RECENSÕES ALMEIDA, Maria Clotilde, Bernd Sieberg & Ana Maria Bernardo (Eds.). (2008). Questions on Language Change. Lisboa: Edições Colibri & Centro de Estudos Alemães e Europeus da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. 148 pp. ISBN- 978-972-772805-3. O livro Questions on Language Change reúne comunicações apresentadas por ocasião do Colóquio Internacional com o mesmo título, realizado, em 16 de Novembro de 2006, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa1. A edição é da responsabilidade de três dos autores das comunicações agora publicadas, nomeadamente, os Professores Doutores Maria Clotilde Almeida, Bernd Sieberg e Ana Maria Bernardo, então na qualidade de membros do Centro de Estudos Alemães e Europeus da Universidade de Lisboa, mas que, desde 2007, integram o Centro de Estudos de Comunicação e Cultura da Universidade Católica Portuguesa, motivo pelo qual foi achado por bem proceder ao seu lançamento público na dita Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa. O livro contém oito artigos (em inglês, alemão e português), de outros tantos autores, que passo a nomear pela mesma ordem em que surgem no livro: - Christian Lehmann, da Universidade de Erfurt, Alemanha, escreve sobre “A Auxiliarização de Ficar – Linhas Gerais”; - Johannes Schwitalla, da Universidade de Würzburg, Alemanha, debruça-se sobre “Sprachwandel durch gesprochene Sprache”; - José Pinto de Lima, da Universidade de Lisboa, aborda o tema da “Ongoing Lexicalization and Grammaticalization: A Case from European Portuguese”; 1 O presente texto constitui uma adaptação do meu discurso de apresentação do livro, no dia 26 de Novembro de 2008, na Universidade Católica Portuguesa, a quem, na pessoa do Senhor Professor Doutor Peter Hanenberg, desejo agradecer pela simpatia e pela hospitalidade demonstradas. - Ana Maria Bernardo, da Universidade Nova de Lisboa, fala sobre “Language Change in Translation”; - Bernd Sieberg, da Universidade de Lisboa, discorre sobre “Weblogs: Sprache geschriebener Mündlichkeit?”; - Ana Maria Martins, da Universidade de Lisboa, escolheu para tema “Investigating Language Change in a Comparative Setting”; - Maria Clotilde Almeida, da Universidade de Lisboa, desenvolve o tema “Youngspeak, Subjectification and Language Change: The Case of bué”; - Augusto Soares da Silva, da Universidade Católica Portuguesa, Braga, apresenta um trabalho com o título de “Conceptualization, Pragmaticization and Semantic Change: Towards an Integrated View of Semantic Change”. Como o título do livro diz, o tema geral é a Mudança Linguística, vista aqui por novos prismas, como, aliás, os editores deste volume claramente salientam na Nota Introdutória. Comecemos pela capa. Esta é não só extraordinariamente bem conseguida de um ponto de vista estético, como subliminarmente sugestiva do conteúdo do livro, das implicações teórico-metodológicas e das abordagens nele incluídas. Se a imagem do tabuleiro de xadrês nos remete para a visão saussureana de sincronia no ‘état de langue’, as diferentes cadeiras nele anormal e arbitrariamente dispostas não podem deixar de nos lembrar tanto o carácter convencional da linguagem – que a paleolinguística, em estreita colaboração com a paleogenética, tem vindo repetida e consistentemente a confirmar –, como também, de modo subtil, mas inequívoco, o carácter individual, único e heterogéneo do acto de fala, causa primeira da mudança linguística. O facto de se tratar de peças de mobiliário – e não das figuras convencionais do jogo do xadrês – teve em mim um efeito imediato e, contudo, persistente: a recordação de um conto singelo, mas dramático e pleno de múltiplos simbolismos, do autor suíço de língua alemã Peter Bichsel, hoje em dia, como outros, já pouco lido. Refiro-me ao conto Onkel Jodok läßt grüßen, que a Editora alemã Suhrkamp, há muitos anos, publicou em formato de bolso. Este conto fala-nos de um velhinho, o Tio Jodok, que vive só, numas águas-furtadas de um grande prédio de uma grande cidade. O Tio Jodok, na sua solidão, começa a reflectir sobre os diferentes cognatos que as diferentes línguas possuem para os mesmos objectos e, para se entreter, resolve, por assim dizer, trocar os nomes às coisas. 216 O problema é que o que começou por ser um simples entretém, aplicado inicialmente às suas esparsas peças de mobiliário, acaba por se transformar num código global novo – mas com a característica acrescida de não ser partilhado com mais ninguém, e que acaba por substituir inteiramente a língua antes falada pelo Tio Jodok, impedindo-o, inevitavelmente, de comunicar com os outros, quando, por fim, decide sair à rua. Como A. Soares da Silva refere, em inglês, na página 137, “a cognição não deverá ser entendida como um mero fenómeno individual e interno. Não podemos separar individualidade e colectividade, pensamento e acção; ‘pensamento individual e acção colectiva’ constituem uma equação errada (…).” A linguagem é um facto social, o que é uma afirmação não apenas com um, mas sim com muitos séculos de existência. Gostaria, a este propósito – porque a apresentação do livro decorreu numa universidade católica; porque se trata de uma mulher (da Igreja); e porque se está a comemorar o oitavo centenário do seu nascimento –, de prestar homenagem a um dos grandes nomes da História da Língua e da Literatura Alemãs, em particular, da ‘Mística tardo-medieval’ (séc. XIV): Mechthild von Magdeburg. No seu livro em sete volumes, Das fließende Licht der Gottheit, em que descreve as visões dos seus encontros amorosos e dos seus diálogos e interacção com Deus, Mechthild alude a uma noiva alegórica com cinco reinos, correspondentes a outros tantos sentidos, mas que não são os cinco tradicionais, pois o olfacto e o paladar foram substituídos por dois novos sentidos – o pensamento e a fala. Como se diria em alemão, “jedes Kommentar erübrigt sich…”2 A mudança linguística, quer seja determinada por factores intra, quer extra-linguísticos (história política, social, tecnológica, como vemos neste livro), é variação diacrónica e, como tal, exige uma abordagem não apenas varietal, mas também, imprescindível e fundamentalmente, sistémica. Recorrendo a Eugenio Coseriu, insigne antigo Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e um dos maiores mestres da Linguística no séc. XX,3 dir-se-á que, ao trinómio “sistema-norma-fala”, terá de se acrescentar (através da aplicação dos conceitos de coerência funcional, princípios e níveis 2 Em português: “todo e qualquer comentário é supérfluo”. Quis o Destino que eu, embora não tenha sido seu aluno, viesse a ter o grato e indelével prazer, bem como a subida honra de conhecer pessoalmente o Senhor Professor Doutor Eugenio Coseriu, há muitos anos, na Alemanha, e com ele ainda pudesse vir a aprender muito. 3 217 funcionais, bem como escolha) um quarto nível, situado acima do sistema – o tipo. Assim (e os artigos deste livro são disso plenamente exemplificativos, como no caso das linguagens dos jovens, de M. C. Almeida), o que, da perspectiva de um determinado nível estrutural, é visto como diacrónico (leia-se: mudança) surge, num outro nível mais elevado, como sincrónico (leia-se: funcionamento). Por outras palavras (e tomo a liberdade de traduzir Coseriu), é possível existir, por um lado, “movimento na norma sem movimento no sistema (i.e. diacronia na norma em simultâneo com sincronia do sistema)”; e, por outro, “movimento no sistema sem movimento no tipo (i.e. diacronia do sistema dentro da sincronia do tipo).”4 Sobrepondo-se parcialmente à temática das linguagens dos jovens, há uma outra a que o livro atribui especial atenção e que, há pouco, deixei apenas subentendida, quando mencionei os factores extra-linguísticos da mudança linguística: a questão da fronteira entre linguagem escrita e linguagem falada. Aplicando-se-lhe a mesma abordagem funcional, com o tetranómio “tipo-sistema-norma-fala”, obtemos dois grupos de factos emanando seja a partir do tipo para o sistema, seja a partir do sistema para a norma (e desta para a fala): factos “possíveis” e factos “realizados”, dependendo da escolha. Como se diz nos artigos em que este tema é tratado (o de J. Schwitalla e o de B. Sieberg), há períodos da história da língua alemã nos quais aquela fronteira é mais ou menos difusa, em função dos contextos e factores históricos, políticos, culturais, sociais e tecnológicos. Se, hoje em dia, esta fronteira nos surge como muitíssimo (quiçá demasiado) permeável, mais ainda do que quando Martinho Lutero estabelecia “dem Volke aufs Maul schauen” como um dos seus princípios orientadores na sua tradução da Bíblia do grego e hebraico para a língua vernácula, tempos houve em que esta fronteira era praticamente inultrapassável – e isso reflectiu-se, p. ex., na Literatura. Refíro-me ao Médio-Alto-Alemão, especialmente ao sub-período dito Clássico (sécs. XII e XIII), por vezes também designado por ‘Höfische Dichtersprache’. Ora é precisamente neste sub-período que se verifica uma demarcação rígida entre o que é oral, i.e. comum, plebeu, e o que é escrito, literário, i.e. nobre (na dupla acepção da palavra – e tenhamos em mente que as palavras são “factores construtores de espaços”). Um dos maiores autores do Médio-Alto-Alemão Clássico é Hartmann von Aue, um mestre no domínio da língua alemã, p. ex. na escolha (retomo este conceito da Linguística Sistémica Funcional) criteriosa do léxico utilizado, verificável através das chamadas rimas finais plenas, minuciosamente estudadas pelo filólogo neogramático Konrad Zwieržina na viragem do séc. XIX para o séc. XX. Hartmann apenas faz uso de palavras da oralidade (plebeia) em casos muito precisos, como é o caso de {ranft} (‘côdea de pão de aveia’), na obra Gregorius. Como diria Mechthild von Magdeburg, trata-se de uma palavra “diu man in dirre kuchin vernimet.”5 FRANCISCO ESPÍRITO-SANTO 4 COSERIU, Eugenio (1975). “Synchronie, Diachronie und Typologie”, in Sprach-wandel: Reader zur diachronischen Sprachwissenschaft, ed. p. Dieter Cherubim, pp. 134-149. Berlim, Nova Iorque: Walther de Gruyter. (ISBN- 3-11004330-0) 218 5 Em português: “que se ouve na cozinha.” 219 funcionais, bem como escolha) um quarto nível, situado acima do sistema – o tipo. Assim (e os artigos deste livro são disso plenamente exemplificativos, como no caso das linguagens dos jovens, de M. C. Almeida), o que, da perspectiva de um determinado nível estrutural, é visto como diacrónico (leia-se: mudança) surge, num outro nível mais elevado, como sincrónico (leia-se: funcionamento). Por outras palavras (e tomo a liberdade de traduzir Coseriu), é possível existir, por um lado, “movimento na norma sem movimento no sistema (i.e. diacronia na norma em simultâneo com sincronia do sistema)”; e, por outro, “movimento no sistema sem movimento no tipo (i.e. diacronia do sistema dentro da sincronia do tipo).”4 Sobrepondo-se parcialmente à temática das linguagens dos jovens, há uma outra a que o livro atribui especial atenção e que, há pouco, deixei apenas subentendida, quando mencionei os factores extra-linguísticos da mudança linguística: a questão da fronteira entre linguagem escrita e linguagem falada. Aplicando-se-lhe a mesma abordagem funcional, com o tetranómio “tipo-sistema-norma-fala”, obtemos dois grupos de factos emanando seja a partir do tipo para o sistema, seja a partir do sistema para a norma (e desta para a fala): factos “possíveis” e factos “realizados”, dependendo da escolha. Como se diz nos artigos em que este tema é tratado (o de J. Schwitalla e o de B. Sieberg), há períodos da história da língua alemã nos quais aquela fronteira é mais ou menos difusa, em função dos contextos e factores históricos, políticos, culturais, sociais e tecnológicos. Se, hoje em dia, esta fronteira nos surge como muitíssimo (quiçá demasiado) permeável, mais ainda do que quando Martinho Lutero estabelecia “dem Volke aufs Maul schauen” como um dos seus princípios orientadores na sua tradução da Bíblia do grego e hebraico para a língua vernácula, tempos houve em que esta fronteira era praticamente inultrapassável – e isso reflectiu-se, p. ex., na Literatura. Refíro-me ao Médio-Alto-Alemão, especialmente ao sub-período dito Clássico (sécs. XII e XIII), por vezes também designado por ‘Höfische Dichtersprache’. Ora é precisamente neste sub-período que se verifica uma demarcação rígida entre o que é oral, i.e. comum, plebeu, e o que é escrito, literário, i.e. nobre (na dupla acepção da palavra – e tenhamos em mente que as palavras são “factores construtores de espaços”). Um dos maiores autores do Médio-Alto-Alemão Clássico é Hartmann von Aue, um mestre no domínio da língua alemã, p. ex. na escolha (retomo este conceito da Linguística Sistémica Funcional) criteriosa do léxico utilizado, verificável através das chamadas rimas finais plenas, minuciosamente estudadas pelo filólogo neogramático Konrad Zwieržina na viragem do séc. XIX para o séc. XX. Hartmann apenas faz uso de palavras da oralidade (plebeia) em casos muito precisos, como é o caso de {ranft} (‘côdea de pão de aveia’), na obra Gregorius. Como diria Mechthild von Magdeburg, trata-se de uma palavra “diu man in dirre kuchin vernimet.”5 FRANCISCO ESPÍRITO-SANTO 4 COSERIU, Eugenio (1975). “Synchronie, Diachronie und Typologie”, in Sprach-wandel: Reader zur diachronischen Sprachwissenschaft, ed. p. Dieter Cherubim, pp. 134-149. Berlim, Nova Iorque: Walther de Gruyter. (ISBN- 3-11004330-0) 218 5 Em português: “que se ouve na cozinha.” 219 MÁTHESIS 18 2009 47-79 O CONTRIBUTO DE PEDRO PERPINHÃO PARA A ELABORAÇÃO DA RATIO STUDIORUM DA COMPANHIA DE JESUS HELENA COSTA TOIPA RESUMO O padre jesuíta Pedro Perpinhão desempenhou, em Portugal, actividade docente relevante, em meados do século XVI. Considerando a sua prática pedagógica, foi convidado por um antigo companheiro a sistematizá-la, em texto. Perpinhão redigiu, então, um opúsculo, De ratione liberorum instituendorum litteris Graecis et Latinis, cuja informação seria, depois, utilizada na elaboração do código pedagógico oficial dos jesuítas, a Ratio Studiorum. Este artigo pretende mostrar semelhanças entre os dois textos. ABSTRACT The Jesuit priest Pedro Perpinhão performed an important teaching activity in Portugal, in the 16th century. Considering his pedagogic performance, he was invited, by a companion, to put it on writing. He wrote, then, the opuscule De ratione liberorum instituendorum litteris Graecis et Latinis. The information contained on that small literary work should be used on the composition of the official pedagogic code of the Jesuits, the Ratio Studiorum.. This article aims to show some of the similarities between the two texts. Solicitado por Francisco Adorno, amigo e antigo companheiro de Coimbra, no sentido de lhe descrever o método seguido pela Companhia de Jesus no ensino do grego e do latim, no Colégio das Artes daquela cidade, o padre jesuíta Pedro Perpinhão respondeu com um opúsculo que viria a contribuir para a elaboração da Ratio Studiorum, cuja versão final e oficial data de 1599: Como dizias, pois, que querias conhecer, por mim, qual terá sido, no Colégio Conimbricense da nossa Companhia, o método seguido na educação dos meninos das classes mais baixas, eu, com o cuidado de te agradar e de aumentar e ornar com o zelo da minha tarefa, abarcando no meu espírito todo o ensino daquele Colégio, tudo aquilo que pensava sobre todo o método de ensinar aos meninos as OATES, Joyce Carol. A Fé de um Escritor: Vida, Técnica, Arte. Trad. Maria João Lourenço (Lisboa, Casa das Letras, 2008. 174 pp.). É sempre grato quando uma autora com o talento e a versatilidade de Joyce Carol Oates partilha as suas reflexões e conselhos com aprendizes da escrita e amantes da literatura. A Fé de um Escritor consiste numa série de catorze ensaios, vindos a lume ao longo de quase três dezenas de anos, acerca daquilo a que Oates chama “a mais solitária das artes” (p. 11), ou seja, a escrita literária. Nestes textos, a autora explora questões essenciais para quem deseja entrar no mundo da poesia e ficção, ou apenas compreender melhor os complexos meandros da criatividade. Como argumenta Oates: “(…) raramente a inspiração e a energia e até mesmo o génio são suficientes para se fazer arte: porque a prosa da ficção é também uma técnica, e uma técnica tem de ser aprendida, seja por acidente ou por desígnio” (p. 100). Esta valorização da técnica — companheira do talento e da perseverança —, assume particular relevo numa altura em que as estantes das livrarias começam a receber os primeiros manuais de Escrita Criativa redigidos por portugueses. Contudo, algumas dessas obras não passam de cadernos de exercícios, com o objectivo de aproveitar comercialmente a moda da EC. Neste contexto, livros que se debrucem sobre a técnica literária — como o de Oates —, são preciosos, pois ajudam a complementar um ensino que, em Portugal, ainda gatinha e apresenta fraca substância teórica. Algumas das reflexões da autora prendem-se com o papel ético, social e artístico do escritor, ou seja, a sua missão: porque escrevemos e qual a importância da ficção literária nas nossas vidas? Outros capítulos, mais práticos, clarificam a natureza do ofício da escrita, e transmitem algumas técnicas: como dinamizar um enredo; como construir uma personagem realista; a importância da experimentação; o valor da autocrítica; o motivo da metáfora, etc. Este livro de Oates pode ser, pois, lido como um manual básico de técnicas de escrita criativa, embora deixe insatisfeitos os aprendizes com alguma experiência, e que procurem estratégias mais avançadas relativamente à estruturação do enredo por géneros, ao ponto de vista do narrador, à criação de atmosferas ou ao polimento final do texto. Para esses, não hesito em recomendar Solutions for Writers, de Sol Stein, ou o prático The Writer’s Workbook, de Jenny Newman, Edmund Cusick e Aileen La Tourette. Não se devem confundir as técnicas, conselhos e dicas difundidas por Oates com receitas. Pelo contrário, Oates incentiva o jovem escritor a transgredir, através da experimentação, para que encontre a sua voz singular: “A arte é por natureza um acto transgressor” (p. 45). Esta transgressão revela que Oates não desses ensaístas de EC que prometem êxito ou receitas comerciais para cozinhar best-sellers — mas antes uma perspicaz conhecedora da multiplicidade de técnicas, e da importância da inovação. São aspectos que Oates não apenas professa, mas também pratica — ou não fosse ela uma prosadora, poetisa, dramaturga e ensaísta que arrebatou, entre outros, o prestigiado National Book Award. E quem leu gulosamente os romances Them, ou Blackwater, ou ainda algum dos contos, encontra nestes ensaios um idêntico prazer, pois Oates polvilhou a teoria com situações anedóticas e memórias, sobretudo da infância. Neste espírito, revela, por exemplo, o momento epifânico do seu despertar para a leitura: Em 1946, no dia em que completei oito anos de idade, a minha avó ofereceume uma magnífica cópia ilustrada de Alice no País das Maravilhas e Alice do Outro Lado do Espelho, de Lewis Carroll. De repente, vinda do nada, aquela maravilha apareceu diante de mim, uma rapariga do campo, a morar na casa de uma família que vivia do seu trabalho, em que havia muito poucos livros e muito pouco tempo para os ler. A prenda da minha avó, com a sua bonita capa de tecido enfeitada de criaturas bizarras em relevo e, no meio delas, uma Alice com aquela expressão de perpétuo espanto estampada na cara, revelar-se-ia o grande tesouro da minha infância, bem como a mais profunda influência literária da minha vida. (…) Tal como Alice, com quem me identificava de modo impressionante, também eu caí vertiginosamente pela toca do coelho abaixo e/ou passei aventureiramente através do vidro e mergulhei na sala do espelho para, e isto é uma maneira de dizer, nunca mais regressar inteiramente à vida “real” (pp. 27-28). sem esse mergulho na história do ofício de escrever estamos condenados a não passar de amadores (…)” (p. 12). Este último aspecto tocou-me, em particular, pois também defendo que a Escrita Criativa deve ser concomitante à leitura criativa, isto é, o estudo de uma obra, para descobrir como um autor conseguiu obter um determinado efeito. Assim, e para escorar as suas opiniões, a ensaísta convoca uma polifonia de vozes antigas e novas: Lewis Carrol, Emily Dickinson, Edgar Allan Poe, Henry James, Anton Tchékov, Virginia Woolf, etc. Citando passos da obra destes génios literários, ou relatando episódios das suas vidas, Oates permite ao aprendiz compreender que não está só nas dúvidas e ansiedade; no êxito e no fracasso; e no desejo — quase um sacerdócio — de ser um escritor maior. De facto, também os autores maiores já foram aprendizes ansiosos, titubeantes, talvez mesmo descrentes nas suas possibilidades. Até terem aprendido ou descoberto por si as primeiras técnicas que lhes permitiram usar criativamente o poder mágico da palavra. Numa espécie de profissão de fé, que inspira o título do livro, Oates afirma: “Acredito que desejamos ir para além do meramente finito e efémero; fazer parte de algo misterioso e comum a que damos o nome de cultura — e que essa aspiração é tão profunda no ser humano quanto o desejo de reprodução da espécie” (p. 15). Poderá haver propósito mais nobre para um escritor? Lida a obra de Oates, apetece-me dizer amém a essa partilha do fruto belo e tangível a que chamamos imaginação. JOÃO DE MANCELOS Nesta partilha de confidências e de conhecimento, Oates serve-se da sua experiência como autora, docente de EC e, não menos importante, leitora atenta. Logo na introdução, encoraja: “Jovens escritores ou escritores principiantes devem ser instigados a ler muito, incessantemente, tanto autores clássicos como contemporâneos, pois 222 223 de técnicas de escrita criativa, embora deixe insatisfeitos os aprendizes com alguma experiência, e que procurem estratégias mais avançadas relativamente à estruturação do enredo por géneros, ao ponto de vista do narrador, à criação de atmosferas ou ao polimento final do texto. Para esses, não hesito em recomendar Solutions for Writers, de Sol Stein, ou o prático The Writer’s Workbook, de Jenny Newman, Edmund Cusick e Aileen La Tourette. Não se devem confundir as técnicas, conselhos e dicas difundidas por Oates com receitas. Pelo contrário, Oates incentiva o jovem escritor a transgredir, através da experimentação, para que encontre a sua voz singular: “A arte é por natureza um acto transgressor” (p. 45). Esta transgressão revela que Oates não desses ensaístas de EC que prometem êxito ou receitas comerciais para cozinhar best-sellers — mas antes uma perspicaz conhecedora da multiplicidade de técnicas, e da importância da inovação. São aspectos que Oates não apenas professa, mas também pratica — ou não fosse ela uma prosadora, poetisa, dramaturga e ensaísta que arrebatou, entre outros, o prestigiado National Book Award. E quem leu gulosamente os romances Them, ou Blackwater, ou ainda algum dos contos, encontra nestes ensaios um idêntico prazer, pois Oates polvilhou a teoria com situações anedóticas e memórias, sobretudo da infância. Neste espírito, revela, por exemplo, o momento epifânico do seu despertar para a leitura: Em 1946, no dia em que completei oito anos de idade, a minha avó ofereceume uma magnífica cópia ilustrada de Alice no País das Maravilhas e Alice do Outro Lado do Espelho, de Lewis Carroll. De repente, vinda do nada, aquela maravilha apareceu diante de mim, uma rapariga do campo, a morar na casa de uma família que vivia do seu trabalho, em que havia muito poucos livros e muito pouco tempo para os ler. A prenda da minha avó, com a sua bonita capa de tecido enfeitada de criaturas bizarras em relevo e, no meio delas, uma Alice com aquela expressão de perpétuo espanto estampada na cara, revelar-se-ia o grande tesouro da minha infância, bem como a mais profunda influência literária da minha vida. (…) Tal como Alice, com quem me identificava de modo impressionante, também eu caí vertiginosamente pela toca do coelho abaixo e/ou passei aventureiramente através do vidro e mergulhei na sala do espelho para, e isto é uma maneira de dizer, nunca mais regressar inteiramente à vida “real” (pp. 27-28). sem esse mergulho na história do ofício de escrever estamos condenados a não passar de amadores (…)” (p. 12). Este último aspecto tocou-me, em particular, pois também defendo que a Escrita Criativa deve ser concomitante à leitura criativa, isto é, o estudo de uma obra, para descobrir como um autor conseguiu obter um determinado efeito. Assim, e para escorar as suas opiniões, a ensaísta convoca uma polifonia de vozes antigas e novas: Lewis Carrol, Emily Dickinson, Edgar Allan Poe, Henry James, Anton Tchékov, Virginia Woolf, etc. Citando passos da obra destes génios literários, ou relatando episódios das suas vidas, Oates permite ao aprendiz compreender que não está só nas dúvidas e ansiedade; no êxito e no fracasso; e no desejo — quase um sacerdócio — de ser um escritor maior. De facto, também os autores maiores já foram aprendizes ansiosos, titubeantes, talvez mesmo descrentes nas suas possibilidades. Até terem aprendido ou descoberto por si as primeiras técnicas que lhes permitiram usar criativamente o poder mágico da palavra. Numa espécie de profissão de fé, que inspira o título do livro, Oates afirma: “Acredito que desejamos ir para além do meramente finito e efémero; fazer parte de algo misterioso e comum a que damos o nome de cultura — e que essa aspiração é tão profunda no ser humano quanto o desejo de reprodução da espécie” (p. 15). Poderá haver propósito mais nobre para um escritor? Lida a obra de Oates, apetece-me dizer amém a essa partilha do fruto belo e tangível a que chamamos imaginação. JOÃO DE MANCELOS Nesta partilha de confidências e de conhecimento, Oates serve-se da sua experiência como autora, docente de EC e, não menos importante, leitora atenta. Logo na introdução, encoraja: “Jovens escritores ou escritores principiantes devem ser instigados a ler muito, incessantemente, tanto autores clássicos como contemporâneos, pois 222 223 MÁTHESIS 18 2009 47-79 O CONTRIBUTO DE PEDRO PERPINHÃO PARA A ELABORAÇÃO DA RATIO STUDIORUM DA COMPANHIA DE JESUS HELENA COSTA TOIPA RESUMO O padre jesuíta Pedro Perpinhão desempenhou, em Portugal, actividade docente relevante, em meados do século XVI. Considerando a sua prática pedagógica, foi convidado por um antigo companheiro a sistematizá-la, em texto. Perpinhão redigiu, então, um opúsculo, De ratione liberorum instituendorum litteris Graecis et Latinis, cuja informação seria, depois, utilizada na elaboração do código pedagógico oficial dos jesuítas, a Ratio Studiorum. Este artigo pretende mostrar semelhanças entre os dois textos. ABSTRACT The Jesuit priest Pedro Perpinhão performed an important teaching activity in Portugal, in the 16th century. Considering his pedagogic performance, he was invited, by a companion, to put it on writing. He wrote, then, the opuscule De ratione liberorum instituendorum litteris Graecis et Latinis. The information contained on that small literary work should be used on the composition of the official pedagogic code of the Jesuits, the Ratio Studiorum.. This article aims to show some of the similarities between the two texts. Solicitado por Francisco Adorno, amigo e antigo companheiro de Coimbra, no sentido de lhe descrever o método seguido pela Companhia de Jesus no ensino do grego e do latim, no Colégio das Artes daquela cidade, o padre jesuíta Pedro Perpinhão respondeu com um opúsculo que viria a contribuir para a elaboração da Ratio Studiorum, cuja versão final e oficial data de 1599: Como dizias, pois, que querias conhecer, por mim, qual terá sido, no Colégio Conimbricense da nossa Companhia, o método seguido na educação dos meninos das classes mais baixas, eu, com o cuidado de te agradar e de aumentar e ornar com o zelo da minha tarefa, abarcando no meu espírito todo o ensino daquele Colégio, tudo aquilo que pensava sobre todo o método de ensinar aos meninos as Salman Rushdie. The Enchantress of Florence. London: Jonathan Cape, 2008. 359 pp. ISBN-13 9780 2240 8243 3 Na entrevista concedida em Abril de 2008 à ABC National Radio, no programa de Ramona Koval The Book Show, Salman Rushdie desvenda a génesis criativa do seu último romance, The Enchantress of Florence. Pretendia o célebre autor de Midnight’s Children (1981) fazer uma viagem literária àqueles que considerava dois mundos completamente divergentes: Florença, cidade arquétipo da Renascença italiana, e Fatehpur Sikri, a cidade do grande imperador Mughal, Akbar, O Grande. Descobriu, no entanto, que ao invés, eram cidades espelho, tanto no que diz respeito ao fervor recém-descoberto com os ideais culturais mas também à violência que estruturava essas sociedades. Mas é desta combinação paradoxal e destas geografias que nasce o mundo moderno (<http://www.abc.net.au/rn/bookshow/stories/2008/2227428.htm>). O texto pretende representar uma ponte entre Akbar, um imperador iletrado mas com enorme sensibilidade artística, e Maquiavel, figura histórica redimida pelo autor. Pelo meio surge o encanto e a encantadora, Qara Köz, Lady Black Eyes. Os ingredientes desta poção são constantes na ficção do anglo-indiano: história, viagem, memória, beleza e paixão diluem-se num encantamento com mais ou menos sucesso. Em The Enchantress, a fábula aparece mais uma vez como o elemento unificador destes ingredientes. Fiel à questão shakespeariana que permeia os seus romances, “What’s in a name”, a enfabulação surge primeiramente nesta instância pela des/construção da identidade do viajante. Ele apresenta-se na corte de Akbar como Mogor dell’Amore, ou seja, personificação de uma entidade híbrida e pecaminosa, um príncipe (“Mogor”/”Mughal”) fruto de um enlace extra-matrimonial (Rushdie, 2008: 93). As invocações remetem ao nível da narrativa para o triunvirato de homens cuja intimidade confunde as próprias personalidades: Agostino Vespucci, Antonino Argalia The Turk e Niccolò Il Macchia. Mas a nominação invoca também uma grandiosidade entrosada de arte e história (o primeiro nome que lhe conhecemos é Ucello, ainda antes da chegada às terras do Rei Elefante); Agostino é primo de Amerigo Vespucci, outro nomeador de um novo mundo, Niccolò é o primeiro nome de Maquiavel e Argalia personifica o aventureiro e guerreiro intrépido (“al-ghazi”, o conquistador). Niccolò Antonino Vespucci ou Mogor dell’Amore interpreta-se, portanto, como herdeiro destes ímpetos renascentistas quando chega a Akbar para reclamar também a sua herança oriental. Contudo, ele próprio não sabe qual é especificamente a sua genealogia e entre a invocação de personalidades do passado em Florença e imprecisão da sua ascendência em Sikri, o Mogor dell’Amore tece uma tapeçaria indistinguível entre história e especulação, apontando para a permanente demanda identitária de indivíduos, povos e entre civilizações. A mesma calculada fuga à identidade é aplicada à personagem de Lady Black Eyes, Qara Köz, ou Angelica. Angelica é esposa do Shah Ismail da Pérsia e irmã do grande imperador Babar (avô de Akbar), e mais tarde companheira de Argalia. Mas Angelica tem uma aia que de tão semelhante, só um tanto menos bela porque a formosura de Qara Köz é perfeita, se apelida de Espelho. Logicamente, também a aia passa a denominar-se Angelica e a ser amante de Argalia e do companheiro seguinte de Kara Qöz, Agostino Vespucci. O sangue do Mogor deixa de ser real e passa a ser de serviçal. As relações de proximidade e mesmo de promiscuidade entre Argalia, Qara Köz, o Espelho e Agostino Vespucci, afinal o pai do Mogor, servem para diluir todas as diferenças, frustrar todas as fixações ontológicas e marcarem a necessidade de questionação. Existe mais uma referência feminina pivô, Angélique, princesa e prostituta. Ela é, claramente, a síntese de Kara Qöz e o Espelho, embora estas, à medida que se dirigem para o Ocidente, se tornem cada vez mais uma unidade. Enquanto estas vivem como personagens de direito próprio, Angélique tem uma presença ocasional no romance, cumprindo apenas uma função representativa. Ela é o “palácio da memória”, a alegoria axial de The Enchantress of Florence. O palácio da memória é, como explica Rushdie na conversa com Jeffrey Eugenides, vencedor do Pulitzer Prize, que teve lugar na New York Public Library, um truque da mente cujo objectivo é melhorar a capacidade de memorização (<http://www.nypl.org/research/chss/ pep/pepdesc.cfm?id=4248>). O indivíduo escolhe um edifício com que esteja bastante familiarizado e percorre-o na sua mente, anexando memórias a pormenores 226 Bibliografia LE GUIN, Ursula. “The Real Uses of Enchantment”. 29 Mar. 2008. www.guardian.co.uk/books /2008/mar/29/fiction.salmanrushdie REINEKE, Martha. Sacrificed Lives: Kristeva on Women and Violence. Bloomington and Indianapolis: Indiana UP, 1997. RUSHDIE, Salman. “September 1999: Darwin in Kansas”. Step Across This Line: Collected Non-Fiction 1992-2002. London: Vintage, 2002. 314-316. — The Enchantress of Florence. London: Jonathan Cape, 2008. — “Salman Rushdie in Conversation with Jeffrey Eugenides”. The Enchantress of Florence. 27 Jun. 2008. http://www.nypl.org/research/chss/pep/pepdesc.cfm?id=4248 — “Salman Rushdie’s Enchantress [Interview with Ramona Koval for the Book Show]”. ABC National Radio. 27 Abr. 2008. http://www.abc.net.au/rn/bookshow/stories/2008/2227428.htm MARIA SOFIA PIMENTEL BISCAIA 230 arquitectónicos específicos e a mobília. Assim, todas as vezes que “percorrer” esse edifício, as memórias são recuperadas. Neste caso, uma mulher torna-se a alegoria humana do conceito. O que o romance sugere também é que a recuperação da memória é destrutiva. Quando Il Macchia (Maquiavel) toma como missão resgatar a mente amnésica de Angélique, a qual havia sido submetida a todo o tipo de perdas e abusos, ele inadvertidamente condena-a ao suicídio: While you were anaesthetized to the tragedy of your life you were able to survive. When clarity was returned to you, when it was painstakingly restored, it could drive you mad. Your reawakened memory could derange you, the memory of humiliation, of so much handling, of so many intrusions, the memory of men. Not a palace but a brothel of memories, and behind those memories the knowledge that those who loved you were dead, that there was no escape. […] Perhaps the world itself was dead. Yes, it was. To be part of the dead world was necessary that you die as well. […] It was good to fall. It was good to fall out of life. (Rushdie, 2008: 191) Também a ficção rushdiana já se estabeleceu como um palácio de memórias e, mais uma vez, o autor usa o arquétipo da mulher louca do qual Sufiya em Shame (1983) continua, a meu ver, a ser a epítome. Angélique é um fantasma como personagem, tanto como veículo vazio de memórias como mero instrumento das intenções do autor; a vida que lhe é atribuída com a recuperação da memória carece de substância e do detalhe ornamentado que caracteriza a escrita de Rushdie. Entre as intenções de Rushdie está a discussão permanente da relação de poderes entre os géneros e do papel das mulheres na história (his/tory). Espelhando Shame mais uma vez, onde Omar tenta controlar a mente e o corpo da sua mulher-criança, Il Macchia interfere com a mente de Angélique; a desconsideração das consequências para a mulher dita o seu sacrifício. Logo a memória de homens referida na citação é literal. É esta a lógica que transforma Kara Qöz de encantadora de Florença em bruxa. Rushdie recobra no seu livro o interesse renascentista nestas personagens misteriosas mas, e valendo-se da opinião da ensaísta e romancista Marina Warner, sublinha que aos olhos da época, qualquer mulher é potencialmente uma bruxa: “the world was therefore dangerous to any woman; those who love her, can the next minute accuse her” (<http://www.nypl.org/research/chss/pep/ pepdesc.cfm?id=4248>). Martha Reineke, que fez uma excelente reflexão sobre o fenómeno da caça às bruxas, salienta como este se tornou, na realidade, num fenómeno de caça às mulheres derivado da mentalidade cultural que as caracterizava como inferiores moralmente 227 e de circunstâncias económico-legais que as tornava a um mesmo tempo perigosas e sacrificáveis (Reineke: 128-160). Rushdie afirmou que o livro tencionava ser sobre Kara Qöz mas, que no processo de escrita, se tornou sobre as duas cidades (<http://www.nypl.org/research/chss/pep/pepdesc. cfm?id=4248>). Essa mudança ditou também um foco diferente; o romance concentrase, de facto, nas relações masculinas. A sedutora passa para os bastidores quando o Ocidente encontra o Oriente pela viagem do Mogor e pela conversa subentendida entre Akbar e Maquiavel. Qara Köz nem é caso único; Jodha, a esposa de Akbar, é a idealização de mulher. É respeitosa, silenciosa, lindíssima e, obviamente, imaginária. As mulheres existem, como comenta a americana Ursula Le Guin no The Guardian, exclusivamente em função dos homens. Por tal, o poder de sedução de Qara Köz é apenas uma ilusão e o próprio autor contribui para tal. Só os homens poderão ser grandiosos, nomeadamente Akbar, que é repetidamente caracterizado como tal: era “an incarnation of all his subjects, of all his cities and lands and rivers and mountains and lakes, as well as all the animals and plants and trees within his frontiers, […] as the apogee of his people’s past and present, and the engine of their future” (Rushdie, 2008: 31). Ele é que é a fonte de encantamento; ele é “The Enchanter” (Rushdie, 2008: 43). A reorientação da obra é ditada pelos que são sempre os interesses de Salman Rushdie: religião e política, muito especificamente no confronto entre as civilizações oriental e ocidental. A desdita de Rushdie com a publicação de The Satanic Verses em 1988 e a declaração do fatwa no ano seguinte é sobejamente conhecida. As reflexões sobre a matéria de fé são introduzidas também através de Akbar, assim contribuindo para o processo de exaltação da figura imperial: Maybe there was no true religion. […] He wanted to be able to tell someone of his suspicion that men had made their gods and not the other way around. He wanted to be able to say, it is man at the centre of things, not God. It is man at the heart and the bottom and the top, man at the front and the back and the side, man the angel and the devil, the miracle and the sin. (Rushdie, 2008: 83, itálicos no original) Contudo não é surpresa que no “reinado” de George W. Bush, após sete anos de mandato aquando a publicação da obra, Rushdie se debruce sobre as relações Oriente/Ocidente. Tendo ele próprio experienciado as consequências perniciosas do fanatismo islâmico, Rushdie continua a sua viagem cada vez mais para Ocidente, de Inglaterra para os Estados Unidos. Também aí denunciou a existência de fanatismo religioso e incitou à guerra contra o obscurantismo religioso pois o “[t]the pull of stupidity grows everywhere more powerful. […] A new dark age of unreason may be beginning” (Rushdie, 2002: 315). Desse ponto geográfico, testemunhou a criação do discurso radical e ascensão imperialista norte-americanos, apesar da sua posição política não ter sido desprovida de controvérsia (vejase, a título exemplificativo o seu “Anti-Americanism”, publicado no período pós-11 de Setembro que aparece em Step Across This Line). O seu princípio anti-religioso é assumido amiúde, por exemplo aquando o evento na New York Public Library, mas na era do “horrorismo”, como foi definida muito polemicamente a nossa era por Ian McEwan, Rushdie condena também os ideais da governação republicana e a construção monolítica (e monológica) do Oriente. The Enchantress of Florence tenta porventura aproximar os dois mundos que se julga tão distantes, realçando o que têm em comum tanto ao níveis humano como cultural e que vai dos afectos ao ódio, da insegurança à glória. Esse é talvez o pensamento-chave que Rushdie quer deixar à sua audiência que vive tempos em que outros dois mundos estão em contenda. Para que tal seja atingido com sucesso, Rushdie esbate as fronteiras entre realidade e fantasia. As suas histórias nunca são apenas histórias. Em The Encantress of Florence, Rushdie volta ao feitiço literário das suas melhores obras, embora sem atingir o requinte de Midnight’s Children ou mesmo de Shame. O/a leitor/a perde-se no emaranhado de personagens fictícias por vezes mais credíveis do que as muitas personagens históricas que habitam o palácio do texto. Ocasionalmente a população rushdiana atrapalha-se no constante movimento e passagem por tantos lugares de nomes intencionalmente “exóticos”. Todavia, nesse frenesim consegue desencobrir a capacidade para a grandeza, ainda que, mesmo ao nível da fantasia, ela só se possa concretizar para os homens. O pensamento claramente humanista de Akbar reflecte tanto a atitude antropocêntrica como falocêntrica do mesmo, combinando modernidade com convenção e adicionando força ao desconforto daí resultante. 228 229 e de circunstâncias económico-legais que as tornava a um mesmo tempo perigosas e sacrificáveis (Reineke: 128-160). Rushdie afirmou que o livro tencionava ser sobre Kara Qöz mas, que no processo de escrita, se tornou sobre as duas cidades (<http://www.nypl.org/research/chss/pep/pepdesc. cfm?id=4248>). Essa mudança ditou também um foco diferente; o romance concentrase, de facto, nas relações masculinas. A sedutora passa para os bastidores quando o Ocidente encontra o Oriente pela viagem do Mogor e pela conversa subentendida entre Akbar e Maquiavel. Qara Köz nem é caso único; Jodha, a esposa de Akbar, é a idealização de mulher. É respeitosa, silenciosa, lindíssima e, obviamente, imaginária. As mulheres existem, como comenta a americana Ursula Le Guin no The Guardian, exclusivamente em função dos homens. Por tal, o poder de sedução de Qara Köz é apenas uma ilusão e o próprio autor contribui para tal. Só os homens poderão ser grandiosos, nomeadamente Akbar, que é repetidamente caracterizado como tal: era “an incarnation of all his subjects, of all his cities and lands and rivers and mountains and lakes, as well as all the animals and plants and trees within his frontiers, […] as the apogee of his people’s past and present, and the engine of their future” (Rushdie, 2008: 31). Ele é que é a fonte de encantamento; ele é “The Enchanter” (Rushdie, 2008: 43). A reorientação da obra é ditada pelos que são sempre os interesses de Salman Rushdie: religião e política, muito especificamente no confronto entre as civilizações oriental e ocidental. A desdita de Rushdie com a publicação de The Satanic Verses em 1988 e a declaração do fatwa no ano seguinte é sobejamente conhecida. As reflexões sobre a matéria de fé são introduzidas também através de Akbar, assim contribuindo para o processo de exaltação da figura imperial: Maybe there was no true religion. […] He wanted to be able to tell someone of his suspicion that men had made their gods and not the other way around. He wanted to be able to say, it is man at the centre of things, not God. It is man at the heart and the bottom and the top, man at the front and the back and the side, man the angel and the devil, the miracle and the sin. (Rushdie, 2008: 83, itálicos no original) Contudo não é surpresa que no “reinado” de George W. Bush, após sete anos de mandato aquando a publicação da obra, Rushdie se debruce sobre as relações Oriente/Ocidente. Tendo ele próprio experienciado as consequências perniciosas do fanatismo islâmico, Rushdie continua a sua viagem cada vez mais para Ocidente, de Inglaterra para os Estados Unidos. Também aí denunciou a existência de fanatismo religioso e incitou à guerra contra o obscurantismo religioso pois o “[t]the pull of stupidity grows everywhere more powerful. […] A new dark age of unreason may be beginning” (Rushdie, 2002: 315). Desse ponto geográfico, testemunhou a criação do discurso radical e ascensão imperialista norte-americanos, apesar da sua posição política não ter sido desprovida de controvérsia (vejase, a título exemplificativo o seu “Anti-Americanism”, publicado no período pós-11 de Setembro que aparece em Step Across This Line). O seu princípio anti-religioso é assumido amiúde, por exemplo aquando o evento na New York Public Library, mas na era do “horrorismo”, como foi definida muito polemicamente a nossa era por Ian McEwan, Rushdie condena também os ideais da governação republicana e a construção monolítica (e monológica) do Oriente. The Enchantress of Florence tenta porventura aproximar os dois mundos que se julga tão distantes, realçando o que têm em comum tanto ao níveis humano como cultural e que vai dos afectos ao ódio, da insegurança à glória. Esse é talvez o pensamento-chave que Rushdie quer deixar à sua audiência que vive tempos em que outros dois mundos estão em contenda. Para que tal seja atingido com sucesso, Rushdie esbate as fronteiras entre realidade e fantasia. As suas histórias nunca são apenas histórias. Em The Encantress of Florence, Rushdie volta ao feitiço literário das suas melhores obras, embora sem atingir o requinte de Midnight’s Children ou mesmo de Shame. O/a leitor/a perde-se no emaranhado de personagens fictícias por vezes mais credíveis do que as muitas personagens históricas que habitam o palácio do texto. Ocasionalmente a população rushdiana atrapalha-se no constante movimento e passagem por tantos lugares de nomes intencionalmente “exóticos”. Todavia, nesse frenesim consegue desencobrir a capacidade para a grandeza, ainda que, mesmo ao nível da fantasia, ela só se possa concretizar para os homens. O pensamento claramente humanista de Akbar reflecte tanto a atitude antropocêntrica como falocêntrica do mesmo, combinando modernidade com convenção e adicionando força ao desconforto daí resultante. 228 229 Bibliografia LE GUIN, Ursula. “The Real Uses of Enchantment”. 29 Mar. 2008. www.guardian.co.uk/books /2008/mar/29/fiction.salmanrushdie REINEKE, Martha. Sacrificed Lives: Kristeva on Women and Violence. Bloomington and Indianapolis: Indiana UP, 1997. RUSHDIE, Salman. “September 1999: Darwin in Kansas”. Step Across This Line: Collected Non-Fiction 1992-2002. London: Vintage, 2002. 314-316. — The Enchantress of Florence. London: Jonathan Cape, 2008. — “Salman Rushdie in Conversation with Jeffrey Eugenides”. The Enchantress of Florence. 27 Jun. 2008. http://www.nypl.org/research/chss/pep/pepdesc.cfm?id=4248 — “Salman Rushdie’s Enchantress [Interview with Ramona Koval for the Book Show]”. ABC National Radio. 27 Abr. 2008. http://www.abc.net.au/rn/bookshow/stories/2008/2227428.htm MARIA SOFIA PIMENTEL BISCAIA 230 arquitectónicos específicos e a mobília. Assim, todas as vezes que “percorrer” esse edifício, as memórias são recuperadas. Neste caso, uma mulher torna-se a alegoria humana do conceito. O que o romance sugere também é que a recuperação da memória é destrutiva. Quando Il Macchia (Maquiavel) toma como missão resgatar a mente amnésica de Angélique, a qual havia sido submetida a todo o tipo de perdas e abusos, ele inadvertidamente condena-a ao suicídio: While you were anaesthetized to the tragedy of your life you were able to survive. When clarity was returned to you, when it was painstakingly restored, it could drive you mad. Your reawakened memory could derange you, the memory of humiliation, of so much handling, of so many intrusions, the memory of men. Not a palace but a brothel of memories, and behind those memories the knowledge that those who loved you were dead, that there was no escape. […] Perhaps the world itself was dead. Yes, it was. To be part of the dead world was necessary that you die as well. […] It was good to fall. It was good to fall out of life. (Rushdie, 2008: 191) Também a ficção rushdiana já se estabeleceu como um palácio de memórias e, mais uma vez, o autor usa o arquétipo da mulher louca do qual Sufiya em Shame (1983) continua, a meu ver, a ser a epítome. Angélique é um fantasma como personagem, tanto como veículo vazio de memórias como mero instrumento das intenções do autor; a vida que lhe é atribuída com a recuperação da memória carece de substância e do detalhe ornamentado que caracteriza a escrita de Rushdie. Entre as intenções de Rushdie está a discussão permanente da relação de poderes entre os géneros e do papel das mulheres na história (his/tory). Espelhando Shame mais uma vez, onde Omar tenta controlar a mente e o corpo da sua mulher-criança, Il Macchia interfere com a mente de Angélique; a desconsideração das consequências para a mulher dita o seu sacrifício. Logo a memória de homens referida na citação é literal. É esta a lógica que transforma Kara Qöz de encantadora de Florença em bruxa. Rushdie recobra no seu livro o interesse renascentista nestas personagens misteriosas mas, e valendo-se da opinião da ensaísta e romancista Marina Warner, sublinha que aos olhos da época, qualquer mulher é potencialmente uma bruxa: “the world was therefore dangerous to any woman; those who love her, can the next minute accuse her” (<http://www.nypl.org/research/chss/pep/ pepdesc.cfm?id=4248>). Martha Reineke, que fez uma excelente reflexão sobre o fenómeno da caça às bruxas, salienta como este se tornou, na realidade, num fenómeno de caça às mulheres derivado da mentalidade cultural que as caracterizava como inferiores moralmente 227