RECENSÕES
ALMEIDA, Maria Clotilde, Bernd Sieberg & Ana
Maria Bernardo (Eds.). (2008). Questions on Language
Change. Lisboa: Edições Colibri & Centro de Estudos
Alemães e Europeus da Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa. 148 pp. ISBN- 978-972-772805-3.
O livro Questions on Language Change reúne comunicações
apresentadas por ocasião do Colóquio Internacional com o mesmo
título, realizado, em 16 de Novembro de 2006, na Faculdade de Letras
da Universidade de Lisboa1.
A edição é da responsabilidade de três dos autores das comunicações agora publicadas, nomeadamente, os Professores Doutores
Maria Clotilde Almeida, Bernd Sieberg e Ana Maria Bernardo, então
na qualidade de membros do Centro de Estudos Alemães e Europeus
da Universidade de Lisboa, mas que, desde 2007, integram o Centro
de Estudos de Comunicação e Cultura da Universidade Católica
Portuguesa, motivo pelo qual foi achado por bem proceder ao seu
lançamento público na dita Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
da Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa.
O livro contém oito artigos (em inglês, alemão e português), de
outros tantos autores, que passo a nomear pela mesma ordem em que
surgem no livro:
- Christian Lehmann, da Universidade de Erfurt, Alemanha,
escreve sobre “A Auxiliarização de Ficar – Linhas Gerais”;
- Johannes Schwitalla, da Universidade de Würzburg, Alemanha,
debruça-se sobre “Sprachwandel durch gesprochene Sprache”;
- José Pinto de Lima, da Universidade de Lisboa, aborda o tema
da “Ongoing Lexicalization and Grammaticalization: A Case from
European Portuguese”;
1
O presente texto constitui uma adaptação do meu discurso de apresentação do
livro, no dia 26 de Novembro de 2008, na Universidade Católica Portuguesa, a quem,
na pessoa do Senhor Professor Doutor Peter Hanenberg, desejo agradecer pela
simpatia e pela hospitalidade demonstradas.
- Ana Maria Bernardo, da Universidade Nova de Lisboa, fala
sobre “Language Change in Translation”;
- Bernd Sieberg, da Universidade de Lisboa, discorre sobre
“Weblogs: Sprache geschriebener Mündlichkeit?”;
- Ana Maria Martins, da Universidade de Lisboa, escolheu para
tema “Investigating Language Change in a Comparative Setting”;
- Maria Clotilde Almeida, da Universidade de Lisboa, desenvolve
o tema “Youngspeak, Subjectification and Language Change: The
Case of bué”;
- Augusto Soares da Silva, da Universidade Católica Portuguesa,
Braga, apresenta um trabalho com o título de “Conceptualization,
Pragmaticization and Semantic Change: Towards an Integrated View
of Semantic Change”.
Como o título do livro diz, o tema geral é a Mudança Linguística,
vista aqui por novos prismas, como, aliás, os editores deste volume
claramente salientam na Nota Introdutória.
Comecemos pela capa. Esta é não só extraordinariamente bem
conseguida de um ponto de vista estético, como subliminarmente
sugestiva do conteúdo do livro, das implicações teórico-metodológicas
e das abordagens nele incluídas. Se a imagem do tabuleiro de xadrês
nos remete para a visão saussureana de sincronia no ‘état de langue’,
as diferentes cadeiras nele anormal e arbitrariamente dispostas não
podem deixar de nos lembrar tanto o carácter convencional da
linguagem – que a paleolinguística, em estreita colaboração com a
paleogenética, tem vindo repetida e consistentemente a confirmar –,
como também, de modo subtil, mas inequívoco, o carácter individual,
único e heterogéneo do acto de fala, causa primeira da mudança
linguística.
O facto de se tratar de peças de mobiliário – e não das figuras
convencionais do jogo do xadrês – teve em mim um efeito imediato e,
contudo, persistente: a recordação de um conto singelo, mas dramático
e pleno de múltiplos simbolismos, do autor suíço de língua alemã
Peter Bichsel, hoje em dia, como outros, já pouco lido. Refiro-me ao
conto Onkel Jodok läßt grüßen, que a Editora alemã Suhrkamp, há
muitos anos, publicou em formato de bolso.
Este conto fala-nos de um velhinho, o Tio Jodok, que vive só,
numas águas-furtadas de um grande prédio de uma grande cidade. O
Tio Jodok, na sua solidão, começa a reflectir sobre os diferentes
cognatos que as diferentes línguas possuem para os mesmos objectos
e, para se entreter, resolve, por assim dizer, trocar os nomes às coisas.
216
O problema é que o que começou por ser um simples entretém,
aplicado inicialmente às suas esparsas peças de mobiliário, acaba por
se transformar num código global novo – mas com a característica
acrescida de não ser partilhado com mais ninguém, e que acaba por
substituir inteiramente a língua antes falada pelo Tio Jodok, impedindo-o, inevitavelmente, de comunicar com os outros, quando, por
fim, decide sair à rua. Como A. Soares da Silva refere, em inglês, na
página 137, “a cognição não deverá ser entendida como um mero
fenómeno individual e interno. Não podemos separar individualidade
e colectividade, pensamento e acção; ‘pensamento individual e acção
colectiva’ constituem uma equação errada (…).” A linguagem é um
facto social, o que é uma afirmação não apenas com um, mas sim com
muitos séculos de existência.
Gostaria, a este propósito – porque a apresentação do livro
decorreu numa universidade católica; porque se trata de uma mulher
(da Igreja); e porque se está a comemorar o oitavo centenário do seu
nascimento –, de prestar homenagem a um dos grandes nomes da
História da Língua e da Literatura Alemãs, em particular, da ‘Mística
tardo-medieval’ (séc. XIV): Mechthild von Magdeburg.
No seu livro em sete volumes, Das fließende Licht der Gottheit,
em que descreve as visões dos seus encontros amorosos e dos seus
diálogos e interacção com Deus, Mechthild alude a uma noiva
alegórica com cinco reinos, correspondentes a outros tantos sentidos,
mas que não são os cinco tradicionais, pois o olfacto e o paladar foram
substituídos por dois novos sentidos – o pensamento e a fala. Como se
diria em alemão, “jedes Kommentar erübrigt sich…”2
A mudança linguística, quer seja determinada por factores intra,
quer extra-linguísticos (história política, social, tecnológica, como
vemos neste livro), é variação diacrónica e, como tal, exige uma
abordagem não apenas varietal, mas também, imprescindível e
fundamentalmente, sistémica. Recorrendo a Eugenio Coseriu, insigne
antigo Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e
um dos maiores mestres da Linguística no séc. XX,3 dir-se-á que, ao
trinómio “sistema-norma-fala”, terá de se acrescentar (através da
aplicação dos conceitos de coerência funcional, princípios e níveis
2
Em português: “todo e qualquer comentário é supérfluo”.
Quis o Destino que eu, embora não tenha sido seu aluno, viesse a ter o grato e
indelével prazer, bem como a subida honra de conhecer pessoalmente o Senhor
Professor Doutor Eugenio Coseriu, há muitos anos, na Alemanha, e com ele ainda
pudesse vir a aprender muito.
3
217
funcionais, bem como escolha) um quarto nível, situado acima do
sistema – o tipo.
Assim (e os artigos deste livro são disso plenamente exemplificativos, como no caso das linguagens dos jovens, de M. C. Almeida),
o que, da perspectiva de um determinado nível estrutural, é visto como
diacrónico (leia-se: mudança) surge, num outro nível mais elevado,
como sincrónico (leia-se: funcionamento). Por outras palavras (e tomo
a liberdade de traduzir Coseriu), é possível existir, por um lado,
“movimento na norma sem movimento no sistema (i.e. diacronia na
norma em simultâneo com sincronia do sistema)”; e, por outro,
“movimento no sistema sem movimento no tipo (i.e. diacronia do
sistema dentro da sincronia do tipo).”4
Sobrepondo-se parcialmente à temática das linguagens dos
jovens, há uma outra a que o livro atribui especial atenção e que, há
pouco, deixei apenas subentendida, quando mencionei os factores
extra-linguísticos da mudança linguística: a questão da fronteira entre
linguagem escrita e linguagem falada. Aplicando-se-lhe a mesma
abordagem funcional, com o tetranómio “tipo-sistema-norma-fala”,
obtemos dois grupos de factos emanando seja a partir do tipo para o
sistema, seja a partir do sistema para a norma (e desta para a fala):
factos “possíveis” e factos “realizados”, dependendo da escolha.
Como se diz nos artigos em que este tema é tratado (o de J.
Schwitalla e o de B. Sieberg), há períodos da história da língua alemã
nos quais aquela fronteira é mais ou menos difusa, em função dos
contextos e factores históricos, políticos, culturais, sociais e tecnológicos. Se, hoje em dia, esta fronteira nos surge como muitíssimo
(quiçá demasiado) permeável, mais ainda do que quando Martinho
Lutero estabelecia “dem Volke aufs Maul schauen” como um dos seus
princípios orientadores na sua tradução da Bíblia do grego e hebraico
para a língua vernácula, tempos houve em que esta fronteira era
praticamente inultrapassável – e isso reflectiu-se, p. ex., na Literatura.
Refíro-me ao Médio-Alto-Alemão, especialmente ao sub-período
dito Clássico (sécs. XII e XIII), por vezes também designado por
‘Höfische Dichtersprache’. Ora é precisamente neste sub-período que
se verifica uma demarcação rígida entre o que é oral, i.e. comum,
plebeu, e o que é escrito, literário, i.e. nobre (na dupla acepção da
palavra – e tenhamos em mente que as palavras são “factores
construtores de espaços”).
Um dos maiores autores do Médio-Alto-Alemão Clássico é
Hartmann von Aue, um mestre no domínio da língua alemã, p. ex. na
escolha (retomo este conceito da Linguística Sistémica Funcional)
criteriosa do léxico utilizado, verificável através das chamadas rimas
finais plenas, minuciosamente estudadas pelo filólogo neogramático
Konrad Zwieržina na viragem do séc. XIX para o séc. XX. Hartmann
apenas faz uso de palavras da oralidade (plebeia) em casos muito
precisos, como é o caso de {ranft} (‘côdea de pão de aveia’), na obra
Gregorius. Como diria Mechthild von Magdeburg, trata-se de uma
palavra “diu man in dirre kuchin vernimet.”5
FRANCISCO ESPÍRITO-SANTO
4
COSERIU, Eugenio (1975). “Synchronie, Diachronie und Typologie”, in
Sprach-wandel: Reader zur diachronischen Sprachwissenschaft, ed. p. Dieter
Cherubim, pp. 134-149. Berlim, Nova Iorque: Walther de Gruyter. (ISBN- 3-11004330-0)
218
5
Em português: “que se ouve na cozinha.”
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funcionais, bem como escolha) um quarto nível, situado acima do
sistema – o tipo.
Assim (e os artigos deste livro são disso plenamente exemplificativos, como no caso das linguagens dos jovens, de M. C. Almeida),
o que, da perspectiva de um determinado nível estrutural, é visto como
diacrónico (leia-se: mudança) surge, num outro nível mais elevado,
como sincrónico (leia-se: funcionamento). Por outras palavras (e tomo
a liberdade de traduzir Coseriu), é possível existir, por um lado,
“movimento na norma sem movimento no sistema (i.e. diacronia na
norma em simultâneo com sincronia do sistema)”; e, por outro,
“movimento no sistema sem movimento no tipo (i.e. diacronia do
sistema dentro da sincronia do tipo).”4
Sobrepondo-se parcialmente à temática das linguagens dos
jovens, há uma outra a que o livro atribui especial atenção e que, há
pouco, deixei apenas subentendida, quando mencionei os factores
extra-linguísticos da mudança linguística: a questão da fronteira entre
linguagem escrita e linguagem falada. Aplicando-se-lhe a mesma
abordagem funcional, com o tetranómio “tipo-sistema-norma-fala”,
obtemos dois grupos de factos emanando seja a partir do tipo para o
sistema, seja a partir do sistema para a norma (e desta para a fala):
factos “possíveis” e factos “realizados”, dependendo da escolha.
Como se diz nos artigos em que este tema é tratado (o de J.
Schwitalla e o de B. Sieberg), há períodos da história da língua alemã
nos quais aquela fronteira é mais ou menos difusa, em função dos
contextos e factores históricos, políticos, culturais, sociais e tecnológicos. Se, hoje em dia, esta fronteira nos surge como muitíssimo
(quiçá demasiado) permeável, mais ainda do que quando Martinho
Lutero estabelecia “dem Volke aufs Maul schauen” como um dos seus
princípios orientadores na sua tradução da Bíblia do grego e hebraico
para a língua vernácula, tempos houve em que esta fronteira era
praticamente inultrapassável – e isso reflectiu-se, p. ex., na Literatura.
Refíro-me ao Médio-Alto-Alemão, especialmente ao sub-período
dito Clássico (sécs. XII e XIII), por vezes também designado por
‘Höfische Dichtersprache’. Ora é precisamente neste sub-período que
se verifica uma demarcação rígida entre o que é oral, i.e. comum,
plebeu, e o que é escrito, literário, i.e. nobre (na dupla acepção da
palavra – e tenhamos em mente que as palavras são “factores
construtores de espaços”).
Um dos maiores autores do Médio-Alto-Alemão Clássico é
Hartmann von Aue, um mestre no domínio da língua alemã, p. ex. na
escolha (retomo este conceito da Linguística Sistémica Funcional)
criteriosa do léxico utilizado, verificável através das chamadas rimas
finais plenas, minuciosamente estudadas pelo filólogo neogramático
Konrad Zwieržina na viragem do séc. XIX para o séc. XX. Hartmann
apenas faz uso de palavras da oralidade (plebeia) em casos muito
precisos, como é o caso de {ranft} (‘côdea de pão de aveia’), na obra
Gregorius. Como diria Mechthild von Magdeburg, trata-se de uma
palavra “diu man in dirre kuchin vernimet.”5
FRANCISCO ESPÍRITO-SANTO
4
COSERIU, Eugenio (1975). “Synchronie, Diachronie und Typologie”, in
Sprach-wandel: Reader zur diachronischen Sprachwissenschaft, ed. p. Dieter
Cherubim, pp. 134-149. Berlim, Nova Iorque: Walther de Gruyter. (ISBN- 3-11004330-0)
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5
Em português: “que se ouve na cozinha.”
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MÁTHESIS 18 2009 47-79
O CONTRIBUTO DE PEDRO PERPINHÃO
PARA A ELABORAÇÃO DA RATIO STUDIORUM
DA COMPANHIA DE JESUS
HELENA COSTA TOIPA
RESUMO
O padre jesuíta Pedro Perpinhão desempenhou, em Portugal,
actividade docente relevante, em meados do século XVI.
Considerando a sua prática pedagógica, foi convidado por um antigo
companheiro a sistematizá-la, em texto. Perpinhão redigiu, então,
um opúsculo, De ratione liberorum instituendorum litteris Graecis
et Latinis, cuja informação seria, depois, utilizada na elaboração do
código pedagógico oficial dos jesuítas, a Ratio Studiorum. Este
artigo pretende mostrar semelhanças entre os dois textos.
ABSTRACT
The Jesuit priest Pedro Perpinhão performed an important
teaching activity in Portugal, in the 16th century. Considering his
pedagogic performance, he was invited, by a companion, to put it on
writing. He wrote, then, the opuscule De ratione liberorum
instituendorum litteris Graecis et Latinis. The information contained
on that small literary work should be used on the composition of the
official pedagogic code of the Jesuits, the Ratio Studiorum.. This
article aims to show some of the similarities between the two texts.
Solicitado por Francisco Adorno, amigo e antigo companheiro de
Coimbra, no sentido de lhe descrever o método seguido pela Companhia
de Jesus no ensino do grego e do latim, no Colégio das Artes daquela
cidade, o padre jesuíta Pedro Perpinhão respondeu com um opúsculo que
viria a contribuir para a elaboração da Ratio Studiorum, cuja versão final e
oficial data de 1599:
Como dizias, pois, que querias conhecer, por mim, qual terá sido, no Colégio
Conimbricense da nossa Companhia, o método seguido na educação dos meninos
das classes mais baixas, eu, com o cuidado de te agradar e de aumentar e ornar
com o zelo da minha tarefa, abarcando no meu espírito todo o ensino daquele
Colégio, tudo aquilo que pensava sobre todo o método de ensinar aos meninos as
OATES, Joyce Carol. A Fé de um Escritor: Vida,
Técnica, Arte. Trad. Maria João Lourenço (Lisboa,
Casa das Letras, 2008. 174 pp.).
É sempre grato quando uma autora com o talento e a versatilidade
de Joyce Carol Oates partilha as suas reflexões e conselhos com
aprendizes da escrita e amantes da literatura. A Fé de um Escritor
consiste numa série de catorze ensaios, vindos a lume ao longo de
quase três dezenas de anos, acerca daquilo a que Oates chama “a mais
solitária das artes” (p. 11), ou seja, a escrita literária.
Nestes textos, a autora explora questões essenciais para quem
deseja entrar no mundo da poesia e ficção, ou apenas compreender
melhor os complexos meandros da criatividade. Como argumenta
Oates: “(…) raramente a inspiração e a energia e até mesmo o génio
são suficientes para se fazer arte: porque a prosa da ficção é também
uma técnica, e uma técnica tem de ser aprendida, seja por acidente ou
por desígnio” (p. 100).
Esta valorização da técnica — companheira do talento e da
perseverança —, assume particular relevo numa altura em que as
estantes das livrarias começam a receber os primeiros manuais de
Escrita Criativa redigidos por portugueses. Contudo, algumas dessas
obras não passam de cadernos de exercícios, com o objectivo de
aproveitar comercialmente a moda da EC. Neste contexto, livros que
se debrucem sobre a técnica literária — como o de Oates —, são
preciosos, pois ajudam a complementar um ensino que, em Portugal,
ainda gatinha e apresenta fraca substância teórica.
Algumas das reflexões da autora prendem-se com o papel ético,
social e artístico do escritor, ou seja, a sua missão: porque escrevemos
e qual a importância da ficção literária nas nossas vidas? Outros
capítulos, mais práticos, clarificam a natureza do ofício da escrita, e
transmitem algumas técnicas: como dinamizar um enredo; como
construir uma personagem realista; a importância da experimentação;
o valor da autocrítica; o motivo da metáfora, etc.
Este livro de Oates pode ser, pois, lido como um manual básico
de técnicas de escrita criativa, embora deixe insatisfeitos os aprendizes
com alguma experiência, e que procurem estratégias mais avançadas
relativamente à estruturação do enredo por géneros, ao ponto de vista
do narrador, à criação de atmosferas ou ao polimento final do texto.
Para esses, não hesito em recomendar Solutions for Writers, de Sol
Stein, ou o prático The Writer’s Workbook, de Jenny Newman,
Edmund Cusick e Aileen La Tourette.
Não se devem confundir as técnicas, conselhos e dicas difundidas
por Oates com receitas. Pelo contrário, Oates incentiva o jovem
escritor a transgredir, através da experimentação, para que encontre a
sua voz singular: “A arte é por natureza um acto transgressor” (p. 45).
Esta transgressão revela que Oates não desses ensaístas de EC que
prometem êxito ou receitas comerciais para cozinhar best-sellers —
mas antes uma perspicaz conhecedora da multiplicidade de técnicas, e
da importância da inovação. São aspectos que Oates não apenas
professa, mas também pratica — ou não fosse ela uma prosadora,
poetisa, dramaturga e ensaísta que arrebatou, entre outros, o
prestigiado National Book Award. E quem leu gulosamente os
romances Them, ou Blackwater, ou ainda algum dos contos, encontra
nestes ensaios um idêntico prazer, pois Oates polvilhou a teoria com
situações anedóticas e memórias, sobretudo da infância. Neste
espírito, revela, por exemplo, o momento epifânico do seu despertar
para a leitura:
Em 1946, no dia em que completei oito anos de idade, a minha avó ofereceume uma magnífica cópia ilustrada de Alice no País das Maravilhas e Alice do
Outro Lado do Espelho, de Lewis Carroll. De repente, vinda do nada, aquela
maravilha apareceu diante de mim, uma rapariga do campo, a morar na casa
de uma família que vivia do seu trabalho, em que havia muito poucos livros e
muito pouco tempo para os ler. A prenda da minha avó, com a sua bonita capa
de tecido enfeitada de criaturas bizarras em relevo e, no meio delas, uma Alice
com aquela expressão de perpétuo espanto estampada na cara, revelar-se-ia o
grande tesouro da minha infância, bem como a mais profunda influência
literária da minha vida. (…) Tal como Alice, com quem me identificava de
modo impressionante, também eu caí vertiginosamente pela toca do coelho
abaixo e/ou passei aventureiramente através do vidro e mergulhei na sala do
espelho para, e isto é uma maneira de dizer, nunca mais regressar inteiramente
à vida “real” (pp. 27-28).
sem esse mergulho na história do ofício de escrever estamos
condenados a não passar de amadores (…)” (p. 12). Este último
aspecto tocou-me, em particular, pois também defendo que a Escrita
Criativa deve ser concomitante à leitura criativa, isto é, o estudo de
uma obra, para descobrir como um autor conseguiu obter um
determinado efeito.
Assim, e para escorar as suas opiniões, a ensaísta convoca uma
polifonia de vozes antigas e novas: Lewis Carrol, Emily Dickinson,
Edgar Allan Poe, Henry James, Anton Tchékov, Virginia Woolf, etc.
Citando passos da obra destes génios literários, ou relatando episódios
das suas vidas, Oates permite ao aprendiz compreender que não está
só nas dúvidas e ansiedade; no êxito e no fracasso; e no desejo —
quase um sacerdócio — de ser um escritor maior. De facto, também os
autores maiores já foram aprendizes ansiosos, titubeantes, talvez
mesmo descrentes nas suas possibilidades. Até terem aprendido ou
descoberto por si as primeiras técnicas que lhes permitiram usar
criativamente o poder mágico da palavra.
Numa espécie de profissão de fé, que inspira o título do livro,
Oates afirma: “Acredito que desejamos ir para além do meramente
finito e efémero; fazer parte de algo misterioso e comum a que damos
o nome de cultura — e que essa aspiração é tão profunda no ser
humano quanto o desejo de reprodução da espécie” (p. 15). Poderá
haver propósito mais nobre para um escritor? Lida a obra de Oates,
apetece-me dizer amém a essa partilha do fruto belo e tangível a que
chamamos imaginação.
JOÃO DE MANCELOS
Nesta partilha de confidências e de conhecimento, Oates serve-se
da sua experiência como autora, docente de EC e, não menos
importante, leitora atenta. Logo na introdução, encoraja: “Jovens
escritores ou escritores principiantes devem ser instigados a ler muito,
incessantemente, tanto autores clássicos como contemporâneos, pois
222
223
de técnicas de escrita criativa, embora deixe insatisfeitos os aprendizes
com alguma experiência, e que procurem estratégias mais avançadas
relativamente à estruturação do enredo por géneros, ao ponto de vista
do narrador, à criação de atmosferas ou ao polimento final do texto.
Para esses, não hesito em recomendar Solutions for Writers, de Sol
Stein, ou o prático The Writer’s Workbook, de Jenny Newman,
Edmund Cusick e Aileen La Tourette.
Não se devem confundir as técnicas, conselhos e dicas difundidas
por Oates com receitas. Pelo contrário, Oates incentiva o jovem
escritor a transgredir, através da experimentação, para que encontre a
sua voz singular: “A arte é por natureza um acto transgressor” (p. 45).
Esta transgressão revela que Oates não desses ensaístas de EC que
prometem êxito ou receitas comerciais para cozinhar best-sellers —
mas antes uma perspicaz conhecedora da multiplicidade de técnicas, e
da importância da inovação. São aspectos que Oates não apenas
professa, mas também pratica — ou não fosse ela uma prosadora,
poetisa, dramaturga e ensaísta que arrebatou, entre outros, o
prestigiado National Book Award. E quem leu gulosamente os
romances Them, ou Blackwater, ou ainda algum dos contos, encontra
nestes ensaios um idêntico prazer, pois Oates polvilhou a teoria com
situações anedóticas e memórias, sobretudo da infância. Neste
espírito, revela, por exemplo, o momento epifânico do seu despertar
para a leitura:
Em 1946, no dia em que completei oito anos de idade, a minha avó ofereceume uma magnífica cópia ilustrada de Alice no País das Maravilhas e Alice do
Outro Lado do Espelho, de Lewis Carroll. De repente, vinda do nada, aquela
maravilha apareceu diante de mim, uma rapariga do campo, a morar na casa
de uma família que vivia do seu trabalho, em que havia muito poucos livros e
muito pouco tempo para os ler. A prenda da minha avó, com a sua bonita capa
de tecido enfeitada de criaturas bizarras em relevo e, no meio delas, uma Alice
com aquela expressão de perpétuo espanto estampada na cara, revelar-se-ia o
grande tesouro da minha infância, bem como a mais profunda influência
literária da minha vida. (…) Tal como Alice, com quem me identificava de
modo impressionante, também eu caí vertiginosamente pela toca do coelho
abaixo e/ou passei aventureiramente através do vidro e mergulhei na sala do
espelho para, e isto é uma maneira de dizer, nunca mais regressar inteiramente
à vida “real” (pp. 27-28).
sem esse mergulho na história do ofício de escrever estamos
condenados a não passar de amadores (…)” (p. 12). Este último
aspecto tocou-me, em particular, pois também defendo que a Escrita
Criativa deve ser concomitante à leitura criativa, isto é, o estudo de
uma obra, para descobrir como um autor conseguiu obter um
determinado efeito.
Assim, e para escorar as suas opiniões, a ensaísta convoca uma
polifonia de vozes antigas e novas: Lewis Carrol, Emily Dickinson,
Edgar Allan Poe, Henry James, Anton Tchékov, Virginia Woolf, etc.
Citando passos da obra destes génios literários, ou relatando episódios
das suas vidas, Oates permite ao aprendiz compreender que não está
só nas dúvidas e ansiedade; no êxito e no fracasso; e no desejo —
quase um sacerdócio — de ser um escritor maior. De facto, também os
autores maiores já foram aprendizes ansiosos, titubeantes, talvez
mesmo descrentes nas suas possibilidades. Até terem aprendido ou
descoberto por si as primeiras técnicas que lhes permitiram usar
criativamente o poder mágico da palavra.
Numa espécie de profissão de fé, que inspira o título do livro,
Oates afirma: “Acredito que desejamos ir para além do meramente
finito e efémero; fazer parte de algo misterioso e comum a que damos
o nome de cultura — e que essa aspiração é tão profunda no ser
humano quanto o desejo de reprodução da espécie” (p. 15). Poderá
haver propósito mais nobre para um escritor? Lida a obra de Oates,
apetece-me dizer amém a essa partilha do fruto belo e tangível a que
chamamos imaginação.
JOÃO DE MANCELOS
Nesta partilha de confidências e de conhecimento, Oates serve-se
da sua experiência como autora, docente de EC e, não menos
importante, leitora atenta. Logo na introdução, encoraja: “Jovens
escritores ou escritores principiantes devem ser instigados a ler muito,
incessantemente, tanto autores clássicos como contemporâneos, pois
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MÁTHESIS 18 2009 47-79
O CONTRIBUTO DE PEDRO PERPINHÃO
PARA A ELABORAÇÃO DA RATIO STUDIORUM
DA COMPANHIA DE JESUS
HELENA COSTA TOIPA
RESUMO
O padre jesuíta Pedro Perpinhão desempenhou, em Portugal,
actividade docente relevante, em meados do século XVI.
Considerando a sua prática pedagógica, foi convidado por um antigo
companheiro a sistematizá-la, em texto. Perpinhão redigiu, então,
um opúsculo, De ratione liberorum instituendorum litteris Graecis
et Latinis, cuja informação seria, depois, utilizada na elaboração do
código pedagógico oficial dos jesuítas, a Ratio Studiorum. Este
artigo pretende mostrar semelhanças entre os dois textos.
ABSTRACT
The Jesuit priest Pedro Perpinhão performed an important
teaching activity in Portugal, in the 16th century. Considering his
pedagogic performance, he was invited, by a companion, to put it on
writing. He wrote, then, the opuscule De ratione liberorum
instituendorum litteris Graecis et Latinis. The information contained
on that small literary work should be used on the composition of the
official pedagogic code of the Jesuits, the Ratio Studiorum.. This
article aims to show some of the similarities between the two texts.
Solicitado por Francisco Adorno, amigo e antigo companheiro de
Coimbra, no sentido de lhe descrever o método seguido pela Companhia
de Jesus no ensino do grego e do latim, no Colégio das Artes daquela
cidade, o padre jesuíta Pedro Perpinhão respondeu com um opúsculo que
viria a contribuir para a elaboração da Ratio Studiorum, cuja versão final e
oficial data de 1599:
Como dizias, pois, que querias conhecer, por mim, qual terá sido, no Colégio
Conimbricense da nossa Companhia, o método seguido na educação dos meninos
das classes mais baixas, eu, com o cuidado de te agradar e de aumentar e ornar
com o zelo da minha tarefa, abarcando no meu espírito todo o ensino daquele
Colégio, tudo aquilo que pensava sobre todo o método de ensinar aos meninos as
Salman Rushdie. The Enchantress of Florence. London:
Jonathan Cape, 2008. 359 pp.
ISBN-13 9780 2240 8243 3
Na entrevista concedida em Abril de 2008 à ABC National Radio,
no programa de Ramona Koval The Book Show, Salman Rushdie
desvenda a génesis criativa do seu último romance, The Enchantress
of Florence. Pretendia o célebre autor de Midnight’s Children (1981)
fazer uma viagem literária àqueles que considerava dois mundos
completamente divergentes: Florença, cidade arquétipo da Renascença
italiana, e Fatehpur Sikri, a cidade do grande imperador Mughal,
Akbar, O Grande. Descobriu, no entanto, que ao invés, eram cidades
espelho, tanto no que diz respeito ao fervor recém-descoberto com os
ideais culturais mas também à violência que estruturava essas
sociedades. Mas é desta combinação paradoxal e destas geografias que
nasce
o
mundo
moderno
(<http://www.abc.net.au/rn/bookshow/stories/2008/2227428.htm>).
O texto pretende representar uma ponte entre Akbar, um
imperador iletrado mas com enorme sensibilidade artística, e
Maquiavel, figura histórica redimida pelo autor. Pelo meio surge o
encanto e a encantadora, Qara Köz, Lady Black Eyes. Os ingredientes
desta poção são constantes na ficção do anglo-indiano: história,
viagem, memória, beleza e paixão diluem-se num encantamento com
mais ou menos sucesso. Em The Enchantress, a fábula aparece mais
uma vez como o elemento unificador destes ingredientes. Fiel à
questão shakespeariana que permeia os seus romances, “What’s in a
name”, a enfabulação surge primeiramente nesta instância pela
des/construção da identidade do viajante. Ele apresenta-se na corte de
Akbar como Mogor dell’Amore, ou seja, personificação de uma
entidade híbrida e pecaminosa, um príncipe (“Mogor”/”Mughal”)
fruto de um enlace extra-matrimonial (Rushdie, 2008: 93). As
invocações remetem ao nível da narrativa para o triunvirato de
homens cuja intimidade confunde as próprias personalidades:
Agostino Vespucci, Antonino Argalia The Turk e Niccolò Il Macchia.
Mas a nominação invoca também uma grandiosidade entrosada de arte
e história (o primeiro nome que lhe conhecemos é Ucello, ainda antes
da chegada às terras do Rei Elefante); Agostino é primo de Amerigo
Vespucci, outro nomeador de um novo mundo, Niccolò é o primeiro
nome de Maquiavel e Argalia personifica o aventureiro e guerreiro
intrépido (“al-ghazi”, o conquistador). Niccolò Antonino Vespucci ou
Mogor dell’Amore interpreta-se, portanto, como herdeiro destes
ímpetos renascentistas quando chega a Akbar para reclamar também a
sua herança oriental. Contudo, ele próprio não sabe qual é
especificamente a sua genealogia e entre a invocação de
personalidades do passado em Florença e imprecisão da sua
ascendência em Sikri, o Mogor dell’Amore tece uma tapeçaria
indistinguível entre história e especulação, apontando para a
permanente demanda identitária de indivíduos, povos e entre
civilizações.
A mesma calculada fuga à identidade é aplicada à personagem de
Lady Black Eyes, Qara Köz, ou Angelica. Angelica é esposa do Shah
Ismail da Pérsia e irmã do grande imperador Babar (avô de Akbar), e
mais tarde companheira de Argalia. Mas Angelica tem uma aia que de
tão semelhante, só um tanto menos bela porque a formosura de Qara
Köz é perfeita, se apelida de Espelho. Logicamente, também a aia
passa a denominar-se Angelica e a ser amante de Argalia e do
companheiro seguinte de Kara Qöz, Agostino Vespucci. O sangue do
Mogor deixa de ser real e passa a ser de serviçal. As relações de
proximidade e mesmo de promiscuidade entre Argalia, Qara Köz, o
Espelho e Agostino Vespucci, afinal o pai do Mogor, servem para
diluir todas as diferenças, frustrar todas as fixações ontológicas e
marcarem a necessidade de questionação.
Existe mais uma referência feminina pivô, Angélique, princesa e
prostituta. Ela é, claramente, a síntese de Kara Qöz e o Espelho,
embora estas, à medida que se dirigem para o Ocidente, se tornem
cada vez mais uma unidade. Enquanto estas vivem como personagens
de direito próprio, Angélique tem uma presença ocasional no
romance, cumprindo apenas uma função representativa. Ela é o
“palácio da memória”, a alegoria axial de The Enchantress of
Florence. O palácio da memória é, como explica Rushdie na conversa
com Jeffrey Eugenides, vencedor do Pulitzer Prize, que teve lugar na
New York Public Library, um truque da mente cujo objectivo é
melhorar
a
capacidade
de
memorização
(<http://www.nypl.org/research/chss/ pep/pepdesc.cfm?id=4248>). O
indivíduo escolhe um edifício com que esteja bastante familiarizado e
percorre-o na sua mente, anexando memórias a pormenores
226
Bibliografia
LE GUIN, Ursula. “The Real Uses of Enchantment”. 29 Mar. 2008.
www.guardian.co.uk/books /2008/mar/29/fiction.salmanrushdie
REINEKE, Martha. Sacrificed Lives: Kristeva on Women and
Violence. Bloomington and Indianapolis: Indiana UP, 1997.
RUSHDIE, Salman. “September 1999: Darwin in Kansas”. Step
Across This Line: Collected Non-Fiction 1992-2002. London:
Vintage, 2002. 314-316.
— The Enchantress of Florence. London: Jonathan Cape, 2008.
— “Salman Rushdie in Conversation with Jeffrey Eugenides”. The
Enchantress of Florence. 27 Jun. 2008.
http://www.nypl.org/research/chss/pep/pepdesc.cfm?id=4248
— “Salman Rushdie’s Enchantress [Interview with Ramona Koval for
the Book Show]”. ABC National Radio. 27 Abr. 2008.
http://www.abc.net.au/rn/bookshow/stories/2008/2227428.htm
MARIA SOFIA PIMENTEL BISCAIA
230
arquitectónicos específicos e a mobília. Assim, todas as vezes que
“percorrer” esse edifício, as memórias são recuperadas. Neste caso,
uma mulher torna-se a alegoria humana do conceito. O que o romance
sugere também é que a recuperação da memória é destrutiva. Quando
Il Macchia (Maquiavel) toma como missão resgatar a mente amnésica
de Angélique, a qual havia sido submetida a todo o tipo de perdas e
abusos, ele inadvertidamente condena-a ao suicídio:
While you were anaesthetized to the tragedy of your life you were able to
survive. When clarity was returned to you, when it was painstakingly restored,
it could drive you mad. Your reawakened memory could derange you, the
memory of humiliation, of so much handling, of so many intrusions, the
memory of men. Not a palace but a brothel of memories, and behind those
memories the knowledge that those who loved you were dead, that there was
no escape. […] Perhaps the world itself was dead. Yes, it was. To be part of
the dead world was necessary that you die as well. […] It was good to fall. It
was good to fall out of life. (Rushdie, 2008: 191)
Também a ficção rushdiana já se estabeleceu como um palácio de
memórias e, mais uma vez, o autor usa o arquétipo da mulher louca do
qual Sufiya em Shame (1983) continua, a meu ver, a ser a epítome.
Angélique é um fantasma como personagem, tanto como veículo
vazio de memórias como mero instrumento das intenções do autor; a
vida que lhe é atribuída com a recuperação da memória carece de
substância e do detalhe ornamentado que caracteriza a escrita de
Rushdie. Entre as intenções de Rushdie está a discussão permanente
da relação de poderes entre os géneros e do papel das mulheres na
história (his/tory). Espelhando Shame mais uma vez, onde Omar tenta
controlar a mente e o corpo da sua mulher-criança, Il Macchia
interfere com a mente de Angélique; a desconsideração das
consequências para a mulher dita o seu sacrifício. Logo a memória de
homens referida na citação é literal.
É esta a lógica que transforma Kara Qöz de encantadora de
Florença em bruxa. Rushdie recobra no seu livro o interesse
renascentista nestas personagens misteriosas mas, e valendo-se da
opinião da ensaísta e romancista Marina Warner, sublinha que aos
olhos da época, qualquer mulher é potencialmente uma bruxa: “the
world was therefore dangerous to any woman; those who love her, can
the next minute accuse her” (<http://www.nypl.org/research/chss/pep/
pepdesc.cfm?id=4248>). Martha Reineke, que fez uma excelente
reflexão sobre o fenómeno da caça às bruxas, salienta como este se
tornou, na realidade, num fenómeno de caça às mulheres derivado da
mentalidade cultural que as caracterizava como inferiores moralmente
227
e de circunstâncias económico-legais que as tornava a um mesmo
tempo perigosas e sacrificáveis (Reineke: 128-160).
Rushdie afirmou que o livro tencionava ser sobre Kara Qöz mas,
que no processo de escrita, se tornou sobre as duas cidades
(<http://www.nypl.org/research/chss/pep/pepdesc.
cfm?id=4248>).
Essa mudança ditou também um foco diferente; o romance concentrase, de facto, nas relações masculinas. A sedutora passa para os
bastidores quando o Ocidente encontra o Oriente pela viagem do
Mogor e pela conversa subentendida entre Akbar e Maquiavel. Qara
Köz nem é caso único; Jodha, a esposa de Akbar, é a idealização de
mulher. É respeitosa, silenciosa, lindíssima e, obviamente, imaginária.
As mulheres existem, como comenta a americana Ursula Le Guin no
The Guardian, exclusivamente em função dos homens. Por tal, o
poder de sedução de Qara Köz é apenas uma ilusão e o próprio autor
contribui para tal. Só os homens poderão ser grandiosos,
nomeadamente Akbar, que é repetidamente caracterizado como tal:
era “an incarnation of all his subjects, of all his cities and lands and
rivers and mountains and lakes, as well as all the animals and plants
and trees within his frontiers, […] as the apogee of his people’s past
and present, and the engine of their future” (Rushdie, 2008: 31). Ele é
que é a fonte de encantamento; ele é “The Enchanter” (Rushdie, 2008:
43).
A reorientação da obra é ditada pelos que são sempre os
interesses de Salman Rushdie: religião e política, muito
especificamente no confronto entre as civilizações oriental e ocidental.
A desdita de Rushdie com a publicação de The Satanic Verses em
1988 e a declaração do fatwa no ano seguinte é sobejamente
conhecida. As reflexões sobre a matéria de fé são introduzidas
também através de Akbar, assim contribuindo para o processo de
exaltação da figura imperial:
Maybe there was no true religion. […] He wanted to be able to tell someone
of his suspicion that men had made their gods and not the other way around.
He wanted to be able to say, it is man at the centre of things, not God. It is
man at the heart and the bottom and the top, man at the front and the back and
the side, man the angel and the devil, the miracle and the sin. (Rushdie, 2008:
83, itálicos no original)
Contudo não é surpresa que no “reinado” de George W. Bush,
após sete anos de mandato aquando a publicação da obra, Rushdie se
debruce sobre as relações Oriente/Ocidente. Tendo ele próprio
experienciado as consequências perniciosas do fanatismo islâmico,
Rushdie continua a sua viagem cada vez mais para Ocidente, de
Inglaterra para os Estados Unidos. Também aí denunciou a existência
de fanatismo religioso e incitou à guerra contra o obscurantismo
religioso pois o “[t]the pull of stupidity grows everywhere more
powerful. […] A new dark age of unreason may be beginning”
(Rushdie, 2002: 315). Desse ponto geográfico, testemunhou a criação
do discurso radical e ascensão imperialista norte-americanos, apesar
da sua posição política não ter sido desprovida de controvérsia (vejase, a título exemplificativo o seu “Anti-Americanism”, publicado no
período pós-11 de Setembro que aparece em Step Across This Line). O
seu princípio anti-religioso é assumido amiúde, por exemplo aquando
o evento na New York Public Library, mas na era do “horrorismo”,
como foi definida muito polemicamente a nossa era por Ian McEwan,
Rushdie condena também os ideais da governação republicana e a
construção monolítica (e monológica) do Oriente. The Enchantress of
Florence tenta porventura aproximar os dois mundos que se julga tão
distantes, realçando o que têm em comum tanto ao níveis humano
como cultural e que vai dos afectos ao ódio, da insegurança à glória.
Esse é talvez o pensamento-chave que Rushdie quer deixar à sua
audiência que vive tempos em que outros dois mundos estão em
contenda. Para que tal seja atingido com sucesso, Rushdie esbate as
fronteiras entre realidade e fantasia. As suas histórias nunca são
apenas histórias.
Em The Encantress of Florence, Rushdie volta ao feitiço literário
das suas melhores obras, embora sem atingir o requinte de Midnight’s
Children ou mesmo de Shame. O/a leitor/a perde-se no emaranhado de
personagens fictícias por vezes mais credíveis do que as muitas
personagens históricas que habitam o palácio do texto.
Ocasionalmente a população rushdiana atrapalha-se no constante
movimento e passagem por tantos lugares de nomes intencionalmente
“exóticos”. Todavia, nesse frenesim consegue desencobrir a
capacidade para a grandeza, ainda que, mesmo ao nível da fantasia,
ela só se possa concretizar para os homens.
O pensamento claramente humanista de Akbar reflecte tanto a
atitude antropocêntrica como falocêntrica do mesmo, combinando
modernidade com convenção e adicionando força ao desconforto daí
resultante.
228
229
e de circunstâncias económico-legais que as tornava a um mesmo
tempo perigosas e sacrificáveis (Reineke: 128-160).
Rushdie afirmou que o livro tencionava ser sobre Kara Qöz mas,
que no processo de escrita, se tornou sobre as duas cidades
(<http://www.nypl.org/research/chss/pep/pepdesc.
cfm?id=4248>).
Essa mudança ditou também um foco diferente; o romance concentrase, de facto, nas relações masculinas. A sedutora passa para os
bastidores quando o Ocidente encontra o Oriente pela viagem do
Mogor e pela conversa subentendida entre Akbar e Maquiavel. Qara
Köz nem é caso único; Jodha, a esposa de Akbar, é a idealização de
mulher. É respeitosa, silenciosa, lindíssima e, obviamente, imaginária.
As mulheres existem, como comenta a americana Ursula Le Guin no
The Guardian, exclusivamente em função dos homens. Por tal, o
poder de sedução de Qara Köz é apenas uma ilusão e o próprio autor
contribui para tal. Só os homens poderão ser grandiosos,
nomeadamente Akbar, que é repetidamente caracterizado como tal:
era “an incarnation of all his subjects, of all his cities and lands and
rivers and mountains and lakes, as well as all the animals and plants
and trees within his frontiers, […] as the apogee of his people’s past
and present, and the engine of their future” (Rushdie, 2008: 31). Ele é
que é a fonte de encantamento; ele é “The Enchanter” (Rushdie, 2008:
43).
A reorientação da obra é ditada pelos que são sempre os
interesses de Salman Rushdie: religião e política, muito
especificamente no confronto entre as civilizações oriental e ocidental.
A desdita de Rushdie com a publicação de The Satanic Verses em
1988 e a declaração do fatwa no ano seguinte é sobejamente
conhecida. As reflexões sobre a matéria de fé são introduzidas
também através de Akbar, assim contribuindo para o processo de
exaltação da figura imperial:
Maybe there was no true religion. […] He wanted to be able to tell someone
of his suspicion that men had made their gods and not the other way around.
He wanted to be able to say, it is man at the centre of things, not God. It is
man at the heart and the bottom and the top, man at the front and the back and
the side, man the angel and the devil, the miracle and the sin. (Rushdie, 2008:
83, itálicos no original)
Contudo não é surpresa que no “reinado” de George W. Bush,
após sete anos de mandato aquando a publicação da obra, Rushdie se
debruce sobre as relações Oriente/Ocidente. Tendo ele próprio
experienciado as consequências perniciosas do fanatismo islâmico,
Rushdie continua a sua viagem cada vez mais para Ocidente, de
Inglaterra para os Estados Unidos. Também aí denunciou a existência
de fanatismo religioso e incitou à guerra contra o obscurantismo
religioso pois o “[t]the pull of stupidity grows everywhere more
powerful. […] A new dark age of unreason may be beginning”
(Rushdie, 2002: 315). Desse ponto geográfico, testemunhou a criação
do discurso radical e ascensão imperialista norte-americanos, apesar
da sua posição política não ter sido desprovida de controvérsia (vejase, a título exemplificativo o seu “Anti-Americanism”, publicado no
período pós-11 de Setembro que aparece em Step Across This Line). O
seu princípio anti-religioso é assumido amiúde, por exemplo aquando
o evento na New York Public Library, mas na era do “horrorismo”,
como foi definida muito polemicamente a nossa era por Ian McEwan,
Rushdie condena também os ideais da governação republicana e a
construção monolítica (e monológica) do Oriente. The Enchantress of
Florence tenta porventura aproximar os dois mundos que se julga tão
distantes, realçando o que têm em comum tanto ao níveis humano
como cultural e que vai dos afectos ao ódio, da insegurança à glória.
Esse é talvez o pensamento-chave que Rushdie quer deixar à sua
audiência que vive tempos em que outros dois mundos estão em
contenda. Para que tal seja atingido com sucesso, Rushdie esbate as
fronteiras entre realidade e fantasia. As suas histórias nunca são
apenas histórias.
Em The Encantress of Florence, Rushdie volta ao feitiço literário
das suas melhores obras, embora sem atingir o requinte de Midnight’s
Children ou mesmo de Shame. O/a leitor/a perde-se no emaranhado de
personagens fictícias por vezes mais credíveis do que as muitas
personagens históricas que habitam o palácio do texto.
Ocasionalmente a população rushdiana atrapalha-se no constante
movimento e passagem por tantos lugares de nomes intencionalmente
“exóticos”. Todavia, nesse frenesim consegue desencobrir a
capacidade para a grandeza, ainda que, mesmo ao nível da fantasia,
ela só se possa concretizar para os homens.
O pensamento claramente humanista de Akbar reflecte tanto a
atitude antropocêntrica como falocêntrica do mesmo, combinando
modernidade com convenção e adicionando força ao desconforto daí
resultante.
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229
Bibliografia
LE GUIN, Ursula. “The Real Uses of Enchantment”. 29 Mar. 2008.
www.guardian.co.uk/books /2008/mar/29/fiction.salmanrushdie
REINEKE, Martha. Sacrificed Lives: Kristeva on Women and
Violence. Bloomington and Indianapolis: Indiana UP, 1997.
RUSHDIE, Salman. “September 1999: Darwin in Kansas”. Step
Across This Line: Collected Non-Fiction 1992-2002. London:
Vintage, 2002. 314-316.
— The Enchantress of Florence. London: Jonathan Cape, 2008.
— “Salman Rushdie in Conversation with Jeffrey Eugenides”. The
Enchantress of Florence. 27 Jun. 2008.
http://www.nypl.org/research/chss/pep/pepdesc.cfm?id=4248
— “Salman Rushdie’s Enchantress [Interview with Ramona Koval for
the Book Show]”. ABC National Radio. 27 Abr. 2008.
http://www.abc.net.au/rn/bookshow/stories/2008/2227428.htm
MARIA SOFIA PIMENTEL BISCAIA
230
arquitectónicos específicos e a mobília. Assim, todas as vezes que
“percorrer” esse edifício, as memórias são recuperadas. Neste caso,
uma mulher torna-se a alegoria humana do conceito. O que o romance
sugere também é que a recuperação da memória é destrutiva. Quando
Il Macchia (Maquiavel) toma como missão resgatar a mente amnésica
de Angélique, a qual havia sido submetida a todo o tipo de perdas e
abusos, ele inadvertidamente condena-a ao suicídio:
While you were anaesthetized to the tragedy of your life you were able to
survive. When clarity was returned to you, when it was painstakingly restored,
it could drive you mad. Your reawakened memory could derange you, the
memory of humiliation, of so much handling, of so many intrusions, the
memory of men. Not a palace but a brothel of memories, and behind those
memories the knowledge that those who loved you were dead, that there was
no escape. […] Perhaps the world itself was dead. Yes, it was. To be part of
the dead world was necessary that you die as well. […] It was good to fall. It
was good to fall out of life. (Rushdie, 2008: 191)
Também a ficção rushdiana já se estabeleceu como um palácio de
memórias e, mais uma vez, o autor usa o arquétipo da mulher louca do
qual Sufiya em Shame (1983) continua, a meu ver, a ser a epítome.
Angélique é um fantasma como personagem, tanto como veículo
vazio de memórias como mero instrumento das intenções do autor; a
vida que lhe é atribuída com a recuperação da memória carece de
substância e do detalhe ornamentado que caracteriza a escrita de
Rushdie. Entre as intenções de Rushdie está a discussão permanente
da relação de poderes entre os géneros e do papel das mulheres na
história (his/tory). Espelhando Shame mais uma vez, onde Omar tenta
controlar a mente e o corpo da sua mulher-criança, Il Macchia
interfere com a mente de Angélique; a desconsideração das
consequências para a mulher dita o seu sacrifício. Logo a memória de
homens referida na citação é literal.
É esta a lógica que transforma Kara Qöz de encantadora de
Florença em bruxa. Rushdie recobra no seu livro o interesse
renascentista nestas personagens misteriosas mas, e valendo-se da
opinião da ensaísta e romancista Marina Warner, sublinha que aos
olhos da época, qualquer mulher é potencialmente uma bruxa: “the
world was therefore dangerous to any woman; those who love her, can
the next minute accuse her” (<http://www.nypl.org/research/chss/pep/
pepdesc.cfm?id=4248>). Martha Reineke, que fez uma excelente
reflexão sobre o fenómeno da caça às bruxas, salienta como este se
tornou, na realidade, num fenómeno de caça às mulheres derivado da
mentalidade cultural que as caracterizava como inferiores moralmente
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RECENSÕES ALMEIDA, Maria Clotilde, Bernd Sieberg & Ana Maria