1988, o conjunto dessas narrativas é composto pelos seguintes títulos: Constancia, “La desdichada”, “El prisionero de Las Lomas”, “Viva mi fama” e “Gente de razón (I. Obras, II. Milagros, III. Amores)”. Entre todos esses escritos, justificamos a escolha de Constancia para este estudo por considerarmos ser uma novela que suscita várias reflexões sobre a construção do fantástico e apresenta uma grande variedade de questões relacionadas a outros textos de C. Fuentes, tais como o protagonismo da personagem feminina e sua relação com o sobrenatural. Outro aspecto relevante é que Constancia convida o leitor a pensar sobre temas como as experiências autoritárias na Europa, o exílio, os limites entre a vida e a morte e a concepção linear de tempo. Constancia apresenta-se com uma clara intenção de dialogar com uma obra universalista, ao discutir as experiências humanas trágicas, agregando a isso uma visão pessimista da modernidade, como percebido nas seguintes palavras: “El hombre hace sufrir al hombre. La felicidad y el éxito son tan excepcionales como la lógica; la experiencia más generalizada del hombre es la derrota y el sufrimiento” (FUENTES, 1991, p. 68). Estruturalmente, este trabalho se divide em três capítulos. O primeiro deles está composto por duas partes. Na primeira, realizaremos uma breve discussão sobre as teorias do fantástico a partir de pesquisas de autores considerados referências no gênero, como Tzevetan Todorov e Filipe Furtado. Com isso, esperamos aprofundar conhecimentos sobre o tema e sobre as ferramentas teóricas e metodológicas adotadas neste trabalho. A segunda parte desse capítulo apresenta um levantamento expositivo-analítico sobre o surgimento e características do fantástico na América Hispânica do século XX, cuja finalidade é investigar sobre o tipo de fantástico produzido nessa época, as ideologias atreladas a ele, bem como compreender o contexto no qual estava inserido Carlos Fuentes no momento de escrever seus textos. No segundo capítulo deste estudo, procuraremos delinear um panorama analítico sobre a literatura fantástica produzida por Carlos Fuentes cujo objetivo é verificar quais são as principais características dessa literatura e a plausibilidade de nossa hipótese: a reiteração de determinados eixos ao longo de toda a produção fantástica de Carlos Fuentes. Para tanto, 15 analisaremos as seguintes obras: Los días enmascarados (1954), com especial atenção a dois contos: “Chac Mool” e “Tlactocatzine, del jardín de Flandes”; Aura (1962); Cumpleaños (1969); Una família lejana (1980); Constancia y otras novelas para vírgenes (1990), com breve menção à novela Constancia, retomada no capítulo três; Instinto de Inez (2001) e Inquieta Compañía (2004), que, embora não esteja inscrita pelo autor como parte de “El mal del tiempo”, julgamos ser um relevante material de análise no que se refere ao fantástico produzido por Carlos Fuentes nos últimos anos. No terceiro capítulo deste trabalho, elaboraremos uma reflexão sobre a construção do fantástico em Constancia. Analisaremos os aspectos temáticos e estruturais que contribuem para inscrever essa narrativa dentro de uma tradição de textos fantásticos do autor mexicano. Atentaremos para os elementos narrativos como o narrador, categoria fundamental para instauração da ambiguidade, do suspense e do mistério, o protagonismo da personagem feminina e o espaço ficcional. Buscaremos ainda traçar paralelos comparativos entre Constancia e as demais obras fantásticas do autor mexicano com o intuito de averiguar as continuidades do fantástico nessa novela. Nas considerações finais, buscaremos fazer uma discussão a respeito dos resultados obtidos através das análises feitas nos dois capítulos anteriores. Almejamos, com isso, demonstrar quais são as continuidades, temáticas e formais, presentes na obra fantástica do autor mexicano e quais são os efeitos de sentido que elas provocam nessas narrativas. Salientamos, para finalizar, o desafio que se caracteriza investigar as obras de Carlos Fuentes. Ao longo de sua vida, o autor construiu um extenso e complexo conjunto de narrativas fantásticas que mantém um diálogo explícito com seu leitor por meio da reflexão sobre o texto e seu contexto. Dessa forma, o leitor dificilmente consegue se desprender da realidade, pois ela é a referência, é o ponto de apoio, o lugar onde o autor se fixa e de onde ele procura contemplar os diversos universos e sua “multitud de voces” e “miradas” 2. As narrativas de Carlos Fuentes, em síntese, procuram realizar o exercício criativo de interpretar a experiência histórica humana a partir de uma forma sui generis de expansão das fronteiras do pensamento, ou seja, através da criação ficcional, através do fantástico. 2 Palavras de Carlos Fuentes. In: HERNÀNDEZ, Jorge (comp.). Carlos Fuentes: territorios del tiempo (antología de entrevistas). México: FCE, 1999, p. 156. 16 1. LITERATURA FANTÁSTICA: PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS Gênero que prima pela transgressão de fronteiras, o fantástico apresenta como característica basilar a irrupção do não-natural em um universo regido por leis naturais, do cotidiano. Pesquisadores afirmam que sua origem ocorreu na Europa do século XVIII com a publicação da novela gótica inglesa O castelo de Otranto (1764), de Horace Walpole, e que seu apogeu se deu durante o Romantismo (séculos XVIII e XIX), momento em que se buscou demonstrar, por meio da literatura e de outras artes, que a realidade não estava condicionada a esquemas cientificistas da época. Assim, dando vazão à imaginação e rebatendo ideias racionalistas de que tanto o universo como a alma humana poderiam ser apreendidos em sua totalidade, os artistas europeus do período extinguiram “las fronteras entre lo interior y lo exterior, entre lo irreal y lo real, entre la vigilia y el sueño, entre la ciencia y la magia” (ROAS, 2001, p. 23). Embora pareça de simples apreensão, entender o fantástico rende, ainda hoje, muitos debates e estudos. Vários autores investigaram o tema sob diferentes perspectivas, na tentativa de melhor definir seus limites. Entre eles está Tzevetan Todorov com seu estudo Introdução à literatura fantástica (2007), publicada em 1970, que, apesar de muito criticado por seu caráter estruturalista, proporciona reflexões e debates sobre as características e os limites da literatura fantástica. Dando um passo à frente em relação a seus antecessores, Todorov investigou o fantástico a partir da análise de elementos sintático-semânticos de diversas narrativas, não se baseando apenas em aspectos temáticos, como feito anteriormente por outros estudiosos. Dessa forma, após fazer algumas críticas a esses estudos, o autor elabora suas próprias teorias sobre o gênero. Para ele, é preciso, primeiramente, que o texto fantástico apresente ao leitor uma realidade cotidiana e personagens reconhecíveis com a finalidade de fazer com que o leitor acredite nessa realidade, identifique-se com alguma personagem, entre nesse jogo narrativo e sofra um maior impacto diante da irrupção do evento insólito. Uma vez que houve essa irrupção, Todorov argumenta que o leitor interno deve hesitar entre a existência ou não do sobrenatural, entre uma explicação racional ou não para tal evento. Esse sentimento de hesitação deve ocorrer tanto em uma personagem quanto no leitor do texto, que não deve interpretar o sobrenatural segundo perspectiva alegórica ou poética 17 (TODOROV, 2008, p. 151-152). Em outras palavras: conforme a ótica de Todorov, o fantástico reside na perplexidade e incerteza da personagem e do leitor diante do insólito e no fato de não conseguirem explicar tal evento de acordo com as leis conhecidas por eles. Com isso, produz-se a ambiguidade, aspecto crucial que deve ser mantido até o final da narrativa, impossibilitando a elucidação do fato insólito, como afirma o teórico: “A ambiguidade se mantém até o fim da aventura: realidade ou sonho? verdade ou ilusão?” (TODOROV, 2007, p. 30). A ambiguidade, para Todorov, seria o resultado da impossibilidade de apresentar uma explicação racional para um evento, conferindo-o nuances de fantástico. Partindo desse ponto da teoria de Todorov, Filipe Furtado aprofunda os estudos sobre o gênero e discute sobre o tema ambiguidade no fantástico sob a perspectiva da linguagem. Para o estudioso português, a ambiguidade seria um elemento construído dentro da narrativa, por meio da linguagem, e não o fruto da hesitação do leitor. Conforme Furtado, “a primeira condição para que o fantástico seja construído é o discurso evocar a fenomenologia metaempírica de uma forma ambígua e manter até o fim uma total indefinição perante ela” (FURTADO, 1980, p. 36). Pensada por essa ótica, a ambiguidade no texto fantástico seria resultado de uma construção interna do texto e não da postura do leitor perante ele, conforme postulou Todorov. Ela seria, assim, o produto da construção ardilosa da narrativa que, por meio de mecanismos próprios, instaura a dúvida no que diz respeito a existência sobrenatural, o que impossibilita ao leitor decidir por um dos caminhos apresentados. Para Furtado, a ambiguidade seria a causa da dúvida (hesitação) no leitor e não a consequência, como propôs Todorov. Em outras palavras: enquanto Todorov considera que a ambiguidade seria a decorrência da hesitação do leitor perante o insólito, Furtado argumenta que não, pois, segundo ele, a ambiguidade seria a responsável pela dúvida, gerada por meio de diversos artifícios textuais que conseguem produzir uma série de duplos sentidos no texto. Assim, a hesitação seria “apenas mais uma das formas de comunicar ao leitor a irresolução face aos acontecimentos e figuras evocados” (FURTADO, 1980, p. 40-41). Ainda sobre a hesitação, Todorov afirma que “o fantástico implica pois uma integração do leitor no mundo das personagens” (2007, p. 37), ou seja, o fantástico somente ocorre a partir do momento em que o leitor aceita entrar no jogo narrativo proposto pelo narrador, imerge naquela atmosfera, identifica-se com as personagens e compartilha com elas da hesitação e da incerteza ao cogitar a possibilidade da existência do sobrenatural. Por essa 18 ótica, a hesitação do leitor, em relação à veracidade do episódio insólito, seria o primeiro fator indispensável ao fantástico (TODOROV, 2007, p. 31). Para alguns estudiosos, esse é um aspecto frágil da teoria de Todorov, pois, segundo eles, definir um gênero baseado em um aspecto tão variante, como a hesitação do leitor, pode levar o fantástico a ser relativizado, já que “perante a irrupção do sobrenatural na obra, qualquer leitor real poderá reagir aceitandoo, rejeitando-o ou hesitando entre uma ou outra atitude” (FURTADO, 1980, p. 76). Pensar na figura de um leitor padrão pode, por um lado, auxiliar na classificação do gênero, mas, por outro, pode também levá-lo ao fracasso, uma vez que a atitude do leitor perante o insólito pode variar de acordo com a sociedade ou cultura a qual ele pertence. Todorov declara ainda sobre o fantástico: Aquele que [...] percebe [o insólito] deve optar por uma das duas soluções possíveis; ou se trata de uma ilusão de sentidos, de um produto da imaginação e nesse caso as leis do mundo continuam a ser o que são; ou então o acontecimento realmente ocorreu, é parte integrante da realidade, mas nesse caso esta realidade é regida por leis desconhecidas para nós [...]. O fantástico ocorre nesta incerteza; ao escolher uma ou outra resposta, deixa-se o fantástico para se entrar num gênero vizinho, o estranho ou o maravilhoso (2007, p. 30-31). No fragmento acima, o teórico confere especial destaque à postura do narrador e/ou personagem diante o evento sobrenatural. É fundamental para o fantástico que o narrador desse tipo de relato explicite seu narratário. Para tanto, utiliza-se de diversos artifícios narrativos, entre os quais está o uso da primeira pessoa que fala diretamente a seu destinatário. Com isso, almeja-se criar uma aproximação ao leitor externo da história, fazer com que ele reconheça o universo narrado como possível e se identifique com o leitor interno. Envolvido nesse jogo narrativo, a surpresa do narratário é maior diante da constatação do inquietante, o que favorece o efeito fantástico no leitor externo ao texto. Entretanto, tais considerações de Todorov evidenciam algumas limitações, pois “lo fantástico queda reducido a ser el simple límite entre dós géneros, lo extraño y lo maravilloso [...]” (ROAS, 2001, p.16). Considerado por esse viés, o fantástico não seria um gênero autônomo, pois estaria sempre condicionado a ser definido mediante comparação com o maravilhoso e/ou estranho3. Outro aspecto que levantamos relaciona-se ao seguinte trecho da fala de Todorov: 3 Além do maravilhoso e do estranho, o fantástico, em sua origem, esteve mesclado a outros gêneros, como mistério/horror, aventura, policial. No entanto, com o avanço de pesquisas, criou-se a possibilidade de delimitar fronteiras entre eles, favorecendo uma análise autônoma de cada um deles. 19 “Aquele que [...] percebe [o insólito] deve optar por uma das duas soluções possíveis” (TODOROV, 2007, p. 30). Pensando nas características do fantástico, verifica-se que existe uma contradição na afirmação do autor na medida em que se, para ele, o fantástico nasce da hesitação entre dois caminhos (natural/sobrenatural), caso o leitor opte por uma explicação, haverá a anulação do efeito fantástico e a narrativa toma outros caminhos, em que o “estranho” 4 pode ser um deles. Nesse sentido, aclara Olea Franco: Creo que [...] Todorov plantea un falso dilema, ya que el género fantástico no suele elaborar una ‘solución’ de los extraños sucesos, sino solamente confirmar que éstos en verdad acontecieron. Para que el efecto fantástico sea pleno, es necesario que el desenlace no se explique, sino que se mantenga en el terreno de la duda” (2004, p. 41). Furtado também já havia comentado algo semelhante: “A narrativa fantástica deixa permanecer a dúvida, nunca definindo uma escolha e tentando comunicar ao destinatário do enunciado idêntica irresolução perante tudo o que lhe é proposto” (1980, p. 36). Resolver o enigma não deve fazer parte dos objetivos do fantástico, mas, sim, de narrativas estranhas ou policiais. O fantástico deve zelar pela frequente manutenção da ambiguidade ao afirmar e negar o enigma constantemente, de maneira a ocorrer a “alternância entre a apresentação de elementos inexplicáveis, a hesitação no modo de explicá-los, a falsa explicação, a reabertura da hesitação, a introdução de novos elementos inexplicáveis e assim por diante” (CESERANI, 2006, p. 30-31). Segundo Todorov, existem outros aspectos que favorecem a ampliação da ambiguidade e do suspense na narrativa fantástica, tais como uso de modalizadores discursivos e de verbos 4 Todorov considera que existem dois outros gêneros fronteiriços ao fantástico: o estranho e o maravilhoso. Segundo o autor, o primeiro ocorre quando há a instauração de um evento insólito, porém, ao final da narrativa, há uma explicação racional, fazendo com que “as leis da realidade permanecem intactas” (TODOROV, 2007, p. 48). Portanto, o estranho se diferencia do fantástico basicamente por apresentar uma explicação para o sobrenatural. Essa elucidação pode estar relacionada com: o acaso, o sonho, a influência de drogas, as fraudes, os jogos falseados, a ilusão dos sentidos e a loucura (TODOROV, 2007, p. 51-52). O autor divide estes elementos em dois grupos. No primeiro, intitulado “real-imaginário”, estão incluídas as explicações que são “fruto de uma imaginação desregrada”: o sonho, a loucura e as drogas; já o segundo grupo, o “real-ilusório”, é caracterizado por fatos “insólitos” que realmente aconteceram, mas que se explicam através do acaso, da fraude e/ou da ilusão, argumenta o autor (TODOROV, 2007, p. 52). Além do fantástico e do estranho, Todorov investiga ainda outro gênero narrativo, o maravilhoso. Conforme o autor, esse gênero difere do fantástico justamente por não haver confronto entre realidades, há a aceitação do sobrenatural pelas personagens e pelo leitor. Esse tipo de narrativa é diferente das outras por existir um distanciamento espaço-temporal da realidade a que pertence o leitor e por não apresentar nenhum tipo de explicação racional para o fato insólito. O leitor aceita o pacto ficcional proposto pelo narrador e percebe que o inexplicável faz parte somente desse universo apresentado, dessa forma sua realidade permanece intacta. Todorov afirma que “não é a atitude para com os acontecimentos narrados que caracteriza o maravilhoso, mas a própria natureza desses acontecimentos” (2007, p. 60). Exemplo desse tipo de texto é o que apresenta animais ou objetos falantes, tapetes ou vassouras voadoras, etc. 20 no pretérito imperfeito. De acordo com o autor, esses modalizadores são responsáveis por intensificar a dúvida, e “sem mudar o sentido da frase, modifica a relação entre o sujeito da enunciação e o enunciado” (TODOROV, 2008, p. 153). Isso faz com que o leitor, diante de um texto que utiliza esse recurso, tenha dificuldade em saber se o fato narrado é verdadeiro, ou se parecia verdadeiro (TODOROV, 2007, p. 44). Já o uso do pretérito imperfeito tem duas funções: não precisar se o evento do passado estende-se até o presente e “introduzir uma distância entre a personagem e o narrador, de tal modo que não conhecemos a posição deste último” (TODOROV, 2007, p. 44). Sobre a verossimilhança na narrativa fantástica, Todorov enfatiza que, ainda que o fantástico seja um gênero que privilegie a instauração do sobrenatural, a atmosfera de veracidade no relato é indispensável porque “no interior do gênero fantástico, é verossímil a ocorrência de reações ‘fantásticas’” (TODOROV, 2007, p. 52). Dessa forma, a verossimilhança faz parte da coerência interna do texto e serve como um fio condutor que proporciona sentido de verdade aos fatos, favorecendo, assim, a intensificação da percepção ambígua que leitor e personagens sentem ao ler a narrativa. Filipe Furtado tratou do mesmo tema. Segundo ele: “O verossímil supõe antes a sua simulação artificiosa, o seu falseamento furtivo, procurando levar a que a acção que cauciona pareça (e seja considerada sem resistência) algo que de facto não é” (1980, p. 45). Parafraseando o autor, diríamos que a verossimilhança deve caracterizar-se como uma condição intrínseca ao texto fantástico, contribuindo para “dissimular” uma possível veracidade do que se está narrando. Ao refletir sobre o mesmo aspecto, David Roas considera que “el texto presente un mundo lo más real posible que sirva de término de comparación con el fenómeno sobrenatural [...] el realismo se convierte así en una necesidad estructural de todo texto fantástico” (2001, p. 24), ou seja, o fantástico deve estar ancorado em uma realidade, a qual ele desestabilizará posteriormente com o surgimento do evento sobrenatural. Outro aspecto relevante sobre o qual tanto Todorov quanto seus antecessores refletiram é o provável sentimento de medo que o leitor possa sentir diante da possibilidade de existência do insólito. Na contramão do que disse H. P. Lovecraft 5, Todorov rejeita esse fator emocional e considera que fantástico deve se alimentar da hesitação e da dúvida do leitor e 5 Para Lovecraft: “Um conto é fantástico muito e simplesmente se o leitor experimenta profundamente um sentimento de temor e terror, a presença de mundos e poderes insólitos” (Apud TODOROV, 2007, p. 40). Para o teórico e escritor norte-americano, esse medo seria produzido pela atmosfera encenada no texto fantástico. 21 não do medo (TODOROV, 2007, p. 40-41). Sobre esse aspecto, Irlemar Chiampi argumenta: “A restrição do efeito psicológico, ao calafrio provocado por seres e objetos carentes de explicação racional é insuficiente, mas tampouco é preciso abdicar ao fator emotivo, para concentrar somente no relato alternativo a razão de ser do gênero” (p. 55). Por essa perspectiva de Chiampi, não se deve considerar o medo como elemento definidor do fantástico, como postulou Lovecraft. Contudo, não é preciso descartá-lo veementemente como o fez Todorov, pois “o medo é estendido em acepção intratextual, como efeito discursivo (um modo de...) elaborado pelo narrador, a partir de um acontecimento de duplo referencial (natural e sobrenatural)” (CHIAMPI, 1980, p. 53). Ainda segundo a estudiosa brasileira, o medo produzido pela instauração do insólito no texto fantástico “é o temor do não-sentido: o leitor representado é a figuração da perplexidade diante de uma significação ausente” (CHIAMPI, 1980, p. 55); ou seja, esse sentimento surge no leitor devido à ameaça do não saber o que ocorreu e/ou o que está ocorrendo de fato. Esse sentimento de inquietação, portanto, advém da instauração do sobrenatural dentro da realidade vivida e reconhecida pelo leitor. Na mesma linha de Chiampi e outros teóricos, David Roas defende que Lovecraft, ainda que de maneira exagerada, tinha razão ao relacionar o medo como uma das características do fantástico, já que: El efecto que produce la irrupción del fenómeno sobrenatural en la realidad cotidiana, el choque entre lo real y lo inexplicable, nos obliga [...] a cuestionarnos si lo que creemos pura imaginación podría llegar a ser cierto, lo que nos lleva a dudar de nuestra realidad y de nuestro yo, y ante eso no queda otra reacción que el miedo (ROAS, 2001, p. 32). De todo esse debate sobre o tema, verificamos que se, por um lado, não se pode considerar o medo do leitor como fator determinante do fantástico, como quis Lovecraft, por outro, tampouco se pode colocar a hesitação do leitor como definidor do gênero, como analisou Todorov. Ambas são características que auxiliam os estudiosos a delinear os limites do gênero, porém não são as únicas, já que tanto a hesitação quanto o medo podem variar de acordo com a visão de mundo que cada indivíduo apresenta. Igualmente importante nas teorias de Todorov é o que o autor propõe a respeito dos temas do fantástico. Buscando compreender o aspecto semântico desse tipo de texto e aproximando-se da psicanálise para isso, o autor elabora uma lista de temas comuns nesse tipo 22 de narrativa e que ele divide em dois grupos: os “temas do eu” e os “temas do tu”. Para Todorov, os primeiros dizem respeito à relação do sujeito e seu mundo exterior, “do sistema percepção-consciência” (TODOROV, 2007, p. 148). Ao passo que os segundos abarcam a relação do sujeito e seus desejos (“inconsciente”), abrangendo, assim, “o desejo e suas diversas variações” (TODOROV, 2007, p. 148). Assim, todas as formas de manifestação da sexualidade, tais como o homossexualismo, incesto, sadomasoquismo, necrofilia, orgias, etc, estariam relacionados aos “temas do tu”. Conforme o teórico, o fato de esses temas aparecerem vinculados ao fantástico denota uma possível função social do gênero, uma vez que, por meio desse tipo de texto, podia-se debater, de maneira “indireta”, temas-tabus censurados em uma sociedade. Dessa forma, é como se o tema proibido, disfarçado de sobrenatural, ganhasse uma espécie de imunidade perante a lei, possibilitando não somente o seu questionamento-problematização como a sua transgressão. No entanto, segundo Todorov, o advento da psicanálise tornou desnecessário tal debate, uma vez que essa ciência proporcionaria, por meio de seu instrumental teórico, suficientes discussões sobre todos esses temas-tabus. Com esse pensamento, Todorov restringe seu campo de análise somente a textos fantásticos do século XIX, pois, segundo ele, o surgimento da psicanálise minou o fantástico: “Encontram-se nas novelas de Maupassant os últimos exemplos esteticamente satisfatórios do gênero. [...] por que a literatura fantástica não existe mais?” (TODOROV, 2007, p. 178). Considerando essa afirmação do autor e o ano de publicação de seu estudo (1970), indagamo-nos sobre quais foram os motivos que levaram o teórico a pensar que o surgimento de uma ciência invalidaria um gênero literário e ainda a desconsiderar uma gama de narrativas fantásticas produzidas ao longo do século XX. O único texto desse período analisado pelo autor é A Metamorfose, de Franz Kafka, de 1915, o qual faz com que o teórico acredite na extinção do gênero ao constatar que a narrativa de Kafka não se encaixaria em suas definições sobre os textos fantásticos6. Na esteira de Jean-Paul Sartre, Todorov argumenta que a 6 Nas palavras de Todorov: “Se abordarmos esta narrativa com as categorias anteriormente elaboradas, vemos que ela se distingue fortemente das histórias fantásticas tradicionais. Em primeiro lugar, o acontecimento estranho não aparece depois de uma série de indicações indiretas, como o ponto mais alto de uma gradação: ele está contido em toda a primeira frase. A narrativa fantástica partia de uma situação perfeitamente natural para alcançar o sobrenatural, A Metamorfose parte do acontecimento sobrenatural para dar-lhe, no curso da narrativa, uma aparência cada vez mais natural; e o final da história é o mais distante possível do sobrenatural. Qualquer hesitação torna-se de imediato inútil: ela servia para preparar a percepção do acontecimento inaudito, caracterizava a passagem do natural ao sobrenatural. Aqui é um movimento contrário que se acha descrito: o da 23 narrativa kafkaniana apresenta a naturalização do sobrenatural ao demonstrar que “o acontecimento sobrenatural não provoca mais hesitação, pois o mundo descrito é inteiramente bizarro, tão anormal quanto o próprio acontecimento a que serve de fundo” (TODOROV, 2007, p. 181). Como Todorov limita-se a Kafka e nossa área de investigação se restringe à literatura mexicana do século XX, mais especificamente à sua segunda metade, é necessário ampliar as interpretações críticas sobre o fantástico produzido a partir desse período. Nesse sentido, cremos que um estudo que pode nos auxiliar na tentativa de compreensão desse tipo de fantástico é o texto “Aminadab”7, de Jean-Paul Sarte (2005), também citado por Todorov. Enquanto Todorov encara o fantástico do ponto de vista narrativo-estruturalista, Sartre analisa o gênero sob a perspectiva interpretativo-filosófico. Refletindo sobre o “fantástico contemporâneo” a partir de textos de M. Blanchot e F. Kafka, Sartre defende que não é mais o monstro ou o fantasma que constitui o fantástico e sim o homem: [...] não há senão um único objeto fantástico: o homem. Não o homem das religiões e do espiritualismo, engajado no mundo apenas pela metade, mas o homem-dado, o homem-natureza, o homem-sociedade, aquele que reverencia um carro fúnebre que passa, que se barbeia na janela, que se ajoelha nas igrejas, que marcha em compasso atrás de uma bandeira. Esse ser é um microcosmo, é o mundo, toda a natureza: é somente nele que se mostrará toda a natureza enfeitiçada. Nele: não em seu corpo [...]” (SARTRE, 2005, p. 138). Por esse viés, os seres sobrenaturais dão lugar ao ser humano, que está mergulhado em um universo repleto de leis “sem objetivo, sem significado, sem conteúdo, e ninguém pode escapar” (SARTRE, 2005, p. 143). Elaborando raciocínios que nunca levam a lugar algum, o protagonista do fantástico contemporâneo se sente “às avessas”, um estrangeiro em seu próprio mundo, uma vez que nunca consegue atingir seus objetivos. Para Sartre, o fantástico seria a regra e não a exceção do sistema, portanto o homem estaria inserido num sem-fim de absurdos que, de tão absurdos, acabam se banalizando. Não há hesitação porque o universo fantástico é e está no próprio homem e não alheio a ele, como preconizado no século XIX. O fantástico vincula-se ao existencialismo, corrente filosófica que busca o retorno ao homem, ao seu íntimo. Como exemplo, podemos pensar em narrativas adaptação, que se segue ao acontecimento inexplicável [...]” (2007, p. 179). 7 Capítulo do livro Situações I, obra publicada em 1947. 24 de J. L. Borges e J. Cortázar, uma vez que elas não apresentam monstros ou similares como elementos insólitos, o homem é o único responsável pelo surgimento do inexplicável, o que, certamente, provoca maior impacto no leitor. O último estudo sobre o fantástico a que damos ênfase é o realizado por Rafael Olea Franco: En el reino de los aparecidos: Roa Bárcena, Fuentes y Pacheco (2004). No capítulo “El concepto de literatura fantástica”, o teórico mexicano elabora uma reflexão sobre o gênero, suas características e suas limitações. Sempre com um olhar voltado para a literatura hispânica, Olea Franco salienta que o prólogo feito por Bioy Casares para a Antología de la literatura fantástica foi fundamental para a compreensão e difusão do gênero na América Latina da primeira metade do século XX. Consciente da dificuldade de delimitar o fantástico e endereçando críticas ao uso indiscriminado do termo, o autor reconhece o pioneirismo do estudo de Todorov e parte desse texto para fazer suas próprias considerações. Não nos ateremos a todas elas, porque algumas questões já foram abordadas neste mesmo capítulo. O que nos interessa ressaltar da obra do autor mexicano é a sua observação sobre a dinâmica que envolve o fantástico: Postulo que, en general, los textos fantásticos se caracterizan por la paulatina primacía de la lógica de la conyunción, la cual se contrapone a la lógica de la disyunción con que comúnmente son explicados los fenómenos, tanto en la realidad habitual de los personajes como en la de los receptores [...]. Para esta lógica de disyunción compartida por el texto y por nuestra realidad de lectores, se puede estar vivo o muerto, pero no vivo o muerto a la vez, como sucede en un texto fantástico cuando se impone la lógica de la conyunción (OLEA FRANCO, 2004, p. 63). O fantástico pensado por esse ponto de vista revela-se como um gênero que consegue aproximar dois universos opostos, alheios um ao outro, fazendo com que haja um estranhamento por parte das personagens e do leitor por conta dessa conjunção inesperada. Com isso, o fantástico relativiza o sentido de realidade ao minar as certezas nas quais se ancora uma sociedade. Para concluir, advertimos que, embora as teorias de Todorov tenham sido exaustivamente debatidas e críticadas, estamos cientes de que o autor as escreve de uma determinada perspectiva e que por isso acreditamos que Introdução à literatura fantástica cumpre de forma plausível o que se propôs a fazer, ou seja, um estudo introdutório sobre o gênero, como o próprio título de sua publicação indica. Essa obra funcionou – e funciona – como uma espécie de divisor de águas para os estudos do fantástico, norteando pesquisas 25 ainda hoje, inclusive o presente estudo. Salientamos também que, apesar de Todorov negar a existência da literatura fantástica no século XX, é necessário sublinhar que a produção literária do século XX não surge de um marco zero. Pelo contrário: ela se estabelece a partir de uma tradição, com a qual ele dialoga e (se) reformula a cada livro publicado. O próprio Carlos Fuentes se confessa herdeiro dos autores desse período. Por isso, optamos por utilizar as teorias estabelecidas por Todorov, cujo objetivo está focado na tentativa de melhor compreender o nosso corpus de investigação. A seguir, delinearemos um breve esboço sobre o surgimento e fortalecimento da literatura fantástica na Hispano-América do século XX. Com isso, esperamos investigar como o gênero ganha força nesse contexto, dando origem ao chamado boom da “nueva novela latinoamericana”, movimento do qual Carlos Fuentes fez parte. 1.1 A LITERATURA FANTÁSTICA E O CONTEXTO HISPANO-AMERICANO DO SÉCULO XX Na América de língua espanhola, o fantástico surge como gênero escrito no século XIX8, quando alguns autores, influenciados pela literatura fantástica europeia9, voltam-se para uma escrita que contemplasse universos não-naturais. Entre eles, está o modernista Ruben Darío (1867-1916), um dos autores que obteve mais destaque. Tendo por base a literatura francesa, o nicaraguense escreveu textos em prosa repletos de erotismo, imaginação e exotismo. Outro nome que se destaca no continente é o de Horacio Quiroga (1878-1937). O autor uruguaio escreveu narrativas desconcertantes, que apresentam tragédias, horror e sofrimento. Admirador de Edgar Allan Poe, Quiroga escreve textos nos quais é possível encontrar ecos da escrita do autor norte-americano. No século XX, a literatura fantástica ganha força principalmente a partir da década de 1930 com textos de J. L. Borges. Antes desse período, a grande maioria das produções literárias publicadas na América Hispânica tinha por principal característica o regionalismo, 8 Um estudo mais completo pode ser encontrado em: LÓPEZ MARTÍN, Lola. Formación y desarrollo del cuento hispanoamericano en el siglo XIX. Tese. (Doutorado em Literatura Espanhola e hispano-americana). Universidad Autónoma de Madrid. Madrid, 2009. 9 Dentre as muitas influências, Miguel de Cervantes com El ingenioso Don Quijote de la Mancha (1605-1615) ganha destaque entre os escritores da América Latina, principalmente em relação aos falantes de língua espanhola. 26 exemplificado nas chamadas “novelas de la tierra”. Autores como Mariano Azuela no México e o argentino Ricardo Guiraldes privilegiaram o contexto local, onde realidade, natureza e paisagem eram os principais personagens, o que deslocava para segundo plano a figura humana. Essa era uma literatura de caráter majoritariamente documental, pois “la geografia lo es todo; el hombre, nada”, enfatiza Rodríguez Monegal (1969, p. 10). Esse cenário literário começa a mudar a partir de meados das décadas de 30 e 40, com o surgimento de uma gama de obras que apresentam vertentes do fantástico: La invención de Morel (1940) de Adolfo Bioy Casares, Al filo del agua (1947) de Augustín Yañes, Hombres de Maíz (1949) de Miguel Ángel Asturias, El reino de este mundo (1949) de Alejo Carpentier, bem como Ficciones (1944) e El Aleph (1949) de Jorge Luis Borges. Todos estes são autores que escreveram e promoveram a difusão de ficções fantásticas, entre os quais Borges ganhou especial destaque ao ser considerado pela crítica literária como pioneiro no uso do gênero. O autor argentino consegue, por meio de sua literatura, renunciar a velhos esquemas narrativos, dando nova significação ao modo de encarar a ficção e suas modalidades realistas ou imaginárias. Para ele, o fantástico sempre existiu na América por meio da tradição oral e mítica. Os textos de Borges serviram e servem de inspiração a jovens escritores do continente, dentre os quais estão nomes como Julio Cortázar e Carlos Fuentes. Borges se destacou também como propagador do gênero ao organizar um volume de contos fantásticos10 ao lado de Silvina Ocampo e Bioy Casares. Ligado a isso, o autor de Ficciones atuou como crítico literário e apontou caminhos possíveis para esse gênero que se difundia na América Hispânica. Outro ramo no qual o autor esteve envolvido foi o de tradução. Borges traduziu várias obras de autores de língua inglesa para a língua espanhola, como Edgar Allan Poe, James Joyce, William Faulkner, e, em 1938, traduziu A metamorfose de Franz Kafka, o que, certamente, intensificou seu afã pela literatura fantástica. Outra figura basilar para a difusão de uma literatura de caráter mais imaginativo é Alejo Carpentier. O autor cubano teve decisiva atuação no cenário literário latino e hispanoamericano ao produzir obras que privilegiam aspectos míticos populares cultivados nessa 10 BORGES, J. L. ; OCAMPO, S. ; CASARES, A. B. Antología de la literatura fantástica. Buenos Aires: Ed. Sudamérica, 1940. 27 parte do continente. O prólogo11 que ele escreveu para sua obra El reino de este mundo12 é igualmente fundamental, pois nele Carpentier postula um “novo” fazer literário que, segundo ele, deveria estar atrelado à reflexão sobre questões de identidade e de “americanidade”. Partindo desse pensamento é que o autor cubano desenvolve sua teoria sobre o “real maravilhoso americano”, que consiste em captar, por meio da literatura, uma América Latina que, por si só, apresenta uma realidade mítica, maravilhosa, sendo o referente extralinguístico extraordinário por excelência. Dessa forma, mesclando história, natureza e mitos latinoamericanos, Carpentier argumentava que os autores deveriam apropriar-se dessa realidade, “mágica por excelência”, para produzirem suas narrativas, privilegiando, assim, “o conjunto de objetos e eventos reais que singularizam a América no contexto Ocidental” (CHIAMPI, 1980, p. 32). Esse afã por exaltar a América Latina está relacionado, em alguma medida, com a desilusão gerada pelas consequências da II Guerra Mundial. Diante desse evento, os latinoamericanos perceberam que a Europa talvez não fosse o exemplo mais coerente de racionalidade e progresso, como muitos haviam pensado durante tanto tempo e, sendo assim, era preciso encontrar outro “modelo” no qual se apoiar. Descartados os Estados Unidos, a única opção era espelhar-se em si mesmo, um voltar-se para si. Ao considerar essa oposição entre América Latina e Europa, Carpentier “estabelecia uma verdadeira profissão de fé como escritor e exortava os narradores latino-americanos a se voltarem para o mundo americano, cujo potencial de prodígios [...] sobrepujava em muito a fantasia e a imaginação europeias” (CHIAMPI, 1980, p. 32). No entanto, como a Europa havia sido o “exemplo” até então, Carpentier parte das teorias europeias para postular as suas próprias, o que lhe rendeu diversas críticas, entre as quais está a de que o autor cubano alcunha seu termo “real maravilhoso americano” a partir do “realismo mágico” de Franz Roh13. A pesquisadora Irlemar Chiampi segue essa linha de raciocínio ao sublinhar algumas limitações a respeito do termo adotado por Carpentier. Chiampi afirma que, uma vez que Carpentier toma por base um termo europeu 11 O prólogo de El reino de este mundo foi publicado em 1948, no jornal El Nacional de Caracas. 12 Alejo Carpentier também viveu algum tempo na França (1928-1939), onde teve contato com o movimento surrealista. É nesse período que se sente impelido a retratar a realidade americana. Após viagem ao Haiti, o autor cubano dá início à escrita de El reino de este mundo, obra fundamental para a literatura latino-americana. 13 Franz Roh foi um crítico de arte alemão do início do século XX. Foi ele quem originou o termo “realismo mágico”, apresentado em seu livro Pós-expressionismo (Realismo Mágico): os problemas da nova pintura europeia, de 1925. 28 para criar o seu próprio, o autor cubano não conseguiria abarcar toda uma complexidade cultural, histórica e literária presente na América Latina da época. Por esse ponto de vista, é possível verificar alguns pontos questionáveis na teoria de Carpentier, como a própria Chiampi salienta. Entretanto, é preciso considerar que as ideias difundidas pelo autor cubano certamente colaboraram para a “oficialização” e difusão de uma literatura que primasse pela retomada de toda uma tradição oral, baseada em mitos presentes no imaginário latinoamericano, contribuindo para uma reflexão mais abrangente sobre o sentido de “americanidade”. Assim sendo, ainda que Carpentier não trate especificamente da literatura fantástica, vale ressaltar que, com seu prólogo, o autor consegue suscitar olhares mais conscientes e críticos no que se diz respeito ao fazer literário dos autores latino-americanos, já que o autor cubano elaborou uma literatura de ruptura com a realidade racionalista, da mesma maneira que o faz o fantástico. Em sua obra O realismo maravilhoso: forma e ideologia no Romance Hispanoamericano (1980), Irlemar Chiampi analisa os aspectos convergentes e divergentes em ambos entre o realismo maravilhoso e o fantástico. Conforme a autora, o realismo maravilhoso14 caracteriza-se pelo não temor do evento sobrenatural, “o insólito, em óptica racional, deixa de ser o ‘outro lado’, o desconhecido, para incorpora-se ao real: a maravilha é (está) (n)a realidade” (CHIAMPI, 1980, p. 59). Em oposição ao que ocorre no fantástico, no realismo maravilhoso, as personagens não se inquietam diante do evento insólito, não há a modalização desse evento e tampouco ocorre a instauração do mistério e da dúvida, nem nas personagens nem no leitor. Por meio de uma construção morfológica, sintática e semântica, a literatura baseada no realismo maravilhoso estabelece a naturalização do sobrenatural ao abarcar, dentro do mesmo universo, tanto o real quanto o tido irreal; assim esses elementos são colocados no mesmo patamar de maneira a não haver disjunção entre eles: “O verossímil no realismo maravilhoso consiste em buscar a reunião dos contraditórios, no gesto poético radical de tornar verossímil o inverossímil” (CHIAMPI, 1980, p. 168). Quando comparados entre si, o real maravilhoso distancia-se do fantástico justamente porque naquele não há o choque entre o natural e o sobrenatural, como ocorre em narrativas 14 Após fazer pertinentes considerações sobre a limitação do termo “real maravilhoso americano” em relação ao “realismo mágico”, a autora opta por utilizar a expressão “realismo maravilhoso”. 29 deste outro gênero que se alimentam desse confronto. Divergentes nesse aspecto, porém convergentes em outros, se cotejados com outros tipos de literatura, como a realista por exemplo. Sobre as convergências, Chiampi assinala que o realismo maravilhoso e o fantástico confluem nos seguintes pontos: problematização da racionalidade; crítica implícita à leitura romanesca tradicional; jogo verbal para obter a credibilidade do leitor; aparição de seres sobrenaturais; metamorfoses; desarranjos da causalidade, do tempo e espaço, etc. (CHIAMPI, 1980, p. 52-53). A adoção desses recursos estruturais explicita reflexões histórico-ideológicas e revela a ruptura com tradições vigentes até então, o que possibilita a abertura de espaço para o surgimento, na década de 1950, de obras fundamentais para o gênero fantástico na América de língua espanhola, entre as quais estão: Bestiario (1951) e Final del juego (1956), livros de contos de Julio Cortázar; Confabulario (1952), de Juan José Arreola; Los días enmascarados (1954), primeira obra de Carlos Fuentes; Pedro Páramo (1955), de Juan Rulfo. Isso, somado a um forte apoio editorial e publicitário, desencadeou o chamado “boom” da “nueva novela hispano-americana” nas décadas de 1960 e 1970, movimento que inscreveu definitivamente a literatura – fantástica – hispano-americana no cenário literário mundial. Além dos escritores mencionados acima, aparecem ainda outros nomes importantes, como Gabriel García Márquez com Cien años de soledad (1967), Mario Vargas Llosa, Ernesto Sábato, José Donoso, somente para citar alguns exemplos. Influenciados por autores como J. Joyce, M. Proust, F. Kafka, J. Dos Passos, W. Faulkner entre outros, esses “novos” narradores hispano-americanos primam por originar narrativas que apresentassem inovações no modo de fazer literatura por meio do trabalho com a linguagem. Javier Ordiz salienta acerca das obras produzidas nesse período: La mencionada rebelión contra el código realista lleva a estos jóvenes escritores a experimentar con leyes del género. Se rompen las categorías del relato lineal e incluso las propias fronteras entre géneros literarios, desaparece el tradicional narrador omnisciente, y la narración se aleja de su carater 'cerrado' para convertirse en algo que se revitaliza en el acto de la lectura (2005, p. 17). Experimentalismo linguístico e estrutural no romance, ruptura com a visão unívoca de linearidade narrativa, entrecruzamento de várias pessoas narrativas (vozes) e, portanto, vários pontos de vista são apenas alguns dos recursos que esses escritores utilizaram. Sobre isso, afirma Carlos Fuentes: “Mi generación [...] se formó con la conciencia de que el personaje 30 ‘redondo’, psicológico, había muerto, asesinado por historia del siglo XX”15. Assim, tomados pelo sentimento de desilusão, provocado pela II Guerra Mundial, e de euforia, gerado pela Revolução Cubana, esses escritores buscaram, por meio desse “novo” fazer literário, denotar a preocupação com questões relacionadas a problemas locais, sem, contudo, deixar de lado questões universais. Conforme ideologia da época, essa nova narrativa deveria reunir língua, cultura e identidade, privilegiar a complexidade cultural e política da América Latina e abandonar a visão maniqueísta do regionalismo dos anos 20 e 30, que já não atendia mais a realidade multifacetada do homem urbano. A literatura não deveria ser homogênea, uma vez que a realidade não o era, pois estava em constante mudança. Era preciso captar a mentalidade do novo homem e de seu “múltiple rostro” (MONEGAL, 1969, p. 09). Segundo Rodríguez Monegal, ao eleger uma literatura de ruptura, em que fantasia e realidade se interpolam, esses autores inovam, pois: “Buscan captar el sentido oculto de estos cambios, de esta revolución, y para conseguirlo, concentran la mirada en el nuevo hombre que el vasto continente latinoamericano está produciendo ahora (1969, p. 09)”. Há o afastamento de ideologias ligadas a fronteiras culturais e/ou linguísticas, porque, para esses escritores, a literatura não era argentina, uruguaia, ou mexicana; ela era, antes de tudo, literatura e hispanoamericana. Portanto, existe a vontade de refletir sobre seu país e suas características, mas sem apelar para o caráter localista, havendo, assim, a intenção de agregar o nacional e o universal. Dessa maneira, esse novo fazer literário deseja captar as angústias do homem inserido na “modernidade”. Até mesmo o tipo de fantástico produzido nesse período difere em relação ao europeu. Fazendo uma comparação bastante generalizada e, consequentemente, simplificada, podemos pensar que, dentro da perspectiva hispano-americana, a ideia de fantástico está relacionada ao imaginário popular e o evento sobrenatural faz parte da realidade, como argumentou Carpentier. Já o fantástico europeu define-se como o oposto do hispano-americano ao caracterizar-se como a irrupção do inimaginável, que surge para desvirtuar o sentido de realidade. Pensando somente no contexto hispano-americano, verifica-se que existem dois tipos de 15 Declaração do autor feita durante entrevista concedida a Ricardo C. Gally. In: HERNÀNDEZ, Jorge (comp.). Carlos Fuentes: territorios del tiempo (antología de entrevistas). México: FCE, 1999, p. 263. 31 ambientações em suas narrativas fantásticas. Por um lado, há autores que privilegiam o espaço urbano e produzem textos que se aproximam do fantástico preconizado por Sartre, em que o homem é desencadeador do próprio estranhamento. Borges e Cortázar são exemplos disso. Por outro lado, existem autores que, sem cair no localismo, optam por privilegiar o ambiente rural em suas narrativas, cuja finalidade é dialogar com mitos e lendas que fazem parte de uma tradição de seus locais de origem. Nesse sentido, podemos citar, para exemplificar, nomes como Alejo Carpentier, Juan Rulfo e G. García Márquez, autores que reuniram características locais em seus textos ao mesmo tempo que buscavam salientar que “el mundo de los mitos no tiene nada de provinciano, ni siquiera de nacional; trasciende fronteras, países, culturas [...]” (DURÁN, 1976, p. 13). Assim como elogios, igualmente não faltaram críticas aos autores pertencentes a essa “nova escola”, entre as quais está a de que eles faziam parte de uma “máfia” de intelectuais que escrevia romances somente para as elites e comandava críticos literários e editoriais. Diante dessa afirmação, salientamos apenas dois pontos: primeiro, é natural que haja um estranhamento inicial do leitor diante das inovações acima elencadas, principalmente tendo em vista o tipo de literatura produzida e lida até então, a realista; segundo, o sentido desta pesquisa visa verificar como se dá a construção desse pensamento de ruptura por meio de um tipo de literatura, que se vale de elementos realistas e ficcionais para pensar determinadas questões, e não apontar sua invalidade para pensar o universo hispano-americano. Isso geralmente tende a desconsiderar a contribuição reflexiva de um intelectual ao negar-se a tentar compreender o jogo literário proposto por ele. Não se trata aqui de julgar os autores por suas obras ou ações, mas, sim, de propor uma interpretação literária mediada pela questão cultural representada dentro do universo ficcional. Ressaltamos, para finalizar, que os autores do chamado “boom” conseguiram iluminar novas perspectivas narrativas para o cenário literário hispano-americano ao unirem conhecimento de tradições orais e míticas do continente, reflexão sobre esse contexto e o aprimoramento das técnicas de produção literária, como salienta Bella Josef: A narrativa hispano-americana atual, da rica geração de 55, apresenta um espírito crítico e um afã interpretativo do mundo. Esta geração corresponde à etapa de madureza que atravessa a América e, por isso, apresenta uma visão artística complexa e uma qualidade técnica a que não faltam virtuosismos formais (como o de Carlos Fuentes) e a procura do mito 'consciente da necessidade de voltar a certo irracionalismo que nos devolva o sentido original de realidade (1989, p. 270). 32 Renunciando a determinados esquemas narrativos e conjugando “mito, lenguaje y estructura”, os autores dessa época encontram nesse “irracionalismo”, do qual fala Josef, o respaldo para escrever suas narrativas fantásticas. Ao adotar esse gênero, esses intelectuais propõem intensas reflexões sobre seus textos e sobre os diversos temas da realidade extratexto. Talvez esse seja um dos maiores méritos da literatura desse período: lançar mão de um gênero que se baseia no “irreal” para analisar e problematizar sua realidade contextual. 33 2. CARLOS FUENTES E A LITERATURA FANTÁSTICA Entre contos, novelas, romances, ensaios e artigos, Carlos Fuentes conta com uma extensa e variada obra que perpassa as décadas. Nascido em 1928, o mexicano demonstra interesse pelas letras já em sua infância, momento em que escreve suas primeiras narrativas. Porém, sua carreira inicia-se “oficialmente” somente em 1954, ano em que ocorre a publicação de seu livro de contos intitulado Los días enmascarados. Desde então, a cada ano e com uma maior maturação literária, Fuentes escreve várias obras que são continuamente alvos de numerosos estudos e críticas sob as mais diferentes perspectivas. Com isso, o autor mexicano tem a possibilidade de viver de seus textos, algo não muito comum no México das décadas de 1950 e 1960, quando a maioria dos escritores produzia suas narrativas como uma espécie de “passa–tempo”, uma vez que eles tinham que desempenhar outras funções para sobreviver. Conjuntamente a essa atividade, por meio de seus textos e entrevistas, o mexicano busca difundir a literatura e a cultura hispano-americanas pelo mundo, especialmente pela Europa, onde viveu boa parte de sua vida. Assim, por sua atuante presença no cenário literário latino-americano, tanto como romancista quanto como figura que contribuiu com a difusão da “nueva novela hispanoamericana”, Carlos Fuentes consegue alcançar o reconhecimento da crítica ao ser considerado como um dos mais importantes narradores e intelectuais da América Latina. No entanto, por se tratar de um autor de uma produção literária extensa, variada e contínua, pode ocorrer, não raras vezes, que seus leitores não consigam ter uma visão abrangente de sua obra, principalmente no que se refere a suas narrativas fantásticas, pois seus romances de cunho realista são amplamente conhecidos do grande público. Pensando nisso é que desenvolvemos este estudo e especialmente este capítulo, cujo objetivo está focado na tentativa de encontrar, por meio de uma metodologia analítico-comparativa, elementos comuns entre as narrativas de Carlos Fuentes que se alinham com o fantástico e delinear uma aproximação crítica a esses textos. Esperamos, com isso, iluminar caminhos interpretativos sobre esses textos e encontrar possíveis temas recorrentes nessa produção do autor mexicano, refletindo em que medida essa recorrência de temas gera efeitos de sentido na obra em si e entre ela e as demais obras do autor, criando um leque de significações no momento de sua(s) leitura(s). Para tanto, visando melhores resultados de análise, demarcaremos uma divisão entre essas narrativas fantásticas e a produção de viés realista do autor. Contudo, ressaltamos 34 de antemão que de maneira alguma deixamos de ter em vista sua obra como um todo, já que, como o próprio Fuentes afirma, cada livro seu publicado é parte de um grande romance que ele está escrevendo ao longo de sua vida, o que ele chama de “La edad del tiempo”16. Entre os muitos “capítulos” desse grande romance está “El mal del tiempo”, ciclo no qual o autor mexicano inscreve a maior parte de suas narrativas fantásticas e sobre o qual discorreremos mais adiante. Começaremos nossas considerações tendo como critério o aspecto cronológico dessas publicações. 2.1 LOS DÍAS ENMASCARADOS: ORIGEM DA INQUIETAÇÃO Obra inaugural do repertório de Carlos Fuentes, Los días Enmascarados, de 1954, funciona como uma espécie de norteador para os escritos posteriores do autor. Trata-se de um volume de contos, seis no total, no qual Fuentes arquiteta narrativas complexas e inquietantes, que apresentam uma realidade cotidiana que é colocada em xeque por outra realidade que se estabelece. Escrito em apenas um mês, segundo o próprio Carlos Fuentes17, para participar de um concurso literário18 em uma feira de livros de 1954, Los días enmascarados inquietou críticos literários da época por causa dos temas tratados pelo autor e por causa de sua opção pela literatura fantástica como o gênero para suas narrativas19. Os críticos julgaram imperdoável o 16 Com o intuito de organizar e significar sua extensa produção, Carlos Fuentes cria “La edad del tiempo”, espécie de grande ciclo em que o autor insere suas narrativas dos mais diversos gêneros. Esse grande ciclo é dividido em diversos outros, dentro os quais estão “El mal del tiempo”, “Tiempo de fundaciones”, “El tiempo romántico”, “El tiempo político”, etc. Em cada um desses diversos tempos, o autor escreve narrativas que apresentam temas comuns entre si, como o Tempo, por exemplo. Segundo o autor: “La edad del tiempo” é “un juego de palabras, y su eje, [...] más que un país, México, es el problema del tiempo, la manera como estructuramos el tiempo humano, cómo nos relacionamos con la historia; con el tiempo de los demás. Parto de la premisa de que hay muchos tiempos en la historia, no hay un solo tiempo irreversible, futurizable, sino que hay tiempos que predican un regreso al pasado, una salud en el origen, una acumulación”. Entrevista concedida a Julio Ortega. In: HERNÀNDEZ, Jorge (comp.). Carlos Fuentes: territorios del tiempo (antología de entrevistas). México: FCE, 1999, p. 224. 17 Fuentes afirma: “Con una serie de temas que yo venía cargando y que recuerdo me senté y escribí en un mes, para tener el libro a tiempo para la feria del libro del año 54”. Apud HARSS, Luis. (Colab. Barbara Dohmann). Los Nuestros. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1966, p. 348. 18 Concurso promovido pelo editorial independente chamado “Los Presentes”, fundado e dirigido por Juan José Arreola em 1950. 19 Um estudo sobre a reação da crítica pode ser encontrado em “En el reino de los aparecidos: Roa Bárcena, Fuentes y Pacheco”, de Rafael Olea Franco, de 2004. 35 fato de o escritor mexicano promover uma literatura que estava “descomprometida com a realidade”, já que, conforme o discurso difundido na época, todo o escritor latino-americano deveria desenvolver uma literatura que estivesse engajada com os problemas do cotidiano e, portanto, estivesse comprometida socialmente; ou seja, os textos que fugiam desse molde eram “universalistas”, desconsideravam seu país e seus problemas sociais, caracterizando-se como uma “literatura evasiva y, por tanto, nada americana” 20. Diante de tais afirmações sobre Los días enmascarados, nota-se que esses intelectuais não conseguiram apreender a totalidade da proposta de Carlos Fuentes naquele momento, porque o autor lança mão da literatura fantástica sem, contudo, desconsiderar questões referentes à América Latina e, principalmente, referentes a seu país. Indo na esteira de autores como Arreola e Rulfo (para citar apenas dois exemplos), Carlos Fuentes deixa transparecer, em sua primeira publicação, o desejo de criar uma literatura que conjugasse inovação literária e reflexão sobre o seu contexto; característica, aliás, encontrada também em narrativas de escritores de sua mesma geração, como Cortázar e García Márquez por exemplo. No intuito de rebater tais críticas, Carlos Fuentes argumenta, em entrevistas, que seu compromisso era com a criação literária, com o fazer literário, uma vez que “la literatura o crea una realidad o no es literatura”21. Ou seja, em um texto literário, a imaginação e a linguagem são fundamentais, elementos esses que, quando bem arquitetados, são capazes de fazer com que uma narrativa transcenda, atinja seu contexto, desprenda-se de uma nacionalidade específica e ascenda a uma literatura de caráter mais universal. Valorizando a junção entre criação literária e contexto, o autor mexicano, em sua primeira publicação, retrata os diversos Méxicos existentes em seu país, materializando, por meio da palavra, as diferentes realidades até então menosprezadas, conseguindo, assim, adentrar nos mais distintos universos, como comenta Olea Franco: “Los Días enmascarados inventa un mundo fantástico que posee fuertes nexos con el México contemporáneo, con el cual y desde el cual discute [Carlos Fuentes]” (2004, p. 144). Por tudo isso, parece-nos um equívoco afirmar que Fuentes, em suas narrativas 20 Afirma Alfredo Hurtado: “El número 2 [“Los Presentes”] correspondió al título Los días enmascarados, de Carlos Fuentes. Libro de prosa bien cuidada: literatura evasiva y, por tanto, nada americana, aunque bastante elogiada por sus amigos. El autor no da un paso si no pone sus ojos en la decrépita literatura inglesa”. Apud OLEA FRANCO, 2004, p. 139. 21 Entrevista concedida a Alfred MacAdam e Charles Ruas. In: HERNÀNDEZ, Jorge (comp.). Carlos Fuentes: territorios del tiempo (antología de entrevistas). México: FCE, 1999, p. 47. 36 fantásticas, descarta a realidade, uma vez que basta debruçar-se com mais atenção sobre seus textos para concluir exatamente o oposto: o autor combina literatura e realidade, literatura e história, fazendo com que o leitor desperte para certo dado da realidade que ele ainda não havia notado. Fundamental por ser considerada uma obra seminal da narrativa de Carlos Fuentes, Los días enmascarados é o livro primogênito do escritor mexicano e nele contém temáticas que serão ampliadas em suas narrativas futuras, além de se configurar como uma obra que contribui para consolidar uma tradição de textos fantásticos no México22. Ao contrário do que ocorreu na região do Rio da Prata, o país de Carlos Fuentes manteve, até a primeira metade do século XX, uma tradição literária majoritariamente ancorada em romances realistas 23, com as chamadas “novelas de la tierra” e “novelas de la Revolución”24. Isso começa a mudar nas décadas após a Revolução Mexicana (1910), quando muitos autores, aproveitando-se de financiamentos governamentais e influenciados pelas vanguardas europeias, dedicam-se a realizar um tipo de literatura mais imaginativa. Porém, é apenas na segunda metade do século XX que ocorre uma transformação mais efetiva na literatura mexicana, momento em que surgem obras como Confabulario (1952), de Juan José Arreola, Los días enmascarados (1954), Pedro Páramo (1955), de Juan Rulfo, e, posteriormente, Farabeuf o la crónica de un instante (1965), de Salvador Elizondo25. 22 É necessário salientar que quando afirmamos a existência de uma tradição de textos fantásticos no México estamos fazendo menção à grande produção de textos deste gênero a partir da década de 50, independente de seu reconhecimento pela academia e pelos editoriais. 23 Referimo-nos à literatura escrita e não à tradição oral mexicana, permeada por crenças e mitos. Em relação a aquele tipo de literatura, estudos apontam que houve alguma produção de narrativas fantásticas no país no século XIX, porém sem grande expressão se comparada a outras regiões do continente. Alguns autores mexicanos, inspirados em autores europeus e em Edgar Allan Poe principalmente, escreveram narrativas cujo enredo gira em torno de algum evento misterioso e/ou sobrenatural, alinhando-se com o fantástico. Entre eles, citamos José María Roa Bárcena (1827-1908) e Amado Nervo (1870-1919). Sobre o tema, pode-se encontrar um estudo mais detalhado em: LÓPEZ MARTÍN, Lola. Formación y desarrollo del cuento hispanoamericano en el siglo XIX. Tese. (Doutorado em Literatura Espanhola e Hispano-americana). Universidad Autónoma de Madrid. Madrid, 2009. 24 Durante o século XIX e divulgada principalmente por meio de jornais e revistas, a literatura mexicana caracterizava-se, majoritariamente, por seu caráter realista e moralizante (direcionada à mulher e à família), por causa da forte vigilância que o governo mexicano exercia sobre os escritores. Com a Revolução Mexicana, esse panorama muda e há a abertura para que escritores e intelectuais da época se expressassem de maneira mais aberta sobre diferentes temas, como política, religião, costumes, etc. Nesse contexto, surge Mariano Azuela (1873-1952), autor de Los de abajo (1915), que escreve uma literatura realista, porém crítica em relação à Revolução Mexicana e suas consequências. 25 Essas duas últimas obras são fundamentais para a literatura fantástica mexicana e latino-americana, porque colaboraram para a ruptura de um fazer literário ancorado em uma realidade racionalista. Juan Rulfo deixa para trás a novela da Revolução e arquiteta uma novela amplamente polifônica, em que vozes de personagens ecoam 37 As obras citadas anteriormente, portanto, contribuíram decididamente para o fortalecimento de uma tradição fantástica no México. A propósito disso, comenta Raymond Leslie Williams: “Los Días Enmascarados de Fuentes, junto con el Confabulario de Arreola, trajeron a la literatura mexicana las posibilidades de invención que Borges había explorado inicialmente en Ficciones: trajeron el espíritu de la modernidad” (1998, p. 50). Assim, em sua primeira publicação, Carlos Fuentes, utiliza-se do gênero fantástico para descortinar “novas” realidades e questionar a noção de discurso unívoco, criando narrativas que apresentam intrincados jogos narrativos que contemplam questões referentes à formação da identidade mexicana, bem como a História do México e a diversidade cultural deste país. “Chac Mool”, “Tlactocatzine, del jardín de Flandes” e “Por boca de los dioses” são exemplos disso. Há ainda contos de caráter mais universal, que vão ao encontro de questões históricas e humanas e apontam para problemas do mundo contemporâneo. Seguem esta linha “El que inventó la pólvora”, “En defensade la trigolibia” e “Letanía de la orquídea”. Este último, conforme destaca Georgina Gutiérrez é “dedicado a América Latina, sirve, (...) como puente entre la preocupación por lo nacional y lo transnacional” (1981, p. 10). Por fim, tendo em vista a hipótese de que alguns temas tratados em Los días enmascarados norteiam a obra de Carlos Fuentes, cremos que vale a pena fazer algumas considerações interpretativas sobre “Chac Mool” e “Tlactocatzine, del jardín de Flandes”, duas narrativas centrais dessa obra, cujo objetivo visa verificar a pertinência dessa hipótese por meio do levantamento e análise de aspectos comuns entre estes textos e os demais textos do autor mexicano pertencentes ao ciclo “El mal del tiempo”. 2.2 O FANTÁSTICO EM “CHAC MOOL” E “TLACTOCATZINE, DEL JARDÍN DE FLANDES” Narrativas pertencentes a Los días enmascarados, “Chac Mool” e “Tlactocatzine, del por toda a parte, deixando o leitor sem conseguir distinguir se são de personagens vivas ou mortas, por causa da ambientação do povoado de Comala que mais parece um grande cemitério. Com isso, Rulfo consegue relativizar as concepções sobre a própria existência humana, além de criar uma espécie de mitologia do mundo dos mortos. Sobre esta obra, Carlos Fuentes afirma que Pedro Páramo é como se fosse um “árbol negro y seco, con unas ramas de la cual pende una manzana de oro”. Entrevista a Cristián Warnken no ano de 2004. Disponível em: http://www.unabellezanueva.org/carlos-fuentes/. Acesso em: 20 de fevereiro de 2012. A presença da narrativa de Salvador Elizondo justifica-se devido ao seu aspecto de escrita que traz elementos sinistros e perturbadores, em que a realidade, metafísica e onirismo misturam-se, criando uma atmosfera de ambiguidade. 38 jardín de Flandes” são fundamentais para compreender o tipo de fantástico produzido por Carlos Fuentes ao longo das décadas, pois, em ambos os textos, o autor aborda temas que podem ser observados em publicações posteriores, como a irrupção do fantástico que funciona como desestabilizador de um pensamento racionalista. Em “Chac Mool”, conto de abertura de Los días enmascarados, o enredo gira em torno de Filiberto, narrador-personagem que vê sua vida se transformar após comprar uma estátua da divindade pré-hispânica Chac Mool. Através de um diário, lido por um amigo, Filiberto relata que, ao colocar a estátua no sótão, pouco a pouco, por causa de uma infiltração, o objeto vai modificando sua forma e acaba ganhando vida, transformando-se na própria divindade: Allí estaba Chac Mool, erguido, sonriente, ocre, con su barriga encarnada. Me paralizaban los dos ojillos, casi bizcos, muy pegados a la nariz triangular. Los dientes inferiores, mordiendo el labio superior, inmóviles; sólo el brillo del casquetón cuadrado sobre la cabeza anormalmente voluminosa, delataba vida. Chac avanzó hacia la cama; entonces empezó a llover (FUENTES, 1996, p. 20-21). Uma vez reencarnado, Chac Mool revela-se uma divindade vingativa, vaidosa, agressiva e degradada. Submete Filiberto a todos os seus desejos e vontades, transformando-o em seu escravo, que, ao tentar fugir, acaba morrendo. Esse conflito ocorre justamente porque essas duas personagens buscam espaço no mundo contemporâneo. Podemos pensar que Filiberto, de um lado, representa o homem do século XX e Chac Mool, por sua vez, está relacionado ao universo indígena. Ambas as personagens exemplificam o embate cultural existente no México, onde coexistem várias realidades culturais e religiosas divergentes, estabelecidas após a chegada de Hernán Cortês ao território em 1519. Dessa forma, Chac Mool desencadeia um novo modus vivendi, pois, ao subjugar Filiberto, a divindade provoca uma inversão de hierarquias, inverte todo o status quo vigente, dando origem ao processo de carnavalização26. A divindade toma para si a cama, o quarto, a casa e a própria vida de Filiberto, reificando-o, ou seja, colocando-o exatamente onde Filiberto o havia colocado, no sótão, como objeto de coleção: “Dígale a los hombre que lleven el cadáver al sótano” (FUENTES, 1996, p. 27). Nesse sentido, “Chac Mool” funciona como uma metáfora da própria história do México, que assumiu uma postura europeia e relegou o 26 Um estudo mais detalhado sobre o tema nessa narrativa encontra-se em ZARATIN, D. A. P. “A Carnavalização e o Grotesco em ‘Chac Mool’ (1954), de Carlos Fuentes”. In: Cadernos de Pós-Graduação em Letras, volume 12, nº 1, 2012. Disponível em: http://www.mackenzie.br/fileadmin/Graduacao/CCL/Pos/Cadernos_texto_7.pdf. Acesso em: 02 de agosto de 2012. 39 universo indígena ao esquecimento (ao sótão, como o fez Filiberto) após a colonização espanhola. Entretanto, Fuentes acrescenta à sua história elementos distintos do que conta a História oficial, já que o autor opta por retratar o outro lado, o indígena, como uma espécie de inquietude frente ao discurso histórico do vencedor, como uma rebelião dos “silenciados” no plano ficcional. Na perspectiva do fantástico27, o insólito está ancorado na transformação de uma estátua em “humano”, de algo inanimado em animado, tema bastante utilizado em narrativas do gênero, como em “A Vênus de Ille”, de Prosper Mérimée28. Contribuem para a intensificação do fantástico a opção pelo foco narrativo em primeira pessoa em forma de diário, imprimindo maior autoridade ao narrador e verossimilhança ao relato, a descrição de uma realidade cotidiana, reconhecível para personagem e leitor implícito, colocada em xeque por outra realidade que se apresenta, a ambientação da casa de Filiberto. Em recente estudo sobre o fantástico em “Chac Mool”, Rafael Olea Franco afirma: Al basarse en varias infracciones a la lógica de la disyunción (una estatua que encarnan un hombre que al mismo tiempo dios, etcétera), el cuento se funda más bien en una lógica de la conjunción que sirve para desestabilizar nuestra creencia en los postulados de la lógica causal y racional que regulan la vida de los personajes y, en última instancia, la nuestra (2004, p. 154-155). Pela união dos contraditórios, passado-presente, vida-morte, divino-humano, mortalimortal, a narrativa deixa transparecer que o homem não é mais um meio pelo qual se pode atingir um objetivo. Em “Chac Mool”, verifica-se que o objetivo a ser atingido é o próprio homem e suas crenças sobre a História e a realidade. Desestruturar e inquietar o leitor, é o que parece propor o autor mexicano ao escrever essa narrativa, que, aliás, foi escrita a partir de um dado histórico, algo recorrente em textos do mexicano29. 27 Sobre o fantástico em “Chac Mool” ver: TREVISAN, A. L. “El cuento ‘Chac Mool’ de Carlos Fuentes: fronteras de lo fantástico y del realismo maravilloso”. In: Actas del Coloquio Internacional El orden de lo fantástico: territorios sin fronteras. Lima: CELACP, 2011 (p. 28-34). 1 CD-ROM. 28 29 Conto de 1837. Segundo o autor, em 1952, houve uma excursão pela Europa de objetos de arte indígena mexicana, entre eles o Chac Mool. Naquele ano, ocorreram grandes precipitações pluviais, inclusive em lugares que há muito não chovia. Mediante tal “milagre”, “se hizo famoso el hecho y, por ejemplo campesinos de ciertos valles de España donde nunca había llovido mandaban unas cuantas pesetas por correo al Palais de Chaillot, que las ponían en el estómago de Chac Mool, y llovía en ese valle después de cincuenta años. Cruzó el Canal de la Mancha en medio tempestades que nunca se han visto... Este fue el origen del cuento”. Apud HARSS, Luis (Colab. Barbara Dohmann). Los Nuestros. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1966, p. 349. 40 Considerado por muitos críticos e pelo próprio autor como o melhor texto do volume, “Chac Mool” revela “magistralmente” o cenário que se tornou o México após a colonização espanhola, demonstrando que o universo indígena transformou-se em uma “ilusión, una máscara; al mismo tiempo es rostro real (...), es una contradicción perpetua” (PAZ, 2004, p. 291). Ele permanece vivo na modernidade, e, como exposto anteriormente, permanece desejoso de “vingança” contra Filiberto, representante dos opressores ou colonizadores. Em “Tlactocatzine, del jardín de Flandes”, segundo texto escolhido, o enredo está centrado em um narrador-personagem que nos relata, também por meio de um diário, a vivência de acontecimentos inquietantes após mudar-se para uma casa no centro da Cidade do México. Pouco a pouco, ele começa a sentir que não estava sozinho naquela casa antiga, pressente que há mais alguém na casa, além dele e dos empregados, que mantinham a casa limpa, mesmo desabitada. Certo dia, ele encontra a responsável por tal sentimento: uma misteriosa anciã, que buscava comunicar-se com ele por meio de cartas e que entrava e saia da casa de maneira misteriosa. Com o passar dos dias, sua presença é mais constante naquele espaço e, após uma série de acontecimentos inexplicáveis, ela consegue efetivamente estabelecer contato com o narrador-personagem, revelando-lhe a identidade de ambos. Segundo a anciã, ela seria Carlota e ele, Maximiliano de Habsburgo, seu esposo e imperador do Segundo Império Mexicano30: Pero desde ahora, no más cartas, ya estamos juntos para siempre, los dos en este castillo... Nunca saldremos; nunca dejaremos entrar a nadie... Oh, Max, contesta, las siemprevivas, las que te llevo en las tardes a cripta de los capuchinos (...) (FUENTES, 1996, p. 45). Pensando nessa narrativa do ponto de vista do fantástico31, percebe-se vários aspectos que remetem a esse tipo de texto: a caracterização das personagens, dispostas de modo a formar dois universos: o real e o irreal, o narrador e Carlota respectivamente; a incerteza do narrador-personagem e do leitor no que diz respeito à origem dessa mulher misteriosa, que entra e sai do casarão não se sabe como: “Ahora caminaba, ¿hacia...?”, “¿pero cómo se atrevía 30 O Segundo Império Mexicano consiste no período em que Maximiliano de Habsburgo foi imperador do México, de 1863 a 1867. Seu governo foi apoiado pelo exército francês, pela Igreja Católica e pelo Partido Conservador. Em oposição a Maximiliano estava Benito Juárez, líder político do Partido Liberal. Em 1867, Maximiliano foi preso, condenado à morte e fuzilado no mesmo ano. 31 Um estudo sobre o fantástico nessa narrativa pode ser encontrado em um texto de nossa autoria: ZARATIN, D. A. P. “Lo Fantástico en Tlactocatzine, del jardín de Flandes (1954) de Carlos Fuentes”. In: Actas del Coloquio Internacional El orden de lo fantástico: territorios sin fronteras. Lima: CELACP, 2011 (p. 132-139). 1 CDROM. 41 a entrar, o por dónde entraba? [...]” (FUENTES, 1996, p. 41); a negação que o narrador faz, mas que adquire sentido oposto: “No, no diré que cruzó la enredadera y el muro, que se evaporó, que penetró en la tierra o ascendió al cielo” (FUENTES, 1980, p. 41); a existência de climas tão distintos dentro e fora da casa: “¡El jardín no estaba en México!... Penetré al salón y pegué la nariz en la ventana: en la Avenida del Puente de Alvarado, rugían las sinfonolas, los tranvías y el sol, sol monótono... Regresé a la biblioteca: la llovizna del jardín persistía...” (FUENTES, 1996, p. 39); além da opção pela narração em primeira pessoa em forma de diário, como em “Chac Mool”, conferindo maior verossimilhança ao relato e imprimindo maior legitimidade ao narrador. Estes são todos elementos que reunidos intensificam o efeito do fantástico na narrativa. Outro aspecto do conto que devemos enfatizar é a presença dessa figura feminina fundamental, Carlota, que traz consigo o descortinar de outra realidade, até então desconhecida para o narrador-personagem. Sobre isso, o autor mexicano esclarece em carta a Gloria Durán: Cuando tenía siete años y, después de visitar el Castillo de Chapultepec y ver el cuadro de la joven Carlota de Bélgica, encontré en el archivo Casasola la fotografía de esa misma mujer, ahora vieja, muerta, recostada dentro de un féretro acojinado, tocada con una cofia de niña: la Carlota que murió loca, en un castillo, el mismo año en que yo nací (DURÁN, 1976, apêndice). É uma figura que marcou o imaginário do autor e por isso ele a retrata em suas narrativas, sempre buscando dar a ela outras oportunidades, finais distintos da realidade. Assim, em toda a obra do autor, é possível encontrar várias Carlotas, todas são personagens relacionadas, de alguma forma, ao sobrenatural. Por exemplo, em “Tlactocatzine”, temos a primeira Carlota ficcionalizada; em Aura, temos Aura-Consuelo; em La región más transparente, Teodula Moctezuma; em Cumpleaños, a personagem Nuncia, etc. São todas personagens pertencentes ao universo no qual não impera a razão e, sim, os sentidos. Por meio desta revelação ao narrador, pode-se verificar uma releitura de um dado histórico: Carlos Fuentes toma por base a biografia dos protagonistas desse período histórico mexicano, Maximiliano e Carlota, para criar a sua narrativa, na qual nos é apresentado um final distinto do que nos conta o discurso histórico oficial. Na narrativa do autor mexicano, Carlota tem a possibilidade de reencontrar seu esposo, ao contrário do que ocorreu na realidade, já que Maximiliano foi fuzilado e Carlota não teve a oportunidade de vê-lo morto, pois estava na Europa na ocasião. Por isso, ela nunca acreditou na morte de seu esposo, fato 42 que acabou deixando-a louca. Carlos Fuentes, em “Tlactocatzine”, propõe o resgate dessa história, dessa memória que estava esquecida, traçando um movimento de retorno às “origens”, uma vez que o narradorpersonagem, ao descobrir sua real identidade, deve voltar para os braços de sua esposa. Mais uma vez, é o passado que se recusa a ser esquecido, enterrado; ele se faz presente para que haja o reencontro do casal separado tão tragicamente. Pelo exposto, em “Chac Mool” e em “Tlactocatzine”, observamos traços temáticos comuns entre si, entre os quais estão: o protagonismo da categoria narrativa Tempo, encarado como algo circular, em que passado, presente e futuro estão intimamente interligados, explicando-se e completando-se; a opção pelo foco narrativo em primeira pessoa (diário); o protagonismo de personagens (Chac Mool e Carlota) que simbolizam um passado latente, vivo no presente, e que desconcertam narradores, personagens e leitor ao se revelarem integralmente; os elementos ambíguos da ambientação espacial dos casarões onde se passam as histórias; reflexões sobre a identidade mexicana por meio da própria identidade das personagens e, para finalizar, a desarticulação do discurso oficial nessas narrativas. Carlos Fuentes, baseado em dados históricos, reescreve a “vida” de personagens que estavam silenciadas por diversos motivos: seja por causa da colonização (Chac Mool), seja por causa de consequências histórico-políticas (Carlota), etc. Carlos Fuentes consegue, nesse breve e inquietante volume de contos, unir temas aparentemente antagônicos, como o passado e o presente, o local e o universal, o real e o irreal, dispondo-os de maneira “conjuntiva”, para usar o termo de Olea Franco, pois cada um desses elementos se completam. Acreditamos que, a partir de Los días enmascarados, Fuentes estrutura suas publicações futuras, inseridas dentro do que ele chama “El mal del tiempo”, ciclo que contém as narrativas fantásticas do autor. Fazem parte desse ciclo fantástico Aura (1962), Cumpleaños (1969), Una familia lejana (1980) e Constancia y otras novelas para vírgenes (1990), esta última corpus desta pesquisa. No intuito de investigar o tipo de fantástico produzido por Carlos Fuentes ao longo dos anos por meio de temas que se reiteram em suas obras e de traçar um caminho ascendente de análise, propomo-nos a discutir o ciclo de narrativas “El mal del tiempo”. Contemplaremos brevemente cada um dos textos relacionados a esse ciclo e incluiremos ainda outra publicação do autor, Inquieta Compañía (2004), que, embora não esteja inscrita por Fuentes nesse 43 conjunto, caracteriza-se por ser uma das últimas publicações fantásticas do autor, o que pode, portanto, nos apontar como se constitui o fantástico nas obras mais recentes de Carlos Fuentes. 2.3 “EL MAL DEL TIEMPO”: O CICLO FANTÁSTICO DE CARLOS FUENTES Em seu texto As obras de ‘El mal del tiempo’ de Carlos Fuentes 32 , Camila Chaves Cardoso busca mapear, a partir de entrevistas e de estudos sobre a obra do autor, parte das influências literárias que Fuentes deixa transparecer em suas narrativas. Segundo ela, o escritor mexicano foi diretamente influenciado por dois autores em sua maneira de conceber narrativas: Honoré de Balzac e Miguel de Cervantes33. No que se refere à escrita do autor francês, Carlos Fuentes opta pelo Balzac de caráter realista, autor da “Comédia Humana”, volume de textos que retrata a sociedade “dos costumes, das ambições da sociedade burguesa, dos pormenores da vida cotidiana” (CARDOSO, 2009, p. 422). O escritor mexicano denomina esse tipo de tradição narrativa como “Waterloo” ou “Napoleônica”, cujos textos privilegiam a ação das personagens frente a seu contexto histórico. É com esse pensamento que Fuentes concebe suas narrativas realistas como La región más transparente34 (1958) e La muerte de Artemio Cruz (1962), por exemplo. Em relação a Miguel de Cervantes, Fuentes declara que Don Quijote, obra ícone da literatura espanhola, é uma de suas grandes influências, pois nessa narrativa o autor liberta toda a sua imaginação, conferindo especial protagonismo a ela dentro da obra. Assumidamente herdeiro dessa tradição “Quixotesca”, Carlos Fuentes considera o texto de 32 CARDOSO, Camila Chaves. As obras de ‘El mal del tiempo’ de Carlos Fuentes. Texto publicado na Revista Estudos Linguísticos (GEL), São Paulo, 38 (3): 421-432, set.-dez. 2009. Acesso em: 17 de outubro de 2011. Disponível em: http://www.gel.org.br/estudoslinguisticos/v38-3_sumario.php. 33 Além de Balzac e Cervantes, em entrevista, Carlos Fuentes cita nomes como Bakhtin, Vico e William C. Faulkner como sendo os nomes que, de alguma forma, exerceram forte influencia em sua maneira de escrever. Entrevista concedida a Julio Ortega. In: HERNÀNDEZ, Jorge (comp.). Carlos Fuentes: territorios del tiempo (antología de entrevistas). México: FCE, 1999. 34 Nesse romance, há referência ao universo mítico-religioso indígena do México por meio das personagens Teodula Monteczuma e Ixca Cienfuegos, contudo não é o preponderante, já que a narrativa caracteriza-se por reunir elementos marcadamente realistas. 44 Cervantes como sendo a “fuente de la polifonía de la ficción”35, o responsável por inaugurar uma tradição na literária mundial ao apresentar-se como uma: Novela abierta, ambigua, que frente al mundo unívoco y cerrado de la creación literaria anterior ofrece varias posibilidades y opciones de enfocar la realidad al tiempo que exige la colaboración o complicidad del lector para completar su sentido (ORDIZ, 2011, no prelo). Baseado nessa obra cervantina, renunciando ao racionalismo predominante na sociedade burguesa e buscando realizar um novo tipo de literatura, Carlos Fuentes escreve seus textos que pertencem à tradição “Quixotesca” ou de “La Mancha”, como ele próprio denomina. Fazem parte dessa tradição as obras que compõem “El mal del tiempo”, ciclo que se caracteriza por agregar narrativas “abiertas” e “ambiguas”, inclinadas à imaginação, ao onirismo e ao irreal. Sobre esse tipo de escrita, Fuentes argumenta: Lo que ha muerto no es la novela, sino precisamente la forma burguesa de la novela y su término de referencia, el realismo, que supone un estilo descriptivo y sicológico de observar a individuos en relaciones personales y sociales (1976, p. 17). Nessas narrativas, o autor mexicano interpola realidade e imaginação, fazendo com que o leitor se inquiete e reflita sobre o texto lido e participe do desfecho da trama, que, na maioria das vezes, permanece sem solução. São textos que estão diretamente atrelados a procedimentos formais que confessam a ficção enquanto ficção, uma espécie de metaficção. É o tipo de literatura que, ao eleger a imaginação como filtro, acaba se convertendo em crítica à sociedade ao abrir uma nova possibilidade de olhar para ela. Nas narrativas que compõem “El mal del tiempo”, o escritor utiliza-se de um exímio trabalho entre linguagem e imaginação para descortinar realidades e histórias que fogem a explicações racionais. Ao desvendar essas novas realidades, o autor almeja que seus leitores reflitam sobre o conceito de História no qual está ancorada uma sociedade e, ao contrário do que se possa pensar, “el hecho de que muchas de las obras de Fuentes no reflejen el mundo exterior tal como lo conocemos no indica [...] que estén desligadas de la realidad o de problemas sociales” (DURÁN, 1976, p. 51). Fuentes deixa transparecer em seus relatos que os fatos “passados” podem ser renovados por meio do ato de criação literária, uma vez que: “El pasado es siempre una novedad. Creer que el pasado está muerto es condenarse a un futuro muerto también. El pasado está vivo, el pasado es como un libro que tomamos por 35 Trecho retirado de entrevista concedida a Julio Ortega. In: HERNÀNDEZ, Jorge (comp.). Carlos Fuentes: territorios del tiempo (antología de entrevistas). México: FCE, 1999, p. 216. 45 primera vez”36. O passado “oficial”, encarado como metonímia da História, pode ser reatualizado por meio da literatura e, a cada leitura, se lança novo olhar sobre ele. 2.4 AURA La cabeza te da vueltas inundada por el ritmo de ese vals lejano que suple la vista, el tacto, el olor de plantas húmedas y perfumadas: caes agotado sobre la cama, te toca los pómulos, los ojos, la nariz, como si temieras que una mano invisible te hubiese arrancado la máscara que has llevado durante veintisiete años. (Fragmento de Aura, FUENTES, 1994, p. 57). Primeira obra que compõe o ciclo “El mal del tiempo”, Aura foi publicada no mesmo ano de La muerte de Artemio Cruz, 1962. Estruturalmente considerada como uma novela curta, em Aura, Fuentes utiliza como fio condutor a literatura fantástica para tratar de questões relacionadas ao México e suas diversas realidades superpostas. Se comparado a Los días enmascarados, Aura foi recebida pela crítica com um olhar bem mais aberto a inovações literárias. Construído a partir de uma voz na 2ª pessoa do singular (tu), seu enredo causa estranhamento no leitor desde suas primeiras linhas. Como protagonista temos Felipe Monteiro, um jovem historiador mexicano de 27 anos, que, após ler um misterioso e tentador anúncio de emprego em um jornal, decide ir trabalhar na casa de Consuelo, uma anciã. O trabalho consistiria em reescrever e completar as memórias de seu esposo falecido, o general Llorente: “Se trata de papeles de mi marido, el general Llorente. Deben ser ordenados antes de que muera. Deben ser publicados. Lo he decidido hace poco” (FUENTES, 1994, p. 14). Como requisito para o emprego, Felipe deveria residir na residência de Consuelo, o que ele considera aceita, pois leva em conta o alto salário. No mesmo dia, conhece e apaixona-se por Aura, a jovem sobrinha enigmática de Consuelo. Ao aproximar-se dela, percebe que algo não muito comum ocorria, pois Aura, como uma espécie de robô, repetia mecanicamente todos os movimentos realizados por sua tia: Miras rápidamente de la tía a la sobrina y de la sobrina a la tía, pero la señora Consuelo, en ese instante, detiene todo movimiento y, al mismo 36 Entrevista concedida a Ricardo C. Gally. In: HERNÁNDEZ, Jorge (comp.). Carlos Fuentes: territorios del tiempo (antología de entrevistas). México: FCE, 1999, p. 254. 46 tiempo, Aura deja el cuchillo sobre el plato y permanece inmóvil y tú recuerdas que, una fracción de segundos antes, la señora Consuelo hizo lo mismo (FUENTES, 1994, p. 32). Ao perceber a subordinação de sobrinha perante a tia, Felipe se inquieta, cogita a possibilidade de renunciar ao emprego e fugir com Aura, porém ele permanece na casa, pois está cada vez mais enredado por ambas, envolvido em uma espécie de quebra-cabeça articulado por Consuelo. Imerso naquele ambiente de erotismo, mistério e delírio, Felipe acaba se confrontando com a descoberta do sobrenatural: por meio de rituais de magia, Consuelo havia criado Aura, sua metade jovem. Felipe, por sua vez, era o próprio general Llorente, o esposo falecido de Consuelo: Pegas esas fotografías a tus ojos, las levantas hacia el tragaluz: tapas con una mano la barba blanca del general Llorente, lo imaginas con el pelo negro y siempre te encuentras, borrado, perdido, olvidado, pero tú, tú, tú (FUENTES, 1994, p. 57). O estudioso da obra de Carlos Fuentes Javier Ordiz afirma que a presença do fantástico nessa narrativa transparece na medida em que: El relato se va sembrando de indicios que sugieren la existencia de un elemento de carácter sobrenatural que el protagonista en primera instancia se niega a admitir a intenta explicar por medio de la lógica. Finalmente, el visitante se rinde a la evidencia de lo fantástico en suerte de ‘iniciación’ que acaba de definitivamente con la falacia realista y sitúa la acción hasta el final en los dominios de esa ‘segunda realidad’ (No prelo). Felipe vai descortinado lentamente outra realidade, de maneira a construir no texto um clímax que revele sua outra identidade. Essa “segunda realidad” manifesta-se por meio de diversos aspectos que sugerem o fantástico: a presença de duplos37, tanto tematicamente (Consuelo-Aura/Llorente-Felipe) quanto estruturalmente, expresso pelo uso do tu, materialização linguística do conflito insolúvel do fantástico; a atmosfera da casa, ambiente sombrio, cheio de plantas com efeitos sabidamente alucinógenos, de animais “invisíveis”, que contribuem para a intensificação do mistério; a presença de um suposto mordomo que “busca” os pertences de Felipe na casa do jovem sem este, contudo, ter dito o seu endereço; o protagonismo das personagens femininas, que levam o jovem historiador a enveredar pelo mistério. 37 Um estudo sobre o duplo em Aura pode ser encontrado em: CARDOSO, Camila Chaves. As imagens duplas e a narração em segunda pessoa em Aura, obra fantástica de Carlos Fuentes. Dissertação. (Mestrado em Literatura Espanhola e Hispano-americana) - Universidade de Campinas, São Paulo, 2007. 47 Verificamos que Aura retoma em grande medida, temas tratados por Carlos Fuentes em “Tlactocatzine, del jardín de Flandes”, já que existem semelhanças entre esses dois textos, como, por exemplo, a existência de casarões antigos e jardins com plantas “mágicas” (alucinógenas), o protagonismo das personagens femininas, bem como a menção a personagens que, talvez, não existam. Outro traço comum entre as duas narrativas é a sinestesia, aspecto que estimula o aguçamento dos sentidos das personagens: Creo percibir con agudeza mayor determinados perfumes propios de mi nueva habitación, ciertas siluetas de memoria que, conocidas otras veces en pequeños relámpagos, hoy dilatan y corren con la viveza y lentitud de un río (“Tlactocatzine”, FUENTES, 1996, p. 37). Podrías tomar el quinqué y descender [escaleras] con él. Renuncias porque ya sabes que esta casa siempre se encuentra a oscuras. Te obligarás a conocerla y reconocerla por el tacto (Aura, FUENTES, 1994, p. 19). Outro aspecto similar entre os dois textos diz respeito à menção a personagens ligadas ao Segundo Império Mexicano que redescobrem e retornam às origens, proporcionando a junção de casais (Carlota/Maximiliano – Consuelo/Llorente) que estavam definitivamente separados. Esta característica aparece também em Constancia, “La gata de mi madre” e “La bella durmiente”, textos posteriores do mexicano. Há também em ambas narrativas a presença de duplos e a descoberta de identidades superpostas, reveladas somente por meio da intervenção das personagens femininas, “hechiceras”, guardiãs e responsáveis por esse resgate. Atrelado a isso, está a problematização de um discurso que privilegia a ideia de identidade unívoca. Em suas narrativas fantásticas, o autor expõe o Outro lado da identidade dessas personagens e demonstra que a realidade tal qual conhecemos não corresponde ao todo, ela é somente uma parte do imenso e misterioso universo que nos rodeia. 2.5 CUMPLEAÑOS Cada vez, en un cuerpo distinto pero con una inteligencia única. Lo interrumpí: – ¿Y ahora? ¿Quién eres ahora? Él dijo una palabra incomprensible; Nuncia tradujo: Ahora soy tú. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . (Fragmento de Cumpleaños, FUENTES, 2008, p. 115). 48 Após a publicação de Aura em 1962, Carlos Fuentes volta a produzir uma literatura alinhada com o sobrenatural em Cumpleaños, de 1969. Nessa narrativa, a segunda de “El mal del tiempo”, o autor mexicano dá vazão à imaginação, consolida sua versatilidade em trilhar horizontes que vislumbrem o sobrenatural e expande fronteiras geográficas, já que, nesse texto, Carlos Fuentes escolhe como ambiente para a sua história outros países do Ocidente, como a Inglaterra, por exemplo. Narrada em 1ª e 3ª pessoas, Cumpleaños caracteriza-se por apresentar um enredo complexo, repleto de lapsos narrativos e constantes mudanças espaços-temporais, o que confere um tom labiríntico à narrativa. Inicialmente, temos a cena de um velho, sentado no centro de um quarto desabitado e sombrio e, junto a ele, uma mulher grávida lê cartas de um jogo de baralho com desenhos de figuras de cinco animais distintos: tigre, coruja, cabra, urso e dragão. Segue-se um lapso narrativo e, em seguida, surgem George e Emily, um casal que conversa sobre a festa de aniversário de dez anos de Georgie, seu filho. O pai argumenta que, por motivos profissionais, não poderá comparecer à festa, o que deixa a mãe indignada. Em seguida, o casal presenteia o filho e, após essa cena cotidiana, a narrativa muda de tom completamente e George surge em outro lugar, numa espécie de outra realidade, até então desconhecida para ele. Confuso e enfermiço, ele não consegue distinguir se tudo aquilo era verdadeiro ou apenas um sonho: Al despertar supe que no había pasado un día. Quiero decir que la memoria de mi despertar anterior era demasiado inmediata, demasiado contigua. O quizás un reloj interno... me advirtió que el tiempo entre el amanecer que recordaba y la noche que vivía era demasiado breve; casi imposible. Sigo acostado, temblando, abrazado a mí mismo, a mis piernas, con las rodillas cerca del mentón. Pero puedo reflexionar: probablemente la noche que me rodea ha sido creada y yo mismo, al imaginarla, la aumento (FUENTES, 2008, p. 73). Sem saber como fora parar naquele lugar, o protagonista pressente que algo grave e irremediável aconteceu: Mi memoria demasiado próxima, la creciente certeza de que desconozco los parajes, la casa, la alcoba, el clima mismo; la presencia del niño vestido de marinero; la sospecha de que no he llegado aquí por mi voluntad y la incertidumbre, por el contrario, sobre las maneras como pude ser trasladado hasta aquí; todo me hace dueño cierto, absoluto, de mi propia sorpresa (FUENTES, 2008, p. 74). Dentro de casarão escuro, George se depara com um menino vestido de marinheiro que lhe diz de maneira cordial: “Qué bueno que has regresado” (FUENTES, 2008, p. 74). Diante 49 disso, o leitor interroga-se sobre como seria possível que a criança fizesse tal declaração sem conhecer o protagonista. Outro dado é que, com essa afirmação do menino, o leitor mais atento e acostumado a textos de Carlos Fuentes percebe o tema do regresso, algo sempre presente nas narrativas do mexicano. Mais adiante, a criança revela o provável motivo da estadia do protagonista naquele lugar: “Un grave accidente, un accidente grave” (FUENTES, 2008, p. 74). Interessante a construção desta fala do menino, que, por meio da inversão/topicalização de substantivo e adjetivo, sugere a mudança, o retorno da personagem a aquele lugar. Em seguida, surge Nuncia, uma personagem misteriosa que mantém uma relação ambígua com a criança e que parece não enxergar Georgie naquele ambiente. Ela revela ter sido a Virgem Maria em outras encarnações, deixando o protagonista – e o leitor – mais intrigado com tudo aquilo que estava vivendo. Com tudo isso, George tem a sensação de estar inserido em um labirinto, lugar de onde ele busca sair, porém sem sucesso, pois acaba encontrando mais incertezas sobre os motivos que o levaram a estar naquele lugar. Acreditar na afirmação do menino sobre o grave acidente seria admitir que ele talvez estivesse morto, levando em consideração o fato de Nuncia não enxergá-lo. Em outra brusca mudança tempo-espacial, George percebe-se esposo de Nuncia e vive com ela cenas do cotidiano de um casal: Para ser el hombre de Nuncia, hube de afeminarme: de acercarme a la mujer, en sus gestos, en su olor, en sus poses más íntimas […]. Fue una larga identificación; quise darle placer, placer de mujer, servirla, agradarla, ser ella misma, uno con ella: ser Nuncia como ella era yo (FUENTES, 2008, p. 95). Neste monólogo de Georgie, verifica-se mais que a identificação dele com Nuncia; percebe-se como uma fusão entre ambos. Na contramão do sentido de fusão, está outra cena na qual os amantes se dão conta de que alguém está chegando onde eles estavam, Nuncia levanta-se, veste-se e, ao ver essa pessoa entrar, ela “corrió hacia el hombre, se arrojó en sus brazos, gritando: ¡George!¡Has regresado!” (FUENTES, 2008, p. 97). Ao fixar seu olhar nessa figura, George constata que se tratava de seu duplo, que vai envelhecendo gradualmente perante o protagonista, revelando-se, por fim, ser Siger Brabante, um monge ancião do século XIII que defendia as seguintes teses heréticas: “El mundo es eterno, luego no hubo creación; la verdad es doble, puede ser múltiple; el alma no es inmortal, pero el intelecto común de la especie humana es único” (FUENTES, 2008, p. 113). 50 Com o assassinato de Brabante pelo criado, George consegue fugir daquele lugar e ressurge em Londres, lugar que ele reconhece e com o qual se sente familiarizado. Após caminhar por vários pontos da cidade, ele acaba indo parar no Regent’s Park, zoológico onde ele encontra uma mulher grávida que jogava pedaços de pão na jaula de ursos. Ao terminar, ela senta-se ao lado do protagonista e George sente que “su mirada me heló la sangre” porque era Nuncia quem estava a seu lado e manejava o mesmo jogo de cartas do começo da narrativa. Esse desfecho do texto sugere a ciclicidade dos eventos vividos por Georgie, a ideia de reencontrar as mesmas personagens porém em locais distintos. Nesse sentido, a chave interpretativa da narrativa parece estar mesmo em sua epígrafe, retirada de um texto de Octavio Paz: “Hambre de encarnación padece el tiempo”. O Tempo é uma categoria fundamental na(s) narrativa(s) de Carlos Fuentes e é a partir dele que o leitor deve tentar montar o quebra-cabeça, desde o ponto de vista de que a sua eterna circularidade conduz as personagens a determinados espaços e contribui para revelar identidades esquecidas. Embora seja de difícil definição, podemos encontrar em Cumpleaños aspectos temáticos e estruturais que indicam a sua relação com demais narrativas fantásticas de Carlos Fuentes: a superposição e não linearidade de diversos tempos e espaços; a atmosfera sombria e misteriosa do casarão onde o protagonista passa a maior parte da narrativa; a caracterização ambígua das personagens, que apresentam duplos de outras épocas; a figura feminina que se relaciona com o insólito e conduz outra personagem, geralmente do sexo masculino, ao “conhecimento”; a ambivalência no discurso, conferindo subjetividade ao texto, característica ratificada pela utilização constante de lapsos narrativos e de modalizadores discursivos, conforme terminologia de Todorov, tais como “quizás”, “casi”, “probablemente”. Assim, em Cumpleaños, o leitor é obrigado a mergulhar no “delírio” caótico e misterioso do protagonista, descortinando com ele, passo-a-passo, os diversos tempos, espaços e identidades das personagens. 2.6 UNA FAMILIA LEJANA Por su otra vida, Fuentes, por su vida adyacente. Piense en lo que pudo ser [...]. Piense que lo mismo sucede con toda novela. Hay otra narración contigua, paralela, invisible, de cuanto creemos debido a una escritura singular. 51 (Fragmento de Una familia lejana, FUENTES, 1980, p. 205). A terceira narrativa que faz parte do ciclo “El mal del tiempo” foi publicada em 1980 com o título Una familia lejana. Nessa história, existem inicialmente duas personagens: Branly e seu amigo Fuentes, ouvinte daquele e narrador desse relato posteriormente. Branly inicia sua história contando ao amigo uma sequência de eventos estranhos, vividos por ele após conhecer o arqueólogo mexicano Hugo Heredia e seu filho Víctor nas ruínas de Xochicalco e convidá-los para se hospedarem em sua casa em Paris. O narrador-personagem explica que sente um primeiro estranhamento quando os conhece e que esse sentimento se intensifica com a chegada do menino à sua casa em Paris, sozinho, porque pai e filho jamais viajavam juntos após um acidente aéreo que vitimou a esposa e o outro filho do casal. Passado esse primeiro momento, Branly relata que, persuadido pelo menino Víctor a participar de jogo que consistia em encontrar homônimos por meio de listas telefônicas, acaba levando a criança até um casarão no norte de Paris, com o objetivo de encontrar um homônimo do menino, Víctor Heredia, e seu filho André. Após sofrer um inexplicável acidente automobilístico, Branly fica impossibilitado de andar, fazendo com que ele e o menino Víctor sejam obrigados a permanecer nessa casa. Acamado, ele passa todo o tempo no quarto e é atendido, nos primeiros dias, por Víctor, o dono da casa. No entanto, isso não dura muito porque logo ele se dá conta de que todos parecem ignorá-lo, exceto algo ou alguém, uma presença que ele sente, porém ainda não vê: Jugaban a lo lejos [o menino Víctor e André], entre los abedules. No le escuchaban. No le hacían caso. En cambio, algo incomprensible trataba de hacerse sentir por él, de acercarse a él. Cayó de espaldas sobre el lecho, fatigado, vencido por el sentimiento oscuro y diáfano a la vez. Él quería comunicarse con los niños y ellos no le escuchaban. Al mismo tiempo, alguien quería comunicarse con él y él no lo escuchaba porque sentía en esa convocatoria algo maldito (FUENTES, 1991, p. 67). Portanto, praticamente sem poder se locomover e imerso em seu sonho-delírio real, Branly começa a ver coisas inexplicáveis, como “fantasmas” de sua infância e uma relação sexual entre os meninos Víctor e André, além de uma mulher em seu quarto, quem, ele descobrirá posteriormente, ser a esposa falecida de Hugo Heredia: La imagen de la agitación sin desorden era la mujer detenida junto a la ventana [...] Su vestido de baile del Primer Imperio, blanco y vaporoso [...] 52 una figura neoclásica a punto de ser romántica, vista pero a punto de verse, racional pero al borde de la locura, vigilante pero en la esquina del olvido (FUENTES, 1991, p. 96). Interessante perceber como, no fragmento acima, o narrador utiliza-se de oxímoros (“agitación sin desorden/ vista pero a punto de verse/ racional pero al borde de la locura/ vigilante pero en la esquina del olvido”). Por meio desse recurso, o narrador consegue comunicar a seu leitor a singularidade daquela personagem e daquela situação, além de intensificar o efeito do fantástico na narrativa através de expressões que aproximam ideias aparentemente contraditórias. Após passar vários dias nesse lugar delirante, Branly consegue, finalmente, escapar. Contudo, ele o faz sozinho, pois não encontrou mais o menino Víctor, que desaparece juntamente com seu homônimo Víctor e o filho deste, André. Apreensivo, o protagonista volta ao México com o intuito de encontrar Hugo Heredia e obter respostas sobre tudo o que acabara de viver. Ao encontrar Heredia, Branly descobre então que o antropólogo mexicano e o Víctor francês já se conheciam muito antes de tudo isso ocorrer e que tudo o que Branly havia presenciado fazia parte de um pacto entre ambos, que consistia em entregar o menino Víctor ao Víctor francês para que este tentasse resgatar do passado a esposa e o outro filho de Hugo, ambos mortos durante um acidente de avião, como mencionado anteriormente. Como bem observa Ordiz, esse texto de Fuentes apresenta um diferencial, pois a personagem que vive a experiência insólita consegue sair desse mundo para contar a alguém o que presenciou: A diferencia de lo que sucedía con Felipe Montero, el 'héroe' va a salir de ese mundo y va a trasmitir lo que ha vivido al exterior, en este caso al novelista Carlos Fuentes quien, a su vez, lo referirá en forma de novela a un público más extenso y anónimo” (ORDIZ, 2005, p. 108). Ao terminar de contar a sua experiência a Fuentes, Branly delega a ele a missão de passar adiante a sua história, o que faz com que o amigo passe de ouvinte a narrador, entrando, portanto, no jogo narrativo proposto por Branly. Curioso e intrigado com tudo o que acabara de ouvir, a personagem Fuentes se despede de Branly e, posteriormente, depara-se com Lucie, a mesma mulher a qual Branly havia descrito. Perplexo, Fuentes percebe que ela já o conhecia: “Esto es el rostro de Lucie. La mujer grita también cuando la descubro; primero su grito es de miedo; en seguida de dolor 53 [...] Mi Lucie me lo dices [...], estás envejeciendo rápidamente, Carlos; no eres de aquí, nunca más serás de allá [...]” (FUENTES, 1991, p. 209-210). Mais adiante a revelação final a Fuentes, ele descobre sua verdadeira identidade: “[...] la voz junto a mí me dice al oído, no quiénes son ellos, sino quién soy soy. – Heredia. Tú eres Heredia”. (FUENTES, 1991, p. 213214). Altamente ficcional, Una familia lejana apresenta um intrincado jogo narrativo que consegue envolver seu ouvinte-leitor por meio de diversos artifícios estruturais, entre os quais está o fato de haver uma rotatividade entre narradores e personagens, com a finalidade de demonstrar a circularidade do relato e possibilitar que o leitor faça parte dele, como demonstrado no seguinte esquema: Branly: Caracteriza-se como personagem e vivencia a experiência insólita Assume o papel de narrador e conta a Fuentes o que presenciou Fuentes: Ouvinte: ouve a história de Branly Torna-se personagem ao também vivenciar a experiência insólita Assume o papel de narrador e conta a seu leitor o que Branly e ele viveram Leitor: Por meio dos escritos de Fuentes, torna-se leitor-ouvinte e tem acesso ao que ele e Branly presenciaram ? Por meio do esquema acima, verifica-se que tanto Branly quanto Fuentes cumprem a missão de passar adiante a história, relegando ao seu leitor a tarefa de dar continuidade a esse ciclo narrativo, como se ele também fizesse, assim como a personagem Fuentes, parte dessa familia lejana, como sugerido nas seguintes palavras do autor mexicano sobre a narrativa em questão: “la novela donde yo me hago las preguntas sobre qué es para mí escribir novelas y llego a una conclusión, y es que la novela no termina nunca. La narración tiene que ser pasada 54 inmediatamente a otras manos, es su destino”38. Do ponto de vista do fantástico, podemos encontrar diversos aspectos nessa narrativa que remetem ao gênero e estabelecem diálogos com as demais narrativas fantásticas de Carlos Fuentes analisadas anteriormente: o casarão lúgubre e antigo, onde Branly tem contato com personagens misteriosas e vive toda a experiência insólita narrada; a sugestão da existência de duplos explicitada principalmente pela presença personagens homônimas; o protagonismo da personagem feminina também ganha destaque, uma vez que Lucie consegue transitar entre os diversos universos e descortina outras possibilidades de compreensão da realidade para as demais personagens; o desenlace aberto e inesperado da trama, que amplia o sentimento do fantástico no leitor por meio da aparição da personagem ficcional Lucie na “realidade” de Fuentes, o que desencadeia o efeito de invasão da ficção na realidade, havendo, assim, o apagamento de fronteiras entre esses dois universos. 2.7 CONSTANCIA Y OTRAS NOVELAS PARA VÍRGENES ¿Cuánto tiempo estuviste, Constancia, llevándoles vida – mi vida – a tus muertos? No importa. Yo estoy vivo ahora. Tú estás donde quieres estar. Dales consuelo a tus muertos. Sólo te tienen a ti. (Fragmento de Constancia, FUENTES, 1991, p. 75). Publicada em 1990, Constancia y otras novelas para vírgenes é a quarta obra que compõe o ciclo “El mal del tiempo”. Com um total de cinco novelas curtas, Carlos Fuentes faz a seguinte consideração sobre essa publicação: “En estas historias me propuse darle a la ficción el valor de hacer visible lo invisible, predecir la ausencia y apostar a que, en la novela, es más importante lo que se ignora que lo que se sabe”39; ou seja, o autor mexicano privilegia 38 Entrevista concedida a Julio Ortega. In: HERNÁNDEZ, Jorge (comp.). Carlos Fuentes: territorios del tiempo (antología de entrevistas). México: FCE, 1999, p. 222. 39 Citação retirada do site pessoal do autor: http://www.clubcultura.com/clubliteratura/clubescritores/carlosfuentes/4consta.htm. Acesso em: 15 de janeiro de 2011. 55 nessa publicação realidades ocultas, personagens que foram relegadas ao esquecimento, ao segundo plano. 2.7.1 CONSTANCIA Relato que abre o volume e foco deste estudo, Constancia traz um narrador em 1ª pessoa, Whitby Hull, médico americano de 69 anos casado com Constancia, uma andaluza de 62 anos. Ele expõe a experiência sobrenatural que viveu, após vários anos ao lado de sua esposa. Hull conta que ela, ao chegar aos Estados Unidos após o casamento, nunca travou amizade com ninguém, fato que jamais o incomodou. Isso começa a mudar após Plotnikov, ator russo exilado nos EUA, despedir-se do médico americano, afirmando ser aquele o dia de sua própria morte: “¿Murió el señor Plotnikov, tal y como me lo anunció, y si así fue, coincidió su muerte con el juego de luces en su casa y con la muerte pasajera de Constancia?” (FUENTES, 1991, p. 29). Somado a isso, Constancia desaparece repentinamente no mesmo dia. Intrigado, Hull percebe-se diante de um enigma, que buscará solucionar racionalmente. No entanto, a cada resposta encontrada, ele descobre novas perguntas, como em uma espécie de quebra-cabeça. Até que, movido pela curiosidade, o médico decide entrar na casa de Plotnikov e, por meio de fotografias e outros objetos, ele acaba descobrindo que Constancia e seu vizinho haviam sido casados, tiveram um filho inclusive e que todos parecem ter sido mortos durante a ditadura de Francisco Franco na Espanha. Analisando essa narrativa de acordo com as teorias do fantástico, verifica-se que diversos elementos sugerem o sobrenatural: a caracterização polarizada das personagens (razão-sentidos), a ambientação dos espaços, a construção discursiva ambígua, metáforas que se literalizam, a presença de um narrador em primeira pessoa, etc. Há um destaque também, como em outras narrativas do autor mexicano, para a personagem feminina, crucial na medida em que é ela quem mostra a seu esposo, médico e amante de ficção policial, que a realidade não pode ser abarcada completamente pela ciência, podendo ser bem mais surpreendente que um final de relato policial. 2.7.2 “LA DESDICHADA” Segundo texto do volume, o enredo de “La desdichada” é narrado em 1ª pessoa por duas personagens: Toño e Bernardo, dois estudantes universitários mexicanos que sonham com a 56 carreira de escritor e dividem o mesmo apartamento na Cidade do México. A história inicia-se quando Bernardo, ao passar por uma rua de comércio, se depara com uma manequim vestida de noiva na vitrine de uma loja. Surpreso com aquela imagem, ele conta a seu amigo, que decide ir vê-la e, também impressionado, acaba levando a manequim para casa. Ambos se apaixonam pela manequim, dando origem a um triângulo amoroso mesclado de ciúmes e discórdias: “Cuando Toño entró con La Desdichada en sus brazos, no pensé en darle las gracias. Esa mujer de palo se abrazaba al cuerpo de mi amigo como dicen que el Cristo de Velázquez cuelga de su cruz: con demasiada comodidad” (FUENTES, 1991, p. 85). Após vários desentendimentos entre os “três” por causa de ciúmes principalmente, ao regressar para casa certo dia, Bernardo encontra a boneca “morta”, submersa em uma banheira com água: “Allí estaba ella, en el fondo de la tina colmada de agua hirviente, despintada ya […] sumergida en un cristal de muerte […] dormida mi mujer en la vitrina de agua donde ya nadie puede verla o admirarla o desearla […]” (FUENTES, 1991, p. 117). Sobre isso, o texto não deixa clara a provável causa da morte, ele sugere duas possibilidades de interpretação: homicídio, a manequim foi morta por Toño que buscava findar a causa de tanto ciúmes e desentendimentos; suicídio, a própria manequim se matou para acabar com os constantes conflitos. Refletindo sobre essa dupla possibilidade sobre a morte da manequim, podemos pensar que também isso colabora para intensificar a dúvida e, consequentemente, fantástico na narrativa. Com a morte da boneca, que teve até velório, Bernardo vai viver com sua tia e não volta a ver Toño durante 25 anos. Passado esse tempo, após ter viajado pelo mundo inteiro como escritor, Bernardo volta à Cidade do México e, em um prostíbulo da cidade, reencontra Toño. Nesse ambiente, depois de beberem muito, em um dado momento, aproximam-se deles duas personagens fantasiadas de Pierrot e Colombina e os conduzem a outro baile, em uma universidade. Ao regressarem dessa festa, os fantasiados fazem o táxi parar em frente a uma catedral, na qual ambos entram e desaparecem. Intrigados, Bernardo e Toño descem do táxi e vão procurá-los, porém o que encontram é algo inesperado e sublime: “La Virgen con su cofia, su traje de marfil y oro y su capa de terciopelo, lloraba mirando a su hijo muerto tendido sobre el regazo materno” (FUENTES, 1991, p. 117). A descrição física dessa figura santa e materna é a seguinte: Su escultor le dio un rostro de facciones clásicas, nariz recta y ojos separados, lánguidos, entreabiertos, y una boca tiesa y pintada en forma de 57 alamar […]. En la mano izquierda, le falta el dedo anular. Sus parpados alargados, como de saurio, nos miran entrecerrados, nos miran a Toño y a mí como si fuésemos muñecos inanimados […]. Como si un gran mal le hubiese ocurrido en otro tiempo (FUENTES, 1991, p. 126, grifo no original). Características estas já conferidas anteriormente pelos narradores à boneca, inclusive com as mesmas palavras: Su escultor le dio un rostro de facciones clásicas, nariz recta y ojos separados, menos redondos que los de los maniquíes comunes y corrientes, que parecen caricaturas, sobre todo por la insistencia en pintarles pestañas en abanico (FUENTES, 1991, p. 101). Com essas palavras, é possível inferir que a figura angelical vista na igreja pelos amigos é a manequim, só que em outro “corpo”, reencarnada dessa vez como uma santa, uma Virgem; ou seja, sua morte por afogamento, como em uma espécie de batismo, a purificou de todos os seus pecados. Perante essa presença, Bernardo e Toño são caracterizados como “muñecos inanimados”, dando a entender, portanto, uma provável inversão de papéis entre as personagens ao salientar a ideia de que eles são os manequins manipuláveis e que a boneca está mais viva do nunca, ainda que não parecesse. Portanto, o estranhamento do leitor ao ler essa narrativa ocorre mediante o comportamento dos universitários em relação à manequim, que parece ganhar vida, pois ela é descrita, desde o início, como uma mulher de fato: “La Desdichada pasó muy mala noche. Se quejó espantosamente. Había que estar muy atento para darse cuenta” (FUENTES, 1991, p. 103). Personagem feminina que, como visto em outras narrativas de Carlos Fuentes, é a responsável direta pela transformação da vida dos protagonistas, personagens, em sua maioria, céticos que se vêem confrontados com o sobrenatural. Cremos que essa narrativa de Carlos Fuentes remonta em grande medida a dois textos fantásticos do século XIX: “O homem de areia”, de E. T. A. Hoffmann, e “A Vênus de Ille”, de Prosper Mérimée 40 . Comparando a narrativa do primeiro autor citado com a de Fuentes, pode-se destacar a paixão irracional dos protagonistas por uma “mulher-autômato-boneca”. No conto de Hoffmann, Natanael se apaixona perdidamente por Olympia, não percebendo, inclusive, que ela não era uma mulher de fato e sim um autômato. No texto de Carlos Fuentes, Bernardo e Toño também se apaixonam por uma boneca, no entanto eles não foram 40 Contos de 1815 e 1837 respectivamente. 58 enganados como o protagonista da narrativa de Hoffmann. Os amigos universitários sabem desde o início da condição de ser inanimado da manequim, o que torna a história ainda mais insólita. Em relação ao conto de Mérimée, a intertextualidade ocorre justamente pela presença da “manequim-estátua” e o destaque para seu dedo anelar. No conto de Mérimee, a estátua de Vênus “apaixona-se” por Alphonse e passa a considerá-lo como “noivo”, depois que ele coloca seu anel de casamento no dedo da estátua. No texto de Fuentes, a manequim não tem o dedo anular, “me preguntó por qué le faltaba el dedo. Le dije que no sabía. Insistió, como si La Desdichada anduviera mocha por mi culpa [...]” (FUENTES, 1991, p. 87-88), mas nem por isso ela deixa de almejar um noivo, como sugerido por sua primeira vestimenta: “Era una mujer vestida de novia […] esta mujer llamó mi atención porque su vestido era antiguo, abotonado a todo lo alto de la garganta” (FUENTES, 1991, p. 82). Em síntese, em “La Desdichada” podemos encontrar a reiteração de diversos aspectos presentes em narrativas anteriores de Carlos Fuentes: a personagem feminina como protagonista e relacionada ao sobrenatural, a presença de diversas formas de duplos, seja na narração (Bernardo e Toño), seja na sugestão de ser a manequim a mesma personagem da igreja. O fato de “La Desdichada” “ganhar vida” também chama a atenção ao retomar a temática de “Chac Mool” e de diversos outros textos fantásticos. 2.7.3 “EL PRISIONERO DE LAS LOMAS” A terceira narrativa da obra chama-se “El prisionero de Las Lomas” e tem narração em 1ª pessoa. Nicolás Sarmiento é o narrador-personagem que conta, por meio de seu sistema de telefonia, como conseguiu “herdar” do general Prisciliano Neves, uma bela e espaçosa casa em Chapultepec e como sua vida mudou depois que conheceu a personagem Eulalia, “Lala”. Nicolás é um excêntrico advogado mexicano que jamais sai de sua casa, porque, segundo ele, o sistema de telefonia que possui lhe permite realizar todas as suas tarefas por telefone: “En mi despacho de Las Lomas tengo un banco de cerca de cincuenta y siete líneas de teléfono directas. Todo lo que necesito a la mano: notarios, expertos en patentes y burócratas amigos” (FUENTES, 1991, p. 140). Junto a esse sistema, ele usufrui também de uma gama de criados e amantes, pessoas que ele trata como sendo mercadorias: Desde que heredé la casa, llevo una lista de exacta de amantes y criados. La primera ya es larguita, pero no tanto como la de Don Juan; además es 59 bastante individualizada. La de los criados, en cambio, trato de presentarla seriamente con estadísticas. De esa manera, tengo a la mano una especie de cuadro sociológico muy interesante [...] (FUENTES, 1991, p. 145). Personagem que valoriza somente o lado utilitário das coisas e das pessoas, Nicolás tem, pouco a pouco, sua vida modificada pela presença de Lala, uma figura sensual e cheia de mistérios por quem ele se apaixona: ¿De dónde venías, quiénes eran tus padres, quién eras tú? Nunca quise saberlo. […] Sentí que parte de mi conquista de Lala consistía en no preguntarle nada, que lo nuevo de estos personajes nuevos de México nuevo era que no tenían pasado, o si lo tenían era en otra época, en otra encarnación [...] (FUENTES, 1991, p. 147-148). Após uma das festas que Nicolás realizava em sua casa, Lala é encontrada morta na piscina, assassinada por um golpe de faca, e Dimas Palmero, um dos empregados, acaba sendo acusado pelo crime. Revoltados com tal acusação, os demais empregados da casa, até então “invisibles”, se confessam irmãos de Dimas e de Lala, e aprisionam Nicolás dentro da mansão, da qual, segundo eles, o narrador somente sairia depois que Dimas fosse liberto de seu cárcere. Diante disso, Nicolás não se sente muito incomodado com a imposição de seus empregados, porque, antes de tudo isso, ele já não saía de casa: “Yo ya era el prisionero de Las Lomas desde antes de que ocurriera todo esto, era el preso de mis propios hábitos, de mi comodidad, de mis negocios fáciles, de mis amores facilísimos” (FUENTES, 1991, p. 166). O que começa a deixá-lo intrigado realmente é a presença cada mais crescente de campesinos em seu jardim: Jardín era el sitio de una romería. El olor a fritanga se imponía al de mierda y eucalipto; humo de braseros, chillidos de niños, tañer de guitarras clic de canicas, dos gendarmes enamorando a las muchachas de trenzas y delantal a través de la reja garigoleada de mi mansión (FUENTES, 1991, p. 159). Ao observar essa movimentação e sem poder fazer nada a respeito, o narradorpersonagem percebe que entre aquelas pessoas estava Lala: “La vi. Les digo que ayer la vi, en el jardín” (FUENTES, 1991, p. 165). Essa afirmação causa dúvida e estranhamento no leitor, pois como Lala poderia estar no jardim se ela havia morrido. Após essa visão, a narrativa desencadeia para uma mistura de realidade e onirismo, pois o narrador-personagem relata a presença frequente de Lala no jardim, o que deixa o leitor ainda mais imerso nas incertezas: Vi a Lala esa tarde en mi jardín, cuando no era nadie, cuando era otra, cuando miraba con ensoñación hacia una barranca. Cuando era virgen. La vi y me di cuenta de que tenía un pasado y de que yo la amaba. De manera que ésta era su gente. De manera que esto era todo lo que quedaba de ella, su 60 familia, su gente, su tierra, su nostalgia (FUENTES, 1991, p. 170). Por tudo isso, Nicolás descobre as origens de sua antiga amante e percebe que Lala tinha, de fato, parentesco com aquelas pessoas que estavam em seu jardim. Lala pertencia a aquele povo, que parecia querer cobrar o “mal” que o narrador-personagem lhes fizera. Comparando-se aos campesinos, o narrador-personagem argumenta que o diferencial entre eles é que ele possuía a informação, enquanto os campesinos, a memória. Informação da qual Nicolás sempre fez uso para obter tudo o que tinha, principalmente a casa, da qual, ele salienta, não abriria mão por nada, nem mesmo em troca de sua liberdade: “Prefería quedarme con ellos y dejar a Dimas en la cárcel, que declararme culpable o colgarle el crimen a otro. Ellos entendieron” (FUENTES, 1991, p. 176). Terminado de relatar a sua história por meio de seu sistema de telefonia, Nicolás fala diretamente a seus “ouvintes”, convidando-os a refletir sobre o que ouviram: ¿Era yo, al cabo, el que ganaba, o el que perdía? Eso se lo dejo a ustedes que lo decidan. Ustedes, a través de mis líneas telefónicas, han escuchado todo lo que llevo dicho […] Mi memoria y mi información son suyas. Tienen derecho a la crítica y también a proseguir la historia, voltearla como un tapiz y tejer de nuevo la trama […] Pero, de todos modos, apuesto que no sabrán qué hacer con lo que saben (FUENTES, 1991, p. 178). Nesse aspecto, “El prisionero de Las Lomas” remete a Una família lejana se considerarmos que os protagonistas contam diretamente a seus destinatários a experiência insólita que viveram, deixando a critérios destes o completar e repassar a história adiante. Há outra semelhança entre “El prisionero de Las Lomas” e outra narrativa de Fuentes, a novela Constancia. Os narradores-personagens de ambos os textos assumem atitudes parecidas, jamais se interessam em conhecer a origem e o passado das mulheres por quem se apaixonaram, fazendo com que o impacto diante da “verdade” ignorada seja maior. Em relação ao fantástico, existem características, nessa narrativa, que remetem ao gênero: a polarização das personagens que pertencem a realidades distintas, o que intensifica o fantástico; a presença de uma mulher sensual e misteriosa, que muda a vida do protagonista, descortinando para ele outra realidade; a ambiguidade do relato do narrador-personagem, que sempre deixa o leitor na dúvida se os fatos narrados pertencem à ordem da realidade ou do sonho/alucinação; a importância da casa na narrativa, lugar que se caracteriza como sendo um ambiente que gera embates entre o narrador e os campesinos. Vale ressaltar ainda que a 61 presença desses campesinos denota a manifestação de um passado indígena na atualidade que cobra o que lhes foi tirado, a terra: “haciendo caso omiso a propriedad privada, reclamando sus derechos a la diversión [...]” (FUENTES, 1991, p. 179). Para concluir, acreditamos que, com essa narrativa, Carlos Fuentes demonstra uma visão desencantada em relação ao México pós-Revolução de 1910, como já exposta anteriormente em La muerte de Artemio Cruz (1962) e outros textos. Em “El prisionero de las Lomas”, o autor propõe uma reflexão sobre os métodos utilizados por muitos mexicanos, nesse período, para ascender à classe média, em que ações como chantagear e trapacear pessoas faziam parte das regras do jogo. 2.7.4 “VIVA MI FAMA” Na quarta narrativa do volume, Carlos Fuentes dialoga com a obra e a vida do pintor espanhol Francisco de Goya. Com foco em 3ª pessoa e ambientado em Madrid, o enredo está centrado em quatro personagens: Rubén Oliva e Pedro Romero (ambos toureiros), Elisia Rodríguez (atriz) e Francisco de Goya (pintor). A primeira parte da narrativa está focada na vida de Rubén Oliva, um toureiro desiludido com sua profissão e com seu casamento por causa de excessivas cobranças de Rocío, sua esposa. Por isso, ele resolve sair de casa e acaba encontra, “por acaso”, uma mulher enigmática, pela qual ele se sente atraído, embora ela não tivesse sua face revelada com nitidez num primeiro momento. Ao ser questionada por Rubén sobre seu rosto ofuscado, ela responde: “Hombre, no importa, ni cómo soy, ni cómo me llamo” (FUENTES, 1991, p. 193). Envolvido por ela e por seu mistério, Rubén acaba acompanhando-a até sua casa, onde eles se relacionam. Com essa mulher, Rubén se sente feliz e satisfeito: “Parecía un matrimonio arreglado en el cielo” (FUENTES, 1991, p. 193). Nesse ponto, chamamos a atenção para a construção de toda essa cena que evidencia pistas que levarão ao fantástico: a maneira “casual” como eles se encontram, a caracterização dessa personagem feminina com o rosto ofuscado, o fato de ela afirmar já conhecê-lo, apesar de ele não saber de onde, “Yo sí te conocía desde antes. Yo sí que te escogí por ser tú, no por ser un desconocido” (FUENTES, 1991, p. 196), além da ideia do casamento arranjado pelos céus, ou seja, algo que foge ao racional, algo pertencente à ordem do divino, do sobrenatural. 62 No momento em que ela profere a frase acima, dizendo que já o conhecia, o insólito ocorre diante dos olhos de Rubén: [...] las puertas del armario se abrieron con un golpe cardíaco, dos manos poderosas, manchadas, escurriendo colores de los dedos [...], saltó sobre el lecho del amor [...], agarró entre sus manazas el rostro de la mujer sin hacer el menor caso de Rubén Oliva, con los dedo embadurnó el rostro de la amante [...] esos dedos ágiles e irrespetuosos borraban o añadían, figuraban o desfiguraban, [...], semejante arte, y furia incomparable, trazaba el rostro sin facciones de la mujer [...] (FUENTES, 1991, p. 196). Assombrado por essa cena inverossímil, Rubén, ao olhar mais atentamente para o invasor, percebe que aquele homem não tinha cabeça. Pela descrição dada, podemos pensar que esse homem sem cabeça é um pintor, Goya, pela maneira como ele “pinta” o rosto borrado da mulher, dando-a nova feição com seus pincéis e tintas. Na sequência, o pintor se apossa do discurso e começa a contar a história de Elisia Rodríguez, dando a entender ser este o nome da mulher com quem Rubén estava. Segundo o narrador, Elisia já estava casada quando se deixou seduzir por um jovem padre, que promete ensiná-la a ler e a escrever peças de teatro e poesia em troca de seu amor. Como o jovem sacerdote não poderia casar-se por causa de seu ofício religioso, os amantes decidem que Elisia se casaria com o tio do rapaz, o que a manteria na família. Contudo, o tio começa a reclamar sua posição de marido, exigindo que Elisia cumprisse suas obrigações de esposa. Pressionada e cada vez mais apaixonada pela arte do teatro, ela os abandona e decide ir para Madrid, onde pretende lançar-se como atriz. Na cidade espanhola, Elisia alcança a fama por causa de sua maneira de atuar, que consistia em abrir mão de textos decorados e improvisar no palco, “fue la primera que mandó al diablo los textos y dijo a la gente lo que les interesa soy yo [...] (FUENTES, 1991, p. 201). À continuação, o narrador direciona o olhar do leitor para outra personagem, Pedro Romero, toureiro, assim como Rubén Oliva. Pedro é apresentado como um homem que se orgulha de nunca ter sido ferido por um touro, apesar dos muitos anos de profissão: “El torero sí que debe ser penetrado por el toro para perder su virginidad de macho, y esto a él no le había ocurrido nunca” (FUENTES, 1991, p. 205). Porém, ele sente uma insegurança em sua profissão e, durante uma de suas preparações para entrar na arena, Pedro estava especialmente nervoso e decide ser aquela sua última apresentação, deixaria a profissão tão logo acabasse o espetáculo. 63 Essas parecem ser três histórias independentes, contudo o leitor percebe que estão interligadas e que as personagens se relacionam entre si à medida que ele avança em sua leitura. Rubén Oliva é o amante da mulher de rosto borrado que, posteriormente, descobrimos ser a própria Elisia Rodríguez. Esta, por sua vez, teve um romance intenso com Pedro Romero, que, ao final, parece ser uma espécie de duplo de Rubén Oliva, porque sugere-se que ambos morrem no momento em que este é golpeado por um touro. A personagem de Francisco de Goya é quem interliga e relaciona as três histórias. O pintor atua de maneira decisiva, pois consegue manipular, por meio de suas pinturas, a vida dessas personagens, decidindo literalmente sobre o rosto que elas vão ter, como no caso de Elisia: Le tomo la cara a La Privada (Elisia) se la pinto y se la despinto, la hago y la destruyo, ése es mi poder, pero este hombre, a este hombre, no lo puedo tocar, porque es idéntico a su retrato, no hay nada que pintar, no hay nada que añadir [...] (FUENTES, 1991, p. 268). E igualmente Goya decide sobre até quando elas vão viver: Ay mi rival, ay Pedro Romero, cómo creíste que ibas a existir fuera de mi retrato [...], en el instante en que Pedro Romero empezó a morirse por su primera vez en un redondel, el mismo donde mató a su primer toro (FUENTES, 1991, p. 277). O fantástico emerge por meio desse jogo que extingue as fronteiras entre a realidade e ficção na diegese. O artista/pintor atua como um “deus” dentro de seu universo de representações, julgando o futuro de suas personagens-criaturas e transformando suas realidades de acordo com o que ele crê ser mais adequado para a arte. Podemos pensar ainda na questão dos duplos, bem como na personagem feminina, que surpreende ao se revelar integralmente. Dessa maneira, com essa narrativa, Fuentes propõe a reflexão sobre algumas formas de arte, de representação (teatro, toureio, pintura e literatura) e discute em que medida “o que é mais real, o assunto de uma obra de arte ou a obra de arte em si?” 41. 2.7.5 “GENTE DE RAZÓN” Dividida em três partes, “Obras”, “Milagros” e “Amores” respectivamente, o enredo do quinto e último relato de Constancia y otras novelas para vírgenes gira em torno de duas personagens: os irmãos gêmeos mexicanos Carlos María e José María Vélez, o narrador41 Tradução nossa do original: “Which is more real, the subject of a work of art or the work of art itself?”. Trecho retirado da resenha sobre a obra feita por Publishers Weekly, [1990?]. Texto encontrado no site pessoal do escritor: http://www.clubcultura.com/clubliteratura/clubescritores/carlosfuentes/4consta.htm. 64 personagem da história. A primeira parte intitulada “Obras” está relacionada a construções, por serem formados em arquiteturas, os irmãos são encarregados, pelo professor Santiago Ferguson, de restaurar edifícios históricos e construir um jardim entre esquinas de grandes avenidas do centro da Cidade do México: Formalmente nuestro trabajo sería crear el jardín, el espacio verde, y que nuestra contribución a la campaña contra el enfisema urbano sería no fumar, cierto, pero también proteger cuanto vestigio de la cristalina ciudad de antaño saliera ileso de la picota burocrática o comercial (FUENTES, 1991, p. 300). Aceito o trabalho, os irmãos vão até o local das obras, onde se deparam com o desentendimento entre operários e engenheiros em relação ao calendário, pois aqueles não queriam trabalhar em feriado santo por julgarem ser isso um “pecado”: “Nosotros teníamos que observar los días oficiales (el nacimiento de Juárez, la nacionalización del petróleo), ellos [operarios] querían guardar los días santos (el Jueves de Corpus, la cruz de mayo, la Ascención de la Virgen) [...]” (FUENTES, 1991, p. 302). Essa religiosidade ganha força no momento em que um dos operários fica “cego” e aparecem feridas em suas mãos. Isso faz com que os demais colegas pensem ser aquilo uma espécie de castigo dos céus por eles realizarem escavações em um solo sagrado, pois, segundo eles, embaixo daquele monte de terra e escombros havia algo sagrado. Somado a isso, aparece a mãe de um dos operários, a costureira Heredad Mateos, que diz que naquele lugar está a esposa e o filho de Deus. Nem os engenheiros e nem os irmãos arquitetos dão crédito para a argumentação dos operários e da costureira, mas, receosos de que ali pudesse se transformar em um ponto de peregrinação, eles decidem manter a mulher presa, para que ela não contasse nada a ninguém. A percepção de realidade dos irmãos começa a mudar a partir do momento em que eles recebem sinais inexplicáveis, como a aparição, na obra, de um menino misterioso que desaparece sem deixar vestígios. Diante disso, o narrador procura racionalizar tais eventos e lança mão de humor para isso: Líbranos de toda tentación. No íbamos a caer, a estas alturas, en las del milagro. Podíamos, con ironía cervantesca, admitir, a lo sumo, la célebre explicación de los milagros que don Quijote le hace a Sancho: ‘Son cosas que ocurren rara vez...’ De lo contrario, serían la norma, no la excepción. Bendito Quijote, que a tus hijos nos salvas de todos los apuros de la contradicción [...] (FUENTES, 1991, p. 307). 65 Verifica-se que, no breve fragmento acima, o narrador-personagem menciona uma das características do fantástico, o sobrenatural que surge excepcionalmente, pois do contrário seria maravilhoso. Outro dado que nos chama a atenção é o fato de ele recorrer ao Quixote, uma figura sabidamente imaginativa, que não conseguiu distinguir as fronteiras entre realidade e ficção, após ler vários textos literários. Na segunda parte da narrativa ocorre o “milagre”, por isso o nome “Milagros”, pois os irmãos céticos se percebem envoltos num mistério e começam a se questionar se realmente não existiria algo sobrenatural no subterrâneo da cidade. Com o intuito de esclarecer essa dúvida, Carlos María decide procurar, separadamente, pela costureira Heredad, enquanto seu irmão (o narrador) é conduzido por um estranho cachorro a uma porta que levava a parte subterrânea da construção. Nesse ambiente, José María encontra outro universo, o México submergido. Ele encontra também diferentes mulheres, todas freiras, cada uma delas ferida uma maneira porque, segundo elas, se recusaram a manter relações sexuais com alguém no passado. Entre elas está o mesmo menino que havia aparecido anteriormente, chamado entre elas de Jesus, e a sua mãe. Imerso naquele universo completamente desconhecido e alucinante, o narrador acaba sendo induzido a manter relações sexuais com essa última mulher com a finalidade de engravidá-la, pois, segundo ela, essa criança a ser gerada substituiria o menino Jesus, depois que este fosse sacrificado. Cumprida a missão, o cachorro guia o narrador de volta à superfície, e, enquanto isso ocorre, o narrador-personagem tem a plena consciência de que se esquecerá de tudo o que viveu, exceto do cachorro, tão logo ele regressasse à realidade. Na parte chamada de “Amores”, temos a morte do professor Santiago e a descoberta de que a filha desta personagem, Catarina, era irmã dos protagonistas. Decepcionados, porque eles nutriam certa paixão por ela, eles afirmam: “Perdimos en ese instante la posibilidad de la pareja, pero ganamos, dejando atrás la multitud de los fantasmas, a la trinidad fraterna. Carlos María, José María, Catarina” (FUENTES, 1991, p. 378). Com um desenlace complexo e ambíguo, a narrativa termina com o nascimento do menino Jesus, que é levado por Heredad, a costureira, a pedir esmolas num bairro nobre da Cidade do México, Las Lomas de Chapultepec. Enquanto ela caminha com a criança dentro de uma bolsa, Heredad sonha em viver em outra cidade, “una ciudad limpia, en cuyas casas pueden reunirse vivos con los muertos, una ciudad […] con fe donde podían ocurrir milagros, 66 aunque la gente de razón nunca los entendiera” (FUENTES, 1991, p. 380). Nas últimas linhas do texto, o narrador foca seu olhar no menino Jesus e o descreve: “en muñeco de hulespuma con sus rizos dorados y sus ojos azules y su ropón blanco con filete dorado y sus dedos sangrantes” (FUENTES, 19991, p. 380). Essa última informação favorece a intensificação da ambiguidade no relato ao revelar que o menino era, na verdade, um boneco e que, apesar disso, sangrava pelos dedos. Em “Gente de razón”, portanto, temos um enredo complexo e intrigante, em que o fantástico é instaurado lentamente por meio da caracterização das personagens (“gente de razón” e gente de fé), o protagonismo das personagens femininas que, mais uma vez, encarnam o sobrenatural, a presença de seres fantásticos, incluindo a menção ao menino Jesus, personagem que nasce anualmente e que, como evidencia o final, parece ser um boneco, tal como a manequim de “La desdichada”. Nessa narrativa, Carlos Fuentes delineia diante de seu leitor um mosaico de realidades sobrenaturais construídas por meio da palavra. 2.8 INSTINTO DE INEZ Sólo que esta noche habrá apariciones en tu sueño que nunca antes habrás soñado. Una voz te dirá: Volverás a ser. (Fragmento de Instinto de Inez, FUENTES, 2008, p. 453). Publicada em 2001 e dividida em nove capítulos, Instinto de Inez é a quinta e última narrativa inscrita por Carlos Fuentes no ciclo “El mal del tiempo”42. O enredo desse texto é composto por duas histórias paralelas, ambientadas em tempos distintos que representam diferentes universos: pré-história/sonho e século XX/realidade. Os protagonistas são Inez Prada e Gabriel Atlan-Ferrara. Ela é mexicana e cantora de ópera, e ele, francês e maestro de orquestra. Inez é a figura que consegue transitar por esses dois tempos-universos através de sonhos, os quais ocorrem pela primeira vez logo depois que ela conhece Gabriel em Londres, onde estavam para apresentar o espetáculo “La Damnation de Faust”, de Hector Berlioz. O narrador relata que, após um ensaio para esse espetáculo, ambos se encontram em uma rua londrina e seguem viagem rumo à casa de Gabriel no litoral, onde buscam estreitar 42 Segundo o site oficial de Carlos Fuentes, haveria uma última obra, La hueste inquieta, que faria parte do ciclo. Porém ela ainda estava em processo quando o autor veio a falecer, em maio deste ano. 67 laços. Gabriel tenta manter relações com Inez, porém ela o rechaça, ainda era virgem, justifica, e, além disso, estava impressionada com a beleza de um amigo dele, retratado em uma fotografia que estava na casa: “La fotografía de Gabriel muy joven, adolescente o quizás veinte años, abrazado a un muchacho exactamente opuesto a él, sumamente rubio, sonriendo abiertamente, sin enigma” (FUENTES, 2008, p. 435). Durante passeio na praia, Inez oferece um “sello de cristal” a Gabriel, objeto este que ela havia encontrado no sótão da casa dele. Após algum tempo de conversa, o maestro francês acaba indo embora inesperadamente, porém Inez sente-se impelida a ficar naquele lugar. Ao regressar para a casa, ela ouve ruídos estranhos na escada, deita-se sobre dois tamboretes, “tan rígida como un cadáver”, coloca as fotos dos amigos sobre o peito e percebe que a imagem do jovem loiro da fotografia havia desaparecido: [...] El joven bello y rubio había desaparecido de la foto. Ya no estaba allí” (FUENTES, 2008, p. 446). Naquela posição, Inez coloca outros dois selos de cristal sobre suas pálpebras e imerge em sonhos que a levarão para outros tempos, tempos iniciais, tempos primitivos. A partir disso, a narrativa alterna capítulos de realidade e de sonho, até o momento que acontece a fusão entre ambos. Por um lado, a realidade corresponde ao século XX e narra os encontros e desencontros entre a cantora mexicana e o maestro francês. Por outro, o sonho de Inez relaciona-se à pré-história, período da gênese humana, no qual ela entra sem nem saber como chegou, afirma o narrador (FUENTES, 2008, p. 447). A narrativa intercala esses dois universos de maneira a ora mostrar a relação profissional e amorosa de Inez e Gabriel, ora apresentar a vida de Inez na pré-história. Essa oscilação se reflete no foco narrativo do texto, ou seja, quando se refere aos eventos do século XX, o narrador fala, na maioria das vezes, na 3ª pessoa do singular e no pretérito (perfeito e imperfeito): “Le dio miedo el espectáculo” e “Le daba miedo emprender el camino” (FUENTES, 2008, p. 445). Porém, quando se trata da pré-história, ele enuncia, predominantemente, na 2ª pessoa do singular e no futuro: “Al despertar estarás trepada entre las ramas de un árbol” (FUENTES, 2008, p. 447). Essa duplicidade cria o efeito de sentido de realidade ou séc. XX como sendo um tempo passado, justamente por ser enunciado no pretérito; e, ao ser mencionado no futuro, o sonho ou pré-história se desprende do passado e se transfere para o presente-futuro, como se anunciasse o porvir, ou seja, o regresso do homem à pré-história, às suas origens, ao universo dos sonhos. E é isso o que ocorre com Inez, pois, a cada sonho, ela se aproxima mais desse universo onírico, no qual teve esposo e 68 uma filha. A criança foi vitimizada a mando do chefe da tribo onde viviam, porque ela era fruto de uma união “pecaminosa”, já que Inez e seu marido eram irmãos: “El hermano y la hermana no fornicarán juntos. [...] La descendencia pagará la culpa de los padres” (FUENTES, 2008, p. 489). Durante esse episódio, Inez, pressentindo o mal, acaba fugindo sedenta de ódio para não presenciar o assassinato de sua filha. Ao acordar desse sonho (ou pesadelo) e voltar para a realidade, a protagonista se dá conta de que estava num quarto de hotel em Londres, cidade onde faria, mais uma vez, uma apresentação de “La Damnation de Faust” com Gabriel. Nesse dia, o francês deu a ela a fotografia de anos antes, a mesma que a havia impressionado tanto por causa do belo amigo de Gabriel, o desaparecido. Antes do espetáculo, em seu camarim, Inez começa a olhar a foto e percebe que, pouco a pouco, a figura do jovem loiro vai ressurgindo diante de seus olhos: Ahora, en el camerino [...], la imagen se había completado. […] Gabriel abrazaba al muchacho rubio, esbelto, sonriente también, exactamente opuesto a él, sumamente claro, sonriendo abiertamente, sin enigma. El enigma era la reaparición lenta, casi imperceptible, del muchacho ausente, en el retrato (FUENTES, 2008, p. 499). A figura que tanto impressionara Inez voltava a ganhar forma, como se “la foto invisible se hubiese revelado, ahora, gracias a la mirada de Inez” (FUENTES, 2008, p. 500). Sem mais tempo, Inez entra no palco e pressente que algo distinto estava acontecendo, pois, apesar de cantar, ela não ouvia sua própria voz nem a dos demais presentes. Ela sentia como se algo interno a estivesse separando dela mesma. Nesse momento, aparece, no auditório, outra mulher idêntica a Inez: La mujer desnuda con la cabellera roja erizada, los ojos negros brillando de odio y venganza, [...] cargando sobre los brazos extendidos el cuerpo inmóvil de la niña, la niña color de muerte, rígida ya en manos de la mujer que la ofrecía como un sacrificio intolerable, […] la niña […] rodeada de gritos, el escándalo, la indignación del público […] (FUENTES, 2008, p. 501). Diante desse espetáculo de horror e morte, o público ser aquela uma encenação preparada por Gabriel, maestro considerado por todos como inovador. Entretanto, nem mesmo ele entendia o que estava acontecendo e muito menos o porquê de não conseguir parar de dirigir a orquestra, que continuava a tocar da mesma maneira. Ao perceber a aproximação do seu outro “eu” selvagem e primitivo, Inez Prada fecha os olhos e recebe essa figura de braços abertos, momento em que ambas se fundem em uma só e desaparecem desde então. 69 Depois que todos esvaziam o auditório, Gabriel escuta o som de uma flauta de marfim, e, ao olhar para saber quem estava tocando, percebe que era um “hombre joven, pálido, rubio, color de arena” (FUENTES, 2008, p. 502), semelhante ao seu amigo e descrito com as mesmas palavras utilizadas para mencionar o esposo de Inez na pré-história: “Él será color de arena, todo, su piel, su vello, su cabeza, un hombre pálido” (FUENTES, 2008, p. 451). Terminada essa parte do relato, a narrativa volta para seu ponto inicial e mostra o presente de Gabriel, com 93 anos. Ele acaba de chegar de uma homenagem, e contempla o seu selo de cristal, presente de Inez para ele, enquanto conversa com sua empregada. Assim que ela sai da sala, Gabriel começa a conversar com Inez e a pede ajuda para esquecer o passado. Despede-se do fantasma da cantora mexicana e vai para seu quarto, onde ele, ao olhar para sua cabeceira, vê: Uno, la flauta de marfil. Otro, la fotografía enmarcada de Inez vestida para siempre con los ropajes de la Margarita de Fausto, abrazada a un joven de torso desnudo, sumamente rubio. Los dos sonriendo abiertamente, sin enigma. Nunca más separados (FUENTES, 2008, p. 510). Trata-se da mesma flauta utilizada pelo esposo de Inez na pré-história e também no dia do desaparecimento da mexicana. A fotografia, diferentemente das outras vezes que sempre alguém estava apagado, dessa vez apresenta suas personagens nítidas e felizes, porque estavam juntas. Aliás, os temas do retorno às origens e do reencontro entre personagens pode ser observado em diversas outras narrativas de Carlos Fuentes, como em Aura e “La bella durmiente”, por exemplo. Portanto, nessa narrativa, observa-se a manifestação do fantástico de diversas maneiras, entre as quais estão o aparecimento e desaparecimento, sem explicação lógica, de personagens; a mescla entre sonho e realidade; a presença de objetos mediadores, como a fotografia, a flauta e o selo, objeto este que perpassa os tempos; a presença de fantasmas (Gabriel conversando com Inez no final), de duplos (Inez e sua sósia, realidade-sonho, préhistória-história, dois focos narrativos), bem como a manifestação do insólito através da personagem feminina. 2.9 INQUIETA COMPAÑÍA 70 Eché un vistazo a mi estancia. La costumbre irrenunciable de ver si todo está en orden antes de salir. No vemos nada porque todo está en su lugar. Salimos tranquilos. Nada está fuera de su sitio, el hábito reconforta... (Fragmento de “Vlad”, FUENTES, 2004, p. 258). Da mesma maneira como em Los días enmascarados, em Inquieta Compañía (2004), Carlos Fuentes reúne um total de seis contos que se alinham com o gênero fantástico. Todos são textos que apresentam o sobrenatural sob diferentes perspectivas, por meio, inclusive, de bruxas, fantasmas, anjos e vampiros. O autor constrói suas narrativas utilizando-se de intertextualidades, paródias, ironias, metaficções e de discursos carregados de ambiguidades. Vale salientar que, embora Inquieta Compañía não esteja relacionada pelo autor como pertencente ao ciclo “El mal del tiempo”, optamos por trazê-la para este estudo por acreditarmos ser uma obra que proporciona um interessante corpus de investigação no que diz respeito às características da escrita fantástica produzida por Carlos Fuentes mais recentemente. Além disso, objetivamos apontar alguns caminhos interpretativos sobre essa obra, uma vez que ela ainda não possui grande fortuna crítica, se comparada a publicações anteriores do autor mexicano. 2.9.1 “EL AMANTE DEL TEATRO” Dividido em três partes (“La ventana”, “El escenario” e “La flor”), “El amante del teatro” é o texto que abre o volume de contos. Na primeira parte, Lorenzo O’Shea, o narradorpersonagem mexicano de descendência anglo-irlandesa, conta um pouco sobre sua monótona vida em Londres: trabalha como editor de cinema, apesar de ser apaixonado por teatro, e, todos os dias, cumpre a mesma rotina: trabalho-teatro-casa. O’Shea relata que sua vida somente começou a mudar após avistar, de sua janela, uma mulher misteriosa no apartamento em frente ao seu. Essa imagem o deixou surpreso e obcecado e fez com que ele deixasse de desenvolver todas as suas tarefas diárias, para estar todo o tempo diante da janela, esperando por ela: “Dejé de ir al trabajo. Dejé de ir al teatro. Pasé la jornada entera frente a mi ventana abierta [...] esperando la aparición de la muchacha en su propio marco” (FUENTES, 2004, p. 17). 71 O’Shea percebe que a jovem mulher parece ser atriz, pois, todas as vezes que ele a via, ela se comportava como se estivesse ensaiando. Isso ocorria somente em determinados horários do dia e da noite, momentos em que ela aparecia na janela e “encenava” apenas para ele: “Yo había sido ya, sin sospecharlo, su cuarta pared. Y su primer espectador” (FUENTES, 2004, p. 30-31). Com isso, a situação de dependência do narrador-personagem só aumenta e chega a tal ponto que O’Shea sentia verdadeiro horror diante da possibilidade de que ela descobrisse que ele a espiava e interrompesse seus ensaios. Esse temor se concretiza quando a mulher, coroada de flores, surge na janela e dirige algumas palavras em sua direção: Acaso mi terror no era vano. Cuando me asomé de nuevo en la ventana, vi a mi amada con la cabeza coronada de flores. Caminaba acercándose y alejándose de la ventana. Cuando más cerca estuvo, vi claramente que cerraba los ojos y movía los labios, como si rezara... (FUENTES, 2004, p. 20-21). Ainda mais hipnotizado, o narrador decide que “no dormíria nunca en espera de que ella me dirigiese la mirada” (FUENTES, 2004, p. 21). Porém, após tanta vigília, ele confessa: “Debo añadir que a estas alturas una especie de razón de la sinrazón había penetrado en mi cerebro” (FUENTES, 2004, p. 21). Em um momento posterior, a mulher o encara e, para a surpresa do narrador e do leitor, ela faz algo totalmente inesperado: La miré como siempre. Pero esta vez, por vez primera, ella no sólo movió los labios. Los unió primero. Enseguida los movió en silencio y lanzó un mugido. Un mugido animal, de vaca, pero también elemental como el poderoso rumor del viento y terrible como el grito iracundo de una amante despechada [...] Su mirada, acompañada de ese mugido feroz y plañidero a un tiempo, era de abandono, era de socorro, era de locura (FUENTES, 2004, p. 23). Com o impacto desse encontro, ele fecha os olhos e, quando os abre, “la ventana de enfrente estaba cerrada, las cortinas unidas. Y el apartamento, desde ese momento, vacío. Ella se fue” (FUENTES, 2004, p. 23). Diante disso, o leitor se questiona se realmente tudo aquilo havia ocorrido ou se era apenas produto da imaginação do narrador, já tão afetada pelo sono e por medicamentos tranquilizantes que ele havia tomado. Esse encontro entre os dois e a maneira como a jovem atriz se comporta, buscando desesperadamente comunicar-se com o narrador-personagem, remetem a outra cena de outro 72 conto de Carlos Fuentes: “Tlactocatzine, del jardín de Flandes”, de Los días enmascarados. Nesta narrativa, a anciã também deseja falar com o narrador-personagem, mas somente consegue por meio de bilhetes, cartas. No momento em que ela consegue estar diante de seu amado, grita: Lo supe por revelación, porque mis ojos decían lo que el tacto no corroboraba: sus manos en las mías [...] movía sus labios en una letanía de ritmos vedados. [...] el ruido regresó, la lluvia se llenó de amplificadores, y la voz coagulada, eco de las sangres vertidas que aún transitan en cópula con la tierra, gritó: ‘¡Kapuzinergruft! ¡¡ Kapuzinergruft43!! (FUENTES, 1996, p. 44). As atitudes das personagens femininas de “Tlactocatzine” e de “El amante del teatro” indicam que tanto uma quanto outra parecem buscar restabelecer elos desfeitos no passado, amores antigos, fato que resultará no aprisionamento e na loucura dos narradorespersonagens. Na segunda parte de “El amante del teatro” (“El escenario”), O’Shea, conformado com o desaparecimento de sua amada, procura retomar sua vida normal e decide voltar ao trabalho e a frequentar o teatro. No entanto, em uma de suas idas ao teatro, ele volta a perder a tranquilidade, pois reencontra a sua amada encenando uma versão da peça de Hamlet44, em que ela interpretava a personagem Ofelia. Isso reacende a antiga obsessão do narradorpersonagem, levando-o a frequentar o teatro constantemente e, em uma das apresentações, Ofelia não segue o roteiro e olha diretamente nos olhos do narrador, o que o deixa ainda mais perturbado. Na encenação seguinte, Ofelia surge morta dentro de um rio, o que, para o narrador alucinado, consistiria em uma espécie de punição do diretor da peça por ela ter transgredido as regras anteriormente: Acompañada por las flores de la muerte [...]; Ofelia semejante a una sirena que se hunde bajo el peso del légamo... En ese instante quise saltar de mi butaca al escenario para salvar a mi amada, rescatar a Ofelia de su muerte por agua, abrazarla, besarla, devolverle su aliento fugitivo con el mío desesperado [...] Ofelia estaba muerta, ahogada. Había muerto esa noche de la representación final (FUENTES, 2004, p. 39). 43 Palavra em alemão que indica, no contexto da narrativa, a cripta imperial onde Maximiliano está enterrado. 44 Peça de teatro escrita por William Shakespeare entre 1599 e 1601. 73 Desnorteado, O’Shea sai do teatro e isso faz com que as dúvidas só aumentem, pois o leitor não consegue saber se Ofelia realmente encenava sua morte, como as atrizes que assumem o papel da personagem shakespeariana, ou se estava morta literalmente, como acreditou o narrador. Aliás, o próprio narrador afirma preferir não saber o que ocorreu de fato com Ofelia, o que aumenta as incertezas sobre os fatos: “Sentí la tentación de abrirme paso a los camerines. Me detuve a tiempo. Me arredró la idea de que Ofelia hubiese realmente muerto. [...] No quise averiguar” (FUENTES, 2004, p. 41). Buscando provar a veracidade de sua história, O’Shea fala diretamente a seus interlocutores e profere a seguinte afirmação, que, mais bem, amplia ainda mais a dúvida do leitor: No den ustedes créditos a la noticia aparecida hoy en los diarios. No es cierto que cuando Ofelia pasó flotando [...] un espectador desquiciado saltó de su butaca de primera fila al escenario para rescatar a la actriz intérprete de Ofelia de la muerte por agua [...]. Como tampoco es cierto que mientras ese loco cargaba a Ofelia ahogada [...] surgió Hamlet [...], blandiendo el puñal desnudo al trastornado extranjero [...] en la espalda [...] (FUENTES, 2004, p. 42). Ofelia e O’Shea haviam sido mortos durante a encenação da peça? Pergunta-se o leitor. A oposição entre o discurso “oficial” do jornal e o relato doentio do narrador contribui para a ampliação da dúvida do leitor, pois, caso o leitor opte pela versão do jornal, deverá considerar a possibilidade da existência de fantasmas, ou seja, O’Shea estaria morto ao contar a sua história. Na terceira e última parte do conto (“La flor”), o fantástico sustenta-se na ambiguidade do desfecho do conto, em que, mais uma vez, o narrador refuta a notícia de sua morte e afirma ter uma prova de sua experiência com Ofelia: El lector sabrá, si algún día lee estos papeles que he venido garabateando desde la noche que regresé del Royal Haymarket a mi flat [...], que subí lentamente las escaleras, entré al apartamento pero no encendí las luces [...] Tomé un pequeño florero [...] con ternura, introduje en él el tallo largo de la flor de anciano, prueba única de la existencia de Ofelia (FUENTES, 2004, p. 43). Nem mesmo suas palavras e nem mesmo essa “prova” conseguem desfazer o que o texto sugere em suas entrelinhas, isto é, que ele morreu naquele dia no teatro: “Me senté a contemplarla (flor). [...] Llevo meses mirándola” (FUENTES, 2004, p. 43-44). 74 Perante um enredo labiríntico e repleto de ambiguidade, o leitor de “El amante del teatro” percebe-se diante da complicada tarefa de tentar traçar limites que delineiem a fronteira entre o real e o ilusório dentro da ficção e metaficção de Carlos Fuentes. Da perspectiva do fantástico, existem, nessa narrativa, diversos elementos que dialogam com as demais narrativas fantásticas do autor mexicano, especialmente no que se refere ao foco narrativo em 1º pessoa, ao surgimento de uma personagem feminina que desestabiliza a vida de outro personagem, ao modo como é contraposto o discurso “oficial” e o “marginal”, gerando uma duplicidade discursiva. Outro dado fundamental está relacionado ao título do texto que também suscita ambiguidade. “El amante del teatro” faz referência tanto ao fato do narrador ser apaixonado por peças de teatro, quanto ao de que todos pensaram ser O’Shea o amante de Ofelia, diante da cena em que ele tenta resgatá-la “morta” no teatro. 2.9.2 “LA GATA DE MI MADRE” O enredo dessa segunda narrativa está em 1ª pessoa e Leticia Lizardi é a narradorapersonagem que inicia sua exposição revelando sentir verdadeiro ódio por Estrellita, a gata de estimação de sua mãe: “Lo indudable es que esta gata, cariñosamente bautizada ‘Estrellita’ por mi madre, me sacaba de quicio” (FUENTES, 2004, p. 45). Sua aversão pelo animal é tamanha que a narradora o descreve da seguinte maneira: Blanca, felpuda, [...]. Corto el rabo, cortas las patas, un auténtico monstruito, un verdadero leopardo miniaturizado, como si hubiese bajado de las nieves más lejanas para instalarse, indeseado e indeseable, en el hogar de doña Emérita Lizardi y su hija Leticia [...] (FUENTES, 2004, p. 45). No fragmento acima, é possível notar que a descrição acima da gata Estrellita agrega características ao animal não muito comuns, antecipando o desfecho insólito da trama, pois tanto os substantivos “monstruito” e “leopardo” quanto o verbo “instalarse” são tradicionalmente relacionados com o fantástico. Aversão também é o sentimento que Emérita, uma velha tirânica, demonstra por Guadalupe (Lupita, em menção à Virgem de Guadalupe), empregada da casa. Sempre estabelecendo comparações entre a gata e a empregada, a mãe da protagonista, desde o princípio da narrativa, dispensa ao animal um excessivo cuidado em contraposição ao desprezo que ela sente pela empregada, também chamada de “gata”, segundo costume depreciativo do México dos anos 1950: “Mira, huilita de pueblo (...) mi gatita es virgen, no ha 75 perdido la pureza, nunca ha parido en su vida... Tú, en cambio, ¿cuántos mocosos prietos no habrás dejado regados en cuanta casa has trabajado?” (FUENTES, 2004, p. 49). Diante de tantos insultos e humilhações de Emérita, Lupe se comporta de forma “pasiva”, “como si recibir insultos fuese parte de un patrimonio ancestral” (FUENTES, 2004, p. 49). Certo dia, Lupe desaparece da casa e Leticia se vê obrigada a auxiliar a sua mãe a ir ao banheiro, já que ela estava impossibilitada de se locomover sozinha. Diante de sua mãe, protagonista declara: “Sentí asco cuando adiviné que mi madre y su gata orinaban al mismo tiempo. Era inconfundible. Dos chorritos distintos” (FUENTES, 2004, p. 61). Essa simultaneidade de ambas ao urinar é outro dado que atua como pista e indica o porvir do sobrenatural, que ganha força no momento em que o leitor descobre que a cor dos olhos do animal e da velha é a mesma, “sus ojos idénticos a los de la gata Estrellita, uno azul y otro amarillo” (FUENTES, 2004, p. 75), dando a entender a existência de um possível duplo da mãe, como o próprio título do texto evidencia: “La gata de mi madre”. No mesmo dia do desaparecimento da empregada, haveria uma procissão dedicada à Virgem de Guadalupe na rua onde vive a protagonista com sua mãe. Muito religiosa, dona Emérita convida a filha para ver o ato religioso com ela e são surpreendidas: Avanzó la representación viva de la Virgen de Guadalupe. Mi madre pegó un grito. La mujer que representaba a la Virgen era nuestra sirvienta Lupita [...] Guadalupe [...] le sacó la lengua a mi madre y hasta le lanzó una sonora trompetilla (FUENTES, 2004, p. 68). Dona Emérita, ao presenciar a empregada travestida de divindade, algo inconcebível para ela, fica chocada e acaba morrendo com os olhos abertos. Com a morte da mãe, Leticia percebe a oportunidade de se livrar definitivamente da gata, e joga o animal pela janela que desaparece no meio da multidão. Livre da gata e da tirania de sua mãe, Leticia decide casar-se com Florencio, um rapaz que ela havia conhecido algum tempo antes. No entanto, sua felicidade dura pouco, pois ele logo começa a maltratá-la e a comportar-se de maneira estranha, como se procurasse algo na casa. Leticia, certo dia, encontra o marido arrancando o piso de toda a sala, de onde ele retira um esqueleto, que, segundo ele, era do pai da protagonista: Era un cura renegado, obligado a casarse para no ser fusilado durante la persecución de Calles. Escogió a tu madre por católica...y por rica. Doña Emérita no sabía quién era su marido. Cuando se enteró de que estaba casada 76 con un sacerdote, lo envenenó y lo enterró bajo el piso de la sala (FUENTES, 2004, p. 76-77). Após descobrir o que realmente havia acontecido com seu pai, Leticia fica sabendo ainda que tanto a empregada Lupe como seu esposo haviam sido queimados durante a Inquisição, porque eram “judíos”: “Nos acusaron y nos condenaron para expropiarnos nuestros bienes. Fuímos víctimas de la codicia eclesiástica. Esta casa. Esta vieja casa” (FUENTES, 2004, p. 79). Após essa revelação, os fantasmas de Lupe e Florencio aproveitam o momento e (re)tomam a casa de Leticia, fazendo-a prisioneira, a “gata” da casa. Segundo Florencio, a missão de Leticia consistia em: “renovarnos. Cuando te lo ordene, tú debes atarnos a la estaca en patio, juntar la leña a nuestros pies y prendernos fuego” (FUENTES, 20004, p. 83). Assim, Florencio e Lupe passam a depender de Leticia para continuarem “vivos” e, para que a protagonista não escapasse, colocam como seu carcereiro um leopardo, que tinha um olho amarelo e outro azul, da mesma maneira que a mãe e a gata Estrellita. É possível encontrar em “La gata de mi madre” similitudes com “Chac Mool”, outro texto de Carlos Fuentes. Neste conto, a divindade Chac Mool também necessita da ajuda de Filiberto para sobreviver; esse auxílio não consiste em atear-lhe fogo, mas sim em trazer-lhe água. Outra característica comum entre essas duas narrativas é que, tanto em “Chac Mool” quanto em “La gata de mi madre”, as personagens que representam o inquietante se apossam da casa dos protagonistas, ou seja, da mesma forma que Chac toma a casa de Filiberto, transformando-o, inicialmente, em uma espécie de empregado e, posteriormente, em um troféu, o casal de judeus também toma a casa de Leticia e a coloca na posição que Lupe ocupava: a de empregada. Sob a perspectiva do fantástico, além dos elementos mencionados anteriormente, “La gata de mi madre” apresenta outros aspectos, tais como construções linguísticas ambíguas (como o título do texto e a descrição da gata Estrellita, por exemplo), o emprego de elipses ao longo do texto, provocando a geração de suspense, a presença de fantasmas e personagens que apresentam duplos. 2.9.3 “LA BUENA COMPAÑÍA” O terceiro conto de Inquieta Compañía é formado por um narrador em 3ª pessoa que relata a história de Alejandro de la Guardia, um jovem mexicano “racional y metódico”, 77 radicado na França após a fuga de parte de sua família por causa da Revolução Mexicana. Alex, como ele é chamado, visando o recebimento de alguma provável herança de suas velhas tias María Serena e María Zenaida, decide voltar ao México depois da morte de sua mãe. Chegando, o que ele encontra são duas velhas que se comportam de acordo com diversas regras pouco comuns, as quais ele deve cumprir também. A primeira delas consiste em elas jamais saírem de casa e, caso saiam, nunca devem entrar na casa pela porta da frente: “Nunca entres o salgas por la puerta principal. Usa sólo la puerta trasera al lado de tu recámara [...]” (FUENTES, 2004, p. 94). Outro aspecto excepcional é o fato de elas jamais compartilharem o mesmo ambiente: “Nos dividimos la sala – dijo cabizbaja la tía María Zenaida –. Ella recibe de noche. Yo de día [...]” (FUENTES, 20004, p. 91). Por isso, para fazer companhia ao sobrinho, as tias revezam o turno entre si: Zenaida fica com o Alex durante o dia e Serena, durante a noite. A caracterização das personagens Zenaida e Serena contribui para aumentar o estranhamento do leitor. A primeira é descrita da seguinte maneira: Su pelo era completamente blanco, pero la piel permanecía fresca y perfumada. En verdad, olía a jabón de rosas. Usaba un vestido floreado [...]. Zapatos blancos con tacón bajo, como si temiese caerse de algo más elevado [...] (FUENTES, 2004, p. 91). Por outro lado, a segunda é apresentada como: Vestida de negro, con una falda tan larga como la de su hermana María Zenaida, que le cubría hasta las puntas de los botines negros. Usaba una blusa de olanes negros también, un camafeo como único adorno sobre el pecho y un sofocante negro alrededor del cuello. El rostro blanco rechazaba cualquier maquillaje: el ceño entero lo decía a voces, las frivolidades no son para mí [...] (FUENTES, 2004, p. 93). Zenaida e Serena são dispostas na narrativa de maneira a criar um efeito de sentido de oposição e/ou complementação, o que indica uma provável existência de duplo ou de metades. As irmãs atuam como guardiãs daquele espaço e da “verdadeira” história de Alex, que inicialmente julga as regras impostas pelas tias como sendo “coisas de velhas caprichosas”. No entanto, ele logo percebe que não se trata apenas de capricho, pois os indícios o levam a crer que há algo a mais. Em um dos momentos mais intrigantes da narrativa, María Zenaida, aos prantos, pede a Alex: “Muéstrate en la calle. Que crean que alguien... que nosotras...seguimos vivas...” (FUENTES, 2004, p. 98). Com essa declaração ambígua, Alex confronta-se com o insólito, fazendo com que sua certeza ceda lugar para a 78 dúvida, momento em que o mistério se intensifica na narrativa. Ambígua também é a forma como as tias tratam o sobrinho. Ambas se dirigem a Alex como se ele fosse uma criança, “niño”, e o presenteiam, inclusive, com objetos, alimento e até roupas infantis. Apesar de considerar algo fora do comum, Alex releva esse comportamento das tias por pensar que se trata de uma espécie de manifestação de carinho. Contudo, o mistério sobre a postura de Zenaida e Serena se intensifica no momento em que o sobrinho encontra, em seu quarto, um caderno com folhas em branco cujo título dizia: “Aventuras de un niño francés en México por Alejandro de la Guardia” (FUENTES, 2004, p. 105). Assombrado, o protagonista sente que “la razón lo abandonó por completo. Es más, sin razón, sintió miedo” (FUENTES, 2004, p. 105). Imerso em dúvida e pressentindo algo inexplicável, Alex tem uma resposta, que não responde nada, no momento em que escuta a seguinte conversa das tias sobre ele: “[...] Morir así, atropellado por un tranvía en plena Ribera de San Cosme”, uma comenta e a outra responde: “¡Qué horror! Y tan jovencito. A los once años”. (FUENTES, 2004, p. 119). Em “Buena Compañía”, toda a ambientação da casa é construída de maneira a antecipar o inexplicável, e, inclusive, o quarto de Alex estava mobiliado de acordo com uma faixa etária infantil. Há também a sugestão de que as tias sejam um duplo, de modo a se revezarem no auxílio de descoberta do insólito segredo. Outro aspecto essencial é o protagonismo de Zenaida e Serena porque elas são as responsáveis por provocar, a partir de um comportamento propositadamente ambíguo, as dúvidas de Alex, induzindo-o a descobrir a sua condição de “fantasma”. Nesse sentido, ressaltamos que “Buena Compañía” dialoga com Aura, pois Felipe e Alex são levados, pelas personagens femininas, a montar o quebra-cabeça de suas próprias histórias. Felipe, influenciado por Consuelo, retoma as memórias de Llorente, resgatando, com isso, as suas próprias memórias. Alex, por sua vez, também é submetido ao mesmo processo e é levado por Zenaida e Serena a tomar consciência de sua condição, reconhecer a sua história e preencher, portanto, as páginas de seu caderno que estavam em branco. 2.9.4 “CALIXTA BRAND” Carlos Fuentes utiliza a temática de anjos para desenvolver o quarto conto de Inquieta Compañía. O nome do narrador-personagem é Esteban, um mexicano que é casado com Calixta Brand, uma americana por quem ele se apaixonou ainda quando eram estudantes 79 universitários. Inicialmente, Esteban revela dados de sua rotina de casado, afirma que ele trabalha fora enquanto Calixta cuida dos afazeres da casa. Ele conta ainda que sua esposa, nos tempos da faculdade, nutria o desejo de ser escritora. Porém, esse desejo foi esquecido após o casamento e Calixta nunca mais havia tocado no assunto. Certo dia, curioso, Esteban pergunta a ela se havia parado de ler e Calixta responde que, além de ler, também estava escrevendo. Surpreso com a resposta, ele não esboça nenhuma reação, porém, dentro de si, ele sente “inquietud incomprensible para mí mismo” (FUENTES, 2004, p. 130). Após essa revelação da esposa, o olhar de Esteban para Calixta muda, ele passa a vigiá-la e percebe, incomodado, a extrema dedicação com que ela cuidava da casa e de seus escritos. Tomado pela inveja, o narrador-personagem passa a considerar a sua esposa como rival, o que o faz tentar esgotar todas as energias físicas dela, utilizando, inclusive, o sexo: Desde ese momento convivieron en mi espíritu dos sentimientos contradictorios. Por una parte, el alivio de saber que escribir era para Calixta una profesión secreta, confesional. Por la otra, la obligación de vencer a una rival incorpórea, ese espectro de las letras... La resolví ocupando totalmente el cuerpo de Calixta. la confesión de mi mujer – “Escribo” – se convirtió en mi deber de poseerla con tal intensidad que esa indeseada rival quedase exhausta (FUENTES, 2004, p. 132-133). Movido por sentimentos como a cobiça, obsessão e curiosidade, Esteban vasculha secretamente os pertences de sua esposa com o objetivo de descobrir o que ela estava lendo e escrevendo. Ao encontrar os manuscritos de Calixta, ele tem a seguinte atitude: “Al leer los cuentos de Calixta [...] me asaltó una furia insólita, agarré los preciosos papeles de mi mujer, los hice trizas con las manos, les prendí fuego [...]” (FUENTES, 2004, p. 134). Calixta, por sua vez, não manifesta reação alguma e permanece em completo silêncio, o que deixa Esteban ainda mais transtornado: “Ni yo comenté sus escritos ni ella me pidió mi opinión o la devolución de las historias. Calixta, con este solo hecho, me derrotaba” (FUENTES, 2004, p. 135). Com o casamento em crise, Esteban vai ao cemitério frequentemente para visitar o túmulo de sua mãe e, em uma dessas vezes, ele pensa que sua esposa era quem deveria estar morta no lugar de sua mãe. Ao chegar em casa naquele dia, o narrador-personagem descobre que Calixta sofreu uma espécie de ataque e que, por causa disso, estava em coma. Inicialmente, Esteban sente um misto de remorso e dúvida ao cogitar a possibilidade de ser o culpado pela doença de sua esposa, afinal ele havia desejado a sua morte: 80 Yo no sé qué poderes puede tener el matrimonio morganático del deseo y la maldición. Qué espantosa culpa me inundó como una bilis amarga de la cabeza a las puntas de los pies, cuando regresé a la casa alumbrada [...] por luces [...], las ambulancias ululantes y los carros de la policía (FUENTES, 2004. p. 143). Contudo, passado esse primeiro momento, o remorso dissipa-se e, ao ver que Calixta estava completamente debilitada e dependente, Esteban passa a agredi-la verbalmente e a negligenciá-la, chegando até mesmo a ordenar que uma das empregadas da casa, uma “jovencita indígena recién llegada de un pueblo de la sierra, atendía en silencio y con la cabeza baja [...]” (FUENTES, 2004, p. 140), fizesse sexo oral nele e, em seguida, cuspisse o sêmen no rosto de sua mulher. Nesse mesmo dia, Calixta recebe a visita de Pedro Ángel Palou, um ex-professor seu, que decide contratar um enfermeiro que cuidasse dela e também da casa e do jardim, espaços que Calixta tanto amava e que estavam morrendo da mesma forma que ela. Nesse ponto, sublinhamos o sugestivo nome do ex-professor de Calixta (Pedro Ángel Palou), homem que atua mesmo como um anjo, pois sua atitude de trazer o enfermeiro para a casa colabora efetivamente para a “cura” da doente. O enfermeiro era muçulmano e se chamava Miguel Asmá, cujos cuidados fazem com que Calixta e o jardim resplandeçam lentamente e voltem a ganhar vida. Os empregados da casa, encantados com Miguel, passam a chamá-lo de “santo”. Profundamente incomodado com aquela situação e apesar de mostrar sinais de arrependimento ao notar a inexplicável melhora de sua esposa, Esteban começa a considerar o enfermeiro também como um inimigo, pois, segundo ele, Miguel era “seductor de la criada, aliado del jardinero, cuidador de mi esposa, sentí que el tal Miguel me empezaba a llenar de piedritas los cojones.” (FUENTES, 2004, p. 153). Até que, certo dia, Esteban se dá conta de que algo inquietante estava acontecendo, pois, ao olhar para um enorme quadro da casa que estava sendo restaurado com a finalidade de torná-lo mais nítido, ele percebe que ali se revelava a imagem de Miguel. Perplexo, Esteban se lembra automaticamente do dia em que Calixta lhe presenteou com uma foto sua, dizendo que sua imagem permaneceria na foto se ela morresse; porém, caso ocorresse o contrário, ou seja, se ele morresse, seria a imagem de Calixta que desapareceria da fotografia. Esteban corre imediatamente para ver a fotografía e tem a surpresa: “La imagen de mi mujer había desaparecido. Era un puro espacio blanco [...]. Era el anuncio – lo entendí – de mi propia muerte” (FUENTES, 2004, p. 160). Sem saber o que pensar diante da possibilidade de estar 81 morto, Esteban depara-se com a cena de Miguel ascendendo aos céus com Calixta em seus braços. Desnorteado, o narrador-personagem somente tem tempo de lamentar profundamente tudo o que fez contra Calixta e o não poder pedir perdão para ela. Sobre o desfecho dessa narrativa de Carlos Fuentes, Javier Ordiz destaca ser uma das cenas mais simbólicas de Inquieta Compañía, pois: La imagen última del ángel musulmán llevándose en brazos al cielo a Calixta, es una escena alusiva a una idea que Fuentes ha repetido en varios foros en los últimos años: la del hermanamiento y comprensión entre culturas, la necesidad de avanzar en esa ‘alianza de civilizaciones’ que destierre la visión pesimista del ‘choque de civilizaciones’ como vía para intentar superar el fanatismo y la intransigencia y lograr así que el mundo no se siga poblando con fantasmas nacidos de la violencia (No prelo). Ao colocar o enfermeiro Miguel como um anjo muçulmano que salva a americana Calixta da morte, Carlos Fuentes propõe o apaziguamento entre essas culturas, que sempre lutaram em lados opostos, ocasionando muita dor e mortes ao longo das décadas. Do ponto de vista do fantástico, “Calixta Brand” apresenta-se como uma narrativa mais alinhada com o tipo de fantástico mais tradicional, em que o sobrenatural se instala paulatinamente e, em seu clímax, ocorre a morte do narrador-personagem. Outro aspecto nesse sentido é a opção pelo foco em 1ª pessoa, o que imprime maior verossimilhança ao relato. Há também a ambientação da casa, que possui um enigmático quadro que sempre esteve na casa, apesar de sua imagem não estar nítida; o jardim também ganha destaque, pois parece estar alinhado com o estado físico-mental de Calixta, dado que remete, inclusive, ao jardim de “Tlactocatzine, del jardín de Flandes”. Fato essencial também é a caracterização das personagens, principalmente a do enfermeiro Miguel, que desde o princípio é descrito com palavras geradoras de duplos sentidos, como já exposto acima. Ao ler “Calixta Brand”, recordamos imediatamente de uma entrevista de Carlos Fuentes em que o autor declara que: “Las mujeres son las judías en Hispanoamérica. Son el Otro preferido. Son el objeto preferido de la persecución, de la condena y del aislamiento”45. Pensando nisso, percebemos que nessa narrativa transparecem críticas do autor ao patriarcalismo e machismo presentes no México ainda hoje. Carlos Fuentes oferece a Calixta “el poder de la palabra”, o poder se manifestar por meio da literatura. Ainda que punida por 45 Entrevista concedida a Willi Goetschel, Leslie Dunton-Downer e Cyrus R. K. Patell. In: HERNÀNDEZ, Jorge (comp.). Carlos Fuentes: territorios del tiempo (antología de entrevistas). México: FCE, 1999, p. 80. 82 essa “transgressão” Calixta resiste e, mesmo imersa no silêncio imposto pelo machismo, sua figura se engrandece diante de Esteban, confirmando-nos, mais uma vez, a essencialidade da figura feminina na obra de Carlos Fuentes, pois é por meio delas que o autor faz com que as demais personagens se dêem conta de aspectos até então não imaginados. 2.9.5 “LA BELLA DURMIENTE” A quinta narrativa de Inquieta Compañía está dividida em oito partes, dispostas da seguinte maneira: na primeira, um narrador conta, em 3ª pessoa, a história de Emil Baur; da segunda até a sétima, Jorge Caballero é o narrador-personagem; na oitava e última parte, a personagem Alberta é a narradora que mantém diálogo com seu esposo, Emil Baur. Na 1ª parte, o leitor conhece um pouco sobre a vida de Emil Baur, um engenheiro alemão que chega ao México em 1915 e envolve-se com questões relacionadas à Revolução Mexicana, especialmente com Francisco Villa (Pancho Villa), pois acreditava poder derrotar os Estados Unidos por meio de aliança entre o México da Revolução de 1910 e a Alemanha de Hitler. Com a derrota da Alemanha na Segunda Guerra Mundial, Baur decide visitar a Alemanha e, ao tentar regressar para o México, é visto com desconfiança pelas autoridades mexicanas por causa de sua simpatia pelo nazismo. Uma vez conseguido entrar novamente no país latino-americano, Baur resolve se casar e para isso “se recluyó en una extraña mansión neogótica o victoriana aislada en medio del desierto y mandó traer una esposa del grupo menonita de Chihuahua” (FUENTES, 2004, p. 167). No dia de seu casamento, todos os convidados são surpreendidos porque a noiva (Alberta Simmons) teve seu rosto totalmente coberto por um véu negro durante toda a festa. Ao final, outro fato intrigou os presentes que se perguntavam o motivo de Baur: “desde el edificio municipal de Terrazas, Baur llevaba cargada en brazos a la recién casada. ¿No era ésta la costumbre reservada para el ingreso a la recámara nupcial?” (FUENTES, 2004, p. 168-169). Desde esse dia, nunca mais ninguém viu ou ouviu Alberta. Na segunda parte do conto, o foco narrativo muda da 3ª para a 1ª pessoa. O médico Jorge Caballero é o narrador-personagem que relata sua experiência insólita, vivida no ano de 1975 após atender ao chamado do engenheiro Emil Baur. Segundo Caballero, o engenheiro 83 precisava de um médico devido ao estado de sua esposa Alberta Simmons, que estava enferma. Mediante o telefonema de Baur, Caballero revela que hesitou em atender, porém ainda assim resolve ir porque “el juramento a Hipócrates me obligaba a emprender la ruta a la casa” (FUENTES, 2004, p. 169). No caminho para a casa de Baur, o clima desértico provoca no médico profundas reflexões sobre sua identidade, sua vida e sobre o passado mexicano: Me sorprendí pensando, a lo largo de ese vago automatismo que procrea una carretera larguísima en línea recta, que los espejos del desierto son reflejos de la nada actual […] aunque bien podrían esconder la imagen perdida de nuestro pasado más remoto […]. Cada noticia sobre mi vida se duplicaba y hasta triplicaba en este trayecto a lo largo de un paisaje vacío que, por el hecho de serlo, podía contener todas las historias imaginables, las de la vida recordada y las de la vida olvidada, las de que fue y las de lo que pudo haber sido [...] (FUENTES, 2004, p. 170). Ao chegar na casa do engenheiro, Caballero depara-se com um casarão gótico e sombrio, típico de narrativas fantásticas, e, uma vez dentro daquele ambiente, ele vivencia o primeiro evento inexplicável: conduzido pelo engenheiro até o leito da mulher enferma, o médico é aconselhado pelo marido a examinar apenas o pé da paciente. Caballero aproximase dela somente porque foi convencido por Baur: “Yo no sabía que hacer. Veía el pie desnudo pero el cuerpo estaba oculto bajo los edredones. […] Toqué el pie asomado. Me incorporé, aterrado. Había tocado hielo. Un pie blanco, sin sangre. Un pie muerto” (FUENTES, 2004, p. 176). Assombrado com aquela situação incomum, ele percebe que Alberta parecia reviver a seu toque: “A mi tacto, poco a poco, regresó el color a ese pie helado. El color y el calor” (FUENTES, 2004, p. 177). Em uma clara tentativa de racionalizar o fato, o médico afirma que Alberta provavelmente sofria de alguma doença como “narcolepsia aguda” ou “cataplexia” e que, por isso, seria preciso levá-la até um hospital. No entanto, sua lógica é mais uma vez posta à prova no momento em que Baur argumenta que Alberta morreria caso saísse de sua cama e que, sendo assim, ele deveria permanecer na casa, pois ela precisaria de cuidados médicos. Da mesma forma como ocorreu com os pés, Alberta demonstra ganhar vida também quando Caballero toca seus cabelos: “Entusiasmado (lo admito ahora), sentado al filo de la cama, recorrí el rostro dormido. Cada caricia mía parecía despertar de su sueño a la mujer. ¿Y si rozaba tocaba sus labios, hablaría? ¿Y si rozaba sus ojos, los abriría?” (FUENTES, 2004, p. 180). Entusiasmado, porém apreensivo, o médico hesita ao intuir que estava dando vida à Alberta, como um deus ou um bruxo. 84 Envolvido por todo esse ambiente, Caballero acaba mantendo relações sexuais com ela, que o questiona sobre a veracidade de seu amor. Nesse momento, o médico nota a presença de alguém atrás da cortina, dando a entender que provavelmente seria o esposo, que observava tudo. Consumado o ato sexual, Baur revela ao médico que ele e Alberta eram fantasmas. Segundo Baur, a verdadeira identidade de Caballero era Georg Reiter, médico responsável por exterminar portadores de deficiências durante a Alemanha nazista. Sua ligação com Alberta advém dessa época tempos, quando ele a conheceu em um campo de concentração e a escolhe para trabalhar como empregada em sua casa. Entretanto, Caballero apaixona-se por Alberta e, ao tentar salvá-la da morte (colocando seu nome na lista dos já então executados), é descoberto, o que resulta no fuzilamento de ambos. Após ouvir toda essa história, Caballero demonstra incredulidade e, para provar a veracidade de seu relato, Baur leva o médico até uma lápide cuja inscrição grafava nomes, datas de nascimento e de morte dos dois amantes: “ALBERTA SIMMONS 1920-1945 (e) GEORG VON REITER 1910-1945” (FUENTES, 2004, p. 208). Nesse momento, Alberta aproxima-se de Caballero, que termina sua exposição com a seguinte afirmação: “Alberta y yo nos alejamos tomados de la mano. El desierto es inmenso y solitario. Y ocupar un cuerpo vacío es vocación de fantasmas. Pasaron volando en formación las aves del invierno” (FUENTES, 2004, p. 209). A oitava e última parte do texto inicia-se com alguns questionamentos do alemão Baur sobre a morte, o “resgate” de dois corpos de pessoas assassinadas (Caballero e Alberta provavelmente) pelo regime nazista e sobre a responsabilidade dos alemães pelo Holocausto. Na sequência, Alberta assume a narrativa como narradora-personagem e faz algumas revelações sobre o modo como era tratada por Baur, seu esposo: “Eternamente sentada al lado de Emir Baur en la sala de la mansión del desierto, supe, una vez más, que mi propia voz no sería escuchada por mi marido. Yo era sólo el fantasma que servía de voz a otros fantasmas”. (FUENTES, 2004, p. 210). Alberta afirma que Baur a tornou invisível e que o esposo a usaria somente para “darle voz a sus espectros” (FUENTES, 2004, p. 210). A narrativa termina exatamente com as mesmas palavras que começou, sugerindo o caráter cíclico dos eventos nela narrados, como já observado em outros textos de Carlos Fuentes: “En Chihuahua todo el mundo sabe el ingeniero Emil Baur [...]” (FUENTES, 2004, p. 211). Esse desenlace não deixa claro se realmente Alberta havia sido morta ou se ela exercia algum tipo de magia que possibilitasse a “conversa” com mortos, como dá a entender o trecho acima. De qualquer forma, nenhuma das alternativas explica racionalmente ao leitor 85 os fatos insólitos narrados no texto, deixando-o diante da hesitação e dúvida, próprios da literatura fantástica. É possível encontrar ainda em “La bella durmiente” ecos de textos de outros autores. A cena em que Caballero encontra somente o pé de Alberta para examinar dialoga, ainda que indiretamente, com o texto “O pé da múmia” 46, de Théophile Gautier. “La bella durmiente” remete a temas presentes em outras narrativas de Fuentes. O trecho em que Caballero sente que está sendo espionado por Baur durante relação sexual com Alberta faz lembrar o momento em Aura e Felipe mantêm relações e este sente que está sendo observado por Consuelo. A ideia do reencontro entre antigos amantes também reaparece em diversos textos, como em “Tlactocatzine”, Aura, Constancia e em “La gata de mi madre”, por exemplo. Sobre o fantástico, verifica-se a reiteração da manifestação do insólito através da personagem feminina e da ambientação espacial da casa. Devemos destacar ainda a disposição estrutural da narrativa, com diversos narradores, atrelada a seu desfecho, o que favorece a instalação da ambiguidade no relato. 2.9.6 “VLAD” O último conto de Inquieta Compañía chama-se “Vlad” e, como o próprio nome antecipa, existe a presença de um vampiro na narrativa: Conde Drácula, personagem já bastante explorada pela literatura fantástica. O narrador-personagem dessa história é Yves Navarro, um mexicano casado, pai de dois filhos (um deles, falecido) e residente na Cidade do México. Navarro inicia sua exposição contando ao leitor um pouco sobre sua vida familiar e profissional. Segundo ele, seu casamento com Asunción era feliz e o casal mantinha uma vida sexualmente ativa e satisfatória. Dessa união, eles tiveram dois filhos: Magdalena, uma menina de 10 anos, e Didier, um menino morto aos 12, quando entrou no mar para nadar e nunca mais foi encontrado. Sobre sua vida profissional: era advogado e trabalhava para o velho e “influyente” Eloy Zurinaga, homem que “había dejado desde hace un año de salir de su casa” (FUENTES, 2004, p. 215). Desde então, o chefe dava as ordens a seus empregados por telefone e, embora não estivesse presente: “Nadie en el bufete se atrevió a imaginar que la ausencia física del personaje autorizaba lasitudes, bromas, impuntualidades. Todo lo contrario. Ausente, Zurinaga se hacía más presente que nunca” (FUENTES, 2004, p. 215). A vida de Yves Navarro começa a se transformar depois que seu chefe pede para que ele 46 Conto pertencente ao livro La Peau de tigre, de 1852. 86 conseguisse uma casa na cidade para um amigo seu, o Conde Vladimir Radu. Ao falar sobre esse amigo, Navarro percebe alarmado que seu chefe “titubeaba”, como se quisesse esconder algo do narrador-personagem. Reforçando ainda mais a atitude suspeita, Zurinaga pergunta pela esposa do narrador (indagação jamais feita antes) e, ao notar a perplexidade de Navarro, o chefe justifica: “Qué feliz coincidencia [...] usted es abogado en mi bufete. Ella tiene una agencia de bienes raíces. Albricias, como se decía antes. Entre los dos, el problema habitacional de mi amigo está resuelto” (FUENTES, 2004, p. 222). Um mês após a mudança de Vlad para a cidade, Navarro é convocado por ele até a sua residência, onde o conhece. O narrador descreve o estrangeiro da seguinte forma: Todo de negro [...] mocasines negros, sin calcetines. Unos tobillos extremamente flacos, como lo era su cuerpo entero, pero con una cabeza masiva, grande pero curiosamente indefinida, como si un halcón se disfrazase de cuervo, pues debajo de las facciones artificialmente plácidas, se adivinaba otro rostro que el conde Vlad hacía lo imposible por ocultar. Francamente, parecía un fantoche ridículo. La peluca color caoba se le iba de lado y el sujeto debía acomodarla a cada rato. El bigote [...] caído [...] lograba ocultar la boca de nuestro cliente, privándolo de esas expresiones de alegría, enojo, burla, afecto [...] los anteojos oscuros eran un verdadero antifaz, cubrían totalmente su mirada, no dejaban resquicio para la luz, se encajaban dolorosamente en las cuencas de los ojos [...] (FUENTES, 2004, p. 232). Excêntrica e bem humorada, a caracterização desse ser grotesco deixa entrever vários indícios que anunciam o desfecho insólito da trama. A descrição que o narrador-personagem faz de Vlad é ambígua, pois, ao mesmo tempo, ela revela e oculta a condição do anfitrião, a qual somente Navarro não se dá conta. O vampiro busca sempre se disfarçar para atrair as suas futuras vítimas: a esposa e a filha. Na verdade, o objetivo do conde era casar-se com a menina tão logo ela crescesse e a mãe dela serviria apenas para saciar sua “fome” momentânea. O fato de o narrador afirmar que o conde parece um falcão disfarçado de corvo também é bastante sugestivo, pois ambos os substantivos referem-se, respectivamente, a um animal que tem boa visão, garras fortes e vive da caça, e a outro animal também carnívoro, relacionado, no imaginário popular, à noite e à morte, ou seja, características também associadas ao vampiro, chamado de “caçador da noite”. Ainda no referido fragmento, destacamos a expressão “fantoche ridículo”, utilizada pelo narrador para fazer menção ao conde. Essa afirmação de Navarro soa irônica ao final da narrativa, pois há a revelação de quem, na verdade, foi o “fantoche”: Navarro, manipulado todo o tempo por Zurinaga, por Vlad e por sua esposa. 87 Em seu estudo intitulado “Los espacios de fantasia en ‘El mal del tiempo’ de Carlos Fuentes”, Javier Ordiz assevera que esse disfarçar que explicita e o excessivo detalhamento narrativo ganham tom de paródia no contexto da diegese: Es llamativo el intento de Fuentes por detallar hasta el último resquicio de la historia por medio de recursos como los papeles de Zurinaga o las explicaciones, creo que innecesarias, que da el conde al protagonista, ya que no es frecuente que el autor ofrezca tanta información al lector en contra de su tónica habitual de elipsis narrativas y ambigüedad simbólica. Este hecho, junto a la acumulación de los tópicos mencionados, nos pone sobre la pista de esa intención paródica que parece presidir el tono del relato (ORDIZ, no prelo). Esse tom paródico adquire aspecto irônico no momento em que o conde justifica sua escolha pelo México: “¡Y en México, una ciudad de veinte millones de nuevas víctimas [...]! ¡Una ciudad sin seguridad policiaca! ¡Viera usted los trabajos que pasé con Scotland Yard en Londres! [...] ¡Veinte millones de sabrosas morongas!”(FUENTES, 2004, p. 274). A atitude da esposa também ganha destaque na trama, uma vez que ela prefere entregar a filha a Vlad e viver com ele a ser salva por seu esposo, minando, com isso, a crença do narrador no amor romântico. Essa tomada de decisão de Asunción pode ser pensada como uma espécie de crítica implícita do autor mexicano ao machismo. Como assinalado anteriormente, Navarro ressalta, todo o tempo, que vivia uma excelente vida conjugal com Asunción. No entanto, o leitor não pode comprovar se isso era verídico, já que temos apenas a voz do narrador-personagem. Navarro e o leitor somente tomam conhecimento da insatisfação de Asunción depois que ela decide ficar com Vlad: “Tu adorado, aburrido amor [...]. Tu esposa prisionera del tedio cotidiano” (FUENTES, 2004, p. 280). Atitude esta tão mais insólita quanto a própria presença do vampiro na narrativa. Asunción argumenta que escolheu esse caminho porque: “Magdalena no va a morir [...]. El niño murió. La niña no va a morir nunca. No volveré a pasar esa pena, nunca”; mais adiante: “Mi hija no va a morir. Por ella no habrá luto. Magdalena vivirá para siempre” (FUENTES, 2004, p. 279). Ou seja, a esposa de Navarro abre mão do casamento em favor de proporcionar “vida eterna” para sua filha, por causa do enorme medo que ela tinha em perder outro filho novamente, ainda que ela soubesse que Vlad apenas a aceitou “sólo mientras me sea útil” (FUENTES, 2004, p. 276). O vampiro, aliás, comenta com Navarro sobre a decisão de Asunción em tom de escárnio: “[...] Me he alimentado de ella mientras la niña crece. No quiero retenerla mucho tiempo. Sólo mientras me sea útil. Francamente, no veo qué le encuentra usted de maravillosa. Elle est une femme de 88 ménage!”(FUENTES, 2004, p. 278, grifo no original). Dessa forma, se para Navarro, Asunción era uma excelente esposa e mãe, para Vlad, ela não passa de uma mulher comum, que servia apenas para cuidar da casa, nada mais. Por um lado, se atitude de Asunción surpreende o leitor, por outro, a passividade de Navarro também não deixa por menos. Diante da negativa de esposa e filha em tentar fugir com ele, Navarro aceita prontamente seu “destino”. No principio, ele até esboça alguma reação, porém logo esmorece. A revelação da infelicidade e infidelidade de Asunción faz com que ele desista também da filha, a menina Magdalena. Por isso, tanto a atitude da Asunción como a de Navarro colocam fim às expectativas que o leitor porventura possa nutrir sobre um desfecho feliz para a história, descartando, assim, a ideia de que o amor matrimonial e filial tudo supera. Pensando a narrativa do ponto de vista do fantástico, Carlos Fuentes constrói um enredo que retoma a lenda do Conde Drácula, porém ambientada na Cidade do México. Na esteira disso, o autor utiliza aspectos característicos da literatura fantástica produzida no século XIX que são amplamente encontrados em seus mais diversos textos. Nesse sentido, temos o foco narrativo em primeira pessoa, a personagem feminina que se relaciona com o insólito, a ambientação espacial com alusões diretas ao sobrenatural (escuridão, caixões, ralos, etc.), a presença de um vampiro grotesco e caricato, e até mesmo a menção a existência de um duplo, implícita na figura de Zurinaga e Vlad: Una mañana entró y media hora más tarde salió de la oficina una figura idéntica al jefe. Supimos que no era él porque durante esa media hora telefoneó un par de veces para dar instrucciones. (…) Cuando la figura salió vista de espaldas era idéntica a la del ausente abogado (FUENTES, 2004, p. 215). O autor mexicano também inova, ao agregar elementos distintos a seu texto, como a paródia e a ironia. O desfecho inesperado da narrativa igualmente surpreende o leitor, ao apresentar um final ambíguo, que deixa margem para diversas interpretações. Para finalizar, salientamos que uma leitura desse conto tendo como horizonte o universo mexicano certamente amplia seu leque de significações interpretativas. Com “Vlad”, Carlos Fuentes conseguiu demonstrar sua capacidade em trilhar diferentes caminhos da literatura fantástica, ao produzir narrativas consideradas mais complexas e eruditas (Cumpleaños, por exemplo) e também narrativas avaliadas como “simples”, se comparadas a experimentalismos 89 anteriores. Ao final do segundo capítulo deste trabalho, é possível apontar algumas características que delineiam continuidades ou reiterações nas narrativas fantásticas brevemente analisadas: a manifestação do fantástico como desestabilizador de uma realidade baseada em discursos racionalistas e unívocos, que tem como representantes homens ligados ao universo acadêmico-científico (historiadores, médicos, arquitetos, advogados); a revelação de duplos, seja em nível temático (Aura-Consuelo, por exemplo), seja em nível estrutural do texto, como a oscilação de tipos de narradores em Instinto de Inez ou ainda as variações no ponto de vista (Toño-Bernardo); a presença de personagens pertencentes a grupos minoritários, como indígenas (Chac Mool) e exilados políticos (Plotnikov e Constancia), que, na maioria das vezes, se relacionam como o insólito; o desenrolar da trama em casarões ambientados de maneira a dialogar com a caracterização das personagens e sua relação com o insólito (“Tlactocatzine” e Aura, por exemplo); a escolha por personagens femininas marcadamente ambíguas, reveladoras do sobrenatural (Carlota, Aura, Nuncia, Constancia, Inez, Alberta, entre outras); a valorização da memória e o movimento de volta às origens, como visto em “Tlactocatzine”, Aura, “Constancia”, Instinto de Inez e “Buena Compañía”; e, para concluir, o surgimento de seres sobrenaturais, como fantasmas (Lala-Alberta), anjos (Miguel Asmá), vampiros (Vlad) e divindades (Chac Mool-La Desdichada). A seguir, buscaremos aprofundar nossas considerações analisando a novela Constancia, de 1990. 90 3. CONTINUIDADES E REVELAÇÕES DO FANTÁSTICO EM CONSTANCIA Abro la puerta del silencio. Abro la puerta al silencio. (Constancia, FUENTES, 1991, p. 59). Diferentemente da maioria de seus textos em que o México e o mexicano são privilegiados, em Constancia, Carlos Fuentes apresenta nova ambientação geográfica, os Estados Unidos e a cidade de Savannah (Geórgia) é o espaço escolhido para o surgimento do sobrenatural. O enredo dessa narrativa está centrado em três personagens: Whitby Hull, médico americano de 69 anos, entusiasta por ficções policiais e seus quebra-cabeças; Constancia, esposa deste há mais de 40 anos, é uma andaluza misteriosa e portadora de uma cultura popular; e Plotnikov, ator russo que se tornou vizinho do casal depois que se exilou no país americano. Hull é o narrador-personagem da história. Ele relata ao leitor a experiência insólita que viveu após uma série de acontecimentos e coincidências inexplicáveis entre seu vizinho e sua esposa, que trouxeram à tona a real ligação entre ambos: eles, na verdade, eram marido e mulher e juntos atravessaram o incompreensível: a morte. A partir desse enredo, propomos uma análise que objetiva investigar as continuidades e revelações do fantástico em Constancia. Refletiremos em que medida os elementos do fantástico, presentes nas demais narrativas de Carlos Fuentes anteriormente analisadas, são reiterados em Constancia. Buscaremos também apreciar esse corpus literário levando em consideração as suas peculiaridades, ou seja, quais foram as soluções encontradas pelo autor para arquitetar sua narrativa insólita. Segundo estudiosos da literatura, a preferência pelo narrador em 1ª pessoa na narrativa fantástica contribui para imprimir maior credibilidade ao relato, já que, por se tratar de uma experiência pessoal, o narrador-personagem a narra com maior autoridade, o que confere maior veracidade a sua história, ainda que se trate de algo sobrenatural. No entanto, ao mesmo tempo que esse tipo de narrador agrega credibilidade, ele também traz maior subjetividade, pois apresenta uma visão limitada dos eventos, dos pensamentos e das percepções das demais personagens. Essa limitação é fundamental para a narrativa fantástica porque auxilia na criação de uma atmosfera de ambiguidade e dúvida no texto, desencadeando o suspense e 91 colaborando para a manutenção do mistério dentro da narrativa. Na esteira do que postulou T. Todorov e F. Furtado, Remo Ceserani, ao refletir sobre esse tipo foco narrativo, considera que o uso da 1ª pessoa é uma característica comum aos textos fantásticos, porque esse recurso tem como objetivo explicitar a presença dos narradores e dos narratários, sujeitos literários que “ativam e autenticam ao máximo a ficção narrativa, e estimulam e facilitam o ato de identificação do leitor implícito com o leitor externo do texto” (CESERANI, 2006, p. 69). Em Constancia, isso pode ser observado por meio do registro do insólito na modalidade escrita e em 1ª pessoa, explicitando tanto o narrador quanto o narratário: El lector de estas notas apresuradas que reúno con el sentimiento confuso de que si no lo hago ahora pronto será demasiado tarde, debe entender que cuando hablo de ver o visitar el señor Plotnikov, en realidad quiero darle categoría formal y sentido de cortesía a lo que no pasa de ser una serie de encuentros casuales (FUENTES, 1991, p. 14, grifo nosso). O trecho anterior exemplifica o que teorizou Ceserani anteriormente, ou seja, por meio do jogo ficcional, o narrador-personagem de Constancia explicita seu narratário (“lector”), faz com que este se aproxime dele e de seu relato, reconheça-os como pertencentes a um universo possível para que, posteriormente, juntos compartilhem da hesitação e da incerteza diante dos eventos narrados. Essa aproximação não é gratuita, uma vez que Hull fala diretamente a seu “lector” cujo objetivo é convencê-lo da veracidade de sua história, o que favorece a identificação do leitor empírico com o leitor interno da narrativa e possibilita maior impacto diante da revelação do insólito. Constancia desconcerta o leitor desde suas primeiras linhas. Hull, sabendo o desenlace da trama, o narrador-personagem, no presente da narração e por meio do discurso indireto, inicia seu relato com a seguinte afirmação de Plotnikov: “El viejo actor ruso monsieur Plotnikov, me visitó el día mismo de su muerte. Me dijo que pasarían los años y que yo vendría a visitarle a él el día de mi muerte” (FUENTES, 1991, p. 11). Com isso, o leitor é convidado a montar o quebra-cabeça, iniciado por uma série de questionamentos sobre como seria possível que Plotnikov saiba o dia em que irá falecer e, caso ele fosse um provável suicida, como poderia saber que, no dia de sua morte, Hull o visitaria. Com essa declaração de Hull, as dúvidas são lançadas e a única certeza que o leitor tem é a de que o desconhecimento do dia da própria morte é uma das coisas que mais incomoda o ser humano. Esse não-saber coloca a todos frente à sua limitação de abrangência do futuro e enfatiza a ideia de que, 92 mesmo com a “evolução” da espécie humana e de tantas tecnologias, não é possível ter acesso a tudo. Ainda sobre essa frase que principia a narrativa de Carlos Fuentes, vale ressaltar que o autor mexicano se confessa admirador da literatura de Franz Kafka. Nesse sentido, constata-se um diálogo entre o início desta obra e o modo de contar kafkaniano de A Metamorfose, pois, em ambas as narrativas, o insólito é revelado já em suas primeiras linhas. Com essa técnica, consegue-se envolver o leitor que, embora já “saiba” um pouco sobre o desfecho da trama, permanece atento à leitura, porque foi envolvido pela dúvida e, principalmente, pela curiosidade de desvendar o enigma apresentado. Após inserir o leitor no mistério, o narrador de Constancia modaliza o que havia dito Plotnikov, “No entendí muy bien sus palabras”, e desvia imediatamente o foco de sua narração para a descrição da cidade de Savannah, lugar cujo clima entorpece e onde ocorrerá o sobrenatural: “El calor de Savannah en agosto es comparable a una siesta intermitente interrumpida por sobresaltos indeseados: uno cree que abrió los ojos y en realidad sólo introdujo un sueño dentro del otro” (FUENTES, 1991, p. 11). Essa atitude de Hull visa restituir a “normalidade” à narrativa por meio da exposição de elementos do cotidiano, ainda que ele aproveite para acrescentar outros dados que antecipem o sobrenatural, como, por exemplo, a ideia de viver em uma cidade cujo clima produz uma permanente sensação de estar em uma realidade irreal, em uma espécie de sonho perpétuo. Criar a impressão de realidade cotidiana e “normal”, convencer o leitor disso e depois destruir essa percepção é uma das técnicas do fantástico, conforme argumenta Todorov: Primeiro, é preciso que o texto obrigue ao leitor a considerar o mundo das personagens como um mundo de criaturas vivas e hesitar entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural dos acontecimentos evocados. A seguir, esta hesitação pode ser igualmente experimentada por uma personagem (2007, p. 38-39). Segundo o autor, é preciso que o leitor reconheça o que está lendo como possível para que a revelação do sobrenatural seja mais impactante. Ainda sobre a construção desse universo cotidiano que será colocado em xeque, provocando a desestabilização do leitor, assinala Ceserani: “O conto fantástico envolve fortemente o leitor, leva-o para dentro de um mundo a ele familiar, aceitável, pacífico, para depois fazer disparar os mecanismos de surpresa, de desorientação, de medo” (2006, p. 71). 93 Na novela de Carlos Fuentes, não se percebe inicialmente nenhum desconcerto nas palavras de Hull ao introduzir a narrativa com a fala de Plotnikov. Pelo contrário: o narradorpersonagem busca “normalizar” o seu relato, como vimos, e o faz por meio da frase referida anteriormente. Ele somente demonstra alguma inquietação com o decorrer de sua exposição, “disparando mecanismos” de suspense que fazem o leitor voltar a seu estado de alerta: Entré, a pesar mío, a mi casa. Quería comunicarle lo ocurrido a mi esposa. Lo dicho por monsieur Plotnikov me incomodó, aún más que el hecho insólito de que sus palabras me impulsaran a interrumpir la siesta de Constancia. Pasé por encima de esta prohibición tácita, tal era el remolino de malestar provocado en mi ánimo por el vecino ruso. Pero mi sorpresa aumentó cuando me di cuenta de que Constancia no estaba en su cama y que nadie había dormido la siesta en ella (FUENTES, 1991, p. 21). No fragmento acima, Hull utiliza diversas palavras e expressões que exteriorizam a sua inquietação (“me incomodó”, “malestar”, “mi sorpresa aumentó”), usando, inclusive, um sinônimo para fantástico: “insólito”. “Incomodado” com o que lhe dissera Plotnikov, Hull decide interromper a sesta de sua esposa pela primeira vez desde que se casaram, porque, também pela primeira vez, algo fora da normalidade havia ocorrido, ou melhor, estava para ocorrer com seu vizinho. O fato de chegar em casa e não encontrar Constancia dormindo reforça a surpresa do narrador, que, a partir desse momento, começa a se questionar sobre a postura dela e sobre as certezas que a rotina do casamento lhe proporcionava: “Tuve entonces [...] una súbita conciencia de la extrañeza de la vida que Constancia y yo vivimos durante cuarenta años, una vida tan normal, sin sobresaltos reales” (FUENTES, 1991, p. 55). Essa ruptura na ordem cotidiana faz com que o narrador-personagem comece a pensar em uma possível ligação entre a enigmática fala de Plotnikov e o desaparecimento de Constancia, o que colabora para a ampliação da dúvida e do suspense na narrativa. Sobre a construção do suspense em narrativas fantásticas, Olea Franco afirma: Los personajes no se percatan de inmediato y con nitidez de la naturaleza extraña del suceso en que se funda lo fantástico, pues ello atentaría contra el suspenso propio del género. La constante presencia de este último rasgo induce a sugerir que se sustituya la idea de vacilación como uno de los probables ejes del género, por la del suspenso, categoría ésta que alude a la construcción del texto (2004, p. 43). Pensando no que disse o teórico mexicano, percebemos que Hull não se dá conta, inicialmente, do mistério que o rodeou por tantas décadas. Até então, ele jamais havia se 94 indagado o porquê de sua esposa nunca querer aprender inglês e nunca ter estabelecido amizade com ninguém, mesmo após tantas décadas de estadia nos Estados Unidos. A preferência de Hull em registrar seu relato por meio da modalidade escrita também deve ser observada, pois é um aspecto importante para a narrativa. Além de levar o leitor empírico a se identificar com o narratário interno, podemos pensar que, ao escrever seu relato em notas “apressadas”, Hull expressa sua tentativa desesperada de compartilhar a sua história, com o objetivo de eternizá-la e, consequentemente, deslocá-la do passado para o presente a cada leitura. Hull parece não querer o mesmo fim de Constancia e sua família, que, após serem assassinados pelo regime franquista, foram apagados pelo Tempo e pela História, já que ninguém os reclamou, não houve lembrança nem rastro deles e o que restou foram apenas alguns papéis avulsos em um cartório da Espanha, resgatados pelo americano somente porque ele estava envolvido diretamente. Essa atitude do americano deixa transparecer o desejo de que seu leitor o resgate da morte do esquecimento, dando-o “un poco más de vida, aunque tú sólo la llames recuerdo” (FUENTES, 1991, p. 74), afinal “un muerto vive de la caridad del recuerdo [...]” (FUENTES, 1991, p. 43). Recordar para não morrer, porque os mortos não recordados estão mortos duplamente: corpo e memória. Isso justifica, em certa medida, as diversas idas das personagens ao cemitério, cuja finalidade é recordar seus mortos: Una vez […] encontré [Plotnikov] en el cementerio donde a veces voy a visitar a mis antepasados. […] Le pregunté si tenía deudos aquí. Se rió, murmuró, sin mirarme, que nadie piensa en los muertos de hace cincuenta años, no, ni veinte, ni diez años dura la memoria de un muerto... Se fue caminando lentamente. No me dejó decirle que yo era la prueba en contrario. Visito y recuerdo a dos siglos de muertos (FUENTES, 1991, p. 15). O ato de Hull registrar a sua memória por escrito coloca em evidencia a necessidade de escrever para não ser esquecido, como sinônimo de se fazer existir, pois, sem isso, “ni diez años dura la memoria de un muerto”, como salienta o trecho acima. Essa hipótese pode ser confirmada por uma das cenas mais representativas da novela, momento em que Hull entrega lápis, caneta e papel à Constancia e sua família para que eles se comuniquem com alguém, “caso ocorresse algo”. Atitude que, aliás, sugere a possibilidade de Constancia e seus mortos reescreverem a sua “história” e marcarem seu nome na História, agregando a esta parte das vozes de quem não teve a oportunidade de se expressar. Nesse sentido, tanto em Constancia quanto em outras narrativas fantásticas de Carlos Fuentes, evidencia-se um contínuo desejo do autor em desconstruir o discurso histórico escrito pelos “vencedores”, ou seja, o mexicano, 95 por meio de sua literatura, busca resgatar personagens silenciadas, delegando-lhes voz para se expressarem. A segunda possibilidade interpretativa no que se refere à opção do narrador pelo registro escrito está relacionada à sua paixão por livros, especialmente por narrativas policiais. Muito além de apenas ler esses romances, Hull incorpora os elementos ficcionais à sua vida e acaba mesclando realidade e ficção, como uma espécie de Dom Quixote: Por ejemplo, cuando [Constancia] regresa hacia las seis de la tarde a la casa de la calle Drayton, yo lo primero que noto – viejo lector de novelas policiales – es que las puntas de los zapatos de Constancia están cubiertas de polvo. Y lo segundo que noto, en la mejor tradición sherlockiana, es que la tierra roja – apenas finísima película – que cubre las puntas viene de un lugar que conozco de sobra [...] (FUENTES, 1991, p. 25). Diante da atitude suspeita de sua esposa, o narrador-personagem passa de observador a investigador ao se dar conta de que algo enigmático envolvia a sua vida e, a partir desse momento, ele começa a buscar pistas que possam auxiliá-lo na elucidação do mistério: “Tengo sesenta y nueve años y la cabeza llena de enigmas sin resolver, de cabos que no atan [...] Lector de novelas policiales, mi lógica me ilumina” (FUENTES, 1991, p. 65). Da mesma maneira como o Quixote que, depois de ler tantos romances de cavalaria, acredita ser um cavalheiro “andante”, Hull, após ler tantos romances policiais, crê ser um detetive: Yo estoy deduciendo, me advierte una lógica elementar, que el actor ruso murió sólo porque él me lo anunció primero, en seguida porque esos signos – luces prendidas, luces apagadas, malestar de Constancia – se impusieron en mi ánimo con un valor simbólico. De allí – confusión causa y efecto – concluí que el mal de Constancia tenía que ver con la supuesta muerte de Monsieur Plotnikov (FUENTES, 1991, p. 28). O americano demonstra certo entusiasmo com a possibilidade de desvendar um enigma concreto, porém ele logo exterioriza certo desconforto ao perceber que esse evento peculiar poderia acabar com a sua apreciada rotina: “Sonreí, suspiré, y me di cuenta de otras cosas que mis días de ocio profesional, lentos y despreocupados como el flujo del río hacia el océano, habían quizás disipado” (FUENTES, 1991, p. 28). Analisando essa postura detetivesca do narrador tendo em vista o fato de ele conhecer o desenlace da trama de antemão, cremos que, ao optar por escrever o que viveu, é como se Hull, após ler tantos romances policiais, encontrasse em sua experiência insólita a oportunidade de escrever a sua própria história policial. Dessa forma, assim como Hull buscou desvendar os mistérios das narrativas que leu, ele parece almejar que seu leitor adote a 96 mesma postura perante seus escritos, ou seja, procure solucionar o enigma, utilizando, inclusive, as pistas deixadas por ele durante toda a sua narração. A escolha pelo registro escrito, portanto, desencadeia o efeito de ficção dentro da ficção, pois Hull, ao ler textos policiais, entra no jogo ficcional proposto por seus narradores. No momento em que passa de leitor a narrador-personagem de uma história misteriosa, ele decide registrá-la, com o intuito de que seu leitor também deseje elucidar o seu enigma, resgatando o seu relato de um possível vazio temporal. Em outras palavras: ao ler narrativas policiais, o narrador-personagem de Constancia se identifica com os narratários desses romances; posteriormente, ele busca, por meio de seus artifícios narrativos, fazer com que seu leitor também se identifique e entre no jogo narrativo proposto por ele através de seus escritos. Por essa perspectiva, mais do que “se identificar” com o narratário, o leitor de Constancia deve assumir um duplo papel: reavivar as memórias de Hull por meio da leitura e tentar desvendar os enigmas propostos por ele durante toda a narrativa. Diante disso, o leitor se vê obrigado a participar ativamente da construção do texto, por meio da tentativa de chegar a suas próprias conclusões a respeito das lacunas deixadas pelo narrador, como já salientou Carlos Fuentes: “El lector está presente en el sentido en el que no diré todo lo que tengo que decir. Dejaré una puerta abierta, para que el lector pueda completar y colaborar conmigo en la creación de la novela”47. A atmosfera de mistério é intensificada em Constancia por meio do emprego de elipses ao longo da narrativa, nos momentos em que Hull omite palavras ou frases que, embora possam ser subtendidas pelo contexto, deixam o leitor em suspense, pois “no momento culminante da narração, quando a tensão está alta […], e é forte a curiosidade de saber, se abre de repente sobre a página um buraco branco, a escritura povoada pelo não dito” (CESERANI, 2006, p. 74). Como exemplo, citamos um trecho retirado de um dos momentos mais enigmáticos da narrativa, instante em que Constancia, durante uma espécie de sonhodelírio com o protagonista de A metamorfose de Franz Kafka, declara: “Estoy soñando que... el insecto pide piedad y nadie se la da, sólo yo, sólo yo me acerco y lo...” (FUENTES, 1991, p. 49). Nesta passagem, o vazio narrativo deixado por Constancia consegue provocar a imaginação de Hull e também do leitor, já que ela somente revela algumas partes de seu 47 Declaração de Carlos Fuentes. Trecho retirado de entrevista concedida a Marie-Lise G. Gautier. In: HERNÀNDEZ, Jorge (comp.). Carlos Fuentes: territorios del tiempo (antología de entrevistas). México: FCE, 1999, p. 150. 97 sonho, fato que, por si só, desperta o sentimento do excepcional. Como citado anteriormente, verifica-se um diálogo entre Constancia e A Metamorfose de Franz Kafka. Esse diálogo fica ainda mais evidente durante o decorrer do texto de Carlos Fuentes, principalmente nos momentos em que Constancia, ao ler o referido livro do autor tcheco, identifica-se com o protagonista Gregor Samsa e sente compaixão por ele, o que a faz, inclusive, mesclar realidade e ficção: Así inició su lectura de Kafka y a ella se dedicó con ahínco, repasando los libros una y otra vez, viajando de la biografía a la ficción y encontrando, al cabo, que no había más biografía que la ficción; aceptando, pues a Kafka como Kafka quería ser aceptado, como un hombre sin más vida que la literatura (FUENTES, 1991, p. 40-41). Conforme o fragmento em destaque, Kafka não teria vida para além do universo ficcional, ou seja, ele seria um homem “sin más vida que la literatura”. Constancia, por esse ponto de vista, compartilha da mesma situação que Kafka: a andaluza também não tem mais vida/biografia que a ficção de seu casamento com Hull, por isso a identificação com Kafka. É essa união fictícia entre ela e o americano que nutre a sua biografia, seu lado esposa de Plotnikov: “¿Cuánto tiempo estuviste, Constancia, llevándoles vida – mi vida – a tus muertos?” (FUENTES, 1991, p. 75). Biografia e ficção, realidade e não-realidade: é difícil delimitar em que ponto começa uma e termina a outra. Estão imbricadas, conforme o discurso fantástico deixa entrever. Outro momento significativo de lacuna narrativa que provoca uma série de dúvidas no leitor se dá quando Hull faz a seguinte declaração sobre Constancia: “Dormía horas imprevistas. Es cuando, antes de dormir, decía: – Voy a soñar que... o, al despertar, anunciaba: – Soñé que...” (FUENTES, 1991, p. 48). Neste fragmento, a utilização da perífrase verbal de futuro imediato “voy a soñar que” causa estranhamento e suscita questionamentos, já que não é comum que alguém consiga saber de antemão o que irá sonhar. Da mesma forma que a perífrases, os vazios narrativos deixados pelas reticências na fala de Constancia também causam dúvidas, porque o leitor não consegue saber se realmente a andaluza não revelava seus sonhos a seu esposo ou se este, conhecendo-os, preferiu ocultá-los do leitor, colocando em suas notas somente o que lhe interessava. Esse momento de vazio corrobora o que afirma Olea Franco: “Quien se propone construir un relato fantástico tiene que incluir y al mismo tiempo ocultar sabiamente los indicios que apuntan hacia la solución” (2004, p. 37). Isso é justamente o que faz o narrador-personagem de Constancia: Hull, conhecendo 98 antecipadamente o desenlace da história, joga com a memória e manipula o que será narrado em sua história de modo a ora mostrar e ora ocultar o sobrenatural. É preciso levar em conta, no momento de ler a narrativa, essa manipulação, pois, embora as falas de Constancia e de Plotnikov apareçam predominantemente por meio do discurso direto, elas são filtradas pelo crivo do narrador, que registrou em suas notas somente o que lhe parecia conveniente. Dessa forma, essas elisões na narrativa fantástica funcionam como multiplicadores de incertezas, intensificam a curiosidade do leitor e o convidam a completar esses vazios deixados pelo narrador. Também chama a atenção do leitor a atitude de Constancia após os desentendimentos com Hull, momentos em que ela se trancava por horas a fio em uma espécie de quarto de orações da casa: “Gritó, corrió a encerrarse a su recámara, no me dejó entrar y permaneció allí, sin comer, sin beber, más de veinticuatro horas” (FUENTES, 1991, p. 35). Esse lapso temporal produz uma série de perguntas sobre o que Constancia fazia trancada nesse ambiente, ou como ela poderia ficar tanto tempo sem comer ou beber. Na tentativa de responder a si mesmo, Hull relaciona essas fugas de sua esposa com a sua “morte passageira”, o que aumenta ainda mais a dúvida do leitor: “Constancia, dime, ¿cuántas veces has muerto antes...?” (FUENTES, 1991, p. 33). Algumas páginas depois, o narrador-personagem reflete: ¿Había muerto Constancia cada vez que huía de mí y se encerraba un día entero en su recámara, antes de bajar, renovada, radiante, a conciliarse, jugar y adelantar nuestro amor que se hubiera muerto de pura perfección, de pura lejanía, de pura sospecha, de pura incomprensión [...] a no ser por estos incidentes? (FUENTES, 1991, p. 41). No fragmento acima, o narrador, na tentativa de entender o mistério, aproxima morte e renovação, duas ideias pertencentes a campos semânticos, aparentemente, paradoxais conforme a lógica de realidade comumente aceita. Poderíamos pensar que se trata da “lógica de la conyunción” criada pela narrativa fantástica, ou seja, ocorre a junção de contraditórios, de elementos excludentes, segundo a percepção de mundo cotidiano predominante (OLEA FRANCO, 2004, p. 63). Pensando ainda no trecho destacado, chamamos a atenção para a ambiguidade gerada no contexto da narrativa pelo emprego dos verbos “morir” e “jugar”. Sobre o primeiro, o leitor interpreta-o inicialmente tendo em vista o seu sentido conotativo, de que Constancia “morria” de desilusão todas as vezes que discutia com o esposo. No entanto, com o decorrer da novela, o leitor intui a ambiguidade das palavras de Hull e começa a considerar o sentido 99 denotativo de tal afirmação, ou seja, Constancia morria, literalmente, a cada discussão com seu esposo. O desenlace da narrativa leva o leitor completar a lacuna produzida por essa elisão, fazendo-o pensar que Constancia passava esses períodos de reclusão na casa vizinha, junto seus mortos, o senhor Plotnikov e o filho do casal. Contudo, isso permanece somente como hipótese, já que não se consegue saber o que ocorria exatamente com a andaluza durante essas ocasiões. O emprego do verbo “jugar” sugere, igualmente, a ambivalência de significado e podemos interpretá-lo como sinônimo de “divertir-se/entreter-se” ou no sentido de manusear estratégias com a finalidade de conseguir algo. Pela ótica do primeiro significado, podemos pensar que Constancia voltava feliz aos braços de Hull por causa da reconciliação após a desavença. No entanto, a colocação desse verbo tendo em vista o desfecho da narrativa abre margem para considerarmos a segunda opção: a reconciliação com Hull seria uma estratégia que Constancia utilizava para “sobreviver” e levar “vida a sus muertos”, já que a narrativa deixa entrever que eles dependiam do americano: “¿Cuánto tiempo estuviste, Constancia, llevándoles vida – mi vida – a tus muertos?” (FUENTES, 1991, p. 75). Considerando a elipse por um ponto de vista mais amplo, verifica-se que a própria história da protagonista parece estar envolta, para Hull, em um grande vazio de informações. Constancia consegue omitir de seu esposo, por quatro décadas, sua condição existencial, de “fantasma” e de esposa do ator russo. Sempre fascinado por narrativas policiais, o americano não percebe que, a seu lado, ocorria algo muito mais misterioso do que os desenvolvidos pelas ficções que lia. Ele somente se dá conta disso após a revelação de Plotnikov e o desaparecimento de sua esposa: Algo escapa a mi inteligencia este atardecer de agosto en que el señor Plotnikov me ha anunciado su muerte y me ha pedido que yo la corresponda visitándolo el día de la mía. Y lo que me escapa es lo esencial: ¿qué me quiere comunicar Constancia con todos estos movimientos insólitos en un día tan particular? (FUENTES, 1991, p. 26). Tomado pela curiosidade e imerso em dúvidas, Hull decide elucidar os fatos e acaba descobrindo que todos (o ator, Constancia e ele próprio) estavam inseridos em um grande enigma, que não poderia ser explicado nem pela ciência e nem por nenhum detetive dos romances que ele lia. Diante da instauração do insólito e da impossibilidade de solucioná-lo racionalmente, Hull vê suas crenças racionalistas serem minadas por essa outra realidade que se impõe. Atordoado, ele coloca em dúvida a sua identidade e, até mesmo, a sua existência: 100 ¿Fui alguna vez el doctor Whitby Hull, natural de Atlanta, Georgia, estudiante de medicina en Emory, [...] casado con española, arraigado de vuelta en Savannah, mirando al Atlántico, cirujano, hombre de letras, hombre apasionado, hombre secreto, hombre culpable? […] ¿Fui alguna vez un joven médico sureño estudiando su postgrado en Sevilla? (FUENTES, 1991, p. 53) Nesse sentido, o que afirma Ceserani ajuda-nos a compreender melhor a caracterização dessa personagem: [...] os protagonistas são muitas vezes médicos ou cientistas, dotados de uma dedicação oitocentesca pela sua ciência e os seus paradigmas de juízo, os quais vêm postos em confronto com personagens de outra natureza, artistas, visionários, viajantes fantásticos, e são levados pelo contato e pela experiência perturbadora a redescobrir dentro de si, e através dos eventos vividos ou narrados, formas de conhecimento ou sensações pertencentes a modelos culturais até então abandonados (2006, p. 104). Hull, um médico enraizado na crença de uma profissão bem sucedida e de um casamento sólido, por meio do contato com Constancia e Plotnikov, vê surgir diante de si outra realidade, até então, embora presente, desconhecida. Trata-se do desconhecimento de si para (re)conhecer o Outro, que, embora estivesse tanto tempo a seu lado, ainda permanecia como um estranho. Nesse ponto, vale salientar que esse trecho de Constancia evidencia diversas continuidades temáticas do fantástico de Carlos Fuentes: o fantástico como desestabilizador de crenças enraizadas e tomadas como certas; a relação de personagens marginalizados com o sobrenatural e, nesse sentido, o protagonismo da figura feminina, que, se revelar, acaba revelando o Outro. Descoberta a “verdade”, Hull sente que seu conhecimento é limitado e, ao contrário do que pensava, todas as leituras que fez e tudo o que estudou não alcançam explicar a magnitude do que acabara de descobrir: “[...] Es más difícil de conciliar con los demás, era que Constancia estuvo muerta en mis brazos por unos instantes [...] melancólico terror que sentí al abrazar a Constancia sabiendo, a ciencia cierta, que Constancia estaba muerta” (FUENTES, 1991, p. 29, grifo no original). Hull sente “terror” por ter abraçado Constancia “morta” por alguns instantes, contudo ele conviveu com ela nessa condição por quatro décadas, sem saber. A desestabilização da percepção da realidade é tão intensa que Hull chega a duvidar da existência de sua realidade, frente ao insólito que acabara de se descortinar. Para suas dúvidas, a única resposta que ele encontra é a seguinte: “Hombre viejo. Hombre intermediario de 101 misterios que ignoraba, mirando al océano desde esta orilla a través de un espejo de lavabo que le repite: hombre viejo” (FUENTES, 1991, p. 53, grifo no original). “Intermediario” no sentido de sabedoria restrita à razão, Hull interpretava a realidade de acordo com a sua visão acadêmico-científica, que funcionava como uma espécie de espelho: barrava sua visão, não o deixava olhar diretamente para a realidade e, sim, para um reflexo dela. Por essa perspectiva, a palavra “océano” pode ser pensada como a própria realidade: o homem conhece somente uma parte dele(a), a superfície, porque as profundezas talvez ele nunca chegue a apreender. A utilização de metáforas é outro recurso empregado em Constancia que colabora para a instauração da ambiguidade, indispensável ao texto fantástico. Segundo estudiosos, a metáfora consiste na “operação verbal, [que] coloca em relação mundos semânticos que normalmente estão muitos distantes”, cuja finalidade é, por meio de jogos semânticos, privilegiar todas “as potencialidades fantasiosas da linguagem, a sua capacidade de carregar de valores plásticos as palavras e a formar a partir delas uma realidade” (CESERANI, 2006, p.71). Em muitos textos fantásticos, a utilização da metáfora induz o leitor a uma interpretação equivocada do fato ao desviar a sua atenção para um sentido que será contrariado posteriormente, diante da sugestão do narrador ou do desenrolar da narrativa de que existem outras possibilidades interpretativas para o evento narrado. Pensando nisso, destacamos a descrição de Constancia feita por Hull no momento em que a protagonista passava por um transe, que misturava “la oración y la risa”: Pero durante estos primeros días de su convalecencia – ¿cómo llamarla, si no? – Constancia no era una mujer, sino un pájaro, un ave de movimientos nerviosos, incapaz de darle a su cuello los giros sutiles de la humanidad, sino un temblor recortado, ornitológico, propio de un ser plumado que no mira hacia adelante, convergente, sino a los lados [...] Como una avestruz, como un águila, ¿cómo un...? (FUENTES, 1991, p. 30) Analisando este fragmento tendo por base o trecho em destaque da novela, percebemos que essa declaração do narrador-personagem leva o leitor a pensar que se trata realmente de uma metáfora, ou seja, essas palavras do americano descrevem de maneira figurada a forma física de Constancia naquele momento de enfermidade. No entanto, a ambiguidade das palavras de Hull e o enredo da narrativa sugerem algo mais: Constancia poderia estar se transformando, literalmente, em uma ave, o que daria outro sentido para as palavras de Hull. A elipse da última palavra do referido trecho é suficiente para gerar dúvida e suspense no leitor, fazendo com que este vá além e cogite a possibilidade de que a andaluza realmente 102 estivesse sofrendo uma espécie de metamorfose (da mesma maneira que Gregor Samsa de A Metamorfose), transformando-se literalmente em um anjo, conforme sugere a seguinte passagem: Escuché en la sala el batir invisible de alas y mi atención se fijó en una foto: el señor Plotnikov de pie, [...] pero inclinado esta vez [...] sobre Constancia vestida de blanco, mi mujer a los quince o dieciséis años, luminosa, con un niño sostenido en el regazo, un niño difícil de definir, borroso también, me sospecho, por su tierna edad indefinida, sin facciones, un niño de un año o quince meses. Los tres, me repito, los tres, me repito cuando corro escaleras arriba, como Constancia cuando se enoja conmigo (FUENTES, 1991, p. 51). Portanto, a elisão mencionada exterioriza o desconcerto de Hull diante da situação sobrenatural, já que ele não conseguiu admitir, verbalmente, o inadmissível, ou seja, a existência de anjos e, consequentemente, de outra realidade. Nesse ponto, salientamos o que disse Furtado: “A primeira condição para que o fantástico seja construído é a de o discurso evocar a fenomenologia meta-empírica de uma forma ambígua e manter até o fim uma total indefinição perante ela” (1980, p. 36). A proposição acima ganha força se pensarmos que é o bater dessas asas que conduz o narrador-personagem até a descoberta do inexplicável: “Escuché en la sala el batir invisible de alas y mi atención se fijó en una foto”. Salientamos que, durante toda a sua exposição, o médico americano enfatiza que sua esposa, diferentemente dele, conhece a realidade somente por meio dos sentidos e da imaginação. Por essa perspectiva, resulta irônico o fato de que algo inexplicável, um bater de asas, coloque o narrador-personagem diante de uma encruzilhada, minando as suas certezas e obrigando-o a considerar outras possibilidades. Isso leva-nos a crer que o fantástico “manifesta desde cedo a sua hostilidade ou, pelo menos, o seu cepticismo perante as conquistas já então bastante notórias do intelecto humano” (FURTADO, 1980, p.136). Nesse sentido, ao escrever Constancia, Carlos Fuentes parece ter sido influenciado pelo conhecido texto de Walter Benjamim sobre a pintura Angelus de Paul Kee, por causa das transcrições diretas desse texto na novela do autor mexicano. Trata-se de uma das Teses da História, a nona especificamente, últimos escritos de Benjamim antes de sua fuga dos nazistas em direção aos Pirineus, lugar onde o intelectual encontra a morte em 1940. Em nosso entendimento, a relação crítica que Fuentes estabelece com esse texto ratifica a tese de que Constancia transformou-se em um anjo. Com o intuito de fundamentarmos melhor essa 103 hipótese e embora a citação seja um pouco extensa, cremos que vale a pena transcrever as palavras de Benjamim: Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele contempla uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso (BENJAMIN, 1985, p. 226). Ignorando uma série de interpretações sobre este inesgotável fragmento e considerando apenas a relação entre este texto e o de C. Fuentes, podemos pensar que as palavras do autor alemão colocadas dentro da narrativa do autor mexicano convergem com a hipótese de que a protagonista andaluza personificaria o anjo descrito por Benjamin, pois ela também tem seu rosto voltado para o passado (sua vida de perseguição, exílio e morte ao lado de Plotnikov, biografia bastante semelhante a do intelectual alemão), que está todo o tempo a seu lado, literalmente. No entanto, perante esse monte de ruínas e sem tempo de “acordar os mortos e juntar os fragmentos”, Constancia é obrigada, pelo “progresso” (representado pelo americano Hull), a seguir em frente, a olhar para o futuro, na tentativa de dar a sua história um desfecho diferente do escrito pela História: La voz del padre, del amante, del esposo, del hijo, le dicen, quédate allá, revive allá, déjanos muertos y sigue viviendo tú, Constancia, en nombre nuestro, no te des por vencida, que no te derrote la violencia impune de la historia, sobrevive, Constancia, no te dejes desterrar, sirve de dique a la marea fugitiva, al menos tú, sálvate, hijita, madre, hermana nuestra, no te sumes a la corriente del exilio, por lo menos tú, quédate allá, crece allá, sirve de signo: ellos estuvieron aquí (FUENTES, 1991, p. 75, grifo no original). Por essa perspectiva, é como se o fantasma de Constancia voltasse do mundo dos mortos para contar aos vivos o que ocorreu com ela e com centenas de pessoas, entre as quais está a sua família, por causa da insanidade e extremismo de regimes ditatoriais. Carlos Fuentes poderia abordar esse tema de diversas maneiras, contudo ele escolhe o fantástico, gênero que descortina vertentes desconhecidas da realidade, para trazer à tona a história de personagens esquecidos pelo tempo e pela História, o que suscita a reflexão sobre o passado, sem apresentar uma verdade ou uma solução para tal fato. 104 Pensando nisso, é possível verificar que o autor mexicano deixa transparecer em sua literatura um pessimismo perante a História e as “conquistas” humanas. Não por acaso, temas como o exílio e o extermínio de pessoas por causa de suas crenças políticas ou religiosas estão presentes em Constancia, representados por Plotnikov e Constancia, personagens que foram perseguidas e mortas durante os regimes stalinista (URSS) e franquista (Espanha) nos anos de 1930. Inconformado com tanto despotismo ao longo da história humana, a voz do autor mexicano parece ressoar através da voz de suas personagens, “¿Por qué, doctor Hull, por qué, por qué tanto dolor inútil?” (FUENTES, 1991, p. 47). Como resposta a tanta violência, separação e morte, Carlos Fuentes busca reunir, por meio de sua literatura, personagens separados por algum tipo de intolerância, seja ela política ou religiosa, como destaca Javier Ordiz: Con el tiempo, este asunto del ‘amor constante más allá de la muerte’ se ha ido engarzando de forma cada vez más estrecha con la interpretación pesimista de una Historia que Fuentes contempla dominada por la intolerancia política o religiosa, cuyas víctimas reaparecen de forma periódica convertidas en fantasmas (No prelo). Assim, existe uma continuidade temática se pensarmos que ocorre o reencontro entre as mais variadas personagens de Fuentes: Maximiliano e Carlota (“Tlactocatzine, del jardín de Flandes”), Llorente e Consuelo (Aura), Plotnikov e Constancia (Constancia), Inez, sua filha e seu marido (Instinto de Inez), Florencio e Guadalupe (“La gata de mi madre”), Georg e Alberta (“La bella durmiente”). Exceto Consuelo e Llorente, todas as demais personagens foram separadas por mortes provocadas por causa dos mais diferentes tipos de radicalismos, político (Segundo Império Mexicano, Ditadura de F. Franco e o Holocausto), religioso (Inquisição), etc. Por essa ótica, a escrita consegue vencer o tempo e a morte por meio do poder da palavra, pois ela dá “novo” desfecho a um fato acabado. A literatura, portanto, (re)cria “novas” realidades e (re)escreve “novas” histórias ao (re)unir o que está definitivamente separado, afinal “no hay palabra que no venza a la muerte porque no hay palabra que no sea portadora de una inminente renovación” (FUENTES, 2002, p. 168). Voltando-nos para a novela Constancia, percebemos que Hull, tentando racionalizar os eventos insólitos, utiliza humor e ironia em seu discurso, com o objetivo de convencer o seu leitor da “normalidade” dos fatos. Contudo, nem mesmo nesses momentos, ele deixa de sentir certo receio diante da revelação do desconhecido, conforme demonstra o trecho em que Plotnikov revela ao americano que iria morrer: “Dejé de abanicarme y moverme. No sabía si 105 reía, lo cual era mi inclinación, o si, más bien, debía someterme a una corriente más profunda que me decía, [...] que debía tomar muy en serio sus palabras”. Após ouvir a profecia de Plotnikov, o narrador-personagem completa: “Pero usted estará muerto entonces – empecé a decir lógica, casi alegremente, aunque perdiendo en seguida mi ímpetu –... quiero decir, el día en yo muera, usted ya no estará vivo...” (FUENTES, 1991, p. 19). O narrador demonstra também seu lado burlesco durante uma das conversas que ele tem com Constancia, momento em que ela afirma estar decidida a começar a ler e pergunta ao esposo qual seria o livro mais indicado: – Está bien. ¿Por dónde empiezo a leer tu famosa biblioteca? – Puedes comenzar por el principio, que es la Biblia. – Nada. Eso sólo los protestantes leen. – ¿Y los católicos? – Lo sabemos todo, josú. Sabemos todito sobre la Santísima Virgen y ustedes, pues nada. – Muy bien, Constancia – reía yo entonces –, muy bien dicho, mi amor. Míranos como los herejes que somos (FUENTES, 1991, p. 40). No fragmento acima, percebe-se que Hull ironiza a “sabedoria” religiosa de sua esposa. Ele racionaliza, ironiza e agrega humor porque é o seu lado científico-bibliófilo que predomina nesse momento. Isso contribui para diminuir a tensão do relato e fazer com que o leitor cogite o evento meta-empírico como inexistente, o que faz com que o sobrenatural ganhe força, pois, ao se instalar definitivamente, ele conseguirá provocar maior impacto em um leitor desprevenido. Assim sendo, para a narrativa fantástica é importante que haja a: “[...] alternância entre a apresentação de elementos inexplicáveis, a hesitação no modo de explicálos, a falsa explicação, a reabertura da hesitação, a introdução de novos elementos inexplicáveis e assim por diante” (CESERANI, 2006, p. 30-31), porque, nesse jogo, cria-se o suspense e amplia-se a impossibilidade de solucionar o enigma. A ambiguidade suscita outro recurso utilizado em narrativas fantásticas: a teatralidade, que, segundo Ceserani, consiste no emprego de artifícios teatrais com o objetivo de ampliar o “efeito de ilusão” no texto (2006, p. 75). Em Constancia, essa teatralidade está personificada nas personagens Plotnikov e Constancia que apresentam comportamentos e discursos ambíguos, evidenciando uma representação. Plotnikov apresenta-se para Hull como um ator exilado, dissimulando, todo o tempo, a sua condição de esposo de Constancia e de fantasma. Entretanto, em seu discurso 106 transparecem indícios disso, ainda que nem o narrador-personagem nem o leitor percebam inicialmente. Como exemplo, citamos uma cena na qual Hull encontra o ator russo em uma cabine fotográfica: “Cuando la cortina se corrió, apareció el señor Plotnikov, me miró y me dijo: – Nos obligan a desempeñar papeles, Gospodin Hull” (FUENTES,1991, p. 14). A ambiguidade das palavras de ambos exemplifica a ideia de teatralidade: Hull emprega o termo “correr a cortina”, utilizado especialmente no teatro, e Plotnikov refere-se ao incômodo de ter que interpretar/representar constantemente, especialmente diante do médico americano. Constancia também é obrigada a representar. Ela desempenha o papel de esposa de Hull e, por isso, abdica o de esposa de Plotnikov. Dessa forma, a andaluza sempre está oscilando entre duas “vidas” diferentes, sendo obrigada a (dis)simular. Tanto é assim que Hull, ao ver Anna Karenina48 certa noite, acaba cochilando e, em uma espécie de sonho, vê o rosto de Constancia sobreposto ao da protagonista do filme: La noche en que me permití el lujo de poner en la televisión la Anna Karenina de Julien Duvivier, me quedé dormido un instante y desperté con sobresalto para encontrar el rostro de Constancia superpuesto al de la actriz británica en la pantalla. Grité sofocadamente (FUENTES, 1991, p. 48). Essa sobreposição reforça o que dissemos: Constancia representava um papel, da mesma forma como atriz do referido filme, cujo enredo, aliás, apresenta similaridades com a novela de Carlos Fuentes, pois a protagonista da película também se sente dividida entre seu marido e seu amante. Assim, da mesma forma como ocorre em outras narrativas de Carlos Fuentes, nas quais o tema do duplo está presente, em Constancia, esse recurso também ocorre, porém deve ser encarado por outra perspectiva, a de dupla personalidade, causada por conta da fragmentação do sujeito, já que tanto Plotnikov quanto Constancia são “duplos de si mesmos” (CESERANI, 2006, p. 75), e, por isso, são impelidos a interpretar papéis. Há ainda outro elemento apontado por estudiosos como recorrentes em narrativas fantásticas: a presença de um objeto que confirme a ocorrência do evento meta-empírico. Dentre os teóricos que já abordaram esse tema, estão Rafael Olea Franco e Remo Ceserani. O primeiro considera que a presença desse objeto é importante porque “estructuralmente se 48 Realizado na Inglaterra em 1948, sob direção de Julien Duvivier, esse filme basea-se no romance homônimo do escritor russo Leon Tolstoi. O enredo apresenta um triângulo amoroso que leva a protagonista a abandonar marido e filho para viver essa paixão. No final, ela acaba se suicidando. 107 requiere un elemento ajeno para corroborar que el hecho inexplicable sí ha sucedido y no es un mero producto de la afiebrada mente de un desquiciado” (OLEA FRANCO, 2004, p. 153). O segundo teórico segue a mesma linha de pensamento e ressalta que essa presença é essencial porque “um objeto que, com sua concreta inserção no texto se torna o testemunho inequívoco do fato de que o personagem-protagonista efetivamente realizou uma viagem, entrou em uma outra dimensão de realidade e daquele mundo trouxe o objeto consigo” (CESERANI, 2006, p. 74). Ambos os autores convergem ao afirmarem que a presença desse objeto é fundamental para confirmar, de fato, a existência do sobrenatural ou a ida do protagonista até um outro mundo. Por essa ótica, em Constancia, existem diversos objetos que substanciam o evento insólito, entre os quais destacamos dois. O primeiro deles refere-se a uma espécie de grampo em forma de chave que Constancia sempre utilizava em seus cabelos: “No usa peinetas, aunque sí unas horquillas plateadas, nada usuales, puesto que tienen forma de llaves, con las que se sostiene el pelo” (FUENTES, 1991, p. 26). Durante os dias em que Constancia esteve enferma, Hull tira o acessório do cabelo de sua esposa e guarda-o consigo inconsciente de que aquele grampo em formato de chave abriria caminho para descoberta do sobrenatural. Posteriormente, ansioso por desvendar o mistério que parecia interligar Plotnikov e Constancia, o narrador-personagem decide ir até a casa de seu vizinho, onde acaba encontrando fotos e objetos pessoais do russo e de Constancia, entre os quais estava uma tumba. Ao tentar abri-la, o americano não consegue, porque a tumba estava fechada. Nesse momento, ele se lembra do grampo-chave de Constancia, o introduz na fechadura e acaba se depara com o sobrenatural: La horquilla en forma de llave entró perfectamente en la cerradura [...] Levanté la tapa. Monsieur Plotnikov, ahora vestido todo de blanco, yacía adentro del mausoleo de madera. Abrazaba el esqueleto de un niño que no podía tener más de dos año de edad” (FUENTES, 1991, p. 58). O fato de Hull conseguir abrir a tumba de Plotnikov com o grampo de Constancia corrobora a relação entre o russo e a andaluza, personagem esta que esteve todo o tempo com a chave do mistério em sua cabeça, literalmente, e, por meio dela, tinha acesso a sua outra família sempre que desejasse. Esse primeiro objeto desempenha duplo papel dentro da narrativa: comprovar a relação de Constancia com o vizinho e revelar a existência do sobrenatural ao protagonista. 108 O segundo objeto que prova a veracidade do inverossímil é um conjunto de documentos encontrados por Hull em um cartório de Sevilla. O americano, completamente tentado pelo enigma que havia se descortinado diante de si na casa de Plotnikov, viaja até a cidade espanhola, possível cidade natal de Constancia, com o objetivo de obter mais informações sobre o passado de sua esposa. Eis a justificativa que ele encontra para tal atitude: No es posible que un norteamericano deje en paz el misterio ajeno, menos aún si siente que se ha convertido en misterio propio; necesitamos hacer algo, la inactividad nos mata, y lo que yo hice fue visitar los archivos municipales de Sevilla para inquirir sobre Constancia y averiguar lo que yo ya sabía: existía un acta matrimonial, la nuestra, cuya copia yo llevaba siempre conmigo y que conocía de memoria, mis generales de un lado, mi fecha de nacimiento, mis padres, mi profesión, mi lugar de residencia y en la siguiente columna los datos de ella, Constancia Bautista, soltera, alrededor de veinte años, padres desconocidos, créese natural de Sevilla (FUENTES, 1991, p. 60). Observa-se, no trecho acima, a postura detetivesca e altiva de Hull que, mesmo após descobrir a ligação entre Constancia e Plotnikov e de ambos com algo inexplicável, permanece seguro da veracidade de seu matrimonio e realiza viagem apenas para “averiguar lo que yo ya sabía”. Munido de certezas e do único comprovante que possuía de seu matrimônio com Constancia, o narrador-personagem segue para o cartório da cidade espanhola, onde sofrerá mais um choque ao descobrir que seu casamento, na realidade, nunca existiu perante a lei: Encontré que mientras mis datos seguían allí, habían desaparecido los de mi mujer con la que me casé, a no dudarlo, un 15 de agosto de 1946. Mi nombre, mis fechas, mi genealogía, aparecían ahora huérfanos [...]. Frente a mi columna escrita, había una columna vacía (FUENTES, 1991, p. 60). Tanto o documento do cartório quanto a cópia que o narrador-personagem levava sempre consigo não comprovavam nada. Ignorando o que seria o primeiro indício da existência de algo anormal, Hull nunca desconfiou da imprecisão dos dados de Constancia na certidão, “alrededor de veinte años, padres desconocidos, créese natural de Sevilla”, mesmo após entrar na casa de Plotnikov. Nesse sentido, vale salientar dois pontos: primeiro, a maneira como esse texto foi arquitetado privilegia o questionamento da legitimidade do discurso “oficial” por meio da destituição de legalidade do documento de Hull; segundo, tanto Hull quanto Constancia levavam consigo objetos que confirmassem seus relacionamentos. O americano sempre carregava sua certidão de casamento, documento que provava a sua relação com Constancia; esta, por sua vez, sempre usava o grampo em forma de chave, objeto que 109 comprovava a sua “união” com Plotnikov. Apesar da perplexidade ao descobrir a ilegitimidade de seu casamento com Constancia, Hull decide seguir adiante em sua investigação, “oponiendo [...] la acción a la pasividad, constantemente” (FUENTES, 1991, p. 60). O americano solicita outro documento ao atendente do cartório e, no dia seguinte, com esse documento em mãos, o jovem revela ao narrador-personagem: Las personas que le interesan a usted, doctor Hull, llegaron de Rusia a España en 1929, huyendo de la situación política allá, y trataron de salir de España a América en 1939, huyendo de la guerra nuestra. Desgraciadamente, fueron detenidas en el puerto de Cádiz por fuerzas nacionales que leyeron en los pasaportes el origen ruso y, por lo visto, lo asociaron a ciertas inclinaciones políticas. Las tres personas – el hombre, su esposa y el niño de diecisiete meses – fueron asesinados en la calle por estas fuerzas que menciono. Fue una ironía de la guerra (FUENTES, 1991, p. 62). Essa era a informação que faltava para completar o mistério: Constancia e sua família foram assassinadas durante o regime franquista, o que faz com que o enigma permaneça em torno da possibilidade da existência de fantasmas, dúvida esta que não será resolvida nem mesmo ao final da narrativa, pois “para que el efecto de lo fantástico sea pleno, es necesario que el desenlace no se explique, sino que se mantenga en el terreno de la duda” (OLEA FRANCO, 22004, p. 41). Nesse sentido, a ambiguidade deve ser mantida até o fim, como salienta F. Furtado: A essência do fantástico reside na sua capacidade de expressar o sobrenatural de uma forma convincente e de manter uma constante e nunca resolvida dialética entre ele e o mundo natural em que irrompe, sem que o texto alguma vez explicite se aceita ou exclui inteiramente a existência de qualquer deles (1980, p. 36). Após afirmar que a família havia sido assassinada, o atendente completa a sua informação: De la pareja y el niño se sabe sólo porque sus señas de identidad quedaron en manos del partido triunfante. Esta familia [...] había ordenado que se le enviaran a América sus baúles, sus muebles, y otros efectos personales. [...] Los efectos llegaron, pero sus dueños no (FUENTES, 1991, p. 63). Ao receber essa informação, Hull pergunta ao atendente qual seria o destino de tais pertences e acaba obtendo a seguinte resposta do funcionário: “Al puerto de Savannah, doctor” (FUENTES, 1991, p. 64). Com esta última revelação, o leitor tem diante de si um 110 encerrar brusco de capítulo, que não permite saber qual foi a reação de Hull ao receber tal informação. Nesse momento, é como se o narrador-personagem precisasse de uma pausa para refletir sobre a descoberta que acabara de fazer. O fato do americano interromper a sua narração suscita diversas dúvidas no leitor, obrigando-o a fazer o mesmo que Hull: recapitular, refletir e buscar possíveis respostas, como um detetive. A existência dos objetos (grampo e documentos) e o depoimento do funcionário do cartório são fundamentais para o desenrolar da narrativa, porque eles ativam o sentimento do fantástico ao atestarem o sobrenatural. Assim, desvenda-se o enigma, mas isso apenas suscita outras tantas perguntas, conforme explícito no próprio texto: “[...] era un misterio más, no una solución racional. No quería otro misterio. Sabía que cualquier intento de explicar lo sucedido se convertiría, a su vez, en nuevo enigma [...]. El enigma engendra otro enigma. En esto se parecen el arte y la muerte” (FUENTES, 1991, p. 59). No caminho de volta para sua casa, Hull reflete sobre os motivos que desencadeariam uma guerra, sobre a quantidade de mortos que ela provoca e sobre o sofrimento pelo qual passou Constancia. Esse último pensamento leva o narrador-personagem a sentir-se culpado por não ter ajudado a sua esposa: “Perdóname, Constancia, por haberme tardado tanto en traerte a América...” (FUENTES, 1991, p. 70). Embora Hull tenha regressado diferente de Sevilla, ele ainda não estava preparado para o que encontraria em sua casa: Mi corazón dio un salto: Constancia había regresado, me esperaba... No tuve que abrir la puerta. Al tratar de introducir la llave [...] la puerta, empujada por mí, se abrió sola y todos mis fantasmas reencarnaron de un golpe. Pero ya no pude, por algún motivo, pensar más en Constancia sóla. En cambió pensé: Aquí me esperan ellos, invitándome a unirme a ellos. Constancia nunca sola: – Visíteme, gospodin Hull, el día de su propia muerte. Ésa es mi condición. Nuestra salud depende de ello (FUENTES, 1991, p. 71-72). Este fragmento é interessante porque demonstra as emoções da personagem diante da possibilidade de encontrar com Constancia, agora “fantasma”, para ele. Ele dispara mecanismos de suspense, como “mi corazón dio um salto” e “no tuve que abrir la puerta”, deixando o leitor atento para o que aconteceria. Hull sente medo e pressente que a família o esperava, fato que deixa margem para pensarmos que ele também estivesse morto, pois sua chegada na casa onde estavam Plotnikov e Constancia remete diretamente ao que dissera o 111 ator russo: Hull somente o visitaria no dia de sua morte, após descobrir todo o mistério. Isso faz com que o leitor não consiga saber se o americano está vivo ou morto, e essa dúvida é intensificada com a seguinte declaração do narrador-personagem: Acepté en ese instante que éste – el día de mi regreso al hogar – era el día de mi muerte. Me di cuenta, con un sentimiento de vértigo, de que todos los aparecidos (¿cómo llamarlos?) de esta historia reclamaban solamente un aplazamiento, la gracia de unos días más de vida [...] ¿Por qué iba a ser yo la excepción? ¿Carecía yo sólo de la humildad necesaria para hincarme – frente al Mediterráneo o el Atlántico, en las dos orillas – y pedir: - Por favor, un día más de vida? Por favor... (FUENTES, 1991, p. 72). Este trecho reforça a suspeita da morte de Hull, pois o americano abandona definitivamente a sua postura de detetive ao entender que ele não era somente um mero espectador/investigador e, sim, parte de todo aquele mistério. O narrador-personagem deixa de ser “ignorante”, adjetivo sempre relacionado à Constancia, e passa a conhecer o irreconhecível, o que possibilita que ele contemple as duas margens do oceano, “Frente al Mediterráneo o el Atlántico, en las dos orillas” (FUENTES, 1991, p. 72), e não apenas uma, como ele destaca anteriormente: “Hombre intermediario de misterios que ignoraba, mirando al océano desde esta orilla a través de un espejo de lavabo que le repite: hombre viejo” (FUENTES, 1991, p. 53, grifo no original). Pressentindo que esse retorno seria distinto, pois o sobrenatural havia se instalado definitivamente em seu lar, Hull encontra Constancia, Plotnikov e a criança, que se escondiam em sua casa: Ellos estaban acurrucados en un rincón, protegiéndose entre sí, abrazados, los tres [...]. El hombre moreno, joven, bigotón, con el pelo cedoso y revuelto, los ojos de mapache, a la vez inocentes y sospechosos, la camisa y el pantalón azules, las botas viejas, abrazado a la mujer con cara de venadillo, el pelo restirado, en chongo, la barriga grande y la ropa floja, esperando al siguiente niño, porque abrazaba a uno de quince o veinte meses, moreno y sonriente, con una gran risa blanca en medio del oscuro terror de sus padres [...] (FUENTES, 1991, p. 72-73). Com medo de ser denunciado para seus perseguidores por Hull, Plotnikov argumenta: señor, pero nosotros nos salvamos de milagro, sólo quedamos nosotros vivos de ese pueblo, deja que nazca nuestro hijo, un día queremos regresar, pero antes hay que vivir, antes hay que nacer para regresar un día, ahora no se puede vivir en nuestra patria (FUENTES, 1991, p. 73). O último pedido de Plotnikov registrado nos escritos do americano inicia-se com letra 112 minúscula e não está nem entre aspas nem precedido de travessão; ele simplesmente surge na página, como se a voz da personagem já não fosse mais intermediada pelo filtro do narradorpersonagem, dando a entender que o americano deixou de ser narrador para se transformar em uma personagem a mais incluída naquele mistério. Outro dado interessante é que as palavras de Plotnikov sugerem uma regressão no tempo: “nos salvamos de milagro”. Por essa perspectiva, Hull, diante dessa espécie de “sagrada família” que voltava a se reencontrar, tem a oportunidade de mudar o passado e dar aos refugiados uma segunda chance para reescrever as suas histórias; tarefa, aliás, que ele aceita com alegria: [...] Acepté ser esto y serlo con alegría, con honor, ser el intermediario entre realidades que yo no poseía, ni siquiera dominaba, pero que se presentaban ante mí y me decían: nada nos debes, salvo el hecho de que tú sigues vivo y no puedes abandonarnos al exilio, a la muerte y al olvido. Danos un poco más de vida, aunque tú sólo la llames recuerdo, qué te cuesta (FUENTES, 1991, p. 72-73). Assim, o narrador-personagem de Constancia “se rinde a la evidencia de lo fantástico en una suerte de ‘iniciación’ que acaba definitivamente con la falacia realista y sitúa la acción hasta el final en los dominios de esa ‘segunda realidad’” (ORDIZ, no prelo). O desfecho da narrativa sugere que a morte de Hull foi apenas simbólica, “la convocatoria es perpetua: me llaman” (FUENTES, 1991, p. 76), já que ele deveria continuar vivo para proteger a família da morte e do esquecimento e para escrever o seu relato, pois, caso contrário, o leitor estaria diante de escritos feitos por alguém que já estaria morto. Essa então seria a missão de Hull: passar a história de Constancia adiante e ressuscitar a sua família através de seu “recuerdo”. Aliás, esta palavra ao lado de “refugio” (presente inclusive na dedicatória da obra), “imaginación” e “regreso” simbolizam algumas ideiaschave na narrativa de Carlos Fuentes, como, por exemplo, o sentimento de nostalgia das personagens Constancia e Plotnikov provocado pela perda de uma condição inicial, interrompida tão violentamente. O fantástico, assim, reelabora uma forma de revelar a história das personagens que foram silenciadas pela catastrófica experiência humana da busca pela racionalidade, sonho este que se transformou em pesadelo. Para concluir, salientamos que, em Constancia, o evento sobrenatural instala-se de maneira tão mais convincente que a própria realidade cotidiana, agregando-se a esta, completando-a. Ao encarar o mistério como algo a ser elucidado, Hull arrasta o leitor para dentro de seu jogo narrativo-detetivesco, prendendo-o por meio da curiosidade. Este, ao 113 aceitar esse pacto ficcional, compartilha do mesmo sentimento do narrador-personagem perante a irrupção do evento insólito: vê desmoronar diante de si a sua percepção de realidade empírica no momento em que a narrativa o conduz até um caminho sem saída, de onde ele somente consegue contemplar o conjunto de mortos e os fragmentos do passado, a ruína enfim, viva “permanência de la história” (FUENTES, 1991, p. 67). 3.1 A PERSONAGEM FEMININA DE CARLOS FUENTES: CONSTANTE DESVENDAR DE OUTRAS REALIDADES Miré velozmente, cerca de mí, a nuestra virgen vecina, la madonna andaluza, virgen de toreros, procesiones, burlas, blasfemias atroces, bailes gitanos y cuerpos ardientes. La virgen rusa decía nunca, en ningún lado; la virgen andaluza gritaba aquí, ahora. Constancia siempre lo dijo: Andalucía, agua, surtidor y espejo (Constancia, FUENTES, 1991, p. 32, grifo no original). Rompía demasiadas reglas, sólo para convertir las excepciones en rutinas (Constancia, FUENTES, 1991, p. 36). Ao analisar as obras de Carlos Fuentes que se alinham com a literatura fantástica, verificamos que, desde suas primeiras publicações, o autor mexicano demonstra a preocupação em construir personagens femininas que se transformam em figuras centrais para o desenvolvimento do enredo49. Parte desse grande interesse do autor por protagonistas femininas justifica-se pelo fato de Carlos Fuentes ter se impressionado com a biografia de Carlota, imperatriz do Segundo Império Mexicano, que ficou louca, após o assassinato de seu esposo Maximiliano. O autor se impressionou depois de ver duas imagens de períodos distintos da vida dessa personagem histórica, uma durante sua juventude e apogeu e outra dela morta, dentro de um caixão50. O contraste entre as duas fases dessa mulher serve como ponto 49 Essa característica também se explicita nos textos realistas do autor, se pensarmos no protagonismo de personagens como: Teódula Moctezuma, a velha índia feiticeira de La región más transparente (1958), Claudia Nervo, a estrela de cinema, “hechicera y madre al mismo tiempo” de Zona sagrada (1967), Harriet Winslow, a jovem professora americana de Gringo Viejo (1985), Laura Díaz, a fotógrafa e militante política de Los años con Laura Díaz (1999), entre outras. 50 Relata o autor o episódio em carta a Gloria Durán: “Cuando tenía siete años y, después de visitar el Castillo de Chapultepec y ver el cuadro de la joven Carlota de Bélgica, encontré en el archivo Casasola la fotografía de esa misma mujer, ahora vieja, muerta, recostada dentro de un féretro acojinado, tocada con una cofia de niña: la Carlota que murió loca, en un castillo, el mismo año en que yo nací” (FUENTES apud DURÁN, 1976, apêndice). 114 de partida para que o autor mexicano passe a refletir sobre suas personagens femininas, que, assim como Carlota, se dividem entre o apogeu e a decadência, entre a lucidez e a loucura, entre a vida e morte. Sobre esse protagonismo feminino presente na obra de Carlos Fuentes, a seguinte declaração do autor sobre uma de suas personagens converge com o que acabamos de argumentar: “Es una figura central y los hombres no permiten que las mujeres sean figuras centrales; se les destierra a los extremos, pues México es un país en donde las mujeres están condenadas a ser monjas o putas” 51. Considerando essa afirmação tendo em vista a ideia de que Carlos Fuentes se caracteriza por ser um intelectual crítico, percebe-se que o autor mexicano lança mão da literatura como meio de oposição ao pensamento machista ao criar personagens femininas figuras que transitam entre diferentes universos e conseguem extinguir as mais diversas fronteiras porque reúnem, simultaneamente, aspectos “sagrados” e “profanos”. “Ambivalentes”, essas “brujas o hechiceras” adquirem especial protagonismo dentro do universo simbólico da narrativa fantástica ao despertarem nas demais personagens a consciência da existência de outras “realidades”, inexplicáveis e ocultas até então. Essa continuidade temática pode ser verificada em personagens como Carlota de “Tlactocatzine, del jardín de Flandes” (1954), Consuelo de Aura (1962), Nuncia de Cumpleños (1969), a boneca humanizada de La desdichada (1990), Inez de Instinto de Inez (2001), Ofelia de “El amante del teatro” e Alberta Simmons de “La bella durmiente”, somente para mencionar alguns exemplos. Georgina Gutiérrez também assinala na mesma direção: La mujer, en efecto, tiene un papel fundamental en Constancia y otras novelas para vírgenes. La figuración de lo fantástico, de los sueños de Constancia, la singularidad de la estética, descansan en la fuerza literaria de las mujeres, en quienes afinca una de las líneas de lo fantástico elaboradas por Fuentes (2008, p. 136). Embora se refira a uma obra específica, as palavras da teórica ratificam o que expusemos anteriormente, já que a obra fantástica de Carlos Fuentes deve sempre ser pensada como um conjunto. Dessa forma, partindo da hipótese de que as personagens femininas são essenciais nos textos fantásticos do autor mexicano, o presente sub-capítulo tem como 51 Carlos Fuentes refere-se à Claudia Nervo, personagem do texto considerado realista Zona Sagrada (1967). Apesar disso, essa fala do autor ajuda-nos a compreender melhor o pensamento do mexicano sobre o tema e ilumina perspectivas interpretativas sobre a construção de suas personagens femininas, de obras fantásticas ou não. 115 objetivo investigar a caracterização de Constancia a fim de entender de que maneira a construção dessa personagem, por meio da linguagem, sugere a sua relação com o sobrenatural. Buscaremos também traçar comparações, quando possível, entre Constancia e as demais figuras femininas de Carlos Fuentes, com o intuito de apontar continuidades e revelações entre elas. O primeiro aspecto que chamamos a atenção refere-se à caracterização das personagens em Constancia, que foi arquitetada de modo a se contraporem dois universos: o empírico frente ao sobrenatural, o que favorece a intensificação do fantástico. Constancia é figura que está relacionada ao segundo universo, ao sobrenatural. O narrador-personagem sempre a descreve por meio de palavras e expressões ambíguas de maneira a agregar sentidos que vão além dos considerados inicialmente pelo leitor e que ganham novas nuances com o desenrolar da narrativa, principalmente após a revelação do evento insólito. Constancia é a responsável por colocar em xeque a percepção de Hull sobre a realidade tal qual se aceita racionalmente, bem como seus limites entre a vida e morte. Sobre essa personagem feminina, enfatiza G. Gutiérrez: Constancia personifica las reglas de lo insólito y de la ruptura de las leyes naturales. La mujer transita de la vida a la muerte, y a la inversa, viaja de ida y de vuelta de Savannah a Sevilla, ‘dos ciudades laberinto’ para ella comunicadas (2008, p. 136). Ao invés de fragmentar-se mediante características, aparentemente, tão paradoxais, Constancia utiliza-se disso a seu favor, o que a torna uma personagem excepcional, no sentido fantástico do termo. Por meio dessa inconstância, ela consegue transitar entre distintas realidades, o que, aliás, se opõe à característica expressa em seu nome. Vejamos de que forma esses elementos aparecem na narrativa de Carlos Fuentes. O primeiro exemplo que destacamos encontra-se nos dois trechos em que o narrador oferece detalhes sobre essa personagem: Sólo yo recuerdo, en todo el mundo, a esa muchacha andaluza, tan fresca y graciosa, tan amorosa y salvaje, que olía, como su tierra, a toronjil, lirio y verbena, y que tomaba el sol en las plazas de Sevilla como un desafío a la muerte, porque Constancia era, como estrellas, enemiga del día y era en la cama y en la oscuridad – nocturna o procurada – donde sus jugos fluían y sus juegos enloquecían (FUENTES, 1991, p. 42, grifo no original). [...] Sesenta y un años una andaluza protegida hasta la última sombra de los rayos del sol, Constancia color de azucena, Constancia de estatura mediana y 116 pierna corta, talle aún estrecho pero tobillo grueso, amplio busto y cuello largo: ojos dormidos, ojerosos, un lunar en la boca y el pelo entrecano restirado, desde siempre, en el chongo. No usa peinetas, aunque sí unas horquillas plateadas, nadas usuales, puesto que tienen forma de llaves, con las que sostiene el pelo (FUENTES, 1991, p. 26). As descrições anteriores representam dois períodos distintos da vida de Constancia: a primeira, antes do casamento com Hull, e a segunda, após. Para começar, chamamos a atenção para a seguinte afirmação do narrador no primeiro trecho: “Sólo yo recuerdo, en todo el mundo, a esa muchacha andaluza”. Essas palavras de Hull sugerem que Constancia somente existia para ele, em sua lembrança, o que evidencia, de alguma maneira, a condição dela, ou seja, de morta e/ou de fantasma, esquecida para o mundo e, por isso, o verbo “recuerdo”, no sentido de se fazer e de fazê-la existir, como exposto anteriormente neste estudo. Destacamos ainda o fato de Constancia proteger-se do sol em ambas as épocas de sua vida, porém, quando jovem, ela o fazia “como un desafío a la muerte”; desafio no sentido de que ela, como “morta”, continuava mantendo hábitos de “vivos”, ou seja, mostrando-se em plena luz do dia e resistindo, portanto, a aceitar o que lhe ocorrera. Essa hipótese se confirma se pensarmos que Constancia estava ciente de sua condição de fantasma e, justamente por isso, ela se expunha nas praças de Sevilla, “una ciudad fantasmal”, onde “el pasado vive, generalmente sin que se advierta” (FUENTES, 1991, p. 52), pois seu intuito era seduzir algum admirador/amante, que daria vida a ela e aos seus novamente: “¿Cuánto tiempo estuviste, Constancia, llevándoles vida – mi vida – a tus muertos?” (FUENTES, 1991, p. 75). Tais características convergem com as observações feitas por Octavio Paz sobre a mulher: Como todos los ídolos, es dueña de las fuerzas magnéticas, cuya eficacia y poder crecen la medida que el foco emisor es más pasivo y secreto. Analogía cósmica: la mujer no busca, atrae. Y el centro de su atracción es su sexo, oculto, pasivo. Inmóvil sol secreto (2004, p. 41). Como Constancia não compartilha com Hull das mesmas leituras, da mesma língua, de viagens ou mesmo de amizades, ela recorre à sensualidade, o que satisfaz o americano, como ele mesmo confessa: “A mí lo que me enloqueció desde un principio era esa pasión de la obediencia en Constancia, como si mis órdenes sólo fuesen su propio deseo, salvajemente querido por ella y anticipado por mí” (FUENTES, 1991, p. 30). Tal comportamento do narrador-personagem evidencia certo declínio de sua objetividade/racionalidade perante as seduções de Constancia, o que faz com que ele se renda à “magia” da sensualidade da 117 andaluza. Em determinados momentos, Hull demonstra alguma reação diante desse “encanto” de Constancia: “¿Crees que a la larga voy a bastarme con tu domesticidad de día y tu pasión de noche; cuando nos hagamos viejos, de qué vamos a hablar tu y yo?” (FUENTES, 1991, p. 37). Porém, isso dura pouco, pois Constancia sempre consegue surpreendê-lo com sua ambivalência: “Iba a misa, rezaba mucho de noche, luego se entregaba a un placer sexual casi indecente, si no lo hubiesen precedido horas enteras de oración, hincada allí frente a la veladora y la imagen de la Macarena...” (FUENTES, 1991, p. 36). Esse comportamento dual de Constancia é resultado de uma constante interação entre ela e dois universos distintos: o espiritual e o carnal, representados por Plotnikov e Hull respectivamente. Ora ela reza e estreita a sua ligação com Plotnikov, ora ela ama e aproxima-se de Hull e da realidade proporcionada por ele. O ato sexual, portanto, é o meio pelo qual Constancia vincula-se a realidade e Hull é quem a coloca em contato com esse mundo, do qual ela, sendo um fantasma, já não faz mais parte. As palavras de Gloria Durán confirmam a nossa hipótese: “En Fuentes [...], el acto sexual sirve, en realidad, como una conexión ritual con el universo” (1976, p. 31). Cremos que o erotismo na obra fantástica de Carlos Fuentes deve-se ao fato do autor mexicano produzir narrativas que se alinham com o fantástico mais tradicional, do século XIX, momento em que falar sobre sexo ainda era um tabu. O fantástico encarado por esse viés vai na esteira do que postulou Todorov, ou seja, o gênero desempenha a função social de trazer à tona temas ainda “censurados” por uma sociedade52. O protagonismo feminino e o machismo estão entre esses temas, os quais Carlos Fuentes procura debater por meio de sua literatura, fazendo, inclusive, referências disso em suas entrevistas: He sido atacado por haber mostrado mujeres muy impuras, pero esto se debe a la visión negativa de la mujer que tiene mi cultura. Una cultura que combina árabes, españoles y aztecas no es muy propicia al feminismo. Entre los aztecas, por ejemplo, los dioses masculinos representan una sola cosa: viento, agua, guerra, mientras que las diosas son ambivalentes, representando a un tiempo pureza y suciedad, noche y día, amor u odio. Constantemente se mueven de un extremo a otro, de una pasión a otra, y éste es su pecado dentro del mundo azteca. Hay un patrón de ambigüedad femenina en mis novelas53. 52 T. Todorov aborda a relação entre fantástico e sexualidade em “Temas do tu”, capítulo de seu livro Introdução à literatura fantástica, no qual ele discorre sobre o homem e seus diferentes tipos de desejos (2004, p. 133). 53 Entrevista concedida a Alfred MacAdam e Charles Ruas. In: HERNÀNDEZ, Jorge (comp.). Carlos Fuentes: 118 O erotismo presente nas figuras femininas de Carlos Fuentes evidencia-se em personagens como Aura/Consuelo, Nuncia, a manequim de “La desdichada”, Constancia, Elisia, Alberta, entre outras. Todas elas têm em comum a relação com o sobrenatural e o fato de usarem o sexo para atingir determinados objetivos, entre os quais está o conectar-se com o mundo real. Voltando aos aspectos da caracterização de Constancia, nos quais o narradorpersonagem afirma ser o único a recordar dela andaluza e a compara com elementos da natureza, verificamos que Hull opta por empregar substantivos como “azucena”, “lirio”, “toronjil” e “verbena”, ambos relacionados à natureza, o que alude a significados interessantes desde o ponto de vista de uma narrativa fantástica. A respeito das flores (açucena e lírio), podemos interpretá-las sob duas óticas: forma e simbologia. Sobre a primeira, chamamos a atenção para a utilização, pelo narrador-personagem, de várias expressões que fazem alusão à condição de morta/fantasma de Constancia por meio da tonalidade de sua pele: “Constancia color de azucena” (FUENTES, 1991, p. 26), “rostro blanco de Constancia” (FUENTES, 1991, p. 26), “rostro palidísimo de Constancia” (FUENTES, 1991, p. 27) e, posteriormente, “ella ha dormido largamente. Su palidez helada como un cielo de metal me ha mantenido junto al lecho de Constancia toda esa noche y el día entero” (FUENTES, 1991, p. 28). O cuidado de Constancia em não se expor ao sol, após casar-se com o americano, também chama a atenção, pois destoa de sua atitude anterior, quando a andaluza frequentava as praças de Sevilla. Essa palidez da protagonista e o esconder-se do sol contribui para evidenciar a sua ligação com o sobrenatural e, consequentemente, com Plotnikov, se considerarmos que o ator russo mantinha o mesmo hábito de Constancia, abrigar-se de todas as maneiras do sol: [...] señor blanco como una hostia transparente, blanca piel, pelo blanco, labios blancos, ojos palidísimos, pero todo él vestido de negro, a la usanza de la vuelta del siglo, traje negro de tres piezas, un gabán ruso muy grande para el actor [...] lleva abierto un parasol, negro también, y se mueve con un paso lento y polvoso: observo sus zapatillas de charol [...] (FUENTES, 1991, p. 18). Sobre o aspecto simbólico, sabe-se que tanto a açucena quanto o lírio representam, no territorios del tiempo (antología de entrevistas). México: FCE, 1999, p. 50. 119 imaginário popular, a inocência e a pureza, traços também perceptíveis em Constancia, uma personagem que nutre extrema devoção à Virgem, justamente porque ela “no necesitó fornicar ni parir: como una luz que pasa por un cristal, así pasó el Espíritu Santo por su sexo” (FUENTES, 1991, p. 40). Expressos conjuntamente nesta citação, a virgindade e a maternidade são temas centrais em Constancia e nas demais novelas que compõem o volume, o que nos leva a crer que o sexo, para Constancia, funcionava como uma espécie de sacrifício, “los sacrificios personales que mi deliciosa mujer española hacía en El altar de nuestro amor domestico y solitario de una ciudad fantasmal [...]” (FUENTES, 1991, p. 41), que ela realizava com o objetivo de conectar-se ao mundo e “alimentar” seus mortos. Acerca do “toronjil” e da “verbena”, destacamos o efeito sinestésico que o aroma dessas plantas em Constancia pode provocar no narrador-personagem. Esse dado é importante se considerarmos que essa fragrância de flores e plantas, exalada por essa figura feminina, contribui para despertar o desejo em Hull, aflorar seus sentidos e entorpecer sua razão, favorecendo, assim, um impacto maior diante do surgimento do sobrenatural. Esse deslumbramento do narrador-personagem explicita-se também pela maneira como descreve minuciosamente a sua esposa, dando ênfase a partes de seu corpo e citando, inclusive, algumas medidas de maneira genérica: “Constancia de estatura mediana y pierna corta, talle aún estrecho pero tobillo grueso, amplio busto y cuello largo: ojos dormidos, ojerosos, un lunar en la boca y el pelo entrecano restirado, desde siempre, en el chongo” (FUENTES, 1991, p. 26). Ainda sobre a sinestesia, vale notar que Carlota, Consuelo/Aura e Constancia são as personagens femininas de Carlos Fuentes descritas por seus narradores como figuras que têm especial interesse por plantas e flores, pois isso as auxilia a manipular algo ou alguém de acordo com seus desejos. Carlota e seu “jardín de Flandes”, ambiente que contribui decisivamente para o aparecimento do insólito; Consuelo e seu jardim de plantas alucinógenas, aproveitadas por ela para tentar adiar a ação do tempo sobre sua juventude; e Constancia e seu aroma de natureza, elemento essencial durante o período de sedução do americano. Por essa perspectiva analítico-comparativa, podemos pensar que as personagens femininas de Carlos Fuentes utilizam a natureza (plantas e flores) e o sexo para conectar-se ao mundo empírico, além de lançarem mão da oração para se interligarem ao sobrenatural. Isso 120 pode ser constatado principalmente em Consuelo/Aura e Constancia, figuras que têm ambientes parecidos (quartos-oratórios) e mantêm atitudes “religiosas” análogas quando estão nesses lugares: [...] La descubres hincada ante ese muro de las devociones, con la cabeza apoyada contra los puños cerrados. La ves de lejos: hincada […] con la cabeza hundida en los hombros delgados […] Te acercas a esa imagen central, rodeada por las lágrimas de la Dolorosa, la sangre del Crucificado […] Consuelo, de rodillas, [...] se golpeará el pecho hasta derrumbarse, frente a las imagines y las veladoras […] (FUENTES, 1994, p. 24-25). Constancia entra a su recámara [...] y sólo logra hincarse en el reclinatorio español con el que llegó a nuestra casa hace cuarenta años […] Se hincó ante la imagen ampona, triangular, albeante – oro blanco, tules y perla barroca – de Nuestra Señora de la Esperanza, la Virgen de la Macarena; se hincó en el terciopelo gastado, unió las manos, cerró los ojos […] Estábamos en la recamara oscura; sólo una veladora eterna a la virgen brillaba frente al rostro palidísimo de Constancia […] (FUENTES, 1991, p. 27). Ambos os trechos revelam uma prática comum entre os religiosos da cultura cristã dos países latino-americanos, com grande adesão entre as mulheres. Ao ler essas passagens das duas novelas, o leitor considera, inicialmente, tratar-se de cenas do cotidiano, o que favorece o não estranhamento diante disso. No entanto, com o decorrer das narrativas, o leitor acaba se dando conta de que estava enganado, pois as freqüentes orações ocultavam um significado a mais e evidenciavam a relação dessas personagens com o sobrenatural. Tanto é assim que, em Aura, Felipe Monteiro não demonstra nenhum estranhamento ao ver a velha Consuelo diante daquele altar, ainda que estivesse repleto de imagens mescladas entre o “bem” e o “mal”, como o Cristo ao lado de Luzbel. Em Constancia, o quarto de orações da protagonista foi mantido por quarenta anos e Hull nunca desconfiou de nada, nem mesmo das diversas vezes em que ela se trancava naquele lugar durante horas, após um desentendimento com ele. A ambiguidade de Constancia parece refletir inclusive no discurso do narradorpersonagem quando se refere a ela. Ora ele salienta que a andaluza é “inculta”, ora reconhece que não, a sabedoria de sua esposa advém do seu “maravilloso sentido de la cultura popular, mágica y mítica” (FUENTES, 1991, p. 24) e não dos livros, como era o caso dele: “Ella no lee porque ya sabe, yo leo porque todavía no sé y nos encontramos al parejo en una pregunta que yo le hago desde la literatura y que ella contesta desde la gracia” (FUENTES, 1991, p. 25). Importante observar que o narrador-personagem enuncia substantivos que se relacionam com o sema da fantasia e da imaginação (“mágica”, “mítica” e “gracia”), ampliando a significância do fantástico. Imaginar e sonhar são, aliás, duas características de Constancia, 121 verbos que, somados aos substantivos citados, remete-nos diretamente ao cerne do fantástico: Ella nunca había leído a Kafka, no había leído nada. Pero sabía imaginar y sabia que imaginando se conoce. Es parte de un país donde el pueblo sabe siempre más que la elite […] (FUENTES, 1991, p. 24- 25). Ahora yo ya entendía que su sueño, junto con su piedad y su sexo (la oración y el amor), era la verdadera literatura de Constancia, quien aparte de esa vasta novela onírica, erótica y sagrada, que ella misma soñaba, nada necesitaba en su vida salvo la leyenda del hijo sin ventura que una mañana, tristeza de tristezas, compasión de compasiones, podía despertar convertido en insecto (FUENTES, 1991, p. 49). Podemos pensar que Constancia encarna a lógica da conjunção postulada por Olea Franco: vida/morte, sagrada/profana, mãe/amante, passado/presente, Sevilla/Savannah, Plotnikov/Hull. Da mesma forma que Kafka54, Constancia não tem mais vida/biografia que não seja a criada pela “novela onírica” de seu casamento com o americano. Sendo assim, só lhe resta imaginar e sonhar com o dia em que voltará a encontrar o amor e a maternidade ao lado de sua família. 3.2 O ESPAÇO FICCIONAL: INTENSIFICADOR DO FANTÁSTICO Mi casa, habitada siempre, habitada de nuevo. (Constancia, FUENTES, 1991, p. 76). Filipe Furtado argumenta que em narrativas fantásticas é preciso que o espaço ficcional seja construído por meio do intercâmbio de dois tipos de “cenários”: os “realistas” e os “alucinantes”. A respeito do espaço “realista”, o teórico afirma que ele deve predominar nesse tipo de texto para que o leitor perceba a presença de “traços considerados mais representativos do mundo empírico simulando, assim, um rigoroso respeito pelas leis naturais e pelo que a ‘opinião comum’ considera ser real” (FURTADO, 1980, p. 120). Esses traços imprimem verossimilhança ao relato e indicam que o espaço mostrado faz parte de um universo “real” e, portanto, reconhecível para o leitor. Sobre o espaço “alucinante”, o autor português argumenta que a presença desses elementos sobrenaturais, de maneira reduzida, “contribuem para 54 Análise na página 97 deste estudo e realizada a partir do seguinte trecho da novela de Carlos Fuentes: “Así inició su lectura de Kafka y a ella se dedicó con ahínco, repasando los libros una y otra vez, viajando de la biografía a la ficción y encontrando, al cabo, que no había más biografía que la ficción; aceptando, pues a Kafka como Kafka quería ser aceptado, como un hombre sin más vida que la literatura” (FUENTES, 1991, p. 40-41). 122 introduzir dados anormais no cenário anterior, originando parcelas de um espaço aparentemente desfigurado, aberrante e não conforme aos traços do universo que mais familiares se tornaram ao destinatário da enunciação” (FURTADO, 1980, p. 120). É a presença desses traços “alucinantes” que lançam pistas ao leitor de que algo escapa à realidade cotidiana, antecipando a irrupção do evento sobrenatural. Furtado faz ainda a seguinte consideração sobre o espaço na narrativa fantástica: [...] embora deva sobretudo contribuir para situar a acção num mundo de aparente conformidade com o real, quase nunca o espaço fantástico pode ser integralmente ‘realista’, apesar de este tipo de cenário ter nele um predomínio muito acentuado. Híbrido, incerto e mal delimitado, aparentando muitas vezes uma estrita observância das regras que condicionam o mundo empírico para no momento seguinte subverter por completo (1980, p. 128). Em Constancia, os espaços apresentam uma mescla das características assinaladas por Furtado, todos são ambientes “híbridos” que reúnem elementos “realistas” e “alucinantes” e que demonstram, desde o princípio, a iminência do evento sobrenatural. O primeiro exemplo disso está na ambientação55 da cidade de Savannah, “ciudad fantasmal” onde se passa a trama e onde emerge o insólito. No início de sua narração, Hull salienta como é excessivo o calor nessa cidade americana em agosto, época do ano cujo clima entorpece: El calor de Savannah en agosto es comparable a una siesta intermitente interrumpida por sobresaltos indeseados: uno cree que abrió los ojos y en realidad sólo introdujo un sueño dentro del otro. Inversamente, una realidad se acopla a otra, deformándola al grado de que parece un sueño (FUENTES, 1991, p. 11). Nessa primeira descrição, a presença de alguns traços alucinantes está explícita, principalmente se considerarmos que a ambientação construída por narradores de textos fantásticos jamais se resumirá somente ao denotado. Por essa perspectiva, destacamos a ideia central contida no fragmento acima: Savannah provoca nas personagens a sensação de estarem inseridas em um sonho perpétuo. Essa característica alude diretamente ao cerne do fantástico, gênero que prima pelo apagamento de fronteiras entre essas três dimensões: a realidade, a ilusão e o sobrenatural. Estar em Savannah gera a sensação nas personagens de não discernimento entre esses três universos, como se estes se acoplassem uns aos outros, 55 Neste estudo, utilizamos a definição de ambientação postulada por Osman Lins que, segundo o autor, consiste no “conjunto de processos conhecidos ou possíveis, destinados a provocar na narrativa, a noção de um determinado ambiente” (1976, p. 77). Por essa perspectiva, a ambientação não se caracteriza como um simples espaço (quarto, cozinha, etc.) a se visualizar, e, sim, como um todo, construído por meio do trabalho com a linguagem, que gera múltiplos sentidos e significações dentro da narrativa. 123 como uma espécie de boneca russa, expressão utilizada, aliás, pelo narrador-personagem para menção a aquele lugar (FUENTES, 1991, p. 22). Essa imagem da boneca russa implica ainda outra interpretação: a de uma cidade construída por diversas culturas, que foram umas se integrando às outras, formando, assim, um espaço híbrido, onde coexistem americanos e estrangeiros das mais diversas origens. Essa característica é essencial porque aguça a percepção do leitor que percebe estar diante de um universo múltiplo, avesso à visão unívoca de realidade, uma das especificidades do fantástico. Na sequência, o narrador-personagem acrescenta outras informações sobre a cidade americana que indiciam o insólito: Esta sensación de estar capturado en un dédalo urbano viene del trazo misterioso que dio Savannah tantas plazas como estrellas tiene el firmamento, o algo por el estilo. Cuadriculada como un tablero de ajedrez, mi ciudad sureña rompe su monotonía con una plaza tras otra, plazas rectangulares de las que salen cuatro, seis, ocho calles que conducen a tres, cuatro, cinco, plazas de las cuales, en suma, irradian doce, catorce calles que a su vez conducen a un número infinito de plazas. El misterio de Savannah, de este modo, es su transparente sencillez geométrica. Su laberinto es la línea recta. De esta claridad nace, sin embargo, la sensación más agobiante de pérdida. El orden es la antesala del horror [...] (FUENTES, 1991, p. 11). Neste trecho, é possível verificar que o narrador-personagem descreve a cidade de Savannah por meio da alternância entre elementos realistas e alucinantes, ou seja, ao mesmo tempo que Hull apresenta uma realidade cotidiana, ele aproveita para agregar elementos que distorcem essa realidade. Exemplo disso é a maneira como a cidade está disposta: ruas e praças são como um tabuleiro de xadrez, todas organizadas simetricamente de maneira a acomodar diferentes “peças”, que devem respeitar a hierarquia e se movimentar somente em algumas direções, cabendo somente à rainha (Constancia, podemos pensar) deslocar-se para onde lhe convir. Entretanto, retomando a conhecida frase de Goya (“El orden es la antesala del horror”), o narrador-personagem confessa que essa disposição ordenada da cidade lhe provoca a sensação de sufocamento, de vertigem, de “pérdida”. Neste ponto, é necessário refletir sobre essa descrição de Hull sob duas perspectivas. A primeira delas diz respeito à relação desse trecho da novela com o fantástico preconizado por Sartre (2005), cujo cerne reside na ideia de que o homem se sente como um estrangeiro em seu próprio mundo. A segunda perspectiva sobre esse sentimento sufocante de ordem faz alusão à recusa a qualquer noção de uniformização, seja 124 espacial, religiosa, política, biológica, ou seja, qualquer tipo de padronização, de igualamento, de assimilação é danoso ao homem, pois o sufoca. Há ainda no fragmento mencionado outra imagem fundamental para compreender a ambientação da novela do autor mexicano: o labirinto, cuja definição consiste em um lugar sinuoso, “formado artificiosamente por calles y encrucijadas, para confundir a quien se adentre en él, de modo que no pueda acertar con la salida”56. Esse conceito de labirinto vai na contramão da ideia descrita por Hull, que enfatiza a ordem excessiva da disposição espacial de sua cidade. Diante disso, podemos pensar que o narrador-personagem aproxima esses dois conceitos paradoxais, “laberinto es la línea recta”, com o intuito de revelar que Savannah, disfarçada de aparente normalidade, oculta alguma incongruência, definindo-se como uma cidade que abriga diferentes realidades e mistérios, como indica este outro fragmento: “Me esperaba el dédalo de Savannah, una imagen gemela aunque enemiga de Sevilla, dos ciudades-laberinto, depositarias de las paradojas y enigmas de dos mundos, uno llamado Nuevo, el otro Viejo” (FUENTES, 1991, p. 71). Dessa forma, a junção desses termos contraditórios enfatiza o pensamento de que por trás da ordem/simetria se esconde o caos, pois “el orden es la antesala del horror”, como disse Goya. Com o intuito de conferir verossimilhança a sua novela e fazer com o narradorpersonagem obtenha credibilidade perante o leitor, Carlos Fuentes escolhe como espaço onde surgirá o insólito uma cidade que realmente existe. De fato, Savannah fica no Sul dos EUA e sua organização espacial está de acordo com a descrita na narrativa: é uma cidade repleta de praças, umas ligadas às outras. O autor inclui até mesmo nomes verdadeiros de ruas e lugares, como Drayton Street e Hyatt-Regency, por exemplo. Isso cria o efeito de sentido de proximidade do sobrenatural ao leitor, uma vez que o evento meta-empírico não se instala em lugares distantes e desconhecidos para este e, sim, em lugares reconhecíveis geograficamente, o que pode inquietá-lo ainda mais. Como visto em outras narrativas fantásticas de Carlos Fuentes, existe uma preferência do autor por ambientar seus enredos em casarões que de alguma maneira refletem a caracterização das personagens. Isso pode ser constatado na grande maioria das narrativas de Fuentes, como em “Tlactocatzine”, Aura e Cumpleaños, por exemplo. Em Constancia, observa-se uma 56 Definição retirada do Diccionario de la Real Academia Española. Disponível em: http://buscon.rae.es/draeI/ Acesso em: 30 de abril de 2012. 125 continuidade temática nesse sentido, pois tanto a casa de Hull quanto a de Plotnikov revelam parte da personalidade das personagens e antecipam a irrupção do insólito. A casa de Hull, assim como a cidade retratada, é um espaço significativo na narrativa, porque nela o narrador-personagem acredita estar protegido, “en Atlanta paso los martes [...] y el viernes regreso a disfrutar el fin de semana en mi hogar. Es mi refugio, mi asilo, sí. Es mi morada” (FUENTES, 1991, p. 13), e é nela onde primeiro se alojará o inexplicável. O antagonismo entre a racionalidade e os sentidos, representados por Hull e Constancia respectivamente, se evidencia na ambientação da casa do narrador-personagem, onde coexistem dois espaços centrais: a biblioteca de Hull e o quarto de orações de Constancia. Para exemplificar tal dicotomia, citamos dois trechos da novela: Con mis entrenados dedos de bibliófilo yo suelo recorrer los lomos oscuros y los filos dorados y polvosos de mi biblioteca, el lugar más fresco y oscuro de la casa de Drayton Street, y esa agilidad de mi mano, gemela ejemplar de la velocidad de mi mente sexagenaria, es para mí un motivo de orgullo. Yo era – yo soy – un caballero letrado, parte de una herencia que mantiene mal en los Estados Unidos, pero que se mantiene mejor en el Sur [...] (FUENTES, 1991, p. 23). Constancia entra a su recámara [...] y sólo logra hincarse en el reclinatorio español con el que llegó a nuestra casa hace cuarenta años […] Se hincó ante la imagen ampona, triangular, albeante – oro blanco, tules y perla barroca – de Nuestra Señora de la Esperanza, la Virgen de la Macarena; se hincó en el terciopelo gastado, unió las manos, cerró los ojos […] Estábamos en la recamara oscura; sólo una veladora eterna a la virgen brillaba frente al rostro palidísimo de Constancia […] (FUENTES, 1991, p. 27). Apesar de estarem descritos de acordo com as ações das personagens, esses espaços não podem ser considerados como meros panos de fundo na narrativa, pois revelam informações que demonstram o desfecho fantástico da trama, como, por exemplo, o fato de tanto a biblioteca quanto o oratório funcionarem como altares para Hull e Constancia, pois abrigam objetos de devoção de ambos: livros e a imagem de uma santa. Esses lugares de adoração parecem nortear a vida das personagens, que, envoltas pela escuridão (biblioteca: “el lugar más fresco y oscuro de la casa de Drayton Street” / oratório: “estábamos en la recámara oscura”), são guiadas por esses eixos de luz (“veladora”, “filos dorados”) provenientes desses ambientes. A biblioteca e o oratório são espaços que Hull e Constancia utilizam como refúgio, são lugares onde eles encontram algum tipo de repouso necessário. Com isso, a andaluza e o americano passavam horas e até mesmo dias sem se comunicar com o mundo exterior, pois 126 ambos estavam distraídos com as histórias que “imaginavam”: Hull e a literatura, Constancia e a religião, aparentemente. Da mesma maneira como a cidade de Savannah, a casa de Hull parece estar disposta como um tabuleiro de xadrez, onde cada uma das personagens-peças está locada de acordo com sua “função”, somente podendo realizar movimentos a partir disso. Contudo, uma das características do fantástico é a subversão de regras, a transgressão de fronteiras. Por essa perspectiva, percebemos que, a partir do momento em que Plotnikov revela sua morte ao americano e Constancia desaparece, ocorre a renúncia dessas regras, havendo a irrupção do sobrenatural, que desconsidera as fronteiras anteriormente delimitadas e invade o espaço da casa mais apreciado pelo narrado-personagem, “o lugar do conhecimento”, a sua biblioteca: Bibliófilo, lo he dicho, no sólo busco las pastas más finas, sino que mando encuadernar mis hallazgos: los lomos dorados son como una aureola en torno al rostro blanco de Constancia cuando súbitamente, detrás de olla, se ilumina, de un golpe, todas las ventanas, hasta ese instante oscurecidas, de la casa del señor Plotnikov (FUENTES, 1991, p. 26). Todas las noches, las luces de la casa del señor Plotnikov se prenden. Les doy resueltamente la espalda. El resplandor entra por mis ventanas e ilumina los lomos de mis libros. Trato de cerrar los ojos. Pero la convocatoria es perpetua: me llaman (FUENTES, 1991, p. 76). Por meio desses dois momentos distintos da narração de Hull, um ao início e outro ao final de sua história, percebe-se como o sobrenatural se manifesta em sua biblioteca, “convocando” o narrador-personagem a unir-se a ele(s). Diante disso, Hull dá as costas para as janelas de onde vem a luz, da mesma forma como o fazia Constancia: “Constancia, en esta hora del atardecer, está dándole la espalda a la ventana y la ventana, como todos los espacios de la biblioteca, está rodeada de libros” (FUENTES, 1991, p. 26), certamente para não atender ao chamado diário de Plotnikov. Ainda sobre os trechos citados, é interessante atentar-se para dois pontos. O primeiro consiste na imagem da auréola ao redor do rosto pálido de Constancia produzida pelo tom dourado das lombadas dos livros. Ao realizar uma pesquisa sobre o vocábulo “aureola”, encontramos a seguinte definição: “aureola. (Del lat. aureŏla, dorada). 1. f. Resplandor, disco o círculo luminoso que suele figurarse detrás de la cabeza de las imágenes sagradas”57. Essa informação é importante na medida em que colabora para avivar o efeito do fantástico ao 57 Definição retirada do Diccionario de la Real Academia Española. Disponível em: http://buscon.rae.es/draeI/ Acesso em: 30 de abril de 2012. 127 antecipar a relação da protagonista com o sobrenatural, como indicado, inclusive, pelo próprio título da obra: Constancia y otras novelas para vírgenes, que pode se referir a mulheres que não manteram relações sexuais, mas pode também fazer menção a divindades. O segundo ponto está na maneira como acontece a convocatória de Hull: as luzes da casa de Plotnikov se acendem e iluminam as lombadas dos livros do americano. Essa cena é importante se pensarmos que o fantástico, ao longo de sua história, buscou contestar as “conquistas” acadêmico-científicas. Sendo assim, a imagem das luzes da casa de Plotnikov iluminando os livros de Hull simboliza a ideia de que seria o desconhecido/sobrenatural o responsável por lançar luz sobre o conhecido/racional, e não o contrário. Outro espaço que contribui para acentuar o sentimento do fantástico no leitor é a casa de Plotnikov. Conhecendo o desenlace da história de antemão, o narrador-personagem joga com suas palavras, insere expressões realistas misturadas com alucinantes e, com isso, produz duplos sentidos, como na seguinte passagem: “Normalmente, nada emanaba de la casa en la contraesquina de la nuestra. Era una casa deshabitada en apariencia” (FUENTES, 1991, p. 32). Nessa aparente simples descrição, Hull emite algumas palavras que, quando consideradas dentro do contexto da narrativa, evidenciam ambiguidades e acentuam o sobrenatural, como “emanar”, por exemplo, cujo significado estabelece: “Dicho de una sustancia volátil: Desprenderse de un cuerpo”58. O leitor que não tiver essa informação não sofrerá grandes prejuízos na leitura e interpretação do texto. Mas, caso ele conheça a definição desse verbo (“emanar”), certamente cogitará a possibilidade de Hull estar se referindo a algum fantasma, mais especificamente a Plotnikov. O emprego do advérbio “normalmente” também exerce função essencial para o contexto da narrativa, pois desempenha uma dupla função dentro do texto: primeira, funciona como um divisor temporal, demarcando um antes e um depois, e sinalizando a excepcionalidade do momento posterior; segunda, reforça a dúvida ao sublinhar a incerteza de Hull, que dá a entender que, a partir daquele instante, não teria como garantir mais nada, principalmente o não aparecimento de alguém naquele lugar, já que a casa estava “deshabitada en apariencia”. Mais adiante, o narrador-personagem renuncia ao modalizador e afirma categoricamente 58 Diccionario de la Real Academia Española. Disponível em: http://buscon.rae.es/draeI/ Acesso em: 30 de abril de 2012. 128 que a casa está vazia e que não entende como, apesar disso, continuam entregando leite e jornal naquele endereço: Ésta fue mi justificación para huir; […] cruzar la calle Drayton, […] subir los peldaños de piedra de la casa donde habitaba monsieur Plotnikov, tropezar con las botellas de leche acumuladas frente a la puerta, botellas cuajadas, de liquido amarillento ya, con una capa verdosa, los periódicos arrojados con descuido, aunque dentro de su fajilla, los grandes caracteres cirílicos visibles… No entendiendo porque los lecheros insisten en cumplir […] su función […] El lechero le está anunciando al mundo que la casa está deshabitada […] (FUENTES, 1991, p. 49). A utilização dos verbos “emanaba” e “habitaba”, ambos no pretérito imperfeito do indicativo, como observado nos dois últimos trechos referidos, indica que algo ocorreu, por repetidas vezes, no passado, porém não se explicita exatamente quando (dia, mês ou ano), o que sublinha a ambiguidade das palavras do narrador-personagem e transmite ao leitor a incerteza sobre a existência de prováveis habitantes naquela casa. O acúmulo na porta da casa de Plotnikov de leite e jornal entregues diariamente sugere que tipo de habitante poderia viver ali ao mesmo tempo que anuncia a sua ausência. Essa informação anuncia o fantástico, pois, em seguida, Hull descobre quem eram os “reais” habitantes daquela casa, Plotnikov e seu pequeno filho: “Levanté la tapa. Monsieur Plotnikov, ahora vestido todo de blanco, yacía adentro del mausoleo de madera. Abrazaba el esqueleto de un niño que no podía tener más de dos años de edad” (FUENTES, 1991, p. 58). Essa descoberta justifica a entrega de jornais e leite diariamente, porém não soluciona o enigma da morte de ambos, deixando o leitor imerso em certezas que não respondem nada, pelo menos não logicamente. Tratemos agora da ambientação interna da casa de Plotnikov que é descrita pelo narrador-personagem como sendo do século XIX, repleta de cômodos, entre os quais estão três em especial, dois decorados conforme a origem de seus habitantes, um russo e um espanhol, e o outro é o local onde estava o féretro de Plotnikov e a criança. Ao entrar na casa do ator russo, o narrador-personagem passa por um jardim (espaço recorrente na obra fantástica de Carlos Fuentes, como expusemos anteriormente) que leva a dois ambientes distintos, um russo e outro espanhol, Hull opta por entrar no primeiro e faz a seguinte descrição desse lugar: Pasé al comedor ruso, con muebles tan pesados como el soberbio samovar instalado en el centro de la mesa de patas gruesas y blancos manteles; platos 129 con motivos e ilustraciones populares rusas y en los muros no los iconos que mi imaginación había anticipado, sino dos cuadros de ese academismo ruso […] El primero reproducía una escena sumamente externa, una troica, una familia que sale de excursión, mucha alegría, abrigos, pieles […], horizonte inmenso… El otro cuadro, totalmente interno, era una recamara apenas iluminada, una cama de agonía, donde yacía muerta una mujer joven. A su lado, de pie, un doctor, maletín en el suelo, tomando el pulso final de la muerta (FUENTES, 1991, p. 50). Ambas as cenas contidas nos dois quadros pintados em muros e descritos pelo narrador funcionam como retábulos59, ao narrar parte da história da “Virgen” Constancia para que Hull a conheça e, consequentemente, aprenda algo com ela. Essa narração aborda, em um primeiro momento, a época que ela vivia feliz com Plotnikov e o filho do casal, portanto, tinha um “horizonte inmenso” de possibilidades. No segundo momento, cronologicamente posterior ao primeiro, fica sugerido que Constancia já estaria com Hull, o médico. Trata-se do período em que ela se encontra enferma, após a revelação da morte de Plotnikov, instante em que o americano tem a oportunidade de tratá-la como paciente pela primeira vez em quarenta anos de convívio: “Mi emoción fue grande, pues, al tenerla por primera vez entre mis manos (quiero decir, a mi cuidado): mi paciente” (FUENTES, 1991, p. 30). Os advérbios de lugar “externo” e “interno”, presentes no fragmento que descreve o “comedor ruso” e seus quadros, convergem com a nossa hipótese, de que Constancia mostrava-se pelas ruas e praças de Sevilla, mesmo após a sua “morte”, por isso o quadro descreve um ambiente “externo”. Em contraposição a isso, está o outro quadro, em que temos uma descrição “interna” que retoma uma das falas do narrador ao afirmar que sua esposa mantinha-se reclusa em sua casa e, aos entardeceres, passava horas com portas e janelas fechadas para, segundo ele, proteger-se do calor de Savannah. Vale ressaltar a maneira “normal” como o fantástico é construído, ou seja, os dois quadros apenas contam a história de uma mulher e não há, aparentemente, nenhum elemento mágico ou assustador. Eles apenas lançam pistas para o narrador-personagem e para o leitor sobre o fantástico. Diante deles, Hull não percebe nada inicialmente, apesar da referencia explicita à Constancia e a ele. Com isso, dominado por seu instinto de curiosidade em conhecer mais sobre a vida de Plotnikov, o americano continua sua exploração pela casa 59 Segundo o Moderno Dicionário de Língua Portuguesa da Michaelis, o vocábulo “retábulo” consiste em: “1 Trabalho de arquitetura, de pedra ou madeira, com lavores na parte posterior do altar, e em que se representa qualquer motivo religioso. 2 Painel ou quadro que decora um altar. 3 Painel”. Disponível em: http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php. Acesso em: 02 de maio de 2012. 130 vizinha e entra no cômodo seguinte, o decorado com a temática espanhola: El otro salón era la recepción y su carácter era notoriamente español. […] Encima del mantón había una serie de fotografías enmarcadas en plata. No conocía a los representados en ellas; ninguna foto, me dije al observarlas, data de una fecha posterior a la Guerra Civil española. […] Las mujeres vestidas siempre de blanco, pertenecían a una generación capturada entre las virtudes del fin de siglo y los inevitables (y aguardados) pecados del siglo nuevo […]. Las bailarinas eran la excepción: había allí dos o tres retratos de una mujer maravillosamente hermosa, toda ella una ilusión de piernas largas, talle estrecho […], cuello de cisne, […] pelo negro también: la figura inclinada con pasión y gracia hacia la tierra, inclinada para dar vida o perderla: quién sabe. No pude identificar al señor Plotnikov en estas fotos […] (FUENTES, 1991, p. 50-51). Tal qual a anterior, a ambientação desse salão também antecipa a relação entre Constancia e Plotnikov e cria uma atmosfera de normalidade anormal. O salão repleto de fotos, todas com datas anteriores à Guerra Civil espanhola, deixam entrever que, após esse evento, nenhum membro daquela família tirou fotografias, o que nos indica que todos foram mortos ou que se separaram por causa da guerra. Igualmente importante é a maneira como o narrador-personagem contrapõe as imagens das fotografias em que estão as mulheres de branco e as bailarinas. Por esse ponto de vista, essa contraposição marca claramente uma diferença de hábitos comportamentais de parte das mulheres daquele período, ou seja, antes de 1936, ano do início da guerra na Espanha. Considerando esses hábitos e os costumes dessa época, cremos que, por um lado, as mulheres vestidas de branco representam a família, a maternidade e parte da sociedade que mantinha hábitos mais “conservadores”. Por outro lado, está a “exceção”, como salienta o narrador, isto é, as bailarinas fazendo referência ao universo andaluzo-espanhol da feminilidade e sensualidade, no qual estaria Constancia, segundo a ótica de Hull, que descreve uma dessas personagens utilizando palavras e expressões semelhantes às usadas por ele para detalhar a sua esposa. Apesar de todas essas pistas, o narrador-personagem não desvenda o mistério, o que faz com que haja uma intervenção do sobrenatural: Escuché en la sala el batir invisible de alas y mi atención se fijó en una foto: el señor Plotnikov […] inclinado esta vez […] sobre Constancia vestida de blanco, mi mujer […] con un niño sostenido en el regazo, un niño difícil de definir, borroso porque se movió en el instante de ser tomada la foto […] (FUENTES, 1991, p. 51). Hull descobre, finalmente, a fotografia que comprova a ligação de Plotnikov e Constancia, agora vestida de branco em menção à família e à maternidade. Toda a construção 131 desse ambiente anuncia o insólito e a presença desse último objeto “mediador” (a fotografia) enfatiza essa evidência. Não há mais dúvidas: Constancia e Plotnikov foram casados e dessa união resultou uma criança, nunca mencionada diretamente, mas sempre presente no discurso obsessivo da andaluza pela maternidade e compaixão a filhos desventurados. Um exemplo disso se dá quando Constancia implora por um filho: “un hijo, por favor, aunque sea triste” (FUENTES, 1991, p. 41). Outro detalhe relevante que essa fotografia apresenta diz respeito ao rosto da criança, que nessa imagem está “borrado”, como uma espécie de prenúncio de sua morte. Ao final da novela, quando Hull encontra a família escondida em seu sótão, a expressão facial dessa criança é totalmente distinta, torna-se clara, “[Constancia] abrazaba a [un niño] de quince o veinte meses, moreno y sonriente, con una gran risa blanca en medio del oscuro terror de sus padres” (FUENTES, 1991, p. 72-73), como se estivesse anunciando a sua alegria em viver a “ressurreição”. Perante a revelação do segredo de Constancia e Plotnikov, Hull age da mesma forma que sua esposa em momentos de desentendimentos com ele60: o americano corre para a parte superior da casa do ator russo e, a medida que vai subindo, sente que parece estar entrando em outro clima: A medida que penetro la casa decimonónica de monsieur Plotnikov, un sopor, una lentitud inusitados se apropian de mi cuerpo y de mi espíritu: los separa. El cuerpo parece irse de un lado y el alma de otro […] Subo por esta escalera a una altura superior a la que indica el paso de un piso a otro, subo a otro clima, lo sé, a otra altitud geográfica, a un frío repentino, a un hambre de oxígeno que me llena de una falsa euforia aunque yo ya sé que es el preludio de algo atroz (FUENTES, 1991, p. 52). Essa passagem da novela faz alusão direta ao fantástico. O narrador-personagem conta como era esse ambiente e a sua atmosfera sobrenatural, que tinha o poder de provocar a sensação de separação entre o corpo e a alma, entre a razão e os sentidos. Subindo aquelas escadas, como em uma iniciação, Hull pressente que está prestes a cruzar a fronteira entre o real e o irreal e sente que isso transformará a sua concepção de vida. A fala de Hull, descrita no fragmento acima, faz com que o leitor hesite diante da possibilidade da morte do narrador-personagem, pois o fato de ele enfatizar que está sentindo 60 “Entonces ella se suelta de mi brazo, grita, corre a encerrarse en su recámara durante un día entero […]” (FUENTES, 1991, p. 40). 132 a separação entre o corpo e a alma durante essa subida (este, aliás, é um vocábulo ambíguo que intensifica essa interpretação) dá a impressão de que prontamente irá morrer, o que aumenta ainda mais a dúvida em relação à sua saída vivo daquele lugar, abrindo margem para se pensar que, se não saiu vivo, isso poderia ser imperceptível, já que a narrativa apresenta fantasmas vivendo como pessoas “reais”. Ao terminar a subida até aquele ambiente, Hull encontra o lugar onde estavam Plotnikov e seu filho: En el centro del piso de tierra se levanta el féretro, plantado sobre un círculo de tierra roja. Sé que es un féretro porque tiene la forma de tal y la capacidad para recibir un cuerpo humano, pero su construcción barroca revela un singular arte de la carpintería. […] En la tapa de la tumba está esculpida […] la figura yacente de una mujer, el perfil más dulce, los parpados más largos, el ceño más triste; las manos de la piedad se cruzan sobre sus pechos; viste cofia y manto: la iconografía popular me obliga a imaginar los colores blanco y azul […] No hay iconos: […] sólo mis pies cubiertos de polvo rojo, que yo miro estúpidamente (FUENTES, 1991, p. 57). A ambientação desse espaço, onde jaziam os mortos de Constancia, funciona como ponto-chave ao retomar alguns aspectos anunciados anteriormente na narrativa que apontavam pistas da existência do sobrenatural, de maneira pouco compreensível inicialmente. A presença da “tierra roja” ao redor do caixão é um exemplo relevante, pois esse elemento aparece algumas outras vezes no texto, como, por exemplo, nos sapatos de Plotnikov e de Constancia respectivamente: Una vez lo encontré en el cementerio donde a veces voy a visitar a mis antepasados. Vestido como siempre de negro, caminaba muy lentamente sobre la tierra roja [...] (FUENTES, 1991, p. 15). […] las puntas de los zapatos de Constancia están cubiertas de polvo. Y lo segundo que noto, en la mejor tradición sherlockiana, es que la tierra roja – apenas finísima película – que cubre las puntas viene de un lugar que conozco de sobra [...] (FUENTES, 1991, p. 25). A terra vermelha faz parte da composição do cemitério da cidade, lugar que Plotnikov e Constancia frequentavam, conforme pensamento inicial do narrador-personagem e do leitor consequentemente, para “visitar” a seus mortos. No entanto, com a descoberta desse ambiente fúnebre onde jaziam o ator russo e seu filho, tanto narrador quanto leitor descobrem que estavam enganados ou, pelo menos, parcialmente informados. Passa-se a considerar que as regulares visitas da andaluza e do russo ao cemitério ocorriam porque ambos buscavam a terra necessária para construir o mencionado túmulo. Com isso, a presença de poeira nos sapatos de 133 Constancia denuncia o seu vínculo com Plotnikov, dando a entender que ela fazia visitas regulares à casa do russo e ao túmulo de seu filho. Deve-se notar que na segunda passagem em destaque, Hull induz o leitor a pensar que a terra nos sapatos de Constancia refere-se à sua ida ao cemitério, lugar que o casal frequentava e que por isso ele afirma conhecer de “sobra”. O objetivo do narrador-personagem com isso é provocar no leitor o mesmo sentimento que ele sentiu (“yo miro estúpidamente”), ao compreender que as suas certezas eram somente meros equívocos. Significativo também é o fato de Hull enfatizar o exímio trabalho de carpintaria utilizado para fazer aquele caixão, que tinha gravado em sua tampa a imagem de uma mulher e que, pela descrição, tratava-se de uma divindade, abrindo possibilidade para se pensar que seria a imagem de Constancia. Isso remete ao final da novela, momento em que personagem e leitor descobrem que Plotnikov era carpinteiro: “señor mira ve, aquí mismo, encontré tus cosas de carpintería, yo era carpintero en ni pueblo, he estado reparando cosas en tu casa [...]” (FUENTES, 1991, p. 73). Diante disso, o conjunto dessas informações incita o leitor a pensar que o caixão e sua tampa gravada com a imagem de uma santa bem como os dois cadáveres revelam o final da história dessa espécie de “sagrada família”, retratada inicialmente pelos retábulos dispostos na salas temáticas da casa de Plotnikov. Podemos dizer que em Constancia os diversos espaços apresentam a mescla de elementos realistas e alucinantes por meio de um jogo narrativo que se ancora em palavras e frases que favorecem a ambiguidade e geram múltiplos significados para o enredo. Os aspectos considerados realistas são arquitetados com o intuito de induzir o leitor a acreditar em uma possível normalidade, aproximá-lo desse universo ficcional e envolvê-lo nesse grande labirinto. Os elementos alucinantes são revelados sutil e conjuntamente com os realistas, lançando pistas que ora mostram e ora ocultam o insólito, porém sem descortiná-lo completamente. Isso é fundamental para que, quando isso ocorra, o impacto gerado seja maior e provoque no leitor a sensação de que a sua noção de concretude era parcial e equivocada, sendo preciso, portanto, reconsiderá-la. Por essa perspectiva, evidencia-se a inquietude do autor mexicano perante a univocidade do discurso histórico. Carlos Fuentes construiu um enredo que retrata a perseguição vivida por exilados políticos que consegue, por meio de uma história individual (de uma família), tocar a história coletiva, já que essa é a realidade de muitas pessoas exiladas ao longo do século XX. 134 Ressaltamos, para finalizar, que a análise de Constancia convergiu com a nossa hipótese ao evidenciar que nas obras fantásticas de Carlos Fuentes ocorre a reiteração de determinadas diretrizes temáticas, já presentes em outros textos do autor e assinaladas no capítulo anterior. Nesse sentido, citamos a ambientação como elemento que reflete e antecipa o insólito, a presença de duplos e de seres sobrenaturais, fantasmas no caso de Constancia. A irrupção do sobrenatural como elemento desestabilizador de uma realidade racionalista também é recorrente e, na maioria das narrativas analisadas, o insólito surge diante de personagens que estão relacionados ao universo científico, como visto em Aura, Constancia e “Gente de razón”, por exemplo. Outra continuidade temática pode ser observada na ideia do resgate de uma memória e o movimento de regresso às origens. Em Constancia, Hull é sujeito performático, pois resgata do esquecimento a história de Constancia e a passa adiante por meio de seus escritos, além de também registrar parte de sua biografia. O regresso às origens ocorre no final da diegese, momento em que o narrador-protagonista retorna a seu lar e encontra Constancia, Plotnikov e o filho do casal abrigados (refugiados) em sua casa, de volta a um ponto inicial, como se tivessem uma nova chance de voltar a viver. Nesse momento, eles lutam para resgatar suas vidas, que foram aniquiladas pelo autoritarismo. Porém, eles jamais voltarão a ser os mesmos, pois a experiência da perseguição e assassinato produziu traumas irreversíveis, como demonstra o diálogo final entre Hull e Plotnikov, em que este pede a aquele que não o entregue a seus algozes. A presença de uma personagem feminina que se relaciona com o sobrenatural também faz parte desse continuum temático reiterado nas narrativas fantásticas de Carlos Fuentes. Como exposto anteriormente, Constancia é herdeira de uma cultura mítico-popular, da qual ela faz uso nos momentos em que sente necessidade. Essa figura, da mesma forma como outras de Carlos Fuentes, é a responsável por demonstrar ao narrador-personagem que suas crenças estavam fundadas num conhecimento parcial, subvertido ao longo da narrativa. Da mesma maneira que Constancia apresenta continuidades, esta novela também traz inovações para o conjunto da obra do escritor mexicano. Como exemplo disso, citamos a revelação do insólito nas primeiras linhas da novela, característica que a diferencia das outras narrativas fantásticas de Fuentes ao mesmo tempo que promove um diálogo com a obra A Metamorfose, de Franz Kafka. A postura detetivesca de Whitby Hull também ganha destaque 135 na trama e revela uma faceta policial do escritor mexicano, remetendo, inclusive, ao modo de narrar de Edgar Allan Poe, escritor admirado por Carlos Fuentes. 136 CONSIDERAÇÕES FINAIS: TRAJETÓRIAS E ESPELHAMENTOS DO FANTÁSTICO NA NARRATIVA DE CARLOS FUENTES Siempre hay algún elemento de distorsión. Y siempre trato, aun en los más realistas de mis cuentos, de introducir ese elemento perturbador o deformante. (Carlos Fuentes)61 Com base em uma linha teórica que privilegia a análise textual do gênero fantástico e noutra linha que trata das obras de Carlos Fuentes, procuramos examinar a construção do fantástico na novela Constancia. Vimos que, neste texto, é possível encontrar uma série de continuidades temáticas, se comparado a determinado conjunto de narrativas do autor mexicano. O apagamento de fronteiras entre a vida e a morte, o questionamento de uma noção de realidade unívoca e o protagonismo da personagem feminina são alguns exemplos. Observamos ainda que Constancia, ao mesmo tempo que apresenta continuidades, também traz inovações em relação às demais narrativas de Fuentes, principalmente no que diz respeito à postura detetivesca do narrador-personagem. O anúncio do inexplicável já nas primeiras linhas da novela e a abordagem de traumas vividos por personagens que sofreram perseguições políticas do século XX também fazem parte dessas inovações. Sobre este último aspecto, podemos dizer que, ao tratar da tríade Rússia-EspanhaEstados Unidos juntamente com o tema do exílio e da morte de personagens nos primeiros países em destaque, Carlos Fuentes buscou desterritorializar sua literatura ao abordar tais tragédias humanas. O autor demonstra, com isso, uma tentativa de dialogar com a História ao mesmo tempo que também estabelece contato com uma literatura universal, uma vez que ele retoma obras de intelectuais como Walter Benjamin e Franz Kafka, por exemplo. Para esta pesquisa, escolhemos uma metodologia que, no primeiro capítulo, consistiu num debate sobre as teorias do fantástico e sobre o aparecimento, na América de língua espanhola do século XX, de uma gama de escritores que difundiu e consolidou uma tradição de textos do gênero, cuja característica basilar consistiu na reunião da imaginação com um exímio trabalho com a linguagem. Sobre o desenvolvimento da parte teórica deste trabalho, 61 Declaração feita em entrevista concedida a Ricardo C. Gally. In: HERNÀNDEZ, Jorge (comp.). Carlos Fuentes: territorios del tiempo (antología de entrevistas). México: FCE, 1999, p. 262. 137 destacamos sua relevância na medida em que, por meio da realização de um debate teórico, conseguimos ter uma visão mais ampla e crítica sobre as distintas interfaces teóricas do fantástico e suas características. Compreender o contexto hispano-americano e sua relação com a literatura fantástica também foi essencial, pois, como sabemos, todo autor está inserido em um contexto, o qual, direta ou indiretamente, acaba influenciando a sua produção literária. No caso de Carlos Fuentes essa influência foi direta, já que o autor mexicano sempre manteve vínculos com vários intelectuais de sua época, que buscaram renovar o modo de pensar a América Latina através de um novo fazer literário. Essa nova literatura, ou “nueva novela”, rompeu com antigos moldes realistas e utilitaristas de fazer ficção e se baseou em outros aspectos, como a valorização da imaginação, da ambiguidade e da polifonia, bem como da identidade americana e da tríade “mito, lenguaje, estructura”, para utilizar as palavras de Carlos Fuentes62. Elementos estes dos quais o autor faz uso em suas obras. Por esse viés, entender esse contexto e as teorias do fantástico colaborou decisivamente para a compreensão de nosso corpus e das demais obras do autor mexicano. Tendo em vista os resultados do primeiro capítulo e almejando iluminar perspectivas que favoreçam a análise de nosso corpus, no segundo capítulo deste trabalho, procuramos traçar um panorama sobre a relação de Carlos Fuentes com a literatura fantástica. Nessa parte, buscamos mapear a gênese dessa relação e entender de que maneira a primeira obra do autor (Los días enmascarados - 1954) serviu como base para seus escritos posteriores. Feito isso, partimos para a análise das distintas narrativas do autor mexicano que apresentam o sobrenatural, com o intuito de investigar a construção do fantástico nessas obras e verificar, ainda, a pertinência de nossa hipótese: é possível encontrar, nessas narrativas fantásticas, a reiteração de determinados eixos. Chegamos, por fim, ao capítulo de análise de Constancia, que foi fundamentado em duas linhas de investigação. A primeira consistiu na elaboração de reflexões sobre os procedimentos narrativos que constroem o fantástico nessa obra (revelações). Nesse sentido, buscamos realizar um debate sobre em que medida as técnicas empregadas pelo autor para criar essa atmosfera enigmática contribuem para desencadear a dúvida e o mistério, além de anteciparem o desenlace sobrenatural da história. A segunda linha de investigação de nosso 62 FUENTES, Carlos. La nueva novela hispanoamericana. México: Joaquín Mortiz, 1976. 138 corpus baseou-se na análise do texto considerando-o como parte de um conjunto de outras narrativas fantásticas do autor com a finalidade de examinar a reiteração de determinados eixos comuns entre os textos fantásticos de Carlos Fuentes (continuidades). Os resultados desse percurso analítico-comparativo mostram que é possível encontrar a recorrência de determinadas diretrizes nas obras do autor mexicano que se alinham com as vertentes do fantástico. Esse continuum contribui para interligar os diferentes textos do autor ao mesmo em que promove um diálogo entre eles, favorecendo, assim, a renovação e a reformulação dessas continuidades em distintas épocas, ainda que se apresentem sob diferentes perspectivas63. Observou-se, portanto, que a trajetória ficcional de textos fantásticos de Carlos Fuentes está ancorada nessas diretrizes que funcionam como verdadeiros fios condutores dessas narrativas. Baseados nisso, exporemos algumas palavras que não têm o objetivo de encerrar reflexões em torno de nosso corpus e das outras obras ficcionais do escritor mexicano. Muito pelo contrário: cientes do caráter introdutório de nossas considerações, o que almejamos é, antes, abrir o leque de possibilidades interpretativas para tais escritos e colaborar para a compreensão da obra do escritor mexicano. Dito isso, a primeira continuidade que destacamos consiste na articulação de enredos ambíguos, polifônicos e reveladores de universos desconhecidos e inquietantes, que desestabilizam os preceitos de concretude em que se funda uma sociedade. Carlos Fuentes arquiteta as suas narrativas fantásticas e realistas (como sugere a epígrafe deste capítulo) agregando um elemento destoante e perturbador, que escapa à noção sistemática de realidade. Sobre esse aspecto, devemos salientar que essa é uma característica comum não somente na literatura de Fuentes mas também em escritos de outros autores. No entanto, como já expusemos anteriormente, o México, apesar de ser um país marcado pela cultura míticoindígena, caracterizou-se por uma produção literária realista, fato que, em parte, se explica devido à influência de ideologias cientificistas, oriundas de governos como de Porfírio Díaz, por exemplo, estruturado a partir de ideias positivistas. 63 Como ressaltamos anteriormente, os textos de Carlos Fuentes devem ser considerados dentro de um conjunto. Portanto, a divisão que fazemos neste trabalho é meramente didática. Sendo assim, as características apontadas como pertencentes aos textos fantásticos do autor podem ser encontradas, em sua grande maioria, também em suas obras de caráter realista. 139 Nesse sentido, ao produzir narrativas que contribuem para desestabilizar essa concepção lógico-burguesa, Carlos Fuentes assume uma postura de vanguarda ao se rebelar, ficcionalmente, contra essas amarras racionalistas de compreensão da literatura e da realidade. Por essa perspectiva, a opção do autor pela temática do insólito para suas narrativas demonstra um gesto ideológico que vai além de uma simples preferência estético-literária. Essa ideia pode ser constatada nas seguintes palavras do mexicano: Nuestras obras deben ser de desorden: es decir, de un orden posible, contrario al actual. […] Nuestra literatura es verdaderamente revolucionaria en cuanto le niega al orden establecido el léxico que éste quisiera y le opone el lenguaje de la alarma, la renovación, el desorden y el humor. El lenguaje, en suma, de la ambigüedad: de la pluralidad de significados, de la constelación de alusiones: de la apertura (FUENTES, 1976, p. 32)64. Como representantes dessa “orden” empírica, Fuentes elege, em suas narrativas, personagens céticos, geralmente relacionados ao universo científico, que se verão diante do sobrenatural e da “desorden”. Como exemplo disso, citamos Aura e o historiador Felipe Montero, Constancia e o médico Whitby Hull, ou ainda “Gente de razón” e os arquitetos Carlos María e José María Vélez, para mencionar algumas obras. Outra continuidade temática presente nas narrativas de Fuentes consiste na apropriação de fatos históricos para a construção de enredos que trazem personagens representantes de universos minoritários (indígenas, mulheres, perseguidos políticos) que, de alguma forma, foram silenciadas pela violência do poder arbitrário. Por essa perspectiva, entendemos que Carlos Fuentes enfatiza o caráter plurívoco e dialógico de sua literatura e, por conseguinte, da realidade ao relegar voz a personagens silenciadas, como observa Lúcia Trevisan: Quando as personagens literárias são apropriadas por Fuentes, percebe-se uma referência a um tipo de construção literária que se permite dar voz aos anônimos da história, explicitando a pluralidade de discursos e não o resumo unívoco daquilo que seria a ideologia de determinado período (2008, p. 183). O autor consegue, com isso, problematizar uma visão unívoca de realidade ao promover o permanente entrecruzamento das múltiplas vozes em suas narrativas por meio da memória, da imaginação e da linguagem. Isso se evidencia primeiramente em “Chac Mool” e “Tlactocatzine, del jardín de Flandes” e se reflete, posteriormente, em Constancia, “La gata de mi madre” e “La bella durmiente”, todos textos que, por meio de uma história individual, 64 Carlos Fuentes se refere a seus textos e do conjunto de escritores latino-americanos de sua época, como J. Cortázar e G. G. Márquez, por exemplo. 140 propõem reflexões que tocam a História coletiva e humana, apresentando os “diferentes sujeitos históricos no mundo, um mundo que cada vez mais tenta homogeneizar as diferenças” (TREVISAN, 1994, p. 38). O movimento de retorno às origens caracteriza-se como outra continuidade recorrente nos textos fantásticos de Carlos Fuentes. As personagens do autor mexicano buscam o regresso ao passado com o intuito de resgatar uma memória e, com isso, tentar o reajuste de uma identidade que foi fragmentada. No entanto, ao realizar esse retorno, essas personagens percebem a impossibilidade desse resgate, pois a condição inicial almejada já não existe mais; o que há é uma nova realidade, mais incerta do que a anterior. Esse eixo pode ser encontrado em “Chac Mool”, “Tlactocatzine”, Aura, Cumpleaños, Constancia, Instinto de Inez, “Buena Compañía”, entre outros. A relação das personagens femininas com o sobrenatural é outra especificidade das narrativas fantásticas de Carlos Fuentes, como mostramos anteriormente. Ambíguas, essas protagonistas conseguem extinguir as fronteiras entre o passado e o presente, entre a vida e morte, entre o racionalmente aceito e o inexplicável. Carlota, de “Tlactocatzine”, é a primeira personagem nesse sentido. Aparecem posteriormente Consuelo-Aura, Nuncia, Constancia, Inez, Calixta, Lala, Alberta, entre outras. Essa é uma característica, inclusive, bastante explorada nos textos fantásticos do século XIX, que traziam figuras femininas erotizadas e transgressoras de fronteiras. Carlos Fuentes se serve dessas especificidades no momento de criar suas narrativas. Além dessa característica, o autor mexicano também lança mão de outras temáticas desse fantástico tradicional para escrever suas narrativas, como a preferência por enredos ambientados em casarões antigos, a escolha por figuras conhecidas tradicionalmente por seu caráter fantástico, e a manifestação de personagens que apresentam duplos. Sobre o primeiro aspecto citado, observa-se que é uma temática comum nas narrativas do autor, que constrói narrativas cujos espaços evidenciam a irrupção do insólito, além de refletirem traços das personagens que nele habitam. Nesse sentido, temos “Tlactocatzine”, Aura, Constancia, “La gata mi madre”, “Vlad”, para citar apenas alguns exemplos. Todas essas narrativas trazem ambientações que favorecem o sentimento do fantástico nas personagens e no leitor por meio da mescla ambígua entre traços realistas e alucinantes, para mencionar Furtado. No que se refere ao segundo aspecto, o autor mexicano, na esteira de escritores como E. T. A. Hoffman, Prosper Mérimée, Bram Stoker entre outros, também opta 141 por escrever histórias cujo elemento destoante é personificado num ser sobrenatural. Dessa forma, temos, por exemplo, estátuas e bonecas animadas (“Chac Mool” e “La Desdichada”), anjos (Miguel Asmá), fantasmas (Constancia e Plotnikov de Constancia, Alex de “Buena Compañía”, Lupe e Florencio de “La gata de mi madre”, Alberta e Caballero de “La bella durmiente”), divindades (Chac Mool e o menino Jesus de “Gente de razón”), e o vampiro Conde Drácula, em “Vlad”. O tema do duplo, terceiro aspecto que se reitera, também surge constantemente nas obras fantásticas de Carlos Fuentes. O autor emprega esse recurso das mais distintas maneiras, de modo a suscitar e intensificar a ambiguidade dentro da narrativa. Assim, existem duplos temáticos e estruturais. Para exemplificar o primeiro, destacamos o duplo personificado em Consuelo-Aura (Aura) e Rubén Oliva e Pedro Romero (“Viva mi fama”), a dupla vida que Constancia e Plotnikov levavam (Constancia), a oscilação narrativa entre dois tempos e universos (pré-história-sonho e século XX-realidade) em Instinto de Inez, e a frequente polarização entre as personagens, divididas em racionais e não-racionais: Chac Mool-Filiberto (“Chac Mool”), Consuelo-Felipe (Aura), Constancia-Hull (Constancia), Carlos e José-operários (“Gente de razón”), Serena e Zenaida-Alex (“Buena Compañía”). Exemplo do segundo tipo de duplo pode ser encontrado nas diversas bifurcações estruturais, como a manifestação de pontos de vista de dois narradores distintos: Bernardo e Toño (“La Desdichada”); a mudança no foco narrativo da 3ª para a 2ª pessoa em Instinto de Inez; ou ainda o uso da 2ª pessoa do singular (tu) em Aura. Vale observar ainda que essas continuidades podem ser observadas nos diversos textos fantásticos do autor, publicados ao longo das décadas. Mesmo após longos intervalos de tempo, como entre Los días enmascarados (1954) e Inquieta Compañía (2004) que são cinquenta anos, é possível encontrar a recorrência de determinados eixos nas duas obras. Isso revela-nos que o autor mexicano sempre cultivou especial apreço pela literatura fantástica porque, volta e meia, produzia narrativas do gênero. Textos estes que, por meio de um continuum temático, provocam a reflexão ao mesmo tempo que revelam a sua autoria. Contudo, não se trata de repetição e, sim, de reiteração, pois, em cada obra, o autor confere nova roupagem ao insólito. Sendo um intelectual que teve contato com as mais distintas formas de arte, o mexicano buscou trazer isso para a sua literatura, por meio do frequente diálogo entre suas narrativas e as mais variadas formas de arte-expressão, como o cinema (Anna Karenina), o teatro (Hamlet), as artes plásticas (Quadros de Francisco de Goya), a música (La Damnation de 142 Faust), e a própria literatura (A Metamorfose). Inovou ainda nos aspectos formais do modo de fazer literatura: a construção morfológica de “En defensa de la Trigolibia”65 e a utilização do narrador na segunda pessoa do singular (tu) em Aura e Instinto de Inez. Esses são apenas alguns exemplos, pois esses temas exigiriam outros estudos. Sobre Constancia, podemos dizer que a análise desse texto atrelada aos eixos elencados anteriormente nos permitiu delinear uma perspectiva mais ampla e crítica do tipo de fantástico produzido por Carlos Fuentes. Em Constancia, além das continuidades e das inovações demonstradas anteriormente, existem outros tantos elementos que a circunscrevem dentro de uma perspectiva do fantástico: a fragmentação da narração, os monólogos, os paradoxos, as hesitações, a reiteração do uso de metáforas e elipses, bem como as oscilações espaçostemporais são alguns exemplos disso. Para concluir, ressaltamos que essas trajetórias e espelhamentos nas obras de Carlos Fuentes exigem uma reflexão mais ampla do leitor sobre o texto e sobre o contexto, pois revelam histórias marcadas pela diversidade humana e cultural que independem de nacionalidades. Com isso, ao imergir nesses universos, o leitor encontrará diversos jogos de espelhos-ficções, nos quais ele contemplará as imagens de distintas personagens que não procuram apontar as soluções para os enigmas humanos, mas sim convidam para um mergulho nesse enigma, desafiando as buscas perenes pelo sentido, ao revelarem, enfim, que nas ficções repousam os muitos reflexos de todos nós. 65 Texto de Los días enmascarados, de 1954. 143 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AUB, Max. Guía de narradores de la Revolución Mexicana. México: FCE, 1992. BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. Tradução: Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2000. BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética: a teoria do romance. Tradução: Aurora Fornoni Bernardini et alii. São Paulo: Unesp, 1993. _________. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução: Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. _________. Estética da Criação Verbal. Tradução: Paulo Bezerra. 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