1
UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
DANIELE APARECIDA PEREIRA ZARATIN
CARLOS FUENTES E A LITERATURA FANTÁSTICA:
CONTINUIDADES E REVELAÇÕES NA NOVELA
CONSTANCIA
ORIENTADORA: Profª. Dra. Ana Lúcia Trevisan
São Paulo
2012
2
DANIELE APARECIDA PEREIRA ZARATIN
CARLOS FUENTES E A LITERATURA FANTÁSTICA:
CONTINUIDADES E REVELAÇÕES NA NOVELA
CONSTANCIA
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Letras da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, como requisito
parcial para a obtenção do grau de Mestre em
Letras.
ORIENTADORA: Profª. Dra. Ana Lúcia Trevisan
São Paulo
2012
3
Z36c
Zaratin, Daniele Aparecida Pereira
Carlos Fuentes e a Literatura Fantástica: continuidades
e revelações na novela Constancia/ Daniele Aparecida
Pereira Zaratin – São Paulo, 2012
152 f. ; 30 cm
Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade
Presbiteriana Mackenzie, 2012.
Referências bibliográficas : f. 144-152
1. Literatura fantástica. 2. Literatura mexicana. 3. Fuentes,
Carlos. I. Título
CDD 868.9921
4
DANIELE APARECIDA PEREIRA ZARATIN
CARLOS FUENTES E A LITERATURA FANTÁSTICA:
CONTINUIDADES E REVELAÇÕES NA NOVELA CONSTANCIA
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Letras da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, como requisito
parcial para a obtenção do grau de Mestre em
Letras.
Aprovada em 31 de julho de 2012.
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________________
Profª. Dra Ana Lúcia Trevisan – Orientadora
Universidade Presbiteriana Mackenzie
_____________________________________________________
Profª. Dra. Cristine F. de Mattos
Universidade Presbiteriana Mackenzie
_____________________________________________________
Profª. Dra. Karin Volobuef
Universidade Julio de Mesquita (UNESP)
5
Em memória de minha avó Inês,
exemplo maior de amor, dignidade e coragem.
6
AGRADECIMENTOS
À Profª. Dra. Ana Lúcia Trevisan, pelos ensinamentos, paciência, confiança em meu
trabalho e, principalmente, por me apresentar os textos de Carlos Fuentes.
A meu esposo Alexsandro, companheiro, crítico e conselheiro constante, que me ajudou
a trilhar este difícil porém gratificante caminho.
À minha mãe, fonte de inesgotável amor.
À minha avó Inês, meu eterno porto seguro.
A meu pai, saudade eterna do que poderia ter sido.
A meus irmãos Dimael e Renata, razões do meu viver.
À minha tia Silmara, minha eterna gratidão e carinho.
À minha prima Fabiana, irmã e amiga de todos os momentos.
À Piedade e Mariana, pelas conversas produtivas e apoio constante.
À Juliana, Ana Claudia e Anne, grandes amigas e companheiras de jornada.
A todos familiares e amigos, que compreenderam e apoiaram minhas constantes
ausências por conta do desenvolvimento desta pesquisa.
À Universidade Presbiteriana Mackenzie, por me receber e me amparar durante toda a
minha trajetória acadêmica, transformando a minha vida através do estudo.
A todos os professores do curso de Pós-Graduação em Letras e funcionários da
Universidade Presbiteriana Mackenzie, especialmente à Profª. Dra. Aurora Gedra.
Às professoras Profª. Dra. Cristine F. de Mattos e Profª. Dra. Karin Volobuef, por me
auxiliarem na construção deste trabalho.
Ao Profº. Dr. Francisco Javier Ordiz e ao pesquisador Miguel Ángel Fernández, por
colaborarem para o desenvolvimento deste estudo.
Ao
Fundo
Mackenzie
desenvolvimento deste trabalho.
de
Pesquisa
(MACKPESQUISA),
por
financiar
o
7
El enigma engendra otro enigma.
En esto se parecen el arte y la muerte.
(Constancia, Carlos Fuentes)
8
RESUMO
Neste trabalho de mestrado, analisamos os aspectos da literatura fantástica presentes na
novela Constancia (1990), de Carlos Fuentes, a partir de uma linha de investigação que a
inclui numa trajetória de outras narrativas fantásticas do autor mexicano. Ao examinar as
narrativas de Los días enmascarados (1954), do ciclo narrativo “El mal del tiempo” e de
Inquieta Compañía (2004), verificamos a reiteração de determinados eixos nessas obras, entre
os quais estão a irrupção do insólito como desestabilizador de uma percepção de realidade
racionalista e a presença de personagens femininas ambíguas e reveladoras do sobrenatural. A
partir disso, primeiramente, refletimos sobre a manifestação do fantástico nessas narrativas,
apontamos quais são esses eixos comuns entre elas e buscamos possíveis interpretações para
essas recorrências. Posteriormente, contemplamos a novela Constancia e investigamos de que
maneira ocorre a construção do insólito nesse texto tendo em vista os resultados obtidos
anteriormente e as teorias postuladas por estudiosos do gênero fantástico e da obra de Carlos
Fuentes. Esperamos com isso iluminar novas perspectivas interpretativas sobre essa narrativa,
ao produzir uma análise que reflete sobre os procedimentos do fantástico nessa obra
(revelações) e sobre a presença de elementos que a inscrevem como parte de uma tradição de
outros textos fantásticos do autor mexicano (continuidades).
Palavras-Chave: Literatura Fantástica – Literatura Mexicana – Carlos Fuentes
9
RESUMEN
En este trabajo de maestría analizamos los aspectos de la literatura fantástica presentes en la
novela Constancia (1990), de Carlos Fuentes, a partir de una línea de investigación que la
incluye en una trayectoria de otros textos fantásticos del autor mexicano. Al examinar las
narrativas de Los días enmascarados (1954), del ciclo narrativo “El mal del tiempo” y de
Inquieta Compañía, percibimos la reiteración de determinados ejes en esas obras, entre los
cuales están la irrupción de lo insólito como desestabilizador de una percepción de realidad
racionalista y la presencia de personajes femeninos ambiguos y reveladores de lo
sobrenatural. A partir de eso, primeramente reflexionamos sobre la manifestación de lo
fantástico en esas narrativas, señalamos cuáles son esos ejes comunes entre ellas y buscamos
posibles interpretaciones para esas recurrencias. Posteriormente, contemplamos la novela
Constancia e investigamos cómo ocurre la construcción de lo insólito en ese texto teniendo en
cuenta los resultados obtenidos anteriormente y las teorías postuladas por estudiosos del
género fantástico y de la obra de Carlos Fuentes. Esperamos con eso aportar nuevas
perspectivas interpretativas sobre esa narrativa, al producir un análisis que reflexiona sobre
los procedimientos de lo fantástico en esa obra (revelaciones) y sobre la presencia de
elementos que la inscriben como parte de una tradición de otros textos fantásticos del autor
mexicano (continuidades).
Palabras-clave: Literatura Fantástica – Literatura Mexicana – Carlos Fuentes
10
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
12
.
1. LITERATURA FANTÁSTICA: PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS
16
1.1 A literatura fantástica e o contexto hispano-americano do século XX ________ 25
2. CARLOS FUENTES E A LITERATURA FANTÁSTICA
33
2.1 Los días enmascarados: origem da inquietação
34
2.2 O fantástico em “Chac Mool” e “Tlactocatzine, del jardín de Flandes”
37
2.3 “El mal del tiempo”: o ciclo fantástico de Carlos Fuentes
43
2.4 Aura
45
2.5 Cumpleaños
47
2.6 Una familia lejana
50
2.7 Constancia y otras novelas para vírgenes
54
2.7.1 Constancia
55
2.7.2 “La Desdichada”
55
2.7.3 “El prisionero de las Lomas”
58
2.7.4 “Viva mi fama”
61
2.7.5 “Gente de razón”
63
2.8 Instinto de Inez __________________________________________________66
2.9 Inquieta Compañía
69
2.9.1 “El amante del teatro”
70
2.9.2 “La gata de mi madre”
74
2.9.3 “La buena compañía”
76
11
2.9.4 “Calixta Brand”
78
2.9.5 “La bella durmiente”
82
2.9.6 “Vlad”
85
3. CONTINUIDADES E REVELAÇÕES DO FANTÁSTICO EM CONSTANCIA_____90
3.1 A personagem feminina de Carlos Fuentes: constante desvendar
de outras realidades_________________________________________________ 113
3.2 O espaço ficcional: intensificador do fantástico
121
CONSIDERAÇÕES FINAIS: TRAJETÓRIAS E ESPELHAMENTOS
DO FANTÁSTICO NA NARRATIVA DE CARLOS FUENTES
136
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
143
12
INTRODUÇÃO
Este estudo visa analisar os aspectos da literatura fantástica na novela1 Constancia
(1990), de Carlos Fuentes. Ao realizar a leitura das narrativas do autor que se alinham com as
características do fantástico, observamos que ocorre a reiteração de diversos temas e
estruturas, como o protagonismo de figuras femininas responsáveis pelo sobrenatural, a
manifestação do insólito como elemento desestabilizador de uma percepção de realidade e a
presença de duplos. Partindo dessa hipótese, desenvolvemos este estudo que tem por objetivo
examinar o fantástico em Constancia sob duas perspectivas investigativas: a primeira
considera a novela como único objeto de análise, em que elaboraremos reflexões sobre os
procedimentos narrativos que contribuem para a construção do fantástico nessa obra; aspectos
estes que chamaremos de revelações. A segunda perspectiva consiste em investigar a narrativa
Constancia considerando-a como parte de um conjunto de outras narrativas fantásticas do
autor mexicano. Nesse sentido, examinaremos a referida novela cotejando-a com as demais
obras fantásticas de Carlos Fuentes com a finalidade de apontar e refletir sobre reiteração de
determinadas diretrizes temáticas presentes em outros textos analisados, o que
denominaremos continuidades. Com isso, esperamos ampliar as possibilidades interpretativas
sobre as revelações e continuidades presentes em Constancia e demonstrar que o autor
mexicano, ao mesmo tempo que inova em suas narrativas, também lança mão de
determinados temas no momento de escrevê-las.
Carlos Fuentes (1928-2012) é considerado, ainda hoje, um dos maiores expoentes da
literatura mexicana e hispano-americana do século XX, por causa de sua atuante presença
como escritor, crítico e difusor da literatura e da cultura latino-americanas. A gênese disso se
deu durante o movimento conhecido como “boom de la nueva novela hispanoamericana”,
ocorrido entre meados das décadas de 50 e 70.
Filho de embaixador, Carlos Fuentes morou em vários países do mundo, o que
possibilitou o acesso a uma educação diversificada e o convívio com intelectuais desde a sua
infância, entre os quais estão nomes como Alfonso Reyes e David Alfaro Siqueiros. Durante
1
Não há um consenso entre a definição do gênero dos textos que fazem parte de Constancia y otras novelas
para vírgenes. Fuentes afirma, em entrevista, serem “relatos cortos”. O título da obra denomina as narrativas
como “novelas”. O teórico Javier Ordiz diz que são contos. Neste trabalho, adotaremos a expressão “novela”,
como sugere o título da obra em língua espanhola.
13
suas férias escolares nesses diversos países, seu pai o enviava ao México para estudar a
cultura e a língua de seu país a fim de preservar as suas raízes culturais. Os longos períodos
que passou em terras estrangeiras e essas visitas periódicas ao seu país natal colaboraram para
que o autor desenvolvesse uma visão panorâmica e crítica sobre a cultura e política da
América Latina, especialmente sobre o México, lugar que sempre esteve presente em seu
imaginário e que foi retratado ao longo de suas diversas obras.
Fuentes estudou Direito na Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM) e em
Genebra obteve o título de Doutor na área. Em 1951, volta ao México e assume vários cargos
importantes, como o de chefe do Departamento de Relações Culturais do Ministério de
Assuntos Exteriores. Nesse período, escreve para jornais e revistas sobre temas culturais,
políticos e econômicos, demonstrando simpatia à ideologia marxista disseminada em várias
partes do continente, sobre a qual desenvolve uma visão crítica posteriormente.
Em 1954, Carlos Fuentes publica seu primeiro volume de contos intitulado Los Días
Enmascarados, obra que lhe rendeu o prêmio da revista “Los Presentes”, editada por Juan
José Arreola. Em 1958, publica La región más transparente, romance que o faz ascender
definitivamente ao cenário literário latino-americano. Nesse mesmo período, Fuentes passa a
manter vínculos de amizade com importantes intelectuais latino-americanos, como Octávio
Paz, Alejo Carpentier, Lezama Lima, Mario Vargas Llosa, Gabriel García Márquez, José
Donoso, Júlio Cortázar, entre outros. Desde então, o mexicano não parou mais de escrever,
publicando periodicamente obras literárias, teatrais e ensaísticas, pelas quais recebeu diversos
prêmios ao longo das décadas.
Influenciado por escritores como Miguel de Cervantes, Honoré de Balzac, Franz Kafka,
James Joyce, William Faulkner, Octávio Paz, entre outros, Carlos Fuentes desenvolveu seus
textos baseado em temas que discutem, dialogam e se reformulam centrados em determinados
eixos: a história do México desde a colonização espanhola até a difícil relação fronteiriça com
os Estados Unidos, violências do poder arbitrário, a identidade mexicana e seus diferentes
matizes históricos e culturais, o passado pré-hispânico, a presença de tempos superpostos, as
memórias de mitologias antigas, bem como as figuras históricas relevantes para o escritor.
Nesse sentido, o autor aborda, como poucos, em suas inúmeras obras a América Latina e seus
diferentes matizes históricos e culturais, sempre considera a relevância de todos os distintos
povos que compõem essa porção do continente, ou seja, índios, europeus, e africanos.
14
Em Constancia y otras novelas para vírgenes (1990), pertencente ao “El mal del
tiempo”, ciclo criado por Carlos Fuentes com a finalidade de organizar e inscrever suas
novelas fantásticas, o autor mexicano lança mão da mescla entre o fantástico e os temas
assinalados anteriormente. Esta obra apresenta cinco novelas que foram construídas para
serem lidas de maneira independente e/ou conjunta, já que elas dialogam entre si por meio de
diversos aspectos comuns, como o diálogo com as diferentes formas de arte. Escrito entre
1987 e 1988, o conjunto dessas narrativas é composto pelos seguintes títulos: Constancia, “La
desdichada”, “El prisionero de Las Lomas”, “Viva mi fama” e “Gente de razón (I. Obras, II.
Milagros, III. Amores)”. Entre todos esses escritos, justificamos a escolha de Constancia para
este estudo por considerarmos ser uma novela que suscita várias reflexões sobre a construção
do fantástico e apresenta uma grande variedade de questões relacionadas a outros textos de C.
Fuentes, tais como o protagonismo da personagem feminina e sua relação com o sobrenatural.
Outro aspecto relevante é que Constancia convida o leitor a pensar sobre temas como as
experiências autoritárias na Europa, o exílio, os limites entre a vida e a morte e a concepção
linear de tempo. Constancia apresenta-se com uma clara intenção de dialogar com uma obra
universalista, ao discutir as experiências humanas trágicas, agregando a isso uma visão
pessimista da modernidade, como percebido nas seguintes palavras: “El hombre hace sufrir al
hombre. La felicidad y el éxito son tan excepcionales como la lógica; la experiencia más
generalizada del hombre es la derrota y el sufrimiento” (FUENTES, 1991, p. 68).
Estruturalmente, este trabalho se divide em três capítulos. O primeiro deles está
composto por duas partes. Na primeira, realizaremos uma breve discussão sobre as teorias do
fantástico a partir de pesquisas de autores considerados referências no gênero, como Tzevetan
Todorov e Filipe Furtado. Com isso, esperamos aprofundar conhecimentos sobre o tema e
sobre as ferramentas teóricas e metodológicas adotadas neste trabalho. A segunda parte desse
capítulo apresenta um levantamento expositivo-analítico sobre o surgimento e características
do fantástico na América Hispânica do século XX, cuja finalidade é investigar sobre o tipo de
fantástico produzido nessa época, as ideologias atreladas a ele, bem como compreender o
contexto no qual estava inserido Carlos Fuentes no momento de escrever seus textos.
No segundo capítulo deste estudo, procuraremos delinear um panorama analítico sobre a
literatura fantástica produzida por Carlos Fuentes cujo objetivo é verificar quais são as
principais características dessa literatura e a plausibilidade de nossa hipótese: a reiteração de
determinados eixos ao longo de toda a produção fantástica de Carlos Fuentes. Para tanto,
15
analisaremos as seguintes obras: Los días enmascarados (1954), com especial atenção a dois
contos: “Chac Mool” e “Tlactocatzine, del jardín de Flandes”; Aura (1962); Cumpleaños
(1969); Una família lejana (1980); Constancia y otras novelas para vírgenes (1990), com
breve menção à novela Constancia, retomada no capítulo três; Instinto de Inez (2001) e
Inquieta Compañía (2004), que, embora não esteja inscrita pelo autor como parte de “El mal
del tiempo”, julgamos ser um relevante material de análise no que se refere ao fantástico
produzido por Carlos Fuentes nos últimos anos.
No terceiro capítulo deste trabalho, elaboraremos uma reflexão sobre a construção do
fantástico em Constancia. Analisaremos os aspectos temáticos e estruturais que contribuem
para inscrever essa narrativa dentro de uma tradição de textos fantásticos do autor mexicano.
Atentaremos para os elementos narrativos como o narrador, categoria fundamental para
instauração da ambiguidade, do suspense e do mistério, o protagonismo da personagem
feminina e o espaço ficcional. Buscaremos ainda traçar paralelos comparativos entre
Constancia e as demais obras fantásticas do autor mexicano com o intuito de averiguar as
continuidades do fantástico nessa novela.
Nas considerações finais, buscaremos fazer uma discussão a respeito dos resultados
obtidos através das análises feitas nos dois capítulos anteriores. Almejamos, com isso,
demonstrar quais são as continuidades, temáticas e formais, presentes na obra fantástica do
autor mexicano e quais são os efeitos de sentido que elas provocam nessas narrativas.
Salientamos, para finalizar, o desafio que se caracteriza investigar as obras de Carlos
Fuentes. Ao longo de sua vida, o autor construiu um extenso e complexo conjunto de
narrativas fantásticas que mantém um diálogo explícito com seu leitor por meio da reflexão
sobre o texto e seu contexto. Dessa forma, o leitor dificilmente consegue se desprender da
realidade, pois ela é a referência, é o ponto de apoio, o lugar onde o autor se fixa e de onde ele
procura contemplar os diversos universos e sua “multitud de voces” e “miradas” 2. As
narrativas de Carlos Fuentes, em síntese, procuram realizar o exercício criativo de interpretar
a experiência histórica humana a partir de uma forma sui generis de expansão das fronteiras
do pensamento, ou seja, através da criação ficcional, através do fantástico.
2
Palavras de Carlos Fuentes. In: HERNÀNDEZ, Jorge (comp.). Carlos Fuentes: territorios del tiempo (antología
de entrevistas). México: FCE, 1999, p. 156.
16
1. LITERATURA FANTÁSTICA: PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES
TEÓRICAS
Gênero que prima pela transgressão de fronteiras, o fantástico apresenta como
característica basilar a irrupção do não-natural em um universo regido por leis naturais, do
cotidiano. Pesquisadores afirmam que sua origem ocorreu na Europa do século XVIII com a
publicação da novela gótica inglesa O castelo de Otranto (1764), de Horace Walpole, e que
seu apogeu se deu durante o Romantismo (séculos XVIII e XIX), momento em que se buscou
demonstrar, por meio da literatura e de outras artes, que a realidade não estava condicionada a
esquemas cientificistas da época. Assim, dando vazão à imaginação e rebatendo ideias
racionalistas de que tanto o universo como a alma humana poderiam ser apreendidos em sua
totalidade, os artistas europeus do período extinguiram “las fronteras entre lo interior y lo
exterior, entre lo irreal y lo real, entre la vigilia y el sueño, entre la ciencia y la magia”
(ROAS, 2001, p. 23).
Embora pareça de simples apreensão, entender o fantástico rende, ainda hoje, muitos
debates e estudos. Vários autores investigaram o tema sob diferentes perspectivas, na tentativa
de melhor definir seus limites. Entre eles está Tzevetan Todorov com seu estudo Introdução à
literatura fantástica (2007), publicada em 1970, que, apesar de muito criticado por seu caráter
estruturalista, proporciona reflexões e debates sobre as características e os limites da literatura
fantástica. Dando um passo à frente em relação a seus antecessores, Todorov investigou o
fantástico a partir da análise de elementos sintático-semânticos de diversas narrativas, não se
baseando apenas em aspectos temáticos, como feito anteriormente por outros estudiosos.
Dessa forma, após fazer algumas críticas a esses estudos, o autor elabora suas próprias teorias
sobre o gênero. Para ele, é preciso, primeiramente, que o texto fantástico apresente ao leitor
uma realidade cotidiana e personagens reconhecíveis com a finalidade de fazer com que o
leitor acredite nessa realidade, identifique-se com alguma personagem, entre nesse jogo
narrativo e sofra um maior impacto diante da irrupção do evento insólito. Uma vez que houve
essa irrupção, Todorov argumenta que o leitor interno deve hesitar entre a existência ou não
do sobrenatural, entre uma explicação racional ou não para tal evento.
Esse sentimento de hesitação deve ocorrer tanto em uma personagem quanto no leitor
do texto, que não deve interpretar o sobrenatural segundo perspectiva alegórica ou poética
17
(TODOROV, 2008, p. 151-152). Em outras palavras: conforme a ótica de Todorov, o
fantástico reside na perplexidade e incerteza da personagem e do leitor diante do insólito e no
fato de não conseguirem explicar tal evento de acordo com as leis conhecidas por eles. Com
isso, produz-se a ambiguidade, aspecto crucial que deve ser mantido até o final da narrativa,
impossibilitando a elucidação do fato insólito, como afirma o teórico: “A ambiguidade se
mantém até o fim da aventura: realidade ou sonho? verdade ou ilusão?” (TODOROV, 2007, p.
30). A ambiguidade, para Todorov, seria o resultado da impossibilidade de apresentar uma
explicação racional para um evento, conferindo-o nuances de fantástico.
Partindo desse ponto da teoria de Todorov, Filipe Furtado aprofunda os estudos sobre o
gênero e discute sobre o tema ambiguidade no fantástico sob a perspectiva da linguagem. Para
o estudioso português, a ambiguidade seria um elemento construído dentro da narrativa, por
meio da linguagem, e não o fruto da hesitação do leitor. Conforme Furtado, “a primeira
condição para que o fantástico seja construído é o discurso evocar a fenomenologia metaempírica de uma forma ambígua e manter até o fim uma total indefinição perante ela”
(FURTADO, 1980, p. 36). Pensada por essa ótica, a ambiguidade no texto fantástico seria
resultado de uma construção interna do texto e não da postura do leitor perante ele, conforme
postulou Todorov. Ela seria, assim, o produto da construção ardilosa da narrativa que, por
meio de mecanismos próprios, instaura a dúvida no que diz respeito a existência sobrenatural,
o que impossibilita ao leitor decidir por um dos caminhos apresentados.
Para Furtado, a ambiguidade seria a causa da dúvida (hesitação) no leitor e não a
consequência, como propôs Todorov. Em outras palavras: enquanto Todorov considera que a
ambiguidade seria a decorrência da hesitação do leitor perante o insólito, Furtado argumenta
que não, pois, segundo ele, a ambiguidade seria a responsável pela dúvida, gerada por meio de
diversos artifícios textuais que conseguem produzir uma série de duplos sentidos no texto.
Assim, a hesitação seria “apenas mais uma das formas de comunicar ao leitor a irresolução
face aos acontecimentos e figuras evocados” (FURTADO, 1980, p. 40-41).
Ainda sobre a hesitação, Todorov afirma que “o fantástico implica pois uma integração
do leitor no mundo das personagens” (2007, p. 37), ou seja, o fantástico somente ocorre a
partir do momento em que o leitor aceita entrar no jogo narrativo proposto pelo narrador,
imerge naquela atmosfera, identifica-se com as personagens e compartilha com elas da
hesitação e da incerteza ao cogitar a possibilidade da existência do sobrenatural. Por essa
18
ótica, a hesitação do leitor, em relação à veracidade do episódio insólito, seria o primeiro fator
indispensável ao fantástico (TODOROV, 2007, p. 31). Para alguns estudiosos, esse é um
aspecto frágil da teoria de Todorov, pois, segundo eles, definir um gênero baseado em um
aspecto tão variante, como a hesitação do leitor, pode levar o fantástico a ser relativizado, já
que “perante a irrupção do sobrenatural na obra, qualquer leitor real poderá reagir aceitandoo, rejeitando-o ou hesitando entre uma ou outra atitude” (FURTADO, 1980, p. 76). Pensar na
figura de um leitor padrão pode, por um lado, auxiliar na classificação do gênero, mas, por
outro, pode também levá-lo ao fracasso, uma vez que a atitude do leitor perante o insólito
pode variar de acordo com a sociedade ou cultura a qual ele pertence.
Todorov declara ainda sobre o fantástico:
Aquele que [...] percebe [o insólito] deve optar por uma das duas soluções
possíveis; ou se trata de uma ilusão de sentidos, de um produto da
imaginação e nesse caso as leis do mundo continuam a ser o que são; ou
então o acontecimento realmente ocorreu, é parte integrante da realidade,
mas nesse caso esta realidade é regida por leis desconhecidas para nós [...].
O fantástico ocorre nesta incerteza; ao escolher uma ou outra resposta,
deixa-se o fantástico para se entrar num gênero vizinho, o estranho ou o
maravilhoso (2007, p. 30-31).
No fragmento acima, o teórico confere especial destaque à postura do narrador e/ou
personagem diante o evento sobrenatural. É fundamental para o fantástico que o narrador
desse tipo de relato explicite seu narratário. Para tanto, utiliza-se de diversos artifícios
narrativos, entre os quais está o uso da primeira pessoa que fala diretamente a seu destinatário.
Com isso, almeja-se criar uma aproximação ao leitor externo da história, fazer com que ele
reconheça o universo narrado como possível e se identifique com o leitor interno. Envolvido
nesse jogo narrativo, a surpresa do narratário é maior diante da constatação do inquietante, o
que favorece o efeito fantástico no leitor externo ao texto. Entretanto, tais considerações de
Todorov evidenciam algumas limitações, pois “lo fantástico queda reducido a ser el simple
límite entre dós géneros, lo extraño y lo maravilloso [...]” (ROAS, 2001, p.16). Considerado
por esse viés, o fantástico não seria um gênero autônomo, pois estaria sempre condicionado a
ser definido mediante comparação com o maravilhoso e/ou estranho3.
Outro aspecto que levantamos relaciona-se ao seguinte trecho da fala de Todorov:
3
Além do maravilhoso e do estranho, o fantástico, em sua origem, esteve mesclado a outros gêneros, como
mistério/horror, aventura, policial. No entanto, com o avanço de pesquisas, criou-se a possibilidade de delimitar
fronteiras entre eles, favorecendo uma análise autônoma de cada um deles.
19
“Aquele que [...] percebe [o insólito] deve optar por uma das duas soluções possíveis”
(TODOROV, 2007, p. 30). Pensando nas características do fantástico, verifica-se que existe
uma contradição na afirmação do autor na medida em que se, para ele, o fantástico nasce da
hesitação entre dois caminhos (natural/sobrenatural), caso o leitor opte por uma explicação,
haverá a anulação do efeito fantástico e a narrativa toma outros caminhos, em que o
“estranho” 4 pode ser um deles. Nesse sentido, aclara Olea Franco:
Creo que [...] Todorov plantea un falso dilema, ya que el género fantástico
no suele elaborar una ‘solución’ de los extraños sucesos, sino solamente
confirmar que éstos en verdad acontecieron. Para que el efecto fantástico sea
pleno, es necesario que el desenlace no se explique, sino que se mantenga en
el terreno de la duda” (2004, p. 41).
Furtado também já havia comentado algo semelhante: “A narrativa fantástica deixa
permanecer a dúvida, nunca definindo uma escolha e tentando comunicar ao destinatário do
enunciado idêntica irresolução perante tudo o que lhe é proposto” (1980, p. 36). Resolver o
enigma não deve fazer parte dos objetivos do fantástico, mas, sim, de narrativas estranhas ou
policiais. O fantástico deve zelar pela frequente manutenção da ambiguidade ao afirmar e
negar o enigma constantemente, de maneira a ocorrer a “alternância entre a apresentação de
elementos inexplicáveis, a hesitação no modo de explicá-los, a falsa explicação, a reabertura
da hesitação, a introdução de novos elementos inexplicáveis e assim por diante” (CESERANI,
2006, p. 30-31).
Segundo Todorov, existem outros aspectos que favorecem a ampliação da ambiguidade
e do suspense na narrativa fantástica, tais como uso de modalizadores discursivos e de verbos
4
Todorov considera que existem dois outros gêneros fronteiriços ao fantástico: o estranho e o maravilhoso.
Segundo o autor, o primeiro ocorre quando há a instauração de um evento insólito, porém, ao final da narrativa,
há uma explicação racional, fazendo com que “as leis da realidade permanecem intactas” (TODOROV, 2007, p.
48). Portanto, o estranho se diferencia do fantástico basicamente por apresentar uma explicação para o
sobrenatural. Essa elucidação pode estar relacionada com: o acaso, o sonho, a influência de drogas, as fraudes, os
jogos falseados, a ilusão dos sentidos e a loucura (TODOROV, 2007, p. 51-52). O autor divide estes elementos
em dois grupos. No primeiro, intitulado “real-imaginário”, estão incluídas as explicações que são “fruto de uma
imaginação desregrada”: o sonho, a loucura e as drogas; já o segundo grupo, o “real-ilusório”, é caracterizado
por fatos “insólitos” que realmente aconteceram, mas que se explicam através do acaso, da fraude e/ou da ilusão,
argumenta o autor (TODOROV, 2007, p. 52). Além do fantástico e do estranho, Todorov investiga ainda outro
gênero narrativo, o maravilhoso. Conforme o autor, esse gênero difere do fantástico justamente por não haver
confronto entre realidades, há a aceitação do sobrenatural pelas personagens e pelo leitor. Esse tipo de narrativa é
diferente das outras por existir um distanciamento espaço-temporal da realidade a que pertence o leitor e por não
apresentar nenhum tipo de explicação racional para o fato insólito. O leitor aceita o pacto ficcional proposto pelo
narrador e percebe que o inexplicável faz parte somente desse universo apresentado, dessa forma sua realidade
permanece intacta. Todorov afirma que “não é a atitude para com os acontecimentos narrados que caracteriza o
maravilhoso, mas a própria natureza desses acontecimentos” (2007, p. 60). Exemplo desse tipo de texto é o que
apresenta animais ou objetos falantes, tapetes ou vassouras voadoras, etc.
20
no pretérito imperfeito. De acordo com o autor, esses modalizadores são responsáveis por
intensificar a dúvida, e “sem mudar o sentido da frase, modifica a relação entre o sujeito da
enunciação e o enunciado” (TODOROV, 2008, p. 153). Isso faz com que o leitor, diante de
um texto que utiliza esse recurso, tenha dificuldade em saber se o fato narrado é verdadeiro,
ou se parecia verdadeiro (TODOROV, 2007, p. 44). Já o uso do pretérito imperfeito tem duas
funções: não precisar se o evento do passado estende-se até o presente e “introduzir uma
distância entre a personagem e o narrador, de tal modo que não conhecemos a posição deste
último” (TODOROV, 2007, p. 44).
Sobre a verossimilhança na narrativa fantástica, Todorov enfatiza que, ainda que o
fantástico seja um gênero que privilegie a instauração do sobrenatural, a atmosfera de
veracidade no relato é indispensável porque “no interior do gênero fantástico, é verossímil a
ocorrência de reações ‘fantásticas’” (TODOROV, 2007, p. 52). Dessa forma, a
verossimilhança faz parte da coerência interna do texto e serve como um fio condutor que
proporciona sentido de verdade aos fatos, favorecendo, assim, a intensificação da percepção
ambígua que leitor e personagens sentem ao ler a narrativa. Filipe Furtado tratou do mesmo
tema. Segundo ele: “O verossímil supõe antes a sua simulação artificiosa, o seu falseamento
furtivo, procurando levar a que a acção que cauciona pareça (e seja considerada sem
resistência) algo que de facto não é” (1980, p. 45). Parafraseando o autor, diríamos que a
verossimilhança deve caracterizar-se como uma condição intrínseca ao texto fantástico,
contribuindo para “dissimular” uma possível veracidade do que se está narrando. Ao refletir
sobre o mesmo aspecto, David Roas considera que “el texto presente un mundo lo más real
posible que sirva de término de comparación con el fenómeno sobrenatural [...] el realismo se
convierte así en una necesidad estructural de todo texto fantástico” (2001, p. 24), ou seja, o
fantástico deve estar ancorado em uma realidade, a qual ele desestabilizará posteriormente
com o surgimento do evento sobrenatural.
Outro aspecto relevante sobre o qual tanto Todorov quanto seus antecessores refletiram
é o provável sentimento de medo que o leitor possa sentir diante da possibilidade de
existência do insólito. Na contramão do que disse H. P. Lovecraft 5, Todorov rejeita esse fator
emocional e considera que fantástico deve se alimentar da hesitação e da dúvida do leitor e
5
Para Lovecraft: “Um conto é fantástico muito e simplesmente se o leitor experimenta profundamente um
sentimento de temor e terror, a presença de mundos e poderes insólitos” (Apud TODOROV, 2007, p. 40). Para o
teórico e escritor norte-americano, esse medo seria produzido pela atmosfera encenada no texto fantástico.
21
não do medo (TODOROV, 2007, p. 40-41). Sobre esse aspecto, Irlemar Chiampi argumenta:
“A restrição do efeito psicológico, ao calafrio provocado por seres e objetos carentes de
explicação racional é insuficiente, mas tampouco é preciso abdicar ao fator emotivo, para
concentrar somente no relato alternativo a razão de ser do gênero” (p. 55). Por essa
perspectiva de Chiampi, não se deve considerar o medo como elemento definidor do
fantástico, como postulou Lovecraft. Contudo, não é preciso descartá-lo veementemente como
o fez Todorov, pois “o medo é estendido em acepção intratextual, como efeito discursivo (um
modo de...) elaborado pelo narrador, a partir de um acontecimento de duplo referencial
(natural e sobrenatural)” (CHIAMPI, 1980, p. 53).
Ainda segundo a estudiosa brasileira, o medo produzido pela instauração do insólito no
texto fantástico “é o temor do não-sentido: o leitor representado é a figuração da perplexidade
diante de uma significação ausente” (CHIAMPI, 1980, p. 55); ou seja, esse sentimento surge
no leitor devido à ameaça do não saber o que ocorreu e/ou o que está ocorrendo de fato. Esse
sentimento de inquietação, portanto, advém da instauração do sobrenatural dentro da realidade
vivida e reconhecida pelo leitor.
Na mesma linha de Chiampi e outros teóricos, David Roas defende que Lovecraft, ainda
que de maneira exagerada, tinha razão ao relacionar o medo como uma das características do
fantástico, já que:
El efecto que produce la irrupción del fenómeno sobrenatural en la realidad
cotidiana, el choque entre lo real y lo inexplicable, nos obliga [...] a
cuestionarnos si lo que creemos pura imaginación podría llegar a ser cierto,
lo que nos lleva a dudar de nuestra realidad y de nuestro yo, y ante eso no
queda otra reacción que el miedo (ROAS, 2001, p. 32).
De todo esse debate sobre o tema, verificamos que se, por um lado, não se pode
considerar o medo do leitor como fator determinante do fantástico, como quis Lovecraft, por
outro, tampouco se pode colocar a hesitação do leitor como definidor do gênero, como
analisou Todorov. Ambas são características que auxiliam os estudiosos a delinear os limites
do gênero, porém não são as únicas, já que tanto a hesitação quanto o medo podem variar de
acordo com a visão de mundo que cada indivíduo apresenta.
Igualmente importante nas teorias de Todorov é o que o autor propõe a respeito dos
temas do fantástico. Buscando compreender o aspecto semântico desse tipo de texto e
aproximando-se da psicanálise para isso, o autor elabora uma lista de temas comuns nesse tipo
22
de narrativa e que ele divide em dois grupos: os “temas do eu” e os “temas do tu”.
Para Todorov, os primeiros dizem respeito à relação do sujeito e seu mundo exterior,
“do sistema percepção-consciência” (TODOROV, 2007, p. 148). Ao passo que os segundos
abarcam a relação do sujeito e seus desejos (“inconsciente”), abrangendo, assim, “o desejo e
suas diversas variações” (TODOROV, 2007, p. 148). Assim, todas as formas de manifestação
da sexualidade, tais como o homossexualismo, incesto, sadomasoquismo, necrofilia, orgias,
etc, estariam relacionados aos “temas do tu”. Conforme o teórico, o fato de esses temas
aparecerem vinculados ao fantástico denota uma possível função social do gênero, uma vez
que, por meio desse tipo de texto, podia-se debater, de maneira “indireta”, temas-tabus
censurados em uma sociedade. Dessa forma, é como se o tema proibido, disfarçado de
sobrenatural, ganhasse uma espécie de imunidade perante a lei, possibilitando não somente o
seu questionamento-problematização como a sua transgressão.
No entanto, segundo Todorov, o advento da psicanálise tornou desnecessário tal debate,
uma vez que essa ciência proporcionaria, por meio de seu instrumental teórico, suficientes
discussões sobre todos esses temas-tabus. Com esse pensamento, Todorov restringe seu
campo de análise somente a textos fantásticos do século XIX, pois, segundo ele, o surgimento
da psicanálise minou o fantástico: “Encontram-se nas novelas de Maupassant os últimos
exemplos esteticamente satisfatórios do gênero. [...] por que a literatura fantástica não existe
mais?” (TODOROV, 2007, p. 178).
Considerando essa afirmação do autor e o ano de publicação de seu estudo (1970),
indagamo-nos sobre quais foram os motivos que levaram o teórico a pensar que o surgimento
de uma ciência invalidaria um gênero literário e ainda a desconsiderar uma gama de narrativas
fantásticas produzidas ao longo do século XX. O único texto desse período analisado pelo
autor é A Metamorfose, de Franz Kafka, de 1915, o qual faz com que o teórico acredite na
extinção do gênero ao constatar que a narrativa de Kafka não se encaixaria em suas definições
sobre os textos fantásticos6. Na esteira de Jean-Paul Sartre, Todorov argumenta que a
6
Nas palavras de Todorov: “Se abordarmos esta narrativa com as categorias anteriormente elaboradas, vemos
que ela se distingue fortemente das histórias fantásticas tradicionais. Em primeiro lugar, o acontecimento
estranho não aparece depois de uma série de indicações indiretas, como o ponto mais alto de uma gradação: ele
está contido em toda a primeira frase. A narrativa fantástica partia de uma situação perfeitamente natural para
alcançar o sobrenatural, A Metamorfose parte do acontecimento sobrenatural para dar-lhe, no curso da narrativa,
uma aparência cada vez mais natural; e o final da história é o mais distante possível do sobrenatural. Qualquer
hesitação torna-se de imediato inútil: ela servia para preparar a percepção do acontecimento inaudito,
caracterizava a passagem do natural ao sobrenatural. Aqui é um movimento contrário que se acha descrito: o da
23
narrativa kafkaniana apresenta a naturalização do sobrenatural ao demonstrar que “o
acontecimento sobrenatural não provoca mais hesitação, pois o mundo descrito é inteiramente
bizarro, tão anormal quanto o próprio acontecimento a que serve de fundo” (TODOROV,
2007, p. 181).
Como Todorov limita-se a Kafka e nossa área de investigação se restringe à literatura
mexicana do século XX, mais especificamente à sua segunda metade, é necessário ampliar as
interpretações críticas sobre o fantástico produzido a partir desse período. Nesse sentido,
cremos que um estudo que pode nos auxiliar na tentativa de compreensão desse tipo de
fantástico é o texto “Aminadab”7, de Jean-Paul Sarte (2005), também citado por Todorov.
Enquanto Todorov encara o fantástico do ponto de vista narrativo-estruturalista, Sartre
analisa o gênero sob a perspectiva interpretativo-filosófico. Refletindo sobre o “fantástico
contemporâneo” a partir de textos de M. Blanchot e F. Kafka, Sartre defende que não é mais o
monstro ou o fantasma que constitui o fantástico e sim o homem:
[...] não há senão um único objeto fantástico: o homem. Não o homem das
religiões e do espiritualismo, engajado no mundo apenas pela metade, mas o
homem-dado, o homem-natureza, o homem-sociedade, aquele que
reverencia um carro fúnebre que passa, que se barbeia na janela, que se
ajoelha nas igrejas, que marcha em compasso atrás de uma bandeira. Esse
ser é um microcosmo, é o mundo, toda a natureza: é somente nele que se
mostrará toda a natureza enfeitiçada. Nele: não em seu corpo [...]”
(SARTRE, 2005, p. 138).
Por esse viés, os seres sobrenaturais dão lugar ao ser humano, que está mergulhado em
um universo repleto de leis “sem objetivo, sem significado, sem conteúdo, e ninguém pode
escapar” (SARTRE, 2005, p. 143). Elaborando raciocínios que nunca levam a lugar algum, o
protagonista do fantástico contemporâneo se sente “às avessas”, um estrangeiro em seu
próprio mundo, uma vez que nunca consegue atingir seus objetivos.
Para Sartre, o fantástico seria a regra e não a exceção do sistema, portanto o homem
estaria inserido num sem-fim de absurdos que, de tão absurdos, acabam se banalizando. Não
há hesitação porque o universo fantástico é e está no próprio homem e não alheio a ele, como
preconizado no século XIX. O fantástico vincula-se ao existencialismo, corrente filosófica
que busca o retorno ao homem, ao seu íntimo. Como exemplo, podemos pensar em narrativas
adaptação, que se segue ao acontecimento inexplicável [...]” (2007, p. 179).
7
Capítulo do livro Situações I, obra publicada em 1947.
24
de J. L. Borges e J. Cortázar, uma vez que elas não apresentam monstros ou similares como
elementos insólitos, o homem é o único responsável pelo surgimento do inexplicável, o que,
certamente, provoca maior impacto no leitor.
O último estudo sobre o fantástico a que damos ênfase é o realizado por Rafael Olea
Franco: En el reino de los aparecidos: Roa Bárcena, Fuentes y Pacheco (2004). No capítulo
“El concepto de literatura fantástica”, o teórico mexicano elabora uma reflexão sobre o
gênero, suas características e suas limitações. Sempre com um olhar voltado para a literatura
hispânica, Olea Franco salienta que o prólogo feito por Bioy Casares para a Antología de la
literatura fantástica foi fundamental para a compreensão e difusão do gênero na América
Latina da primeira metade do século XX. Consciente da dificuldade de delimitar o fantástico e
endereçando críticas ao uso indiscriminado do termo, o autor reconhece o pioneirismo do
estudo de Todorov e parte desse texto para fazer suas próprias considerações. Não nos
ateremos a todas elas, porque algumas questões já foram abordadas neste mesmo capítulo. O
que nos interessa ressaltar da obra do autor mexicano é a sua observação sobre a dinâmica que
envolve o fantástico:
Postulo que, en general, los textos fantásticos se caracterizan por la paulatina
primacía de la lógica de la conyunción, la cual se contrapone a la lógica de
la disyunción con que comúnmente son explicados los fenómenos, tanto en
la realidad habitual de los personajes como en la de los receptores [...]. Para
esta lógica de disyunción compartida por el texto y por nuestra realidad de
lectores, se puede estar vivo o muerto, pero no vivo o muerto a la vez, como
sucede en un texto fantástico cuando se impone la lógica de la conyunción
(OLEA FRANCO, 2004, p. 63).
O fantástico pensado por esse ponto de vista revela-se como um gênero que consegue
aproximar dois universos opostos, alheios um ao outro, fazendo com que haja um
estranhamento por parte das personagens e do leitor por conta dessa conjunção inesperada.
Com isso, o fantástico relativiza o sentido de realidade ao minar as certezas nas quais se
ancora uma sociedade.
Para concluir, advertimos que, embora as teorias de Todorov tenham sido
exaustivamente debatidas e críticadas, estamos cientes de que o autor as escreve de uma
determinada perspectiva e que por isso acreditamos que Introdução à literatura fantástica
cumpre de forma plausível o que se propôs a fazer, ou seja, um estudo introdutório sobre o
gênero, como o próprio título de sua publicação indica. Essa obra funcionou – e funciona –
como uma espécie de divisor de águas para os estudos do fantástico, norteando pesquisas
25
ainda hoje, inclusive o presente estudo. Salientamos também que, apesar de Todorov negar a
existência da literatura fantástica no século XX, é necessário sublinhar que a produção
literária do século XX não surge de um marco zero. Pelo contrário: ela se estabelece a partir
de uma tradição, com a qual ele dialoga e (se) reformula a cada livro publicado. O próprio
Carlos Fuentes se confessa herdeiro dos autores desse período. Por isso, optamos por utilizar
as teorias estabelecidas por Todorov, cujo objetivo está focado na tentativa de melhor
compreender o nosso corpus de investigação.
A seguir, delinearemos um breve esboço sobre o surgimento e fortalecimento da
literatura fantástica na Hispano-América do século XX. Com isso, esperamos investigar como
o gênero ganha força nesse contexto, dando origem ao chamado boom da “nueva novela
latinoamericana”, movimento do qual Carlos Fuentes fez parte.
1.1 A LITERATURA FANTÁSTICA E O CONTEXTO HISPANO-AMERICANO DO
SÉCULO XX
Na América de língua espanhola, o fantástico surge como gênero escrito no século
XIX8, quando alguns autores, influenciados pela literatura fantástica europeia9, voltam-se para
uma escrita que contemplasse universos não-naturais. Entre eles, está o modernista Ruben
Darío (1867-1916), um dos autores que obteve mais destaque. Tendo por base a literatura
francesa, o nicaraguense escreveu textos em prosa repletos de erotismo, imaginação e
exotismo. Outro nome que se destaca no continente é o de Horacio Quiroga (1878-1937). O
autor uruguaio escreveu narrativas desconcertantes, que apresentam tragédias, horror e
sofrimento. Admirador de Edgar Allan Poe, Quiroga escreve textos nos quais é possível
encontrar ecos da escrita do autor norte-americano.
No século XX, a literatura fantástica ganha força principalmente a partir da década de
1930 com textos de J. L. Borges. Antes desse período, a grande maioria das produções
literárias publicadas na América Hispânica tinha por principal característica o regionalismo,
8
Um estudo mais completo pode ser encontrado em: LÓPEZ MARTÍN, Lola. Formación y desarrollo del cuento
hispanoamericano en el siglo XIX. Tese. (Doutorado em Literatura Espanhola e hispano-americana). Universidad
Autónoma de Madrid. Madrid, 2009.
9
Dentre as muitas influências, Miguel de Cervantes com El ingenioso Don Quijote de la Mancha (1605-1615)
ganha destaque entre os escritores da América Latina, principalmente em relação aos falantes de língua
espanhola.
26
exemplificado nas chamadas “novelas de la tierra”. Autores como Mariano Azuela no México
e o argentino Ricardo Guiraldes privilegiaram o contexto local, onde realidade, natureza e
paisagem eram os principais personagens, o que deslocava para segundo plano a figura
humana. Essa era uma literatura de caráter majoritariamente documental, pois “la geografia lo
es todo; el hombre, nada”, enfatiza Rodríguez Monegal (1969, p. 10).
Esse cenário literário começa a mudar a partir de meados das décadas de 30 e 40, com o
surgimento de uma gama de obras que apresentam vertentes do fantástico: La invención de
Morel (1940) de Adolfo Bioy Casares, Al filo del agua (1947) de Augustín Yañes, Hombres de
Maíz (1949) de Miguel Ángel Asturias, El reino de este mundo (1949) de Alejo Carpentier,
bem como Ficciones (1944) e El Aleph (1949) de Jorge Luis Borges. Todos estes são autores
que escreveram e promoveram a difusão de ficções fantásticas, entre os quais Borges ganhou
especial destaque ao ser considerado pela crítica literária como pioneiro no uso do gênero. O
autor argentino consegue, por meio de sua literatura, renunciar a velhos esquemas narrativos,
dando nova significação ao modo de encarar a ficção e suas modalidades realistas ou
imaginárias. Para ele, o fantástico sempre existiu na América por meio da tradição oral e
mítica.
Os textos de Borges serviram e servem de inspiração a jovens escritores do continente,
dentre os quais estão nomes como Julio Cortázar e Carlos Fuentes. Borges se destacou
também como propagador do gênero ao organizar um volume de contos fantásticos10 ao lado
de Silvina Ocampo e Bioy Casares. Ligado a isso, o autor de Ficciones atuou como crítico
literário e apontou caminhos possíveis para esse gênero que se difundia na América
Hispânica. Outro ramo no qual o autor esteve envolvido foi o de tradução. Borges traduziu
várias obras de autores de língua inglesa para a língua espanhola, como Edgar Allan Poe,
James Joyce, William Faulkner, e, em 1938, traduziu A metamorfose de Franz Kafka, o que,
certamente, intensificou seu afã pela literatura fantástica.
Outra figura basilar para a difusão de uma literatura de caráter mais imaginativo é Alejo
Carpentier. O autor cubano teve decisiva atuação no cenário literário latino e hispanoamericano ao produzir obras que privilegiam aspectos míticos populares cultivados nessa
10
BORGES, J. L. ; OCAMPO, S. ; CASARES, A. B. Antología de la literatura fantástica. Buenos Aires: Ed.
Sudamérica, 1940.
27
parte do continente. O prólogo11 que ele escreveu para sua obra El reino de este mundo12 é
igualmente fundamental, pois nele Carpentier postula um “novo” fazer literário que, segundo
ele, deveria estar atrelado à reflexão sobre questões de identidade e de “americanidade”.
Partindo desse pensamento é que o autor cubano desenvolve sua teoria sobre o “real
maravilhoso americano”, que consiste em captar, por meio da literatura, uma América Latina
que, por si só, apresenta uma realidade mítica, maravilhosa, sendo o referente extralinguístico
extraordinário por excelência. Dessa forma, mesclando história, natureza e mitos latinoamericanos, Carpentier argumentava que os autores deveriam apropriar-se dessa realidade,
“mágica por excelência”, para produzirem suas narrativas, privilegiando, assim, “o conjunto
de objetos e eventos reais que singularizam a América no contexto Ocidental” (CHIAMPI,
1980, p. 32).
Esse afã por exaltar a América Latina está relacionado, em alguma medida, com a
desilusão gerada pelas consequências da II Guerra Mundial. Diante desse evento, os latinoamericanos perceberam que a Europa talvez não fosse o exemplo mais coerente de
racionalidade e progresso, como muitos haviam pensado durante tanto tempo e, sendo assim,
era preciso encontrar outro “modelo” no qual se apoiar. Descartados os Estados Unidos, a
única opção era espelhar-se em si mesmo, um voltar-se para si. Ao considerar essa oposição
entre América Latina e Europa, Carpentier “estabelecia uma verdadeira profissão de fé como
escritor e exortava os narradores latino-americanos a se voltarem para o mundo americano,
cujo potencial de prodígios [...] sobrepujava em muito a fantasia e a imaginação europeias”
(CHIAMPI, 1980, p. 32). No entanto, como a Europa havia sido o “exemplo” até então,
Carpentier parte das teorias europeias para postular as suas próprias, o que lhe rendeu diversas
críticas, entre as quais está a de que o autor cubano alcunha seu termo “real maravilhoso
americano” a partir do “realismo mágico” de Franz Roh13. A pesquisadora Irlemar Chiampi
segue essa linha de raciocínio ao sublinhar algumas limitações a respeito do termo adotado
por Carpentier. Chiampi afirma que, uma vez que Carpentier toma por base um termo europeu
11
O prólogo de El reino de este mundo foi publicado em 1948, no jornal El Nacional de Caracas.
12
Alejo Carpentier também viveu algum tempo na França (1928-1939), onde teve contato com o movimento
surrealista. É nesse período que se sente impelido a retratar a realidade americana. Após viagem ao Haiti, o autor
cubano dá início à escrita de El reino de este mundo, obra fundamental para a literatura latino-americana.
13
Franz Roh foi um crítico de arte alemão do início do século XX. Foi ele quem originou o termo “realismo
mágico”, apresentado em seu livro Pós-expressionismo (Realismo Mágico): os problemas da nova pintura
europeia, de 1925.
28
para criar o seu próprio, o autor cubano não conseguiria abarcar toda uma complexidade
cultural, histórica e literária presente na América Latina da época. Por esse ponto de vista, é
possível verificar alguns pontos questionáveis na teoria de Carpentier, como a própria
Chiampi salienta. Entretanto, é preciso considerar que as ideias difundidas pelo autor cubano
certamente colaboraram para a “oficialização” e difusão de uma literatura que primasse pela
retomada de toda uma tradição oral, baseada em mitos presentes no imaginário latinoamericano, contribuindo para uma reflexão mais abrangente sobre o sentido de
“americanidade”. Assim sendo, ainda que Carpentier não trate especificamente da literatura
fantástica, vale ressaltar que, com seu prólogo, o autor consegue suscitar olhares mais
conscientes e críticos no que se diz respeito ao fazer literário dos autores latino-americanos, já
que o autor cubano elaborou uma literatura de ruptura com a realidade racionalista, da mesma
maneira que o faz o fantástico.
Em sua obra O realismo maravilhoso: forma e ideologia no Romance Hispanoamericano (1980), Irlemar Chiampi analisa os aspectos convergentes e divergentes em ambos
entre o realismo maravilhoso e o fantástico. Conforme a autora, o realismo maravilhoso14
caracteriza-se pelo não temor do evento sobrenatural, “o insólito, em óptica racional, deixa de
ser o ‘outro lado’, o desconhecido, para incorpora-se ao real: a maravilha é (está) (n)a
realidade” (CHIAMPI, 1980, p. 59). Em oposição ao que ocorre no fantástico, no realismo
maravilhoso, as personagens não se inquietam diante do evento insólito, não há a modalização
desse evento e tampouco ocorre a instauração do mistério e da dúvida, nem nas personagens
nem no leitor.
Por meio de uma construção morfológica, sintática e semântica, a literatura baseada no
realismo maravilhoso estabelece a naturalização do sobrenatural ao abarcar, dentro do mesmo
universo, tanto o real quanto o tido irreal; assim esses elementos são colocados no mesmo
patamar de maneira a não haver disjunção entre eles: “O verossímil no realismo maravilhoso
consiste em buscar a reunião dos contraditórios, no gesto poético radical de tornar verossímil
o inverossímil” (CHIAMPI, 1980, p. 168).
Quando comparados entre si, o real maravilhoso distancia-se do fantástico justamente
porque naquele não há o choque entre o natural e o sobrenatural, como ocorre em narrativas
14
Após fazer pertinentes considerações sobre a limitação do termo “real maravilhoso americano” em relação ao
“realismo mágico”, a autora opta por utilizar a expressão “realismo maravilhoso”.
29
deste outro gênero que se alimentam desse confronto. Divergentes nesse aspecto, porém
convergentes em outros, se cotejados com outros tipos de literatura, como a realista por
exemplo. Sobre as convergências, Chiampi assinala que o realismo maravilhoso e o fantástico
confluem nos seguintes pontos: problematização da racionalidade; crítica implícita à leitura
romanesca tradicional; jogo verbal para obter a credibilidade do leitor; aparição de seres
sobrenaturais; metamorfoses; desarranjos da causalidade, do tempo e espaço, etc. (CHIAMPI,
1980, p. 52-53). A adoção desses recursos estruturais explicita reflexões histórico-ideológicas
e revela a ruptura com tradições vigentes até então, o que possibilita a abertura de espaço para
o surgimento, na década de 1950, de obras fundamentais para o gênero fantástico na América
de língua espanhola, entre as quais estão: Bestiario (1951) e Final del juego (1956), livros de
contos de Julio Cortázar; Confabulario (1952), de Juan José Arreola; Los días enmascarados
(1954), primeira obra de Carlos Fuentes; Pedro Páramo (1955), de Juan Rulfo. Isso, somado a
um forte apoio editorial e publicitário, desencadeou o chamado “boom” da “nueva novela
hispano-americana” nas décadas de 1960 e 1970, movimento que inscreveu definitivamente a
literatura – fantástica – hispano-americana no cenário literário mundial. Além dos escritores
mencionados acima, aparecem ainda outros nomes importantes, como Gabriel García
Márquez com Cien años de soledad (1967), Mario Vargas Llosa, Ernesto Sábato, José
Donoso, somente para citar alguns exemplos.
Influenciados por autores como J. Joyce, M. Proust, F. Kafka, J. Dos Passos, W.
Faulkner entre outros, esses “novos” narradores hispano-americanos primam por originar
narrativas que apresentassem inovações no modo de fazer literatura por meio do trabalho com
a linguagem. Javier Ordiz salienta acerca das obras produzidas nesse período:
La mencionada rebelión contra el código realista lleva a estos jóvenes
escritores a experimentar con leyes del género. Se rompen las categorías del
relato lineal e incluso las propias fronteras entre géneros literarios,
desaparece el tradicional narrador omnisciente, y la narración se aleja de su
carater 'cerrado' para convertirse en algo que se revitaliza en el acto de la
lectura (2005, p. 17).
Experimentalismo linguístico e estrutural no romance, ruptura com a visão unívoca de
linearidade narrativa, entrecruzamento de várias pessoas narrativas (vozes) e, portanto, vários
pontos de vista são apenas alguns dos recursos que esses escritores utilizaram. Sobre isso,
afirma Carlos Fuentes: “Mi generación [...] se formó con la conciencia de que el personaje
30
‘redondo’, psicológico, había muerto, asesinado por historia del siglo XX”15. Assim, tomados
pelo sentimento de desilusão, provocado pela II Guerra Mundial, e de euforia, gerado pela
Revolução Cubana, esses escritores buscaram, por meio desse “novo” fazer literário, denotar a
preocupação com questões relacionadas a problemas locais, sem, contudo, deixar de lado
questões universais.
Conforme ideologia da época, essa nova narrativa deveria reunir língua, cultura e
identidade, privilegiar a complexidade cultural e política da América Latina e abandonar a
visão maniqueísta do regionalismo dos anos 20 e 30, que já não atendia mais a realidade
multifacetada do homem urbano. A literatura não deveria ser homogênea, uma vez que a
realidade não o era, pois estava em constante mudança. Era preciso captar a mentalidade do
novo homem e de seu “múltiple rostro” (MONEGAL, 1969, p. 09).
Segundo Rodríguez Monegal, ao eleger uma literatura de ruptura, em que fantasia e
realidade se interpolam, esses autores inovam, pois: “Buscan captar el sentido oculto de estos
cambios, de esta revolución, y para conseguirlo, concentran la mirada en el nuevo hombre que
el vasto continente latinoamericano está produciendo ahora (1969, p. 09)”. Há o afastamento
de ideologias ligadas a fronteiras culturais e/ou linguísticas, porque, para esses escritores, a
literatura não era argentina, uruguaia, ou mexicana; ela era, antes de tudo, literatura e hispanoamericana. Portanto, existe a vontade de refletir sobre seu país e suas características, mas sem
apelar para o caráter localista, havendo, assim, a intenção de agregar o nacional e o universal.
Dessa maneira, esse novo fazer literário deseja captar as angústias do homem inserido na
“modernidade”.
Até mesmo o tipo de fantástico produzido nesse período difere em relação ao europeu.
Fazendo uma comparação bastante generalizada e, consequentemente, simplificada, podemos
pensar que, dentro da perspectiva hispano-americana, a ideia de fantástico está relacionada ao
imaginário popular e o evento sobrenatural faz parte da realidade, como argumentou
Carpentier. Já o fantástico europeu define-se como o oposto do hispano-americano ao
caracterizar-se como a irrupção do inimaginável, que surge para desvirtuar o sentido de
realidade.
Pensando somente no contexto hispano-americano, verifica-se que existem dois tipos de
15
Declaração do autor feita durante entrevista concedida a Ricardo C. Gally. In: HERNÀNDEZ, Jorge (comp.).
Carlos Fuentes: territorios del tiempo (antología de entrevistas). México: FCE, 1999, p. 263.
31
ambientações em suas narrativas fantásticas. Por um lado, há autores que privilegiam o espaço
urbano e produzem textos que se aproximam do fantástico preconizado por Sartre, em que o
homem é desencadeador do próprio estranhamento. Borges e Cortázar são exemplos disso.
Por outro lado, existem autores que, sem cair no localismo, optam por privilegiar o ambiente
rural em suas narrativas, cuja finalidade é dialogar com mitos e lendas que fazem parte de
uma tradição de seus locais de origem. Nesse sentido, podemos citar, para exemplificar,
nomes como Alejo Carpentier, Juan Rulfo e G. García Márquez, autores que reuniram
características locais em seus textos ao mesmo tempo que buscavam salientar que “el mundo
de los mitos no tiene nada de provinciano, ni siquiera de nacional; trasciende fronteras, países,
culturas [...]” (DURÁN, 1976, p. 13).
Assim como elogios, igualmente não faltaram críticas aos autores pertencentes a essa
“nova escola”, entre as quais está a de que eles faziam parte de uma “máfia” de intelectuais
que escrevia romances somente para as elites e comandava críticos literários e editoriais.
Diante dessa afirmação, salientamos apenas dois pontos: primeiro, é natural que haja um
estranhamento inicial do leitor diante das inovações acima elencadas, principalmente tendo
em vista o tipo de literatura produzida e lida até então, a realista; segundo, o sentido desta
pesquisa visa verificar como se dá a construção desse pensamento de ruptura por meio de um
tipo de literatura, que se vale de elementos realistas e ficcionais para pensar determinadas
questões, e não apontar sua invalidade para pensar o universo hispano-americano. Isso
geralmente tende a desconsiderar a contribuição reflexiva de um intelectual ao negar-se a
tentar compreender o jogo literário proposto por ele. Não se trata aqui de julgar os autores por
suas obras ou ações, mas, sim, de propor uma interpretação literária mediada pela questão
cultural representada dentro do universo ficcional.
Ressaltamos, para finalizar, que os autores do chamado “boom” conseguiram iluminar
novas perspectivas narrativas para o cenário literário hispano-americano ao unirem
conhecimento de tradições orais e míticas do continente, reflexão sobre esse contexto e o
aprimoramento das técnicas de produção literária, como salienta Bella Josef:
A narrativa hispano-americana atual, da rica geração de 55, apresenta um
espírito crítico e um afã interpretativo do mundo. Esta geração corresponde à
etapa de madureza que atravessa a América e, por isso, apresenta uma visão
artística complexa e uma qualidade técnica a que não faltam virtuosismos
formais (como o de Carlos Fuentes) e a procura do mito 'consciente da
necessidade de voltar a certo irracionalismo que nos devolva o sentido
original de realidade (1989, p. 270).
32
Renunciando a determinados esquemas narrativos e conjugando “mito, lenguaje y
estructura”, os autores dessa época encontram nesse “irracionalismo”, do qual fala Josef, o
respaldo para escrever suas narrativas fantásticas. Ao adotar esse gênero, esses intelectuais
propõem intensas reflexões sobre seus textos e sobre os diversos temas da realidade
extratexto. Talvez esse seja um dos maiores méritos da literatura desse período: lançar mão de
um gênero que se baseia no “irreal” para analisar e problematizar sua realidade contextual.
33
2. CARLOS FUENTES E A LITERATURA FANTÁSTICA
Entre contos, novelas, romances, ensaios e artigos, Carlos Fuentes conta com uma
extensa e variada obra que perpassa as décadas. Nascido em 1928, o mexicano demonstra
interesse pelas letras já em sua infância, momento em que escreve suas primeiras narrativas.
Porém, sua carreira inicia-se “oficialmente” somente em 1954, ano em que ocorre a
publicação de seu livro de contos intitulado Los días enmascarados. Desde então, a cada ano
e com uma maior maturação literária, Fuentes escreve várias obras que são continuamente
alvos de numerosos estudos e críticas sob as mais diferentes perspectivas. Com isso, o autor
mexicano tem a possibilidade de viver de seus textos, algo não muito comum no México das
décadas de 1950 e 1960, quando a maioria dos escritores produzia suas narrativas como uma
espécie de “passa–tempo”, uma vez que eles tinham que desempenhar outras funções para
sobreviver. Conjuntamente a essa atividade, por meio de seus textos e entrevistas, o mexicano
busca difundir a literatura e a cultura hispano-americanas pelo mundo, especialmente pela
Europa, onde viveu boa parte de sua vida. Assim, por sua atuante presença no cenário literário
latino-americano, tanto como romancista quanto como figura que contribuiu com a difusão da
“nueva novela hispanoamericana”, Carlos Fuentes consegue alcançar o reconhecimento da
crítica ao ser considerado como um dos mais importantes narradores e intelectuais da América
Latina.
No entanto, por se tratar de um autor de uma produção literária extensa, variada e
contínua, pode ocorrer, não raras vezes, que seus leitores não consigam ter uma visão
abrangente de sua obra, principalmente no que se refere a suas narrativas fantásticas, pois seus
romances de cunho realista são amplamente conhecidos do grande público. Pensando nisso é
que desenvolvemos este estudo e especialmente este capítulo, cujo objetivo está focado na
tentativa de encontrar, por meio de uma metodologia analítico-comparativa, elementos
comuns entre as narrativas de Carlos Fuentes que se alinham com o fantástico e delinear uma
aproximação crítica a esses textos. Esperamos, com isso, iluminar caminhos interpretativos
sobre esses textos e encontrar possíveis temas recorrentes nessa produção do autor mexicano,
refletindo em que medida essa recorrência de temas gera efeitos de sentido na obra em si e
entre ela e as demais obras do autor, criando um leque de significações no momento de sua(s)
leitura(s). Para tanto, visando melhores resultados de análise, demarcaremos uma divisão
entre essas narrativas fantásticas e a produção de viés realista do autor. Contudo, ressaltamos
34
de antemão que de maneira alguma deixamos de ter em vista sua obra como um todo, já que,
como o próprio Fuentes afirma, cada livro seu publicado é parte de um grande romance que
ele está escrevendo ao longo de sua vida, o que ele chama de “La edad del tiempo”16. Entre os
muitos “capítulos” desse grande romance está “El mal del tiempo”, ciclo no qual o autor
mexicano inscreve a maior parte de suas narrativas fantásticas e sobre o qual discorreremos
mais adiante. Começaremos nossas considerações tendo como critério o aspecto cronológico
dessas publicações.
2.1 LOS DÍAS ENMASCARADOS: ORIGEM DA INQUIETAÇÃO
Obra inaugural do repertório de Carlos Fuentes, Los días Enmascarados, de 1954,
funciona como uma espécie de norteador para os escritos posteriores do autor. Trata-se de um
volume de contos, seis no total, no qual Fuentes arquiteta narrativas complexas e inquietantes,
que apresentam uma realidade cotidiana que é colocada em xeque por outra realidade que se
estabelece.
Escrito em apenas um mês, segundo o próprio Carlos Fuentes17, para participar de um
concurso literário18 em uma feira de livros de 1954, Los días enmascarados inquietou críticos
literários da época por causa dos temas tratados pelo autor e por causa de sua opção pela
literatura fantástica como o gênero para suas narrativas19. Os críticos julgaram imperdoável o
16
Com o intuito de organizar e significar sua extensa produção, Carlos Fuentes cria “La edad del tiempo”,
espécie de grande ciclo em que o autor insere suas narrativas dos mais diversos gêneros. Esse grande ciclo é
dividido em diversos outros, dentro os quais estão “El mal del tiempo”, “Tiempo de fundaciones”, “El tiempo
romántico”, “El tiempo político”, etc. Em cada um desses diversos tempos, o autor escreve narrativas que
apresentam temas comuns entre si, como o Tempo, por exemplo. Segundo o autor: “La edad del tiempo” é “un
juego de palabras, y su eje, [...] más que un país, México, es el problema del tiempo, la manera como
estructuramos el tiempo humano, cómo nos relacionamos con la historia; con el tiempo de los demás. Parto de la
premisa de que hay muchos tiempos en la historia, no hay un solo tiempo irreversible, futurizable, sino que hay
tiempos que predican un regreso al pasado, una salud en el origen, una acumulación”. Entrevista concedida a
Julio Ortega. In: HERNÀNDEZ, Jorge (comp.). Carlos Fuentes: territorios del tiempo (antología de entrevistas).
México: FCE, 1999, p. 224.
17
Fuentes afirma: “Con una serie de temas que yo venía cargando y que recuerdo me senté y escribí en un mes,
para tener el libro a tiempo para la feria del libro del año 54”. Apud HARSS, Luis. (Colab. Barbara Dohmann).
Los Nuestros. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1966, p. 348.
18
Concurso promovido pelo editorial independente chamado “Los Presentes”, fundado e dirigido por Juan José
Arreola em 1950.
19
Um estudo sobre a reação da crítica pode ser encontrado em “En el reino de los aparecidos: Roa Bárcena,
Fuentes y Pacheco”, de Rafael Olea Franco, de 2004.
35
fato de o escritor mexicano promover uma literatura que estava “descomprometida com a
realidade”, já que, conforme o discurso difundido na época, todo o escritor latino-americano
deveria desenvolver uma literatura que estivesse engajada com os problemas do cotidiano e,
portanto, estivesse comprometida socialmente; ou seja, os textos que fugiam desse molde
eram “universalistas”, desconsideravam seu país e seus problemas sociais, caracterizando-se
como uma “literatura evasiva y, por tanto, nada americana” 20.
Diante de tais afirmações sobre Los días enmascarados, nota-se que esses intelectuais
não conseguiram apreender a totalidade da proposta de Carlos Fuentes naquele momento,
porque o autor lança mão da literatura fantástica sem, contudo, desconsiderar questões
referentes à América Latina e, principalmente, referentes a seu país. Indo na esteira de autores
como Arreola e Rulfo (para citar apenas dois exemplos), Carlos Fuentes deixa transparecer,
em sua primeira publicação, o desejo de criar uma literatura que conjugasse inovação literária
e reflexão sobre o seu contexto; característica, aliás, encontrada também em narrativas de
escritores de sua mesma geração, como Cortázar e García Márquez por exemplo.
No intuito de rebater tais críticas, Carlos Fuentes argumenta, em entrevistas, que seu
compromisso era com a criação literária, com o fazer literário, uma vez que “la literatura o
crea una realidad o no es literatura”21. Ou seja, em um texto literário, a imaginação e a
linguagem são fundamentais, elementos esses que, quando bem arquitetados, são capazes de
fazer com que uma narrativa transcenda, atinja seu contexto, desprenda-se de uma
nacionalidade específica e ascenda a uma literatura de caráter mais universal. Valorizando a
junção entre criação literária e contexto, o autor mexicano, em sua primeira publicação,
retrata os diversos Méxicos existentes em seu país, materializando, por meio da palavra, as
diferentes realidades até então menosprezadas, conseguindo, assim, adentrar nos mais
distintos universos, como comenta Olea Franco: “Los Días enmascarados inventa un mundo
fantástico que posee fuertes nexos con el México contemporáneo, con el cual y desde el cual
discute [Carlos Fuentes]” (2004, p. 144).
Por tudo isso, parece-nos um equívoco afirmar que Fuentes, em suas narrativas
20
Afirma Alfredo Hurtado: “El número 2 [“Los Presentes”] correspondió al título Los días enmascarados, de
Carlos Fuentes. Libro de prosa bien cuidada: literatura evasiva y, por tanto, nada americana, aunque bastante
elogiada por sus amigos. El autor no da un paso si no pone sus ojos en la decrépita literatura inglesa”. Apud
OLEA FRANCO, 2004, p. 139.
21
Entrevista concedida a Alfred MacAdam e Charles Ruas. In: HERNÀNDEZ, Jorge (comp.). Carlos Fuentes:
territorios del tiempo (antología de entrevistas). México: FCE, 1999, p. 47.
36
fantásticas, descarta a realidade, uma vez que basta debruçar-se com mais atenção sobre seus
textos para concluir exatamente o oposto: o autor combina literatura e realidade, literatura e
história, fazendo com que o leitor desperte para certo dado da realidade que ele ainda não
havia notado. Fundamental por ser considerada uma obra seminal da narrativa de Carlos
Fuentes, Los días enmascarados é o livro primogênito do escritor mexicano e nele contém
temáticas que serão ampliadas em suas narrativas futuras, além de se configurar como uma
obra que contribui para consolidar uma tradição de textos fantásticos no México22.
Ao contrário do que ocorreu na região do Rio da Prata, o país de Carlos Fuentes
manteve, até a primeira metade do século XX, uma tradição literária majoritariamente
ancorada em romances realistas 23, com as chamadas “novelas de la tierra” e “novelas de la
Revolución”24. Isso começa a mudar nas décadas após a Revolução Mexicana (1910), quando
muitos autores, aproveitando-se de financiamentos governamentais e influenciados pelas
vanguardas europeias, dedicam-se a realizar um tipo de literatura mais imaginativa. Porém, é
apenas na segunda metade do século XX que ocorre uma transformação mais efetiva na
literatura mexicana, momento em que surgem obras como Confabulario (1952), de Juan José
Arreola, Los días enmascarados (1954), Pedro Páramo (1955), de Juan Rulfo, e,
posteriormente, Farabeuf o la crónica de un instante (1965), de Salvador Elizondo25.
22
É necessário salientar que quando afirmamos a existência de uma tradição de textos fantásticos no México
estamos fazendo menção à grande produção de textos deste gênero a partir da década de 50, independente de seu
reconhecimento pela academia e pelos editoriais.
23
Referimo-nos à literatura escrita e não à tradição oral mexicana, permeada por crenças e mitos. Em relação a
aquele tipo de literatura, estudos apontam que houve alguma produção de narrativas fantásticas no país no século
XIX, porém sem grande expressão se comparada a outras regiões do continente. Alguns autores mexicanos,
inspirados em autores europeus e em Edgar Allan Poe principalmente, escreveram narrativas cujo enredo gira em
torno de algum evento misterioso e/ou sobrenatural, alinhando-se com o fantástico. Entre eles, citamos José
María Roa Bárcena (1827-1908) e Amado Nervo (1870-1919). Sobre o tema, pode-se encontrar um estudo mais
detalhado em: LÓPEZ MARTÍN, Lola. Formación y desarrollo del cuento hispanoamericano en el siglo XIX.
Tese. (Doutorado em Literatura Espanhola e Hispano-americana). Universidad Autónoma de Madrid. Madrid,
2009.
24
Durante o século XIX e divulgada principalmente por meio de jornais e revistas, a literatura mexicana
caracterizava-se, majoritariamente, por seu caráter realista e moralizante (direcionada à mulher e à família), por
causa da forte vigilância que o governo mexicano exercia sobre os escritores. Com a Revolução Mexicana, esse
panorama muda e há a abertura para que escritores e intelectuais da época se expressassem de maneira mais
aberta sobre diferentes temas, como política, religião, costumes, etc. Nesse contexto, surge Mariano Azuela
(1873-1952), autor de Los de abajo (1915), que escreve uma literatura realista, porém crítica em relação à
Revolução Mexicana e suas consequências.
25
Essas duas últimas obras são fundamentais para a literatura fantástica mexicana e latino-americana, porque
colaboraram para a ruptura de um fazer literário ancorado em uma realidade racionalista. Juan Rulfo deixa para
trás a novela da Revolução e arquiteta uma novela amplamente polifônica, em que vozes de personagens ecoam
37
As obras citadas anteriormente, portanto, contribuíram decididamente para o
fortalecimento de uma tradição fantástica no México. A propósito disso, comenta Raymond
Leslie Williams: “Los Días Enmascarados de Fuentes, junto con el Confabulario de Arreola,
trajeron a la literatura mexicana las posibilidades de invención que Borges había explorado
inicialmente en Ficciones: trajeron el espíritu de la modernidad” (1998, p. 50).
Assim, em sua primeira publicação, Carlos Fuentes, utiliza-se do gênero fantástico para
descortinar “novas” realidades e questionar a noção de discurso unívoco, criando narrativas
que apresentam intrincados jogos narrativos que contemplam questões referentes à formação
da identidade mexicana, bem como a História do México e a diversidade cultural deste país.
“Chac Mool”, “Tlactocatzine, del jardín de Flandes” e “Por boca de los dioses” são exemplos
disso. Há ainda contos de caráter mais universal, que vão ao encontro de questões históricas e
humanas e apontam para problemas do mundo contemporâneo. Seguem esta linha “El que
inventó la pólvora”, “En defensade la trigolibia” e “Letanía de la orquídea”. Este último,
conforme destaca Georgina Gutiérrez é “dedicado a América Latina, sirve, (...) como puente
entre la preocupación por lo nacional y lo transnacional” (1981, p. 10).
Por fim, tendo em vista a hipótese de que alguns temas tratados em Los días
enmascarados norteiam a obra de Carlos Fuentes, cremos que vale a pena fazer algumas
considerações interpretativas sobre “Chac Mool” e “Tlactocatzine, del jardín de Flandes”,
duas narrativas centrais dessa obra, cujo objetivo visa verificar a pertinência dessa hipótese
por meio do levantamento e análise de aspectos comuns entre estes textos e os demais textos
do autor mexicano pertencentes ao ciclo “El mal del tiempo”.
2.2 O FANTÁSTICO EM “CHAC MOOL” E “TLACTOCATZINE, DEL JARDÍN
DE FLANDES”
Narrativas pertencentes a Los días enmascarados, “Chac Mool” e “Tlactocatzine, del
por toda a parte, deixando o leitor sem conseguir distinguir se são de personagens vivas ou mortas, por causa da
ambientação do povoado de Comala que mais parece um grande cemitério. Com isso, Rulfo consegue relativizar
as concepções sobre a própria existência humana, além de criar uma espécie de mitologia do mundo dos mortos.
Sobre esta obra, Carlos Fuentes afirma que Pedro Páramo é como se fosse um “árbol negro y seco, con unas
ramas de la cual pende una manzana de oro”. Entrevista a Cristián Warnken no ano de 2004. Disponível em:
http://www.unabellezanueva.org/carlos-fuentes/. Acesso em: 20 de fevereiro de 2012. A presença da narrativa de
Salvador Elizondo justifica-se devido ao seu aspecto de escrita que traz elementos sinistros e perturbadores, em
que a realidade, metafísica e onirismo misturam-se, criando uma atmosfera de ambiguidade.
38
jardín de Flandes” são fundamentais para compreender o tipo de fantástico produzido por
Carlos Fuentes ao longo das décadas, pois, em ambos os textos, o autor aborda temas que
podem ser observados em publicações posteriores, como a irrupção do fantástico que funciona
como desestabilizador de um pensamento racionalista.
Em “Chac Mool”, conto de abertura de Los días enmascarados, o enredo gira em torno
de Filiberto, narrador-personagem que vê sua vida se transformar após comprar uma estátua
da divindade pré-hispânica Chac Mool. Através de um diário, lido por um amigo, Filiberto
relata que, ao colocar a estátua no sótão, pouco a pouco, por causa de uma infiltração, o objeto
vai modificando sua forma e acaba ganhando vida, transformando-se na própria divindade:
Allí estaba Chac Mool, erguido, sonriente, ocre, con su barriga encarnada.
Me paralizaban los dos ojillos, casi bizcos, muy pegados a la nariz triangular.
Los dientes inferiores, mordiendo el labio superior, inmóviles; sólo el brillo
del casquetón cuadrado sobre la cabeza anormalmente voluminosa, delataba
vida. Chac avanzó hacia la cama; entonces empezó a llover (FUENTES,
1996, p. 20-21).
Uma vez reencarnado, Chac Mool revela-se uma divindade vingativa, vaidosa,
agressiva e degradada. Submete Filiberto a todos os seus desejos e vontades, transformando-o
em seu escravo, que, ao tentar fugir, acaba morrendo. Esse conflito ocorre justamente porque
essas duas personagens buscam espaço no mundo contemporâneo. Podemos pensar que
Filiberto, de um lado, representa o homem do século XX e Chac Mool, por sua vez, está
relacionado ao universo indígena. Ambas as personagens exemplificam o embate cultural
existente no México, onde coexistem várias realidades culturais e religiosas divergentes,
estabelecidas após a chegada de Hernán Cortês ao território em 1519.
Dessa forma, Chac Mool desencadeia um novo modus vivendi, pois, ao subjugar
Filiberto, a divindade provoca uma inversão de hierarquias, inverte todo o status quo vigente,
dando origem ao processo de carnavalização26. A divindade toma para si a cama, o quarto, a
casa e a própria vida de Filiberto, reificando-o, ou seja, colocando-o exatamente onde
Filiberto o havia colocado, no sótão, como objeto de coleção: “Dígale a los hombre que lleven
el cadáver al sótano” (FUENTES, 1996, p. 27). Nesse sentido, “Chac Mool” funciona como
uma metáfora da própria história do México, que assumiu uma postura europeia e relegou o
26
Um estudo mais detalhado sobre o tema nessa narrativa encontra-se em ZARATIN, D. A. P. “A Carnavalização
e o Grotesco em ‘Chac Mool’ (1954), de Carlos Fuentes”. In: Cadernos de Pós-Graduação em Letras, volume
12, nº 1, 2012. Disponível em: http://www.mackenzie.br/fileadmin/Graduacao/CCL/Pos/Cadernos_texto_7.pdf.
Acesso em: 02 de agosto de 2012.
39
universo indígena ao esquecimento (ao sótão, como o fez Filiberto) após a colonização
espanhola. Entretanto, Fuentes acrescenta à sua história elementos distintos do que conta a
História oficial, já que o autor opta por retratar o outro lado, o indígena, como uma espécie de
inquietude frente ao discurso histórico do vencedor, como uma rebelião dos “silenciados” no
plano ficcional.
Na perspectiva do fantástico27, o insólito está ancorado na transformação de uma estátua
em “humano”, de algo inanimado em animado, tema bastante utilizado em narrativas do
gênero, como em “A Vênus de Ille”, de Prosper Mérimée28. Contribuem para a intensificação
do fantástico a opção pelo foco narrativo em primeira pessoa em forma de diário, imprimindo
maior autoridade ao narrador e verossimilhança ao relato, a descrição de uma realidade
cotidiana, reconhecível para personagem e leitor implícito, colocada em xeque por outra
realidade que se apresenta, a ambientação da casa de Filiberto.
Em recente estudo sobre o fantástico em “Chac Mool”, Rafael Olea Franco afirma:
Al basarse en varias infracciones a la lógica de la disyunción (una estatua
que encarnan un hombre que al mismo tiempo dios, etcétera), el cuento se
funda más bien en una lógica de la conjunción que sirve para desestabilizar
nuestra creencia en los postulados de la lógica causal y racional que regulan
la vida de los personajes y, en última instancia, la nuestra (2004, p. 154-155).
Pela união dos contraditórios, passado-presente, vida-morte, divino-humano, mortalimortal, a narrativa deixa transparecer que o homem não é mais um meio pelo qual se pode
atingir um objetivo. Em “Chac Mool”, verifica-se que o objetivo a ser atingido é o próprio
homem e suas crenças sobre a História e a realidade. Desestruturar e inquietar o leitor, é o que
parece propor o autor mexicano ao escrever essa narrativa, que, aliás, foi escrita a partir de um
dado histórico, algo recorrente em textos do mexicano29.
27
Sobre o fantástico em “Chac Mool” ver: TREVISAN, A. L. “El cuento ‘Chac Mool’ de Carlos Fuentes:
fronteras de lo fantástico y del realismo maravilloso”. In: Actas del Coloquio Internacional El orden de lo
fantástico: territorios sin fronteras. Lima: CELACP, 2011 (p. 28-34). 1 CD-ROM.
28
29
Conto de 1837.
Segundo o autor, em 1952, houve uma excursão pela Europa de objetos de arte indígena mexicana, entre eles o
Chac Mool. Naquele ano, ocorreram grandes precipitações pluviais, inclusive em lugares que há muito não
chovia. Mediante tal “milagre”, “se hizo famoso el hecho y, por ejemplo campesinos de ciertos valles de España
donde nunca había llovido mandaban unas cuantas pesetas por correo al Palais de Chaillot, que las ponían en el
estómago de Chac Mool, y llovía en ese valle después de cincuenta años. Cruzó el Canal de la Mancha en medio
tempestades que nunca se han visto... Este fue el origen del cuento”. Apud HARSS, Luis (Colab. Barbara
Dohmann). Los Nuestros. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1966, p. 349.
40
Considerado por muitos críticos e pelo próprio autor como o melhor texto do volume,
“Chac Mool” revela “magistralmente” o cenário que se tornou o México após a colonização
espanhola, demonstrando que o universo indígena transformou-se em uma “ilusión, una
máscara; al mismo tiempo es rostro real (...), es una contradicción perpetua” (PAZ, 2004, p.
291). Ele permanece vivo na modernidade, e, como exposto anteriormente, permanece
desejoso de “vingança” contra Filiberto, representante dos opressores ou colonizadores.
Em “Tlactocatzine, del jardín de Flandes”, segundo texto escolhido, o enredo está
centrado em um narrador-personagem que nos relata, também por meio de um diário, a
vivência de acontecimentos inquietantes após mudar-se para uma casa no centro da Cidade do
México. Pouco a pouco, ele começa a sentir que não estava sozinho naquela casa antiga,
pressente que há mais alguém na casa, além dele e dos empregados, que mantinham a casa
limpa, mesmo desabitada. Certo dia, ele encontra a responsável por tal sentimento: uma
misteriosa anciã, que buscava comunicar-se com ele por meio de cartas e que entrava e saia da
casa de maneira misteriosa.
Com o passar dos dias, sua presença é mais constante naquele espaço e, após uma série
de acontecimentos inexplicáveis, ela consegue efetivamente estabelecer contato com o
narrador-personagem, revelando-lhe a identidade de ambos. Segundo a anciã, ela seria Carlota
e ele, Maximiliano de Habsburgo, seu esposo e imperador do Segundo Império Mexicano30:
Pero desde ahora, no más cartas, ya estamos juntos para siempre, los dos en
este castillo... Nunca saldremos; nunca dejaremos entrar a nadie... Oh, Max,
contesta, las siemprevivas, las que te llevo en las tardes a cripta de los
capuchinos (...) (FUENTES, 1996, p. 45).
Pensando nessa narrativa do ponto de vista do fantástico31, percebe-se vários aspectos
que remetem a esse tipo de texto: a caracterização das personagens, dispostas de modo a
formar dois universos: o real e o irreal, o narrador e Carlota respectivamente; a incerteza do
narrador-personagem e do leitor no que diz respeito à origem dessa mulher misteriosa, que
entra e sai do casarão não se sabe como: “Ahora caminaba, ¿hacia...?”, “¿pero cómo se atrevía
30
O Segundo Império Mexicano consiste no período em que Maximiliano de Habsburgo foi imperador do
México, de 1863 a 1867. Seu governo foi apoiado pelo exército francês, pela Igreja Católica e pelo Partido
Conservador. Em oposição a Maximiliano estava Benito Juárez, líder político do Partido Liberal. Em 1867,
Maximiliano foi preso, condenado à morte e fuzilado no mesmo ano.
31
Um estudo sobre o fantástico nessa narrativa pode ser encontrado em um texto de nossa autoria: ZARATIN, D.
A. P. “Lo Fantástico en Tlactocatzine, del jardín de Flandes (1954) de Carlos Fuentes”. In: Actas del Coloquio
Internacional El orden de lo fantástico: territorios sin fronteras. Lima: CELACP, 2011 (p. 132-139). 1 CDROM.
41
a entrar, o por dónde entraba? [...]” (FUENTES, 1996, p. 41); a negação que o narrador faz,
mas que adquire sentido oposto: “No, no diré que cruzó la enredadera y el muro, que se
evaporó, que penetró en la tierra o ascendió al cielo” (FUENTES, 1980, p. 41); a existência de
climas tão distintos dentro e fora da casa: “¡El jardín no estaba en México!... Penetré al salón
y pegué la nariz en la ventana: en la Avenida del Puente de Alvarado, rugían las sinfonolas,
los tranvías y el sol, sol monótono... Regresé a la biblioteca: la llovizna del jardín persistía...”
(FUENTES, 1996, p. 39); além da opção pela narração em primeira pessoa em forma de
diário, como em “Chac Mool”, conferindo maior verossimilhança ao relato e imprimindo
maior legitimidade ao narrador. Estes são todos elementos que reunidos intensificam o efeito
do fantástico na narrativa.
Outro aspecto do conto que devemos enfatizar é a presença dessa figura feminina
fundamental, Carlota, que traz consigo o descortinar de outra realidade, até então
desconhecida para o narrador-personagem. Sobre isso, o autor mexicano esclarece em carta a
Gloria Durán:
Cuando tenía siete años y, después de visitar el Castillo de Chapultepec y ver
el cuadro de la joven Carlota de Bélgica, encontré en el archivo Casasola la
fotografía de esa misma mujer, ahora vieja, muerta, recostada dentro de un
féretro acojinado, tocada con una cofia de niña: la Carlota que murió loca, en
un castillo, el mismo año en que yo nací (DURÁN, 1976, apêndice).
É uma figura que marcou o imaginário do autor e por isso ele a retrata em suas
narrativas, sempre buscando dar a ela outras oportunidades, finais distintos da realidade.
Assim, em toda a obra do autor, é possível encontrar várias Carlotas, todas são personagens
relacionadas, de alguma forma, ao sobrenatural. Por exemplo, em “Tlactocatzine”, temos a
primeira Carlota ficcionalizada; em Aura, temos Aura-Consuelo; em La región más
transparente, Teodula Moctezuma; em Cumpleaños, a personagem Nuncia, etc. São todas
personagens pertencentes ao universo no qual não impera a razão e, sim, os sentidos.
Por meio desta revelação ao narrador, pode-se verificar uma releitura de um dado
histórico: Carlos Fuentes toma por base a biografia dos protagonistas desse período histórico
mexicano, Maximiliano e Carlota, para criar a sua narrativa, na qual nos é apresentado um
final distinto do que nos conta o discurso histórico oficial. Na narrativa do autor mexicano,
Carlota tem a possibilidade de reencontrar seu esposo, ao contrário do que ocorreu na
realidade, já que Maximiliano foi fuzilado e Carlota não teve a oportunidade de vê-lo morto,
pois estava na Europa na ocasião. Por isso, ela nunca acreditou na morte de seu esposo, fato
42
que acabou deixando-a louca.
Carlos Fuentes, em “Tlactocatzine”, propõe o resgate dessa história, dessa memória que
estava esquecida, traçando um movimento de retorno às “origens”, uma vez que o narradorpersonagem, ao descobrir sua real identidade, deve voltar para os braços de sua esposa. Mais
uma vez, é o passado que se recusa a ser esquecido, enterrado; ele se faz presente para que
haja o reencontro do casal separado tão tragicamente.
Pelo exposto, em “Chac Mool” e em “Tlactocatzine”, observamos traços temáticos
comuns entre si, entre os quais estão: o protagonismo da categoria narrativa Tempo, encarado
como algo circular, em que passado, presente e futuro estão intimamente interligados,
explicando-se e completando-se; a opção pelo foco narrativo em primeira pessoa (diário); o
protagonismo de personagens (Chac Mool e Carlota) que simbolizam um passado latente,
vivo no presente, e que desconcertam narradores, personagens e leitor ao se revelarem
integralmente; os elementos ambíguos da ambientação espacial dos casarões onde se passam
as histórias; reflexões sobre a identidade mexicana por meio da própria identidade das
personagens e, para finalizar, a desarticulação do discurso oficial nessas narrativas. Carlos
Fuentes, baseado em dados históricos, reescreve a “vida” de personagens que estavam
silenciadas por diversos motivos: seja por causa da colonização (Chac Mool), seja por causa
de consequências histórico-políticas (Carlota), etc.
Carlos Fuentes consegue, nesse breve e inquietante volume de contos, unir temas
aparentemente antagônicos, como o passado e o presente, o local e o universal, o real e o
irreal, dispondo-os de maneira “conjuntiva”, para usar o termo de Olea Franco, pois cada um
desses elementos se completam. Acreditamos que, a partir de Los días enmascarados, Fuentes
estrutura suas publicações futuras, inseridas dentro do que ele chama “El mal del tiempo”,
ciclo que contém as narrativas fantásticas do autor. Fazem parte desse ciclo fantástico Aura
(1962), Cumpleaños (1969), Una familia lejana (1980) e Constancia y otras novelas para
vírgenes (1990), esta última corpus desta pesquisa.
No intuito de investigar o tipo de fantástico produzido por Carlos Fuentes ao longo dos
anos por meio de temas que se reiteram em suas obras e de traçar um caminho ascendente de
análise, propomo-nos a discutir o ciclo de narrativas “El mal del tiempo”. Contemplaremos
brevemente cada um dos textos relacionados a esse ciclo e incluiremos ainda outra publicação
do autor, Inquieta Compañía (2004), que, embora não esteja inscrita por Fuentes nesse
43
conjunto, caracteriza-se por ser uma das últimas publicações fantásticas do autor, o que pode,
portanto, nos apontar como se constitui o fantástico nas obras mais recentes de Carlos
Fuentes.
2.3 “EL MAL DEL TIEMPO”: O CICLO FANTÁSTICO DE CARLOS FUENTES
Em seu texto As obras de ‘El mal del tiempo’ de Carlos Fuentes
32
, Camila Chaves
Cardoso busca mapear, a partir de entrevistas e de estudos sobre a obra do autor, parte das
influências literárias que Fuentes deixa transparecer em suas narrativas. Segundo ela, o
escritor mexicano foi diretamente influenciado por dois autores em sua maneira de conceber
narrativas: Honoré de Balzac e Miguel de Cervantes33.
No que se refere à escrita do autor francês, Carlos Fuentes opta pelo Balzac de caráter
realista, autor da “Comédia Humana”, volume de textos que retrata a sociedade “dos
costumes, das ambições da sociedade burguesa, dos pormenores da vida cotidiana”
(CARDOSO, 2009, p. 422). O escritor mexicano denomina esse tipo de tradição narrativa
como “Waterloo” ou “Napoleônica”, cujos textos privilegiam a ação das personagens frente a
seu contexto histórico. É com esse pensamento que Fuentes concebe suas narrativas realistas
como La región más transparente34 (1958) e La muerte de Artemio Cruz (1962), por exemplo.
Em relação a Miguel de Cervantes, Fuentes declara que Don Quijote, obra ícone da
literatura espanhola, é uma de suas grandes influências, pois nessa narrativa o autor liberta
toda a sua imaginação, conferindo especial protagonismo a ela dentro da obra.
Assumidamente herdeiro dessa tradição “Quixotesca”, Carlos Fuentes considera o texto de
32
CARDOSO, Camila Chaves. As obras de ‘El mal del tiempo’ de Carlos Fuentes. Texto publicado na Revista
Estudos Linguísticos (GEL), São Paulo, 38 (3): 421-432, set.-dez. 2009. Acesso em: 17 de outubro de 2011.
Disponível em: http://www.gel.org.br/estudoslinguisticos/v38-3_sumario.php.
33
Além de Balzac e Cervantes, em entrevista, Carlos Fuentes cita nomes como Bakhtin, Vico e William C.
Faulkner como sendo os nomes que, de alguma forma, exerceram forte influencia em sua maneira de escrever.
Entrevista concedida a Julio Ortega. In: HERNÀNDEZ, Jorge (comp.). Carlos Fuentes: territorios del tiempo
(antología de entrevistas). México: FCE, 1999.
34
Nesse romance, há referência ao universo mítico-religioso indígena do México por meio das personagens
Teodula Monteczuma e Ixca Cienfuegos, contudo não é o preponderante, já que a narrativa caracteriza-se por
reunir elementos marcadamente realistas.
44
Cervantes como sendo a “fuente de la polifonía de la ficción”35, o responsável por inaugurar
uma tradição na literária mundial ao apresentar-se como uma:
Novela abierta, ambigua, que frente al mundo unívoco y cerrado de la
creación literaria anterior ofrece varias posibilidades y opciones de enfocar
la realidad al tiempo que exige la colaboración o complicidad del lector para
completar su sentido (ORDIZ, 2011, no prelo).
Baseado nessa obra cervantina, renunciando ao racionalismo predominante na sociedade
burguesa e buscando realizar um novo tipo de literatura, Carlos Fuentes escreve seus textos
que pertencem à tradição “Quixotesca” ou de “La Mancha”, como ele próprio denomina.
Fazem parte dessa tradição as obras que compõem “El mal del tiempo”, ciclo que se
caracteriza por agregar narrativas “abiertas” e “ambiguas”, inclinadas à imaginação, ao
onirismo e ao irreal. Sobre esse tipo de escrita, Fuentes argumenta:
Lo que ha muerto no es la novela, sino precisamente la forma burguesa de la
novela y su término de referencia, el realismo, que supone un estilo
descriptivo y sicológico de observar a individuos en relaciones personales y
sociales (1976, p. 17).
Nessas narrativas, o autor mexicano interpola realidade e imaginação, fazendo com que
o leitor se inquiete e reflita sobre o texto lido e participe do desfecho da trama, que, na
maioria das vezes, permanece sem solução. São textos que estão diretamente atrelados a
procedimentos formais que confessam a ficção enquanto ficção, uma espécie de metaficção. É
o tipo de literatura que, ao eleger a imaginação como filtro, acaba se convertendo em crítica à
sociedade ao abrir uma nova possibilidade de olhar para ela.
Nas narrativas que compõem “El mal del tiempo”, o escritor utiliza-se de um exímio
trabalho entre linguagem e imaginação para descortinar realidades e histórias que fogem a
explicações racionais. Ao desvendar essas novas realidades, o autor almeja que seus leitores
reflitam sobre o conceito de História no qual está ancorada uma sociedade e, ao contrário do
que se possa pensar, “el hecho de que muchas de las obras de Fuentes no reflejen el mundo
exterior tal como lo conocemos no indica [...] que estén desligadas de la realidad o de
problemas sociales” (DURÁN, 1976, p. 51). Fuentes deixa transparecer em seus relatos que
os fatos “passados” podem ser renovados por meio do ato de criação literária, uma vez que:
“El pasado es siempre una novedad. Creer que el pasado está muerto es condenarse a un
futuro muerto también. El pasado está vivo, el pasado es como un libro que tomamos por
35
Trecho retirado de entrevista concedida a Julio Ortega. In: HERNÀNDEZ, Jorge (comp.). Carlos Fuentes:
territorios del tiempo (antología de entrevistas). México: FCE, 1999, p. 216.
45
primera vez”36. O passado “oficial”, encarado como metonímia da História, pode ser
reatualizado por meio da literatura e, a cada leitura, se lança novo olhar sobre ele.
2.4 AURA
La cabeza te da vueltas inundada por el ritmo de ese vals lejano
que suple la vista, el tacto, el olor de plantas húmedas y
perfumadas: caes agotado sobre la cama, te toca los pómulos,
los ojos, la nariz, como si temieras que una mano invisible te
hubiese arrancado la máscara que has llevado
durante veintisiete años.
(Fragmento de Aura, FUENTES, 1994, p. 57).
Primeira obra que compõe o ciclo “El mal del tiempo”, Aura foi publicada no mesmo
ano de La muerte de Artemio Cruz, 1962. Estruturalmente considerada como uma novela
curta, em Aura, Fuentes utiliza como fio condutor a literatura fantástica para tratar de
questões relacionadas ao México e suas diversas realidades superpostas.
Se comparado a Los días enmascarados, Aura foi recebida pela crítica com um olhar
bem mais aberto a inovações literárias. Construído a partir de uma voz na 2ª pessoa do
singular (tu), seu enredo causa estranhamento no leitor desde suas primeiras linhas. Como
protagonista temos Felipe Monteiro, um jovem historiador mexicano de 27 anos, que, após ler
um misterioso e tentador anúncio de emprego em um jornal, decide ir trabalhar na casa de
Consuelo, uma anciã. O trabalho consistiria em reescrever e completar as memórias de seu
esposo falecido, o general Llorente: “Se trata de papeles de mi marido, el general Llorente.
Deben ser ordenados antes de que muera. Deben ser publicados. Lo he decidido hace poco”
(FUENTES, 1994, p. 14). Como requisito para o emprego, Felipe deveria residir na residência
de Consuelo, o que ele considera aceita, pois leva em conta o alto salário. No mesmo dia,
conhece e apaixona-se por Aura, a jovem sobrinha enigmática de Consuelo. Ao aproximar-se
dela, percebe que algo não muito comum ocorria, pois Aura, como uma espécie de robô,
repetia mecanicamente todos os movimentos realizados por sua tia:
Miras rápidamente de la tía a la sobrina y de la sobrina a la tía, pero la
señora Consuelo, en ese instante, detiene todo movimiento y, al mismo
36
Entrevista concedida a Ricardo C. Gally. In: HERNÁNDEZ, Jorge (comp.). Carlos Fuentes: territorios del
tiempo (antología de entrevistas). México: FCE, 1999, p. 254.
46
tiempo, Aura deja el cuchillo sobre el plato y permanece inmóvil y tú
recuerdas que, una fracción de segundos antes, la señora Consuelo hizo lo
mismo (FUENTES, 1994, p. 32).
Ao perceber a subordinação de sobrinha perante a tia, Felipe se inquieta, cogita a
possibilidade de renunciar ao emprego e fugir com Aura, porém ele permanece na casa, pois
está cada vez mais enredado por ambas, envolvido em uma espécie de quebra-cabeça
articulado por Consuelo. Imerso naquele ambiente de erotismo, mistério e delírio, Felipe
acaba se confrontando com a descoberta do sobrenatural: por meio de rituais de magia,
Consuelo havia criado Aura, sua metade jovem. Felipe, por sua vez, era o próprio general
Llorente, o esposo falecido de Consuelo:
Pegas esas fotografías a tus ojos, las levantas hacia el tragaluz: tapas con una
mano la barba blanca del general Llorente, lo imaginas con el pelo negro y
siempre te encuentras, borrado, perdido, olvidado, pero tú, tú, tú (FUENTES,
1994, p. 57).
O estudioso da obra de Carlos Fuentes Javier Ordiz afirma que a presença do fantástico
nessa narrativa transparece na medida em que:
El relato se va sembrando de indicios que sugieren la existencia de un
elemento de carácter sobrenatural que el protagonista en primera instancia se
niega a admitir a intenta explicar por medio de la lógica. Finalmente, el
visitante se rinde a la evidencia de lo fantástico en suerte de ‘iniciación’ que
acaba de definitivamente con la falacia realista y sitúa la acción hasta el final
en los dominios de esa ‘segunda realidad’ (No prelo).
Felipe vai descortinado lentamente outra realidade, de maneira a construir no texto um
clímax que revele sua outra identidade. Essa “segunda realidad” manifesta-se por meio de
diversos aspectos que sugerem o fantástico: a presença de duplos37, tanto tematicamente
(Consuelo-Aura/Llorente-Felipe) quanto estruturalmente, expresso pelo uso do tu,
materialização linguística do conflito insolúvel do fantástico; a atmosfera da casa, ambiente
sombrio, cheio de plantas com efeitos sabidamente alucinógenos, de animais “invisíveis”, que
contribuem para a intensificação do mistério; a presença de um suposto mordomo que “busca”
os pertences de Felipe na casa do jovem sem este, contudo, ter dito o seu endereço; o
protagonismo das personagens femininas, que levam o jovem historiador a enveredar pelo
mistério.
37
Um estudo sobre o duplo em Aura pode ser encontrado em: CARDOSO, Camila Chaves. As imagens duplas e
a narração em segunda pessoa em Aura, obra fantástica de Carlos Fuentes. Dissertação. (Mestrado em Literatura
Espanhola e Hispano-americana) - Universidade de Campinas, São Paulo, 2007.
47
Verificamos que Aura retoma em grande medida, temas tratados por Carlos Fuentes em
“Tlactocatzine, del jardín de Flandes”, já que existem semelhanças entre esses dois textos,
como, por exemplo, a existência de casarões antigos e jardins com plantas “mágicas”
(alucinógenas), o protagonismo das personagens femininas, bem como a menção a
personagens que, talvez, não existam. Outro traço comum entre as duas narrativas é a
sinestesia, aspecto que estimula o aguçamento dos sentidos das personagens:
Creo percibir con agudeza mayor determinados perfumes propios de mi
nueva habitación, ciertas siluetas de memoria que, conocidas otras veces en
pequeños relámpagos, hoy dilatan y corren con la viveza y lentitud de un río
(“Tlactocatzine”, FUENTES, 1996, p. 37).
Podrías tomar el quinqué y descender [escaleras] con él. Renuncias porque
ya sabes que esta casa siempre se encuentra a oscuras. Te obligarás a
conocerla y reconocerla por el tacto (Aura, FUENTES, 1994, p. 19).
Outro aspecto similar entre os dois textos diz respeito à menção a personagens ligadas
ao Segundo Império Mexicano que redescobrem e retornam às origens, proporcionando a
junção de casais (Carlota/Maximiliano – Consuelo/Llorente) que estavam definitivamente
separados. Esta característica aparece também em Constancia, “La gata de mi madre” e “La
bella durmiente”, textos posteriores do mexicano.
Há também em ambas narrativas a presença de duplos e a descoberta de identidades
superpostas, reveladas somente por meio da intervenção das personagens femininas,
“hechiceras”, guardiãs e responsáveis por esse resgate. Atrelado a isso, está a problematização
de um discurso que privilegia a ideia de identidade unívoca. Em suas narrativas fantásticas, o
autor expõe o Outro lado da identidade dessas personagens e demonstra que a realidade tal
qual conhecemos não corresponde ao todo, ela é somente uma parte do imenso e misterioso
universo que nos rodeia.
2.5 CUMPLEAÑOS
Cada vez, en un cuerpo distinto pero con una inteligencia única.
Lo interrumpí: – ¿Y ahora? ¿Quién eres ahora?
Él dijo una palabra incomprensible; Nuncia tradujo:
Ahora soy tú. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
(Fragmento de Cumpleaños, FUENTES, 2008, p. 115).
48
Após a publicação de Aura em 1962, Carlos Fuentes volta a produzir uma literatura
alinhada com o sobrenatural em Cumpleaños, de 1969. Nessa narrativa, a segunda de “El mal
del tiempo”, o autor mexicano dá vazão à imaginação, consolida sua versatilidade em trilhar
horizontes que vislumbrem o sobrenatural e expande fronteiras geográficas, já que, nesse
texto, Carlos Fuentes escolhe como ambiente para a sua história outros países do Ocidente,
como a Inglaterra, por exemplo.
Narrada em 1ª e 3ª pessoas, Cumpleaños caracteriza-se por apresentar um enredo
complexo, repleto de lapsos narrativos e constantes mudanças espaços-temporais, o que
confere um tom labiríntico à narrativa. Inicialmente, temos a cena de um velho, sentado no
centro de um quarto desabitado e sombrio e, junto a ele, uma mulher grávida lê cartas de um
jogo de baralho com desenhos de figuras de cinco animais distintos: tigre, coruja, cabra, urso
e dragão. Segue-se um lapso narrativo e, em seguida, surgem George e Emily, um casal que
conversa sobre a festa de aniversário de dez anos de Georgie, seu filho. O pai argumenta que,
por motivos profissionais, não poderá comparecer à festa, o que deixa a mãe indignada. Em
seguida, o casal presenteia o filho e, após essa cena cotidiana, a narrativa muda de tom
completamente e George surge em outro lugar, numa espécie de outra realidade, até então
desconhecida para ele. Confuso e enfermiço, ele não consegue distinguir se tudo aquilo era
verdadeiro ou apenas um sonho:
Al despertar supe que no había pasado un día. Quiero decir que la memoria
de mi despertar anterior era demasiado inmediata, demasiado contigua. O
quizás un reloj interno... me advirtió que el tiempo entre el amanecer que
recordaba y la noche que vivía era demasiado breve; casi imposible. Sigo
acostado, temblando, abrazado a mí mismo, a mis piernas, con las rodillas
cerca del mentón. Pero puedo reflexionar: probablemente la noche que me
rodea ha sido creada y yo mismo, al imaginarla, la aumento (FUENTES,
2008, p. 73).
Sem saber como fora parar naquele lugar, o protagonista pressente que algo grave e
irremediável aconteceu:
Mi memoria demasiado próxima, la creciente certeza de que desconozco los
parajes, la casa, la alcoba, el clima mismo; la presencia del niño vestido de
marinero; la sospecha de que no he llegado aquí por mi voluntad y la
incertidumbre, por el contrario, sobre las maneras como pude ser trasladado
hasta aquí; todo me hace dueño cierto, absoluto, de mi propia sorpresa
(FUENTES, 2008, p. 74).
Dentro de casarão escuro, George se depara com um menino vestido de marinheiro que
lhe diz de maneira cordial: “Qué bueno que has regresado” (FUENTES, 2008, p. 74). Diante
49
disso, o leitor interroga-se sobre como seria possível que a criança fizesse tal declaração sem
conhecer o protagonista. Outro dado é que, com essa afirmação do menino, o leitor mais
atento e acostumado a textos de Carlos Fuentes percebe o tema do regresso, algo sempre
presente nas narrativas do mexicano. Mais adiante, a criança revela o provável motivo da
estadia do protagonista naquele lugar: “Un grave accidente, un accidente grave” (FUENTES,
2008, p. 74). Interessante a construção desta fala do menino, que, por meio da
inversão/topicalização de substantivo e adjetivo, sugere a mudança, o retorno da personagem
a aquele lugar.
Em seguida, surge Nuncia, uma personagem misteriosa que mantém uma relação
ambígua com a criança e que parece não enxergar Georgie naquele ambiente. Ela revela ter
sido a Virgem Maria em outras encarnações, deixando o protagonista – e o leitor – mais
intrigado com tudo aquilo que estava vivendo. Com tudo isso, George tem a sensação de estar
inserido em um labirinto, lugar de onde ele busca sair, porém sem sucesso, pois acaba
encontrando mais incertezas sobre os motivos que o levaram a estar naquele lugar. Acreditar
na afirmação do menino sobre o grave acidente seria admitir que ele talvez estivesse morto,
levando em consideração o fato de Nuncia não enxergá-lo.
Em outra brusca mudança tempo-espacial, George percebe-se esposo de Nuncia e vive
com ela cenas do cotidiano de um casal:
Para ser el hombre de Nuncia, hube de afeminarme: de acercarme a la mujer,
en sus gestos, en su olor, en sus poses más íntimas […]. Fue una larga
identificación; quise darle placer, placer de mujer, servirla, agradarla, ser ella
misma, uno con ella: ser Nuncia como ella era yo (FUENTES, 2008, p. 95).
Neste monólogo de Georgie, verifica-se mais que a identificação dele com Nuncia;
percebe-se como uma fusão entre ambos. Na contramão do sentido de fusão, está outra cena
na qual os amantes se dão conta de que alguém está chegando onde eles estavam, Nuncia
levanta-se, veste-se e, ao ver essa pessoa entrar, ela “corrió hacia el hombre, se arrojó en sus
brazos, gritando: ¡George!¡Has regresado!” (FUENTES, 2008, p. 97). Ao fixar seu olhar nessa
figura, George constata que se tratava de seu duplo, que vai envelhecendo gradualmente
perante o protagonista, revelando-se, por fim, ser Siger Brabante, um monge ancião do século
XIII que defendia as seguintes teses heréticas: “El mundo es eterno, luego no hubo creación;
la verdad es doble, puede ser múltiple; el alma no es inmortal, pero el intelecto común de la
especie humana es único” (FUENTES, 2008, p. 113).
50
Com o assassinato de Brabante pelo criado, George consegue fugir daquele lugar e
ressurge em Londres, lugar que ele reconhece e com o qual se sente familiarizado. Após
caminhar por vários pontos da cidade, ele acaba indo parar no Regent’s Park, zoológico onde
ele encontra uma mulher grávida que jogava pedaços de pão na jaula de ursos. Ao terminar,
ela senta-se ao lado do protagonista e George sente que “su mirada me heló la sangre” porque
era Nuncia quem estava a seu lado e manejava o mesmo jogo de cartas do começo da
narrativa. Esse desfecho do texto sugere a ciclicidade dos eventos vividos por Georgie, a ideia
de reencontrar as mesmas personagens porém em locais distintos. Nesse sentido, a chave
interpretativa da narrativa parece estar mesmo em sua epígrafe, retirada de um texto de
Octavio Paz: “Hambre de encarnación padece el tiempo”. O Tempo é uma categoria
fundamental na(s) narrativa(s) de Carlos Fuentes e é a partir dele que o leitor deve tentar
montar o quebra-cabeça, desde o ponto de vista de que a sua eterna circularidade conduz as
personagens a determinados espaços e contribui para revelar identidades esquecidas.
Embora seja de difícil definição, podemos encontrar em Cumpleaños aspectos temáticos
e estruturais que indicam a sua relação com demais narrativas fantásticas de Carlos Fuentes: a
superposição e não linearidade de diversos tempos e espaços; a atmosfera sombria e
misteriosa do casarão onde o protagonista passa a maior parte da narrativa; a caracterização
ambígua das personagens, que apresentam duplos de outras épocas; a figura feminina que se
relaciona com o insólito e conduz outra personagem, geralmente do sexo masculino, ao
“conhecimento”; a ambivalência no discurso, conferindo subjetividade ao texto, característica
ratificada pela utilização constante de lapsos narrativos e de modalizadores discursivos,
conforme terminologia de Todorov, tais como “quizás”, “casi”, “probablemente”. Assim, em
Cumpleaños, o leitor é obrigado a mergulhar no “delírio” caótico e misterioso do
protagonista, descortinando com ele, passo-a-passo, os diversos tempos, espaços e identidades
das personagens.
2.6 UNA FAMILIA LEJANA
Por su otra vida, Fuentes, por su vida adyacente.
Piense en lo que pudo ser [...].
Piense que lo mismo sucede con toda novela.
Hay otra narración contigua, paralela,
invisible, de cuanto creemos
debido a una escritura singular.
51
(Fragmento de Una familia lejana, FUENTES, 1980, p. 205).
A terceira narrativa que faz parte do ciclo “El mal del tiempo” foi publicada em 1980
com o título Una familia lejana. Nessa história, existem inicialmente duas personagens:
Branly e seu amigo Fuentes, ouvinte daquele e narrador desse relato posteriormente. Branly
inicia sua história contando ao amigo uma sequência de eventos estranhos, vividos por ele
após conhecer o arqueólogo mexicano Hugo Heredia e seu filho Víctor nas ruínas de
Xochicalco e convidá-los para se hospedarem em sua casa em Paris. O narrador-personagem
explica que sente um primeiro estranhamento quando os conhece e que esse sentimento se
intensifica com a chegada do menino à sua casa em Paris, sozinho, porque pai e filho jamais
viajavam juntos após um acidente aéreo que vitimou a esposa e o outro filho do casal.
Passado esse primeiro momento, Branly relata que, persuadido pelo menino Víctor a
participar de jogo que consistia em encontrar homônimos por meio de listas telefônicas, acaba
levando a criança até um casarão no norte de Paris, com o objetivo de encontrar um
homônimo do menino, Víctor Heredia, e seu filho André. Após sofrer um inexplicável
acidente automobilístico, Branly fica impossibilitado de andar, fazendo com que ele e o
menino Víctor sejam obrigados a permanecer nessa casa.
Acamado, ele passa todo o tempo no quarto e é atendido, nos primeiros dias, por Víctor,
o dono da casa. No entanto, isso não dura muito porque logo ele se dá conta de que todos
parecem ignorá-lo, exceto algo ou alguém, uma presença que ele sente, porém ainda não vê:
Jugaban a lo lejos [o menino Víctor e André], entre los abedules. No le
escuchaban. No le hacían caso. En cambio, algo incomprensible trataba de
hacerse sentir por él, de acercarse a él. Cayó de espaldas sobre el lecho,
fatigado, vencido por el sentimiento oscuro y diáfano a la vez. Él quería
comunicarse con los niños y ellos no le escuchaban. Al mismo tiempo,
alguien quería comunicarse con él y él no lo escuchaba porque sentía en esa
convocatoria algo maldito (FUENTES, 1991, p. 67).
Portanto, praticamente sem poder se locomover e imerso em seu sonho-delírio real,
Branly começa a ver coisas inexplicáveis, como “fantasmas” de sua infância e uma relação
sexual entre os meninos Víctor e André, além de uma mulher em seu quarto, quem, ele
descobrirá posteriormente, ser a esposa falecida de Hugo Heredia:
La imagen de la agitación sin desorden era la mujer detenida junto a la
ventana [...] Su vestido de baile del Primer Imperio, blanco y vaporoso [...]
52
una figura neoclásica a punto de ser romántica, vista pero a punto de verse,
racional pero al borde de la locura, vigilante pero en la esquina del olvido
(FUENTES, 1991, p. 96).
Interessante perceber como, no fragmento acima, o narrador utiliza-se de oxímoros
(“agitación sin desorden/ vista pero a punto de verse/ racional pero al borde de la locura/
vigilante pero en la esquina del olvido”). Por meio desse recurso, o narrador consegue
comunicar a seu leitor a singularidade daquela personagem e daquela situação, além de
intensificar o efeito do fantástico na narrativa através de expressões que aproximam ideias
aparentemente contraditórias.
Após passar vários dias nesse lugar delirante, Branly consegue, finalmente, escapar.
Contudo, ele o faz sozinho, pois não encontrou mais o menino Víctor, que desaparece
juntamente com seu homônimo Víctor e o filho deste, André. Apreensivo, o protagonista volta
ao México com o intuito de encontrar Hugo Heredia e obter respostas sobre tudo o que
acabara de viver. Ao encontrar Heredia, Branly descobre então que o antropólogo mexicano e
o Víctor francês já se conheciam muito antes de tudo isso ocorrer e que tudo o que Branly
havia presenciado fazia parte de um pacto entre ambos, que consistia em entregar o menino
Víctor ao Víctor francês para que este tentasse resgatar do passado a esposa e o outro filho de
Hugo, ambos mortos durante um acidente de avião, como mencionado anteriormente.
Como bem observa Ordiz, esse texto de Fuentes apresenta um diferencial, pois a
personagem que vive a experiência insólita consegue sair desse mundo para contar a alguém o
que presenciou:
A diferencia de lo que sucedía con Felipe Montero, el 'héroe' va a salir de ese
mundo y va a trasmitir lo que ha vivido al exterior, en este caso al novelista
Carlos Fuentes quien, a su vez, lo referirá en forma de novela a un público
más extenso y anónimo” (ORDIZ, 2005, p. 108).
Ao terminar de contar a sua experiência a Fuentes, Branly delega a ele a missão de
passar adiante a sua história, o que faz com que o amigo passe de ouvinte a narrador,
entrando, portanto, no jogo narrativo proposto por Branly.
Curioso e intrigado com tudo o que acabara de ouvir, a personagem Fuentes se despede
de Branly e, posteriormente, depara-se com Lucie, a mesma mulher a qual Branly havia
descrito. Perplexo, Fuentes percebe que ela já o conhecia: “Esto es el rostro de Lucie. La
mujer grita también cuando la descubro; primero su grito es de miedo; en seguida de dolor
53
[...] Mi Lucie me lo dices [...], estás envejeciendo rápidamente, Carlos; no eres de aquí, nunca
más serás de allá [...]” (FUENTES, 1991, p. 209-210). Mais adiante a revelação final a
Fuentes, ele descobre sua verdadeira identidade: “[...] la voz junto a mí me dice al oído, no
quiénes son ellos, sino quién soy soy. – Heredia. Tú eres Heredia”. (FUENTES, 1991, p. 213214).
Altamente ficcional, Una familia lejana apresenta um intrincado jogo narrativo que
consegue envolver seu ouvinte-leitor por meio de diversos artifícios estruturais, entre os quais
está o fato de haver uma rotatividade entre narradores e personagens, com a finalidade de
demonstrar a circularidade do relato e possibilitar que o leitor faça parte dele, como
demonstrado no seguinte esquema:
Branly:
Caracteriza-se como personagem e vivencia a experiência insólita

Assume o papel de narrador e conta a Fuentes o que presenciou
Fuentes:
Ouvinte: ouve a história de Branly

Torna-se personagem ao também vivenciar a experiência insólita

Assume o papel de narrador e conta a seu leitor o que Branly e ele viveram
Leitor:
Por meio dos escritos de Fuentes, torna-se leitor-ouvinte e tem acesso ao que ele e
Branly presenciaram

?
Por meio do esquema acima, verifica-se que tanto Branly quanto Fuentes cumprem a
missão de passar adiante a história, relegando ao seu leitor a tarefa de dar continuidade a esse
ciclo narrativo, como se ele também fizesse, assim como a personagem Fuentes, parte dessa
familia lejana, como sugerido nas seguintes palavras do autor mexicano sobre a narrativa em
questão: “la novela donde yo me hago las preguntas sobre qué es para mí escribir novelas y
llego a una conclusión, y es que la novela no termina nunca. La narración tiene que ser pasada
54
inmediatamente a otras manos, es su destino”38.
Do ponto de vista do fantástico, podemos encontrar diversos aspectos nessa narrativa
que remetem ao gênero e estabelecem diálogos com as demais narrativas fantásticas de Carlos
Fuentes analisadas anteriormente: o casarão lúgubre e antigo, onde Branly tem contato com
personagens misteriosas e vive toda a experiência insólita narrada; a sugestão da existência de
duplos explicitada principalmente pela presença personagens homônimas; o protagonismo da
personagem feminina também ganha destaque, uma vez que Lucie consegue transitar entre os
diversos universos e descortina outras possibilidades de compreensão da realidade para as
demais personagens; o desenlace aberto e inesperado da trama, que amplia o sentimento do
fantástico no leitor por meio da aparição da personagem ficcional Lucie na “realidade” de
Fuentes, o que desencadeia o efeito de invasão da ficção na realidade, havendo, assim, o
apagamento de fronteiras entre esses dois universos.
2.7 CONSTANCIA Y OTRAS NOVELAS PARA VÍRGENES
¿Cuánto tiempo estuviste, Constancia, llevándoles vida
– mi vida – a tus muertos? No importa.
Yo estoy vivo ahora.
Tú estás donde quieres estar.
Dales consuelo a tus muertos.
Sólo te tienen a ti.
(Fragmento de Constancia, FUENTES, 1991, p. 75).
Publicada em 1990, Constancia y otras novelas para vírgenes é a quarta obra que
compõe o ciclo “El mal del tiempo”. Com um total de cinco novelas curtas, Carlos Fuentes
faz a seguinte consideração sobre essa publicação: “En estas historias me propuse darle a la
ficción el valor de hacer visible lo invisible, predecir la ausencia y apostar a que, en la novela,
es más importante lo que se ignora que lo que se sabe”39; ou seja, o autor mexicano privilegia
38
Entrevista concedida a Julio Ortega. In: HERNÁNDEZ, Jorge (comp.). Carlos Fuentes: territorios del tiempo
(antología de entrevistas). México: FCE, 1999, p. 222.
39
Citação retirada do site pessoal do autor:
http://www.clubcultura.com/clubliteratura/clubescritores/carlosfuentes/4consta.htm. Acesso em: 15 de janeiro de
2011.
55
nessa publicação realidades ocultas, personagens que foram relegadas ao esquecimento, ao
segundo plano.
2.7.1 CONSTANCIA
Relato que abre o volume e foco deste estudo, Constancia traz um narrador em 1ª
pessoa, Whitby Hull, médico americano de 69 anos casado com Constancia, uma andaluza de
62 anos. Ele expõe a experiência sobrenatural que viveu, após vários anos ao lado de sua
esposa. Hull conta que ela, ao chegar aos Estados Unidos após o casamento, nunca travou
amizade com ninguém, fato que jamais o incomodou. Isso começa a mudar após Plotnikov,
ator russo exilado nos EUA, despedir-se do médico americano, afirmando ser aquele o dia de
sua própria morte: “¿Murió el señor Plotnikov, tal y como me lo anunció, y si así fue,
coincidió su muerte con el juego de luces en su casa y con la muerte pasajera de Constancia?”
(FUENTES, 1991, p. 29). Somado a isso, Constancia desaparece repentinamente no mesmo
dia. Intrigado, Hull percebe-se diante de um enigma, que buscará solucionar racionalmente.
No entanto, a cada resposta encontrada, ele descobre novas perguntas, como em uma espécie
de quebra-cabeça. Até que, movido pela curiosidade, o médico decide entrar na casa de
Plotnikov e, por meio de fotografias e outros objetos, ele acaba descobrindo que Constancia e
seu vizinho haviam sido casados, tiveram um filho inclusive e que todos parecem ter sido
mortos durante a ditadura de Francisco Franco na Espanha.
Analisando essa narrativa de acordo com as teorias do fantástico, verifica-se que
diversos elementos sugerem o sobrenatural: a caracterização polarizada das personagens
(razão-sentidos), a ambientação dos espaços, a construção discursiva ambígua, metáforas que
se literalizam, a presença de um narrador em primeira pessoa, etc. Há um destaque também,
como em outras narrativas do autor mexicano, para a personagem feminina, crucial na medida
em que é ela quem mostra a seu esposo, médico e amante de ficção policial, que a realidade
não pode ser abarcada completamente pela ciência, podendo ser bem mais surpreendente que
um final de relato policial.
2.7.2 “LA DESDICHADA”
Segundo texto do volume, o enredo de “La desdichada” é narrado em 1ª pessoa por duas
personagens: Toño e Bernardo, dois estudantes universitários mexicanos que sonham com a
56
carreira de escritor e dividem o mesmo apartamento na Cidade do México. A história inicia-se
quando Bernardo, ao passar por uma rua de comércio, se depara com uma manequim vestida
de noiva na vitrine de uma loja. Surpreso com aquela imagem, ele conta a seu amigo, que
decide ir vê-la e, também impressionado, acaba levando a manequim para casa. Ambos se
apaixonam pela manequim, dando origem a um triângulo amoroso mesclado de ciúmes e
discórdias: “Cuando Toño entró con La Desdichada en sus brazos, no pensé en darle las
gracias. Esa mujer de palo se abrazaba al cuerpo de mi amigo como dicen que el Cristo de
Velázquez cuelga de su cruz: con demasiada comodidad” (FUENTES, 1991, p. 85).
Após vários desentendimentos entre os “três” por causa de ciúmes principalmente, ao
regressar para casa certo dia, Bernardo encontra a boneca “morta”, submersa em uma
banheira com água: “Allí estaba ella, en el fondo de la tina colmada de agua hirviente,
despintada ya […] sumergida en un cristal de muerte […] dormida mi mujer en la vitrina de
agua donde ya nadie puede verla o admirarla o desearla […]” (FUENTES, 1991, p. 117).
Sobre isso, o texto não deixa clara a provável causa da morte, ele sugere duas possibilidades
de interpretação: homicídio, a manequim foi morta por Toño que buscava findar a causa de
tanto ciúmes e desentendimentos; suicídio, a própria manequim se matou para acabar com os
constantes conflitos. Refletindo sobre essa dupla possibilidade sobre a morte da manequim,
podemos pensar que também isso colabora para intensificar a dúvida e, consequentemente,
fantástico na narrativa.
Com a morte da boneca, que teve até velório, Bernardo vai viver com sua tia e não volta
a ver Toño durante 25 anos. Passado esse tempo, após ter viajado pelo mundo inteiro como
escritor, Bernardo volta à Cidade do México e, em um prostíbulo da cidade, reencontra Toño.
Nesse ambiente, depois de beberem muito, em um dado momento, aproximam-se deles duas
personagens fantasiadas de Pierrot e Colombina e os conduzem a outro baile, em uma
universidade. Ao regressarem dessa festa, os fantasiados fazem o táxi parar em frente a uma
catedral, na qual ambos entram e desaparecem. Intrigados, Bernardo e Toño descem do táxi e
vão procurá-los, porém o que encontram é algo inesperado e sublime: “La Virgen con su
cofia, su traje de marfil y oro y su capa de terciopelo, lloraba mirando a su hijo muerto
tendido sobre el regazo materno” (FUENTES, 1991, p. 117). A descrição física dessa figura
santa e materna é a seguinte:
Su escultor le dio un rostro de facciones clásicas, nariz recta y ojos
separados, lánguidos, entreabiertos, y una boca tiesa y pintada en forma de
57
alamar […]. En la mano izquierda, le falta el dedo anular. Sus parpados
alargados, como de saurio, nos miran entrecerrados, nos miran a Toño y a mí
como si fuésemos muñecos inanimados […]. Como si un gran mal le hubiese
ocurrido en otro tiempo (FUENTES, 1991, p. 126, grifo no original).
Características estas já conferidas anteriormente pelos narradores à boneca, inclusive
com as mesmas palavras:
Su escultor le dio un rostro de facciones clásicas, nariz recta y ojos
separados, menos redondos que los de los maniquíes comunes y corrientes,
que parecen caricaturas, sobre todo por la insistencia en pintarles pestañas en
abanico (FUENTES, 1991, p. 101).
Com essas palavras, é possível inferir que a figura angelical vista na igreja pelos amigos
é a manequim, só que em outro “corpo”, reencarnada dessa vez como uma santa, uma Virgem;
ou seja, sua morte por afogamento, como em uma espécie de batismo, a purificou de todos os
seus pecados. Perante essa presença, Bernardo e Toño são caracterizados como “muñecos
inanimados”, dando a entender, portanto, uma provável inversão de papéis entre as
personagens ao salientar a ideia de que eles são os manequins manipuláveis e que a boneca
está mais viva do nunca, ainda que não parecesse.
Portanto, o estranhamento do leitor ao ler essa narrativa ocorre mediante o
comportamento dos universitários em relação à manequim, que parece ganhar vida, pois ela é
descrita, desde o início, como uma mulher de fato: “La Desdichada pasó muy mala noche. Se
quejó espantosamente. Había que estar muy atento para darse cuenta” (FUENTES, 1991, p.
103). Personagem feminina que, como visto em outras narrativas de Carlos Fuentes, é a
responsável direta pela transformação da vida dos protagonistas, personagens, em sua
maioria, céticos que se vêem confrontados com o sobrenatural.
Cremos que essa narrativa de Carlos Fuentes remonta em grande medida a dois textos
fantásticos do século XIX: “O homem de areia”, de E. T. A. Hoffmann, e “A Vênus de Ille”,
de Prosper Mérimée
40
. Comparando a narrativa do primeiro autor citado com a de Fuentes,
pode-se destacar a paixão irracional dos protagonistas por uma “mulher-autômato-boneca”.
No conto de Hoffmann, Natanael se apaixona perdidamente por Olympia, não percebendo,
inclusive, que ela não era uma mulher de fato e sim um autômato. No texto de Carlos Fuentes,
Bernardo e Toño também se apaixonam por uma boneca, no entanto eles não foram
40
Contos de 1815 e 1837 respectivamente.
58
enganados como o protagonista da narrativa de Hoffmann. Os amigos universitários sabem
desde o início da condição de ser inanimado da manequim, o que torna a história ainda mais
insólita. Em relação ao conto de Mérimée, a intertextualidade ocorre justamente pela presença
da “manequim-estátua” e o destaque para seu dedo anelar. No conto de Mérimee, a estátua de
Vênus “apaixona-se” por Alphonse e passa a considerá-lo como “noivo”, depois que ele
coloca seu anel de casamento no dedo da estátua. No texto de Fuentes, a manequim não tem o
dedo anular, “me preguntó por qué le faltaba el dedo. Le dije que no sabía. Insistió, como si
La Desdichada anduviera mocha por mi culpa [...]” (FUENTES, 1991, p. 87-88), mas nem por
isso ela deixa de almejar um noivo, como sugerido por sua primeira vestimenta: “Era una
mujer vestida de novia […] esta mujer llamó mi atención porque su vestido era antiguo,
abotonado a todo lo alto de la garganta” (FUENTES, 1991, p. 82).
Em síntese, em “La Desdichada” podemos encontrar a reiteração de diversos aspectos
presentes em narrativas anteriores de Carlos Fuentes: a personagem feminina como
protagonista e relacionada ao sobrenatural, a presença de diversas formas de duplos, seja na
narração (Bernardo e Toño), seja na sugestão de ser a manequim a mesma personagem da
igreja. O fato de “La Desdichada” “ganhar vida” também chama a atenção ao retomar a
temática de “Chac Mool” e de diversos outros textos fantásticos.
2.7.3 “EL PRISIONERO DE LAS LOMAS”
A terceira narrativa da obra chama-se “El prisionero de Las Lomas” e tem narração em
1ª pessoa. Nicolás Sarmiento é o narrador-personagem que conta, por meio de seu sistema de
telefonia, como conseguiu “herdar” do general Prisciliano Neves, uma bela e espaçosa casa
em Chapultepec e como sua vida mudou depois que conheceu a personagem Eulalia, “Lala”.
Nicolás é um excêntrico advogado mexicano que jamais sai de sua casa, porque,
segundo ele, o sistema de telefonia que possui lhe permite realizar todas as suas tarefas por
telefone: “En mi despacho de Las Lomas tengo un banco de cerca de cincuenta y siete líneas
de teléfono directas. Todo lo que necesito a la mano: notarios, expertos en patentes y
burócratas amigos” (FUENTES, 1991, p. 140). Junto a esse sistema, ele usufrui também de
uma gama de criados e amantes, pessoas que ele trata como sendo mercadorias:
Desde que heredé la casa, llevo una lista de exacta de amantes y criados. La
primera ya es larguita, pero no tanto como la de Don Juan; además es
59
bastante individualizada. La de los criados, en cambio, trato de presentarla
seriamente con estadísticas. De esa manera, tengo a la mano una especie de
cuadro sociológico muy interesante [...] (FUENTES, 1991, p. 145).
Personagem que valoriza somente o lado utilitário das coisas e das pessoas, Nicolás
tem, pouco a pouco, sua vida modificada pela presença de Lala, uma figura sensual e cheia de
mistérios por quem ele se apaixona:
¿De dónde venías, quiénes eran tus padres, quién eras tú? Nunca quise
saberlo. […] Sentí que parte de mi conquista de Lala consistía en no
preguntarle nada, que lo nuevo de estos personajes nuevos de México nuevo
era que no tenían pasado, o si lo tenían era en otra época, en otra encarnación
[...] (FUENTES, 1991, p. 147-148).
Após uma das festas que Nicolás realizava em sua casa, Lala é encontrada morta na
piscina, assassinada por um golpe de faca, e Dimas Palmero, um dos empregados, acaba
sendo acusado pelo crime. Revoltados com tal acusação, os demais empregados da casa, até
então “invisibles”, se confessam irmãos de Dimas e de Lala, e aprisionam Nicolás dentro da
mansão, da qual, segundo eles, o narrador somente sairia depois que Dimas fosse liberto de
seu cárcere. Diante disso, Nicolás não se sente muito incomodado com a imposição de seus
empregados, porque, antes de tudo isso, ele já não saía de casa: “Yo ya era el prisionero de
Las Lomas desde antes de que ocurriera todo esto, era el preso de mis propios hábitos, de mi
comodidad, de mis negocios fáciles, de mis amores facilísimos” (FUENTES, 1991, p. 166). O
que começa a deixá-lo intrigado realmente é a presença cada mais crescente de campesinos
em seu jardim:
Jardín era el sitio de una romería. El olor a fritanga se imponía al de mierda
y eucalipto; humo de braseros, chillidos de niños, tañer de guitarras clic de
canicas, dos gendarmes enamorando a las muchachas de trenzas y delantal a
través de la reja garigoleada de mi mansión (FUENTES, 1991, p. 159).
Ao observar essa movimentação e sem poder fazer nada a respeito, o narradorpersonagem percebe que entre aquelas pessoas estava Lala: “La vi. Les digo que ayer la vi, en
el jardín” (FUENTES, 1991, p. 165). Essa afirmação causa dúvida e estranhamento no leitor,
pois como Lala poderia estar no jardim se ela havia morrido. Após essa visão, a narrativa
desencadeia para uma mistura de realidade e onirismo, pois o narrador-personagem relata a
presença frequente de Lala no jardim, o que deixa o leitor ainda mais imerso nas incertezas:
Vi a Lala esa tarde en mi jardín, cuando no era nadie, cuando era otra,
cuando miraba con ensoñación hacia una barranca. Cuando era virgen. La vi
y me di cuenta de que tenía un pasado y de que yo la amaba. De manera que
ésta era su gente. De manera que esto era todo lo que quedaba de ella, su
60
familia, su gente, su tierra, su nostalgia (FUENTES, 1991, p. 170).
Por tudo isso, Nicolás descobre as origens de sua antiga amante e percebe que Lala
tinha, de fato, parentesco com aquelas pessoas que estavam em seu jardim. Lala pertencia a
aquele povo, que parecia querer cobrar o “mal” que o narrador-personagem lhes fizera.
Comparando-se aos campesinos, o narrador-personagem argumenta que o diferencial
entre eles é que ele possuía a informação, enquanto os campesinos, a memória. Informação da
qual Nicolás sempre fez uso para obter tudo o que tinha, principalmente a casa, da qual, ele
salienta, não abriria mão por nada, nem mesmo em troca de sua liberdade: “Prefería quedarme
con ellos y dejar a Dimas en la cárcel, que declararme culpable o colgarle el crimen a otro.
Ellos entendieron” (FUENTES, 1991, p. 176).
Terminado de relatar a sua história por meio de seu sistema de telefonia, Nicolás fala
diretamente a seus “ouvintes”, convidando-os a refletir sobre o que ouviram:
¿Era yo, al cabo, el que ganaba, o el que perdía? Eso se lo dejo a ustedes que
lo decidan. Ustedes, a través de mis líneas telefónicas, han escuchado todo lo
que llevo dicho […] Mi memoria y mi información son suyas. Tienen
derecho a la crítica y también a proseguir la historia, voltearla como un tapiz
y tejer de nuevo la trama […] Pero, de todos modos, apuesto que no sabrán
qué hacer con lo que saben (FUENTES, 1991, p. 178).
Nesse aspecto, “El prisionero de Las Lomas” remete a Una família lejana se
considerarmos que os protagonistas contam diretamente a seus destinatários a experiência
insólita que viveram, deixando a critérios destes o completar e repassar a história adiante. Há
outra semelhança entre “El prisionero de Las Lomas” e outra narrativa de Fuentes, a novela
Constancia. Os narradores-personagens de ambos os textos assumem atitudes parecidas,
jamais se interessam em conhecer a origem e o passado das mulheres por quem se
apaixonaram, fazendo com que o impacto diante da “verdade” ignorada seja maior.
Em relação ao fantástico, existem características, nessa narrativa, que remetem ao
gênero: a polarização das personagens que pertencem a realidades distintas, o que intensifica
o fantástico; a presença de uma mulher sensual e misteriosa, que muda a vida do protagonista,
descortinando para ele outra realidade; a ambiguidade do relato do narrador-personagem, que
sempre deixa o leitor na dúvida se os fatos narrados pertencem à ordem da realidade ou do
sonho/alucinação; a importância da casa na narrativa, lugar que se caracteriza como sendo um
ambiente que gera embates entre o narrador e os campesinos. Vale ressaltar ainda que a
61
presença desses campesinos denota a manifestação de um passado indígena na atualidade que
cobra o que lhes foi tirado, a terra: “haciendo caso omiso a propriedad privada, reclamando
sus derechos a la diversión [...]” (FUENTES, 1991, p. 179).
Para concluir, acreditamos que, com essa narrativa, Carlos Fuentes demonstra uma
visão desencantada em relação ao México pós-Revolução de 1910, como já exposta
anteriormente em La muerte de Artemio Cruz (1962) e outros textos. Em “El prisionero de las
Lomas”, o autor propõe uma reflexão sobre os métodos utilizados por muitos mexicanos,
nesse período, para ascender à classe média, em que ações como chantagear e trapacear
pessoas faziam parte das regras do jogo.
2.7.4 “VIVA MI FAMA”
Na quarta narrativa do volume, Carlos Fuentes dialoga com a obra e a vida do pintor
espanhol Francisco de Goya. Com foco em 3ª pessoa e ambientado em Madrid, o enredo está
centrado em quatro personagens: Rubén Oliva e Pedro Romero (ambos toureiros), Elisia
Rodríguez (atriz) e Francisco de Goya (pintor).
A primeira parte da narrativa está focada na vida de Rubén Oliva, um toureiro
desiludido com sua profissão e com seu casamento por causa de excessivas cobranças de
Rocío, sua esposa. Por isso, ele resolve sair de casa e acaba encontra, “por acaso”, uma
mulher enigmática, pela qual ele se sente atraído, embora ela não tivesse sua face revelada
com nitidez num primeiro momento. Ao ser questionada por Rubén sobre seu rosto ofuscado,
ela responde: “Hombre, no importa, ni cómo soy, ni cómo me llamo” (FUENTES, 1991, p.
193). Envolvido por ela e por seu mistério, Rubén acaba acompanhando-a até sua casa, onde
eles se relacionam.
Com essa mulher, Rubén se sente feliz e satisfeito: “Parecía un matrimonio arreglado en
el cielo” (FUENTES, 1991, p. 193). Nesse ponto, chamamos a atenção para a construção de
toda essa cena que evidencia pistas que levarão ao fantástico: a maneira “casual” como eles se
encontram, a caracterização dessa personagem feminina com o rosto ofuscado, o fato de ela
afirmar já conhecê-lo, apesar de ele não saber de onde, “Yo sí te conocía desde antes. Yo sí
que te escogí por ser tú, no por ser un desconocido” (FUENTES, 1991, p. 196), além da ideia
do casamento arranjado pelos céus, ou seja, algo que foge ao racional, algo pertencente à
ordem do divino, do sobrenatural.
62
No momento em que ela profere a frase acima, dizendo que já o conhecia, o insólito
ocorre diante dos olhos de Rubén:
[...] las puertas del armario se abrieron con un golpe cardíaco, dos manos
poderosas, manchadas, escurriendo colores de los dedos [...], saltó sobre el
lecho del amor [...], agarró entre sus manazas el rostro de la mujer sin hacer
el menor caso de Rubén Oliva, con los dedo embadurnó el rostro de la
amante [...] esos dedos ágiles e irrespetuosos borraban o añadían, figuraban o
desfiguraban, [...], semejante arte, y furia incomparable, trazaba el rostro sin
facciones de la mujer [...] (FUENTES, 1991, p. 196).
Assombrado por essa cena inverossímil, Rubén, ao olhar mais atentamente para o
invasor, percebe que aquele homem não tinha cabeça. Pela descrição dada, podemos pensar
que esse homem sem cabeça é um pintor, Goya, pela maneira como ele “pinta” o rosto
borrado da mulher, dando-a nova feição com seus pincéis e tintas. Na sequência, o pintor se
apossa do discurso e começa a contar a história de Elisia Rodríguez, dando a entender ser este
o nome da mulher com quem Rubén estava.
Segundo o narrador, Elisia já estava casada quando se deixou seduzir por um jovem
padre, que promete ensiná-la a ler e a escrever peças de teatro e poesia em troca de seu amor.
Como o jovem sacerdote não poderia casar-se por causa de seu ofício religioso, os amantes
decidem que Elisia se casaria com o tio do rapaz, o que a manteria na família. Contudo, o tio
começa a reclamar sua posição de marido, exigindo que Elisia cumprisse suas obrigações de
esposa. Pressionada e cada vez mais apaixonada pela arte do teatro, ela os abandona e decide
ir para Madrid, onde pretende lançar-se como atriz. Na cidade espanhola, Elisia alcança a
fama por causa de sua maneira de atuar, que consistia em abrir mão de textos decorados e
improvisar no palco, “fue la primera que mandó al diablo los textos y dijo a la gente lo que les
interesa soy yo [...] (FUENTES, 1991, p. 201).
À continuação, o narrador direciona o olhar do leitor para outra personagem, Pedro
Romero, toureiro, assim como Rubén Oliva. Pedro é apresentado como um homem que se
orgulha de nunca ter sido ferido por um touro, apesar dos muitos anos de profissão: “El torero
sí que debe ser penetrado por el toro para perder su virginidad de macho, y esto a él no le
había ocurrido nunca” (FUENTES, 1991, p. 205). Porém, ele sente uma insegurança em sua
profissão e, durante uma de suas preparações para entrar na arena, Pedro estava especialmente
nervoso e decide ser aquela sua última apresentação, deixaria a profissão tão logo acabasse o
espetáculo.
63
Essas parecem ser três histórias independentes, contudo o leitor percebe que estão
interligadas e que as personagens se relacionam entre si à medida que ele avança em sua
leitura. Rubén Oliva é o amante da mulher de rosto borrado que, posteriormente, descobrimos
ser a própria Elisia Rodríguez. Esta, por sua vez, teve um romance intenso com Pedro
Romero, que, ao final, parece ser uma espécie de duplo de Rubén Oliva, porque sugere-se que
ambos morrem no momento em que este é golpeado por um touro. A personagem de
Francisco de Goya é quem interliga e relaciona as três histórias. O pintor atua de maneira
decisiva, pois consegue manipular, por meio de suas pinturas, a vida dessas personagens,
decidindo literalmente sobre o rosto que elas vão ter, como no caso de Elisia:
Le tomo la cara a La Privada (Elisia) se la pinto y se la despinto, la hago y la
destruyo, ése es mi poder, pero este hombre, a este hombre, no lo puedo
tocar, porque es idéntico a su retrato, no hay nada que pintar, no hay nada
que añadir [...] (FUENTES, 1991, p. 268).
E igualmente Goya decide sobre até quando elas vão viver:
Ay mi rival, ay Pedro Romero, cómo creíste que ibas a existir fuera de mi
retrato [...], en el instante en que Pedro Romero empezó a morirse por su
primera vez en un redondel, el mismo donde mató a su primer toro
(FUENTES, 1991, p. 277).
O fantástico emerge por meio desse jogo que extingue as fronteiras entre a realidade e
ficção na diegese. O artista/pintor atua como um “deus” dentro de seu universo de
representações, julgando o futuro de suas personagens-criaturas e transformando suas
realidades de acordo com o que ele crê ser mais adequado para a arte. Podemos pensar ainda
na questão dos duplos, bem como na personagem feminina, que surpreende ao se revelar
integralmente. Dessa maneira, com essa narrativa, Fuentes propõe a reflexão sobre algumas
formas de arte, de representação (teatro, toureio, pintura e literatura) e discute em que medida
“o que é mais real, o assunto de uma obra de arte ou a obra de arte em si?” 41.
2.7.5 “GENTE DE RAZÓN”
Dividida em três partes, “Obras”, “Milagros” e “Amores” respectivamente, o enredo do
quinto e último relato de Constancia y otras novelas para vírgenes gira em torno de duas
personagens: os irmãos gêmeos mexicanos Carlos María e José María Vélez, o narrador41
Tradução nossa do original: “Which is more real, the subject of a work of art or the work of art itself?”. Trecho
retirado da resenha sobre a obra feita por Publishers Weekly, [1990?]. Texto encontrado no site pessoal do
escritor: http://www.clubcultura.com/clubliteratura/clubescritores/carlosfuentes/4consta.htm.
64
personagem da história.
A primeira parte intitulada “Obras” está relacionada a construções, por serem formados
em arquiteturas, os irmãos são encarregados, pelo professor Santiago Ferguson, de restaurar
edifícios históricos e construir um jardim entre esquinas de grandes avenidas do centro da
Cidade do México:
Formalmente nuestro trabajo sería crear el jardín, el espacio verde, y que
nuestra contribución a la campaña contra el enfisema urbano sería no fumar,
cierto, pero también proteger cuanto vestigio de la cristalina ciudad de
antaño saliera ileso de la picota burocrática o comercial (FUENTES, 1991,
p. 300).
Aceito o trabalho, os irmãos vão até o local das obras, onde se deparam com o
desentendimento entre operários e engenheiros em relação ao calendário, pois aqueles não
queriam trabalhar em feriado santo por julgarem ser isso um “pecado”: “Nosotros teníamos
que observar los días oficiales (el nacimiento de Juárez, la nacionalización del petróleo), ellos
[operarios] querían guardar los días santos (el Jueves de Corpus, la cruz de mayo, la
Ascención de la Virgen) [...]” (FUENTES, 1991, p. 302). Essa religiosidade ganha força no
momento em que um dos operários fica “cego” e aparecem feridas em suas mãos. Isso faz
com que os demais colegas pensem ser aquilo uma espécie de castigo dos céus por eles
realizarem escavações em um solo sagrado, pois, segundo eles, embaixo daquele monte de
terra e escombros havia algo sagrado. Somado a isso, aparece a mãe de um dos operários, a
costureira Heredad Mateos, que diz que naquele lugar está a esposa e o filho de Deus. Nem os
engenheiros e nem os irmãos arquitetos dão crédito para a argumentação dos operários e da
costureira, mas, receosos de que ali pudesse se transformar em um ponto de peregrinação, eles
decidem manter a mulher presa, para que ela não contasse nada a ninguém.
A percepção de realidade dos irmãos começa a mudar a partir do momento em que eles
recebem sinais inexplicáveis, como a aparição, na obra, de um menino misterioso que
desaparece sem deixar vestígios. Diante disso, o narrador procura racionalizar tais eventos e
lança mão de humor para isso:
Líbranos de toda tentación. No íbamos a caer, a estas alturas, en las del
milagro. Podíamos, con ironía cervantesca, admitir, a lo sumo, la célebre
explicación de los milagros que don Quijote le hace a Sancho: ‘Son cosas
que ocurren rara vez...’ De lo contrario, serían la norma, no la excepción.
Bendito Quijote, que a tus hijos nos salvas de todos los apuros de la
contradicción [...] (FUENTES, 1991, p. 307).
65
Verifica-se que, no breve fragmento acima, o narrador-personagem menciona uma das
características do fantástico, o sobrenatural que surge excepcionalmente, pois do contrário
seria maravilhoso. Outro dado que nos chama a atenção é o fato de ele recorrer ao Quixote,
uma figura sabidamente imaginativa, que não conseguiu distinguir as fronteiras entre
realidade e ficção, após ler vários textos literários.
Na segunda parte da narrativa ocorre o “milagre”, por isso o nome “Milagros”, pois os
irmãos céticos se percebem envoltos num mistério e começam a se questionar se realmente
não existiria algo sobrenatural no subterrâneo da cidade. Com o intuito de esclarecer essa
dúvida, Carlos María decide procurar, separadamente, pela costureira Heredad, enquanto seu
irmão (o narrador) é conduzido por um estranho cachorro a uma porta que levava a parte
subterrânea da construção. Nesse ambiente, José María encontra outro universo, o México
submergido. Ele encontra também diferentes mulheres, todas freiras, cada uma delas ferida
uma maneira porque, segundo elas, se recusaram a manter relações sexuais com alguém no
passado. Entre elas está o mesmo menino que havia aparecido anteriormente, chamado entre
elas de Jesus, e a sua mãe.
Imerso naquele universo completamente desconhecido e alucinante, o narrador acaba
sendo induzido a manter relações sexuais com essa última mulher com a finalidade de
engravidá-la, pois, segundo ela, essa criança a ser gerada substituiria o menino Jesus, depois
que este fosse sacrificado. Cumprida a missão, o cachorro guia o narrador de volta à
superfície, e, enquanto isso ocorre, o narrador-personagem tem a plena consciência de que se
esquecerá de tudo o que viveu, exceto do cachorro, tão logo ele regressasse à realidade.
Na parte chamada de “Amores”, temos a morte do professor Santiago e a descoberta de
que a filha desta personagem, Catarina, era irmã dos protagonistas. Decepcionados, porque
eles nutriam certa paixão por ela, eles afirmam: “Perdimos en ese instante la posibilidad de la
pareja, pero ganamos, dejando atrás la multitud de los fantasmas, a la trinidad fraterna. Carlos
María, José María, Catarina” (FUENTES, 1991, p. 378).
Com um desenlace complexo e ambíguo, a narrativa termina com o nascimento do
menino Jesus, que é levado por Heredad, a costureira, a pedir esmolas num bairro nobre da
Cidade do México, Las Lomas de Chapultepec. Enquanto ela caminha com a criança dentro
de uma bolsa, Heredad sonha em viver em outra cidade, “una ciudad limpia, en cuyas casas
pueden reunirse vivos con los muertos, una ciudad […] con fe donde podían ocurrir milagros,
66
aunque la gente de razón nunca los entendiera” (FUENTES, 1991, p. 380). Nas últimas linhas
do texto, o narrador foca seu olhar no menino Jesus e o descreve: “en muñeco de hulespuma
con sus rizos dorados y sus ojos azules y su ropón blanco con filete dorado y sus dedos
sangrantes” (FUENTES, 19991, p. 380). Essa última informação favorece a intensificação da
ambiguidade no relato ao revelar que o menino era, na verdade, um boneco e que, apesar
disso, sangrava pelos dedos.
Em “Gente de razón”, portanto, temos um enredo complexo e intrigante, em que o
fantástico é instaurado lentamente por meio da caracterização das personagens (“gente de
razón” e gente de fé), o protagonismo das personagens femininas que, mais uma vez,
encarnam o sobrenatural, a presença de seres fantásticos, incluindo a menção ao menino
Jesus, personagem que nasce anualmente e que, como evidencia o final, parece ser um
boneco, tal como a manequim de “La desdichada”. Nessa narrativa, Carlos Fuentes delineia
diante de seu leitor um mosaico de realidades sobrenaturais construídas por meio da palavra.
2.8 INSTINTO DE INEZ
Sólo que esta noche habrá apariciones en tu sueño que nunca
antes habrás soñado. Una voz te dirá: Volverás a ser.
(Fragmento de Instinto de Inez, FUENTES, 2008, p. 453).
Publicada em 2001 e dividida em nove capítulos, Instinto de Inez é a quinta e última
narrativa inscrita por Carlos Fuentes no ciclo “El mal del tiempo”42. O enredo desse texto é
composto por duas histórias paralelas, ambientadas em tempos distintos que representam
diferentes universos: pré-história/sonho e século XX/realidade. Os protagonistas são Inez
Prada e Gabriel Atlan-Ferrara. Ela é mexicana e cantora de ópera, e ele, francês e maestro de
orquestra. Inez é a figura que consegue transitar por esses dois tempos-universos através de
sonhos, os quais ocorrem pela primeira vez logo depois que ela conhece Gabriel em Londres,
onde estavam para apresentar o espetáculo “La Damnation de Faust”, de Hector Berlioz.
O narrador relata que, após um ensaio para esse espetáculo, ambos se encontram em
uma rua londrina e seguem viagem rumo à casa de Gabriel no litoral, onde buscam estreitar
42
Segundo o site oficial de Carlos Fuentes, haveria uma última obra, La hueste inquieta, que faria parte do ciclo.
Porém ela ainda estava em processo quando o autor veio a falecer, em maio deste ano.
67
laços. Gabriel tenta manter relações com Inez, porém ela o rechaça, ainda era virgem,
justifica, e, além disso, estava impressionada com a beleza de um amigo dele, retratado em
uma fotografia que estava na casa: “La fotografía de Gabriel muy joven, adolescente o quizás
veinte años, abrazado a un muchacho exactamente opuesto a él, sumamente rubio, sonriendo
abiertamente, sin enigma” (FUENTES, 2008, p. 435).
Durante passeio na praia, Inez oferece um “sello de cristal” a Gabriel, objeto este que
ela havia encontrado no sótão da casa dele. Após algum tempo de conversa, o maestro francês
acaba indo embora inesperadamente, porém Inez sente-se impelida a ficar naquele lugar. Ao
regressar para a casa, ela ouve ruídos estranhos na escada, deita-se sobre dois tamboretes, “tan
rígida como un cadáver”, coloca as fotos dos amigos sobre o peito e percebe que a imagem do
jovem loiro da fotografia havia desaparecido: [...] El joven bello y rubio había desaparecido
de la foto. Ya no estaba allí” (FUENTES, 2008, p. 446). Naquela posição, Inez coloca outros
dois selos de cristal sobre suas pálpebras e imerge em sonhos que a levarão para outros
tempos, tempos iniciais, tempos primitivos. A partir disso, a narrativa alterna capítulos de
realidade e de sonho, até o momento que acontece a fusão entre ambos. Por um lado, a
realidade corresponde ao século XX e narra os encontros e desencontros entre a cantora
mexicana e o maestro francês. Por outro, o sonho de Inez relaciona-se à pré-história, período
da gênese humana, no qual ela entra sem nem saber como chegou, afirma o narrador
(FUENTES, 2008, p. 447).
A narrativa intercala esses dois universos de maneira a ora mostrar a relação
profissional e amorosa de Inez e Gabriel, ora apresentar a vida de Inez na pré-história. Essa
oscilação se reflete no foco narrativo do texto, ou seja, quando se refere aos eventos do século
XX, o narrador fala, na maioria das vezes, na 3ª pessoa do singular e no pretérito (perfeito e
imperfeito): “Le dio miedo el espectáculo” e “Le daba miedo emprender el camino”
(FUENTES, 2008, p. 445). Porém, quando se trata da pré-história, ele enuncia,
predominantemente, na 2ª pessoa do singular e no futuro: “Al despertar estarás trepada entre
las ramas de un árbol” (FUENTES, 2008, p. 447). Essa duplicidade cria o efeito de sentido de
realidade ou séc. XX como sendo um tempo passado, justamente por ser enunciado no
pretérito; e, ao ser mencionado no futuro, o sonho ou pré-história se desprende do passado e
se transfere para o presente-futuro, como se anunciasse o porvir, ou seja, o regresso do
homem à pré-história, às suas origens, ao universo dos sonhos. E é isso o que ocorre com
Inez, pois, a cada sonho, ela se aproxima mais desse universo onírico, no qual teve esposo e
68
uma filha. A criança foi vitimizada a mando do chefe da tribo onde viviam, porque ela era
fruto de uma união “pecaminosa”, já que Inez e seu marido eram irmãos: “El hermano y la
hermana no fornicarán juntos. [...] La descendencia pagará la culpa de los padres”
(FUENTES, 2008, p. 489). Durante esse episódio, Inez, pressentindo o mal, acaba fugindo
sedenta de ódio para não presenciar o assassinato de sua filha.
Ao acordar desse sonho (ou pesadelo) e voltar para a realidade, a protagonista se dá
conta de que estava num quarto de hotel em Londres, cidade onde faria, mais uma vez, uma
apresentação de “La Damnation de Faust” com Gabriel. Nesse dia, o francês deu a ela a
fotografia de anos antes, a mesma que a havia impressionado tanto por causa do belo amigo
de Gabriel, o desaparecido. Antes do espetáculo, em seu camarim, Inez começa a olhar a foto
e percebe que, pouco a pouco, a figura do jovem loiro vai ressurgindo diante de seus olhos:
Ahora, en el camerino [...], la imagen se había completado. […] Gabriel
abrazaba al muchacho rubio, esbelto, sonriente también, exactamente
opuesto a él, sumamente claro, sonriendo abiertamente, sin enigma. El
enigma era la reaparición lenta, casi imperceptible, del muchacho ausente, en
el retrato (FUENTES, 2008, p. 499).
A figura que tanto impressionara Inez voltava a ganhar forma, como se “la foto
invisible se hubiese revelado, ahora, gracias a la mirada de Inez” (FUENTES, 2008, p. 500).
Sem mais tempo, Inez entra no palco e pressente que algo distinto estava acontecendo, pois,
apesar de cantar, ela não ouvia sua própria voz nem a dos demais presentes. Ela sentia como
se algo interno a estivesse separando dela mesma. Nesse momento, aparece, no auditório,
outra mulher idêntica a Inez:
La mujer desnuda con la cabellera roja erizada, los ojos negros brillando de
odio y venganza, [...] cargando sobre los brazos extendidos el cuerpo
inmóvil de la niña, la niña color de muerte, rígida ya en manos de la mujer
que la ofrecía como un sacrificio intolerable, […] la niña […] rodeada de
gritos, el escándalo, la indignación del público […] (FUENTES, 2008, p.
501).
Diante desse espetáculo de horror e morte, o público ser aquela uma encenação
preparada por Gabriel, maestro considerado por todos como inovador. Entretanto, nem mesmo
ele entendia o que estava acontecendo e muito menos o porquê de não conseguir parar de
dirigir a orquestra, que continuava a tocar da mesma maneira. Ao perceber a aproximação do
seu outro “eu” selvagem e primitivo, Inez Prada fecha os olhos e recebe essa figura de braços
abertos, momento em que ambas se fundem em uma só e desaparecem desde então.
69
Depois que todos esvaziam o auditório, Gabriel escuta o som de uma flauta de marfim,
e, ao olhar para saber quem estava tocando, percebe que era um “hombre joven, pálido, rubio,
color de arena” (FUENTES, 2008, p. 502), semelhante ao seu amigo e descrito com as
mesmas palavras utilizadas para mencionar o esposo de Inez na pré-história: “Él será color de
arena, todo, su piel, su vello, su cabeza, un hombre pálido” (FUENTES, 2008, p. 451).
Terminada essa parte do relato, a narrativa volta para seu ponto inicial e mostra o
presente de Gabriel, com 93 anos. Ele acaba de chegar de uma homenagem, e contempla o seu
selo de cristal, presente de Inez para ele, enquanto conversa com sua empregada. Assim que
ela sai da sala, Gabriel começa a conversar com Inez e a pede ajuda para esquecer o passado.
Despede-se do fantasma da cantora mexicana e vai para seu quarto, onde ele, ao olhar para
sua cabeceira, vê:
Uno, la flauta de marfil. Otro, la fotografía enmarcada de Inez vestida para
siempre con los ropajes de la Margarita de Fausto, abrazada a un joven de
torso desnudo, sumamente rubio. Los dos sonriendo abiertamente, sin
enigma. Nunca más separados (FUENTES, 2008, p. 510).
Trata-se da mesma flauta utilizada pelo esposo de Inez na pré-história e também no dia
do desaparecimento da mexicana. A fotografia, diferentemente das outras vezes que sempre
alguém estava apagado, dessa vez apresenta suas personagens nítidas e felizes, porque
estavam juntas. Aliás, os temas do retorno às origens e do reencontro entre personagens pode
ser observado em diversas outras narrativas de Carlos Fuentes, como em Aura e “La bella
durmiente”, por exemplo.
Portanto, nessa narrativa, observa-se a manifestação do fantástico de diversas maneiras,
entre as quais estão o aparecimento e desaparecimento, sem explicação lógica, de
personagens; a mescla entre sonho e realidade; a presença de objetos mediadores, como a
fotografia, a flauta e o selo, objeto este que perpassa os tempos; a presença de fantasmas
(Gabriel conversando com Inez no final), de duplos (Inez e sua sósia, realidade-sonho, préhistória-história, dois focos narrativos), bem como a manifestação do insólito através da
personagem feminina.
2.9 INQUIETA COMPAÑÍA
70
Eché un vistazo a mi estancia. La costumbre irrenunciable de
ver si todo está en orden antes de salir. No vemos nada
porque todo está en su lugar. Salimos tranquilos.
Nada está fuera de su sitio, el hábito reconforta...
(Fragmento de “Vlad”, FUENTES, 2004, p. 258).
Da mesma maneira como em Los días enmascarados, em Inquieta Compañía (2004),
Carlos Fuentes reúne um total de seis contos que se alinham com o gênero fantástico. Todos
são textos que apresentam o sobrenatural sob diferentes perspectivas, por meio, inclusive, de
bruxas, fantasmas, anjos e vampiros. O autor constrói suas narrativas utilizando-se de
intertextualidades, paródias, ironias, metaficções e de discursos carregados de ambiguidades.
Vale salientar que, embora Inquieta Compañía não esteja relacionada pelo autor como
pertencente ao ciclo “El mal del tiempo”, optamos por trazê-la para este estudo por
acreditarmos ser uma obra que proporciona um interessante corpus de investigação no que diz
respeito às características da escrita fantástica produzida por Carlos Fuentes mais
recentemente. Além disso, objetivamos apontar alguns caminhos interpretativos sobre essa
obra, uma vez que ela ainda não possui grande fortuna crítica, se comparada a publicações
anteriores do autor mexicano.
2.9.1 “EL AMANTE DEL TEATRO”
Dividido em três partes (“La ventana”, “El escenario” e “La flor”), “El amante del
teatro” é o texto que abre o volume de contos. Na primeira parte, Lorenzo O’Shea, o narradorpersonagem mexicano de descendência anglo-irlandesa, conta um pouco sobre sua monótona
vida em Londres: trabalha como editor de cinema, apesar de ser apaixonado por teatro, e,
todos os dias, cumpre a mesma rotina: trabalho-teatro-casa. O’Shea relata que sua vida
somente começou a mudar após avistar, de sua janela, uma mulher misteriosa no apartamento
em frente ao seu. Essa imagem o deixou surpreso e obcecado e fez com que ele deixasse de
desenvolver todas as suas tarefas diárias, para estar todo o tempo diante da janela, esperando
por ela: “Dejé de ir al trabajo. Dejé de ir al teatro. Pasé la jornada entera frente a mi ventana
abierta [...] esperando la aparición de la muchacha en su propio marco” (FUENTES, 2004, p.
17).
71
O’Shea percebe que a jovem mulher parece ser atriz, pois, todas as vezes que ele a via,
ela se comportava como se estivesse ensaiando. Isso ocorria somente em determinados
horários do dia e da noite, momentos em que ela aparecia na janela e “encenava” apenas para
ele: “Yo había sido ya, sin sospecharlo, su cuarta pared. Y su primer espectador” (FUENTES,
2004, p. 30-31).
Com isso, a situação de dependência do narrador-personagem só aumenta e chega a tal
ponto que O’Shea sentia verdadeiro horror diante da possibilidade de que ela descobrisse que
ele a espiava e interrompesse seus ensaios. Esse temor se concretiza quando a mulher, coroada
de flores, surge na janela e dirige algumas palavras em sua direção:
Acaso mi terror no era vano. Cuando me asomé de nuevo en la ventana, vi a
mi amada con la cabeza coronada de flores. Caminaba acercándose y
alejándose de la ventana. Cuando más cerca estuvo, vi claramente que
cerraba los ojos y movía los labios, como si rezara... (FUENTES, 2004, p.
20-21).
Ainda mais hipnotizado, o narrador decide que “no dormíria nunca en espera de que ella
me dirigiese la mirada” (FUENTES, 2004, p. 21). Porém, após tanta vigília, ele confessa:
“Debo añadir que a estas alturas una especie de razón de la sinrazón había penetrado en mi
cerebro” (FUENTES, 2004, p. 21).
Em um momento posterior, a mulher o encara e, para a surpresa do narrador e do leitor,
ela faz algo totalmente inesperado:
La miré como siempre. Pero esta vez, por vez primera, ella no sólo movió
los labios. Los unió primero. Enseguida los movió en silencio y lanzó un
mugido. Un mugido animal, de vaca, pero también elemental como el
poderoso rumor del viento y terrible como el grito iracundo de una amante
despechada [...] Su mirada, acompañada de ese mugido feroz y plañidero a
un tiempo, era de abandono, era de socorro, era de locura (FUENTES, 2004,
p. 23).
Com o impacto desse encontro, ele fecha os olhos e, quando os abre, “la ventana de
enfrente estaba cerrada, las cortinas unidas. Y el apartamento, desde ese momento, vacío. Ella
se fue” (FUENTES, 2004, p. 23). Diante disso, o leitor se questiona se realmente tudo aquilo
havia ocorrido ou se era apenas produto da imaginação do narrador, já tão afetada pelo sono e
por medicamentos tranquilizantes que ele havia tomado.
Esse encontro entre os dois e a maneira como a jovem atriz se comporta, buscando
desesperadamente comunicar-se com o narrador-personagem, remetem a outra cena de outro
72
conto de Carlos Fuentes: “Tlactocatzine, del jardín de Flandes”, de Los días enmascarados.
Nesta narrativa, a anciã também deseja falar com o narrador-personagem, mas somente
consegue por meio de bilhetes, cartas. No momento em que ela consegue estar diante de seu
amado, grita:
Lo supe por revelación, porque mis ojos decían lo que el tacto no
corroboraba: sus manos en las mías [...] movía sus labios en una letanía de
ritmos vedados. [...] el ruido regresó, la lluvia se llenó de amplificadores, y
la voz coagulada, eco de las sangres vertidas que aún transitan en cópula con
la tierra, gritó: ‘¡Kapuzinergruft! ¡¡ Kapuzinergruft43!! (FUENTES, 1996, p.
44).
As atitudes das personagens femininas de “Tlactocatzine” e de “El amante del teatro”
indicam que tanto uma quanto outra parecem buscar restabelecer elos desfeitos no passado,
amores antigos, fato que resultará no aprisionamento e na loucura dos narradorespersonagens.
Na segunda parte de “El amante del teatro” (“El escenario”), O’Shea, conformado com
o desaparecimento de sua amada, procura retomar sua vida normal e decide voltar ao trabalho
e a frequentar o teatro. No entanto, em uma de suas idas ao teatro, ele volta a perder a
tranquilidade, pois reencontra a sua amada encenando uma versão da peça de Hamlet44, em
que ela interpretava a personagem Ofelia. Isso reacende a antiga obsessão do narradorpersonagem, levando-o a frequentar o teatro constantemente e, em uma das apresentações,
Ofelia não segue o roteiro e olha diretamente nos olhos do narrador, o que o deixa ainda mais
perturbado.
Na encenação seguinte, Ofelia surge morta dentro de um rio, o que, para o narrador
alucinado, consistiria em uma espécie de punição do diretor da peça por ela ter transgredido
as regras anteriormente:
Acompañada por las flores de la muerte [...]; Ofelia semejante a una sirena
que se hunde bajo el peso del légamo... En ese instante quise saltar de mi
butaca al escenario para salvar a mi amada, rescatar a Ofelia de su muerte
por agua, abrazarla, besarla, devolverle su aliento fugitivo con el mío
desesperado [...] Ofelia estaba muerta, ahogada. Había muerto esa noche de
la representación final (FUENTES, 2004, p. 39).
43
Palavra em alemão que indica, no contexto da narrativa, a cripta imperial onde Maximiliano está enterrado.
44
Peça de teatro escrita por William Shakespeare entre 1599 e 1601.
73
Desnorteado, O’Shea sai do teatro e isso faz com que as dúvidas só aumentem, pois o
leitor não consegue saber se Ofelia realmente encenava sua morte, como as atrizes que
assumem o papel da personagem shakespeariana, ou se estava morta literalmente, como
acreditou o narrador. Aliás, o próprio narrador afirma preferir não saber o que ocorreu de fato
com Ofelia, o que aumenta as incertezas sobre os fatos: “Sentí la tentación de abrirme paso a
los camerines. Me detuve a tiempo. Me arredró la idea de que Ofelia hubiese realmente
muerto. [...] No quise averiguar” (FUENTES, 2004, p. 41).
Buscando provar a veracidade de sua história, O’Shea fala diretamente a seus
interlocutores e profere a seguinte afirmação, que, mais bem, amplia ainda mais a dúvida do
leitor:
No den ustedes créditos a la noticia aparecida hoy en los diarios. No es cierto
que cuando Ofelia pasó flotando [...] un espectador desquiciado saltó de su
butaca de primera fila al escenario para rescatar a la actriz intérprete de
Ofelia de la muerte por agua [...]. Como tampoco es cierto que mientras ese
loco cargaba a Ofelia ahogada [...] surgió Hamlet [...], blandiendo el puñal
desnudo al trastornado extranjero [...] en la espalda [...] (FUENTES, 2004, p.
42).
Ofelia e O’Shea haviam sido mortos durante a encenação da peça? Pergunta-se o leitor.
A oposição entre o discurso “oficial” do jornal e o relato doentio do narrador contribui para a
ampliação da dúvida do leitor, pois, caso o leitor opte pela versão do jornal, deverá considerar
a possibilidade da existência de fantasmas, ou seja, O’Shea estaria morto ao contar a sua
história.
Na terceira e última parte do conto (“La flor”), o fantástico sustenta-se na ambiguidade
do desfecho do conto, em que, mais uma vez, o narrador refuta a notícia de sua morte e afirma
ter uma prova de sua experiência com Ofelia:
El lector sabrá, si algún día lee estos papeles que he venido garabateando
desde la noche que regresé del Royal Haymarket a mi flat [...], que subí
lentamente las escaleras, entré al apartamento pero no encendí las luces [...]
Tomé un pequeño florero [...] con ternura, introduje en él el tallo largo de la
flor de anciano, prueba única de la existencia de Ofelia (FUENTES, 2004,
p. 43).
Nem mesmo suas palavras e nem mesmo essa “prova” conseguem desfazer o que o
texto sugere em suas entrelinhas, isto é, que ele morreu naquele dia no teatro: “Me senté a
contemplarla (flor). [...] Llevo meses mirándola” (FUENTES, 2004, p. 43-44).
74
Perante um enredo labiríntico e repleto de ambiguidade, o leitor de “El amante del
teatro” percebe-se diante da complicada tarefa de tentar traçar limites que delineiem a
fronteira entre o real e o ilusório dentro da ficção e metaficção de Carlos Fuentes. Da
perspectiva do fantástico, existem, nessa narrativa, diversos elementos que dialogam com as
demais narrativas fantásticas do autor mexicano, especialmente no que se refere ao foco
narrativo em 1º pessoa, ao surgimento de uma personagem feminina que desestabiliza a vida
de outro personagem, ao modo como é contraposto o discurso “oficial” e o “marginal”,
gerando uma duplicidade discursiva. Outro dado fundamental está relacionado ao título do
texto que também suscita ambiguidade. “El amante del teatro” faz referência tanto ao fato do
narrador ser apaixonado por peças de teatro, quanto ao de que todos pensaram ser O’Shea o
amante de Ofelia, diante da cena em que ele tenta resgatá-la “morta” no teatro.
2.9.2 “LA GATA DE MI MADRE”
O enredo dessa segunda narrativa está em 1ª pessoa e Leticia Lizardi é a narradorapersonagem que inicia sua exposição revelando sentir verdadeiro ódio por Estrellita, a gata de
estimação de sua mãe: “Lo indudable es que esta gata, cariñosamente bautizada ‘Estrellita’
por mi madre, me sacaba de quicio” (FUENTES, 2004, p. 45). Sua aversão pelo animal é
tamanha que a narradora o descreve da seguinte maneira:
Blanca, felpuda, [...]. Corto el rabo, cortas las patas, un auténtico monstruito,
un verdadero leopardo miniaturizado, como si hubiese bajado de las nieves
más lejanas para instalarse, indeseado e indeseable, en el hogar de doña
Emérita Lizardi y su hija Leticia [...] (FUENTES, 2004, p. 45).
No fragmento acima, é possível notar que a descrição acima da gata Estrellita agrega
características ao animal não muito comuns, antecipando o desfecho insólito da trama, pois
tanto os substantivos “monstruito” e “leopardo” quanto o verbo “instalarse” são
tradicionalmente relacionados com o fantástico.
Aversão também é o sentimento que Emérita, uma velha tirânica, demonstra por
Guadalupe (Lupita, em menção à Virgem de Guadalupe), empregada da casa. Sempre
estabelecendo comparações entre a gata e a empregada, a mãe da protagonista, desde o
princípio da narrativa, dispensa ao animal um excessivo cuidado em contraposição ao
desprezo que ela sente pela empregada, também chamada de “gata”, segundo costume
depreciativo do México dos anos 1950: “Mira, huilita de pueblo (...) mi gatita es virgen, no ha
75
perdido la pureza, nunca ha parido en su vida... Tú, en cambio, ¿cuántos mocosos prietos no
habrás dejado regados en cuanta casa has trabajado?” (FUENTES, 2004, p. 49). Diante de
tantos insultos e humilhações de Emérita, Lupe se comporta de forma “pasiva”, “como si
recibir insultos fuese parte de un patrimonio ancestral” (FUENTES, 2004, p. 49).
Certo dia, Lupe desaparece da casa e Leticia se vê obrigada a auxiliar a sua mãe a ir ao
banheiro, já que ela estava impossibilitada de se locomover sozinha. Diante de sua mãe,
protagonista declara: “Sentí asco cuando adiviné que mi madre y su gata orinaban al mismo
tiempo. Era inconfundible. Dos chorritos distintos” (FUENTES, 2004, p. 61). Essa
simultaneidade de ambas ao urinar é outro dado que atua como pista e indica o porvir do
sobrenatural, que ganha força no momento em que o leitor descobre que a cor dos olhos do
animal e da velha é a mesma, “sus ojos idénticos a los de la gata Estrellita, uno azul y otro
amarillo” (FUENTES, 2004, p. 75), dando a entender a existência de um possível duplo da
mãe, como o próprio título do texto evidencia: “La gata de mi madre”.
No mesmo dia do desaparecimento da empregada, haveria uma procissão dedicada à
Virgem de Guadalupe na rua onde vive a protagonista com sua mãe. Muito religiosa, dona
Emérita convida a filha para ver o ato religioso com ela e são surpreendidas:
Avanzó la representación viva de la Virgen de Guadalupe.
Mi madre pegó un grito.
La mujer que representaba a la Virgen era nuestra sirvienta Lupita [...]
Guadalupe [...] le sacó la lengua a mi madre y hasta le lanzó una sonora
trompetilla (FUENTES, 2004, p. 68).
Dona Emérita, ao presenciar a empregada travestida de divindade, algo inconcebível
para ela, fica chocada e acaba morrendo com os olhos abertos. Com a morte da mãe, Leticia
percebe a oportunidade de se livrar definitivamente da gata, e joga o animal pela janela que
desaparece no meio da multidão.
Livre da gata e da tirania de sua mãe, Leticia decide casar-se com Florencio, um rapaz
que ela havia conhecido algum tempo antes. No entanto, sua felicidade dura pouco, pois ele
logo começa a maltratá-la e a comportar-se de maneira estranha, como se procurasse algo na
casa. Leticia, certo dia, encontra o marido arrancando o piso de toda a sala, de onde ele retira
um esqueleto, que, segundo ele, era do pai da protagonista:
Era un cura renegado, obligado a casarse para no ser fusilado durante la
persecución de Calles. Escogió a tu madre por católica...y por rica. Doña
Emérita no sabía quién era su marido. Cuando se enteró de que estaba casada
76
con un sacerdote, lo envenenó y lo enterró bajo el piso de la sala
(FUENTES, 2004, p. 76-77).
Após descobrir o que realmente havia acontecido com seu pai, Leticia fica sabendo
ainda que tanto a empregada Lupe como seu esposo haviam sido queimados durante a
Inquisição, porque eram “judíos”: “Nos acusaron y nos condenaron para expropiarnos
nuestros bienes. Fuímos víctimas de la codicia eclesiástica. Esta casa. Esta vieja casa”
(FUENTES, 2004, p. 79). Após essa revelação, os fantasmas de Lupe e Florencio aproveitam
o momento e (re)tomam a casa de Leticia, fazendo-a prisioneira, a “gata” da casa. Segundo
Florencio, a missão de Leticia consistia em: “renovarnos. Cuando te lo ordene, tú debes
atarnos a la estaca en patio, juntar la leña a nuestros pies y prendernos fuego” (FUENTES,
20004, p. 83). Assim, Florencio e Lupe passam a depender de Leticia para continuarem
“vivos” e, para que a protagonista não escapasse, colocam como seu carcereiro um leopardo,
que tinha um olho amarelo e outro azul, da mesma maneira que a mãe e a gata Estrellita.
É possível encontrar em “La gata de mi madre” similitudes com “Chac Mool”, outro
texto de Carlos Fuentes. Neste conto, a divindade Chac Mool também necessita da ajuda de
Filiberto para sobreviver; esse auxílio não consiste em atear-lhe fogo, mas sim em trazer-lhe
água. Outra característica comum entre essas duas narrativas é que, tanto em “Chac Mool”
quanto em “La gata de mi madre”, as personagens que representam o inquietante se apossam
da casa dos protagonistas, ou seja, da mesma forma que Chac toma a casa de Filiberto,
transformando-o, inicialmente, em uma espécie de empregado e, posteriormente, em um
troféu, o casal de judeus também toma a casa de Leticia e a coloca na posição que Lupe
ocupava: a de empregada.
Sob a perspectiva do fantástico, além dos elementos mencionados anteriormente, “La
gata de mi madre” apresenta outros aspectos, tais como construções linguísticas ambíguas
(como o título do texto e a descrição da gata Estrellita, por exemplo), o emprego de elipses ao
longo do texto, provocando a geração de suspense, a presença de fantasmas e personagens que
apresentam duplos.
2.9.3 “LA BUENA COMPAÑÍA”
O terceiro conto de Inquieta Compañía é formado por um narrador em 3ª pessoa que
relata a história de Alejandro de la Guardia, um jovem mexicano “racional y metódico”,
77
radicado na França após a fuga de parte de sua família por causa da Revolução Mexicana.
Alex, como ele é chamado, visando o recebimento de alguma provável herança de suas velhas
tias María Serena e María Zenaida, decide voltar ao México depois da morte de sua mãe.
Chegando, o que ele encontra são duas velhas que se comportam de acordo com diversas
regras pouco comuns, as quais ele deve cumprir também. A primeira delas consiste em elas
jamais saírem de casa e, caso saiam, nunca devem entrar na casa pela porta da frente: “Nunca
entres o salgas por la puerta principal. Usa sólo la puerta trasera al lado de tu recámara [...]”
(FUENTES, 2004, p. 94). Outro aspecto excepcional é o fato de elas jamais compartilharem o
mesmo ambiente: “Nos dividimos la sala – dijo cabizbaja la tía María Zenaida –. Ella recibe
de noche. Yo de día [...]” (FUENTES, 20004, p. 91). Por isso, para fazer companhia ao
sobrinho, as tias revezam o turno entre si: Zenaida fica com o Alex durante o dia e Serena,
durante a noite.
A caracterização das personagens Zenaida e Serena contribui para aumentar o
estranhamento do leitor. A primeira é descrita da seguinte maneira:
Su pelo era completamente blanco, pero la piel permanecía fresca y
perfumada. En verdad, olía a jabón de rosas. Usaba un vestido floreado [...].
Zapatos blancos con tacón bajo, como si temiese caerse de algo más elevado
[...] (FUENTES, 2004, p. 91).
Por outro lado, a segunda é apresentada como:
Vestida de negro, con una falda tan larga como la de su hermana María
Zenaida, que le cubría hasta las puntas de los botines negros. Usaba una
blusa de olanes negros también, un camafeo como único adorno sobre el
pecho y un sofocante negro alrededor del cuello. El rostro blanco rechazaba
cualquier maquillaje: el ceño entero lo decía a voces, las frivolidades no son
para mí [...] (FUENTES, 2004, p. 93).
Zenaida e Serena são dispostas na narrativa de maneira a criar um efeito de sentido de
oposição e/ou complementação, o que indica uma provável existência de duplo ou de
metades. As irmãs atuam como guardiãs daquele espaço e da “verdadeira” história de Alex,
que inicialmente julga as regras impostas pelas tias como sendo “coisas de velhas
caprichosas”. No entanto, ele logo percebe que não se trata apenas de capricho, pois os
indícios o levam a crer que há algo a mais. Em um dos momentos mais intrigantes da
narrativa, María Zenaida, aos prantos, pede a Alex: “Muéstrate en la calle. Que crean que
alguien... que nosotras...seguimos vivas...” (FUENTES, 2004, p. 98). Com essa declaração
ambígua, Alex confronta-se com o insólito, fazendo com que sua certeza ceda lugar para a
78
dúvida, momento em que o mistério se intensifica na narrativa.
Ambígua também é a forma como as tias tratam o sobrinho. Ambas se dirigem a Alex
como se ele fosse uma criança, “niño”, e o presenteiam, inclusive, com objetos, alimento e até
roupas infantis. Apesar de considerar algo fora do comum, Alex releva esse comportamento
das tias por pensar que se trata de uma espécie de manifestação de carinho. Contudo, o
mistério sobre a postura de Zenaida e Serena se intensifica no momento em que o sobrinho
encontra, em seu quarto, um caderno com folhas em branco cujo título dizia: “Aventuras de
un niño francés en México por Alejandro de la Guardia” (FUENTES, 2004, p. 105).
Assombrado, o protagonista sente que “la razón lo abandonó por completo. Es más, sin razón,
sintió miedo” (FUENTES, 2004, p. 105). Imerso em dúvida e pressentindo algo inexplicável,
Alex tem uma resposta, que não responde nada, no momento em que escuta a seguinte
conversa das tias sobre ele: “[...] Morir así, atropellado por un tranvía en plena Ribera de San
Cosme”, uma comenta e a outra responde: “¡Qué horror! Y tan jovencito. A los once años”.
(FUENTES, 2004, p. 119).
Em “Buena Compañía”, toda a ambientação da casa é construída de maneira a antecipar
o inexplicável, e, inclusive, o quarto de Alex estava mobiliado de acordo com uma faixa etária
infantil. Há também a sugestão de que as tias sejam um duplo, de modo a se revezarem no
auxílio de descoberta do insólito segredo. Outro aspecto essencial é o protagonismo de
Zenaida e Serena porque elas são as responsáveis por provocar, a partir de um comportamento
propositadamente ambíguo, as dúvidas de Alex, induzindo-o a descobrir a sua condição de
“fantasma”. Nesse sentido, ressaltamos que “Buena Compañía” dialoga com Aura, pois Felipe
e Alex são levados, pelas personagens femininas, a montar o quebra-cabeça de suas próprias
histórias. Felipe, influenciado por Consuelo, retoma as memórias de Llorente, resgatando,
com isso, as suas próprias memórias. Alex, por sua vez, também é submetido ao mesmo
processo e é levado por Zenaida e Serena a tomar consciência de sua condição, reconhecer a
sua história e preencher, portanto, as páginas de seu caderno que estavam em branco.
2.9.4 “CALIXTA BRAND”
Carlos Fuentes utiliza a temática de anjos para desenvolver o quarto conto de Inquieta
Compañía. O nome do narrador-personagem é Esteban, um mexicano que é casado com
Calixta Brand, uma americana por quem ele se apaixonou ainda quando eram estudantes
79
universitários. Inicialmente, Esteban revela dados de sua rotina de casado, afirma que ele
trabalha fora enquanto Calixta cuida dos afazeres da casa. Ele conta ainda que sua esposa, nos
tempos da faculdade, nutria o desejo de ser escritora. Porém, esse desejo foi esquecido após o
casamento e Calixta nunca mais havia tocado no assunto.
Certo dia, curioso, Esteban pergunta a ela se havia parado de ler e Calixta responde que,
além de ler, também estava escrevendo. Surpreso com a resposta, ele não esboça nenhuma
reação, porém, dentro de si, ele sente “inquietud incomprensible para mí mismo” (FUENTES,
2004, p. 130). Após essa revelação da esposa, o olhar de Esteban para Calixta muda, ele passa
a vigiá-la e percebe, incomodado, a extrema dedicação com que ela cuidava da casa e de seus
escritos. Tomado pela inveja, o narrador-personagem passa a considerar a sua esposa como
rival, o que o faz tentar esgotar todas as energias físicas dela, utilizando, inclusive, o sexo:
Desde ese momento convivieron en mi espíritu dos sentimientos
contradictorios. Por una parte, el alivio de saber que escribir era para Calixta
una profesión secreta, confesional. Por la otra, la obligación de vencer a una
rival incorpórea, ese espectro de las letras... La resolví ocupando totalmente
el cuerpo de Calixta. la confesión de mi mujer – “Escribo” – se convirtió en
mi deber de poseerla con tal intensidad que esa indeseada rival quedase
exhausta (FUENTES, 2004, p. 132-133).
Movido por sentimentos como a cobiça, obsessão e curiosidade, Esteban vasculha
secretamente os pertences de sua esposa com o objetivo de descobrir o que ela estava lendo e
escrevendo. Ao encontrar os manuscritos de Calixta, ele tem a seguinte atitude: “Al leer los
cuentos de Calixta [...] me asaltó una furia insólita, agarré los preciosos papeles de mi mujer,
los hice trizas con las manos, les prendí fuego [...]” (FUENTES, 2004, p. 134). Calixta, por
sua vez, não manifesta reação alguma e permanece em completo silêncio, o que deixa Esteban
ainda mais transtornado: “Ni yo comenté sus escritos ni ella me pidió mi opinión o la
devolución de las historias. Calixta, con este solo hecho, me derrotaba” (FUENTES, 2004, p.
135).
Com o casamento em crise, Esteban vai ao cemitério frequentemente para visitar o
túmulo de sua mãe e, em uma dessas vezes, ele pensa que sua esposa era quem deveria estar
morta no lugar de sua mãe. Ao chegar em casa naquele dia, o narrador-personagem descobre
que Calixta sofreu uma espécie de ataque e que, por causa disso, estava em coma.
Inicialmente, Esteban sente um misto de remorso e dúvida ao cogitar a possibilidade de ser o
culpado pela doença de sua esposa, afinal ele havia desejado a sua morte:
80
Yo no sé qué poderes puede tener el matrimonio morganático del deseo y la
maldición. Qué espantosa culpa me inundó como una bilis amarga de la
cabeza a las puntas de los pies, cuando regresé a la casa alumbrada [...] por
luces [...], las ambulancias ululantes y los carros de la policía (FUENTES,
2004. p. 143).
Contudo, passado esse primeiro momento, o remorso dissipa-se e, ao ver que Calixta
estava completamente debilitada e dependente, Esteban passa a agredi-la verbalmente e a
negligenciá-la, chegando até mesmo a ordenar que uma das empregadas da casa, uma
“jovencita indígena recién llegada de un pueblo de la sierra, atendía en silencio y con la
cabeza baja [...]” (FUENTES, 2004, p. 140), fizesse sexo oral nele e, em seguida, cuspisse o
sêmen no rosto de sua mulher. Nesse mesmo dia, Calixta recebe a visita de Pedro Ángel
Palou, um ex-professor seu, que decide contratar um enfermeiro que cuidasse dela e também
da casa e do jardim, espaços que Calixta tanto amava e que estavam morrendo da mesma
forma que ela. Nesse ponto, sublinhamos o sugestivo nome do ex-professor de Calixta (Pedro
Ángel Palou), homem que atua mesmo como um anjo, pois sua atitude de trazer o enfermeiro
para a casa colabora efetivamente para a “cura” da doente.
O enfermeiro era muçulmano e se chamava Miguel Asmá, cujos cuidados fazem com
que Calixta e o jardim resplandeçam lentamente e voltem a ganhar vida. Os empregados da
casa, encantados com Miguel, passam a chamá-lo de “santo”. Profundamente incomodado
com aquela situação e apesar de mostrar sinais de arrependimento ao notar a inexplicável
melhora de sua esposa, Esteban começa a considerar o enfermeiro também como um inimigo,
pois, segundo ele, Miguel era “seductor de la criada, aliado del jardinero, cuidador de mi
esposa, sentí que el tal Miguel me empezaba a llenar de piedritas los cojones.” (FUENTES,
2004, p. 153).
Até que, certo dia, Esteban se dá conta de que algo inquietante estava acontecendo, pois,
ao olhar para um enorme quadro da casa que estava sendo restaurado com a finalidade de
torná-lo mais nítido, ele percebe que ali se revelava a imagem de Miguel. Perplexo, Esteban
se lembra automaticamente do dia em que Calixta lhe presenteou com uma foto sua, dizendo
que sua imagem permaneceria na foto se ela morresse; porém, caso ocorresse o contrário, ou
seja, se ele morresse, seria a imagem de Calixta que desapareceria da fotografia. Esteban corre
imediatamente para ver a fotografía e tem a surpresa: “La imagen de mi mujer había
desaparecido. Era un puro espacio blanco [...]. Era el anuncio – lo entendí – de mi propia
muerte” (FUENTES, 2004, p. 160). Sem saber o que pensar diante da possibilidade de estar
81
morto, Esteban depara-se com a cena de Miguel ascendendo aos céus com Calixta em seus
braços. Desnorteado, o narrador-personagem somente tem tempo de lamentar profundamente
tudo o que fez contra Calixta e o não poder pedir perdão para ela.
Sobre o desfecho dessa narrativa de Carlos Fuentes, Javier Ordiz destaca ser uma das
cenas mais simbólicas de Inquieta Compañía, pois:
La imagen última del ángel musulmán llevándose en brazos al cielo a
Calixta, es una escena alusiva a una idea que Fuentes ha repetido en varios
foros en los últimos años: la del hermanamiento y comprensión entre
culturas, la necesidad de avanzar en esa ‘alianza de civilizaciones’ que
destierre la visión pesimista del ‘choque de civilizaciones’ como vía para
intentar superar el fanatismo y la intransigencia y lograr así que el mundo no
se siga poblando con fantasmas nacidos de la violencia (No prelo).
Ao colocar o enfermeiro Miguel como um anjo muçulmano que salva a americana
Calixta da morte, Carlos Fuentes propõe o apaziguamento entre essas culturas, que sempre
lutaram em lados opostos, ocasionando muita dor e mortes ao longo das décadas.
Do ponto de vista do fantástico, “Calixta Brand” apresenta-se como uma narrativa mais
alinhada com o tipo de fantástico mais tradicional, em que o sobrenatural se instala
paulatinamente e, em seu clímax, ocorre a morte do narrador-personagem. Outro aspecto
nesse sentido é a opção pelo foco em 1ª pessoa, o que imprime maior verossimilhança ao
relato. Há também a ambientação da casa, que possui um enigmático quadro que sempre
esteve na casa, apesar de sua imagem não estar nítida; o jardim também ganha destaque, pois
parece estar alinhado com o estado físico-mental de Calixta, dado que remete, inclusive, ao
jardim de “Tlactocatzine, del jardín de Flandes”. Fato essencial também é a caracterização das
personagens, principalmente a do enfermeiro Miguel, que desde o princípio é descrito com
palavras geradoras de duplos sentidos, como já exposto acima.
Ao ler “Calixta Brand”, recordamos imediatamente de uma entrevista de Carlos Fuentes
em que o autor declara que: “Las mujeres son las judías en Hispanoamérica. Son el Otro
preferido. Son el objeto preferido de la persecución, de la condena y del aislamiento”45.
Pensando nisso, percebemos que nessa narrativa transparecem críticas do autor ao
patriarcalismo e machismo presentes no México ainda hoje. Carlos Fuentes oferece a Calixta
“el poder de la palabra”, o poder se manifestar por meio da literatura. Ainda que punida por
45
Entrevista concedida a Willi Goetschel, Leslie Dunton-Downer e Cyrus R. K. Patell. In: HERNÀNDEZ, Jorge
(comp.). Carlos Fuentes: territorios del tiempo (antología de entrevistas). México: FCE, 1999, p. 80.
82
essa “transgressão” Calixta resiste e, mesmo imersa no silêncio imposto pelo machismo, sua
figura se engrandece diante de Esteban, confirmando-nos, mais uma vez, a essencialidade da
figura feminina na obra de Carlos Fuentes, pois é por meio delas que o autor faz com que as
demais personagens se dêem conta de aspectos até então não imaginados.
2.9.5 “LA BELLA DURMIENTE”
A quinta narrativa de Inquieta Compañía está dividida em oito partes, dispostas da
seguinte maneira: na primeira, um narrador conta, em 3ª pessoa, a história de Emil Baur; da
segunda até a sétima, Jorge Caballero é o narrador-personagem; na oitava e última parte, a
personagem Alberta é a narradora que mantém diálogo com seu esposo, Emil Baur.
Na 1ª parte, o leitor conhece um pouco sobre a vida de Emil Baur, um engenheiro
alemão que chega ao México em 1915 e envolve-se com questões relacionadas à Revolução
Mexicana, especialmente com Francisco Villa (Pancho Villa), pois acreditava poder derrotar
os Estados Unidos por meio de aliança entre o México da Revolução de 1910 e a Alemanha
de Hitler.
Com a derrota da Alemanha na Segunda Guerra Mundial, Baur decide visitar a
Alemanha e, ao tentar regressar para o México, é visto com desconfiança pelas autoridades
mexicanas por causa de sua simpatia pelo nazismo. Uma vez conseguido entrar novamente no
país latino-americano, Baur resolve se casar e para isso “se recluyó en una extraña mansión
neogótica o victoriana aislada en medio del desierto y mandó traer una esposa del grupo
menonita de Chihuahua” (FUENTES, 2004, p. 167). No dia de seu casamento, todos os
convidados são surpreendidos porque a noiva (Alberta Simmons) teve seu rosto totalmente
coberto por um véu negro durante toda a festa. Ao final, outro fato intrigou os presentes que
se perguntavam o motivo de Baur: “desde el edificio municipal de Terrazas, Baur llevaba
cargada en brazos a la recién casada. ¿No era ésta la costumbre reservada para el ingreso a la
recámara nupcial?” (FUENTES, 2004, p. 168-169). Desde esse dia, nunca mais ninguém viu
ou ouviu Alberta.
Na segunda parte do conto, o foco narrativo muda da 3ª para a 1ª pessoa. O médico
Jorge Caballero é o narrador-personagem que relata sua experiência insólita, vivida no ano de
1975 após atender ao chamado do engenheiro Emil Baur. Segundo Caballero, o engenheiro
83
precisava de um médico devido ao estado de sua esposa Alberta Simmons, que estava
enferma. Mediante o telefonema de Baur, Caballero revela que hesitou em atender, porém
ainda assim resolve ir porque “el juramento a Hipócrates me obligaba a emprender la ruta a la
casa” (FUENTES, 2004, p. 169). No caminho para a casa de Baur, o clima desértico provoca
no médico profundas reflexões sobre sua identidade, sua vida e sobre o passado mexicano:
Me sorprendí pensando, a lo largo de ese vago automatismo que procrea una
carretera larguísima en línea recta, que los espejos del desierto son reflejos
de la nada actual […] aunque bien podrían esconder la imagen perdida de
nuestro pasado más remoto […]. Cada noticia sobre mi vida se duplicaba y
hasta triplicaba en este trayecto a lo largo de un paisaje vacío que, por el
hecho de serlo, podía contener todas las historias imaginables, las de la vida
recordada y las de la vida olvidada, las de que fue y las de lo que pudo haber
sido [...] (FUENTES, 2004, p. 170).
Ao chegar na casa do engenheiro, Caballero depara-se com um casarão gótico e
sombrio, típico de narrativas fantásticas, e, uma vez dentro daquele ambiente, ele vivencia o
primeiro evento inexplicável: conduzido pelo engenheiro até o leito da mulher enferma, o
médico é aconselhado pelo marido a examinar apenas o pé da paciente. Caballero aproximase dela somente porque foi convencido por Baur: “Yo no sabía que hacer. Veía el pie desnudo
pero el cuerpo estaba oculto bajo los edredones. […] Toqué el pie asomado. Me incorporé,
aterrado. Había tocado hielo. Un pie blanco, sin sangre. Un pie muerto” (FUENTES, 2004, p.
176). Assombrado com aquela situação incomum, ele percebe que Alberta parecia reviver a
seu toque: “A mi tacto, poco a poco, regresó el color a ese pie helado. El color y el calor”
(FUENTES, 2004, p. 177). Em uma clara tentativa de racionalizar o fato, o médico afirma que
Alberta provavelmente sofria de alguma doença como “narcolepsia aguda” ou “cataplexia” e
que, por isso, seria preciso levá-la até um hospital. No entanto, sua lógica é mais uma vez
posta à prova no momento em que Baur argumenta que Alberta morreria caso saísse de sua
cama e que, sendo assim, ele deveria permanecer na casa, pois ela precisaria de cuidados
médicos.
Da mesma forma como ocorreu com os pés, Alberta demonstra ganhar vida também
quando Caballero toca seus cabelos: “Entusiasmado (lo admito ahora), sentado al filo de la
cama, recorrí el rostro dormido. Cada caricia mía parecía despertar de su sueño a la mujer. ¿Y
si rozaba tocaba sus labios, hablaría? ¿Y si rozaba sus ojos, los abriría?” (FUENTES, 2004, p.
180). Entusiasmado, porém apreensivo, o médico hesita ao intuir que estava dando vida à
Alberta, como um deus ou um bruxo.
84
Envolvido por todo esse ambiente, Caballero acaba mantendo relações sexuais com ela,
que o questiona sobre a veracidade de seu amor. Nesse momento, o médico nota a presença de
alguém atrás da cortina, dando a entender que provavelmente seria o esposo, que observava
tudo. Consumado o ato sexual, Baur revela ao médico que ele e Alberta eram fantasmas.
Segundo Baur, a verdadeira identidade de Caballero era Georg Reiter, médico responsável por
exterminar portadores de deficiências durante a Alemanha nazista. Sua ligação com Alberta
advém dessa época tempos, quando ele a conheceu em um campo de concentração e a escolhe
para trabalhar como empregada em sua casa. Entretanto, Caballero apaixona-se por Alberta e,
ao tentar salvá-la da morte (colocando seu nome na lista dos já então executados), é
descoberto, o que resulta no fuzilamento de ambos. Após ouvir toda essa história, Caballero
demonstra incredulidade e, para provar a veracidade de seu relato, Baur leva o médico até
uma lápide cuja inscrição grafava nomes, datas de nascimento e de morte dos dois amantes:
“ALBERTA SIMMONS 1920-1945 (e) GEORG VON REITER 1910-1945” (FUENTES,
2004, p. 208). Nesse momento, Alberta aproxima-se de Caballero, que termina sua exposição
com a seguinte afirmação: “Alberta y yo nos alejamos tomados de la mano. El desierto es
inmenso y solitario. Y ocupar un cuerpo vacío es vocación de fantasmas. Pasaron volando en
formación las aves del invierno” (FUENTES, 2004, p. 209).
A oitava e última parte do texto inicia-se com alguns questionamentos do alemão Baur
sobre a morte, o “resgate” de dois corpos de pessoas assassinadas (Caballero e Alberta
provavelmente) pelo regime nazista e sobre a responsabilidade dos alemães pelo Holocausto.
Na sequência, Alberta assume a narrativa como narradora-personagem e faz algumas
revelações sobre o modo como era tratada por Baur, seu esposo: “Eternamente sentada al lado
de Emir Baur en la sala de la mansión del desierto, supe, una vez más, que mi propia voz no
sería escuchada por mi marido. Yo era sólo el fantasma que servía de voz a otros fantasmas”.
(FUENTES, 2004, p. 210). Alberta afirma que Baur a tornou invisível e que o esposo a usaria
somente para “darle voz a sus espectros” (FUENTES, 2004, p. 210).
A narrativa termina exatamente com as mesmas palavras que começou, sugerindo o
caráter cíclico dos eventos nela narrados, como já observado em outros textos de Carlos
Fuentes: “En Chihuahua todo el mundo sabe el ingeniero Emil Baur [...]” (FUENTES, 2004,
p. 211). Esse desenlace não deixa claro se realmente Alberta havia sido morta ou se ela
exercia algum tipo de magia que possibilitasse a “conversa” com mortos, como dá a entender
o trecho acima. De qualquer forma, nenhuma das alternativas explica racionalmente ao leitor
85
os fatos insólitos narrados no texto, deixando-o diante da hesitação e dúvida, próprios da
literatura fantástica. É possível encontrar ainda em “La bella durmiente” ecos de textos de
outros autores. A cena em que Caballero encontra somente o pé de Alberta para examinar
dialoga, ainda que indiretamente, com o texto “O pé da múmia” 46, de Théophile Gautier.
“La bella durmiente” remete a temas presentes em outras narrativas de Fuentes. O
trecho em que Caballero sente que está sendo espionado por Baur durante relação sexual com
Alberta faz lembrar o momento em Aura e Felipe mantêm relações e este sente que está sendo
observado por Consuelo. A ideia do reencontro entre antigos amantes também reaparece em
diversos textos, como em “Tlactocatzine”, Aura, Constancia e em “La gata de mi madre”, por
exemplo. Sobre o fantástico, verifica-se a reiteração da manifestação do insólito através da
personagem feminina e da ambientação espacial da casa. Devemos destacar ainda a
disposição estrutural da narrativa, com diversos narradores, atrelada a seu desfecho, o que
favorece a instalação da ambiguidade no relato.
2.9.6 “VLAD”
O último conto de Inquieta Compañía chama-se “Vlad” e, como o próprio nome
antecipa, existe a presença de um vampiro na narrativa: Conde Drácula, personagem já
bastante explorada pela literatura fantástica. O narrador-personagem dessa história é Yves
Navarro, um mexicano casado, pai de dois filhos (um deles, falecido) e residente na Cidade
do México. Navarro inicia sua exposição contando ao leitor um pouco sobre sua vida familiar
e profissional. Segundo ele, seu casamento com Asunción era feliz e o casal mantinha uma
vida sexualmente ativa e satisfatória. Dessa união, eles tiveram dois filhos: Magdalena, uma
menina de 10 anos, e Didier, um menino morto aos 12, quando entrou no mar para nadar e
nunca mais foi encontrado. Sobre sua vida profissional: era advogado e trabalhava para o
velho e “influyente” Eloy Zurinaga, homem que “había dejado desde hace un año de salir de
su casa” (FUENTES, 2004, p. 215). Desde então, o chefe dava as ordens a seus empregados
por telefone e, embora não estivesse presente: “Nadie en el bufete se atrevió a imaginar que la
ausencia física del personaje autorizaba lasitudes, bromas, impuntualidades. Todo lo contrario.
Ausente, Zurinaga se hacía más presente que nunca” (FUENTES, 2004, p. 215).
A vida de Yves Navarro começa a se transformar depois que seu chefe pede para que ele
46
Conto pertencente ao livro La Peau de tigre, de 1852.
86
conseguisse uma casa na cidade para um amigo seu, o Conde Vladimir Radu. Ao falar sobre
esse amigo, Navarro percebe alarmado que seu chefe “titubeaba”, como se quisesse esconder
algo do narrador-personagem. Reforçando ainda mais a atitude suspeita, Zurinaga pergunta
pela esposa do narrador (indagação jamais feita antes) e, ao notar a perplexidade de Navarro,
o chefe justifica: “Qué feliz coincidencia [...] usted es abogado en mi bufete. Ella tiene una
agencia de bienes raíces. Albricias, como se decía antes. Entre los dos, el problema
habitacional de mi amigo está resuelto” (FUENTES, 2004, p. 222).
Um mês após a mudança de Vlad para a cidade, Navarro é convocado por ele até a sua
residência, onde o conhece. O narrador descreve o estrangeiro da seguinte forma:
Todo de negro [...] mocasines negros, sin calcetines. Unos tobillos
extremamente flacos, como lo era su cuerpo entero, pero con una cabeza
masiva, grande pero curiosamente indefinida, como si un halcón se
disfrazase de cuervo, pues debajo de las facciones artificialmente plácidas,
se adivinaba otro rostro que el conde Vlad hacía lo imposible por ocultar.
Francamente, parecía un fantoche ridículo. La peluca color caoba se le iba de
lado y el sujeto debía acomodarla a cada rato. El bigote [...] caído [...]
lograba ocultar la boca de nuestro cliente, privándolo de esas expresiones de
alegría, enojo, burla, afecto [...] los anteojos oscuros eran un verdadero
antifaz, cubrían totalmente su mirada, no dejaban resquicio para la luz, se
encajaban dolorosamente en las cuencas de los ojos [...] (FUENTES, 2004,
p. 232).
Excêntrica e bem humorada, a caracterização desse ser grotesco deixa entrever vários
indícios que anunciam o desfecho insólito da trama. A descrição que o narrador-personagem
faz de Vlad é ambígua, pois, ao mesmo tempo, ela revela e oculta a condição do anfitrião, a
qual somente Navarro não se dá conta. O vampiro busca sempre se disfarçar para atrair as
suas futuras vítimas: a esposa e a filha. Na verdade, o objetivo do conde era casar-se com a
menina tão logo ela crescesse e a mãe dela serviria apenas para saciar sua “fome”
momentânea. O fato de o narrador afirmar que o conde parece um falcão disfarçado de corvo
também é bastante sugestivo, pois ambos os substantivos referem-se, respectivamente, a um
animal que tem boa visão, garras fortes e vive da caça, e a outro animal também carnívoro,
relacionado, no imaginário popular, à noite e à morte, ou seja, características também
associadas ao vampiro, chamado de “caçador da noite”. Ainda no referido fragmento,
destacamos a expressão “fantoche ridículo”, utilizada pelo narrador para fazer menção ao
conde. Essa afirmação de Navarro soa irônica ao final da narrativa, pois há a revelação de
quem, na verdade, foi o “fantoche”: Navarro, manipulado todo o tempo por Zurinaga, por
Vlad e por sua esposa.
87
Em seu estudo intitulado “Los espacios de fantasia en ‘El mal del tiempo’ de Carlos
Fuentes”, Javier Ordiz assevera que esse disfarçar que explicita e o excessivo detalhamento
narrativo ganham tom de paródia no contexto da diegese:
Es llamativo el intento de Fuentes por detallar hasta el último resquicio de la
historia por medio de recursos como los papeles de Zurinaga o las
explicaciones, creo que innecesarias, que da el conde al protagonista, ya que
no es frecuente que el autor ofrezca tanta información al lector en contra de
su tónica habitual de elipsis narrativas y ambigüedad simbólica. Este hecho,
junto a la acumulación de los tópicos mencionados, nos pone sobre la pista
de esa intención paródica que parece presidir el tono del relato (ORDIZ, no
prelo).
Esse tom paródico adquire aspecto irônico no momento em que o conde justifica sua
escolha pelo México: “¡Y en México, una ciudad de veinte millones de nuevas víctimas [...]!
¡Una ciudad sin seguridad policiaca! ¡Viera usted los trabajos que pasé con Scotland Yard en
Londres! [...] ¡Veinte millones de sabrosas morongas!”(FUENTES, 2004, p. 274).
A atitude da esposa também ganha destaque na trama, uma vez que ela prefere entregar
a filha a Vlad e viver com ele a ser salva por seu esposo, minando, com isso, a crença do
narrador no amor romântico. Essa tomada de decisão de Asunción pode ser pensada como
uma espécie de crítica implícita do autor mexicano ao machismo. Como assinalado
anteriormente, Navarro ressalta, todo o tempo, que vivia uma excelente vida conjugal com
Asunción. No entanto, o leitor não pode comprovar se isso era verídico, já que temos apenas a
voz do narrador-personagem. Navarro e o leitor somente tomam conhecimento da insatisfação
de Asunción depois que ela decide ficar com Vlad: “Tu adorado, aburrido amor [...]. Tu
esposa prisionera del tedio cotidiano” (FUENTES, 2004, p. 280). Atitude esta tão mais
insólita quanto a própria presença do vampiro na narrativa. Asunción argumenta que escolheu
esse caminho porque: “Magdalena no va a morir [...]. El niño murió. La niña no va a morir
nunca. No volveré a pasar esa pena, nunca”; mais adiante: “Mi hija no va a morir. Por ella no
habrá luto. Magdalena vivirá para siempre” (FUENTES, 2004, p. 279). Ou seja, a esposa de
Navarro abre mão do casamento em favor de proporcionar “vida eterna” para sua filha, por
causa do enorme medo que ela tinha em perder outro filho novamente, ainda que ela soubesse
que Vlad apenas a aceitou “sólo mientras me sea útil” (FUENTES, 2004, p. 276). O vampiro,
aliás, comenta com Navarro sobre a decisão de Asunción em tom de escárnio: “[...] Me he
alimentado de ella mientras la niña crece. No quiero retenerla mucho tiempo. Sólo mientras
me sea útil. Francamente, no veo qué le encuentra usted de maravillosa. Elle est une femme de
88
ménage!”(FUENTES, 2004, p. 278, grifo no original). Dessa forma, se para Navarro,
Asunción era uma excelente esposa e mãe, para Vlad, ela não passa de uma mulher comum,
que servia apenas para cuidar da casa, nada mais.
Por um lado, se atitude de Asunción surpreende o leitor, por outro, a passividade de
Navarro também não deixa por menos. Diante da negativa de esposa e filha em tentar fugir
com ele, Navarro aceita prontamente seu “destino”. No principio, ele até esboça alguma
reação, porém logo esmorece. A revelação da infelicidade e infidelidade de Asunción faz com
que ele desista também da filha, a menina Magdalena. Por isso, tanto a atitude da Asunción
como a de Navarro colocam fim às expectativas que o leitor porventura possa nutrir sobre um
desfecho feliz para a história, descartando, assim, a ideia de que o amor matrimonial e filial
tudo supera.
Pensando a narrativa do ponto de vista do fantástico, Carlos Fuentes constrói um enredo
que retoma a lenda do Conde Drácula, porém ambientada na Cidade do México. Na esteira
disso, o autor utiliza aspectos característicos da literatura fantástica produzida no século XIX
que são amplamente encontrados em seus mais diversos textos. Nesse sentido, temos o foco
narrativo em primeira pessoa, a personagem feminina que se relaciona com o insólito, a
ambientação espacial com alusões diretas ao sobrenatural (escuridão, caixões, ralos, etc.), a
presença de um vampiro grotesco e caricato, e até mesmo a menção a existência de um duplo,
implícita na figura de Zurinaga e Vlad:
Una mañana entró y media hora más tarde salió de la oficina una figura
idéntica al jefe. Supimos que no era él porque durante esa media hora
telefoneó un par de veces para dar instrucciones. (…) Cuando la figura salió
vista de espaldas era idéntica a la del ausente abogado (FUENTES, 2004, p.
215).
O autor mexicano também inova, ao agregar elementos distintos a seu texto, como a
paródia e a ironia. O desfecho inesperado da narrativa igualmente surpreende o leitor, ao
apresentar um final ambíguo, que deixa margem para diversas interpretações.
Para finalizar, salientamos que uma leitura desse conto tendo como horizonte o universo
mexicano certamente amplia seu leque de significações interpretativas. Com “Vlad”, Carlos
Fuentes conseguiu demonstrar sua capacidade em trilhar diferentes caminhos da literatura
fantástica, ao produzir narrativas consideradas mais complexas e eruditas (Cumpleaños, por
exemplo) e também narrativas avaliadas como “simples”, se comparadas a experimentalismos
89
anteriores.
Ao final do segundo capítulo deste trabalho, é possível apontar algumas características
que delineiam continuidades ou reiterações nas narrativas fantásticas brevemente analisadas: a
manifestação do fantástico como desestabilizador de uma realidade baseada em discursos
racionalistas e unívocos, que tem como representantes homens ligados ao universo
acadêmico-científico (historiadores, médicos, arquitetos, advogados); a revelação de duplos,
seja em nível temático (Aura-Consuelo, por exemplo), seja em nível estrutural do texto, como
a oscilação de tipos de narradores em Instinto de Inez ou ainda as variações no ponto de vista
(Toño-Bernardo); a presença de personagens pertencentes a grupos minoritários, como
indígenas (Chac Mool) e exilados políticos (Plotnikov e Constancia), que, na maioria das
vezes, se relacionam como o insólito; o desenrolar da trama em casarões ambientados de
maneira a dialogar com a caracterização das personagens e sua relação com o insólito
(“Tlactocatzine” e Aura, por exemplo); a escolha por personagens femininas marcadamente
ambíguas, reveladoras do sobrenatural (Carlota, Aura, Nuncia, Constancia, Inez, Alberta,
entre outras); a valorização da memória e o movimento de volta às origens, como visto em
“Tlactocatzine”, Aura, “Constancia”, Instinto de Inez e “Buena Compañía”; e, para concluir, o
surgimento de seres sobrenaturais, como fantasmas (Lala-Alberta), anjos (Miguel Asmá),
vampiros (Vlad) e divindades (Chac Mool-La Desdichada).
A seguir, buscaremos aprofundar nossas considerações analisando a novela Constancia,
de 1990.
90
3.
CONTINUIDADES
E
REVELAÇÕES
DO
FANTÁSTICO
EM
CONSTANCIA
Abro la puerta del silencio.
Abro la puerta al silencio.
(Constancia, FUENTES, 1991, p. 59).
Diferentemente da maioria de seus textos em que o México e o mexicano são
privilegiados, em Constancia, Carlos Fuentes apresenta nova ambientação geográfica, os
Estados Unidos e a cidade de Savannah (Geórgia) é o espaço escolhido para o surgimento do
sobrenatural. O enredo dessa narrativa está centrado em três personagens: Whitby Hull,
médico americano de 69 anos, entusiasta por ficções policiais e seus quebra-cabeças;
Constancia, esposa deste há mais de 40 anos, é uma andaluza misteriosa e portadora de uma
cultura popular; e Plotnikov, ator russo que se tornou vizinho do casal depois que se exilou no
país americano. Hull é o narrador-personagem da história. Ele relata ao leitor a experiência
insólita que viveu após uma série de acontecimentos e coincidências inexplicáveis entre seu
vizinho e sua esposa, que trouxeram à tona a real ligação entre ambos: eles, na verdade, eram
marido e mulher e juntos atravessaram o incompreensível: a morte. A partir desse enredo,
propomos uma análise que objetiva investigar as continuidades e revelações do fantástico em
Constancia. Refletiremos em que medida os elementos do fantástico, presentes nas demais
narrativas de Carlos Fuentes anteriormente analisadas, são reiterados em Constancia.
Buscaremos também apreciar esse corpus literário levando em consideração as suas
peculiaridades, ou seja, quais foram as soluções encontradas pelo autor para arquitetar sua
narrativa insólita.
Segundo estudiosos da literatura, a preferência pelo narrador em 1ª pessoa na narrativa
fantástica contribui para imprimir maior credibilidade ao relato, já que, por se tratar de uma
experiência pessoal, o narrador-personagem a narra com maior autoridade, o que confere
maior veracidade a sua história, ainda que se trate de algo sobrenatural. No entanto, ao mesmo
tempo que esse tipo de narrador agrega credibilidade, ele também traz maior subjetividade,
pois apresenta uma visão limitada dos eventos, dos pensamentos e das percepções das demais
personagens. Essa limitação é fundamental para a narrativa fantástica porque auxilia na
criação de uma atmosfera de ambiguidade e dúvida no texto, desencadeando o suspense e
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colaborando para a manutenção do mistério dentro da narrativa.
Na esteira do que postulou T. Todorov e F. Furtado, Remo Ceserani, ao refletir sobre
esse tipo foco narrativo, considera que o uso da 1ª pessoa é uma característica comum aos
textos fantásticos, porque esse recurso tem como objetivo explicitar a presença dos narradores
e dos narratários, sujeitos literários que “ativam e autenticam ao máximo a ficção narrativa, e
estimulam e facilitam o ato de identificação do leitor implícito com o leitor externo do texto”
(CESERANI, 2006, p. 69). Em Constancia, isso pode ser observado por meio do registro do
insólito na modalidade escrita e em 1ª pessoa, explicitando tanto o narrador quanto o
narratário:
El lector de estas notas apresuradas que reúno con el sentimiento confuso de
que si no lo hago ahora pronto será demasiado tarde, debe entender que
cuando hablo de ver o visitar el señor Plotnikov, en realidad quiero darle
categoría formal y sentido de cortesía a lo que no pasa de ser una serie de
encuentros casuales (FUENTES, 1991, p. 14, grifo nosso).
O trecho anterior exemplifica o que teorizou Ceserani anteriormente, ou seja, por meio
do jogo ficcional, o narrador-personagem de Constancia explicita seu narratário (“lector”), faz
com que este se aproxime dele e de seu relato, reconheça-os como pertencentes a um universo
possível para que, posteriormente, juntos compartilhem da hesitação e da incerteza diante dos
eventos narrados. Essa aproximação não é gratuita, uma vez que Hull fala diretamente a seu
“lector” cujo objetivo é convencê-lo da veracidade de sua história, o que favorece a
identificação do leitor empírico com o leitor interno da narrativa e possibilita maior impacto
diante da revelação do insólito.
Constancia desconcerta o leitor desde suas primeiras linhas. Hull, sabendo o desenlace
da trama, o narrador-personagem, no presente da narração e por meio do discurso indireto,
inicia seu relato com a seguinte afirmação de Plotnikov: “El viejo actor ruso monsieur
Plotnikov, me visitó el día mismo de su muerte. Me dijo que pasarían los años y que yo
vendría a visitarle a él el día de mi muerte” (FUENTES, 1991, p. 11). Com isso, o leitor é
convidado a montar o quebra-cabeça, iniciado por uma série de questionamentos sobre como
seria possível que Plotnikov saiba o dia em que irá falecer e, caso ele fosse um provável
suicida, como poderia saber que, no dia de sua morte, Hull o visitaria. Com essa declaração de
Hull, as dúvidas são lançadas e a única certeza que o leitor tem é a de que o desconhecimento
do dia da própria morte é uma das coisas que mais incomoda o ser humano. Esse não-saber
coloca a todos frente à sua limitação de abrangência do futuro e enfatiza a ideia de que,
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mesmo com a “evolução” da espécie humana e de tantas tecnologias, não é possível ter acesso
a tudo.
Ainda sobre essa frase que principia a narrativa de Carlos Fuentes, vale ressaltar que o
autor mexicano se confessa admirador da literatura de Franz Kafka. Nesse sentido, constata-se
um diálogo entre o início desta obra e o modo de contar kafkaniano de A Metamorfose, pois,
em ambas as narrativas, o insólito é revelado já em suas primeiras linhas. Com essa técnica,
consegue-se envolver o leitor que, embora já “saiba” um pouco sobre o desfecho da trama,
permanece atento à leitura, porque foi envolvido pela dúvida e, principalmente, pela
curiosidade de desvendar o enigma apresentado.
Após inserir o leitor no mistério, o narrador de Constancia modaliza o que havia dito
Plotnikov, “No entendí muy bien sus palabras”, e desvia imediatamente o foco de sua
narração para a descrição da cidade de Savannah, lugar cujo clima entorpece e onde ocorrerá
o sobrenatural: “El calor de Savannah en agosto es comparable a una siesta intermitente
interrumpida por sobresaltos indeseados: uno cree que abrió los ojos y en realidad sólo
introdujo un sueño dentro del otro” (FUENTES, 1991, p. 11). Essa atitude de Hull visa
restituir a “normalidade” à narrativa por meio da exposição de elementos do cotidiano, ainda
que ele aproveite para acrescentar outros dados que antecipem o sobrenatural, como, por
exemplo, a ideia de viver em uma cidade cujo clima produz uma permanente sensação de
estar em uma realidade irreal, em uma espécie de sonho perpétuo.
Criar a impressão de realidade cotidiana e “normal”, convencer o leitor disso e depois
destruir essa percepção é uma das técnicas do fantástico, conforme argumenta Todorov:
Primeiro, é preciso que o texto obrigue ao leitor a considerar o mundo das
personagens como um mundo de criaturas vivas e hesitar entre uma
explicação natural e uma explicação sobrenatural dos acontecimentos
evocados. A seguir, esta hesitação pode ser igualmente experimentada por
uma personagem (2007, p. 38-39).
Segundo o autor, é preciso que o leitor reconheça o que está lendo como possível para
que a revelação do sobrenatural seja mais impactante. Ainda sobre a construção desse
universo cotidiano que será colocado em xeque, provocando a desestabilização do leitor,
assinala Ceserani: “O conto fantástico envolve fortemente o leitor, leva-o para dentro de um
mundo a ele familiar, aceitável, pacífico, para depois fazer disparar os mecanismos de
surpresa, de desorientação, de medo” (2006, p. 71).
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Na novela de Carlos Fuentes, não se percebe inicialmente nenhum desconcerto nas
palavras de Hull ao introduzir a narrativa com a fala de Plotnikov. Pelo contrário: o narradorpersonagem busca “normalizar” o seu relato, como vimos, e o faz por meio da frase referida
anteriormente. Ele somente demonstra alguma inquietação com o decorrer de sua exposição,
“disparando mecanismos” de suspense que fazem o leitor voltar a seu estado de alerta:
Entré, a pesar mío, a mi casa. Quería comunicarle lo ocurrido a mi esposa.
Lo dicho por monsieur Plotnikov me incomodó, aún más que el hecho
insólito de que sus palabras me impulsaran a interrumpir la siesta de
Constancia. Pasé por encima de esta prohibición tácita, tal era el remolino de
malestar provocado en mi ánimo por el vecino ruso. Pero mi sorpresa
aumentó cuando me di cuenta de que Constancia no estaba en su cama y que
nadie había dormido la siesta en ella (FUENTES, 1991, p. 21).
No fragmento acima, Hull utiliza diversas palavras e expressões que exteriorizam a sua
inquietação (“me incomodó”, “malestar”, “mi sorpresa aumentó”), usando, inclusive, um
sinônimo para fantástico: “insólito”.
“Incomodado” com o que lhe dissera Plotnikov, Hull decide interromper a sesta de sua
esposa pela primeira vez desde que se casaram, porque, também pela primeira vez, algo fora
da normalidade havia ocorrido, ou melhor, estava para ocorrer com seu vizinho. O fato de
chegar em casa e não encontrar Constancia dormindo reforça a surpresa do narrador, que, a
partir desse momento, começa a se questionar sobre a postura dela e sobre as certezas que a
rotina do casamento lhe proporcionava: “Tuve entonces [...] una súbita conciencia de la
extrañeza de la vida que Constancia y yo vivimos durante cuarenta años, una vida tan normal,
sin sobresaltos reales” (FUENTES, 1991, p. 55). Essa ruptura na ordem cotidiana faz com que
o narrador-personagem comece a pensar em uma possível ligação entre a enigmática fala de
Plotnikov e o desaparecimento de Constancia, o que colabora para a ampliação da dúvida e do
suspense na narrativa. Sobre a construção do suspense em narrativas fantásticas, Olea Franco
afirma:
Los personajes no se percatan de inmediato y con nitidez de la naturaleza
extraña del suceso en que se funda lo fantástico, pues ello atentaría contra el
suspenso propio del género. La constante presencia de este último rasgo
induce a sugerir que se sustituya la idea de vacilación como uno de los
probables ejes del género, por la del suspenso, categoría ésta que alude a la
construcción del texto (2004, p. 43).
Pensando no que disse o teórico mexicano, percebemos que Hull não se dá conta,
inicialmente, do mistério que o rodeou por tantas décadas. Até então, ele jamais havia se
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indagado o porquê de sua esposa nunca querer aprender inglês e nunca ter estabelecido
amizade com ninguém, mesmo após tantas décadas de estadia nos Estados Unidos.
A preferência de Hull em registrar seu relato por meio da modalidade escrita também
deve ser observada, pois é um aspecto importante para a narrativa. Além de levar o leitor
empírico a se identificar com o narratário interno, podemos pensar que, ao escrever seu relato
em notas “apressadas”, Hull expressa sua tentativa desesperada de compartilhar a sua história,
com o objetivo de eternizá-la e, consequentemente, deslocá-la do passado para o presente a
cada leitura. Hull parece não querer o mesmo fim de Constancia e sua família, que, após
serem assassinados pelo regime franquista, foram apagados pelo Tempo e pela História, já que
ninguém os reclamou, não houve lembrança nem rastro deles e o que restou foram apenas
alguns papéis avulsos em um cartório da Espanha, resgatados pelo americano somente porque
ele estava envolvido diretamente. Essa atitude do americano deixa transparecer o desejo de
que seu leitor o resgate da morte do esquecimento, dando-o “un poco más de vida, aunque tú
sólo la llames recuerdo” (FUENTES, 1991, p. 74), afinal “un muerto vive de la caridad del
recuerdo [...]” (FUENTES, 1991, p. 43). Recordar para não morrer, porque os mortos não
recordados estão mortos duplamente: corpo e memória. Isso justifica, em certa medida, as
diversas idas das personagens ao cemitério, cuja finalidade é recordar seus mortos:
Una vez […] encontré [Plotnikov] en el cementerio donde a veces voy a
visitar a mis antepasados. […] Le pregunté si tenía deudos aquí. Se rió,
murmuró, sin mirarme, que nadie piensa en los muertos de hace cincuenta
años, no, ni veinte, ni diez años dura la memoria de un muerto... Se fue
caminando lentamente. No me dejó decirle que yo era la prueba en contrario.
Visito y recuerdo a dos siglos de muertos (FUENTES, 1991, p. 15).
O ato de Hull registrar a sua memória por escrito coloca em evidencia a necessidade de
escrever para não ser esquecido, como sinônimo de se fazer existir, pois, sem isso, “ni diez
años dura la memoria de un muerto”, como salienta o trecho acima. Essa hipótese pode ser
confirmada por uma das cenas mais representativas da novela, momento em que Hull entrega
lápis, caneta e papel à Constancia e sua família para que eles se comuniquem com alguém,
“caso ocorresse algo”. Atitude que, aliás, sugere a possibilidade de Constancia e seus mortos
reescreverem a sua “história” e marcarem seu nome na História, agregando a esta parte das
vozes de quem não teve a oportunidade de se expressar. Nesse sentido, tanto em Constancia
quanto em outras narrativas fantásticas de Carlos Fuentes, evidencia-se um contínuo desejo do
autor em desconstruir o discurso histórico escrito pelos “vencedores”, ou seja, o mexicano,
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por meio de sua literatura, busca resgatar personagens silenciadas, delegando-lhes voz para se
expressarem.
A segunda possibilidade interpretativa no que se refere à opção do narrador pelo registro
escrito está relacionada à sua paixão por livros, especialmente por narrativas policiais. Muito
além de apenas ler esses romances, Hull incorpora os elementos ficcionais à sua vida e acaba
mesclando realidade e ficção, como uma espécie de Dom Quixote:
Por ejemplo, cuando [Constancia] regresa hacia las seis de la tarde a la casa
de la calle Drayton, yo lo primero que noto – viejo lector de novelas
policiales – es que las puntas de los zapatos de Constancia están cubiertas de
polvo. Y lo segundo que noto, en la mejor tradición sherlockiana, es que la
tierra roja – apenas finísima película – que cubre las puntas viene de un lugar
que conozco de sobra [...] (FUENTES, 1991, p. 25).
Diante da atitude suspeita de sua esposa, o narrador-personagem passa de observador a
investigador ao se dar conta de que algo enigmático envolvia a sua vida e, a partir desse
momento, ele começa a buscar pistas que possam auxiliá-lo na elucidação do mistério:
“Tengo sesenta y nueve años y la cabeza llena de enigmas sin resolver, de cabos que no atan
[...] Lector de novelas policiales, mi lógica me ilumina” (FUENTES, 1991, p. 65). Da mesma
maneira como o Quixote que, depois de ler tantos romances de cavalaria, acredita ser um
cavalheiro “andante”, Hull, após ler tantos romances policiais, crê ser um detetive:
Yo estoy deduciendo, me advierte una lógica elementar, que el actor ruso
murió sólo porque él me lo anunció primero, en seguida porque esos signos
– luces prendidas, luces apagadas, malestar de Constancia – se impusieron
en mi ánimo con un valor simbólico. De allí – confusión causa y efecto –
concluí que el mal de Constancia tenía que ver con la supuesta muerte de
Monsieur Plotnikov (FUENTES, 1991, p. 28).
O americano demonstra certo entusiasmo com a possibilidade de desvendar um enigma
concreto, porém ele logo exterioriza certo desconforto ao perceber que esse evento peculiar
poderia acabar com a sua apreciada rotina: “Sonreí, suspiré, y me di cuenta de otras cosas que
mis días de ocio profesional, lentos y despreocupados como el flujo del río hacia el océano,
habían quizás disipado” (FUENTES, 1991, p. 28).
Analisando essa postura detetivesca do narrador tendo em vista o fato de ele conhecer o
desenlace da trama de antemão, cremos que, ao optar por escrever o que viveu, é como se
Hull, após ler tantos romances policiais, encontrasse em sua experiência insólita a
oportunidade de escrever a sua própria história policial. Dessa forma, assim como Hull
buscou desvendar os mistérios das narrativas que leu, ele parece almejar que seu leitor adote a
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mesma postura perante seus escritos, ou seja, procure solucionar o enigma, utilizando,
inclusive, as pistas deixadas por ele durante toda a sua narração.
A escolha pelo registro escrito, portanto, desencadeia o efeito de ficção dentro da ficção,
pois Hull, ao ler textos policiais, entra no jogo ficcional proposto por seus narradores. No
momento em que passa de leitor a narrador-personagem de uma história misteriosa, ele decide
registrá-la, com o intuito de que seu leitor também deseje elucidar o seu enigma, resgatando o
seu relato de um possível vazio temporal. Em outras palavras: ao ler narrativas policiais, o
narrador-personagem de Constancia se identifica com os narratários desses romances;
posteriormente, ele busca, por meio de seus artifícios narrativos, fazer com que seu leitor
também se identifique e entre no jogo narrativo proposto por ele através de seus escritos. Por
essa perspectiva, mais do que “se identificar” com o narratário, o leitor de Constancia deve
assumir um duplo papel: reavivar as memórias de Hull por meio da leitura e tentar desvendar
os enigmas propostos por ele durante toda a narrativa. Diante disso, o leitor se vê obrigado a
participar ativamente da construção do texto, por meio da tentativa de chegar a suas próprias
conclusões a respeito das lacunas deixadas pelo narrador, como já salientou Carlos Fuentes:
“El lector está presente en el sentido en el que no diré todo lo que tengo que decir. Dejaré una
puerta abierta, para que el lector pueda completar y colaborar conmigo en la creación de la
novela”47.
A atmosfera de mistério é intensificada em Constancia por meio do emprego de elipses
ao longo da narrativa, nos momentos em que Hull omite palavras ou frases que, embora
possam ser subtendidas pelo contexto, deixam o leitor em suspense, pois “no momento
culminante da narração, quando a tensão está alta […], e é forte a curiosidade de saber, se
abre de repente sobre a página um buraco branco, a escritura povoada pelo não dito”
(CESERANI, 2006, p. 74). Como exemplo, citamos um trecho retirado de um dos momentos
mais enigmáticos da narrativa, instante em que Constancia, durante uma espécie de sonhodelírio com o protagonista de A metamorfose de Franz Kafka, declara: “Estoy soñando que...
el insecto pide piedad y nadie se la da, sólo yo, sólo yo me acerco y lo...” (FUENTES, 1991,
p. 49). Nesta passagem, o vazio narrativo deixado por Constancia consegue provocar a
imaginação de Hull e também do leitor, já que ela somente revela algumas partes de seu
47
Declaração de Carlos Fuentes. Trecho retirado de entrevista concedida a Marie-Lise G. Gautier. In:
HERNÀNDEZ, Jorge (comp.). Carlos Fuentes: territorios del tiempo (antología de entrevistas). México: FCE,
1999, p. 150.
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sonho, fato que, por si só, desperta o sentimento do excepcional.
Como citado anteriormente, verifica-se um diálogo entre Constancia e A Metamorfose
de Franz Kafka. Esse diálogo fica ainda mais evidente durante o decorrer do texto de Carlos
Fuentes, principalmente nos momentos em que Constancia, ao ler o referido livro do autor
tcheco, identifica-se com o protagonista Gregor Samsa e sente compaixão por ele, o que a faz,
inclusive, mesclar realidade e ficção:
Así inició su lectura de Kafka y a ella se dedicó con ahínco, repasando los
libros una y otra vez, viajando de la biografía a la ficción y encontrando, al
cabo, que no había más biografía que la ficción; aceptando, pues a Kafka
como Kafka quería ser aceptado, como un hombre sin más vida que la
literatura (FUENTES, 1991, p. 40-41).
Conforme o fragmento em destaque, Kafka não teria vida para além do universo
ficcional, ou seja, ele seria um homem “sin más vida que la literatura”. Constancia, por esse
ponto de vista, compartilha da mesma situação que Kafka: a andaluza também não tem mais
vida/biografia que a ficção de seu casamento com Hull, por isso a identificação com Kafka. É
essa união fictícia entre ela e o americano que nutre a sua biografia, seu lado esposa de
Plotnikov: “¿Cuánto tiempo estuviste, Constancia, llevándoles vida – mi vida – a tus
muertos?” (FUENTES, 1991, p. 75). Biografia e ficção, realidade e não-realidade: é difícil
delimitar em que ponto começa uma e termina a outra. Estão imbricadas, conforme o discurso
fantástico deixa entrever.
Outro momento significativo de lacuna narrativa que provoca uma série de dúvidas no
leitor se dá quando Hull faz a seguinte declaração sobre Constancia: “Dormía horas
imprevistas. Es cuando, antes de dormir, decía: – Voy a soñar que... o, al despertar, anunciaba:
– Soñé que...” (FUENTES, 1991, p. 48). Neste fragmento, a utilização da perífrase verbal de
futuro imediato “voy a soñar que” causa estranhamento e suscita questionamentos, já que não
é comum que alguém consiga saber de antemão o que irá sonhar. Da mesma forma que a
perífrases, os vazios narrativos deixados pelas reticências na fala de Constancia também
causam dúvidas, porque o leitor não consegue saber se realmente a andaluza não revelava
seus sonhos a seu esposo ou se este, conhecendo-os, preferiu ocultá-los do leitor, colocando
em suas notas somente o que lhe interessava. Esse momento de vazio corrobora o que afirma
Olea Franco: “Quien se propone construir un relato fantástico tiene que incluir y al mismo
tiempo ocultar sabiamente los indicios que apuntan hacia la solución” (2004, p. 37). Isso é
justamente o que faz o narrador-personagem de Constancia: Hull, conhecendo
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antecipadamente o desenlace da história, joga com a memória e manipula o que será narrado
em sua história de modo a ora mostrar e ora ocultar o sobrenatural. É preciso levar em conta,
no momento de ler a narrativa, essa manipulação, pois, embora as falas de Constancia e de
Plotnikov apareçam predominantemente por meio do discurso direto, elas são filtradas pelo
crivo do narrador, que registrou em suas notas somente o que lhe parecia conveniente. Dessa
forma, essas elisões na narrativa fantástica funcionam como multiplicadores de incertezas,
intensificam a curiosidade do leitor e o convidam a completar esses vazios deixados pelo
narrador.
Também chama a atenção do leitor a atitude de Constancia após os desentendimentos
com Hull, momentos em que ela se trancava por horas a fio em uma espécie de quarto de
orações da casa: “Gritó, corrió a encerrarse a su recámara, no me dejó entrar y permaneció
allí, sin comer, sin beber, más de veinticuatro horas” (FUENTES, 1991, p. 35). Esse lapso
temporal produz uma série de perguntas sobre o que Constancia fazia trancada nesse
ambiente, ou como ela poderia ficar tanto tempo sem comer ou beber. Na tentativa de
responder a si mesmo, Hull relaciona essas fugas de sua esposa com a sua “morte passageira”,
o que aumenta ainda mais a dúvida do leitor: “Constancia, dime, ¿cuántas veces has muerto
antes...?” (FUENTES, 1991, p. 33). Algumas páginas depois, o narrador-personagem reflete:
¿Había muerto Constancia cada vez que huía de mí y se encerraba un día
entero en su recámara, antes de bajar, renovada, radiante, a conciliarse, jugar
y adelantar nuestro amor que se hubiera muerto de pura perfección, de pura
lejanía, de pura sospecha, de pura incomprensión [...] a no ser por estos
incidentes? (FUENTES, 1991, p. 41).
No fragmento acima, o narrador, na tentativa de entender o mistério, aproxima morte e
renovação, duas ideias pertencentes a campos semânticos, aparentemente, paradoxais
conforme a lógica de realidade comumente aceita. Poderíamos pensar que se trata da “lógica
de la conyunción” criada pela narrativa fantástica, ou seja, ocorre a junção de contraditórios,
de elementos excludentes, segundo a percepção de mundo cotidiano predominante (OLEA
FRANCO, 2004, p. 63).
Pensando ainda no trecho destacado, chamamos a atenção para a ambiguidade gerada
no contexto da narrativa pelo emprego dos verbos “morir” e “jugar”. Sobre o primeiro, o
leitor interpreta-o inicialmente tendo em vista o seu sentido conotativo, de que Constancia
“morria” de desilusão todas as vezes que discutia com o esposo. No entanto, com o decorrer
da novela, o leitor intui a ambiguidade das palavras de Hull e começa a considerar o sentido
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denotativo de tal afirmação, ou seja, Constancia morria, literalmente, a cada discussão com
seu esposo. O desenlace da narrativa leva o leitor completar a lacuna produzida por essa
elisão, fazendo-o pensar que Constancia passava esses períodos de reclusão na casa vizinha,
junto seus mortos, o senhor Plotnikov e o filho do casal. Contudo, isso permanece somente
como hipótese, já que não se consegue saber o que ocorria exatamente com a andaluza
durante essas ocasiões.
O emprego do verbo “jugar” sugere, igualmente, a ambivalência de significado e
podemos interpretá-lo como sinônimo de “divertir-se/entreter-se” ou no sentido de manusear
estratégias com a finalidade de conseguir algo. Pela ótica do primeiro significado, podemos
pensar que Constancia voltava feliz aos braços de Hull por causa da reconciliação após a
desavença. No entanto, a colocação desse verbo tendo em vista o desfecho da narrativa abre
margem para considerarmos a segunda opção: a reconciliação com Hull seria uma estratégia
que Constancia utilizava para “sobreviver” e levar “vida a sus muertos”, já que a narrativa
deixa entrever que eles dependiam do americano: “¿Cuánto tiempo estuviste, Constancia,
llevándoles vida – mi vida – a tus muertos?” (FUENTES, 1991, p. 75).
Considerando a elipse por um ponto de vista mais amplo, verifica-se que a própria
história da protagonista parece estar envolta, para Hull, em um grande vazio de informações.
Constancia consegue omitir de seu esposo, por quatro décadas, sua condição existencial, de
“fantasma” e de esposa do ator russo. Sempre fascinado por narrativas policiais, o americano
não percebe que, a seu lado, ocorria algo muito mais misterioso do que os desenvolvidos
pelas ficções que lia. Ele somente se dá conta disso após a revelação de Plotnikov e o
desaparecimento de sua esposa:
Algo escapa a mi inteligencia este atardecer de agosto en que el señor
Plotnikov me ha anunciado su muerte y me ha pedido que yo la corresponda
visitándolo el día de la mía. Y lo que me escapa es lo esencial: ¿qué me
quiere comunicar Constancia con todos estos movimientos insólitos en un
día tan particular? (FUENTES, 1991, p. 26).
Tomado pela curiosidade e imerso em dúvidas, Hull decide elucidar os fatos e acaba
descobrindo que todos (o ator, Constancia e ele próprio) estavam inseridos em um grande
enigma, que não poderia ser explicado nem pela ciência e nem por nenhum detetive dos
romances que ele lia. Diante da instauração do insólito e da impossibilidade de solucioná-lo
racionalmente, Hull vê suas crenças racionalistas serem minadas por essa outra realidade que
se impõe. Atordoado, ele coloca em dúvida a sua identidade e, até mesmo, a sua existência:
100
¿Fui alguna vez el doctor Whitby Hull, natural de Atlanta, Georgia,
estudiante de medicina en Emory, [...] casado con española, arraigado de
vuelta en Savannah, mirando al Atlántico, cirujano, hombre de letras,
hombre apasionado, hombre secreto, hombre culpable? […] ¿Fui alguna vez
un joven médico sureño estudiando su postgrado en Sevilla? (FUENTES,
1991, p. 53)
Nesse sentido, o que afirma Ceserani ajuda-nos a compreender melhor a caracterização
dessa personagem:
[...] os protagonistas são muitas vezes médicos ou cientistas, dotados de
uma dedicação oitocentesca pela sua ciência e os seus paradigmas de juízo,
os quais vêm postos em confronto com personagens de outra natureza,
artistas, visionários, viajantes fantásticos, e são levados pelo contato e pela
experiência perturbadora a redescobrir dentro de si, e através dos eventos
vividos ou narrados, formas de conhecimento ou sensações pertencentes a
modelos culturais até então abandonados (2006, p. 104).
Hull, um médico enraizado na crença de uma profissão bem sucedida e de um
casamento sólido, por meio do contato com Constancia e Plotnikov, vê surgir diante de si
outra realidade, até então, embora presente, desconhecida. Trata-se do desconhecimento de si
para (re)conhecer o Outro, que, embora estivesse tanto tempo a seu lado, ainda permanecia
como um estranho. Nesse ponto, vale salientar que esse trecho de Constancia evidencia
diversas continuidades temáticas do fantástico de Carlos Fuentes: o fantástico como
desestabilizador de crenças enraizadas e tomadas como certas; a relação de personagens
marginalizados com o sobrenatural e, nesse sentido, o protagonismo da figura feminina, que,
se revelar, acaba revelando o Outro.
Descoberta a “verdade”, Hull sente que seu conhecimento é limitado e, ao contrário do
que pensava, todas as leituras que fez e tudo o que estudou não alcançam explicar a
magnitude do que acabara de descobrir: “[...] Es más difícil de conciliar con los demás, era
que Constancia estuvo muerta en mis brazos por unos instantes [...] melancólico terror que
sentí al abrazar a Constancia sabiendo, a ciencia cierta, que Constancia estaba muerta”
(FUENTES, 1991, p. 29, grifo no original). Hull sente “terror” por ter abraçado Constancia
“morta” por alguns instantes, contudo ele conviveu com ela nessa condição por quatro
décadas, sem saber.
A desestabilização da percepção da realidade é tão intensa que Hull chega a duvidar da
existência de sua realidade, frente ao insólito que acabara de se descortinar. Para suas dúvidas,
a única resposta que ele encontra é a seguinte: “Hombre viejo. Hombre intermediario de
101
misterios que ignoraba, mirando al océano desde esta orilla a través de un espejo de lavabo
que le repite: hombre viejo” (FUENTES, 1991, p. 53, grifo no original). “Intermediario” no
sentido de sabedoria restrita à razão, Hull interpretava a realidade de acordo com a sua visão
acadêmico-científica, que funcionava como uma espécie de espelho: barrava sua visão, não o
deixava olhar diretamente para a realidade e, sim, para um reflexo dela. Por essa perspectiva,
a palavra “océano” pode ser pensada como a própria realidade: o homem conhece somente
uma parte dele(a), a superfície, porque as profundezas talvez ele nunca chegue a apreender.
A utilização de metáforas é outro recurso empregado em Constancia que colabora para
a instauração da ambiguidade, indispensável ao texto fantástico. Segundo estudiosos, a
metáfora consiste na “operação verbal, [que] coloca em relação mundos semânticos que
normalmente estão muitos distantes”, cuja finalidade é, por meio de jogos semânticos,
privilegiar todas “as potencialidades fantasiosas da linguagem, a sua capacidade de carregar
de valores plásticos as palavras e a formar a partir delas uma realidade” (CESERANI, 2006,
p.71). Em muitos textos fantásticos, a utilização da metáfora induz o leitor a uma
interpretação equivocada do fato ao desviar a sua atenção para um sentido que será
contrariado posteriormente, diante da sugestão do narrador ou do desenrolar da narrativa de
que existem outras possibilidades interpretativas para o evento narrado. Pensando nisso,
destacamos a descrição de Constancia feita por Hull no momento em que a protagonista
passava por um transe, que misturava “la oración y la risa”:
Pero durante estos primeros días de su convalecencia – ¿cómo llamarla, si
no? – Constancia no era una mujer, sino un pájaro, un ave de movimientos
nerviosos, incapaz de darle a su cuello los giros sutiles de la humanidad, sino
un temblor recortado, ornitológico, propio de un ser plumado que no mira
hacia adelante, convergente, sino a los lados [...] Como una avestruz, como
un águila, ¿cómo un...? (FUENTES, 1991, p. 30)
Analisando este fragmento tendo por base o trecho em destaque da novela, percebemos
que essa declaração do narrador-personagem leva o leitor a pensar que se trata realmente de
uma metáfora, ou seja, essas palavras do americano descrevem de maneira figurada a forma
física de Constancia naquele momento de enfermidade. No entanto, a ambiguidade das
palavras de Hull e o enredo da narrativa sugerem algo mais: Constancia poderia estar se
transformando, literalmente, em uma ave, o que daria outro sentido para as palavras de Hull.
A elipse da última palavra do referido trecho é suficiente para gerar dúvida e suspense
no leitor, fazendo com que este vá além e cogite a possibilidade de que a andaluza realmente
102
estivesse sofrendo uma espécie de metamorfose (da mesma maneira que Gregor Samsa de A
Metamorfose), transformando-se literalmente em um anjo, conforme sugere a seguinte
passagem:
Escuché en la sala el batir invisible de alas y mi atención se fijó en una foto:
el señor Plotnikov de pie, [...] pero inclinado esta vez [...] sobre Constancia
vestida de blanco, mi mujer a los quince o dieciséis años, luminosa, con un
niño sostenido en el regazo, un niño difícil de definir, borroso también, me
sospecho, por su tierna edad indefinida, sin facciones, un niño de un año o
quince meses. Los tres, me repito, los tres, me repito cuando corro escaleras
arriba, como Constancia cuando se enoja conmigo (FUENTES, 1991, p. 51).
Portanto, a elisão mencionada exterioriza o desconcerto de Hull diante da situação
sobrenatural, já que ele não conseguiu admitir, verbalmente, o inadmissível, ou seja, a
existência de anjos e, consequentemente, de outra realidade. Nesse ponto, salientamos o que
disse Furtado: “A primeira condição para que o fantástico seja construído é a de o discurso
evocar a fenomenologia meta-empírica de uma forma ambígua e manter até o fim uma total
indefinição perante ela” (1980, p. 36).
A proposição acima ganha força se pensarmos que é o bater dessas asas que conduz o
narrador-personagem até a descoberta do inexplicável: “Escuché en la sala el batir invisible de
alas y mi atención se fijó en una foto”. Salientamos que, durante toda a sua exposição, o
médico americano enfatiza que sua esposa, diferentemente dele, conhece a realidade somente
por meio dos sentidos e da imaginação. Por essa perspectiva, resulta irônico o fato de que algo
inexplicável, um bater de asas, coloque o narrador-personagem diante de uma encruzilhada,
minando as suas certezas e obrigando-o a considerar outras possibilidades. Isso leva-nos a
crer que o fantástico “manifesta desde cedo a sua hostilidade ou, pelo menos, o seu cepticismo
perante as conquistas já então bastante notórias do intelecto humano” (FURTADO, 1980,
p.136).
Nesse sentido, ao escrever Constancia, Carlos Fuentes parece ter sido influenciado pelo
conhecido texto de Walter Benjamim sobre a pintura Angelus de Paul Kee, por causa das
transcrições diretas desse texto na novela do autor mexicano. Trata-se de uma das Teses da
História, a nona especificamente, últimos escritos de Benjamim antes de sua fuga dos nazistas
em direção aos Pirineus, lugar onde o intelectual encontra a morte em 1940. Em nosso
entendimento, a relação crítica que Fuentes estabelece com esse texto ratifica a tese de que
Constancia transformou-se em um anjo. Com o intuito de fundamentarmos melhor essa
103
hipótese e embora a citação seja um pouco extensa, cremos que vale a pena transcrever as
palavras de Benjamim:
Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo
que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos
estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história
deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós
vemos uma cadeia de acontecimentos, ele contempla uma catástrofe única,
que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés.
Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas
uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força
que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente
para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas
cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso
(BENJAMIN, 1985, p. 226).
Ignorando uma série de interpretações sobre este inesgotável fragmento e considerando
apenas a relação entre este texto e o de C. Fuentes, podemos pensar que as palavras do autor
alemão colocadas dentro da narrativa do autor mexicano convergem com a hipótese de que a
protagonista andaluza personificaria o anjo descrito por Benjamin, pois ela também tem seu
rosto voltado para o passado (sua vida de perseguição, exílio e morte ao lado de Plotnikov,
biografia bastante semelhante a do intelectual alemão), que está todo o tempo a seu lado,
literalmente. No entanto, perante esse monte de ruínas e sem tempo de “acordar os mortos e
juntar os fragmentos”, Constancia é obrigada, pelo “progresso” (representado pelo americano
Hull), a seguir em frente, a olhar para o futuro, na tentativa de dar a sua história um desfecho
diferente do escrito pela História:
La voz del padre, del amante, del esposo, del hijo, le dicen, quédate allá,
revive allá, déjanos muertos y sigue viviendo tú, Constancia, en nombre
nuestro, no te des por vencida, que no te derrote la violencia impune de la
historia, sobrevive, Constancia, no te dejes desterrar, sirve de dique a la
marea fugitiva, al menos tú, sálvate, hijita, madre, hermana nuestra, no te
sumes a la corriente del exilio, por lo menos tú, quédate allá, crece allá, sirve
de signo: ellos estuvieron aquí (FUENTES, 1991, p. 75, grifo no original).
Por essa perspectiva, é como se o fantasma de Constancia voltasse do mundo dos
mortos para contar aos vivos o que ocorreu com ela e com centenas de pessoas, entre as quais
está a sua família, por causa da insanidade e extremismo de regimes ditatoriais. Carlos
Fuentes poderia abordar esse tema de diversas maneiras, contudo ele escolhe o fantástico,
gênero que descortina vertentes desconhecidas da realidade, para trazer à tona a história de
personagens esquecidos pelo tempo e pela História, o que suscita a reflexão sobre o passado,
sem apresentar uma verdade ou uma solução para tal fato.
104
Pensando nisso, é possível verificar que o autor mexicano deixa transparecer em sua
literatura um pessimismo perante a História e as “conquistas” humanas. Não por acaso, temas
como o exílio e o extermínio de pessoas por causa de suas crenças políticas ou religiosas estão
presentes em Constancia, representados por Plotnikov e Constancia, personagens que foram
perseguidas e mortas durante os regimes stalinista (URSS) e franquista (Espanha) nos anos de
1930. Inconformado com tanto despotismo ao longo da história humana, a voz do autor
mexicano parece ressoar através da voz de suas personagens, “¿Por qué, doctor Hull, por qué,
por qué tanto dolor inútil?” (FUENTES, 1991, p. 47). Como resposta a tanta violência,
separação e morte, Carlos Fuentes busca reunir, por meio de sua literatura, personagens
separados por algum tipo de intolerância, seja ela política ou religiosa, como destaca Javier
Ordiz:
Con el tiempo, este asunto del ‘amor constante más allá de la muerte’ se ha
ido engarzando de forma cada vez más estrecha con la interpretación
pesimista de una Historia que Fuentes contempla dominada por la
intolerancia política o religiosa, cuyas víctimas reaparecen de forma
periódica convertidas en fantasmas (No prelo).
Assim, existe uma continuidade temática se pensarmos que ocorre o reencontro entre as
mais variadas personagens de Fuentes: Maximiliano e Carlota (“Tlactocatzine, del jardín de
Flandes”), Llorente e Consuelo (Aura), Plotnikov e Constancia (Constancia), Inez, sua filha e
seu marido (Instinto de Inez), Florencio e Guadalupe (“La gata de mi madre”), Georg e
Alberta (“La bella durmiente”). Exceto Consuelo e Llorente, todas as demais personagens
foram separadas por mortes provocadas por causa dos mais diferentes tipos de radicalismos,
político (Segundo Império Mexicano, Ditadura de F. Franco e o Holocausto), religioso
(Inquisição), etc. Por essa ótica, a escrita consegue vencer o tempo e a morte por meio do
poder da palavra, pois ela dá “novo” desfecho a um fato acabado. A literatura, portanto,
(re)cria “novas” realidades e (re)escreve “novas” histórias ao (re)unir o que está
definitivamente separado, afinal “no hay palabra que no venza a la muerte porque no hay
palabra que no sea portadora de una inminente renovación” (FUENTES, 2002, p. 168).
Voltando-nos para a novela Constancia, percebemos que Hull, tentando racionalizar os
eventos insólitos, utiliza humor e ironia em seu discurso, com o objetivo de convencer o seu
leitor da “normalidade” dos fatos. Contudo, nem mesmo nesses momentos, ele deixa de sentir
certo receio diante da revelação do desconhecido, conforme demonstra o trecho em que
Plotnikov revela ao americano que iria morrer: “Dejé de abanicarme y moverme. No sabía si
105
reía, lo cual era mi inclinación, o si, más bien, debía someterme a una corriente más profunda
que me decía, [...] que debía tomar muy en serio sus palabras”. Após ouvir a profecia de
Plotnikov, o narrador-personagem completa: “Pero usted estará muerto entonces – empecé a
decir lógica, casi alegremente, aunque perdiendo en seguida mi ímpetu –... quiero decir, el día
en yo muera, usted ya no estará vivo...” (FUENTES, 1991, p. 19).
O narrador demonstra também seu lado burlesco durante uma das conversas que ele tem
com Constancia, momento em que ela afirma estar decidida a começar a ler e pergunta ao
esposo qual seria o livro mais indicado:
– Está bien. ¿Por dónde empiezo a leer tu famosa biblioteca?
– Puedes comenzar por el principio, que es la Biblia.
– Nada. Eso sólo los protestantes leen.
– ¿Y los católicos?
– Lo sabemos todo, josú. Sabemos todito sobre la Santísima Virgen y
ustedes, pues nada.
– Muy bien, Constancia – reía yo entonces –, muy bien dicho, mi amor.
Míranos como los herejes que somos (FUENTES, 1991, p. 40).
No fragmento acima, percebe-se que Hull ironiza a “sabedoria” religiosa de sua esposa.
Ele racionaliza, ironiza e agrega humor porque é o seu lado científico-bibliófilo que
predomina nesse momento. Isso contribui para diminuir a tensão do relato e fazer com que o
leitor cogite o evento meta-empírico como inexistente, o que faz com que o sobrenatural
ganhe força, pois, ao se instalar definitivamente, ele conseguirá provocar maior impacto em
um leitor desprevenido. Assim sendo, para a narrativa fantástica é importante que haja a: “[...]
alternância entre a apresentação de elementos inexplicáveis, a hesitação no modo de explicálos, a falsa explicação, a reabertura da hesitação, a introdução de novos elementos
inexplicáveis e assim por diante” (CESERANI, 2006, p. 30-31), porque, nesse jogo, cria-se o
suspense e amplia-se a impossibilidade de solucionar o enigma.
A ambiguidade suscita outro recurso utilizado em narrativas fantásticas: a teatralidade,
que, segundo Ceserani, consiste no emprego de artifícios teatrais com o objetivo de ampliar o
“efeito de ilusão” no texto (2006, p. 75). Em Constancia, essa teatralidade está personificada
nas personagens Plotnikov e Constancia que apresentam comportamentos e discursos
ambíguos, evidenciando uma representação.
Plotnikov apresenta-se para Hull como um ator exilado, dissimulando, todo o tempo, a
sua condição de esposo de Constancia e de fantasma. Entretanto, em seu discurso
106
transparecem indícios disso, ainda que nem o narrador-personagem nem o leitor percebam
inicialmente. Como exemplo, citamos uma cena na qual Hull encontra o ator russo em uma
cabine fotográfica: “Cuando la cortina se corrió, apareció el señor Plotnikov, me miró y me
dijo: – Nos obligan a desempeñar papeles, Gospodin Hull” (FUENTES,1991, p. 14). A
ambiguidade das palavras de ambos exemplifica a ideia de teatralidade: Hull emprega o termo
“correr a cortina”, utilizado especialmente no teatro, e Plotnikov refere-se ao incômodo de ter
que interpretar/representar constantemente, especialmente diante do médico americano.
Constancia também é obrigada a representar. Ela desempenha o papel de esposa de Hull
e, por isso, abdica o de esposa de Plotnikov. Dessa forma, a andaluza sempre está oscilando
entre duas “vidas” diferentes, sendo obrigada a (dis)simular. Tanto é assim que Hull, ao ver
Anna Karenina48 certa noite, acaba cochilando e, em uma espécie de sonho, vê o rosto de
Constancia sobreposto ao da protagonista do filme:
La noche en que me permití el lujo de poner en la televisión la Anna
Karenina de Julien Duvivier, me quedé dormido un instante y desperté con
sobresalto para encontrar el rostro de Constancia superpuesto al de la actriz
británica en la pantalla. Grité sofocadamente (FUENTES, 1991, p. 48).
Essa sobreposição reforça o que dissemos: Constancia representava um papel, da
mesma forma como atriz do referido filme, cujo enredo, aliás, apresenta similaridades com a
novela de Carlos Fuentes, pois a protagonista da película também se sente dividida entre seu
marido e seu amante.
Assim, da mesma forma como ocorre em outras narrativas de Carlos Fuentes, nas quais
o tema do duplo está presente, em Constancia, esse recurso também ocorre, porém deve ser
encarado por outra perspectiva, a de dupla personalidade, causada por conta da fragmentação
do sujeito, já que tanto Plotnikov quanto Constancia são “duplos de si mesmos” (CESERANI,
2006, p. 75), e, por isso, são impelidos a interpretar papéis.
Há ainda outro elemento apontado por estudiosos como recorrentes em narrativas
fantásticas: a presença de um objeto que confirme a ocorrência do evento meta-empírico.
Dentre os teóricos que já abordaram esse tema, estão Rafael Olea Franco e Remo Ceserani. O
primeiro considera que a presença desse objeto é importante porque “estructuralmente se
48
Realizado na Inglaterra em 1948, sob direção de Julien Duvivier, esse filme basea-se no romance homônimo
do escritor russo Leon Tolstoi. O enredo apresenta um triângulo amoroso que leva a protagonista a abandonar
marido e filho para viver essa paixão. No final, ela acaba se suicidando.
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requiere un elemento ajeno para corroborar que el hecho inexplicable sí ha sucedido y no es
un mero producto de la afiebrada mente de un desquiciado” (OLEA FRANCO, 2004, p. 153).
O segundo teórico segue a mesma linha de pensamento e ressalta que essa presença é
essencial porque “um objeto que, com sua concreta inserção no texto se torna o testemunho
inequívoco do fato de que o personagem-protagonista efetivamente realizou uma viagem,
entrou em uma outra dimensão de realidade e daquele mundo trouxe o objeto consigo”
(CESERANI, 2006, p. 74). Ambos os autores convergem ao afirmarem que a presença desse
objeto é fundamental para confirmar, de fato, a existência do sobrenatural ou a ida do
protagonista até um outro mundo.
Por essa ótica, em Constancia, existem diversos objetos que substanciam o evento
insólito, entre os quais destacamos dois. O primeiro deles refere-se a uma espécie de grampo
em forma de chave que Constancia sempre utilizava em seus cabelos: “No usa peinetas,
aunque sí unas horquillas plateadas, nada usuales, puesto que tienen forma de llaves, con las
que se sostiene el pelo” (FUENTES, 1991, p. 26). Durante os dias em que Constancia esteve
enferma, Hull tira o acessório do cabelo de sua esposa e guarda-o consigo inconsciente de que
aquele grampo em formato de chave abriria caminho para descoberta do sobrenatural.
Posteriormente, ansioso por desvendar o mistério que parecia interligar Plotnikov e
Constancia, o narrador-personagem decide ir até a casa de seu vizinho, onde acaba
encontrando fotos e objetos pessoais do russo e de Constancia, entre os quais estava uma
tumba. Ao tentar abri-la, o americano não consegue, porque a tumba estava fechada. Nesse
momento, ele se lembra do grampo-chave de Constancia, o introduz na fechadura e acaba se
depara com o sobrenatural:
La horquilla en forma de llave entró perfectamente en la cerradura [...]
Levanté la tapa. Monsieur Plotnikov, ahora vestido todo de blanco, yacía
adentro del mausoleo de madera. Abrazaba el esqueleto de un niño que no
podía tener más de dos año de edad” (FUENTES, 1991, p. 58).
O fato de Hull conseguir abrir a tumba de Plotnikov com o grampo de Constancia
corrobora a relação entre o russo e a andaluza, personagem esta que esteve todo o tempo com
a chave do mistério em sua cabeça, literalmente, e, por meio dela, tinha acesso a sua outra
família sempre que desejasse. Esse primeiro objeto desempenha duplo papel dentro da
narrativa: comprovar a relação de Constancia com o vizinho e revelar a existência do
sobrenatural ao protagonista.
108
O segundo objeto que prova a veracidade do inverossímil é um conjunto de documentos
encontrados por Hull em um cartório de Sevilla. O americano, completamente tentado pelo
enigma que havia se descortinado diante de si na casa de Plotnikov, viaja até a cidade
espanhola, possível cidade natal de Constancia, com o objetivo de obter mais informações
sobre o passado de sua esposa. Eis a justificativa que ele encontra para tal atitude:
No es posible que un norteamericano deje en paz el misterio ajeno, menos
aún si siente que se ha convertido en misterio propio; necesitamos hacer
algo, la inactividad nos mata, y lo que yo hice fue visitar los archivos
municipales de Sevilla para inquirir sobre Constancia y averiguar lo que yo
ya sabía: existía un acta matrimonial, la nuestra, cuya copia yo llevaba
siempre conmigo y que conocía de memoria, mis generales de un lado, mi
fecha de nacimiento, mis padres, mi profesión, mi lugar de residencia y en la
siguiente columna los datos de ella, Constancia Bautista, soltera, alrededor
de veinte años, padres desconocidos, créese natural de Sevilla (FUENTES,
1991, p. 60).
Observa-se, no trecho acima, a postura detetivesca e altiva de Hull que, mesmo após
descobrir a ligação entre Constancia e Plotnikov e de ambos com algo inexplicável,
permanece seguro da veracidade de seu matrimonio e realiza viagem apenas para “averiguar
lo que yo ya sabía”. Munido de certezas e do único comprovante que possuía de seu
matrimônio com Constancia, o narrador-personagem segue para o cartório da cidade
espanhola, onde sofrerá mais um choque ao descobrir que seu casamento, na realidade, nunca
existiu perante a lei:
Encontré que mientras mis datos seguían allí, habían desaparecido los de mi
mujer con la que me casé, a no dudarlo, un 15 de agosto de 1946. Mi
nombre, mis fechas, mi genealogía, aparecían ahora huérfanos [...]. Frente a
mi columna escrita, había una columna vacía (FUENTES, 1991, p. 60).
Tanto o documento do cartório quanto a cópia que o narrador-personagem levava
sempre consigo não comprovavam nada. Ignorando o que seria o primeiro indício da
existência de algo anormal, Hull nunca desconfiou da imprecisão dos dados de Constancia na
certidão, “alrededor de veinte años, padres desconocidos, créese natural de Sevilla”, mesmo
após entrar na casa de Plotnikov. Nesse sentido, vale salientar dois pontos: primeiro, a
maneira como esse texto foi arquitetado privilegia o questionamento da legitimidade do
discurso “oficial” por meio da destituição de legalidade do documento de Hull; segundo, tanto
Hull quanto Constancia levavam consigo objetos que confirmassem seus relacionamentos. O
americano sempre carregava sua certidão de casamento, documento que provava a sua relação
com Constancia; esta, por sua vez, sempre usava o grampo em forma de chave, objeto que
109
comprovava a sua “união” com Plotnikov.
Apesar da perplexidade ao descobrir a ilegitimidade de seu casamento com Constancia,
Hull decide seguir adiante em sua investigação, “oponiendo [...] la acción a la pasividad,
constantemente” (FUENTES, 1991, p. 60). O americano solicita outro documento ao
atendente do cartório e, no dia seguinte, com esse documento em mãos, o jovem revela ao
narrador-personagem:
Las personas que le interesan a usted, doctor Hull, llegaron de Rusia a
España en 1929, huyendo de la situación política allá, y trataron de salir de
España a América en 1939, huyendo de la guerra nuestra. Desgraciadamente,
fueron detenidas en el puerto de Cádiz por fuerzas nacionales que leyeron en
los pasaportes el origen ruso y, por lo visto, lo asociaron a ciertas
inclinaciones políticas. Las tres personas – el hombre, su esposa y el niño de
diecisiete meses – fueron asesinados en la calle por estas fuerzas que
menciono. Fue una ironía de la guerra (FUENTES, 1991, p. 62).
Essa era a informação que faltava para completar o mistério: Constancia e sua família
foram assassinadas durante o regime franquista, o que faz com que o enigma permaneça em
torno da possibilidade da existência de fantasmas, dúvida esta que não será resolvida nem
mesmo ao final da narrativa, pois “para que el efecto de lo fantástico sea pleno, es necesario
que el desenlace no se explique, sino que se mantenga en el terreno de la duda” (OLEA
FRANCO, 22004, p. 41). Nesse sentido, a ambiguidade deve ser mantida até o fim, como
salienta F. Furtado:
A essência do fantástico reside na sua capacidade de expressar o sobrenatural
de uma forma convincente e de manter uma constante e nunca resolvida
dialética entre ele e o mundo natural em que irrompe, sem que o texto
alguma vez explicite se aceita ou exclui inteiramente a existência de
qualquer deles (1980, p. 36).
Após afirmar que a família havia sido assassinada, o atendente completa a sua
informação:
De la pareja y el niño se sabe sólo porque sus señas de identidad quedaron en
manos del partido triunfante. Esta familia [...] había ordenado que se le
enviaran a América sus baúles, sus muebles, y otros efectos personales. [...]
Los efectos llegaron, pero sus dueños no (FUENTES, 1991, p. 63).
Ao receber essa informação, Hull pergunta ao atendente qual seria o destino de tais
pertences e acaba obtendo a seguinte resposta do funcionário: “Al puerto de Savannah,
doctor” (FUENTES, 1991, p. 64). Com esta última revelação, o leitor tem diante de si um
110
encerrar brusco de capítulo, que não permite saber qual foi a reação de Hull ao receber tal
informação. Nesse momento, é como se o narrador-personagem precisasse de uma pausa para
refletir sobre a descoberta que acabara de fazer. O fato do americano interromper a sua
narração suscita diversas dúvidas no leitor, obrigando-o a fazer o mesmo que Hull:
recapitular, refletir e buscar possíveis respostas, como um detetive.
A existência dos objetos (grampo e documentos) e o depoimento do funcionário do
cartório são fundamentais para o desenrolar da narrativa, porque eles ativam o sentimento do
fantástico ao atestarem o sobrenatural. Assim, desvenda-se o enigma, mas isso apenas suscita
outras tantas perguntas, conforme explícito no próprio texto: “[...] era un misterio más, no una
solución racional. No quería otro misterio. Sabía que cualquier intento de explicar lo sucedido
se convertiría, a su vez, en nuevo enigma [...]. El enigma engendra otro enigma. En esto se
parecen el arte y la muerte” (FUENTES, 1991, p. 59).
No caminho de volta para sua casa, Hull reflete sobre os motivos que desencadeariam
uma guerra, sobre a quantidade de mortos que ela provoca e sobre o sofrimento pelo qual
passou Constancia. Esse último pensamento leva o narrador-personagem a sentir-se culpado
por não ter ajudado a sua esposa: “Perdóname, Constancia, por haberme tardado tanto en
traerte a América...” (FUENTES, 1991, p. 70).
Embora Hull tenha regressado diferente de Sevilla, ele ainda não estava preparado para
o que encontraria em sua casa:
Mi corazón dio un salto: Constancia había regresado, me esperaba... No tuve
que abrir la puerta. Al tratar de introducir la llave [...] la puerta, empujada
por mí, se abrió sola y todos mis fantasmas reencarnaron de un golpe. Pero
ya no pude, por algún motivo, pensar más en Constancia sóla. En cambió
pensé: Aquí me esperan ellos, invitándome a unirme a ellos. Constancia
nunca sola:
– Visíteme, gospodin Hull, el día de su propia muerte. Ésa es mi condición.
Nuestra salud depende de ello (FUENTES, 1991, p. 71-72).
Este fragmento é interessante porque demonstra as emoções da personagem diante da
possibilidade de encontrar com Constancia, agora “fantasma”, para ele. Ele dispara
mecanismos de suspense, como “mi corazón dio um salto” e “no tuve que abrir la puerta”,
deixando o leitor atento para o que aconteceria. Hull sente medo e pressente que a família o
esperava, fato que deixa margem para pensarmos que ele também estivesse morto, pois sua
chegada na casa onde estavam Plotnikov e Constancia remete diretamente ao que dissera o
111
ator russo: Hull somente o visitaria no dia de sua morte, após descobrir todo o mistério. Isso
faz com que o leitor não consiga saber se o americano está vivo ou morto, e essa dúvida é
intensificada com a seguinte declaração do narrador-personagem:
Acepté en ese instante que éste – el día de mi regreso al hogar – era el día de
mi muerte. Me di cuenta, con un sentimiento de vértigo, de que todos los
aparecidos (¿cómo llamarlos?) de esta historia reclamaban solamente un
aplazamiento, la gracia de unos días más de vida [...] ¿Por qué iba a ser yo la
excepción? ¿Carecía yo sólo de la humildad necesaria para hincarme – frente
al Mediterráneo o el Atlántico, en las dos orillas – y pedir: - Por favor, un día
más de vida? Por favor... (FUENTES, 1991, p. 72).
Este trecho reforça a suspeita da morte de Hull, pois o americano abandona
definitivamente a sua postura de detetive ao entender que ele não era somente um mero
espectador/investigador e, sim, parte de todo aquele mistério. O narrador-personagem deixa
de ser “ignorante”, adjetivo sempre relacionado à Constancia, e passa a conhecer o
irreconhecível, o que possibilita que ele contemple as duas margens do oceano, “Frente al
Mediterráneo o el Atlántico, en las dos orillas” (FUENTES, 1991, p. 72), e não apenas uma,
como ele destaca anteriormente: “Hombre intermediario de misterios que ignoraba, mirando
al océano desde esta orilla a través de un espejo de lavabo que le repite: hombre viejo”
(FUENTES, 1991, p. 53, grifo no original).
Pressentindo que esse retorno seria distinto, pois o sobrenatural havia se instalado
definitivamente em seu lar, Hull encontra Constancia, Plotnikov e a criança, que se escondiam
em sua casa:
Ellos estaban acurrucados en un rincón, protegiéndose entre sí, abrazados,
los tres [...]. El hombre moreno, joven, bigotón, con el pelo cedoso y
revuelto, los ojos de mapache, a la vez inocentes y sospechosos, la camisa y
el pantalón azules, las botas viejas, abrazado a la mujer con cara de
venadillo, el pelo restirado, en chongo, la barriga grande y la ropa floja,
esperando al siguiente niño, porque abrazaba a uno de quince o veinte
meses, moreno y sonriente, con una gran risa blanca en medio del oscuro
terror de sus padres [...] (FUENTES, 1991, p. 72-73).
Com medo de ser denunciado para seus perseguidores por Hull, Plotnikov argumenta:
señor, pero nosotros nos salvamos de milagro, sólo quedamos nosotros vivos
de ese pueblo, deja que nazca nuestro hijo, un día queremos regresar, pero
antes hay que vivir, antes hay que nacer para regresar un día, ahora no se
puede vivir en nuestra patria (FUENTES, 1991, p. 73).
O último pedido de Plotnikov registrado nos escritos do americano inicia-se com letra
112
minúscula e não está nem entre aspas nem precedido de travessão; ele simplesmente surge na
página, como se a voz da personagem já não fosse mais intermediada pelo filtro do narradorpersonagem, dando a entender que o americano deixou de ser narrador para se transformar em
uma personagem a mais incluída naquele mistério. Outro dado interessante é que as palavras
de Plotnikov sugerem uma regressão no tempo: “nos salvamos de milagro”. Por essa
perspectiva, Hull, diante dessa espécie de “sagrada família” que voltava a se reencontrar, tem
a oportunidade de mudar o passado e dar aos refugiados uma segunda chance para reescrever
as suas histórias; tarefa, aliás, que ele aceita com alegria:
[...] Acepté ser esto y serlo con alegría, con honor, ser el intermediario entre
realidades que yo no poseía, ni siquiera dominaba, pero que se presentaban
ante mí y me decían: nada nos debes, salvo el hecho de que tú sigues vivo y
no puedes abandonarnos al exilio, a la muerte y al olvido. Danos un poco
más de vida, aunque tú sólo la llames recuerdo, qué te cuesta (FUENTES,
1991, p. 72-73).
Assim, o narrador-personagem de Constancia “se rinde a la evidencia de lo fantástico
en una suerte de ‘iniciación’ que acaba definitivamente con la falacia realista y sitúa la acción
hasta el final en los dominios de esa ‘segunda realidad’” (ORDIZ, no prelo). O desfecho da
narrativa sugere que a morte de Hull foi apenas simbólica, “la convocatoria es perpetua: me
llaman” (FUENTES, 1991, p. 76), já que ele deveria continuar vivo para proteger a família da
morte e do esquecimento e para escrever o seu relato, pois, caso contrário, o leitor estaria
diante de escritos feitos por alguém que já estaria morto.
Essa então seria a missão de Hull: passar a história de Constancia adiante e ressuscitar a
sua família através de seu “recuerdo”. Aliás, esta palavra ao lado de “refugio” (presente
inclusive na dedicatória da obra), “imaginación” e “regreso” simbolizam algumas ideiaschave na narrativa de Carlos Fuentes, como, por exemplo, o sentimento de nostalgia das
personagens Constancia e Plotnikov provocado pela perda de uma condição inicial,
interrompida tão violentamente. O fantástico, assim, reelabora uma forma de revelar a história
das personagens que foram silenciadas pela catastrófica experiência humana da busca pela
racionalidade, sonho este que se transformou em pesadelo.
Para concluir, salientamos que, em Constancia, o evento sobrenatural instala-se de
maneira tão mais convincente que a própria realidade cotidiana, agregando-se a esta,
completando-a. Ao encarar o mistério como algo a ser elucidado, Hull arrasta o leitor para
dentro de seu jogo narrativo-detetivesco, prendendo-o por meio da curiosidade. Este, ao
113
aceitar esse pacto ficcional, compartilha do mesmo sentimento do narrador-personagem
perante a irrupção do evento insólito: vê desmoronar diante de si a sua percepção de realidade
empírica no momento em que a narrativa o conduz até um caminho sem saída, de onde ele
somente consegue contemplar o conjunto de mortos e os fragmentos do passado, a ruína
enfim, viva “permanência de la história” (FUENTES, 1991, p. 67).
3.1 A PERSONAGEM FEMININA DE CARLOS FUENTES: CONSTANTE
DESVENDAR DE OUTRAS REALIDADES
Miré velozmente, cerca de mí, a nuestra virgen vecina, la
madonna andaluza, virgen de toreros, procesiones, burlas,
blasfemias atroces, bailes gitanos y cuerpos ardientes. La virgen
rusa decía nunca, en ningún lado; la virgen andaluza gritaba
aquí, ahora. Constancia siempre lo dijo: Andalucía, agua,
surtidor y espejo (Constancia, FUENTES, 1991, p. 32, grifo no
original).
Rompía demasiadas reglas, sólo para convertir las excepciones
en rutinas (Constancia, FUENTES, 1991, p. 36).
Ao analisar as obras de Carlos Fuentes que se alinham com a literatura fantástica,
verificamos que, desde suas primeiras publicações, o autor mexicano demonstra a
preocupação em construir personagens femininas que se transformam em figuras centrais para
o desenvolvimento do enredo49. Parte desse grande interesse do autor por protagonistas
femininas justifica-se pelo fato de Carlos Fuentes ter se impressionado com a biografia de
Carlota, imperatriz do Segundo Império Mexicano, que ficou louca, após o assassinato de seu
esposo Maximiliano. O autor se impressionou depois de ver duas imagens de períodos
distintos da vida dessa personagem histórica, uma durante sua juventude e apogeu e outra dela
morta, dentro de um caixão50. O contraste entre as duas fases dessa mulher serve como ponto
49
Essa característica também se explicita nos textos realistas do autor, se pensarmos no protagonismo de
personagens como: Teódula Moctezuma, a velha índia feiticeira de La región más transparente (1958), Claudia
Nervo, a estrela de cinema, “hechicera y madre al mismo tiempo” de Zona sagrada (1967), Harriet Winslow, a
jovem professora americana de Gringo Viejo (1985), Laura Díaz, a fotógrafa e militante política de Los años con
Laura Díaz (1999), entre outras.
50
Relata o autor o episódio em carta a Gloria Durán: “Cuando tenía siete años y, después de visitar el Castillo de
Chapultepec y ver el cuadro de la joven Carlota de Bélgica, encontré en el archivo Casasola la fotografía de esa
misma mujer, ahora vieja, muerta, recostada dentro de un féretro acojinado, tocada con una cofia de niña: la
Carlota que murió loca, en un castillo, el mismo año en que yo nací” (FUENTES apud DURÁN, 1976,
apêndice).
114
de partida para que o autor mexicano passe a refletir sobre suas personagens femininas, que,
assim como Carlota, se dividem entre o apogeu e a decadência, entre a lucidez e a loucura,
entre a vida e morte.
Sobre esse protagonismo feminino presente na obra de Carlos Fuentes, a seguinte
declaração do autor sobre uma de suas personagens converge com o que acabamos de
argumentar: “Es una figura central y los hombres no permiten que las mujeres sean figuras
centrales; se les destierra a los extremos, pues México es un país en donde las mujeres están
condenadas a ser monjas o putas” 51. Considerando essa afirmação tendo em vista a ideia de
que Carlos Fuentes se caracteriza por ser um intelectual crítico, percebe-se que o autor
mexicano lança mão da literatura como meio de oposição ao pensamento machista ao criar
personagens femininas figuras que transitam entre diferentes universos e conseguem extinguir
as mais diversas fronteiras porque reúnem, simultaneamente, aspectos “sagrados” e
“profanos”.
“Ambivalentes”, essas “brujas o hechiceras” adquirem especial protagonismo dentro do
universo simbólico da narrativa fantástica ao despertarem nas demais personagens a
consciência da existência de outras “realidades”, inexplicáveis e ocultas até então. Essa
continuidade temática pode ser verificada em personagens como Carlota de “Tlactocatzine,
del jardín de Flandes” (1954), Consuelo de Aura (1962), Nuncia de Cumpleños (1969), a
boneca humanizada de La desdichada (1990), Inez de Instinto de Inez (2001), Ofelia de “El
amante del teatro” e Alberta Simmons de “La bella durmiente”, somente para mencionar
alguns exemplos. Georgina Gutiérrez também assinala na mesma direção:
La mujer, en efecto, tiene un papel fundamental en Constancia y otras
novelas para vírgenes. La figuración de lo fantástico, de los sueños de
Constancia, la singularidad de la estética, descansan en la fuerza literaria de
las mujeres, en quienes afinca una de las líneas de lo fantástico elaboradas
por Fuentes (2008, p. 136).
Embora se refira a uma obra específica, as palavras da teórica ratificam o que
expusemos anteriormente, já que a obra fantástica de Carlos Fuentes deve sempre ser pensada
como um conjunto. Dessa forma, partindo da hipótese de que as personagens femininas são
essenciais nos textos fantásticos do autor mexicano, o presente sub-capítulo tem como
51
Carlos Fuentes refere-se à Claudia Nervo, personagem do texto considerado realista Zona Sagrada (1967).
Apesar disso, essa fala do autor ajuda-nos a compreender melhor o pensamento do mexicano sobre o tema e
ilumina perspectivas interpretativas sobre a construção de suas personagens femininas, de obras fantásticas ou
não.
115
objetivo investigar a caracterização de Constancia a fim de entender de que maneira a
construção dessa personagem, por meio da linguagem, sugere a sua relação com o
sobrenatural. Buscaremos também traçar comparações, quando possível, entre Constancia e as
demais figuras femininas de Carlos Fuentes, com o intuito de apontar continuidades e
revelações entre elas.
O primeiro aspecto que chamamos a atenção refere-se à caracterização das personagens
em Constancia, que foi arquitetada de modo a se contraporem dois universos: o empírico
frente ao sobrenatural, o que favorece a intensificação do fantástico. Constancia é figura que
está relacionada ao segundo universo, ao sobrenatural. O narrador-personagem sempre a
descreve por meio de palavras e expressões ambíguas de maneira a agregar sentidos que vão
além dos considerados inicialmente pelo leitor e que ganham novas nuances com o desenrolar
da narrativa, principalmente após a revelação do evento insólito.
Constancia é a responsável por colocar em xeque a percepção de Hull sobre a realidade
tal qual se aceita racionalmente, bem como seus limites entre a vida e morte. Sobre essa
personagem feminina, enfatiza G. Gutiérrez:
Constancia personifica las reglas de lo insólito y de la ruptura de las leyes
naturales. La mujer transita de la vida a la muerte, y a la inversa, viaja de ida
y de vuelta de Savannah a Sevilla, ‘dos ciudades laberinto’ para ella
comunicadas (2008, p. 136).
Ao invés de fragmentar-se mediante características, aparentemente, tão paradoxais,
Constancia utiliza-se disso a seu favor, o que a torna uma personagem excepcional, no sentido
fantástico do termo. Por meio dessa inconstância, ela consegue transitar entre distintas
realidades, o que, aliás, se opõe à característica expressa em seu nome. Vejamos de que forma
esses elementos aparecem na narrativa de Carlos Fuentes. O primeiro exemplo que
destacamos encontra-se nos dois trechos em que o narrador oferece detalhes sobre essa
personagem:
Sólo yo recuerdo, en todo el mundo, a esa muchacha andaluza, tan fresca y
graciosa, tan amorosa y salvaje, que olía, como su tierra, a toronjil, lirio y
verbena, y que tomaba el sol en las plazas de Sevilla como un desafío a la
muerte, porque Constancia era, como estrellas, enemiga del día y era en la
cama y en la oscuridad – nocturna o procurada – donde sus jugos fluían y sus
juegos enloquecían (FUENTES, 1991, p. 42, grifo no original).
[...] Sesenta y un años una andaluza protegida hasta la última sombra de los
rayos del sol, Constancia color de azucena, Constancia de estatura mediana y
116
pierna corta, talle aún estrecho pero tobillo grueso, amplio busto y cuello
largo: ojos dormidos, ojerosos, un lunar en la boca y el pelo entrecano
restirado, desde siempre, en el chongo. No usa peinetas, aunque sí unas
horquillas plateadas, nadas usuales, puesto que tienen forma de llaves, con
las que sostiene el pelo (FUENTES, 1991, p. 26).
As descrições anteriores representam dois períodos distintos da vida de Constancia: a
primeira, antes do casamento com Hull, e a segunda, após. Para começar, chamamos a
atenção para a seguinte afirmação do narrador no primeiro trecho: “Sólo yo recuerdo, en todo
el mundo, a esa muchacha andaluza”. Essas palavras de Hull sugerem que Constancia
somente existia para ele, em sua lembrança, o que evidencia, de alguma maneira, a condição
dela, ou seja, de morta e/ou de fantasma, esquecida para o mundo e, por isso, o verbo
“recuerdo”, no sentido de se fazer e de fazê-la existir, como exposto anteriormente neste
estudo.
Destacamos ainda o fato de Constancia proteger-se do sol em ambas as épocas de sua
vida, porém, quando jovem, ela o fazia “como un desafío a la muerte”; desafio no sentido de
que ela, como “morta”, continuava mantendo hábitos de “vivos”, ou seja, mostrando-se em
plena luz do dia e resistindo, portanto, a aceitar o que lhe ocorrera. Essa hipótese se confirma
se pensarmos que Constancia estava ciente de sua condição de fantasma e, justamente por
isso, ela se expunha nas praças de Sevilla, “una ciudad fantasmal”, onde “el pasado vive,
generalmente sin que se advierta” (FUENTES, 1991, p. 52), pois seu intuito era seduzir algum
admirador/amante, que daria vida a ela e aos seus novamente: “¿Cuánto tiempo estuviste,
Constancia, llevándoles vida – mi vida – a tus muertos?” (FUENTES, 1991, p. 75). Tais
características convergem com as observações feitas por Octavio Paz sobre a mulher:
Como todos los ídolos, es dueña de las fuerzas magnéticas, cuya eficacia y
poder crecen la medida que el foco emisor es más pasivo y secreto. Analogía
cósmica: la mujer no busca, atrae. Y el centro de su atracción es su sexo,
oculto, pasivo. Inmóvil sol secreto (2004, p. 41).
Como Constancia não compartilha com Hull das mesmas leituras, da mesma língua, de
viagens ou mesmo de amizades, ela recorre à sensualidade, o que satisfaz o americano, como
ele mesmo confessa: “A mí lo que me enloqueció desde un principio era esa pasión de la
obediencia en Constancia, como si mis órdenes sólo fuesen su propio deseo, salvajemente
querido por ella y anticipado por mí” (FUENTES, 1991, p. 30). Tal comportamento do
narrador-personagem evidencia certo declínio de sua objetividade/racionalidade perante as
seduções de Constancia, o que faz com que ele se renda à “magia” da sensualidade da
117
andaluza.
Em determinados momentos, Hull demonstra alguma reação diante desse “encanto” de
Constancia: “¿Crees que a la larga voy a bastarme con tu domesticidad de día y tu pasión de
noche; cuando nos hagamos viejos, de qué vamos a hablar tu y yo?” (FUENTES, 1991, p.
37). Porém, isso dura pouco, pois Constancia sempre consegue surpreendê-lo com sua
ambivalência: “Iba a misa, rezaba mucho de noche, luego se entregaba a un placer sexual casi
indecente, si no lo hubiesen precedido horas enteras de oración, hincada allí frente a la
veladora y la imagen de la Macarena...” (FUENTES, 1991, p. 36). Esse comportamento dual
de Constancia é resultado de uma constante interação entre ela e dois universos distintos: o
espiritual e o carnal, representados por Plotnikov e Hull respectivamente. Ora ela reza e
estreita a sua ligação com Plotnikov, ora ela ama e aproxima-se de Hull e da realidade
proporcionada por ele. O ato sexual, portanto, é o meio pelo qual Constancia vincula-se a
realidade e Hull é quem a coloca em contato com esse mundo, do qual ela, sendo um
fantasma, já não faz mais parte. As palavras de Gloria Durán confirmam a nossa hipótese: “En
Fuentes [...], el acto sexual sirve, en realidad, como una conexión ritual con el universo”
(1976, p. 31).
Cremos que o erotismo na obra fantástica de Carlos Fuentes deve-se ao fato do autor
mexicano produzir narrativas que se alinham com o fantástico mais tradicional, do século
XIX, momento em que falar sobre sexo ainda era um tabu. O fantástico encarado por esse viés
vai na esteira do que postulou Todorov, ou seja, o gênero desempenha a função social de
trazer à tona temas ainda “censurados” por uma sociedade52. O protagonismo feminino e o
machismo estão entre esses temas, os quais Carlos Fuentes procura debater por meio de sua
literatura, fazendo, inclusive, referências disso em suas entrevistas:
He sido atacado por haber mostrado mujeres muy impuras, pero esto se debe
a la visión negativa de la mujer que tiene mi cultura. Una cultura que
combina árabes, españoles y aztecas no es muy propicia al feminismo. Entre
los aztecas, por ejemplo, los dioses masculinos representan una sola cosa:
viento, agua, guerra, mientras que las diosas son ambivalentes,
representando a un tiempo pureza y suciedad, noche y día, amor u odio.
Constantemente se mueven de un extremo a otro, de una pasión a otra, y éste
es su pecado dentro del mundo azteca. Hay un patrón de ambigüedad
femenina en mis novelas53.
52
T. Todorov aborda a relação entre fantástico e sexualidade em “Temas do tu”, capítulo de seu livro Introdução
à literatura fantástica, no qual ele discorre sobre o homem e seus diferentes tipos de desejos (2004, p. 133).
53
Entrevista concedida a Alfred MacAdam e Charles Ruas. In: HERNÀNDEZ, Jorge (comp.). Carlos Fuentes:
118
O erotismo presente nas figuras femininas de Carlos Fuentes evidencia-se em
personagens como Aura/Consuelo, Nuncia, a manequim de “La desdichada”, Constancia,
Elisia, Alberta, entre outras. Todas elas têm em comum a relação com o sobrenatural e o fato
de usarem o sexo para atingir determinados objetivos, entre os quais está o conectar-se com o
mundo real.
Voltando aos aspectos da caracterização de Constancia, nos quais o narradorpersonagem afirma ser o único a recordar dela andaluza e a compara com elementos da
natureza, verificamos que Hull opta por empregar substantivos como “azucena”, “lirio”,
“toronjil” e “verbena”, ambos relacionados à natureza, o que alude a significados
interessantes desde o ponto de vista de uma narrativa fantástica. A respeito das flores (açucena
e lírio), podemos interpretá-las sob duas óticas: forma e simbologia. Sobre a primeira,
chamamos a atenção para a utilização, pelo narrador-personagem, de várias expressões que
fazem alusão à condição de morta/fantasma de Constancia por meio da tonalidade de sua pele:
“Constancia color de azucena” (FUENTES, 1991, p. 26), “rostro blanco de Constancia”
(FUENTES, 1991, p. 26), “rostro palidísimo de Constancia” (FUENTES, 1991, p. 27) e,
posteriormente, “ella ha dormido largamente. Su palidez helada como un cielo de metal me ha
mantenido junto al lecho de Constancia toda esa noche y el día entero” (FUENTES, 1991, p.
28).
O cuidado de Constancia em não se expor ao sol, após casar-se com o americano,
também chama a atenção, pois destoa de sua atitude anterior, quando a andaluza frequentava
as praças de Sevilla. Essa palidez da protagonista e o esconder-se do sol contribui para
evidenciar a sua ligação com o sobrenatural e, consequentemente, com Plotnikov, se
considerarmos que o ator russo mantinha o mesmo hábito de Constancia, abrigar-se de todas
as maneiras do sol:
[...] señor blanco como una hostia transparente, blanca piel, pelo blanco,
labios blancos, ojos palidísimos, pero todo él vestido de negro, a la usanza
de la vuelta del siglo, traje negro de tres piezas, un gabán ruso muy grande
para el actor [...] lleva abierto un parasol, negro también, y se mueve con un
paso lento y polvoso: observo sus zapatillas de charol [...] (FUENTES, 1991,
p. 18).
Sobre o aspecto simbólico, sabe-se que tanto a açucena quanto o lírio representam, no
territorios del tiempo (antología de entrevistas). México: FCE, 1999, p. 50.
119
imaginário popular, a inocência e a pureza, traços também perceptíveis em Constancia, uma
personagem que nutre extrema devoção à Virgem, justamente porque ela “no necesitó fornicar
ni parir: como una luz que pasa por un cristal, así pasó el Espíritu Santo por su sexo”
(FUENTES, 1991, p. 40). Expressos conjuntamente nesta citação, a virgindade e a
maternidade são temas centrais em Constancia e nas demais novelas que compõem o volume,
o que nos leva a crer que o sexo, para Constancia, funcionava como uma espécie de sacrifício,
“los sacrificios personales que mi deliciosa mujer española hacía en El altar de nuestro amor
domestico y solitario de una ciudad fantasmal [...]” (FUENTES, 1991, p. 41), que ela
realizava com o objetivo de conectar-se ao mundo e “alimentar” seus mortos.
Acerca do “toronjil” e da “verbena”, destacamos o efeito sinestésico que o aroma dessas
plantas em Constancia pode provocar no narrador-personagem. Esse dado é importante se
considerarmos que essa fragrância de flores e plantas, exalada por essa figura feminina,
contribui para despertar o desejo em Hull, aflorar seus sentidos e entorpecer sua razão,
favorecendo, assim, um impacto maior diante do surgimento do sobrenatural. Esse
deslumbramento do narrador-personagem explicita-se também pela maneira como descreve
minuciosamente a sua esposa, dando ênfase a partes de seu corpo e citando, inclusive,
algumas medidas de maneira genérica: “Constancia de estatura mediana y pierna corta, talle
aún estrecho pero tobillo grueso, amplio busto y cuello largo: ojos dormidos, ojerosos, un
lunar en la boca y el pelo entrecano restirado, desde siempre, en el chongo” (FUENTES,
1991, p. 26).
Ainda sobre a sinestesia, vale notar que Carlota, Consuelo/Aura e Constancia são as
personagens femininas de Carlos Fuentes descritas por seus narradores como figuras que têm
especial interesse por plantas e flores, pois isso as auxilia a manipular algo ou alguém de
acordo com seus desejos. Carlota e seu “jardín de Flandes”, ambiente que contribui
decisivamente para o aparecimento do insólito; Consuelo e seu jardim de plantas
alucinógenas, aproveitadas por ela para tentar adiar a ação do tempo sobre sua juventude; e
Constancia e seu aroma de natureza, elemento essencial durante o período de sedução do
americano.
Por essa perspectiva analítico-comparativa, podemos pensar que as personagens
femininas de Carlos Fuentes utilizam a natureza (plantas e flores) e o sexo para conectar-se ao
mundo empírico, além de lançarem mão da oração para se interligarem ao sobrenatural. Isso
120
pode ser constatado principalmente em Consuelo/Aura e Constancia, figuras que têm
ambientes parecidos (quartos-oratórios) e mantêm atitudes “religiosas” análogas quando estão
nesses lugares:
[...] La descubres hincada ante ese muro de las devociones, con la cabeza
apoyada contra los puños cerrados. La ves de lejos: hincada […] con la
cabeza hundida en los hombros delgados […] Te acercas a esa imagen
central, rodeada por las lágrimas de la Dolorosa, la sangre del Crucificado
[…] Consuelo, de rodillas, [...] se golpeará el pecho hasta derrumbarse,
frente a las imagines y las veladoras […] (FUENTES, 1994, p. 24-25).
Constancia entra a su recámara [...] y sólo logra hincarse en el reclinatorio
español con el que llegó a nuestra casa hace cuarenta años […] Se hincó ante
la imagen ampona, triangular, albeante – oro blanco, tules y perla barroca –
de Nuestra Señora de la Esperanza, la Virgen de la Macarena; se hincó en el
terciopelo gastado, unió las manos, cerró los ojos […] Estábamos en la
recamara oscura; sólo una veladora eterna a la virgen brillaba frente al rostro
palidísimo de Constancia […] (FUENTES, 1991, p. 27).
Ambos os trechos revelam uma prática comum entre os religiosos da cultura cristã dos
países latino-americanos, com grande adesão entre as mulheres. Ao ler essas passagens das
duas novelas, o leitor considera, inicialmente, tratar-se de cenas do cotidiano, o que favorece
o não estranhamento diante disso. No entanto, com o decorrer das narrativas, o leitor acaba se
dando conta de que estava enganado, pois as freqüentes orações ocultavam um significado a
mais e evidenciavam a relação dessas personagens com o sobrenatural. Tanto é assim que, em
Aura, Felipe Monteiro não demonstra nenhum estranhamento ao ver a velha Consuelo diante
daquele altar, ainda que estivesse repleto de imagens mescladas entre o “bem” e o “mal”,
como o Cristo ao lado de Luzbel. Em Constancia, o quarto de orações da protagonista foi
mantido por quarenta anos e Hull nunca desconfiou de nada, nem mesmo das diversas vezes
em que ela se trancava naquele lugar durante horas, após um desentendimento com ele.
A ambiguidade de Constancia parece refletir inclusive no discurso do narradorpersonagem quando se refere a ela. Ora ele salienta que a andaluza é “inculta”, ora reconhece
que não, a sabedoria de sua esposa advém do seu “maravilloso sentido de la cultura popular,
mágica y mítica” (FUENTES, 1991, p. 24) e não dos livros, como era o caso dele: “Ella no
lee porque ya sabe, yo leo porque todavía no sé y nos encontramos al parejo en una pregunta
que yo le hago desde la literatura y que ella contesta desde la gracia” (FUENTES, 1991, p.
25). Importante observar que o narrador-personagem enuncia substantivos que se relacionam
com o sema da fantasia e da imaginação (“mágica”, “mítica” e “gracia”), ampliando a
significância do fantástico. Imaginar e sonhar são, aliás, duas características de Constancia,
121
verbos que, somados aos substantivos citados, remete-nos diretamente ao cerne do fantástico:
Ella nunca había leído a Kafka, no había leído nada. Pero sabía imaginar y
sabia que imaginando se conoce. Es parte de un país donde el pueblo sabe
siempre más que la elite […] (FUENTES, 1991, p. 24- 25).
Ahora yo ya entendía que su sueño, junto con su piedad y su sexo (la oración
y el amor), era la verdadera literatura de Constancia, quien aparte de esa
vasta novela onírica, erótica y sagrada, que ella misma soñaba, nada
necesitaba en su vida salvo la leyenda del hijo sin ventura que una mañana,
tristeza de tristezas, compasión de compasiones, podía despertar convertido
en insecto (FUENTES, 1991, p. 49).
Podemos pensar que Constancia encarna a lógica da conjunção postulada por Olea
Franco: vida/morte, sagrada/profana, mãe/amante, passado/presente, Sevilla/Savannah,
Plotnikov/Hull. Da mesma forma que Kafka54, Constancia não tem mais vida/biografia que
não seja a criada pela “novela onírica” de seu casamento com o americano. Sendo assim, só
lhe resta imaginar e sonhar com o dia em que voltará a encontrar o amor e a maternidade ao
lado de sua família.
3.2 O ESPAÇO FICCIONAL: INTENSIFICADOR DO FANTÁSTICO
Mi casa, habitada siempre, habitada de nuevo.
(Constancia, FUENTES, 1991, p. 76).
Filipe Furtado argumenta que em narrativas fantásticas é preciso que o espaço ficcional
seja construído por meio do intercâmbio de dois tipos de “cenários”: os “realistas” e os
“alucinantes”. A respeito do espaço “realista”, o teórico afirma que ele deve predominar nesse
tipo de texto para que o leitor perceba a presença de “traços considerados mais representativos
do mundo empírico simulando, assim, um rigoroso respeito pelas leis naturais e pelo que a
‘opinião comum’ considera ser real” (FURTADO, 1980, p. 120). Esses traços imprimem
verossimilhança ao relato e indicam que o espaço mostrado faz parte de um universo “real” e,
portanto, reconhecível para o leitor. Sobre o espaço “alucinante”, o autor português argumenta
que a presença desses elementos sobrenaturais, de maneira reduzida, “contribuem para
54
Análise na página 97 deste estudo e realizada a partir do seguinte trecho da novela de Carlos Fuentes: “Así
inició su lectura de Kafka y a ella se dedicó con ahínco, repasando los libros una y otra vez, viajando de la
biografía a la ficción y encontrando, al cabo, que no había más biografía que la ficción; aceptando, pues a Kafka
como Kafka quería ser aceptado, como un hombre sin más vida que la literatura” (FUENTES, 1991, p. 40-41).
122
introduzir dados anormais no cenário anterior, originando parcelas de um espaço aparentemente
desfigurado, aberrante e não conforme aos traços do universo que mais familiares se tornaram
ao destinatário da enunciação” (FURTADO, 1980, p. 120). É a presença desses traços
“alucinantes” que lançam pistas ao leitor de que algo escapa à realidade cotidiana, antecipando a
irrupção do evento sobrenatural. Furtado faz ainda a seguinte consideração sobre o espaço na
narrativa fantástica:
[...] embora deva sobretudo contribuir para situar a acção num mundo de
aparente conformidade com o real, quase nunca o espaço fantástico pode ser
integralmente ‘realista’, apesar de este tipo de cenário ter nele um
predomínio muito acentuado. Híbrido, incerto e mal delimitado, aparentando
muitas vezes uma estrita observância das regras que condicionam o mundo
empírico para no momento seguinte subverter por completo (1980, p. 128).
Em Constancia, os espaços apresentam uma mescla das características assinaladas por
Furtado, todos são ambientes “híbridos” que reúnem elementos “realistas” e “alucinantes” e que
demonstram, desde o princípio, a iminência do evento sobrenatural. O primeiro exemplo disso
está na ambientação55 da cidade de Savannah, “ciudad fantasmal” onde se passa a trama e onde
emerge o insólito. No início de sua narração, Hull salienta como é excessivo o calor nessa
cidade americana em agosto, época do ano cujo clima entorpece:
El calor de Savannah en agosto es comparable a una siesta intermitente
interrumpida por sobresaltos indeseados: uno cree que abrió los ojos y en
realidad sólo introdujo un sueño dentro del otro. Inversamente, una realidad
se acopla a otra, deformándola al grado de que parece un sueño (FUENTES,
1991, p. 11).
Nessa primeira descrição, a presença de alguns traços alucinantes está explícita,
principalmente se considerarmos que a ambientação construída por narradores de textos
fantásticos jamais se resumirá somente ao denotado. Por essa perspectiva, destacamos a ideia
central contida no fragmento acima: Savannah provoca nas personagens a sensação de
estarem inseridas em um sonho perpétuo. Essa característica alude diretamente ao cerne do
fantástico, gênero que prima pelo apagamento de fronteiras entre essas três dimensões: a
realidade, a ilusão e o sobrenatural. Estar em Savannah gera a sensação nas personagens de
não discernimento entre esses três universos, como se estes se acoplassem uns aos outros,
55
Neste estudo, utilizamos a definição de ambientação postulada por Osman Lins que, segundo o autor, consiste
no “conjunto de processos conhecidos ou possíveis, destinados a provocar na narrativa, a noção de um
determinado ambiente” (1976, p. 77). Por essa perspectiva, a ambientação não se caracteriza como um simples
espaço (quarto, cozinha, etc.) a se visualizar, e, sim, como um todo, construído por meio do trabalho com a
linguagem, que gera múltiplos sentidos e significações dentro da narrativa.
123
como uma espécie de boneca russa, expressão utilizada, aliás, pelo narrador-personagem para
menção a aquele lugar (FUENTES, 1991, p. 22).
Essa imagem da boneca russa implica ainda outra interpretação: a de uma cidade
construída por diversas culturas, que foram umas se integrando às outras, formando, assim,
um espaço híbrido, onde coexistem americanos e estrangeiros das mais diversas origens. Essa
característica é essencial porque aguça a percepção do leitor que percebe estar diante de um
universo múltiplo, avesso à visão unívoca de realidade, uma das especificidades do fantástico.
Na sequência, o narrador-personagem acrescenta outras informações sobre a cidade
americana que indiciam o insólito:
Esta sensación de estar capturado en un dédalo urbano viene del trazo
misterioso que dio Savannah tantas plazas como estrellas tiene el
firmamento, o algo por el estilo. Cuadriculada como un tablero de ajedrez,
mi ciudad sureña rompe su monotonía con una plaza tras otra, plazas
rectangulares de las que salen cuatro, seis, ocho calles que conducen a tres,
cuatro, cinco, plazas de las cuales, en suma, irradian doce, catorce calles que
a su vez conducen a un número infinito de plazas. El misterio de Savannah,
de este modo, es su transparente sencillez geométrica. Su laberinto es la
línea recta. De esta claridad nace, sin embargo, la sensación más agobiante
de pérdida. El orden es la antesala del horror [...] (FUENTES, 1991, p. 11).
Neste trecho, é possível verificar que o narrador-personagem descreve a cidade de
Savannah por meio da alternância entre elementos realistas e alucinantes, ou seja, ao mesmo
tempo que Hull apresenta uma realidade cotidiana, ele aproveita para agregar elementos que
distorcem essa realidade. Exemplo disso é a maneira como a cidade está disposta: ruas e praças
são como um tabuleiro de xadrez, todas organizadas simetricamente de maneira a acomodar
diferentes “peças”, que devem respeitar a hierarquia e se movimentar somente em algumas
direções, cabendo somente à rainha (Constancia, podemos pensar) deslocar-se para onde lhe
convir.
Entretanto, retomando a conhecida frase de Goya (“El orden es la antesala del horror”), o
narrador-personagem confessa que essa disposição ordenada da cidade lhe provoca a sensação
de sufocamento, de vertigem, de “pérdida”. Neste ponto, é necessário refletir sobre essa
descrição de Hull sob duas perspectivas. A primeira delas diz respeito à relação desse trecho da
novela com o fantástico preconizado por Sartre (2005), cujo cerne reside na ideia de que o
homem se sente como um estrangeiro em seu próprio mundo. A segunda perspectiva sobre esse
sentimento sufocante de ordem faz alusão à recusa a qualquer noção de uniformização, seja
124
espacial, religiosa, política, biológica, ou seja, qualquer tipo de padronização, de igualamento,
de assimilação é danoso ao homem, pois o sufoca.
Há ainda no fragmento mencionado outra imagem fundamental para compreender a
ambientação da novela do autor mexicano: o labirinto, cuja definição consiste em um lugar
sinuoso, “formado artificiosamente por calles y encrucijadas, para confundir a quien se adentre
en él, de modo que no pueda acertar con la salida”56. Esse conceito de labirinto vai na contramão
da ideia descrita por Hull, que enfatiza a ordem excessiva da disposição espacial de sua cidade.
Diante disso, podemos pensar que o narrador-personagem aproxima esses dois conceitos
paradoxais, “laberinto es la línea recta”, com o intuito de revelar que Savannah, disfarçada de
aparente normalidade, oculta alguma incongruência, definindo-se como uma cidade que abriga
diferentes realidades e mistérios, como indica este outro fragmento: “Me esperaba el dédalo de
Savannah, una imagen gemela aunque enemiga de Sevilla, dos ciudades-laberinto, depositarias
de las paradojas y enigmas de dos mundos, uno llamado Nuevo, el otro Viejo” (FUENTES,
1991, p. 71). Dessa forma, a junção desses termos contraditórios enfatiza o pensamento de que
por trás da ordem/simetria se esconde o caos, pois “el orden es la antesala del horror”, como
disse Goya.
Com o intuito de conferir verossimilhança a sua novela e fazer com o narradorpersonagem obtenha credibilidade perante o leitor, Carlos Fuentes escolhe como espaço onde
surgirá o insólito uma cidade que realmente existe. De fato, Savannah fica no Sul dos EUA e
sua organização espacial está de acordo com a descrita na narrativa: é uma cidade repleta de
praças, umas ligadas às outras. O autor inclui até mesmo nomes verdadeiros de ruas e lugares,
como Drayton Street e Hyatt-Regency, por exemplo. Isso cria o efeito de sentido de
proximidade do sobrenatural ao leitor, uma vez que o evento meta-empírico não se instala em
lugares distantes e desconhecidos para este e, sim, em lugares reconhecíveis geograficamente,
o que pode inquietá-lo ainda mais.
Como visto em outras narrativas fantásticas de Carlos Fuentes, existe uma preferência do
autor por ambientar seus enredos em casarões que de alguma maneira refletem a caracterização
das personagens. Isso pode ser constatado na grande maioria das narrativas de Fuentes, como
em “Tlactocatzine”, Aura e Cumpleaños, por exemplo. Em Constancia, observa-se uma
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Definição retirada do Diccionario de la Real Academia Española. Disponível em: http://buscon.rae.es/draeI/
Acesso em: 30 de abril de 2012.
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continuidade temática nesse sentido, pois tanto a casa de Hull quanto a de Plotnikov revelam
parte da personalidade das personagens e antecipam a irrupção do insólito.
A casa de Hull, assim como a cidade retratada, é um espaço significativo na narrativa,
porque nela o narrador-personagem acredita estar protegido, “en Atlanta paso los martes [...] y el
viernes regreso a disfrutar el fin de semana en mi hogar. Es mi refugio, mi asilo, sí. Es mi
morada” (FUENTES, 1991, p. 13), e é nela onde primeiro se alojará o inexplicável. O
antagonismo entre a racionalidade e os sentidos, representados por Hull e Constancia
respectivamente, se evidencia na ambientação da casa do narrador-personagem, onde coexistem
dois espaços centrais: a biblioteca de Hull e o quarto de orações de Constancia. Para
exemplificar tal dicotomia, citamos dois trechos da novela:
Con mis entrenados dedos de bibliófilo yo suelo recorrer los lomos oscuros y
los filos dorados y polvosos de mi biblioteca, el lugar más fresco y oscuro de
la casa de Drayton Street, y esa agilidad de mi mano, gemela ejemplar de la
velocidad de mi mente sexagenaria, es para mí un motivo de orgullo. Yo era
– yo soy – un caballero letrado, parte de una herencia que mantiene mal en
los Estados Unidos, pero que se mantiene mejor en el Sur [...] (FUENTES,
1991, p. 23).
Constancia entra a su recámara [...] y sólo logra hincarse en el reclinatorio
español con el que llegó a nuestra casa hace cuarenta años […] Se hincó ante
la imagen ampona, triangular, albeante – oro blanco, tules y perla barroca –
de Nuestra Señora de la Esperanza, la Virgen de la Macarena; se hincó en el
terciopelo gastado, unió las manos, cerró los ojos […] Estábamos en la
recamara oscura; sólo una veladora eterna a la virgen brillaba frente al rostro
palidísimo de Constancia […] (FUENTES, 1991, p. 27).
Apesar de estarem descritos de acordo com as ações das personagens, esses espaços não
podem ser considerados como meros panos de fundo na narrativa, pois revelam informações
que demonstram o desfecho fantástico da trama, como, por exemplo, o fato de tanto a
biblioteca quanto o oratório funcionarem como altares para Hull e Constancia, pois abrigam
objetos de devoção de ambos: livros e a imagem de uma santa. Esses lugares de adoração
parecem nortear a vida das personagens, que, envoltas pela escuridão (biblioteca: “el lugar
más fresco y oscuro de la casa de Drayton Street” / oratório: “estábamos en la recámara
oscura”), são guiadas por esses eixos de luz (“veladora”, “filos dorados”) provenientes desses
ambientes.
A biblioteca e o oratório são espaços que Hull e Constancia utilizam como refúgio, são
lugares onde eles encontram algum tipo de repouso necessário. Com isso, a andaluza e o
americano passavam horas e até mesmo dias sem se comunicar com o mundo exterior, pois
126
ambos estavam distraídos com as histórias que “imaginavam”: Hull e a literatura, Constancia
e a religião, aparentemente. Da mesma maneira como a cidade de Savannah, a casa de Hull
parece estar disposta como um tabuleiro de xadrez, onde cada uma das personagens-peças
está locada de acordo com sua “função”, somente podendo realizar movimentos a partir disso.
Contudo, uma das características do fantástico é a subversão de regras, a transgressão de
fronteiras. Por essa perspectiva, percebemos que, a partir do momento em que Plotnikov
revela sua morte ao americano e Constancia desaparece, ocorre a renúncia dessas regras,
havendo a irrupção do sobrenatural, que desconsidera as fronteiras anteriormente delimitadas
e invade o espaço da casa mais apreciado pelo narrado-personagem, “o lugar do
conhecimento”, a sua biblioteca:
Bibliófilo, lo he dicho, no sólo busco las pastas más finas, sino que mando
encuadernar mis hallazgos: los lomos dorados son como una aureola en
torno al rostro blanco de Constancia cuando súbitamente, detrás de olla, se
ilumina, de un golpe, todas las ventanas, hasta ese instante oscurecidas, de la
casa del señor Plotnikov (FUENTES, 1991, p. 26).
Todas las noches, las luces de la casa del señor Plotnikov se prenden. Les
doy resueltamente la espalda. El resplandor entra por mis ventanas e ilumina
los lomos de mis libros. Trato de cerrar los ojos. Pero la convocatoria es
perpetua: me llaman (FUENTES, 1991, p. 76).
Por meio desses dois momentos distintos da narração de Hull, um ao início e outro ao
final de sua história, percebe-se como o sobrenatural se manifesta em sua biblioteca,
“convocando” o narrador-personagem a unir-se a ele(s). Diante disso, Hull dá as costas para
as janelas de onde vem a luz, da mesma forma como o fazia Constancia: “Constancia, en esta
hora del atardecer, está dándole la espalda a la ventana y la ventana, como todos los espacios
de la biblioteca, está rodeada de libros” (FUENTES, 1991, p. 26), certamente para não atender
ao chamado diário de Plotnikov.
Ainda sobre os trechos citados, é interessante atentar-se para dois pontos. O primeiro
consiste na imagem da auréola ao redor do rosto pálido de Constancia produzida pelo tom
dourado das lombadas dos livros. Ao realizar uma pesquisa sobre o vocábulo “aureola”,
encontramos a seguinte definição: “aureola. (Del lat. aureŏla, dorada). 1. f. Resplandor, disco
o círculo luminoso que suele figurarse detrás de la cabeza de las imágenes sagradas”57. Essa
informação é importante na medida em que colabora para avivar o efeito do fantástico ao
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Acesso em: 30 de abril de 2012.
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antecipar a relação da protagonista com o sobrenatural, como indicado, inclusive, pelo próprio
título da obra: Constancia y otras novelas para vírgenes, que pode se referir a mulheres que
não manteram relações sexuais, mas pode também fazer menção a divindades. O segundo
ponto está na maneira como acontece a convocatória de Hull: as luzes da casa de Plotnikov se
acendem e iluminam as lombadas dos livros do americano. Essa cena é importante se
pensarmos que o fantástico, ao longo de sua história, buscou contestar as “conquistas”
acadêmico-científicas. Sendo assim, a imagem das luzes da casa de Plotnikov iluminando os
livros de Hull simboliza a ideia de que seria o desconhecido/sobrenatural o responsável por
lançar luz sobre o conhecido/racional, e não o contrário.
Outro espaço que contribui para acentuar o sentimento do fantástico no leitor é a casa de
Plotnikov. Conhecendo o desenlace da história de antemão, o narrador-personagem joga com
suas palavras, insere expressões realistas misturadas com alucinantes e, com isso, produz
duplos sentidos, como na seguinte passagem: “Normalmente, nada emanaba de la casa en la
contraesquina de la nuestra. Era una casa deshabitada en apariencia” (FUENTES, 1991, p.
32). Nessa aparente simples descrição, Hull emite algumas palavras que, quando consideradas
dentro do contexto da narrativa, evidenciam ambiguidades e acentuam o sobrenatural, como
“emanar”, por exemplo, cujo significado estabelece: “Dicho de una sustancia volátil:
Desprenderse de un cuerpo”58. O leitor que não tiver essa informação não sofrerá grandes
prejuízos na leitura e interpretação do texto. Mas, caso ele conheça a definição desse verbo
(“emanar”), certamente cogitará a possibilidade de Hull estar se referindo a algum fantasma,
mais especificamente a Plotnikov.
O emprego do advérbio “normalmente” também exerce função essencial para o
contexto da narrativa, pois desempenha uma dupla função dentro do texto: primeira, funciona
como um divisor temporal, demarcando um antes e um depois, e sinalizando a
excepcionalidade do momento posterior; segunda, reforça a dúvida ao sublinhar a incerteza de
Hull, que dá a entender que, a partir daquele instante, não teria como garantir mais nada,
principalmente o não aparecimento de alguém naquele lugar, já que a casa estava
“deshabitada en apariencia”.
Mais adiante, o narrador-personagem renuncia ao modalizador e afirma categoricamente
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que a casa está vazia e que não entende como, apesar disso, continuam entregando leite e
jornal naquele endereço:
Ésta fue mi justificación para huir; […] cruzar la calle Drayton, […] subir
los peldaños de piedra de la casa donde habitaba monsieur Plotnikov,
tropezar con las botellas de leche acumuladas frente a la puerta, botellas
cuajadas, de liquido amarillento ya, con una capa verdosa, los periódicos
arrojados con descuido, aunque dentro de su fajilla, los grandes caracteres
cirílicos visibles… No entendiendo porque los lecheros insisten en cumplir
[…] su función […] El lechero le está anunciando al mundo que la casa está
deshabitada […] (FUENTES, 1991, p. 49).
A utilização dos verbos “emanaba” e “habitaba”, ambos no pretérito imperfeito do
indicativo, como observado nos dois últimos trechos referidos, indica que algo ocorreu, por
repetidas vezes, no passado, porém não se explicita exatamente quando (dia, mês ou ano), o
que sublinha a ambiguidade das palavras do narrador-personagem e transmite ao leitor a
incerteza sobre a existência de prováveis habitantes naquela casa.
O acúmulo na porta da casa de Plotnikov de leite e jornal entregues diariamente sugere
que tipo de habitante poderia viver ali ao mesmo tempo que anuncia a sua ausência. Essa
informação anuncia o fantástico, pois, em seguida, Hull descobre quem eram os “reais”
habitantes daquela casa, Plotnikov e seu pequeno filho: “Levanté la tapa. Monsieur Plotnikov,
ahora vestido todo de blanco, yacía adentro del mausoleo de madera. Abrazaba el esqueleto de
un niño que no podía tener más de dos años de edad” (FUENTES, 1991, p. 58). Essa
descoberta justifica a entrega de jornais e leite diariamente, porém não soluciona o enigma da
morte de ambos, deixando o leitor imerso em certezas que não respondem nada, pelo menos
não logicamente.
Tratemos agora da ambientação interna da casa de Plotnikov que é descrita pelo
narrador-personagem como sendo do século XIX, repleta de cômodos, entre os quais estão
três em especial, dois decorados conforme a origem de seus habitantes, um russo e um
espanhol, e o outro é o local onde estava o féretro de Plotnikov e a criança. Ao entrar na casa
do ator russo, o narrador-personagem passa por um jardim (espaço recorrente na obra
fantástica de Carlos Fuentes, como expusemos anteriormente) que leva a dois ambientes
distintos, um russo e outro espanhol, Hull opta por entrar no primeiro e faz a seguinte
descrição desse lugar:
Pasé al comedor ruso, con muebles tan pesados como el soberbio samovar
instalado en el centro de la mesa de patas gruesas y blancos manteles; platos
129
con motivos e ilustraciones populares rusas y en los muros no los iconos que
mi imaginación había anticipado, sino dos cuadros de ese academismo ruso
[…] El primero reproducía una escena sumamente externa, una troica, una
familia que sale de excursión, mucha alegría, abrigos, pieles […], horizonte
inmenso… El otro cuadro, totalmente interno, era una recamara apenas
iluminada, una cama de agonía, donde yacía muerta una mujer joven. A su
lado, de pie, un doctor, maletín en el suelo, tomando el pulso final de la
muerta (FUENTES, 1991, p. 50).
Ambas as cenas contidas nos dois quadros pintados em muros e descritos pelo narrador
funcionam como retábulos59, ao narrar parte da história da “Virgen” Constancia para que Hull
a conheça e, consequentemente, aprenda algo com ela. Essa narração aborda, em um primeiro
momento, a época que ela vivia feliz com Plotnikov e o filho do casal, portanto, tinha um
“horizonte inmenso” de possibilidades. No segundo momento, cronologicamente posterior ao
primeiro, fica sugerido que Constancia já estaria com Hull, o médico. Trata-se do período em
que ela se encontra enferma, após a revelação da morte de Plotnikov, instante em que o
americano tem a oportunidade de tratá-la como paciente pela primeira vez em quarenta anos
de convívio: “Mi emoción fue grande, pues, al tenerla por primera vez entre mis manos
(quiero decir, a mi cuidado): mi paciente” (FUENTES, 1991, p. 30).
Os advérbios de lugar “externo” e “interno”, presentes no fragmento que descreve o
“comedor ruso” e seus quadros, convergem com a nossa hipótese, de que Constancia
mostrava-se pelas ruas e praças de Sevilla, mesmo após a sua “morte”, por isso o quadro
descreve um ambiente “externo”. Em contraposição a isso, está o outro quadro, em que temos
uma descrição “interna” que retoma uma das falas do narrador ao afirmar que sua esposa
mantinha-se reclusa em sua casa e, aos entardeceres, passava horas com portas e janelas
fechadas para, segundo ele, proteger-se do calor de Savannah.
Vale ressaltar a maneira “normal” como o fantástico é construído, ou seja, os dois
quadros apenas contam a história de uma mulher e não há, aparentemente, nenhum elemento
mágico ou assustador. Eles apenas lançam pistas para o narrador-personagem e para o leitor
sobre o fantástico. Diante deles, Hull não percebe nada inicialmente, apesar da referencia
explicita à Constancia e a ele. Com isso, dominado por seu instinto de curiosidade em
conhecer mais sobre a vida de Plotnikov, o americano continua sua exploração pela casa
59
Segundo o Moderno Dicionário de Língua Portuguesa da Michaelis, o vocábulo “retábulo” consiste em:
“1 Trabalho de arquitetura, de pedra ou madeira, com lavores na parte posterior do altar, e em que se representa
qualquer motivo religioso. 2 Painel ou quadro que decora um altar. 3 Painel”. Disponível em:
http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php. Acesso em: 02 de maio de 2012.
130
vizinha e entra no cômodo seguinte, o decorado com a temática espanhola:
El otro salón era la recepción y su carácter era notoriamente español. […]
Encima del mantón había una serie de fotografías enmarcadas en plata. No
conocía a los representados en ellas; ninguna foto, me dije al observarlas,
data de una fecha posterior a la Guerra Civil española. […] Las mujeres
vestidas siempre de blanco, pertenecían a una generación capturada entre las
virtudes del fin de siglo y los inevitables (y aguardados) pecados del siglo
nuevo […]. Las bailarinas eran la excepción: había allí dos o tres retratos de
una mujer maravillosamente hermosa, toda ella una ilusión de piernas largas,
talle estrecho […], cuello de cisne, […] pelo negro también: la figura
inclinada con pasión y gracia hacia la tierra, inclinada para dar vida o
perderla: quién sabe. No pude identificar al señor Plotnikov en estas fotos
[…] (FUENTES, 1991, p. 50-51).
Tal qual a anterior, a ambientação desse salão também antecipa a relação entre
Constancia e Plotnikov e cria uma atmosfera de normalidade anormal. O salão repleto de
fotos, todas com datas anteriores à Guerra Civil espanhola, deixam entrever que, após esse
evento, nenhum membro daquela família tirou fotografias, o que nos indica que todos foram
mortos ou que se separaram por causa da guerra.
Igualmente importante é a maneira como o narrador-personagem contrapõe as imagens
das fotografias em que estão as mulheres de branco e as bailarinas. Por esse ponto de vista,
essa contraposição marca claramente uma diferença de hábitos comportamentais de parte das
mulheres daquele período, ou seja, antes de 1936, ano do início da guerra na Espanha.
Considerando esses hábitos e os costumes dessa época, cremos que, por um lado, as mulheres
vestidas de branco representam a família, a maternidade e parte da sociedade que mantinha
hábitos mais “conservadores”. Por outro lado, está a “exceção”, como salienta o narrador, isto
é, as bailarinas fazendo referência ao universo andaluzo-espanhol da feminilidade e
sensualidade, no qual estaria Constancia, segundo a ótica de Hull, que descreve uma dessas
personagens utilizando palavras e expressões semelhantes às usadas por ele para detalhar a
sua esposa. Apesar de todas essas pistas, o narrador-personagem não desvenda o mistério, o
que faz com que haja uma intervenção do sobrenatural:
Escuché en la sala el batir invisible de alas y mi atención se fijó en una foto:
el señor Plotnikov […] inclinado esta vez […] sobre Constancia vestida de
blanco, mi mujer […] con un niño sostenido en el regazo, un niño difícil de
definir, borroso porque se movió en el instante de ser tomada la foto […]
(FUENTES, 1991, p. 51).
Hull descobre, finalmente, a fotografia que comprova a ligação de Plotnikov e
Constancia, agora vestida de branco em menção à família e à maternidade. Toda a construção
131
desse ambiente anuncia o insólito e a presença desse último objeto “mediador” (a fotografia)
enfatiza essa evidência. Não há mais dúvidas: Constancia e Plotnikov foram casados e dessa
união resultou uma criança, nunca mencionada diretamente, mas sempre presente no discurso
obsessivo da andaluza pela maternidade e compaixão a filhos desventurados. Um exemplo
disso se dá quando Constancia implora por um filho: “un hijo, por favor, aunque sea triste”
(FUENTES, 1991, p. 41).
Outro detalhe relevante que essa fotografia apresenta diz respeito ao rosto da criança,
que nessa imagem está “borrado”, como uma espécie de prenúncio de sua morte. Ao final da
novela, quando Hull encontra a família escondida em seu sótão, a expressão facial dessa
criança é totalmente distinta, torna-se clara, “[Constancia] abrazaba a [un niño] de quince o
veinte meses, moreno y sonriente, con una gran risa blanca en medio del oscuro terror de sus
padres” (FUENTES, 1991, p. 72-73), como se estivesse anunciando a sua alegria em viver a
“ressurreição”.
Perante a revelação do segredo de Constancia e Plotnikov, Hull age da mesma forma
que sua esposa em momentos de desentendimentos com ele60: o americano corre para a parte
superior da casa do ator russo e, a medida que vai subindo, sente que parece estar entrando em
outro clima:
A medida que penetro la casa decimonónica de monsieur Plotnikov, un
sopor, una lentitud inusitados se apropian de mi cuerpo y de mi espíritu: los
separa. El cuerpo parece irse de un lado y el alma de otro […] Subo por esta
escalera a una altura superior a la que indica el paso de un piso a otro, subo a
otro clima, lo sé, a otra altitud geográfica, a un frío repentino, a un hambre
de oxígeno que me llena de una falsa euforia aunque yo ya sé que es el
preludio de algo atroz (FUENTES, 1991, p. 52).
Essa passagem da novela faz alusão direta ao fantástico. O narrador-personagem conta
como era esse ambiente e a sua atmosfera sobrenatural, que tinha o poder de provocar a
sensação de separação entre o corpo e a alma, entre a razão e os sentidos. Subindo aquelas
escadas, como em uma iniciação, Hull pressente que está prestes a cruzar a fronteira entre o
real e o irreal e sente que isso transformará a sua concepção de vida.
A fala de Hull, descrita no fragmento acima, faz com que o leitor hesite diante da
possibilidade da morte do narrador-personagem, pois o fato de ele enfatizar que está sentindo
60
“Entonces ella se suelta de mi brazo, grita, corre a encerrarse en su recámara durante un día entero […]”
(FUENTES, 1991, p. 40).
132
a separação entre o corpo e a alma durante essa subida (este, aliás, é um vocábulo ambíguo
que intensifica essa interpretação) dá a impressão de que prontamente irá morrer, o que
aumenta ainda mais a dúvida em relação à sua saída vivo daquele lugar, abrindo margem para
se pensar que, se não saiu vivo, isso poderia ser imperceptível, já que a narrativa apresenta
fantasmas vivendo como pessoas “reais”.
Ao terminar a subida até aquele ambiente, Hull encontra o lugar onde estavam
Plotnikov e seu filho:
En el centro del piso de tierra se levanta el féretro, plantado sobre un círculo
de tierra roja. Sé que es un féretro porque tiene la forma de tal y la capacidad
para recibir un cuerpo humano, pero su construcción barroca revela un
singular arte de la carpintería. […] En la tapa de la tumba está esculpida […]
la figura yacente de una mujer, el perfil más dulce, los parpados más largos,
el ceño más triste; las manos de la piedad se cruzan sobre sus pechos; viste
cofia y manto: la iconografía popular me obliga a imaginar los colores
blanco y azul […] No hay iconos: […] sólo mis pies cubiertos de polvo rojo,
que yo miro estúpidamente (FUENTES, 1991, p. 57).
A ambientação desse espaço, onde jaziam os mortos de Constancia, funciona como
ponto-chave ao retomar alguns aspectos anunciados anteriormente na narrativa que
apontavam pistas da existência do sobrenatural, de maneira pouco compreensível
inicialmente. A presença da “tierra roja” ao redor do caixão é um exemplo relevante, pois esse
elemento aparece algumas outras vezes no texto, como, por exemplo, nos sapatos de
Plotnikov e de Constancia respectivamente:
Una vez lo encontré en el cementerio donde a veces voy a visitar a mis
antepasados. Vestido como siempre de negro, caminaba muy lentamente
sobre la tierra roja [...] (FUENTES, 1991, p. 15).
[…] las puntas de los zapatos de Constancia están cubiertas de polvo. Y lo
segundo que noto, en la mejor tradición sherlockiana, es que la tierra roja –
apenas finísima película – que cubre las puntas viene de un lugar que
conozco de sobra [...] (FUENTES, 1991, p. 25).
A terra vermelha faz parte da composição do cemitério da cidade, lugar que Plotnikov e
Constancia frequentavam, conforme pensamento inicial do narrador-personagem e do leitor
consequentemente, para “visitar” a seus mortos. No entanto, com a descoberta desse ambiente
fúnebre onde jaziam o ator russo e seu filho, tanto narrador quanto leitor descobrem que
estavam enganados ou, pelo menos, parcialmente informados. Passa-se a considerar que as
regulares visitas da andaluza e do russo ao cemitério ocorriam porque ambos buscavam a terra
necessária para construir o mencionado túmulo. Com isso, a presença de poeira nos sapatos de
133
Constancia denuncia o seu vínculo com Plotnikov, dando a entender que ela fazia visitas
regulares à casa do russo e ao túmulo de seu filho.
Deve-se notar que na segunda passagem em destaque, Hull induz o leitor a pensar que a
terra nos sapatos de Constancia refere-se à sua ida ao cemitério, lugar que o casal frequentava
e que por isso ele afirma conhecer de “sobra”. O objetivo do narrador-personagem com isso é
provocar no leitor o mesmo sentimento que ele sentiu (“yo miro estúpidamente”), ao
compreender que as suas certezas eram somente meros equívocos.
Significativo também é o fato de Hull enfatizar o exímio trabalho de carpintaria
utilizado para fazer aquele caixão, que tinha gravado em sua tampa a imagem de uma mulher
e que, pela descrição, tratava-se de uma divindade, abrindo possibilidade para se pensar que
seria a imagem de Constancia. Isso remete ao final da novela, momento em que personagem e
leitor descobrem que Plotnikov era carpinteiro: “señor mira ve, aquí mismo, encontré tus
cosas de carpintería, yo era carpintero en ni pueblo, he estado reparando cosas en tu casa [...]”
(FUENTES, 1991, p. 73). Diante disso, o conjunto dessas informações incita o leitor a pensar
que o caixão e sua tampa gravada com a imagem de uma santa bem como os dois cadáveres
revelam o final da história dessa espécie de “sagrada família”, retratada inicialmente pelos
retábulos dispostos na salas temáticas da casa de Plotnikov.
Podemos dizer que em Constancia os diversos espaços apresentam a mescla de
elementos realistas e alucinantes por meio de um jogo narrativo que se ancora em palavras e
frases que favorecem a ambiguidade e geram múltiplos significados para o enredo. Os
aspectos considerados realistas são arquitetados com o intuito de induzir o leitor a acreditar
em uma possível normalidade, aproximá-lo desse universo ficcional e envolvê-lo nesse
grande labirinto. Os elementos alucinantes são revelados sutil e conjuntamente com os
realistas, lançando pistas que ora mostram e ora ocultam o insólito, porém sem descortiná-lo
completamente. Isso é fundamental para que, quando isso ocorra, o impacto gerado seja maior
e provoque no leitor a sensação de que a sua noção de concretude era parcial e equivocada,
sendo preciso, portanto, reconsiderá-la. Por essa perspectiva, evidencia-se a inquietude do
autor mexicano perante a univocidade do discurso histórico. Carlos Fuentes construiu um
enredo que retrata a perseguição vivida por exilados políticos que consegue, por meio de uma
história individual (de uma família), tocar a história coletiva, já que essa é a realidade de
muitas pessoas exiladas ao longo do século XX.
134
Ressaltamos, para finalizar, que a análise de Constancia convergiu com a nossa hipótese
ao evidenciar que nas obras fantásticas de Carlos Fuentes ocorre a reiteração de determinadas
diretrizes temáticas, já presentes em outros textos do autor e assinaladas no capítulo anterior.
Nesse sentido, citamos a ambientação como elemento que reflete e antecipa o insólito, a
presença de duplos e de seres sobrenaturais, fantasmas no caso de Constancia. A irrupção do
sobrenatural como elemento desestabilizador de uma realidade racionalista também é
recorrente e, na maioria das narrativas analisadas, o insólito surge diante de personagens que
estão relacionados ao universo científico, como visto em Aura, Constancia e “Gente de
razón”, por exemplo.
Outra continuidade temática pode ser observada na ideia do resgate de uma memória e o
movimento de regresso às origens. Em Constancia, Hull é sujeito performático, pois resgata
do esquecimento a história de Constancia e a passa adiante por meio de seus escritos, além de
também registrar parte de sua biografia. O regresso às origens ocorre no final da diegese,
momento em que o narrador-protagonista retorna a seu lar e encontra Constancia, Plotnikov e
o filho do casal abrigados (refugiados) em sua casa, de volta a um ponto inicial, como se
tivessem uma nova chance de voltar a viver. Nesse momento, eles lutam para resgatar suas
vidas, que foram aniquiladas pelo autoritarismo. Porém, eles jamais voltarão a ser os mesmos,
pois a experiência da perseguição e assassinato produziu traumas irreversíveis, como
demonstra o diálogo final entre Hull e Plotnikov, em que este pede a aquele que não o
entregue a seus algozes.
A presença de uma personagem feminina que se relaciona com o sobrenatural também
faz parte desse continuum temático reiterado nas narrativas fantásticas de Carlos Fuentes.
Como exposto anteriormente, Constancia é herdeira de uma cultura mítico-popular, da qual
ela faz uso nos momentos em que sente necessidade. Essa figura, da mesma forma como
outras de Carlos Fuentes, é a responsável por demonstrar ao narrador-personagem que suas
crenças estavam fundadas num conhecimento parcial, subvertido ao longo da narrativa.
Da mesma maneira que Constancia apresenta continuidades, esta novela também traz
inovações para o conjunto da obra do escritor mexicano. Como exemplo disso, citamos a
revelação do insólito nas primeiras linhas da novela, característica que a diferencia das outras
narrativas fantásticas de Fuentes ao mesmo tempo que promove um diálogo com a obra A
Metamorfose, de Franz Kafka. A postura detetivesca de Whitby Hull também ganha destaque
135
na trama e revela uma faceta policial do escritor mexicano, remetendo, inclusive, ao modo de
narrar de Edgar Allan Poe, escritor admirado por Carlos Fuentes.
136
CONSIDERAÇÕES FINAIS: TRAJETÓRIAS E ESPELHAMENTOS DO
FANTÁSTICO NA NARRATIVA DE CARLOS FUENTES
Siempre hay algún elemento de distorsión. Y siempre trato,
aun en los más realistas de mis cuentos, de introducir
ese elemento perturbador o deformante.
(Carlos Fuentes)61
Com base em uma linha teórica que privilegia a análise textual do gênero fantástico e
noutra linha que trata das obras de Carlos Fuentes, procuramos examinar a construção do
fantástico na novela Constancia. Vimos que, neste texto, é possível encontrar uma série de
continuidades temáticas, se comparado a determinado conjunto de narrativas do autor
mexicano. O apagamento de fronteiras entre a vida e a morte, o questionamento de uma noção
de realidade unívoca e o protagonismo da personagem feminina são alguns exemplos.
Observamos ainda que Constancia, ao mesmo tempo que apresenta continuidades, também
traz inovações em relação às demais narrativas de Fuentes, principalmente no que diz respeito
à postura detetivesca do narrador-personagem. O anúncio do inexplicável já nas primeiras
linhas da novela e a abordagem de traumas vividos por personagens que sofreram
perseguições políticas do século XX também fazem parte dessas inovações.
Sobre este último aspecto, podemos dizer que, ao tratar da tríade Rússia-EspanhaEstados Unidos juntamente com o tema do exílio e da morte de personagens nos primeiros
países em destaque, Carlos Fuentes buscou desterritorializar sua literatura ao abordar tais
tragédias humanas. O autor demonstra, com isso, uma tentativa de dialogar com a História ao
mesmo tempo que também estabelece contato com uma literatura universal, uma vez que ele
retoma obras de intelectuais como Walter Benjamin e Franz Kafka, por exemplo.
Para esta pesquisa, escolhemos uma metodologia que, no primeiro capítulo, consistiu
num debate sobre as teorias do fantástico e sobre o aparecimento, na América de língua
espanhola do século XX, de uma gama de escritores que difundiu e consolidou uma tradição
de textos do gênero, cuja característica basilar consistiu na reunião da imaginação com um
exímio trabalho com a linguagem. Sobre o desenvolvimento da parte teórica deste trabalho,
61
Declaração feita em entrevista concedida a Ricardo C. Gally. In: HERNÀNDEZ, Jorge (comp.). Carlos
Fuentes: territorios del tiempo (antología de entrevistas). México: FCE, 1999, p. 262.
137
destacamos sua relevância na medida em que, por meio da realização de um debate teórico,
conseguimos ter uma visão mais ampla e crítica sobre as distintas interfaces teóricas do
fantástico e suas características.
Compreender o contexto hispano-americano e sua relação com a literatura fantástica
também foi essencial, pois, como sabemos, todo autor está inserido em um contexto, o qual,
direta ou indiretamente, acaba influenciando a sua produção literária. No caso de Carlos
Fuentes essa influência foi direta, já que o autor mexicano sempre manteve vínculos com
vários intelectuais de sua época, que buscaram renovar o modo de pensar a América Latina
através de um novo fazer literário. Essa nova literatura, ou “nueva novela”, rompeu com
antigos moldes realistas e utilitaristas de fazer ficção e se baseou em outros aspectos, como a
valorização da imaginação, da ambiguidade e da polifonia, bem como da identidade
americana e da tríade “mito, lenguaje, estructura”, para utilizar as palavras de Carlos
Fuentes62. Elementos estes dos quais o autor faz uso em suas obras. Por esse viés, entender
esse contexto e as teorias do fantástico colaborou decisivamente para a compreensão de nosso
corpus e das demais obras do autor mexicano.
Tendo em vista os resultados do primeiro capítulo e almejando iluminar perspectivas
que favoreçam a análise de nosso corpus, no segundo capítulo deste trabalho, procuramos
traçar um panorama sobre a relação de Carlos Fuentes com a literatura fantástica. Nessa parte,
buscamos mapear a gênese dessa relação e entender de que maneira a primeira obra do autor
(Los días enmascarados - 1954) serviu como base para seus escritos posteriores. Feito isso,
partimos para a análise das distintas narrativas do autor mexicano que apresentam o
sobrenatural, com o intuito de investigar a construção do fantástico nessas obras e verificar,
ainda, a pertinência de nossa hipótese: é possível encontrar, nessas narrativas fantásticas, a
reiteração de determinados eixos.
Chegamos, por fim, ao capítulo de análise de Constancia, que foi fundamentado em
duas linhas de investigação. A primeira consistiu na elaboração de reflexões sobre os
procedimentos narrativos que constroem o fantástico nessa obra (revelações). Nesse sentido,
buscamos realizar um debate sobre em que medida as técnicas empregadas pelo autor para
criar essa atmosfera enigmática contribuem para desencadear a dúvida e o mistério, além de
anteciparem o desenlace sobrenatural da história. A segunda linha de investigação de nosso
62
FUENTES, Carlos. La nueva novela hispanoamericana. México: Joaquín Mortiz, 1976.
138
corpus baseou-se na análise do texto considerando-o como parte de um conjunto de outras
narrativas fantásticas do autor com a finalidade de examinar a reiteração de determinados
eixos comuns entre os textos fantásticos de Carlos Fuentes (continuidades).
Os resultados desse percurso analítico-comparativo mostram que é possível encontrar a
recorrência de determinadas diretrizes nas obras do autor mexicano que se alinham com as
vertentes do fantástico. Esse continuum contribui para interligar os diferentes textos do autor
ao mesmo em que promove um diálogo entre eles, favorecendo, assim, a renovação e a
reformulação dessas continuidades em distintas épocas, ainda que se apresentem sob
diferentes perspectivas63. Observou-se, portanto, que a trajetória ficcional de textos fantásticos
de Carlos Fuentes está ancorada nessas diretrizes que funcionam como verdadeiros fios
condutores dessas narrativas.
Baseados nisso, exporemos algumas palavras que não têm o objetivo de encerrar
reflexões em torno de nosso corpus e das outras obras ficcionais do escritor mexicano. Muito
pelo contrário: cientes do caráter introdutório de nossas considerações, o que almejamos é,
antes, abrir o leque de possibilidades interpretativas para tais escritos e colaborar para a
compreensão da obra do escritor mexicano.
Dito isso, a primeira continuidade que destacamos consiste na articulação de enredos
ambíguos, polifônicos e reveladores de universos desconhecidos e inquietantes, que
desestabilizam os preceitos de concretude em que se funda uma sociedade. Carlos Fuentes
arquiteta as suas narrativas fantásticas e realistas (como sugere a epígrafe deste capítulo)
agregando um elemento destoante e perturbador, que escapa à noção sistemática de realidade.
Sobre esse aspecto, devemos salientar que essa é uma característica comum não somente na
literatura de Fuentes mas também em escritos de outros autores. No entanto, como já
expusemos anteriormente, o México, apesar de ser um país marcado pela cultura míticoindígena, caracterizou-se por uma produção literária realista, fato que, em parte, se explica
devido à influência de ideologias cientificistas, oriundas de governos como de Porfírio Díaz,
por exemplo, estruturado a partir de ideias positivistas.
63
Como ressaltamos anteriormente, os textos de Carlos Fuentes devem ser considerados dentro de um conjunto.
Portanto, a divisão que fazemos neste trabalho é meramente didática. Sendo assim, as características apontadas
como pertencentes aos textos fantásticos do autor podem ser encontradas, em sua grande maioria, também em
suas obras de caráter realista.
139
Nesse sentido, ao produzir narrativas que contribuem para desestabilizar essa concepção
lógico-burguesa, Carlos Fuentes assume uma postura de vanguarda ao se rebelar,
ficcionalmente, contra essas amarras racionalistas de compreensão da literatura e da realidade.
Por essa perspectiva, a opção do autor pela temática do insólito para suas narrativas
demonstra um gesto ideológico que vai além de uma simples preferência estético-literária.
Essa ideia pode ser constatada nas seguintes palavras do mexicano:
Nuestras obras deben ser de desorden: es decir, de un orden posible,
contrario al actual. […] Nuestra literatura es verdaderamente revolucionaria
en cuanto le niega al orden establecido el léxico que éste quisiera y le opone
el lenguaje de la alarma, la renovación, el desorden y el humor. El lenguaje,
en suma, de la ambigüedad: de la pluralidad de significados, de la
constelación de alusiones: de la apertura (FUENTES, 1976, p. 32)64.
Como representantes dessa “orden” empírica, Fuentes elege, em suas narrativas,
personagens céticos, geralmente relacionados ao universo científico, que se verão diante do
sobrenatural e da “desorden”. Como exemplo disso, citamos Aura e o historiador Felipe
Montero, Constancia e o médico Whitby Hull, ou ainda “Gente de razón” e os arquitetos
Carlos María e José María Vélez, para mencionar algumas obras.
Outra continuidade temática presente nas narrativas de Fuentes consiste na apropriação
de fatos históricos para a construção de enredos que trazem personagens representantes de
universos minoritários (indígenas, mulheres, perseguidos políticos) que, de alguma forma,
foram silenciadas pela violência do poder arbitrário. Por essa perspectiva, entendemos que
Carlos Fuentes enfatiza o caráter plurívoco e dialógico de sua literatura e, por conseguinte, da
realidade ao relegar voz a personagens silenciadas, como observa Lúcia Trevisan:
Quando as personagens literárias são apropriadas por Fuentes, percebe-se
uma referência a um tipo de construção literária que se permite dar voz aos
anônimos da história, explicitando a pluralidade de discursos e não o resumo
unívoco daquilo que seria a ideologia de determinado período (2008, p. 183).
O autor consegue, com isso, problematizar uma visão unívoca de realidade ao promover
o permanente entrecruzamento das múltiplas vozes em suas narrativas por meio da memória,
da imaginação e da linguagem. Isso se evidencia primeiramente em “Chac Mool” e
“Tlactocatzine, del jardín de Flandes” e se reflete, posteriormente, em Constancia, “La gata
de mi madre” e “La bella durmiente”, todos textos que, por meio de uma história individual,
64
Carlos Fuentes se refere a seus textos e do conjunto de escritores latino-americanos de sua época, como J.
Cortázar e G. G. Márquez, por exemplo.
140
propõem reflexões que tocam a História coletiva e humana, apresentando os “diferentes
sujeitos históricos no mundo, um mundo que cada vez mais tenta homogeneizar as
diferenças” (TREVISAN, 1994, p. 38).
O movimento de retorno às origens caracteriza-se como outra continuidade recorrente
nos textos fantásticos de Carlos Fuentes. As personagens do autor mexicano buscam o
regresso ao passado com o intuito de resgatar uma memória e, com isso, tentar o reajuste de
uma identidade que foi fragmentada. No entanto, ao realizar esse retorno, essas personagens
percebem a impossibilidade desse resgate, pois a condição inicial almejada já não existe mais;
o que há é uma nova realidade, mais incerta do que a anterior. Esse eixo pode ser encontrado
em “Chac Mool”, “Tlactocatzine”, Aura, Cumpleaños, Constancia, Instinto de Inez, “Buena
Compañía”, entre outros.
A relação das personagens femininas com o sobrenatural é outra especificidade das
narrativas fantásticas de Carlos Fuentes, como mostramos anteriormente. Ambíguas, essas
protagonistas conseguem extinguir as fronteiras entre o passado e o presente, entre a vida e
morte, entre o racionalmente aceito e o inexplicável. Carlota, de “Tlactocatzine”, é a primeira
personagem nesse sentido. Aparecem posteriormente Consuelo-Aura, Nuncia, Constancia,
Inez, Calixta, Lala, Alberta, entre outras. Essa é uma característica, inclusive, bastante
explorada nos textos fantásticos do século XIX, que traziam figuras femininas erotizadas e
transgressoras de fronteiras. Carlos Fuentes se serve dessas especificidades no momento de
criar suas narrativas. Além dessa característica, o autor mexicano também lança mão de outras
temáticas desse fantástico tradicional para escrever suas narrativas, como a preferência por
enredos ambientados em casarões antigos, a escolha por figuras conhecidas tradicionalmente
por seu caráter fantástico, e a manifestação de personagens que apresentam duplos.
Sobre o primeiro aspecto citado, observa-se que é uma temática comum nas narrativas
do autor, que constrói narrativas cujos espaços evidenciam a irrupção do insólito, além de
refletirem traços das personagens que nele habitam. Nesse sentido, temos “Tlactocatzine”,
Aura, Constancia, “La gata mi madre”, “Vlad”, para citar apenas alguns exemplos. Todas
essas narrativas trazem ambientações que favorecem o sentimento do fantástico nas
personagens e no leitor por meio da mescla ambígua entre traços realistas e alucinantes, para
mencionar Furtado. No que se refere ao segundo aspecto, o autor mexicano, na esteira de
escritores como E. T. A. Hoffman, Prosper Mérimée, Bram Stoker entre outros, também opta
141
por escrever histórias cujo elemento destoante é personificado num ser sobrenatural. Dessa
forma, temos, por exemplo, estátuas e bonecas animadas (“Chac Mool” e “La Desdichada”),
anjos (Miguel Asmá), fantasmas (Constancia e Plotnikov de Constancia, Alex de “Buena
Compañía”, Lupe e Florencio de “La gata de mi madre”, Alberta e Caballero de “La bella
durmiente”), divindades (Chac Mool e o menino Jesus de “Gente de razón”), e o vampiro
Conde Drácula, em “Vlad”. O tema do duplo, terceiro aspecto que se reitera, também surge
constantemente nas obras fantásticas de Carlos Fuentes. O autor emprega esse recurso das
mais distintas maneiras, de modo a suscitar e intensificar a ambiguidade dentro da narrativa.
Assim, existem duplos temáticos e estruturais. Para exemplificar o primeiro, destacamos o
duplo personificado em Consuelo-Aura (Aura) e Rubén Oliva e Pedro Romero (“Viva mi
fama”), a dupla vida que Constancia e Plotnikov levavam (Constancia), a oscilação narrativa
entre dois tempos e universos (pré-história-sonho e século XX-realidade) em Instinto de Inez,
e a frequente polarização entre as personagens, divididas em racionais e não-racionais: Chac
Mool-Filiberto (“Chac Mool”), Consuelo-Felipe (Aura), Constancia-Hull (Constancia),
Carlos e José-operários (“Gente de razón”), Serena e Zenaida-Alex (“Buena Compañía”).
Exemplo do segundo tipo de duplo pode ser encontrado nas diversas bifurcações estruturais,
como a manifestação de pontos de vista de dois narradores distintos: Bernardo e Toño (“La
Desdichada”); a mudança no foco narrativo da 3ª para a 2ª pessoa em Instinto de Inez; ou
ainda o uso da 2ª pessoa do singular (tu) em Aura.
Vale observar ainda que essas continuidades podem ser observadas nos diversos textos
fantásticos do autor, publicados ao longo das décadas. Mesmo após longos intervalos de
tempo, como entre Los días enmascarados (1954) e Inquieta Compañía (2004) que são
cinquenta anos, é possível encontrar a recorrência de determinados eixos nas duas obras. Isso
revela-nos que o autor mexicano sempre cultivou especial apreço pela literatura fantástica
porque, volta e meia, produzia narrativas do gênero. Textos estes que, por meio de um
continuum temático, provocam a reflexão ao mesmo tempo que revelam a sua autoria.
Contudo, não se trata de repetição e, sim, de reiteração, pois, em cada obra, o autor confere
nova roupagem ao insólito.
Sendo um intelectual que teve contato com as mais distintas formas de arte, o mexicano
buscou trazer isso para a sua literatura, por meio do frequente diálogo entre suas narrativas e
as mais variadas formas de arte-expressão, como o cinema (Anna Karenina), o teatro
(Hamlet), as artes plásticas (Quadros de Francisco de Goya), a música (La Damnation de
142
Faust), e a própria literatura (A Metamorfose). Inovou ainda nos aspectos formais do modo de
fazer literatura: a construção morfológica de “En defensa de la Trigolibia”65 e a utilização do
narrador na segunda pessoa do singular (tu) em Aura e Instinto de Inez. Esses são apenas
alguns exemplos, pois esses temas exigiriam outros estudos.
Sobre Constancia, podemos dizer que a análise desse texto atrelada aos eixos elencados
anteriormente nos permitiu delinear uma perspectiva mais ampla e crítica do tipo de fantástico
produzido por Carlos Fuentes. Em Constancia, além das continuidades e das inovações
demonstradas anteriormente, existem outros tantos elementos que a circunscrevem dentro de
uma perspectiva do fantástico: a fragmentação da narração, os monólogos, os paradoxos, as
hesitações, a reiteração do uso de metáforas e elipses, bem como as oscilações espaçostemporais são alguns exemplos disso.
Para concluir, ressaltamos que essas trajetórias e espelhamentos nas obras de Carlos
Fuentes exigem uma reflexão mais ampla do leitor sobre o texto e sobre o contexto, pois
revelam histórias marcadas pela diversidade humana e cultural que independem de
nacionalidades. Com isso, ao imergir nesses universos, o leitor encontrará diversos jogos de
espelhos-ficções, nos quais ele contemplará as imagens de distintas personagens que não
procuram apontar as soluções para os enigmas humanos, mas sim convidam para um
mergulho nesse enigma, desafiando as buscas perenes pelo sentido, ao revelarem, enfim, que
nas ficções repousam os muitos reflexos de todos nós.
65
Texto de Los días enmascarados, de 1954.
143
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