Anais do IX Fórum de Pesquisa em Arte.
Curitiba: ArtEmbap, 2013.
A CENSURA POLÍTICA ÀS ARTES PLÁSTICAS EM 1960
Me. Caroline Saut Schroeder1
[email protected]
Resumo
Esse texto aborda a situação restritiva em que se encontravam as artes visuais no final
da década de 1960 com a consolidação da ditadura civil-militar no Brasil. O Estado
agia por meio da censura e da repressão atingindo diretamente os artistas que
incorporavam a crítica cultural e política nas suas experimentações.
Palavras-chave: Arte e política; Censura; Arte brasileira; 1960.
Abstract
This text addresses the restrictive situation in which the visual arts were found in the
late 1960´s, with the consolidation of the civil-military dictatorship in Brazil. The State
acted through censorship and repression reaching directly the artists who incorporated
cultural and political criticism into their experimentations.
Keywords: Art and politics; Censorship; Brazilian art; 1960´s.
Em março de 1964, setores das Forças Armadas com o apoio de uma frente
que reunia grupos de extrema-direita, conservadores e também liberais tomaram o
poder derrubando o presidente Goulart e iniciando uma ditadura que duraria por 21
anos. Na perspectiva dos oficiais militares, o projeto político instaurado à força era uma
“revolução” necessária para estabelecer a ordem e livrar o país de ameaças
comunistas subversivas.
No entanto, o que se viu, foi a escalada progressiva da
violência:
1
Atualmente é professora colaboradora de Filosofia e História da Arte na Universidade Estadual do
Paraná/ Escola de Música e Belas Artes do Paraná (Unespar/Embap). Possui mestrado em Artes Visuais –
Teoria, História e Crítica da Arte – pela ECA/USP e especialização em História da Arte Moderna e
Contemporânea pela Unespar/Embap. Tem dupla graduação, em Gravura (Unespar/Embap) e Design
Gráfico (UFPR).
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havia, desde o início do regime militar, a vontade, por parte dos setores mencionados da linha
dura, de constituição de um aparato global de controle da sociedade, tanto quanto, aliás, a opção
de parte da esquerda pela ‘luta armada’ antecedeu o próprio golpe de 1964 (FICO, 2004, p. 81).
Nos anos que se seguiram, a “linha dura” do regime arquitetou um forte sistema
nacional de segurança e informação, com o objetivo de controlar, pela força, qualquer
divergência.
A busca pela institucionalização do aparato repressivo resultou em uma série de
Atos Institucionais que ampliaram a ação repressiva do Estado. Ao final da década, em
1969, o Serviço de Segurança Nacional (SNI), órgão responsável por colher
informações e desenvolver a propaganda política, foi formalmente implantado. O
sistema DOI-CODI2, órgão de inteligência e repressão subordinado ao Exército,
começou a atuar em julho, propiciando o surgimento de uma polícia política. A partir de
então, as vozes dissidentes foram sistematicamente silenciadas.
No cenário cultural, o momento marcava a revisão do marxismo, das ações
revolucionárias e também da luta pela liberdade de expressão. Segundo Renato Ortiz
(2001, p. 13), “em última instância, falar em cultura brasileira é discutir os destinos
políticos de um país”. Após o golpe, grupos de artistas e intelectuais promoveram
inúmeros protestos contra o governo autoritário formando focos de resistência em
universidades, teatros, museus, editoras, na imprensa e nas ruas da cidade.
Marcelo Ridenti reconheceu no florescimento político e cultural dos anos 1960,
na sociedade brasileira, uma “estrutura de sentimento romântico-revolucionária”.
Embora o romantismo seja frequentemente associado à reação, e não à revolução,
esse paradoxo esteve presente no período em questão, ao passo que se parecia
“buscar no passado (nas raízes populares nacionais) as bases para construir o futuro
de uma revolução nacional modernizante que, ao final do processo, poderia romper as
fronteiras do capitalismo” (RIDENTI, 2006, p. 233). Com essa busca pelas raízes, que
se acreditava necessária para que finalmente se pudesse romper com o
subdesenvolvimento, artistas e intelectuais acreditavam estar imbricada uma revolução
brasileira.
Mas também o Estado autoritário pós-64 esteve preocupado em assumir uma
identidade nacional que estivesse intimamente ligada à cultura popular. Essa
construção ideológica foi utilizada em prol de um projeto nacional que visava à
integração das diversas regiões brasileiras. Na reinterpretação do “nacional e do
2
Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna.
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“popular”, o regime militar procurou juntar duas categorias simbólicas diversas. Ortiz
identificou uma diferença crucial entre elas: enquanto o “popular” se manifesta como
vivência (por exemplo, no folclore e nos cultos afro-brasileiros), o “nacional” pertence
ao domínio da ideologia. Sendo assim, “o mito é encarnado pelo grupo restrito,
enquanto a ideologia se estende à sociedade como um todo” (ORTIZ, 2003, p. 136).
Como a memória coletiva de manifestações populares é restrita a um grupo, não é
possível estendê-la para o âmbito nacional.
Na
diversidade
das
manifestações,
não
existe
uma
cultura
popular
“essencialmente” brasileira. Portanto, assim como a memória nacional, a identidade
nacional é uma construção de segunda ordem, vinculada a grupos sociais e a seus
interesses. No caso em questão, do regime militar, forjou-se uma identidade nacional
conciliando a pluralidade da cultura popular em um discurso unívoco. Com isso, o
Estado pretendia estimular a cultura como meio de integração, mas sob o controle do
aparelho estatal. Segundo Ortiz (2003, p. 83), “as ações governamentais tendem assim
a adquirir um caráter sistêmico, centralizado em torno do poder Nacional”.
Pautado na mesma ideologia, assistia-se também ser estimulado todo um
mercado cultural. “Na verdade, o golpe possui um duplo significado: por um lado ele se
define
por
sua
dimensão
essencialmente
política,
por
outro
aponta
para
transformações mais profundas que se realizam no nível da economia” (ORTIZ, 2003,
p. 80). O capitalismo alcançava formas avançadas de produção a partir de Juscelino
Kubitschek, e também o mercado cultural ampliava-se em dimensão e volume,
adquirindo uma conformação nacional. Os bens culturais passavam a ser produzidos e
difundidos de acordo com o projeto de desenvolvimento capitalista. Portanto, não foi
apenas com ações repressivas que o Estado buscou controlar o panorama cultural
brasileiro; ele atuou também, de forma ativa, em várias atividades, desde a
preservação da memória e do patrimônio nacional, até o estímulo à cultura popular
considerada genuinamente brasileira e à propagação de uma cultura de massa.
Percebe-se que a questão nacional vinha sendo discutida pelo Estado e
também pelas novas vanguardas de formas diversas. Enquanto o Estado promovia um
nacionalismo “embelezador”, que se queria ver em uma raça miscigenada e pacífica,
símbolo de uma democracia genuína, artistas e intelectuais ligados à vanguarda
brasileira difundiam um nacionalismo crítico, denunciavam o autoritarismo das
instituições oficiais e do Estado, expunham a condição terceiro-mundista do Brasil.
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Mais especificamente no campo das artes visuais, A Nova Objetividade
Brasileira formulada por Oiticica propunha uma tomada de posição crítica diante da
realidade social, política e existencial vivenciada no país dentro do contexto
internacional, caracterizando-se por aglutinar “múltiplas tendências” e distinguindo-se
das vertentes pop e op, do novo realismo e do hard-edge. Como ressalta Celso
Favaretto (1992, p. 20), a vanguarda da modernidade,
por efeito do ímpeto utópico, pretende tirar partido de uma situação histórica que permite aos
artistas a ilusão de poder utilizar a arte como aspecto de luta pela transformação social,
agenciando experimentalismo, inconformismo estético e crítica cultural que, imbricados,
compõem a atitude ético-política.
Simultaneamente,
mantêm
interesse
na
novidade,
na
estranheza,
na
experiência do choque, investindo na desconstrução das mistificações que envolvem a
concepção idealizada da arte.
Jardel Cavalcanti verificou um projeto de vanguarda engajada3 nos anos
1960/1970, no Brasil, que serviu para reinterpretar a ideia de participação política, que
não se manifestava apenas no conteúdo dos trabalhos, mas também na busca por
renovação dos mecanismos do sistema das artes plásticas e sua inserção na
sociedade:
mobilizar a participação do público, alterar o modo de aparição da arte e questionar o
sistema das artes plásticas (incluindo o próprio conceito de arte) era comum aos
grupos de vanguarda do período e impulsionaram críticos e artistas militantes a um
provocativo questionamento do estado autoritário após o golpe de 64, através da
organização de eventos e da criação de obras participativas (que substituíam a
contemplação individual pelo protesto, pela denúncia e participação coletiva pública)
(CAVALCANTI, 2005, p. 193).
Segundo Frederico Morais (1975, p. 55), “após a negação das velhas
estruturas, do caduco sistema das artes após a autodeterminação das individualidades,
eis, de início, o exercício da liberdade”. Dentro de um sentimento utópico absoluto, em
1968, um interlúdio de liberdade tomou fôlego motivando manifestações experimentais,
artísticas e críticas. A contestação política de caráter esquerdista ganhava espaço nas
Universidades, nos festivais de música, no teatro e no cinema. Essa efervescência
cultural politizada foi abafada com a instauração do AI-5, o conhecido “golpe dentro do
golpe”.
3
O assunto foi analisado em tese de doutorado por Jardel Dias Cavalcanti, no Departamento de História
do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, em 2005.
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O Ato Institucional no 5 foi o amadurecimento de um processo repressivo,
violento e longevo, que estava presente desde os primeiros momentos do golpe. Carlos
Fico destaca o caráter utópico desse projeto autoritário, isto é, “a crença de que seria
possível eliminar quaisquer formas de dissenso (comunismo, ‘subversão’, ‘corrupção’)
tendo em vista a inserção do Brasil no campo da ‘democracia ocidental e cristã’” (FICO,
2004, p. 34). De fato, o regime militar procurou silenciar as manifestações: “os que
tinham apenas as vozes calaram-se, ou foram calados. Os conformados assistiram. Os
que pretenderam falar com as armas fizeram-nas falar, mas por pouco tempo; foram
destruídos. Suas vozes enterradas na terra, na prisão, no exílio” (REIS FILHO, 2002, p.
448).
Jardel Cavalcanti (2005, p. 38) também observou que “o interesse dos artistas
pela inserção de posições políticas em suas obras acabou encontrando um empecilho:
a censura militar”. Porém, como sugere Renato Ortiz (2001, p. 114), esse ato
autoritário não foi apenas restritivo: “a censura possui duas faces: uma repressiva,
outra disciplinadora. A primeira diz não, é puramente negativa; a outra é mais
complexa, afirma e incentiva um determinado tipo de orientação”.
Carlos Fico, ao analisar a propaganda política produzida no período de 19691977, apontou que os índices de uma visão otimista4 sobre o Brasil foram
ressignificados pelo regime militar – “a exuberância natural, a democracia racial, o
congraçamento social, a harmoniosa integração nacional, o passado incruento, a
alegria, a cordialidade e a festividade do povo brasileiro, entre outros” (FICO, 1997, p.
11). No uso desse repertório, a propaganda política incentivava uma “leitura” do Brasil,
criando as bases para um sistema de autorreconhecimento social e instaurando uma
mística de esperança e otimismo. Os militares acreditavam-se imbuídos de uma
“missão civilizatória”, que levaria o Brasil para uma nova realidade econômica, política
e moral.
Por meio de técnicas modernas de propaganda, foi divulgado “um discurso
ético-moral com estrutura, teóricos e militares que se apropriaram (...) do poder de
conceituar o que era ‘nacionalidade’, ‘democracia’, ‘sociedade brasileira’, ‘cultura
brasileira’, ‘economia brasileira’ e assim por diante” (FICO, 1997, p. 12). Também a
arte brasileira, segundo a convicção do regime militar, deveria se adequar às novas
regras de conduta e de civilidade, afirmando uma visão otimista do Brasil. Na
4
Para o autor, o “otimismo” seria a plena convicção de que os problemas brasileiros teriam uma solução
satisfatória, em função de algumas características enfocadas de forma mística.
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propagação da ideologia do regime militar sobre o país e sua história, rejeitava-se a
análise crítica e realista, reforçando mais uma vez as já muito gastas e triviais imagens
ufanistas do passado, que eram agora revitalizadas pelos recursos modernos de
comunicação. Paradoxalmente, a propaganda se amparava na ideia de “democracia”,
entendida no sentido de não-comunista. A força das imagens transmitidas pela TV5 foi
tanta, que, “ao brasileiro que ousasse ser pessimista, restaria sempre a sensação de
que possuía uma sombra em seu caráter” (FICO, 1997, p. 24).
Sendo assim, aqueles que estabeleciam uma reflexão crítica sobre a política do
regime militar ou que se distanciavam da “leitura” oficial sobre o Brasil e sobre os
brasileiros por meio de suas proposições artísticas, estavam sujeitos à censura.
Segundo Ortiz (2003, p. 88), “durante o período 64-80 a censura não se define tanto
pelo veto a todo e qualquer produto cultural, mas age primeiro como repressão seletiva
que impossibilita a emergência de determinados tipos de pensamento ou de obras
artísticas”. Assim, o ato repressor atingia a especificidade da obra e não a generalidade
da produção artística. Os casos de censura foram se acentuando nos anos seguintes
ao golpe, restringindo cada vez mais a liberdade de expressão.
Na exposição da FAAP, Propostas 65, em São Paulo, algumas obras de Décio
Bar foram acusadas de infligir a ética e proibidas. “Wesley Duke Lee, Nelson Leirner e
Geraldo de Barros, acompanhados de outros artistas, retiraram seus trabalhos da
exposição, em sinal de protesto” (LOPES, 2009, p. 39). A partir desse incidente, os três
artistas começaram a se reunir para propor uma resposta mais enfática aos
acontecimentos. Deram início, assim, ao grupo Rex, declarando guerra ao sistema
estabelecido6.
Em 1967, a censura atingiu o IV Salão Nacional de Arte Contemporânea de
Brasília. Cláudio Tozzi teve seu trabalho Guevara vivo ou morto danificado por um
grupo de direita. O painel, dividido em três partes, destacava na parte central o retrato
contrastado do guerrilheiro Ernesto “Che” Guevara, que se tornara símbolo da
revolução cubana. Nas bordas do painel, sobressaiam as imagens de crianças
miseráveis e de trabalhadores em protesto7. Assim como outros artistas jovens da sua
época, Tozzi compartilhava a preocupação com o coletivo, com a questão social e
5
A TV, mídia que se popularizava no final dos anos 1960, foi o suporte principal de propaganda política a
partir de então.
6
A mostra paulista foi uma continuidade da exposição no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro,
MAM-RJ, Opinião 65, em que os artistas buscaram opinar sobre a situação sociopolítica brasileira com
obras experimentais marcadas por uma nova figuração.
7
Os painéis foram posteriormente restaurados.
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política brasileira. Os artistas da sua geração se apropriaram da linguagem da
comunicação de massa e por meio da figuração incitavam não apenas a contemplação
do espectador, mas também a reflexão e o debate sobre o conteúdo da obra.
No mesmo ano, o governo militar proibiu obras “ofensivas” na IX Bienal de São
Paulo. O Presente, de Cybele Varela, foi retirado da exposição. A artista expunha uma
caixa que, quando aberta, soltava um mapa do Brasil colado à foto de um general e a
uma frase do Hino à Bandeira Nacional – “recebe um afeto que se encerra em nosso
peito juvenil”. Além disso, “o júri do prêmio de aquisição do Itamaraty se recusou a
conceder prêmios a trabalhos de pesquisa erótica ou de fundo político” (PONTES,
2010, p. 6). Propostas com esses temas estavam sendo cada vez mais censuradas
nas exposições.
Ainda na IX Bienal, a série de bandeiras de Quissak Júnior provocou a irritação
dos militares, que alegavam que o artista tratava o símbolo nacional de forma
“indevida”. Chamado Políptico Móvel, o trabalho era composto por cinco quadroscaixas, que podiam ser movimentados pelo espectador, criando diversas composições
com os elementos da bandeira brasileira. Na mesma mostra em que Quissak Júnior
sofreu duras críticas por parte dos militares, Jasper Johns foi premiado com a série
Flags.
A Bienal da Bahia, que era patrocinada pela Secretaria da Educação e Cultura,
também foi vítima de censura. Voltada para a arte contemporânea, a mostra buscava
promover a integração dos artistas que não pertenciam ao eixo central Rio-São Paulo.
Muito embora a Bienal tenha surgido de uma decisão governamental, a sua realização
não se concretizaria sem o apoio de artistas jovens locais. Juarez Paraíso e Luiz
Henrique Tavares trouxeram para a Bahia nomes expressivos da arte brasileira como
Antônio Bandeira, Ana Letícia, Roberto Magalhães, Fernando Jackson (Paraíba), João
Câmara, Gilvan Samico e Carlos Scliar. Nelson Leirner ocupou uma sala especial. Ao
todo, a Bienal contou com a participação de 270 artistas e mais de 1000 obras.
O clima, porém, era tenso. Um caminhão carregado com obras rejeitadas pelo
júri de seleção foi apreendido pela Polícia Federal quando seguia para as
dependências da Academia de Letras da Bahia. Segundo Juarez Paraíso, ainda antes
de sua inauguração, houve confronto: “fomos procurados por alto funcionário da
Secretaria da Educação dando ordens para que certas obras, por ele consideradas
‘subversivas’, fossem retiradas da Bienal” (Revista da Bahia, 2005). Os organizadores
não acataram a ordem e inauguraram a exposição em dezembro de 1968, com as
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obras previamente selecionadas. Porém, no dia seguinte, a mostra foi fechada pela
polícia política. O incidente foi atribuído ao discurso inaugural, proferido pelo
governador Luiz Vianna Filho, que utilizou algumas expressões consideradas
proibitivas para a época, tais como: “toda arte jovem tem de ser revolucionária” e “a
liberdade caracteriza a arte”. Porém, Paraíso dá outra versão para o fato: “A II Bienal
Nacional de Artes Plásticas não foi fechada pela Polícia Federal, como se espalhou
pelo Brasil afora, e sim pelo próprio Governo receoso de maiores represálias” (Revista
da Bahia, 2005).
De qualquer modo, a Bienal, tachada de “comunista”, resultou na prisão de seus
organizadores por trinta dias e na apreensão de dez obras consideradas “ofensivas”.
Foi reaberta em 17 de janeiro de 1969, com nova direção e sem as obras censuradas.
Os artistas prejudicados, segundo Paraíso, foram Lênio Braga (três trabalhos), Antônio
Manuel (um trabalho), Manuel Henrique (três trabalhos) e Farnese de Andrade (um
desenho). Ceres Coelho, analisando o movimento moderno na Bahia, acrescentou
ainda outros nomes à lista: Antônio Dias e Tereza Simões (COELHO, 1973). Segundo
Marília Andrés Ribeiro (1997, p. 86), “a Bienal Nacional da Bahia tornou-se um dos
emblemas mais representativos das relações antagônicas entre o projeto do governo
militar e dos setores culturais e artísticos do país, que ainda atuavam sob os auspícios
dos governos estaduais”.
Meses depois, a exposição no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, com
os artistas que representariam o Brasil na VI Bienal de Jovens de Paris,8 foi suspensa
antes de sua abertura oficial. O Correio da Manhã noticiou a suspensão da mostra no
dia seguinte:
A exposição dos trabalhos dos representantes brasileiros à Bienal de Paris foi desmontada horas
antes da sua inauguração oficial, prevista para as 18 horas de ontem, no Museu de Arte Moderna
do Rio de Janeiro, por ordem do Departamento Cultural do Ministério das Relações Exteriores
(CORREIO DA MANHÃ, 31 maio 1969).
Maurício Roberto, arquiteto e diretor-executivo do Museu de Arte Moderna,
recebeu um telefonema ordenando a suspensão da exposição no começo da tarde.
Algumas horas depois, um funcionário do Itamaraty reforçou a ordem pessoalmente.
Os trabalhos dos artistas foram então desmontados, encaixotados e guardados em um
depósito.
8
A Bienal de Paris foi fundada em setembro de 1959 e era reservada aos artistas com menos de 35 anos
de idade.
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Com o cancelamento da exposição, estava ameaçada também a presença
brasileira na VI Bienal de Jovens de Paris, visto que a mostra no MAM apresentava
justamente os artistas selecionados para o evento internacional. De fato, o
Departamento Cultural do Estado não tomou nenhuma providência para resolver a
questão e a Bienal francesa foi inaugurada em setembro de 1969 sem qualquer
representação do Brasil.
Niomar Moniz Sodré Bittencourt, diretora do MAM-RJ, que havia participado da
seleção dos artistas, relatou posteriormente a coesão do grupo de artistas escolhido
para participar da Bienal francesa: “tenho consciência de que constituíam uma bela e
homogênea equipe, unida por um forte acento brasileiro que, por isso mesmo, iria
marcar sua presença naquela renovadora mostra cosmopolita da juventude artística do
mundo” (Correio da Manhã, 21 set. 1969). Foi, no entanto, justamente este “acento
brasileiro” que provocou a censura. Algumas proposições experimentais faziam
referências ao contexto político, outras afrontavam certa “conduta moral” que era
incentivada pelo regime militar.
Segundo Ferreira Gullar (2004), “a censura oficial determinou o encerramento
da mostra, alegando que as obras expostas eram ou de protesto contra o regime ou
obscenas. Esta medida implicava a proibição do envio das obras à Bienal de Paris”.
Antônio Manuel estava participando com a série Repressão outra vez: eis o saldo. Os
trabalhos foram compostos com notícias e imagens retiradas de jornais da época sobre
o confronto entre estudantes e forças armadas que resultou na morte do estudante
Edson Luiz, em 1968. As serigrafias em preto sobre fundo vermelho, encobertas por
tecidos negros, só podiam ser reveladas com a ação do observador. Uma corda presa
ao trabalho, quando puxada, suspendia o tecido.
Evandro Teixeira participou com uma fotografia chamada Motociclista da FAB,
que revelava o instante em que um oficial da Aeronáutica caia da sua motocicleta
quando escoltava a Rainha Elizabeth em sua visita ao Brasil. A imagem não provocou
polêmica quando foi publicada em 1965 na primeira página do Jornal do Brasil, muito
embora o título da notícia “A liberdade da Motocicleta” sugerisse ao leitor a condição
restritiva em que se encontra o país9. Em 1969, porém, esse tipo de mensagem
subliminar já não era mais aceito. Segundo Sheila Cabo, “no contexto de 1969, fica a
pergunta sobre aquele homem fardado, que representava tudo que uma grande
9
FÁVARO, Armando. Ditadura Militar. Foto: Evandro Teixeira/JB. In: 8º Encontro Nacional de História da
Mídia, 2011, Guarapuava. Público e Mídia: perspectivas históricas, 2011. p. 18-35.
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parcela da sociedade gostaria ver caindo de fato. A imagem ganhou o conteúdo do
desejo inconsciente de um fotógrafo, que se generalizou” (CABO, 2005).
Os inúmeros casos de censura às artes provocaram a reação pública de artistas
e críticos. A Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA), então presidida por
Mário Pedrosa, reagiu imediatamente emitindo uma nota de repúdio ao ato do governo,
afirmando que ele atentava contra “a criação da obra de arte e o livre exercício da
crítica de arte”. Mário Pedrosa, na ocasião, “aconselhou seus associados (a ABCA é
um ramo da AICA) a se recusarem a tomar parte no julgamento de concursos
promovidos pelo governo, devido às atitudes coercitivas desse último” (AMARAL, 1981,
p. 155). Essa recomendação foi decisiva para a efetivação de um protesto internacional
contra a X Bienal de São Paulo.
As ações autoritárias do regime militar, embora tenham restringido a liberdade
crítica e artística, não impediram o desenvolvimento de uma arte vanguardista e
voltada para os acontecimentos sociais. Ao lado disso, dotados de uma atitude éticopolítica, artistas e intelectuais protestaram e denunciaram as arbitrariedades cometidas
pelo poder político durante os anos de ditadura. Um dos casos que ganhou notoriedade
foi o boicote internacional contra a X Bienal de São Paulo em 1969. Considerada um
evento oficial, visto que sua realização era financiada, em grande parte, pelo Estado e
que dependia do Itamaraty para as transações com as delegações estrangeiras, a
autonomia da Bienal passou a ser contestada. Também foi questionada a estrutura
convencional da exposição, ainda pautada nas categorias tradicionais da arte, e a
pouca abertura da diretoria às ideias trazidas pelos agentes culturais.
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