ALETHEIA
Revista de Psicologia
Nº 37 - Jan./Abr. 2012
ISSN: 1981-1330
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Capelão Geral
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ALETHEIA
Revista de Psicologia da ULBRA
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A372
Aletheia / U niversidade Luterana do Brasil. – N . 1
(jan./jun. 1995). – C anoas : Ed. ULBR A, 1995v. ; 27 cm.
.
Sem estral, jan./jun. 1995-jul./dez. 2009; quadrimestral, jan./abr.
2010 - ISSN 1413-0394
1. Psicologia – periódic os. I. U niversidade Luterana do Brasil.
C DU 159.9(05)
Setor de Processam ento T écnico da Biblioteca Martinho Lutero – ULBRA/Canoas
Aletheia, revista quadrimestral editada pelo curso de Psicologia da Universidade
Luterana do Brasil, publica artigos originais, relacionados à Psicologia, pertencentes às seguintes categorias: artigos de pesquisa, artigos de atualização, resenhas
e comunicações. Os artigos são de responsabilidade exclusiva dos autores, e as opiniões e
julgamentos neles contidos não expressam necessariamente o pensamento dos Editores ou do
Conselho Editorial.
Sumário
4
Editorial
Artigos internacionais
7
Salud comunitaria, gestión de salud positiva y determinantes sociales de la salud y la
enfermedad
Saúde comunitária, gestão de saúde positiva e determinantes sociais da saúde e da doença
Community health, positive health management and social determinants of health and disease
Enrique Saforcada
23
Extravasamento trabalho-família: quando é que as condições de trabalho contribuem para
práticas maternas abusivas?
Extravasation work-family: When working conditions contribute to maternal abusive
practices?
Extravasación trabajo-familia: Cuando las condiciones de trabajo contribuyen a prácticas
maternas abusivas?
Maria Manuela Calheiros; Maria Luísa Lima; Carla Silva
Artigos de pesquisa
42
A violência familiar como fator de risco para o bullying escolar: contexto e possibilidades
de intervenção
Family violence as a risk factor for school bullying: Context and possibilities for intervention
La violencia familiar como factor de riesgo para el bullying escolar: contexto y posibilidades
de intervención
Lélio Moura Lourenço; Luciana Xavier Senra
57
Fortalecendo redes sociais: desafios e possibilidade na prevenção ao uso de drogas na atenção
primária à saúde fortalecendo redes sociais
Strengthening social networks: Challenges and opportunities preventing the use of drugs in
primary health care
Fortalecimiento de las redes sociales: desafíos y posibilidades em la prevención del uso de
drogas em la atención primaria de salud
Fernando Santana de Paiva; Pedro Henrique Antunes da Costa; Telmo Mota Ronzani
73
Um estudo sobre percepções de profissionais de um serviço de atendimento às vítimas de
violência e exploração sexual
A study on the professional´s perceptions of a service for victims of violence and sexual exploitation
Un estudio sobre percepciones de profesionales de un servicio de atención a víctimas de
violencia y explotación sexual
Beatriz Mello de Albuquerque; Narjara Mendes Garcia; Maria Angela Mattar Yunes
91
Bem-estar pessoal de pais e filhos e seus valores aspirados
Personal well-being of parents and children and their aspirated values
Bienestar personal de padres e hijos y sus valores aspirados
Jorge Castellá Sarriera; Verônica Morais Ximenes; Lívia Bedin; Anelise Lopes Rodrigues;
Fabiane Friedrich Schütz; Carme Montserrat; Caroline Lima Silva
105
Crenças básicas e bem-estar pessoal em adolescentes brasileiros
World assumptions and personal well-being in Brazilian adolescents
Creencias básicas y bienestar personal en adolescentes brasileños
Jorge Castellá Sarriera; Eveline Favero; Ângela Carina Paradiso; Tiago Zanatta Calza
121
Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas e a Psicologia
Psychosocial Care Centers Alcohol and Drugs and the Psychology
Centro de Atención Psicosocial Alcohol y Drogas y la Psicología
Chalana Piva Larentis; Alice Maggi
133
Estilos de vida de adolescentes escolares no sul do Brasil
Lifestyles of scholastic adolescents in Southern Brazil
Estilos de vida de adolescentes escolares del sur de Brasil
Sheila Gonçalves Câmara; Denise Rangel Ganzo de Castro Aerts; Gehysa Guimarães Alves
149 Desafios nas ações de atenção primária: estudo sobre a instalação de programa de visitas
domiciliares para mães adolescentes
Challenges in primary care actions: A study on the installation of a program of home visiting
for teenage mothers
Desafíos en las acciones de atención primaria: un estudio sobre la instalación de un programa
de visitas domiciliarias a madres adolescentes
João Eduardo Coin-Carvalho; Fabiana Cristina Federico Esposito
162
2
Processos de fortalecimento em um Movimento Comunitário de Saúde Mental no Nordeste
do Brasil: novos espaços para a loucura
Empowerment processes in a Community Mental Health Movement in Northeast of Brazil:
New spaces for the madness
Procesos de fortalecimiento en un Movimiento Comunitario de Salud Mental en el Nordeste
de Brasil: nuevos espacios para la locura
Maria Aparecida Alves Sobreira Carvalho; Verônica Morais Ximenes; Maria Lúcia
Magalhães Bosi
Aletheia 37, jan./abr. 2012
177
A qualidade da educação e o professor por um fio: o cotidiano docente na ótica da psicologia
social comunitária
The quality of education and the teacher about to collapse: The daily teaching experience
from the perspective of social community psychology
La calidad de la educación y el profesor a punto de colapsar: el cotidiano del profesor desde
la perspectiva de la psicología social comunitaria
Maria de Fatima Quintal de Freitas; Lygia Maria Portugal Oliveira
197
Treinamentos corporativos, qualidade de vida e saúde do trabalhador
Corporative training, quality of life and worker health
Entrenamiento corporativo, calidad de vida y salud del trabajador
Fabio Scorsolini-Comin; Rosalina Carvalho da Silva; Leandro Gilio
212
Percepções, expectativas e conhecimentos sobre o parto normal: relatos de experiência de
parturientes e dos profissionais de saúde
Perceptions, expectations and knowledge about the normal delivery: Experience reports of
mothers and health professionals
Percepciones, expectativas y conocimientos sobre el parto normal: relatos de experiencia
de puerperas y e de los profesionales de la salud
Bruna Cardoso Pinheiro; Cléria Maria Lobo Bittar
Relato de experiência
228
O grupo Maternar... Uma experiência com mulheres gestantes e com estudantes da área de
saúde – UFBa
The group Maternar... experience with pregnant women and health care students - UFBa
El grupo Maternar ... Una experiencia con mujeres embarazadas y estudiantes de salud - UFBa
Anamélia Lins e Silva Franco
Resenhas
235
Saúde Comunitária: conhecimentos e experiências na América Latina
Anamélia Lins e Silva Franco
238
Psicologia Clínico-Comunitária
Ana Luisa Teixeira de Menezes
241 Instruções aos autores
247 Instructions to authors
253 Instrucciones a los autores
Aletheia 37, jan./abr. 2012
3
Editorial
É com grande satisfação que recebemos da revista Aletheia o convite para um
número monográfico com artigos do Grupo de Trabalho (GT) em Saúde Comunitária da
Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP), tendo a
oportunidade de interagir com os leitores e socializar nossos estudos.
O GT do qual formam parte os autores foi constituído em 2010, no XII Simpósio
da ANPEPP, em Fortaleza, proveniente do GT em Psicologia Comunitária, o qual foi
criado no ano 2000 no Simpósio de Serra Negra (SP). Posteriormente, com um grupo mais
identificado no âmbito da promoção da saúde, foi criado o GT de Saúde Comunitária.
Consolidou-se o mesmo em 2012, no XIV Simpósio da ANPEPP, em Belo Horizonte,
com 14 membros de três países (Argentina, Brasil e Portugal), de 5 Estados do Brasil
(RS-SP-MG-CE-BA), e de 12 Universidades (UBA, ISCTE, UFRGS, ULBRA, UFCSPA,
UCS, FURG, USP, UNIFRA, UFC, UFBa, UFJF). O que caracteriza os membros do
GT é a sua preocupação pela promoção da saúde e pelo protagonismo da comunidade
nas suas relações com o sistema de Saúde, assim como o uso de conceitos, estratégias
e metodologias oriundos da Psicologia Social Comunitária, com as quais os autores se
identificam.
Os principais objetivos do GT de Saúde Comunitária são:
- Reunir esforços na promoção da saúde e no desenvolvimento de pesquisas e
atividades que visem solucionar ou mitigar os problemas que afetam o bem-estar das
comunidades;
- Incrementar a capacidade de pesquisa e desenvolvimento, tanto tecnológico como
de recursos humanos, e as possibilidades de fortalecimento das ações que desenvolvem na
atualidade ou aquelas que no futuro sejam implementadas junto com as comunidades;
- Aprofundar a construção do paradigma de Saúde Comunitária e no desenvolvimento
de estratégias que fortaleçam a participação comunitária;
- Incrementar o intercâmbio entre todos os membros do GT, através do
desenvolvimento de ações conjuntas e do avanço na investigação da Saúde
Comunitária.
A seguir, apresentamos o presente número da revista Aletheia sobre Saúde
Comunitária. Na autoria dos artigos, vamos salientar o nome dos coautores membros do
GT, embora sejam elaborados junto com outros autores das suas equipes. O primeiro artigo
é do professor e pioneiro da Saúde Comunitária em Argentina, o prof. Enrique Saforcada,
da Universidade de Buenos Aires. Ele faz o enquadre teórico e epistemológico do novo
paradigma em Saúde Comunitária, trata de sua relação com a gestão da saúde positiva e
com os determinantes sociais da saúde. A cooperação com o prof. Saforcada é de longa
data entre os membros do GT, e várias são as publicações conjuntas, especialmente com
o autor dessas linhas, entre elas o livro Introdução à Psicologia Comunitária, da Editora
Sulina. Entre os artigos internacionais, temos, também, o das professoras Manuela
Calheiros e Luisa Lima, do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE), membros do nosso
GT, trazendo a situação da mulher no trabalho e os possíveis efeitos moderadores para
a construção de uma relação saudável entre trabalho-família.
4
Aletheia 37, jan./abr. 2012
Os artigos nacionais neste número monográfico, podemos classificá-los segundo
seu contexto de estudo: Comunidade, Serviços de Saúde e Escola. No Contexto da
Comunidade, destacamos o trabalho da profa. Verônica Ximenes, coordenadora do
Núcleo de Psicologia Comunitária (NUCOM-UFC), que, com sua equipe, apresenta
um relato de pesquisa-intervenção com participantes do Movimento de Saúde Mental,
visando a seu fortalecimento e à conquista dos seus próprios espaços de manifestação
de loucura. Já no Contexto de Serviços de Saúde, a profa. Maria Angela Mattar Yunes,
coordenadora do CEP-Rua (FURG) e sua equipe fazem uma análise de um Programa
Governamental chamado Sentinela, que busca garantir os direitos fundamentais da criança
e do adolescente, destinado ao atendimento desta população vítima de violência, abuso
e exploração sexual. Três outros artigos focalizam os Serviços de Saúde voltados às
gestantes ou à maternidade: um da profa. Anamélia Franco, coordenadora do Bacharelado
Interdisciplinar em Saúde (IHAC/UFBA), relatando sua experiência no trabalho com
Grupos de Gestantes; o prof. João Carvalho foca o atendimento psicossocial de mães
adolescentes em Visitas Domiciliares e a profa. Cléria Bueno (UFR) nos traz a discussão
do parto normal através de relatos. Outro grupo de trabalhos se localiza na temática do
Álcool e Drogas, como o da profa. Alice Maggi (UCS-RS), a qual faz uma análise de um
serviço do CAPS-AD. O prof. Telmo Ronzani (UFJF-MG), representante da INEBRIA
na América Latina, sociedade dedicada ao estudo de Estratégias Terapêuticas Breves para
o enfrentamento de Álcool e Drogas, traz a relevância das redes sociais na prevenção
ao uso de drogas.
No Contexto da Saúde Escolar, destacamos cinco artigos: um deles dirigido aos
docentes de ensino médio público, sobre sua saúde e sua participação, escrito pela profa.
Maria de Fátima Quintal de Freitas (UFPR), referência da Psicologia Comunitária no
Brasil; o artigo da profa. Sheila G. Câmara (ULBRA/UFCSPA) sobre a importância dos
Estilos de Vida em escolares para a promoção da Saúde, e dois artigos do prof. Jorge C.
Sarriera (UFRGS), que escreve essas linhas, focalizando o bem-estar dos adolescentes
escolares através dos valores entre pais e filhos e as relações entre o bem-estar adolescente
e suas crenças, esses últimos três estudos com grandes amostras cujos resultados orientam
a intervenções psicossociais nas escolas. Também dentro do contexto escolar e atualmente
um problema na saúde do escolar, o bullying, o prof. Lélio (UFJF) nos apresenta como a
violência familiar pode ser um fator de maior risco para o bullying escolar.
Neste número de Aletheia constam duas resenhas de livros: uma sobre o livro Saúde
Comunitária: conhecimentos e experiências em América Latina, organizado pelo autor
dessas linhas, sobre conferências proferidas por relevantes professores, pesquisadores
e profissionais da área, no IV Congresso Multidisciplinar de Saúde Comunitária do
Mercosul, realizado em Gramado em 2009, e com participação intensiva dos membros do
GT, sendo a resenha de autoria da colega e profa. Anamélia. A outra resenha, de autoria da
profa. Ana Luisa Teixeira (UNISC-RS), Pró-reitora de Extensão Universitária, é sobre o
livro Psicologia Clínico-Comunitária, de autoria do Cezar Wagner de Lima Gois (UFC),
convidado do nosso GT, que introduz o tema no debate atual, uma clínica que se realiza
através da dinâmica comunitária e não fora dela, como diz o autor.
Muitos desafios e muitas questões em análise. Esse é o conhecimento que
desde a variedade de focos, métodos e práticas, nos seduz e nos une na construção de
Aletheia 37, jan./abr. 2012
5
conhecimentos, que, através da pesquisa e da experiência, se traduzem nas propostas aqui
apresentadas. Os membros do Grupo de Trabalho em Saúde Comunitária agradecem aos
editores da revista Aletheia pelo convite e convidam os leitores a se adentrarem na área da
Saúde Comunitária com esses artigos, fruto do trabalho de profissionais e pesquisadores
que compartilham a ideia de que a saúde coletiva somente é possível quando apropriada
e protagonizada pela própria comunidade.
Prof. Jorge C. Sarriera (UFRGS)
Coordenador do GT de Saúde Comunitária da ANPEPP
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Aletheia 37, jan./abr. 2012
Aletheia 37, p.7-22, jan./abr. 2012
Salud comunitaria, gestión de salud positiva y determinantes
sociales de la salud y la enfermedad
Enrique Saforcada
Resumen: En este artículo se caracterizan los paradigmas vigentes en Salud Pública, centrándose
en el paradigma de salud comunitaria. Al mismo tiempo se postula que siendo este un perfil
de concepciones y prácticas de reciente emergencia es necesario un proceso de construcción
mancomunada con la comunidad de modo que ambos componentes, equipo profesional y
comunidad, piensen y actúen en función de este paradigma para desarrollar procesos de gestión
de salud positiva, validando su eficacia y eficiencia a medida que se avanza en su difusión. Luego
se explicitan los componentes principales de la gestión de salud positiva para finalizar con un
desarrollo integral, si bien somero, del tema de los determinantes sociales de la salud teniendo en
cuenta el gran problema de la enfermedad pública.
Palabras clave: salud comunitaria, gestión de salud positiva, determinantes sociales.
Saúde comunitária, gestão de saúde positiva e determinantes sociais
da saúde e da doença
Resumo: Neste artigo são caracterizados os paradigmas vigentes em saúde pública, centrando-se no
paradigma da saúde comunitária. Considerando-se que este é um perfil de concepções e práticas de
emergência recente, é necessário um processo de construção integrado com a comunidade de maneira
a que ambos os componentes, equipe profissional e comunidade, pensem e atuem em função deste
paradigma a fim de desenvolver processos de gestão de saúde positiva, validando sua eficácia e
eficiência na medida em que se avança em sua difusão. Em seguida, são explicitados os componentes
principais da gestão de saúde positiva para finalizar com um desenvolvimento integral do tema dos
determinantes sociais da saúde, tendo em conta o grande problema da doença pública.
Palavras-chave: saúde comunitária, gestão de saúde positiva, determinantes sociais.
Community health, positive health management and social determinants
of health and disease
Abstract: In this article, the present paradigms in Public Health are characterized, centring on the
Community Health paradigm. Meanwhile, it is pointed out that being this an outline of conceptions
and practice that have recently emerged, it is necessary for it to be a process of joint work with the
community so that both components, professional team and community, think and behave according
to this paradigm to develop processes of positive health management validating its effectiveness
and efficiency as its spreading is increased. Consequently, the main components of positive health
management are made explicit to conclude with an integral but brief development of the topic of
social determinants of health taking into account the big problem of public disease.
Keywords: community health, positive health management, social determinants.
Salud Comunitaria: ¿Ámbito de trabajo o paradigma?
Tradicionalmente se ha usado este concepto o expresión, salud comunitaria,
para designar un ámbito de trabajo o aplicación de la psicología de la salud o de la
psicología comunitaria, sobre todo de aquella que responde a la versión más habitual
de la orientación norteamericana o que persiguen los objetivos más frecuentes de los
proyectos de psicología comunitaria en la región rioplatense (Paraguay, sur de Brasil,
Uruguay y Argentina).
También se debe mencionar que el adjetivo comunitaria se aplica hoy a
orientaciones, proyectos y programas llevados adelante por profesionales provenientes
de las otras ciencias de la salud basadas primordialmente en la biología como ocurre,
por ejemplo en Argentina, con los programas de médicos comunitarios impulsados
por el Ministerio de Salud de la Nación o en Uruguay con los programas y trabajos de
odontología comunitaria desarrollados en el Programa APEX-Cerro de la Universidad
de la República o la Sociedad Científica de Odontología Comunitaria de la Asociación
Odontológica Uruguaya (AOU).
No obstante, no caben dudas que el adjetivo comunitario, aplicado a inquietudes
u ocupaciones profesionales o empleado como orientador de la acción, proviene de las
ciencias sociales, sobre todo de la sociología, la pedagogía y la psicología. En tal sentido,
las dos figuras más destacadas del siglo XX en nuestra región y que más aportaron en
forma completa a desentrañar de la realidad cotidiana de los conglomerados sociales sus
atributos comunitarios transformándolos en conceptos y teoría a la vez que en técnicas,
operacionalizaciones y prácticas de terreno fueron el abogado y educador brasileño
Paulo Freire con su tarea pedagógico popular mancomunada con su esposa, Elza Maia
Costa de Oliveira, llevada a cabo desde fines de la década de los 40, y el sociólogo
colombiano Orlando Fals Borda que, también junto a su esposa, la socióloga María
Cristina Salazar, llevó a cabo desde fines de la década de los 50 múltiples trabajos con
comunidades en Colombia. Fals Borda y Salazar, entre otros desarrollos, dieron origen
a la investigación-acción participativa.
En todo este accionar del trabajo con comunidades desde la perspectiva de
las ciencias sociales progresivamente fue tomando fuerza el constructo anglosajón
de empowerment que se comenzó a traducir como empoderamiento, generando
así un barbarismo idiomático que se intentó e intenta reemplazar por la expresión
fortalecimiento; hoy se observa el uso de ambas expresiones, según sean los autores o
autoras. En opinión de quien esto escribe es preferible sacrificar el idioma en aras del
significado político y entonces la divisoria de el uso de uno u otro pasará, o pasa, por
cuestiones de posicionamiento ideológico. Fortalecer no plantea problemas con el poder,
pero empoderar golpea de lleno en el tema político central del poder. Coincidiendo con
las posturas manifiestas de Paulo Freire, para quien el proceso educativo implicaba la
toma de conciencia crítica de la realidad socioeconómica y cultural de los pobres, lo
esencial estaba en acceder a instancias progresivas de un empoderamiento creciente
a fin de tomar el poder dado que sin poder nada es modificable y el objetivo freireano
de la educación era y es, para quienes siguen sus orientaciones, modificar la realidad
político económica y sociocultural injusta a que están sometidas las poblaciones
menesterosas.
Es posible que este tema central del poder –que siempre ha estado y está
explícito o implícito en el trabajo con comunidades, ya sea un poder planteado a pleno
o pensado como un poder embridado- cuando se lo vincula con las problemáticas
8
Aletheia 37, jan./abr. 2012
de la salud puede generar un efecto esclarecedor, más o menos conciente, en los
profesionales de las ciencias sociales que contactan con las comunidades. Esta
dilucidación puede evidenciarse con la siguiente pregunta, aparentemente cándida o
sin mayor sentido:¿de quién es la salud de cada persona?, ¿quién debe ser el decisor
final en los temas de salud?
A estas preguntas sigue otra central, si se da por sentado que ya está resguardado
el derecho a la vida: ¿Cuál es el derecho humano primordial? En términos racionales
no cabe duda que este derecho es a estar sano. Pero resulta que los profesionales de la
salud solo están capacitados y se ocupan de la enfermedad, de lo que se deduce que las
universidades que forman a estos profesionales están, de movida, violando el segundo
derecho humano primordial. Algo más básico aún: la psicología clínica y la medicina
se han desarrollado exclusivamente con relación a la enfermedad, no se ha construido
nunca hasta ahora una teoría científica de la salud positiva1.
Supone, quien esto escribe, que este tipo de ideas fue emergiendo durante el
quehacer de quienes desde las ciencias sociales, particularmente la psicología, trabajaban
con las comunidades con relación a las problemáticas que implica el proceso de
salud de sus integrantes. Entrado el siglo actual, en la región rioplatense, en diversas
reuniones formales (congresos, simposios, jornadas, etc.) e informales, comenzó a
perfilarse una toma de conciencia en cuanto a que, como trasfondo y soporte de los
desarrollos que se venían desarrollando en el campo de la salud comunitaria, existía
un verdadero paradigma bien diferenciado de los que daban soporte a gran parte de lo
que se estaba y está haciendo en el campo de la Salud Pública (Saforcada, de Lellis &
Mozobancyk, 2010).
Hacking (1985, p. 10), refiriéndose al concepto de paradigma, consigna lo
siguiente:
Kuhn distingue dos maneras principales en que desea emplear esta palabra
[paradigma]. Existe el ‘Paradigma como realización’. Esta es la forma acertada
para resolver un problema que entonces sirve como modelo para futuros
investigadores. Luego está el ‘paradigma como conjunto de valores compartidos’.
Esto significa los métodos, las normas y las generalizaciones compartidas por
quienes fueron preparados para llevar adelante un trabajo que se modela a sí
mismo de acuerdo con el paradigma como realización.
Las lógicas limitaciones de espacio de un escrito de la naturaleza del presente
impiden abocarse a desarrollar el tema de los paradigmas en Salud Pública, pero es
claramente visible que hay un paradigma, el más generalizado en Occidente, al que se
puede denominar tradicional y otro surgido en Indoafroiberoamérica, entre las décadas
de los 60 y 70 del siglo pasado, denominado de salud colectiva (si bien sus propulsores
no lo denominan paradigma sino nueva propuesta de salud pública) y que hoy legalmente
ha sido establecido como la norma en Brasil si bien todavía está en proceso de bajar de
1
Reflexione el lector o lectora que se debe agregar al sustantivo salud el adjetivo positiva para saber a ciencia
cierta de qué estamos hablando dado que generalmente se dice que se habla de salud cuando se habla de
enfermedad.
Aletheia 37, jan./abr. 2012
9
este plano normativo al de la acción concreta en terreno transformando todo el sistema
de salud del país pero, principalmente, el primer nivel de atención.
Kuhn (1971, pp. 51-52, 53 y 66) señala que:
Los paradigmas obtienen su ‘satus’ como tales, debido a que tienen más éxito
que sus competidores para resolver unos cuantos problemas que el grupo de
profesionales ha llegado a reconocer como agudos. Sin embargo, el tener más
éxito no quiere decir que tenga un éxito completo en la resolución de un problema
determinado o que dé resultados suficientemente satisfactorios con un número
considerable de problemas. [...] en realidad, a los fenómenos que no encajarían
dentro de los límites mencionados frecuentemente ni siquiera se los ve. [...] El
trabajo bajo el paradigma no puede llevarse a cabo en ninguna otra forma y la
deserción del paradigma significa dejar de practicar la ciencia que se define.
Si bien estas observaciones de Kuhn se aplican a la perfección en el contraste entre
el paradigma tradicional y el de salud colectiva cabe la pregunta sobre el por qué de la no
deserción masiva de los profesionales del primero para pasar a actuar en la perspectiva del
segundo, que es francamente más eficaz y eficiente. La respuesta es que las universidades
siguen formando a los profesionales de la salud para que sean funcionales al paradigma
tradicional por la simple razón de ser éste la única sustentación posible del mercado de
la enfermedad.
En el paradigma de salud colectiva, que ha implicado un avance enorme con
respecto al tradicional en lo que hace a eficacia, eficiencia y respeto a los derechos
humanos, aún el poder queda en manos del equipo profesional y, en general, gerencia
enfermedad. Con respecto a esto último no cabe duda que ha generado un cambio pues
mientras el tradicional se centra casi totalmente en la prevención secundaria y, en cuanto
a la primaria, se limita al uso de las tecnologías biológicas y algunas acciones que enfocan
en el comportamiento humano pero solo ante el riesgo de epidemias, el de salud colectiva
hace fuerte hincapié en la integralidad de la prevención primaria y terciaria. Desde una
perspectiva más amplia podría decirse que el tradicional hace lo que la medicina y sus
ciencias básicas permiten hacer, a diferencia del de salud colectiva que se sustenta en la
incorporación de las ciencias sociales en la comprensión del proceso de salud y el qué
hacer en salud pública. Este cambio implicó un proceso entre cuyos promotores más
destacados se debe mencionar a García (1994) y sus desarrollos efectuados desde la
Organización Panamericana de la Salud desde fines de la década de los 60 hasta la primera
mitad de la década de los 80 del siglo pasado; en resumen, García fue un promotor de
la medicina social.
No obstante, la base de esta orientación o paradigma radica en las concepciones
preventivistas de Leavell y Clark (1965) que efectuaron sus desarrollos a partir de la
historia natural de la enfermedad, que a su vez tiene sus cimientos en las teorías de la
enfermedad. Estos autores no trabajaron sobre la historia natural de la salud, sobre una
higiología o teoría de la salud, siendo que la condición natural de la especie humana es
estar sana. Hace más de sesenta años Ryle (1948, 1988), profesor emérito de Medicina
Social de la Universidad de Oxford, planteó la urgente necesidad de la formación de los
médicos en higiología.
10
Aletheia 37, jan./abr. 2012
Salvo situaciones muy excepcionales son muchas más las personas sanas que las
enfermas y por esta razón todas las medicinas salvo la occidental son higienistas, su
objetivo prioritario es mantener sana a la gente sana, sin dejar de atender a la enfermedad
cuando esta excepcionalmente emerge y sin dejar de respetar el poder curador de la
naturaleza, la vis medicatrix naturae de la medicina de la antigua Grecia.
Estos señalamientos y reflexiones llevan a situarse ante un desiderátum: se gestiona
salud negativa (enfermedad) o se gestiona salud positiva. Si se gestiona enfermedad y
toda la infraestructura de acción (recursos humanos, edilicios, científicos, tecnológicos,
económicos, etc.) está dispuesta para movilizarse ante lo patológico cada vez será mayor
la carga de morbilidad de las sociedades. Por el contrario, si lo prioritario está destinado
a proteger y promover la salud la carga de morbilidad disminuirá significativamente.
Justamente, el paradigma de salud comunitaria tiene como eje la gestión de
salud positiva y su componente principal, entiéndase, el poder de decisión último, es la
comunidad; el componente equipo profesional se inserta en una posición participativa
pero no tiene la última palabra.
Indudablemente, un proyecto o una política que esté orientado por este paradigma
implicará, como primer paso, instancias de transferencia de los conocimientos científicos
y técnicos de baja complejidad a la población pero estos no serán conocimientos propios
de la clínica destinada a la enfermedad sino de protección y promoción de la salud, los
aportes de las ciencias básicas de la salud y las ciencias sociales, de baja complejidad,
decisivos para la comprensión del desarrollo humano integral junto la protección y
promoción de su condición habitual de estar sano.
Hoy es necesario un proceso de construcción mancomunada con la comunidad del
paradigma de salud comunitaria de modo que ambos componentes, equipo profesional y
comunidad, piensen y actúen en función de este paradigma para desarrollar los necesitados
procesos de gestión de salud positiva.
La gestión de salud positiva
El concepto y la estrategia de gestión de salud positiva es mucho más amplio y
abarcativo que el de promoción de la salud y el de protección de la misma. Estas dos son
estrategias subsidiarias de la de gestión de salud positiva.
El vocablo gestionar, en el Diccionario de la Real Academia Española, tiene
tres acepciones: 1- Llevar adelante una iniciativa o un proyecto; 2- Ocuparse de la
administración, organización y funcionamiento de una empresa, actividad económica u
organismo; 3- Manejar o conducir una situación problemática.
Los tres aspectos tienen presencia y son constitutivos de la gestión de salud
positiva. Para dar un ejemplo concreto: en gestión de salud positiva es fundamental
trabajar en la perspectiva de vincular fuerte y profundamente la salud pública con la
educación de modo de asegurar que desde la más temprana edad las niñas y niños
comiencen a construir un paradigma de salud centrado en la salud positiva y no en la
enfermedad, al mismo tiempo que desarrollan o adquieren hábitos salutógenos. Un
niño aprende a leer ya sea que se use la frase “mi mamá me ama” o que se emplee “mi
mamá me enseña a lavarme las manos”; el aprendizaje de la lectura y su necesitada
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vinculación con lo afectivo-emocional será el mismo con las dos frases, las condiciones
de salud futura del niño que aprendió a leer con la segunda seguramente no.
A continuación se desarrollan los aspectos y soportes más básicos de la gestión de
salud positiva, comenzando por un conjunto de reflexiones e interrogantes orientadores.
Si en la democracia el poder está en el pueblo, si la ética obliga a usar con eficiencia
los dineros públicos y a respetar los derechos humanos y su jerarquía, si la ciencia
muestra que gran parte de la salud de los humanos depende de la subjetividad y el
comportamiento, ¿cuál deberá ser la orientación del qué hacer en el campo de la salud
de los conglomerados humanos?, ¿debe orientarse hacia la gestión de la enfermedad
con beneplácito del mercado de la enfermedad o, por el contrario, se debe orientar
hacia la gestión de salud positiva?, ¿el derecho a no enfermar no está jerárquicamente
antes que el derecho a ser curado una vez enfermo?
A partir de estas consideraciones y preguntas surgen cinco ideas que configuran el
soporte lógico de la gestión de salud positiva (su formulación, a veces paradojal o extraña,
solo responde a una estrategia de mnemotecnia):
1.- “Trabajar por el derecho principal”
2.- “No olvidar nunca el triángulo inteligente de la salud”
3.- “Usar el blanco al revés”
4.- “Usar siempre el conocimiento más simple”
5.- “Tomar siempre por el camino del menor esfuerzo”
Trabajar por el derecho principal
Los Derechos Humanos no son un conjunto de normas todas con la misma
importancia o jerarquía, o sin orden de precedencia desde un punto de vista lógico-causal.
Por ejemplo, el derecho a la vida precede a todos los otros derechos dado que conculcado
este nada queda por poner en juego, salvo que el cadáver sea dignamente sepultado con
presencia, por lo menos, de los deudos. Desde esta perspectiva se hace evidente que
desde el punto de vista jerárquico el segundo derecho humano es al desarrollo integral
temprano, no a la posterior compensación de las deficiencias. El tercer derecho es a la
salud, no a la atención del daño. El cuarto es a la atención en caso de enfermar, a no ser
objeto de abandono y el quinto es a la muerte digna, a no a ser objeto de manipulaciones
inhumanas lucrativas.
No olvidar nunca el triángulo inteligente de la salud
Si se toma la totalidad de un conglomerado urbano determinado, supóngase el 100%
de la población de Porto Alegre en este momento, y se lo representa con un triángulo
equilátero a la vez que sobre el mismo se ubica un vector de cantidad se observará que el
extremo del máximo se ubica naturalmente en la base y el mínimo en el vértice superior,
dado que a mayor superficie mayor porcentaje de personas representadas y siempre las
personas sanas son muchas más que las enfermas.
Tómense ahora cinco vectores propios de los emergentes del proceso de salud: a)
riesgo de muerte, b) discapacidad, c) sufrimiento, d) complejidad, e) costo de atención.
Estos emergentes pueden implicar el estado de salud (tal como queda empíricamente
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definido por los sistemas de servicios de salud vigentes, o sea, por la percepción subjetiva
de los usuarios) o estados de malestar de distinto tipo e intensidad,
Si se superponen los vectores señalados en el párrafo anterior en este triángulo
de acuerdo a la situación de salud de la población según indican tanto el saber
empírico de quienes llevan años de trabajo en salud pública como los estudios más
trascendentes al respecto realizados durante los casi últimos cuarenta años por
investigadores como Kerr White (White, Williams & Greenberg 1961; Green, Fryer,
Yawn, Lanier & Dovey 2001) se podrá observar que el extremo del mínimo de cada
uno de estos vectores es el que coincide con la base del triángulo (mayor cantidad
de personas) y el máximo con el vértice superior (muy poca cantidad de personas).
Entre las personas que padecen estos malestares algunas, las menos numéricamente,
consultan a un facultativo, de entre estas que consultan alguna confirma que está sana,
otras deben someterse a un tratamiento ambulatorio y, finalmente, unas pocas deben
ser internadas en un centro asistencial dada la gravedad o complejidad del problema
que ocasiona su malestar.
En los estudios señalados este vértice involucra menos del 1% de la población.
Estas investigaciones reportan información que señala que una cuarta parte de la
población no sufre ningún malestar o indisposición y un cincuenta por ciento adicional
siente malestares pero no concurre a ningún facultativo (para los sistemas de servicios
de salud, que son sistemas pasivos pues esperan la demanda, son personas sanas o
personas que se sanan espontáneamente por aquello de la vis medicatrix naturae), solo
el último cuarto del total concurre a facultativos y esto no quiere decir que todas las
personas que lo integran están enfermas y, si lo están, que las enfermedades sean de
complejidad o gravedad tales que demanden internación. Como se señaló al comienzo
de este párrafo enfermedades que por su complejidad exigen internación implica solo
el 1% de la población.
Es evidente a la inteligencia humana y a una ética elemental que es mucho más
razonable ocuparse del 75% sano de la población, promoviendo su salud y colaborando
con el poder curador de la naturaleza, que sentarse a esperar que los malestares
motiven la consulta a un centro de salud o a un facultativo para recién estar dispuestos
a atenderlos. Este mandato racional y moral implica destinar una gran parte de los
recursos de que se dispone a la base del triángulo y al tercio medio de su superficie, en
lugar de hacerlo solo a su 25% superior.
Salvo casos que epidemiologicamente resultan de baja prevalencia o incidencia
relativa ninguna persona se ubica directamente en el vértice superior del triángulo
o zonas adyacentes. El proceso histórico de la salud de cada persona comienza en
general en la base del triángulo y son circunstancias mayoritariamente evitables o
atenuables las que la empujan hacia arriba. Estas fuerzas entran, en gran medida,
dentro de las responsabilidades del Estado y sus poderes constitucionales que por
gestionar mal a la sociedad y no respetar ni hacer respetar los derechos humanos
permiten que las fuerzas ascendentes trasladen a la población sana hacia el vértice
del máximo riesgo de muerte, discapacidad, sufrimiento, complejidad y, lógicamente,
costo económico.
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Usar el blanco al revés
Si en lugar de utilizar un triángulo se empleara un círculo para representar la
totalidad de la población de un determinado lugar en un momento dado, siguiendo con
el ejemplo anterior, la población residente en la ciudad de Porto Alegre, al igual que en el
caso de la representación por medio del triángulo, observaríamos que el mayor porcentaje
de personas se ubican en la corona más externa y más ancha, son personas sanas o que
padeciendo alguna enfermedad se curan espontáneamente.
Luego quedarían tres coronas concéntricas de las cuales la más ancha (más
personas) padecen enfermedades totalmente evitables con los recursos de que hoy se
dispone (conocimientos, dinero público, tecnologías, etc.). Una segunda corona de menor
superficie involucra a las personas con enfermedades o daños a la salud evitables pero
con mayor dificultad porque requieren procesos más complejos (por ejemplo: fumadores
de tabaco a los cuales hay que ayudar a que abandonen el consumo de esta sustancia
patógena que genera dependencia). Finalmente, un pequeño círculo central representa el
porcentaje de personas inevitablemente enfermas. Es razonable estimar que este círculo
involucra un tercio del monto total de enfermedad que hoy atienden los servicios de
salud de Occidente.
Es muy importante tener claro que evitabilidad no implica gavedad o sea que en
la corona de la enfermedad totalmente evitable puede tener presencia una muerte por
electrocución y en el círculo central de la enfermedad inevitable un resfrío.
Si hipotéticamente se tomara una población residente en un determinado lugar,
supóngase que fuera Canela, en Rio Grande do Sul, y se decidiera no atender la demanda
por enfermedad y se aplicaran todos los recursos de salud (humanos y económicos) solo
a la población involucrada en la corona más externa para llevar adelante un programa de
protección y promoción integrales de la salud, al cabo de un tiempo corto la corona de la
enfermedad totalmente evitable habría desaparecido pasando su población a integrar la
corona más externa y la de la enfermedad evitable con dificultad se habría reducido de
tamaño en forma muy considerable; la superficie del círculo central, la de la enfermedad
inevitable, seguiría constante.
En esta metáfora salubrista del tirador con arco y flecha es buen arquero el que clava
su flecha en la corona más externa, no el que la hinca en el centro del blanco.
Usar siempre el conocimiento más simple
La universidad prepara a sus graduados para trabajar desde la posición del
conocimiento más complejo posible y de la solución de los problemas desde la perspectiva
de su totalidad; es lo que puede denominarse la estrategia de máximo operante que tiene
como pregunta generadora la siguiente: ¿qué es lo máximo que puedo saber para resolver
la totalidad del problema? Gran parte de la ineficiencia en el empeño por alcanzar los
objetivos, cuando los universitarios trabajan en terreno, es esta estrategia con la que la
academia los forma, es uno de los aspectos que aportan a la barrera psicosociocultural
que se interpone entre los centros efectores de salud y las poblaciones o comunidades
que demandan atención o la reciben cuando se les ofrece un programa o el desarrollo de
una política pública.
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En la década de los años 60 del siglo pasado, en Chile, los médicos Vicente Silva,
con relación a la obstetricia, y Juan Marconi, en el campo de la salud mental, desarrollaron
una estrategia, divergente de la descripta, a partir de la siguiente pregunta: ¿qué es lo
menos que debo saber para resolver una parte del problema? y la denominaron estrategia
de mínimo operante.
La lógica limitación de espacio en un escrito como el presente no permite explicar
en detalle esta propuesta de acción, pero sus componentes y pasos esenciales implican:
1º-Descomponer el conocimiento sobre el problema que se pretende afrontar en
unidades operantes, entendiendo por tal un conocimiento acotado que permite solucionar
una parte del problema. Por ejemplo, en alcoholismo saber que un tercio de los bebedores
excesivos de alcohol (por día: ingerir un litro de vino o dos de cerveza o un cuarto de
bebida blanca, o aún no tomando alcohol diariamente que se embriagan doce o más veces al
año) en un lapso de ocho a quince años harán alcoholismo enfermedad, la cual es crónica.
Indudablemente que estos mínimos operantes incluyen también conocimientos muy
complejos, como son los referidos a los procesos neuropsicológicos que desencadenan
el síndrome de privación. Se deben generar solo las unidades operantes imprescindibles
para llevar adelante la tarea que se programe en función de los objetivos que se hayan
planteado.
2º-Una vez completado el paso anterior se deben ordenar todas las unidades
operantes elaboradas en un continuo que se extienda del conocimiento más simple al
más complejo.
3º-Luego el continuo debe ser rotado en 90º de modo que queden las unidades más
complejas en la parte superior y las más simples en la parte inferior. Las más complejas se
ponen en manos de los centros o laboratorios de investigación básica, las de complejidad
intermedia en manos de los profesionales que están en los servicios de atención o que
forman parte del equipo profesional del programa de acción, y las unidades más simples
se transfieren a miembros legos de la comunidad capacitándolos como Agentes Primarios
de Salud.
Para desarrollar esta estrategia hay que seguir los seis pasos siguientes en función
de los objetivos del emprendimiento que se afronte: 1) Sectorización de la comunidad; 2)
Determinación de los objetivos de salud; 3) Jerarquización y distribución de los objetivos
de salud transformados en unidades operantes imprescindibles; 4) Armado del esquema
de delegación con efecto multiplicador (pocos profesionales, muchos pobladoras y
pobladores capacitados al efecto como Agentes Primarios de Salud); 5) Construcción del
sistema de transferencia de conocimientos y delegación de responsabilidades (unidades
operantes, técnicas grupales, etc.); 6) Desarrollo del emprendimiento por la misma
dinámica de la comunidad (participación, empoderamiento y desarrollo comunitario que
tiende a la integración de otros problemas de salud familiar y también otros problemas
que hacen al bienestar comunitario).
No es posible desarrollar estos pasos en detalle en este artículo dada la extensión
que exigen, pero el lector o lectora encontrará la información correspondiente en las
siguientes publicaciones: Colectivo PINSAL 2011; Marconi 1971; Marconi 1973;
Marconi 1974a; Marconi 1974b; Marconi 1979; Marconi & Saforcada 1974; Marconi,
Díaz e Mourgues 1980.
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A modo de cierre de este subapartado se puede señalar que en la experiencia chilena
el resultado de la implementación del Programa Intracomunitario de Salud Mental del
Área Sur de Santiago dio por resultado los siguientes logros:
• Transferencia, de los profesionales a la comunidad y de esta a los profesionales,
de conocimientos teórico-técnicos y desarrollo de destrezas.
• Desarrollo en la comunidad de capacidades de decisión y acción para la solución
de problemas en forma mancomunada.
• Crecimiento vertical pasando de la prevención secundaria a la protección y
promoción de la salud y la prevención primaria.
• Crecimiento por integración nosológica; en Chile el Programa comenzó en forma
directiva por el problema del alcoholismo pero luego pasó a ocuparse, por demanda de
la población, de las neurosis y el retardo por privación cultural (pautas de crianza que no
favorecían el desarrollo cerebral normal de los niños pequeños).
• Desarrollo comunitario por adquisición de tecnologías de organización y acción
resolutiva.
Tomar siempre por el camino del menor esfuerzo
Hay una parábola que ha sido frecuentemente usada en el pasado en salud pública,
es muy expresiva y dice así:
Un grupo de socorristas estaba a orillas de un gran río porque por sus aguas venían
náufragos flotando y ahogándose. Los socorristas entraban al río y los sacaban
para reanimarlos. Cada vez venían más náufragos y los socorristas estaban muy
cansados por esta tarea agotadora. Se agregaron más socorristas al grupo, pero
también aumentó el número de náufragos. Los socorristas estaban ya casi sin
fuerzas y no podían reanimar bien a los náufragos que lograban sacar. Cada vez
más náufragos pasaban de largo y se ahogaban aguas abajo. Hasta que en un
momento dado, uno de los socorristas le dijo a los otros: acompáñenme algunos
de ustedes para remontar el río y ver dónde la gente se cae al agua, así ponemos
protecciones y muy pocos serán los que caerán al río.
La parábola no requiere ninguna explicación; su sentido, su verdad y su lógica
son invulnerables a toda crítica o soslayamiento. Hoy queda claro que esta alegoría hace
referencia a los determinantes sociales del proceso de salud, que es uno de los temas que
llenan más páginas de publicaciones de los organismos internacionales de salud, movilizan
gran cantidad de eventos (congresos, jornadas, etc.) en el mundo y dan origen a múltiples
declaraciones a voz en cuello de diferentes comunicadores sociales.
Finalmente, hay tres cuestiones importantes a tener en cuenta cuando se reflexiona
y trabaja desde y en la perspectiva de la gestión de salud positiva; tres cuestiones que la
atañen, son interdependientes y marcan su potencialidad:
1) Si bien todas las disciplinas que tienen por objeto al ser humano y sus condiciones
de vida son construcciones analíticas, desarrollos artificiales, que separan lo inseparable
y que alcanzan aciertos a medias porque en el proceso de la vida todo está relacionado
sistémicamente, se interinfluencia y tiene características sinérgicas. Procesos que
artificialmente se los ve o concibe como partes independientes no son más ni menos que
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instancias directa o indirectamente vinculadas. Dicho esto, para que no se entienda mal
lo que a continuación se manifiesta, es conveniente mantener separadas la prevención
de la enfermedad y la promoción de la salud como si fueran cuestiones totalmente
independientes. Si un gobierno local que cuenta con una secretaría de salud pública quiere
poner en marcha la promoción de la salud debería crear una secretaria de promoción de
la salud independiente de la anterior, es el único modo en que la gestión de salud positiva
se puede llevar a cabo con plenitud, eficacia y eficiencia.
2) No es razonable pretender que la gestión de salud positiva se plantee como una
estrategia que en nuestros países se pueda implementar a nivel nacional ni estadual o
provincial. Ningún edificio puede comenzar a ser construido del último piso hacia abajo,
solo se lo puede construir comenzando por los cimientos y luego piso a piso hacia arriba.
Por múltiples aspectos implicados en esta metáfora se hace razonable pensar que lo ideal
es buscar ponerla en marcha en un programa limitado a una comunidad pequeña (entre
mil y cinco mil familias) y luego de mostrar su eficacia y eficiencia plantearla para se
desarrollada en todo el ámbito de un gobierno local (municipio o alcaldía).
3) Es fundamental tener en cuenta en los enfoques de gestión de salud positiva el
tema de los determinantes sociales de la salud, pero desarrollándolo en forma completa
y con mirada crítica.
¿De cuáles de los determinantes sociales de la salud hablamos?
El derecho humano de las personas a no ser enfermadas por los determinantes
sociales patologizantes evitables tiene más jerarquía que el correspondiente al derecho a ser
atendidas cuando enferman, es el derecho humano a no padecer enfermedad pública.
Hoy es esencial tener en cuenta este concepto de Enfermedad Pública como
complemento inseparable del de Salud Pública. Hay países en que los poderes del Estado,
de quienes depende la salud de la sociedad, por acción o por omisión aportan muchísimo
más a enfermar a los y las ciudadanas que lo que aportan a curarlos o protegerlos, con
el agravante que, dada la forma que está planificada y gestionada la atención de la
enfermedad y la prevención primaria en estos países, estas generan más enfermedad que
la que curan.
Por estas razones debemos a comenzar a trabajar fuertemente al revés, de la
población hacia los poderes del Estado. ¿Cómo trabajar?, simple de decir y complejo
pero factible de llevar a cabo: Los profesionales y técnicos de la salud junto con la
población construyendo los conocimientos necesarios para que poco a poco la sociedad
vaya adoptando estilos de vida saludables y exigiendo políticamente que los poderes del
Estado tomen las medidas que corresponden y diseñen las políticas necesarias en defensa
del derecho humano a no enfermar.
Cuando se habla de lo social se accede a una abstracción útil para muchas
consideraciones pero encubridora para otras. Lo social remite a la sociedad, pero el
concepto de sociedad puede ser analíticamente descompuesto en: 1) los poderes del
estado; 2) los poderes económico productivos; 3) los poderes gremiales; 4) los poderes
de la gente de a pie agrupada en familias, vecindarios, comunidades, conglomerados
humanos, etcétera.
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Entonces debemos hablar de los determinantes sociales que dependen de los
poderes del estado, los que dependen de los poderes económico productivos, los que
dependen de los poderes gremiales y los que dependen de los poderes de la gente de a
pie y sus distintas formas de agrupación.
Este planteo analítico otorga mucha más claridad al concepto de determinantes
sociales. Por ejemplo, la OMS/OPS casi nunca han hablado de los determinantes
sociales que dependen de los poderes económico productivos: Empresas industriales,
económico financieras y energéticas. Cuando lo han hecho ha sido para encubrirlas
(Monsanto, Tokyo Electric Power Company, etc.).
Continuando la reflexión por este camino se llegan a observar trece grandes áreas
de actividades en que, directa o indirectamente, se generan o pueden generar daños a la
salud, lo cual exige que los poderes del estado asuman la responsabilidad de regularlas
a fin de evitar o, por lo menos, atenuar estos daños. Al respecto hay que tener en cuenta
que los poderes del estado actúan por acción o por omisión. Cuando se afirma, por
ejemplo, que un gobierno no tiene una política de salud se comete un error dado que
ese gobierno tiene la política de salud de no trazar una política de salud.
En estas trece grandes áreas, cuando se genera enfermedad, es solo para que
se acumule más riqueza en manos de ese 1% de los híper-ricos que tienen presencia
en todos los países del mundo y de los modernos grandes delincuentes sociales,
difuminados a los ojos de la sociedad, que son los gerenciadores de las corporaciones
nacionales y transnacionales al tipo de Dow Chemical que a través de su subsidiaria
Union Carbide generó el desastre de Bophal, en la India, el 3 de diciembre de 1984
cuando liberó a la atmósfera una inmensa cantidad de isocianato de metilo, un gas
que produjo 10.000 muertos dentro de las primeras 48 horas, 25.000 fueron muriendo
después, 40.000 quedaron seriamente discapacitadas y 521.000 fueron afectadas en
menor medida. Los daños fueron fibrosis pulmonar, asma, enfermedad pulmonar
obstructiva crónica, enfisema, infecciones pulmonares, ceguera o problemas en la
córnea y serias alteraciones genéticas transmisibles que afectan el sistema inmune.
Dow Chemical donó un hospital a esta ciudad, nunca reconoció su responsabilidad y
las autoridades de la India guardaron el más respetuoso silencio y pidieron la mayor
prudencia hacia esta importante corporación transnacional estadounidense. Dow
Chemical hoy produce en la India el insecticida Dursban 48 que está totalmente
prohibido en Estados Unidos.
Pongo un ejemplo muy lejano geográficamente para que podamos hacerlo
consciente y receptarlo con facilidad, pero no olvidemos que la Dow Chemical también
está en Suramérica junto a Monsanto, Cargill y un abultado conjunto de empresas
nacionales e internacionales que generan una enorme carga de morbimortalidad en
nuestros países.
El concepto de determinantes sociales, sobre todo como lo promueve la OMS/
OPS, lleva en general a pensar en los estilos y condiciones de vida de la gente y en las
responsabilidades de los gobiernos con respecto a la educación y la equidad en la atención
de la enfermedad; a veces, al saneamiento ambiental (OPS, 2005; OMS, 2011).
Que los gobiernos hagan campañas para que la gente deje de fumar, en lugar
de leyes para que las empresas que fabrican los cigarrillos no puedan radicarse en el
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país o por lo menos que no puedan hacer publicidad de ningún tipo, es incumplir con
la sociedad. Cuando los gobiernos comienzan a prohibir que se fume en los lugares
públicos en realidad están victimizando a las víctimas dado que ese mismo gobierno
facilitó y facilita que esos fumadores y fumadoras hayan adquirido el hábito de fumar
al permitir la fabricación y la publicidad de cigarrillos.
Por estas razones y por razones de lógica (similares a las que uno pone en juego
cuando ve un caballo y un carro con su lanza y unce al animal en la lanza en vez de
ponerlo atrás para que peche el carro) en lugar de admitir que el Estado se desentienda
con respecto a que la gente no incorpore a su organismo substancias tóxicas; a que
el espacio urbano tenga las condiciones de higiene necesarias (recolección de los
residuos del hogar, cloacas, agua corriente potable, etc.); que use adecuadamente el
tiempo en su alternancia de trabajo, ocio y descanso; que no esté estresada y que no
viva en las condiciones propias de la pobreza, la sociedad debe exigirle a los poderes
del Estado que den la mayor jerarquía a legislar en beneficio de todo el pueblo, a
gestionar la sociedad teniendo en cuenta la ley y el bienestar de sus integrantes y a
hacer cumplir la leyes de modo que lo más fácil sea que la gente desarrolle hábitos y
estilos de vida salutógenos y tenga asegurado el respeto a su derecho a no enfermar y
a no empobrecerse cada vez más.
Que no esté permitido que por afanes de lucro haya empresas que intoxiquen
a la gente, que promuevan comportamientos auto o heteroagresivos, que lleven a la
gente a un uso perjudicial del tiempo de ocio o al consumismo y que tampoco las haya
que empujen a conglomerados humanos, progresiva o rápidamente, a la pobreza y la
exclusión como ocurre hoy con los bancos y los fondos de especulación económicofinanciera. Los pobres pueden ser fabricados por los sectores ricos de la sociedad solo
con la anuencia de los poderes del Estado, tal como hoy está sucediendo en España,
Grecia, Italia y antes ocurrió en nuestros países.
La limitación lógica del espacio impide desarrollar acá lo que hay que hablar para
poner sobre la mesa en toda su magnitud el tema de la enfermedad pública, pero sí es
posible señalar las trece grandes áreas de actividad empresarial, social o gubernamental
que generan enfermedad evitable:
1) El espacio llamado de atención de la salud (Sistema de Servicios de Salud),
si bien en él se le da relieve primordialmente a lo que es catalogado como enfermedad
o que la preanuncia. La investigación de Starfield (2000) en Estados Unidos ubica la
iatrogenia negativa como la tercera causa de muerte en Estados Unidos. La cuestión
es mucho más grave dado que este informe no toma en cuenta la generación de
nueva morbilidad ni el agravamiento, por causa de las prácticas terapéuticas, de las
enfermedades tratadas.
2) La pobreza (que nunca es natural ni autogenerada por los mismos pobres sino que
es provocada ex profeso o como consecuencia necesaria de la acumulación concentrada
de riqueza), que todo gobierno está en condiciones de atenuar significativamente en sus
efectos más injuriantes, como son los problemas del neurodesarrollo en los primeros
mil días de vida de las niñas y niños que luego se reflejan en las altas tasas de repitencia
de grado y de abandono de la escuela, en las personas que no logran trabajos estables
y bien rentados, etcétera.
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3) Los alimentos, bebidas y tabaco (sustancias tóxicas agregadas en el procesamiento
industrial de alimentos, deficiente control bromatológico, envases fabricados con
sustancias como el PVC –policloruro de vinilo–, comida chatarra, etc.).
4) Los ambiente habitacionales y sus servicios públicos (riesgo instalado en el
hogar admitido por las reglamentaciones de habitabilidad fijadas por el Estado, pinturas
y otras substancias tóxicas permitidas, falta de suministro de agua potable, falta de
cloacas, etc.).
5) Los ambientes generales que involucran a conglomerados sociales urbanos o
rurales (contaminantes químicos, energéticos, minerales, etc.).
6) Los vehículos automotores de venta pública legalizada (de uso familiar y de
transporte de pasajeros, animales y cargas) y el tránsito vehicular (automóviles familiares
estándar que alcanzan velocidades de 230 kilómetros por hora en un país en que el máximo
permitido es 130 kilómetros por hora).
7) La seguridad y el manejo de las actividades delictuales (sistemas carcelarios,
políticas frente al narcotráfico y la trata de personas, etc.).
8) Los ámbitos laborales (precariedad de la seguridad en las condiciones de trabajo,
los ambientes y procedimientos insalubres, la fluctuación de las ocupaciones, la amenaza
del desempleo, etc.).
9) La oferta pública y privada permitida para el empleo del tiempo de ocio (deportes
de alto riesgo, pseudo deportes de este tipo, establecimientos de juegos de azar, etc.)
10)El desarrollo tecnológico-industrial carente de previsión y los insumos empleados
para la fabricación de productos (tecnología patologizante, insumos como el amianto o
el PVC, etc.).
11) El marketing o mercadeo, sobre todo la publicidad descontrolada promoviendo
la ingesta e inhalación de sustancias tóxicas o generando perfiles dañosos de consumo
(consumismo) y dirigiendo toda su actividad a manipular (inclusive subliminalmente)
a la niñez y adolescencia para convertirla en consumidores selectivos, insaciables, y en
factores de presión sobre los padres para incrementar el consumo familiar
12)Los desastres artificiales, que son la mayoría de los que hoy acaecen.
13)La desvinculación entre las áreas gubernamentales de salud, educación,
desarrollo social y cultura que deben convergir entrelazadas sistémicamente para poder
generar un desarrollo humano verdaderamente integral sumado a estilos de vida saludables
en ambientes salutógenos.
Para finalizar viene al caso hacer dos citas de McKeown (1988, pp. 219 y 221):
En los países industrializados los principales requisitos son controlar en beneficio
de la salud un entorno que es principalmente obra del hombre y modificar los
rasgos del comportamiento para los cuales los genes están mal adaptados. [...]
Sin embargo, debemos reconocer que gran parte de los conocimientos que se
necesitan para mejorar rápidamente la salud ya están a nuestra disposición y lo
que hace falta para alcanzar un nivel aceptable de salud en todo el mundo no son
nuevos conocimientos básicos, sino más bien procedimientos eficaces de gestión
y voluntad política.
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Referencias
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_____________________________
Recebido em julho de 2012
Aceito em outubro de 2012
Enrique Saforcada – Prof. Consulto Titular de Salud Pública y Salud Mental, Facultad de Psicología; Miembro
de la Comisión de Maestría en Salud Pública; Miembro del Comité de Ética del Instituto de Investigaciones
en Salud Pública – Universidad de Buenos Aires.
Endereço para contato: [email protected] ou [email protected]
22
Aletheia 37, jan./abr. 2012
Aletheia 37, p.23-41, jan./abr. 2012
Extravasamento trabalho-família: quando é que as condições
de trabalho contribuem para práticas maternas abusivas?
Maria Manuela Calheiros
Maria Luísa Lima
Carla Silva
Resumo: Na análise do equilíbrio trabalho-família, tem-se salientado o efeito de extravasamento
(spillover). Neste estudo, realizado por entrevista semiestruturada a uma amostra de 102 mães
portuguesas (incluindo 79 sinalizadas por mau trato e negligência), abordam-se os impactos da
situação profissional das mães nas práticas parentais abusivas. Os resultados sugerem, como
prevíamos, que a relação da situação profissional (estatuto e horas de trabalho) com a parentalidade
abusiva não é directa, mas moderada por algumas variáveis psicossociais. Encontraram-se efeitos
de extravasamento negativo para o mau trato materno em condições de fracos recursos pessoais
percebidos e de insatisfação laboral; o extravasamento negativo para negligência materna ocorre
apenas quando há pouco controlo percebido sobre a situação de trabalho ou atribuições internas
de incapacidade. Por outro lado, o efeito de extravasamento pode ser positivo quando as mães
atribuem os problemas laborais a factores externos (e.g., condições de trabalho).
Palavras-chave: trabalho-família, maternidade abusiva, factores de bem-estar.
Extravasation work-family: When working conditions contribute
to maternal abusive practices?
Abstract: The analysis of work-family balance has highlighted the spillover effect. This study,
implemented through semi-structured interviews with a sample of 102 Portuguese mothers
(including 79 referred for maltreatment and neglect), addresses the impacts of the mother’s
professional situation on abusive parenting practices. The results suggest, as predicted, that the
relationship between the professional situation (work status and work hours) and abusive parenting
is not direct, but moderated by some psychosocial variables. We have found effects of negative
spillover to maternal practices of maltreatment in conditions of perceived low personal resources
and dissatisfaction with work; negative spillover to maternal practices of neglect occurs only when
there is little perceived control over the work situation or internal attributions of inability. Moreover,
the effect of spillover can be positive when mothers attribute the problems in the work domain to
external factors (e.g., working conditions).
Keywords: work-family, abusive maternity; wellness factors.
Extravasación trabajo-familia: Cuando las condiciones de trabajo
contribuyen a prácticas maternas abusivas?
Resumen: El análisis del equilibrio entre trabajo y familia ha subrayado el efecto de extravasación
(spillover). En este estudio, mediante entrevistas semi-estructuradas con una muestra de 102 madres
portuguesas (79 de ellos marcados por el maltrato y la negligencia), se abordan los impactos de la
situación profesional de las madres en las prácticas parentales abusivas. Los resultados sugieren,
tal como se predijo, que la relación de la situación laboral (estatuto y horas de trabajo) con las
practicas maternas abusivas no es directa pero moderada por algunas variables psicosociales.
Hemos encontrado efectos de extravasación negativo para el maltrato materno en de condiciones
de escasos recursos percibidos y de insatisfacción en el trabajo; el extravasación negativo para la
negligencia materna ocurre sólo cuando hay poco control percibido sobre la situación de trabajo o
atribuciones internas de incapacidad. Por otra parte, el efecto de extravasación puede ser positivo
cuando las madres asignan los problemas en el trabajo a factores externos (por ejemplo, las
condiciones de trabajo).
Palabras clave: trabajo-familia, maternidad abusiva, factores de bien.
Introdução
As tendências sociais e ideológicas actuais sugerem que os assuntos trabalhofamília se estão a tornar cada vez mais importantes neste novo milénio (Grzywacz &
Marks, 2000). O aumento de práticas igualitárias em termos de género e das famílias
em que ambos os pais trabalham trouxe novas responsabilidades e desafios aos pais no
equilíbrio entre estas duas áreas da sua vida, com consequências na educação das crianças
(Bronfenbrenner & Crouter, 1982). O emprego das mães é um veículo para obter recursos
materiais e estatuto para a família, e contribui também para o seu bem-estar, para a
autoestima e inserção social (Coley, Lohman, Votruba-Drzal, & Pittman, 2007), através
do estímulo, auto-realização, aquisição de novas competências e relações sociais, fuga
das actividades rotineiras, e compensação dos papéis familiares (Greenhaus & Powell,
2006). Por outro lado, o duplo papel de mãe e profissional, pelo investimento de tempo,
energia e atenção ao trabalho, pode limitar o envolvimento na educação e actividades
com as crianças (Matthwes, Bulger, & Barnes-Ferrel, 2010). Neste trabalho pretendese analisar os impactos da situação laboral das mães nas suas práticas parentais, e em
particular nas práticas abusivas (mau trato e negligência).
Neste domínio, duas perspectivas gerais têm sido propostas para a análise da relação
do trabalho com a família. Tradicionalmente, a investigação nesta área foi dominada pela
perspectiva da tensão de papéis provocada pela interface trabalho-família (i.e., conflito
trabalho-família; Barnett, 1996), postulando que as responsabilidades destes dois domínios
competem pelo tempo, energia e recursos psicológicos limitados (Oomens, Geurts, &
Scheepers, 2007), resultando numa variedade de consequências negativas em ambos os
espaços (Parasuraman, Purohit, Godshalk, & Beutell, 1996). O pressuposto de que o stress
nos papéis profissionais está relacionado com experiências de conflito trabalho-família
(Matthews, Bulger, & Barnes-Ferrel, 2010) baseia-se na relação tensão-deformação
prevalente em inúmeros modelos de stress, como o de Lazarus e Folkman (1984). Por
outro lado, a partir da hipótese de extravasamento (spillover), um corpo paralelo de
investigação sugere que a participação em múltiplos papéis providencia oportunidades
e recursos (e.g., suporte social, autoestima) que podem ser usados para promover um
melhor funcionamento noutros domínios de vida (Greenhaus & Powell, 2006; Wayne,
Musisca, & Fleeson, 2004). Aplicada à relação trabalho-família, esta hipótese sugere que
os estados psicológicos (positivos ou negativos) experienciados no trabalho afectam os
estados psicológicos na família (Lambert, 1990; Matias & Fontaine, 2012).
Nos estudos sobre a relação trabalho-família tem sido extensivamente analisado o
impacto do estatuto profissional das mães e do número de horas de trabalho na qualidade
e na quantidade das interacções pais-filhos (e.g., Zubrick, Silbum, & Vimpani, 2000).
24
Aletheia 37, jan./abr. 2012
Fokkema (2002) verificou que as mães que trabalham parecem estar menos angustiadas
do que as mães que apenas tomam conta das crianças, sendo a forma como estas
organizam o seu tempo de trabalho que determina a disponibilidade de tempo que têm
para as crianças e não o facto de trabalharem ou não (Dockery, Li & Kendall, 2009). De
facto, as mães que trabalham tendem a compensar a sua ausência na interacção directa
e na quantidade de tempo que passam com as crianças, no tempo que têm disponível,
dedicando menos tempo ao lazer e a outras actividades não relacionadas com a criança
(Coley et al., 2007).
Não obstante, estas estratégias de conciliação de papéis, as horas que as mães
dedicam ao trabalho estão significativamente e inversamente relacionadas com o tempo
que passam com os filhos. Embora estudos recentes tenham sugerido que as mães que
trabalham, especialmente as que trabalham mais horas, têm maior probabilidade de
envolver os filhos entre os 6 e os 11 anos em actividades extracurriculares, compensando
assim os efeitos negativos associados às longas horas de trabalho materno (Han, 2006),
quando o número de horas excede o trabalho a tempo inteiro, outros efeitos negativos
na família têm sido observados. Por exemplo, as mães de bebés que trabalham mais de
40 horas por semana são mais ansiosas e insatisfeitas, e têm interacções menos positivas
com os filhos (Owen & Cox, 1988).
Na maioria dos estudos psicológicos efectuados neste domínio, existe o pressuposto
de que o stress nos papéis profissionais está relacionado com experiências de conflito
trabalho-família (Matthews et al., 2010), no entanto, cada vez mais se considera que o
impacto das situações de trabalho está dependente da atribuição de significado, sendo
os padrões e estratégias de actuação consequência destas avaliações. Esta atribuição
de significado baseia-se na avaliação dos recursos disponíveis e das exigências que lhe
são feitas (Voydanoff, 2004). Uma particular atenção tem sido dada a estes processos
cognitivos, e mais recentemente ao efeito que estas avaliações possam ter sobre a
parentalidade (Greenberger & O`Neil, 1993; Matias & Fontaine, 2012; Repetti, 1994).
Porém, pouco se sabe ainda sobre como é que as diferentes características e recursos
dos dois contextos modelam a experiência trabalho-família (Barnett, 1996) em mães com
poucos recursos, sabendo-se ainda muito menos no que diz respeito a famílias maltratantes.
Particularmente, há poucos estudos sobre a influência das variáveis do trabalho em mães
cuja maternidade é abusiva.
Na literatura sobre mau trato é referido que níveis elevados de desemprego
paterno estão associados à ocorrência de maus tratos às crianças (Sidebotham & Heron,
2006). Contudo, os dados em relação às mães têm sido menos claros (Gillham et al.,
1998) apesar de, mais recentemente, Sidebotham e Heron (2006) terem verificado que
o emprego materno exercia um ligeiro efeito protector em relação à probabilidade de
situações de maus tratos. No entanto, Coley et al. (2007) realçaram que a passagem de
mães com baixos rendimentos e que são dependentes de apoios financeiros da segurança
social para um sistema de emprego estável afecta o seu bem-estar e o ambiente familiar
que proporcionam às crianças. De facto, advogavam que essas mães, perante a perda dos
apoios, e com poucas competências ou oportunidades para adquirir e manter um emprego
estável, iriam perder estabilidade financeira e experienciar mais stress, prejudicando-se
assim o ambiente familiar e a parentalidade. Neste sentido, é objectivo deste estudo
Aletheia 37, jan./abr. 2012
25
testar a hipótese de extravasamento na relação entre o trabalho e a maternidade em
mães abusivas e conhecer quais as características e recursos do contexto de trabalho
que modelam a experiência trabalho-família.
Satisfação, recursos e atribuições causais na situação de trabalho
A investigação nesta área tem-se movido do estudo sobre a mera ocupação
para a natureza das experiências das pessoas nos seus papéis sociais (Greenberger
& O`Neil, 1993). Desta forma, para além das variáveis de estatuto profissional e
tempo dedicado aos papéis (trabalho e parentalidade), dois aspectos da qualidade do
papel ganharam relevância: a satisfação com o mesmo e os recursos disponíveis. A
suportar esta ideia, a revisão de literatura realizada por Hoffman (1989) mostrou que
a satisfação das mães com o emprego está positivamente relacionada com a qualidade
da interacção mãe-filho, e com os vários índices de ajustamento e capacidades da
criança. Mostrou também que os recursos do trabalho são as variáveis com correlações
mais fortes das consequências positivas do trabalho para a família. São também
interessantes os resultados obtidos por Greenberger e Goldberg (1989) e por Silverberg
e Steinberg (1990), que apontam para correlações baixas entre o envolvimento no
papel profissional e o investimento no papel parental. Um estudo recente mostra que
os indivíduos mais satisfeitos no trabalho relatam também maior facilitação trabalhofamília (Boyar & Mosley, 2007). Tomados em conjunto, estes resultados sugerem
que o nível de satisfação com o trabalho fora de casa é um moderador crucial dos
efeitos do trabalho na parentalidade e que, em geral, as hipóteses sobre o aumento
de recursos, em vez da sua escassez, em mães empregadas, têm vindo a aumentar ao
longo do tempo (Greenberger & O`Neil, 1993).
O significado positivo da situação de trabalho parece proporcionar protecção em
relação ao conflito trabalho-família (Byron, 2005) também através da percepção de
controlo que os indivíduos têm sobre a situação. Boyar e Mosley (2007) constataram
que o locus de controlo apresenta relações significativas quer com o conflito, quer com
a facilitação trabalho-família. Outros trabalhos salientam que quanto mais baixa é a
pressão e maior o controlo no trabalho, menor é o extravasamento negativo do trabalho
para a família (e.g., Grzywacz & Marks, 2000; Oomens et al., 2007). Os indivíduos
com um locus de controlo interno (i.e., que creem poder influenciar os seus resultados)
tendem a trabalhar mais e melhor a fim de utilizarem melhor os recursos de cada um
dos domínios. Pelo contrário, baixos níveis de decisão e de controlo estão associados
a menos consequências positivas do trabalho para a família.
O enquadramento descrito anteriormente sobre os processos de trabalho e stress,
embora sugira diferentes caminhos de influência, converge em predições similares.
Os resultados de autores que analisam o estatuto de trabalho por si (e.g., Goldberg &
Easterbrooks, 1988; Greenberger & Goldberg, 1989) sugerem que o trabalho materno
tem efeitos positivos na família e na parentalidade, sobretudo se as mães avaliarem
estar satisfeitas, sentirem que têm controlo sobre a situação (Boyar & Mosley, 2007)
e dispuserem de recursos para enfrentarem os problemas de relação trabalho-família
(e.g., Grzywacz & Marks, 2000; Silverberg & Steinberg, 1990).
26
Aletheia 37, jan./abr. 2012
Modelo a testar
O modelo que se pretende testar neste estudo orienta-se na perspectiva
psicológica do stress e iremos analisar os factores cognitivos ao nível da avaliação
de significado (satisfação, recursos, atribuições) e a importância que possam ter como
mecanismos explicativos das relações entre a situação profissional (estatuto e horas
de trabalho) e a parentalidade abusiva, através da hipótese de extravasamento.
O estudo centra-se sobre as mães, uma vez que a investigação tem mostrado que
apresentam níveis mais elevados de stress familiar e de carga de trabalho em casa (e.g.,
Fontaine et al., 2009). A maioria dos estudos que ligam o trabalho materno aos efeitos
na criança tratam a variável trabalho em termos muito simples (i.e., empregadosdesempregados, e trabalho em tempo parcial ou tempo inteiro) (e.g., Hoffman, 1989).
Tais categorizações não diferenciam o significado psicológico que o trabalho pode
ter, nem as suas diferentes implicações na parentalidade foram avaliadas. Assim, e
na tentativa de contribuir para colmatar estas limitações na investigação, o presente
estudo visa abordar os mecanismos subjacentes aos diferentes estatutos de emprego
(desemprego, domésticas ou empregadas) e à participação das mães no trabalho e
na família (tempo dedicado ao trabalho) controlando variáveis socioeconómicas e
educacionais da mãe. Assim, o nível socioeconómico da família e escolaridade da
mãe foram introduzidos na primeira etapa de cada equação como covariáveis.
O modelo apresentado na Figura 1 orienta este estudo, que analisa os efeitos
da avaliação cognitiva, mais concretamente da avaliação primária face à situação
do trabalho, das atribuições e dos recursos das mães sobre a situação profissional,
enquanto factores moderadores dos efeitos do contexto profissional (situação perante
o trabalho – estatuto de empregada, doméstica e desempregada – e horas de trabalho)
sobre a parentalidade abusiva.
Avaliação
primária
Atribuições
Contexto
profissional
Recursos
Mau Trato
Negligência
Figura1 – Modelo de moderação da avaliação primária, atribuições e recursos na relação entre a situação perante
o trabalho e as práticas maternas abusivas.
Com base na literatura, espera-se que os efeitos de extravasamento do contexto
profissional (situação perante o trabalho e horas de trabalho) sejam maiores ao nível do
mau trato e negligência quando as mães se avaliam mais insatisfeitas com o trabalho,
com menos recursos e com menos controlo sobre a situação de trabalho.
Aletheia 37, jan./abr. 2012
27
Método
Participantes
Participaram neste estudo 102 mães de crianças que frequentam escolas públicas,
de Lisboa. Os critérios que presidiram à selecção das participantes incluíram o tipo de
práticas abusivas e um conjunto de variáveis sociodemográficas.
O primeiro critério tomado em consideração foi o tipo de mau trato e negligência
perpetrado pela mãe. Embora a totalidade da amostra constitua um grupo único no
tratamento dos dados, para a selecção das participantes tivemos em consideração quatro
grupos a partir das duas dimensões (mau trato e negligência) do Questionário de Avaliação
do Mau Trato e da Negligencia Parental (Calheiros, 2006), como adiante se explicitará.
Porque pretendemos ter uma amostra heterogénea no tipo e gravidade de mau trato e
negligência (mau trato – mau trato alto e negligência baixa; negligência – negligência alta
e mau trato baixo; controlo – mau trato baixo e negligência baixa) e na sua co-ocorrência
(mau trato alto e negligência alta), os participantes foram incluídos nos grupos de mau
trato e negligência a partir dos resultados obtidos nestas duas dimensões, tendo em
consideração o primeiro e último quartil (Tabela 1). A presente investigação inclui assim,
79 mães de crianças maltratadas e negligenciadas, sinalizadas às Comissões de Protecção
de Crianças e Jovens em Risco (CPCJ’s), e 23 mães não sinalizadas, que compõem o
grupo sem mau trato e negligência (grupo controlo). O grupo de famílias sem abuso foi
seleccionado aleatoriamente nas mesmas escolas e turmas das crianças dos grupos de mau
trato e negligência. Para tal, foi previamente elaborada uma lista de crianças controlando
o nível socioeconómico das famílias e confirmando-se que não estavam sinalizadas, com
base nos processos escolares. Após esta selecção, a professora respondia ao “Questionário
de Avaliação do Mau Trato e Negligência” (Calheiros, 2006).
Como pretendemos ter uma amostra homogénea do ponto de vista das variáveis
sociodemográficas, emparelhámos as participantes nos diferentes grupos, tendo em
consideração a idade da criança, a duração da situação (cronicidade do mau trato e
negligência), a situação profissional e escolaridade da mãe e o tempo de residência.
Tabela 1 – Comparação das médias do mau trato e negligência e das variáveis controladas nos grupos.
Controlo (N=23)
Mau Trato
(N=21)
Negligência
(N=27)
Mau Trato & Negligência
(N=27)
Mau Trato***
.30
2.78
.71
2.78
Negligência***
.00
.82
2.31
2.42
Idade
8.74
9.14
9.15
9.41
Cronicidade
.00
2.05
2.44
2.74
Esc. mãe**
2.52
2.50
2.12
2.04
T. residência
2.76
2.72
2.43
2.52
***p=.000; **p=.02
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Aletheia 37, jan./abr. 2012
Os resultados da Tabela 1 evidenciam a similaridade das variáveis nos diferentes
grupos, à excepção da variável escolaridade da mãe que apresenta diferenças
significativas entre o grupo de mau trato e o grupo sem mau trato e negligencia e os dois
restantes, sendo os níveis mais baixos nos últimos. O teste para analisar se os grupos se
diferenciavam em função da situação profissional das mães (trabalharem ou não) (χ2 =
2.15, p= .54) não indica diferenças nos grupos. Os agregados maternos são constituídos
por famílias monoparentais (N= 19, 18.6%), nucleares (N=61, 59.8%) e reconstituídas
(N= 22, 21.6%). As crianças, de sexo masculino (N=59, 57.8%) e feminino (N=43;
42.2%), têm idades entre os 6 e 12 anos, sendo 30 de seis e sete anos (29.4%), 23 de
oito e nove anos (22.5%) e 49 de dez, onze e doze anos (48%).
O estatuto de trabalho foi avaliado em função da situação das participantes
perante o trabalho. Assim, as mães que constituíam a amostra foram distribuídas por
três grupos: empregadas (n=53, 52.0%) desempregadas (n=24, 23.5%) e domésticas
(n=25, 24.5%). Foi ainda avaliado o “número de horas de trabalho semanal” da mãe:
não trabalha (n=48, 47.1%); trabalha 8 a 35h (n=18, 17.6%); trabalha 36 a 40h (n=20,
19.6%); trabalha mais de 42h (n=16, 15.7%).
Procedimento
As mães foram convocadas pelas instituições (Instituto de Reinserção Social
e CPCJ’s) no caso das participantes com sinalização, e pelas escolas no grupo não
sinalizado) para participação num estudo sobre educação na grande zona de Lisboa.
Para evitar enviesamentos devidos ao questionamento de um único informante,
este estudo utilizou múltiplas fontes para a recolha dos dados (mães, professores e
técnicos). Os dados de avaliação do mau trato e negligência e da violência doméstica
foram recolhidos pelos técnicos das instituições referidas e professores através do
preenchimento do “Questionário de Avaliação do Mau Trato e Negligência” a partir
dos processos individuais da criança. A recolha dos dados com as mães e as crianças
foi realizada presencialmente, através da aplicação de questionários aplicados pela
investigadora principal.
Os instrumentos para avaliação com as mães foram construídos em duas
versões: para mães com escolaridade e sem escolaridade. A parte que corresponde
aos questionários com respostas fechadas, no caso das mães sem escolaridade, era
apresentada pela investigadora com o auxílio de material de apoio com as respectivas
escalas de resposta.
Instrumentos
Mau trato e negligência. O Questionário de Avaliação do Mau Trato e Negligência
(Calheiros, 2006) é um instrumento construído para ser preenchido por técnicos ou
educadores, e inclui 18 itens, cada um com quatro descritores de gravidade diferente
numa escala de 0 a 4. Os itens que são assinalados como nunca tendo ocorrido, como
“desconhecidos” ou suspeitos, mas não confirmados, são cotados com zero (0). Os
itens cujos descritores estejam presentes são cotados pelo nível de gravidade superior
apresentado. Assim, cada item pode ser cotado numa escala de 4 pontos (0 na situação
Aletheia 37, jan./abr. 2012
29
de todos os indicadores ausentes, 1 na situação do primeiro nível de gravidade, 2, 3,
4, consoante a gravidade dos indicadores).
No estudo de desenvolvimento e validação do questionário foi encontrada uma
estrutura factorial de segunda ordem organizada em duas dimensões de parentalidade
abusiva – Negligência e Mau Trato. A dimensão denominada “Negligência” é definida
por omissões parentais como a falta de provisão em relação às necessidades básicas
da criança, falta de supervisão nos cuidados de segurança física, acompanhamento e
estimulação e negligência educacional em relação às áreas de acompanhamento escolar
e em relação às necessidades de desenvolvimento (α= .67). A dimensão de “Mau
Trato”, reúne todas as acções de violência física e mau trato psicológico em relação
à criança. Os indicadores finais utilizados são a média dos itens que constituem cada
uma das escalas.
Nível socioeconómico da família – Utilizaram-se cinco itens (escolaridade,
profissão, rendimento, habitação e bairro de residência) para a construção de um
indicador de nível socioeconómico (alfa de Cronbach=.81). Níveis elevados nesta
variável correspondem a um estatuto socioeconómico alto.
Contexto profissional – O contexto profissional foi avaliado através da situação
de trabalho (exerce uma profissão, está desempregada ou é doméstica) e do número
de horas de trabalho semanal.
Satisfação com o estatuto de trabalho. Esta dimensão foi avaliada através da média
de 3 itens: “satisfação geral com o estatuto de trabalho”, “satisfação geral com os efeitos
do estatuto do trabalho na sua função das mães” e “satisfação geral com os recursos
que disponibilizavam para enfrentar as situações que não corriam bem”, avaliadas cada
uma através de uma escala de 1 (Muito insatisfeita) a 5 (Muito satisfeita) .
Recursos. A avaliação da percepção das mães acerca dos recursos disponíveis
para lidarem com a sua situação profissional foi feita através da questão: “Até que
ponto considera que tem meios para enfrentar as situações que não correm bem no seu
emprego/na sua situação de desemprego/no seu trabalho doméstico?”, formulada numa
escala de 1 (nenhuns) a 5 (muitíssimos).
Atribuições causais sobre a situação profissional. Após caracterização da situação
das mães em relação ao trabalho (trabalho, desemprego e doméstica), foi formulado
um conjunto de 10 questões (avaliadas numa escala de 1=nada a 5= muitíssimo) sobre
as causas da insatisfação com a situação actual. Todas as questões, independentemente
do tipo de situações a que se referiam, foram elaboradas com base nas dimensões de
“locus” e “controlo” adaptadas à situação avaliada. A análise factorial em componentes
principais resultou em dois factores com uma variância total explicada de 51.7%. O
primeiro factor, cujo alpha de Cronbach (α= .75) explica 30% da variância, agrega
itens que descrevem “causas internas”, como a falta de interesse, esforço e experiência
. O segundo factor, com uma consistência interna (α= .71), refere-se à dimensão de
“causas externas” (maneira de ser dos outros, dificuldades da tarefa, condições gerais
de emprego, etc.) e explica 21.6% da variância. Os indicadores finais correspondem à
média dos itens de cada factor.
30
Aletheia 37, jan./abr. 2012
Resultados
Relações entre as variáveis
A Tabela 2 apresenta as correlações das variáveis de trabalho e práticas maternas
com as variáveis moderadoras, as médias e os desvio-padrões das variáveis de avaliação
cognitiva, atribuições e estratégias comportamentais.
Tabela 2 – Correlações, médias e desvio-padrões das principais variáveis em estudo.
1
2
3
4
5
6
7
8
9
1. Mau trato
.36***
-.17
-.09
-.11
-.26**
-.23*
.40***
-.12
-.66***
-.42***
-.19
-.17
-.31***
.59***
-.05
.65***
.34***
.23*
.37***
-.55***
.11
2. Negligência
3. Sócioeconómico
4. Escolaridade mãe
.23*
5. Horas de trabalho
-.01
.20*
-.36***
-.03
.51***
.41***
-.29**
.40***
.73***
-.25*
.51***
-.26**
.44***
6. Satisfação
7. Recursos
8. Causas internas
.13
9. Causas externas
M
2.71
2.36
21.17
3.25
2.88
2.36
2.62
DP
.76
.95
23.69
1.27
1.08
.90
.88
(***) p<= 0.001; (**) p <= 0.01; (*) p<= 0.05
As médias obtidas mostram que as mães apresentam um nível médio de satisfação
com a sua situação profissional (M=3.25), que avaliam como baixos os seus recursos
disponíveis (M=2.88) e que fazem poucas atribuições tanto internas como externas à sua
situação de trabalho.
O estatuto social destas mães está fortemente ligado às variáveis consideradas.
Assim, podemos ver que as práticas maternas de negligência (mas não as de mau-trato)
estão associadas ao nível sócio económico da amostra: são as mães menos escolarizadas
e de estatuto sócio económico mais baixo que mais apresentam práticas negligentes
. Por outro lado, o estatuto social está claramente associado ao significado atribuído
aos factores do trabalho. De facto, os resultados indicam que quanto maior é o nível
socioeconómico e educacional, maior é a satisfação com a situação profissional e os
recursos percebidos. Por sua vez, o significado atribuído à situação profissional também
tem associações importantes com esta avaliação: a atribuição interna das dificuldades
na situação do trabalho está associada a menor satisfação e avaliação de recursos (r=-.25
e -.26 respectivamente), enquanto que as atribuições externas estão associadas a uma
melhor avaliação destes recursos (r=.51 e .44). É ainda importante salientar que, nesta
amostra, as horas de trabalho estão positivamente associadas à satisfação laboral (r=.55)
e aos recursos (r=.41).
Aletheia 37, jan./abr. 2012
31
Relativamente às questões do extravasamento trabalho-família, os dados do nosso
estudo não suportam a ideia de uma associação directa entre as variáveis do contexto
de trabalho e as práticas maternas. Os resultados indicam que as práticas maternas
abusivas não estão associadas às variáveis de trabalho – “estatuto” (F(2,101)= .62, p=.53;
F(2,101)= 3.08, p=.06, mau trato e negligência, respectivamente) e “horas de trabalho”
(respectivamente, r=.11 e .19, n.s.). No entanto, o nível de satisfação com o estatuto laboral
e a avaliação dos recursos apresentam um padrão de relações mais consistente com o mau
trato e a negligência. De uma forma geral, os resultados parecem indicar não só que as
mães desempregadas (M=1.79) e domésticas (M=3.24) avaliam a sua situação como mais
negativa (F(2,101)= 41.92, p=.000) do que as mães empregadas (M=3.93), e com menos
recursos e controlo (F(2,101)= 11.97, p=.000; Mempregadas=3.26, Mdesempregadas=2.08), como
parecem ser estas avaliações que são determinantes das práticas maternas abusivas. De
facto as correlações da tabela 2 mostram que o mau-trato e a negligência têm associações
positivas com a satisfação laboral e a avaliação de recursos e principalmente com as
atribuições internas aos insucessos profissionais.
O efeito moderador da satisfação na ligação entre o contexto de trabalho e as práticas
maternas abusivas
Os resultados das análises que testam o efeito de moderação da avaliação primária
são apresentados na Tabela 3. Estes resultados ilustram o impacto já referido do estatuto
socioeconómico nas práticas negligentes.
Tabela 3 – Resultados das regressões das variáveis preditoras (estatuto e horas de trabalho) e da variável de
moderação (satisfação com a situação profissional) na predição das práticas maternas abusivas.
Mau Trato
Variáveis
β
Negligência
Total R2
∆F
β
Total R2
∆F
.42
37.90***
Etapa 1(covariáveis)
Classe social
-.19
Escolaridade mãe
.04
-.67***
.01
1.53
.02
Etapa 2
Estatuto trabalho
.27*
-.09
Satisfação
-.42**
.08
5.12**
.08
.42
.45
-.39**
.15
8.33**
-.18
.41
.55
Etapa 3
Est. trabalho. x satisfação
Etapa 1 (covariáveis)
Etapa 2
Horas de trabalho
.06
Satisfação
-.27*
.05
2.81*
.14
-.10
.42
1.09
-.27*
.10
6.62**
.002
.42
1.00
Etapa 3
Horas trabalho x satisfação
(*) p< 0.05; (**) p<0.01; (***) p < 0.001
32
Aletheia 37, jan./abr. 2012
Os dados revelam dois efeitos de interacção nas práticas de mau trato1. A análise
de cada termo de interacção mostra que a satisfação interage com o estatuto de trabalho
(F incremento (1,96) = 8.33, p= .001) e com as horas de trabalho, (F incremento (1,96)
= 6.62, p= .01), e acrescentam 7% e 6%, respectivamente, da variância das práticas
maternas de mau trato. As análises realizadas posteriormente com o grupo das mães
insatisfeitas com a sua situação profissional mostram que são as mães empregadas as
que mais maltratam os filhos ((F(2,24) =2.28, p=.132), e que o mau-trato aumenta à
medida que o número de horas despendido no papel profissional aumenta (r(25)= .39,
p=.05). No entanto, nas mães satisfeitas, não parece haver diferenças na gravidade e
frequência do mau trato em função do estatuto (F(2,44)=.37, p=.68), e tempo dedicado
ao trabalho (r(45)= -.10, p=.46).
As mesmas análises foram conduzidas para a predição das práticas de
negligência, mas os termos de interacção não foram significativos em nenhuma das
equações.
Deste modo, os resultados parecem indicar que é só quando as mães estão
insatisfeitas com a sua situação profissional que as variáveis do contexto de trabalho
se associam a práticas de maus tratos.
O efeito moderador da avaliação de recursos na ligação entre o contexto de
trabalho e as práticas maternas abusivas
Quando se toma a variável “avaliação de recursos” como moderadora do estatuto
e horas de trabalho, observa-se unicamente um efeito de interacção nas práticas de
mau trato. Os resultados apresentados na Tabela 4 mostram que a avaliação dos
recursos interage com o estatuto de trabalho (F incremento (1,96)= 4.47, p= .02), e
prediz 4% da variância das práticas maternas de mau trato.
1
Uma vez a correlação elevada entre a variável estatuto e horas de trabalho (r= .78) e encontrados os efeitos
de interacção de cada uma destas variáveis com a satisfação, confirmámos se os resultados destas interacções
(apresentados na Tabela 3) se mantinham após controlo de cada uma das interacções. Os resultados obtidos
indicam que somente a interacção estatuto de trabalho e satisfação se mantêm após este controlo (F(1,97)=10.38,
p=.002).
2
Embora a análise de variância apenas mostre diferenças tendenciais entre os grupos de estatuto profissional
diferente, a correlação encontrada entre estatuto profissional e mau trato nas situações de insatisfação, (r (25)=.41,
p=.04) é indicadora de que são as mães empregadas que mais maltratam os filhos.
Aletheia 37, jan./abr. 2012
33
Tabela 4 – Resultados das regressões das variáveis preditoras (estatuto e horas de trabalho) e da variável de
moderação (avaliação de recursos) na predição das práticas maternas abusivas.
Mau Trato
Variáveis
β
Negligência
Total R
∆F
.01
1.53
2
β
Total R2
∆F
.42
37.90***
Etapa 1(covariáveis)
Socioeconómico
-.19
Escolaridade mãe
.04
-.67***
.02
Etapa 2
Estatuto trabalho
.10
.08
Avaliação recursos
-.23
.03
1.99
-.11
.42
.88
-.31*
.06
4.47*
-.24
.42
1.03
Etapa 3
Est. trabalho. x recursos
Etapa 1 (covariáveis)
Etapa 2
Horas de trabalho
-.02
Avaliação recursos
-.18
.02
1.59
.13
-.12
.43
1.53
-.15
.03
2.04
-.02
.42
.05
Etapa 3
Horas de trabalho x
recursos
(*) p< 0.05; (***) p < 0.001
A análise de variância realizada posteriormente a este teste indica que as mães
domésticas sem recursos (F(2,33)= 2.71, p=.08), são aquelas que tendencialmente
recorrem mais a este tipo de práticas (média das mães donas de casa = 2.33; média das
mães empregadas = 1.96). Nas mães com recursos não existem diferenças na gravidade
e frequência do mau trato em função do estatuto de trabalho (F(2,28)= .09, p=.91). Uma
vez mais, as práticas de negligência não se encontram associadas a nenhum efeito de
interação significativo.
Deste modo, os resultados parecem indicar que é só quando as mães acham que
têm poucos recursos para responder às exigências laborais que se verifica extravasamento
das variáveis do contexto de trabalho às práticas de maus tratos.
O efeito moderador das atribuições sobre o trabalho na ligação entre o contexto de
trabalho e as práticas maternas abusivas
Os resultados das análises que envolvem as atribuições das mães relativamente
à sua situação de trabalho revelam efeitos principais das causas internas, que explicam
13% da variância do mau trato, quando entram na equação com o estatuto e horas de
trabalho, e 8% da variância da negligência quando entram na equação com o estatuto de
trabalho (Tabela 5).
34
Aletheia 37, jan./abr. 2012
Tabela 5 – Resultados das regressões das variáveis preditoras (estatuto e horas de trabalho) e da variável de
moderação (atribuições sobre a situação profissional) na predição das práticas maternas abusivas.
Mau Trato
Variáveis
β
Negligência
Total R2
∆F
.01
1.53
.02
β
Total R2
∆F
.42
37.90***
Etapa 1(covariáveis)
Classe social
-.19
Escolaridade mãe
.04
-.67***
Etapa 2
Estatuto trabalho
.12
Causas internas
.43***
.13
7.58***
.33***
.04
.49
7.87***
.21
.13
1.43
-.16
.48
1.89
Etapa 3
Est. trab. x Causas Internas
Etapa 1 (covariáveis)
Etapa 2
Estatuto trabalho
.08
Causas externas
-.13
.004
.69
.004
.04
.44
.13
-.29
.02
2.17
-.51*
.46
4.91*
Etapa 3
Est. trab. x Causas Externas
Etapa 1 (covariáveis)
Etapa 2
Horas de trabalho
-.02
Causas internas
.43***
.13
7.59***
.36***
.14
.51
9.77***
.10
.13
.88
-.14+
.52
3.15+
Etapa 3
Horas trabalho x Causas Internas
Etapa 1 (covariáveis)
Etapa 2
Horas de trabalho
-.06
Causas Externas
-.09
.002
.58
-.009
.09
.42
.57
-.03
-.008
.05
-.15+
.43
3.19+
Etapa 3
Horas trabalho x Causas Externas
(*) p< 0.05; (**) p<0.01; (***) p < 0.001; (+) p ≥ .07≤.09
A atribuição de causas internas (falta de esforço, interesse e experiência na área
profissional) às dificuldades laborais, aparece, tal como vimos na tabela 2, associado quer
ao mau-trato como à negligência. Quer isto dizer que quanto menos investimento existe
na área do trabalho, mais problemas relacionais da mãe com a criança.
Não se observa qualquer efeito de interacção destas variáveis no factor de mau
trato. Pelo contrário, observam-se três efeitos de interacção na negligência. O efeito
(estatuto de trabalho x causas externas) (F incremento (1,96)= 4.91, p= .029) prediz
3% da variância das práticas maternas de negligência, indicando que as mães que não
atribuem externamente a sua situação profissional (F(2,25)= 2.84, p= .09) não apresentam
diferenças na gravidade da negligência no teste post-hoc, contrastando com as mães com
Aletheia 37, jan./abr. 2012
35
elevadas atribuições externas (F(2,20)= 11.56, p= .001) em que são as mães desempregadas
(M=2.24) e domésticas (M=2.18) que mais negligenciam os filhos, quando comparadas
com as empregadas (M=.61). Assim, o estatuto profissional extravasa para práticas
negligentes apenas quando há atribuições externas das dificuldades laborais.
O efeito de interacção (horas de trabalho x causas externas)3 (F incremento (1,96)=
3.19, p= .07) prediz 2% da variância das práticas maternas de negligência, e indica que a
negligência às crianças diminui nas famílias em que as mães estão empregadas à medida
que as horas de trabalho aumentam, mas apenas quando as mães atribuem causas externas
à sua situação profissional (r(21) = -.58, p= 006); quando isso não acontece, a relação
entre horas de trabalho e negligência não assume qualquer significado (r(26) = .32, p=
.10). O último efeito de interacção entre horas de trabalho e causas internas, explica 2% da
negligência (F incremento (1,96)= 3.15, p= .07), indicando que as mães mais envolvidas
no trabalho, uma vez que atribuem a sua situação profissional à experiência, capacidade
e esforço (atribuições internas baixas), à medida que o número de horas despendido no
papel profissional aumenta, tornam-se mais negligentes (r(19)= .45, p= .05). Nas mães
menos envolvidas na carreira profissional (atribuições internas elevadas de falta de esforço
e experiência elevadas) não apresentam diferenças na negligência em função do tempo
gasto no trabalho (r(19)= -.14, p=.56). Deste modo, os resultados indicam que o menor
tempo de trabalho das mães empregadas se associa a práticas maternas negligentes,
apenas quando o envolvimento com o trabalho é baixo e as mães veem a sua situação
determinada por factores externos.
Resumo dos resultados
Sumariando as análises de moderação que predizem mudanças nas práticas
maternas em função da sua situação de trabalho, um conjunto de resultados aparece como
relevante. De uma forma geral, as variáveis relativas ao trabalho da mãe – estatuto e horas
de trabalho – não parecem ser preditores directos das práticas maternas de mau trato e
negligência. Contudo, os resultados relativos às variáveis de satisfação e de recursos,
que predizem uma proporção de variância razoável das práticas abusivas, salientam a
importância que estas têm na parentalidade, quer através dos efeitos de moderação, quer
através dos efeitos directos.
Relativamente às práticas maternas de mau trato foram encontrados três efeitos de
moderação: dois da satisfação com o estatuto e horas de trabalho, e um dos recursos com o
estatuto, e ainda efeitos directos das atribuições internas. Estes resultados sugerem que as
mães que trabalham fora de casa e dedicam mais tempo ao trabalho, quando insatisfeitas
com a situação, são mais vulneráveis às práticas de mau trato. Por outro lado, são também
as mães domésticas com fracos recursos, e as que investem pouco na área do trabalho
que parecem ser também mais vulneráveis a este tipo de práticas.
O padrão de relações entre o trabalho das mães e as práticas negligentes é bem
diferente do anterior. Não só a situação socioeconómica baixa da família parece ser
um factor determinante da negligência, como após o controlo desta variável, os efeitos
Este efeito de interacção mantém-se tendencialmente significativo F (1,97)= 3.08, p= .08, mesmo controlando
o efeito de interacção anterior.
3
36
Aletheia 37, jan./abr. 2012
observados revelam que não é a satisfação das mães que explicam a relação com os filhos,
mas sim as atribuições de controlo na resposta aos problemas. As atribuições relacionadas
com um elevado interesse, esforço e experiência na área do trabalho contribuem para
que, com o aumento de horas de trabalho, as mães se tornem mais negligentes. Pelo
contrário, as mães que não investem na sua situação profissional, negligenciam menos
os filhos à medida que o tempo dedicado ao trabalho aumenta. Por outro lado, quando
se considera o estatuto de trabalho das mães que pensam que as causas da sua situação
profissional estão fora do seu controlo, são as mães que não trabalham que são mais
negligentes com os filhos.
Discussão
A questão que motivou as análises que acabam de se relatar foi a de saber se seria
possível explicar as práticas maternas abusivas através dos contextos de trabalho da
mãe, a partir de uma hipótese geral – a de extravasamento – em que as circunstâncias
do sub-sistema de trabalho se transferem para o sub-sistema de relação pais-filhos.
A literatura mostra que o estatuto económico e profissional e as horas de trabalho
das mães são factores que interferem nos processos de parentalidade (e.g., Hoffman,
1989), pelo que importa explorar em que situações e vivências de trabalho as funções
maternas se tornam mais ou menos vulneráveis. Para isso analisou-se a avaliação da
satisfação e dos recursos maternos (pessoais, sociais e comunitários) disponíveis para
enfrentar as questões relacionadas com o estatuto de trabalho (e.g., Greenberger &
O`Neil, 1993).
De uma forma geral pode dizer-se que, se para algumas variáveis o padrão de
resultados obtidos é bastante semelhante, a especificidade da parentalidade abusiva
torna mais difícil enquadrar na literatura recenseada algumas das conclusões a que se
chegou. Em primeiro lugar, e contrariamente às referências clássicas da literatura que
descrevem os efeitos directos do estatuto de trabalho e do tempo dedicado ao trabalho
nas interacções pais-filhos, os resultados indicam um processo mais complexo de
relações destas variáveis com a parentalidade. Consonantes com o modelo proposto,
os resultados indicam que as variáveis de trabalho materno interferem na parentalidade
abusiva, mas somente em determinadas condições que variam em função da avaliação da
satisfação, dos recursos e das atribuições causais maternas sobre a situação de trabalho.
Quer isto dizer que as práticas abusivas estão associadas ao desemprego materno e ao
número excessivo de horas de trabalho, mas não de forma directa, como sugerido pela
maior parte da literatura referida (Hoffman, 1989). Por outro lado, os resultados estão
largamente de acordo com as propostas mais recentes de um conjunto de autores (e.g.,
Barnett, 1996; Greenberger & O`Neil, 1993; Grzywacz & Marks, 2000), que têm vindo
a mostrar, com populações sem risco, que os efeitos do trabalho na parentalidade estão
relacionados com a satisfação, percepção de recursos e de controlo sobre a situação.
Em suma, os resultados mostram, então, que o mau trato, a par das explicações
maternas de falta de capacidade, investimento e experiência, parece estar mais
relacionado com o desemprego materno e o número excessivo de horas de trabalho
da mãe quando estas avaliam, no primeiro caso, não ter recursos suficientes para
Aletheia 37, jan./abr. 2012
37
enfrentarem os problemas, e no segundo caso, quando avaliam estar insatisfeitas com
a situação profissional. A negligência aparece também relacionada com o desemprego
materno e o número excessivo de horas de trabalho da mãe, mas, no primeiro caso,
associado à falta de controlo sobre a situação para enfrentar os problemas e, no segundo
caso, quando avalia como causas principais da situação o investimento e a experiência
profissional para manter o estatuto de trabalho. Por outro lado, o tempo dedicado ao
trabalho parece aumentar o investimento parental, mas apenas nas situações em que as
mães não atribuem a si próprias os problemas de trabalho com que se deparam.
Enquadrados na literatura, estes resultados parecem confirmar o papel da falta
de recursos e da insatisfação com o trabalho como particularmente disruptivo nas
relações mãe-filhos como defende Hoffman (1989), embora, o baixo nível de controlo
apareça associado a resultados na negligência que parecem mais difíceis de enquadrar
na literatura recenseada. Pois, enquanto Grzywacz e Marks (2000) refere que o baixo
nível de controlo está associado a mais consequências negativas do trabalho na família,
os resultados aqui obtidos não confirmam este extravasamento negativo nas mães que
trabalham, mas sim nas domésticas e desempregadas. De forma consistente com a
mesma revisão de literatura, o autor salienta que, quanto mais baixa é a pressão e maior
o controlo no trabalho, menor é o extravasamento negativo do trabalho para a família
(e.g., Grzywacz & Marks, 2000).
Contudo, os nossos resultados indicam que as mães, mesmo com controlo,
face a pressão elevada (horas de trabalho) aumentam a frequência e gravidade da
negligência. Por sua vez, a hipótese de que os pais com baixo envolvimento no
papel profissional estão mais investidos no papel parental, não confirmada no estudo
de Silverberg e Steinberg (1990), também não é confirmada no nosso modelo com
mães negligentes, uma vez que estas, apesar das horas de trabalho, desde que não se
considerem cognitivamente envolvidas (fazem atribuições externas) parecem aumentar
o investimento na parentalidade. Tomados em conjunto, estes dois últimos resultados
sugerem que o nível de orientação das mães negligentes para o trabalho fora de casa
pode ser um moderador crucial dos efeitos do trabalho na parentalidade, embora
seja necessário distinguir os aspectos funcionais (horas de trabalho) dos aspectos
motivacionais. As mães com elevado envolvimento funcional e motivacional parecem
negligenciar mais os filhos do que as mães com um envolvimento funcional elevado,
mas que não estão emocionalmente envolvidas no trabalho.
Os resultados foram obtidos num contexto cultural particular (o Português),
embora haja sinais de que é um tópico de crescente interesse também no Brasil (e.g.,
Faria & Rachid, 2007). A investigação neste domínio tem mostrado que o stress familiar
é um importante preditor do extravasamento trabalho família tanto em Portugal como
no Brasil, mas que pode revestir contornos diferentes nas duas culturas (Fontaine et
al., 2009), pelo que as diferenças culturais deverão ser analisadas.
O padrão de resultados que emergiu também dá suporte à perspectiva ecológica
da interface trabalho-família. Consistente com os modelos ecológicos e de stress, os
resultados obtidos confirmam que factores pessoais, da situação de trabalho e da família
influenciam o extravasamento da área profissional para a parentalidade.
38
Aletheia 37, jan./abr. 2012
Implicações
Tomados em conjunto, os resultados deste estudo, embora definam processos mais
complexos do que os observados na investigação desenvolvida com amostras de mães sem
risco, sugerem que o nível de orientação, recursos e satisfação com a situação profissional
são moderadores cruciais dos efeitos do trabalho na parentalidade e que, em geral, as
hipóteses sobre os efeitos positivos do aumento de recursos, em vez da sua escassez, são
uma área importante na intervenção comunitária com famílias abusivas.
O foco nas percepções das mães sobre os diferentes contextos socioecológicos,
profissionais e familiares deve ser particularmente importante nas políticas de intervenção
com a pobreza, a família e a educação, no sentido de mover as famílias do desemprego
e rendimento mínimo, da dependência e dos contextos da violência, para o trabalho, a
autonomia e bem-estar. Tendo como objectivo diminuir o extravasamento negativo do
trabalho (desemprego/pressão do trabalho) para a família e vice-versa, e destes para a
parentalidade, deverão ser pensados programas comunitários que promovam a inserção
profissional, associados à implementação de relações sociais de suporte (em comunidades
com infantários, por exemplo), com horários flexíveis, focalizados na redução da pressão,
construindo meios profissionais, familiares e comunitários que possam beneficiar as mães
nas diferentes esferas de vida. A disponibilidade de serviços sociais, de saúde e educativos
na comunidade, assim como o suporte social informal, são cruciais quando as experiências
de vida negativas passadas e presentes são tão características nestas famílias.
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Aletheia 37, jan./abr. 2012
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_____________________________
Recebido em julho de 2012
Aceito em novembro de 2012
Maria Manuela Calheiros – Centro de Investigação e Intervenção Social (CIS), ISCTE – Instituto Universitário
de Lisboa.
Maria Luísa Lima – Centro de Investigação e Intervenção Social (CIS), ISCTE – Instituto Universitário de
Lisboa.
Carla Silva – Centro de Investigação e Intervenção Social (CIS), ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa.
Endereço para contato: [email protected]
Aletheia 37, jan./abr. 2012
41
Aletheia 37, p.42-56, jan./abr. 2012
A violência familiar como fator de risco para o bullying
escolar: contexto e possibilidades de intervenção
Lélio Moura Lourenço
Luciana Xavier Senra
Resumo: A violência doméstica (VD) ou familiar afeta a população mundial prejudicando a saúde,
liberdade e bem-estar de indivíduos, famílias e comunidades. O bullying, um tipo de violência
escolar, envolve comportamentos agressivos intencionais e repetitivos, físicos e psicológicos entre
pares, visando prejuízo daquele percebido como frágil e indefeso. Pode relacionar-se às diversas
experiências familiares e comunitárias. Realizou-se uma revisão de literatura com busca eletrônica
pelos descritores bullying, violência doméstica e violência intrafamiliar nas bases Web of Science,
Medline, PsycInfo, Dialnet e Redalyc, que tratassem da VD como fator de risco para bullying.
Considerou-se autor, periódico, ano, metodologia e impactos desencadeados. Selecionaram-se 59
artigos. Os países mais produtivos foram EUA (50.85%) e Espanha (25.42%); 35.56% dos artigos
apontaram a vítima de VD como vítima-agressora de bullying; e que os prejuízos e mais comuns
são danos físicos, psicológicos, comportamentais e sociais para crianças e adolescentes, como
apontaram 33.9% das publicações.
Palavras-chave: violência doméstica ou familiar, bullying, revisão sistemática.
Family violence as a risk factor for school bullying: Context and
possibilities for intervention
Abstract: Domestic violence (DV) or family violence affects the world population impairing the
health, freedom and well-being of individuals, families and communities. Bullying, a kind of school
violence, physical and psychological behavior involves intentional repetitive and aggressive peer,
thereby causing damage to that perceived as weak and helpless. Can you relate to the different
experiences of family and community. A review of the literature with keywords bullying, domestic
violence and bullying intrafamilial violence with electronic search in electronic databases Web of
Science, Medline, PsycInfo, and Dialnet Redalyc, which treat DV as a risk factor for bullying. It
was considered the author, journal, year, the methodology and the impacts. 59 articles were selected.
The most productive countries were USA (50.85%) and Spain (25.42%). 35.56% of the articles
point the DV’s victim as victim-aggressor of the bullying, and that the losses are the most common
physical, psychological, and behavioral and social consequences for children and adolescents, as
indicated 33.9% of the publications.
Keywords: domestic or family violence, bullying, systematic review.
La violencia familiar como factor de riesgo para el bullying escolar:
contexto y posibilidades de intervención
La violencia doméstica (VD) o familiar afecta la populación mundial perjudicando la salud, la
libertad y en bienestar de individuos, familias y comunidades. El bullying, un tipo de violencia
escolar, involucra comportamientos agresivos intencionales y repetitivos, físicos y psicológicos
entre pares, visando prejuicio de aquel percibido como frágil y indefenso. Tal fenómeno puede
relacionarse a las diversas experiencias familiares y comunitarias. Fue realizada una revisión de
la literatura con busca electrónica utilizándose los descriptores bullying, violência doméstica e
violência intrafamiliar en las bases de datos Web of Science, Medline, PsycInfo, Dialnet y Redalyc,
que tratasen de la VD como factor de risco para bullying. Como variables fueron consideradas autor,
periódico, ano, metodología e impactos desencadenados. Fueron elegidos 59 artículos. Los países
más productivos fueron EUA (50.85%) y España (25.42%); 35.56% de los artículos indicaron la
víctima de VD como víctima-agresora de bullying; y que los prejuicios más comunes son daños
físicos, psicológicos, comportamentales y sociales para niños y adolescentes, como apuntaran
33.9% de las publicaciones.
Palabras clave: violencia doméstica o familiar, bullying, revisión sistemática.
Introdução
A violência é definida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como “o
intencional uso da força física ou do poder, em ameaça ou real, contra si próprio, outra
pessoa, contra um grupo ou comunidade, que resulte ou tenha probabilidade de resultar
em injúria, morte, dano psicológico, privação ou prejuízos no desenvolvimento” (Krug ,
Dahlberg, Mercy, Zwi, Lozano , 2002, p.5). Prioridade nas ações da OMS, o fenômeno
tem sido considerado um problema de saúde pública global a partir do reconhecimento
das suas sérias implicações de curto e longo prazo para a saúde, para o desenvolvimento
psicológico e social de indivíduos, famílias e comunidades.
O estudo da violência familiar ou doméstica cometida por membros
constituintes de uma família ganhou destaque no meio acadêmico há cerca de três
décadas devido às repercussões e prejuízos desencadeados às vítimas. Lourenço,
Cruvinel, Almeida e Gebara (2010), Gebara (2009) e Krug et al. (2002) mencionam
que mesmo havendo déficit de dados relativos a esse problema, alguns estudos
atribuem às modalidades de violência que acontecem em ambiente familiar como
possíveis responsáveis pela maioria dos atos violentos que configuram os índices
de morbi-mortalidade.
Reichenheim et al. (2011), no relatório sobre violência e lesões no Brasil,
corroboram os estudos citados ao afirmarem que há carência de dados pertinentes às
situações de violência doméstica-VD/familiar no Brasil e afirmam que isso contribui
significativamente para o aumento das taxas de morbidade relacionada à violência.
Esses autores apontam que a VD é um grave problema de saúde pública também em
âmbito nacional, acometendo crianças, adolescentes e idosos com situações de violência
física e psicológica.
O fenômeno da violência doméstica-VD e/ou familiar, exige dedicação à sua
definição tanto quanto a violência de modo geral para as temáticas de intervenção em
torno dessa subcategoria de violência. Dessa maneira, vale destacar que a definição de
VD consiste em “todo ato ou omissão cometido por um membro da família em uma
posição de poder, independentemente de onde ocorra, que prejudique o bem-estar físico
ou a integridade psicológica, ou a liberdade e o direito ao desenvolvimento integral
de outro membro da família” (Shrader & Sagot, 2000, p.10).
Senra, Almeida e Lourenço (2011) ressaltam que essa definição evidencia a
necessidade do tema ser estudado de distintas maneiras, seja com foco social, da saúde
e/ou da educação, bem como através da interrelação desses seguimentos com finalidade
Aletheia 37, jan./abr. 2012
43
de intervenção. No entanto, mesmo existindo várias definições e compreensões do
fenômeno de violência, com suas consequentes divergências de acordo com o que já
foi colocado, é sabido que todas as implicações de um ato de violência colocam os seres
humanos em condições de vítimas, autores e/ou testemunhas de tal ato.
A violência que ocorre no ambiente doméstico/familiar entre parceiros íntimos e
contra crianças, adolescentes e idosos, tem sido significativamente destacada no cenário
da saúde pública brasileira. Reichenheim et al. (2011) mostram que no Brasil a VD é
um grave problema de saúde pública devido as altas taxas de maus tratos infantis, em
relação às crianças e aos adolescentes, sobretudo os abusos físicos e a negligência. Os
números revelam que a prevalência encontrada nos últimos quinze anos quanto ao abuso
físico foi considerada alta (15,7%) mesmo se comparada à países como Índia (36%),
o Egito (26%) e as Filipinas (37%), pois em países da América como Chile e EUA, as
prevalências no mesmo período foram, respectivamente, 4% e 4,9%.
O relatório Violência e Lesões no Brasil feito por Reichenheim et al. (2011)
mostrou ainda, que as estimativas brasileiras para a violência entre parceiros íntimos
também foram superiores e que propiciam graves prejuízos à saúde da mulher e das
crianças e adolescentes que vivem e/ou presenciam esse contexto. As consequências
vão de arranhões ao óbito expressos pelas diferentes manifestações da violência,
demandando alternativas por parte dos serviços sociais e de saúde.
No que se refere à vitimização de crianças e adolescentes, sujeitos considerados
mais vulneráveis por ainda estarem em desenvolvimento, Oure e Calvette (2012),
Lourenço, Salgado, Amaral, Gomes e Senra (2011), O’Donnel, Moreau, Cardeml e
Pollastri (2010), Whiteside-Mansell, Bradley, McKelvey e Fussell (2009), Sani (2008)
e Baldry (2003) evidenciaram que aqueles expostos à violência doméstica ou familiar,
pela simples presença no contexto de conflitos, apresentam sérios problemas sociais e de
saúde física e mental. Dentre eles: traumas no aparelho músculo esquelético; sintomas
depressivos; baixa estima por si mesmos; transtorno de stress pós-traumático; problemas
de ajustamento e conduta; agressividade; e, problemas no desempenho acadêmico e
escolar, e até conduta aditiva (consumo precoce de álcool e drogas ilícitas e uso de
tabaco). Vale ressaltar que os efeitos dos traumas físicos citados tendem a deixar marcas
visíveis na pele e no sistema musculoesquelético. De uma maneira menos tangível,
esses estudos mostraram associações entre abuso infantil e transtornos psiquiátricos
em geral, tais como o uso de drogas, depressão, transtornos de conduta, agressividade
e comportamento transgressor na idade adulta.
No Brasil, é possível estimar que 600 mil crianças e adolescentes sejam vítimas
de diversas formas de violência doméstica (VD) e/ou intrafamiliar. Independente de
tais formas, o impacto é decorrente de situações diretas e/ou indiretas de violência,
seja a vitimização por exposição à VD, abuso ou negligência, ou a imposição de
condutas agressivas e violentas diante de outras pessoas. Sobre a exposição (ver, ouvir
e conviver) à violência intrafamiliar, vale apontar que ela é tratada como uma forma
de abuso psicológico que prejudica o desenvolvimento do self e da competência social
da criança (Gabatz, Neves, Beuter & Padoin, 2010; Biscegli, Arroyo, Halley & Dotoli,
2008; Sani, 2008).
44
Aletheia 37, jan./abr. 2012
Considerando as referidas características e impactos para os envolvidos no
contexto de violência interpessoal, sobretudo na família, Pinheiro e Williams (2009),
Antunes e Zuin (2008) e Pereira (2006) apresentam estudos relativos a outra modalidade
de violência interpessoal, a violência escolar. De acordo com esses autores, ela envolve
comportamentos agressivos e antissociais, incluindo danos ao patrimônio e, sobretudo,
conflitos interpessoais, os quais tem sido objeto de importantes estudos nos Estados
Unidos, Europa, Japão e Brasil. Essa modalidade de violência escolar em tais estudos
é denominada bullying, ou seja, “agressividade entre pares de forma continuada e
intencional (...) usualmente maldosa e persistente podendo durar semanas, meses ou
anos e as vítimas estão normalmente em situação em que é difícil defenderem-se.”
(Pereira, 2006, p.45; Olweus, 1977).
Pinheiro e Williams (2009) e Pereira (2008) ressaltam o bullying como uma das
formas de violência escolar por envolver conflitos interpessoais entre colegas de maneira
que um ou mais alunos intimidam e agridem física e/ou psicologicamente seus pares,
repetidamente e por um determinado período de tempo. Esses atos de intimidação e
agressão do bullying são identificados pela intencionalidade das ações de magoar e
ferir outra pessoa que seja vítima e alvo de comportamento e atos agressivos, como,
por exemplo, bater, empurrar, tirar dinheiro, chantagear e ameaçar, atribuir apelidos
pejorativos, humilhar, chamar nomes (xingamentos), excluir, rejeitar e ignorar o
colega, etc. Nas palavras de Pereira (2008, p.18), “é a intencionalidade de fazer mal e
a persistência de uma prática a que a vítima é sujeita o que diferencia o ‘bullying’ de
outras situações ou comportamentos agressivos”.
Bandura, Azzi e Pollydoro (2008) e Bandura, Ross e Ross (1961), afirmam que
crianças e adolescentes podem aprender por observação e através de imitação de modelos
cognitivos e de condutas parentais (ou não), a agressão física e verbal pela simples
repetição do que foi observado. Ao compararem grupos expostos à agressividade, a
não agressividade e ao controle, os escores de imitação da agressão física e verbal
eram maiores para os grupos diretamente expostos aos modelos agressivos do que para
aqueles que não presenciaram um modelo agressivo, sendo ainda maiores os escores
relacionados aos modelos masculinos de agressividade. Isto é, os meninos tendem a
reproduzir mais facilmente um modelo de agressividade física, enquanto as meninas
repetem mais facilmente um modelo de agressividade verbal, o que não é muito comum
entre os meninos.
Pinheiro e Williams (2009), Antunes e Zuin (2008) e Pereira (2008; 2006) salientam
a característica multifatorial do bullying. Tais fatores podem ser socioeconômicos,
culturais, o temperamento do indivíduo e as influências de familiares, colegas e da
comunidade. Além desses, sobretudo, as relações de desigualdade de poder em casa/
família e na escola, a ausência de coesão, a ambivalência no envolvimento emocional
com pais, irmãos e colegas, com clima emocional frio e assimétrico. As relações de
desigualdade de poder na família revelam um lar com cotidiano hostil e permissivo
em que há uso de violência como forma de disciplina, sem quaisquer habilidades para
resolução de conflitos, o que leva as crianças e adolescentes reproduzirem tais condutas
com colegas e professores.
Aletheia 37, jan./abr. 2012
45
As formas mais comuns de ocorrência do bullying evidenciam a violência
doméstica e/ou familiar como fator de risco para essa modalidade de violência escolar,
que foi também estudada por Baldry (2003). Através do estudo, a autora constatou
que os agressores (bullies) possuíam pais conflitantes e autoritários, o que a permitiu
constatar que lares violentos são fatores de risco significativos para o desenvolvimento
de comportamentos antissociais e de bullying.
O presente estudo objetivou realizar uma revisão sistemática da literatura para
o levantamento de artigos científicos indexados em bases de dados que tratassem da
contextualização da violência familiar ou doméstica como fator de risco para o bullying
escolar, a fim de traçar algumas possibilidades de novos estudos e intervenções frente
às essas variáveis.
Especificamente, objetivou: (a) verificar a frequência de países, periódicos,
base de dados, metodologias usadas, palavras chave e a autoria das publicações sobre
a temática; (b) identificar os papéis de atuação (expectador/observador, vítima e
agressor) de crianças e adolescentes nos contextos de violência familiar ou doméstica
e de envolvimento em bullying relatados nas publicações; (c) identificar e quantificar
os tipos de impactos da violência familiar ou doméstica e do bullying ressaltados pelas
publicações; e (d) discutir e avaliar as constatações enumeradas pela pesquisa, e delinear
algumas possibilidades de intervenção para a temática em estudo.
Método
A revisão sistemática da literatura, realizada através de pesquisa Bibliométrica
no presente estudo, foi realizada mediante uma busca eletrônica de artigos indexados
em bases de dados, procurando identificar publicações num período de oito anos que
tratassem da violência familiar como fator de risco para a ocorrência de bullying escolar.
Foram selecionados estudos dos últimos oito anos (2005-2012), pela necessidade de se
considerar uma fonte de literatura científica mais atual sobre o tema.
Para análise das publicações foram utilizadas metodologias de pesquisa qualitativa
e quantitativa. Essas metodologias são complementares quando se objetiva descrever e
conhecer um dado fenômeno e seu contexto. No estudo qualitativo foram analisados,
com processamento de dados no software Excel, os resultados identificados nos artigos
que evidenciassem a VD como fator de risco para o bullying escolar, o papel de atuação
de crianças e adolescentes nos contextos de violência doméstica e de bullying e os
tipos de impactos e prejuízos desencadeados para os envolvidos. Quanto aos dados
quantitativos procurou-se investigar, por meio da técnica da análise de conteúdo, a
frequência de: a base de dados, autoria, países, periódicos e ano das publicações,
metodologia e tipos de impactos da violência doméstica e do bullying salientados nos
artigos para as crianças e adolescentes (Reveles & Takahashi, 2005).
Etapas para coleta e análise de dados
Etapa I – A coleta de dados foi pelo meio de busca eletrônica através da
associação dos descritores bullying domestic violence e bullying intrafamilial violence
46
Aletheia 37, jan./abr. 2012
nos bancos de dados das seguintes bases: (a) Web of Science (base multidisciplinar, que
agrega conteúdos das revistas de maior impacto acadêmico em diversos seguimentos
acadêmicos), (b) Medline (reúne publicações das ciências da saúde em geral por
compor a biblioteca virtual em saúde), (c) Dialnet (base ibérica multidisciplinar
composta por revistas e jornais de universidades portuguesas e espanholas, de grande
impacto na comunidade científica europeia), (d) Redalyc (rede de revistas científicas
da América Latina e Caribe, Portugal e Espanha), e (e) PsycInfo (reúne literatura do
campo psicológico, vinculada a American Psychological Association). As referidas
bases foram escolhidas para serem abarcadas publicações oriundas de diversos países
com intuito de identificar o impacto da temática em estudo em âmbito mundial. Os
descritores foram utilizados no idioma inglês por serem comuns aos dicionários de
termos de busca em cada uma dessas bases.
Foram selecionados os artigos do período de 2005 a 2012 (primeiro semestre),
observando, autor, país, periódico, ano da publicação, metodologia de estudo e tipos
de impacto da violência doméstica e do bullying para as crianças e adolescentes e seus
respectivos papeis de atuação nos fenômenos mencionados. Incluíram-se as publicações
que continham os referidos descritores no título e abstract. Excluíram-se livros, capítulos
de livro, monografia e teses.
Etapa II – associação dos dados identificados e quantificados quanto aos tipos de
impactos da violência familiar ou doméstica e do bullying ressaltados pelas publicações
para discussão e avaliação desses novos dados enumerados, visando o delineamento
de algumas possibilidades de intervenção para a temática em estudo.
Resultados
De acordo com a busca realizada, foram catalogados 381 artigos e selecionados
59 no período entre 2005 e 2012 (primeiro semestre). Considerando a produção por
ano, observou-se a seguinte indexação: 2005(3); 2006(3); 2007(8); 2008(7); 2009(7),
2010 (17), 2011(11) e 2012(3). No que se refere às indexações por países, os Estados
Unidos (50.85%) e a Espanha (25.42%) se destacaram com o maior percentual de
artigos produtivos em todo o período. O Brasil e a Finlândia, cada um, ficou com
5.08% do total publicado e analisado. Portugal, México e Colômbia representaram
individualmente 3.39%, enquanto Reino Unido e Suíça apresentaram menores
percentuais de produtividade, ambos atingiram juntos 3.38% das publicações no
período.
Dentre os periódicos, aqueles que apresentaram maior frequência nas publicações
entre 2005 e 2012 (primeiro semestre) foram Journal of School Violence (13.56%),
Aggression and Violent Behavior (6.78%), Pediatrics (6.78%) e School psychology
quarterly (6.78%), sobre os quais é apresentada uma breve descrição.
O Journal of School Violence é um periódico dedicado às publicações sobre
pesquisas e intervenções realizadas no ambiente escolar que visem identificar e inibir
situações de violência. Ele está indexado principalmente na PsycInfo. O Aggression
and Violent Behavior é um periódico indexado nas bases Web of Science voltado
Aletheia 37, jan./abr. 2012
47
para publicação de pesquisas e intervenções de cunho clínico sobre as temáticas de
agressão e violência de modo geral. O Pediatrics é um jornal da Academia Americana
de Pediatria, indexado nas bases Web of Science, Medline e PubMed e com publicações
dedicadas à saúde física e psicológica de crianças e adolescentes. O School Psychology
Quarterly abarca as publicações da divisão de psicologia escolar da Associação
Americana de Psicologia e é direcionado para a divulgação de pesquisas empíricas
cujo objetivo principal seja intervir e prevenir situações de violência e agressão em
contexto escolar. Os demais periódicos evidenciaram, cada um, percentuais de 5.08%
(3), 3.39%(2) e 1.69%(1) do total de artigos analisados no presente estudo, conforme
pode ser verificado na Tabela 1.
Em relação aos autores, aqueles que mais publicaram no período em estudo
foram: Arseneault, L., Finkelhor, D., Ormrod, R. e Turner, H., cada um com 5.08%
(3) do total de artigos. Bowes, L., Noret, N., Poteat, V.P. e Rivers, I. foram autores
que representaram, individualmente, 3.39% (1) do total de publicações analisadas.
Os demais se equipararam num mesmo percentual, 1.69%, cada um com apenas uma
publicação em todo o período.
No que concerne às metodologias explicitadas e descritas pelos artigos
analisados, verificou-se a predominância das pesquisas transversais 27.12% (16) e
qualitativas 22.03% (13) sobre temática. Foram também identificados estudos de
surveys (15.25%), revisão sistemática da literatura (13.56%), longitudinais (5.08%),
coorte (5.08%), correlacionais (5.08%), documentais (3.39%) e comparativos
(3.39%).
Referente aos papéis de atuação de crianças e adolescentes nas situações de
violência doméstica (VD) ou familiar e bullying constatou-se que em 35.59% (21)
das publicações que a atuação era como vítimas-agressoras de bullying quando pelo
menos presenciavam (vítima indireta) situações de violência doméstica; em 25.43%
(15) eram bullies (agressores de bullying) quando vítimas diretas de VD; em 15.25%
(9) dos artigos eram vítimas de bullying quando vítimas diretas e/ou indiretas de
violência doméstica ou familiar; em outros 15.25% (9) eram, simultaneamente,
vítimas diretas de VD e de bullying; e em 8.47% (5) eram vítimas diretas de VD e
agressoras de bullying.
Em relação aos tipos de impactos da violência doméstica ou familiar e do bullying
para crianças e adolescentes (Tabela 2) em 28.81% dos artigos selecionados foram
verificados problemas sociais e de conduta que envolvem: movimentos corporais
tensos, choro, comprometimento das relações interpessoais e das habilidades sociais,
repetição intencional de condutas violentas e agressivas (bullying) e problemas no
desempenho acadêmico e escolar. Em 23.73% possuem algum problema fisiológico
relacionado a condições cardíacas, dores de cabeça, transtornos do sono e distúrbios
alimentares.
48
Aletheia 37, jan./abr. 2012
Tabela 1 – Publicações por periódicos no período entre 2005 e 2012 (primeiro semestre).
Periódico
N
%
Journal School of Violence
8
13,56
Aggression and Violent Behavior
4
6,78
Pediatrics
4
6,78
School psychology quarterly
4
6,78
Education Psychology Review
3
5,08
International Journal of Psychology
3
5,08
American Journal of Preventive Medicine
2
3,39
Child Abuse & Neglect
2
3,39
Child Psychiatry Human Development
2
3,39
Health & Social Care in the Community
2
3,39
International Journal Offender The Comp Criminology
2
3,39
Journal of the American Academy of child and adolescent Psychiatry
2
3,39
Journal of Urban Health
2
3,39
Nursing Clinics
2
3,39
Psychology, Public Policy
2
3,39
Revista Iberoamericana de Educación
2
3,39
Anales de Psicología
1
1,69
British journal of psychiatry
1
1,69
Child maltreatment
1
1,69
Human Resources Health
1
1,69
Human Studies
1
1,69
International journal of psychology and psychological therapy
1
1,69
Journal of applied developmental psychology
1
1,69
Journal of Centers for Diseases Control and Prevention
1
1,69
Journal Schoolar and Health
1
1,69
Psicothema
1
1,69
Psychological Medicine
1
1,69
Scandinavian Journal of Caring Sciences
1
1,69
Swiss Journal of Psychology
1
1,69
59
100
O maior percentual refere-se aos problemas psicológicos desencadeados pelo
contexto de violência doméstica ou familiar vivenciados simultaneamente com o bullying
Aletheia 37, jan./abr. 2012
49
(Tabela 2). Do total de artigos analisados, 47.46% salientam prejuízos para crianças e
adolescentes que consistem em reações de evitação, baixa estima por si mesmo, medos,
insegurança, ansiedade, depressão, transtorno de stress pós-traumático, ambivalência de
sentimentos, percepção distorcida de si mesmo; uso de substâncias psicoativas (álcool,
tabaco). Ademais, as publicações relataram, de maneira geral e em sua maioria, a
ocorrência simultânea dos impactos e prejuízos e até de todos os tipos de problemas em
concomitância, considerando a gravidade, seja do contexto de bullying e/ou violência
doméstica ou familiar como demonstrado a Tabela 2.
Tabela 2 – Tipos de impactos da violência doméstica ou familiar e do bullying para crianças e adolescentes
destacados nas publicações.
N
%
Problemas psicológicos: reações de evitação, baixa estima por si mesmo, medos, insegurança, ansiedade, depressão, transtorno de stress pós-traumático, ambivalência de sentimentos, percepção distorcida de si mesmo; uso de substâncias psicoativas (álcool, tabaco)
20
33,90
Problemas de condutas e sociais: movimentos corporais tensos, choro, comprometimento
das relações interpessoais e das habilidades sociais, repetição intencional de condutas violentas e agressivas entre pares (bullying) e problemas no desempenho acadêmico e escolar
13
22,03
Problemas fisiológicos: cardíacos, dores de cabeça, desordens alimentares e transtorno do
sono
8
13,56
Problemas psicológicos, de condutas e sociais
6
10,17
Problemas fisiológicos, de condutas e sociais
5
8,47
Problemas psicológicos e fisiológicos
4
6,78
Todos os problemas
3
5,08
59
100
Esses dados evidenciaram, mais uma vez, o impacto provocado pelo fenômeno da
violência em diferentes contextos e, consequentemente, em quaisquer faixas etárias, com
danos para todos os envolvidos direta e/ou indiretamente, conforme é apresentado pela
Organização Mundial da Saúde-OMS (Krug et al, 2002).
Discussão
A pesquisa realizada legitimou os dados constatados na literatura no que
concerne a violência doméstica ou familiar enquanto fator de risco para a ocorrência
de bullying na escola. Inicialmente, isso foi verificado pelo aumento significativo
aumento do número de estudos com essa temática, como revelam os dados relativos
às publicações por ano no período analisado. Vale ressaltar que não se pode afirmar
que em 2012 houve um declínio dessas publicações por se tratar de uma análise que
compreende apenas o primeiro semestre.
50
Aletheia 37, jan./abr. 2012
Os dados referentes às metodologias utilizadas nos estudos explicitados nos
artigos podem indicar, devido à predominância dos estudos transversais (27.12%),
surveys (15.25%), qualitativos (22.03%) e de revisão de literatura (13.56%), que os dois
fenômenos possuem uma associação e que requerem uma descrição e compreensão mais
detalhada, específica e complexa já que o impacto de curto, médio e até longo prazo
na vida de suas principais vítimas (crianças e adolescentes) envolve os seguimentos
de saúde física e psicológica, além do social e a vivência em comunidade, conforme
foi evidenciado através dos resultados da tabela 2.
Os diversos estudos analisados por essa pesquisa, embora apontassem diferentes
objetivos de investigação, demonstram percentuais bastante significativos e comuns
entre eles, sobretudo no relato dos papéis de atuação nas situações de VD e de bullying,
corroborando a VD como um fator de risco. Isto é, nos estudos de prevalência, por
exemplo, vale destacar o de Bauer et al. (2006), publicado no Pediatrics, cujo N foi
igual a 112 indivíduos de ambos os sexos, com idades variando de 6 a 13 anos, e o
objetivo geral foi identificar o bullying e a vitimização em crianças que foram expostas
à violência por parceiros íntimos-IPV (sigla utilizada no inglês), através da utilização
da Escala Tática de Conflitos Revisada-2 (CTS-2).
Os resultados alcançados pelos referidos autores demonstraram que 61% das
crianças estavam em situação de bullying, 55% em situação de vitimização, e desses,
97% dos bullies (agressores) foram também vítimas de exposição à IPV. De acordo com
Bauer et al (2006), mesmo que tais resultados não explicitassem relação direta com a
IPV, as crianças que foram expostas a esse tipo de violência tendiam à externalização
de condutas agressivas com outras crianças, o que faz da violência entre parceiros
íntimos um fator de risco para situações de bullying.
Além do estudo mencionado, vale salientar também o de Rey e Ortega (2008), que
estimaram a prevalência de bullying e a coexistência com outras formas de violência
na Nicarágua. O estudo foi feito com amostra representativa de 2813 estudantes, sendo
que 55% deles eram mulheres e 45% homens que cursavam a escola secundária. O
instrumento utilizado foi o questionário de Olweus (1977) adaptado para esse país
por estes autores no ano de 2003 como o Questionário sobre Convivência, Violência
e Experiência de Risco-COVER.
Os dados da pesquisa de Rey e Ortega (2008) destacaram que a participação
perante o bullying ocorreu de três maneiras mais evidenciadas: (a) 12.4% vítimas;
(b)10.9% agressor e (c) 11.7% agressor vitimizado. Do percentual de vitimização, todos
relataram situações de abuso e maus tratos por parte de outras pessoas, principalmente do
contexto familiar. Em relação ao percentual de agressores também houve manifestação
da violência nas diferentes modalidades, ou seja, verbal, psicológica, física e social, e
principalmente maus tratos por parte dos pais. Isso aponta, mais uma vez, que violência
doméstica ou familiar é um fator de risco para o bullying.
As consequências e impactos da VD e do bullying podem ser identificadas em
diversos níveis da vida de uma criança e/ou adolescente. Constatou-se que o impacto
de tal relação traz prejuízos para a vida desses indivíduos, ocasionando, muitas vezes,
não apenas comprometimento da saúde psicológica e física, mas também das relações
Aletheia 37, jan./abr. 2012
51
interpessoais e sociais na família, na escola e na comunidade (Tabela 2). Isso aponta
para os fatores de risco associados a partir de dados de um estudo conduzido por
Reichencheim, Dias e Moraes (2006), o qual evidenciou que a associação de outros
fatores tais como idade da mulher (menor ou igual a 25 anos), homem com escolaridade
inferior a 8 anos, presença de crianças menores de 5 anos no domicílio, e abuso de álcool
e drogas ilícitas pelo companheiro aumentam consideravelmente o risco de ocorrência
da violência física entre parceiros e entre pais e filhos.
Dados do Centers for Disease Control and Prevention-CDC, divulgados em abril
de 2011 sobre uma pesquisa realizada nos Estados Unidos com 5.807 estudantes de cento
e trinta e oito escolas médias de Massachusetts, revelaram que tanto aqueles que eram
abusadores e vítimas de bullying estavam mais propensos ao suicídio e a cometerem atos
contra si mesmos em comparação com outros estudantes, o que corrobora os estudos
de Olweus (1978, 1977), quem identificou e caracterizou situações e comportamentos
agressivos intencionais e recorrentes entre pares no contexto escolar.
O referido estudo constatou também que tais estudantes estavam sujeitos a fatores
de risco como sofrer abuso por parte de um familiar e/ou serem testemunhas de violência
doméstica, e a terem prejuízos para a saúde mental com transtornos psicológicos
e envolvimento com consumo de substâncias. Os resultados amostrais revelaram
em números que a proporção de estudantes que recebiam maus tratos físicos de um
familiar, foi de 2,9 para as vítimas de bullying, 4,4 para os agressores e 5,0 para os que
eram tanto agressores como vítimas se comparados a outros estudantes. A proporção
de probabilidades de ser testemunha de violência doméstica foi, respectivamente, de
2,6; 2,9 e 3,9.
Embora o contexto familiar seja compreendido como o espaço primordial de
acolhimento e suporte para as crianças e adolescentes, nem sempre este cenário se
apresenta dessa forma, como nos casos em que este ambiente é marcado pelo fenômeno
da violência. Segundo o Ministério da Saúde brasileiro e a Fundação Oswaldo Cruz
(2010), a violência doméstica ou intrafamiliar está presente nas relações hierárquicas
e entre gerações caracterizadas por maneiras agressivas e violentas de a família se
relacionar e solucionar conflitos, bem como utilizada como estratégia de educação.
Inclui, também, a falta de cuidados básicos com os filhos e a exposição da criança
a situações violentas em casa, na escola, na comunidade ou na rua. Contudo, é
importante ressaltar que uma criança ou um adolescente pode ser afetado por mais de
uma modalidade de violência, especialmente, em situações crônicas e graves, mesmo
porque muitas destas situações se relacionam.
O envolvimento com a violência de figuras tão significativas (familiares) para
a criança, como os pais, responsáveis originalmente pelo seu acolhimento e proteção
e com as quais se identifica, suscita diferentes reações na mesma. Ela pode assumir
uma postura passiva diante dessa realidade ou ativa, buscando interferir de maneira
que a situação seja interrompida. Isto acontece de acordo com a forma como a criança
constrói no seu psiquismo os significados e as representações sobre a experiência
vivenciada, por meio de recursos próprios. Neste sentido, os estudos evidenciados
pela pesquisa salientaram também que não serão todas as crianças vítimas diretas e/ou
indiretas da violência doméstica e/ou intrafamiliar que responderão negativamente e/
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Aletheia 37, jan./abr. 2012
ou estarão necessariamente envolvidas em contextos de bullying, visto que a presença
de apoio somado a fatores de proteção podem exercer um papel fundamental. Dentre
estes, destacam-se: o ambiente escolar, o relacionamento com a vizinhança, o suporte
advindo de demais membros familiares, entre outros (Venturini; Bazon & BiasoliAlves, 2004).
Pinheiro e Williams (2009), Bauer, Herrenkohl e Lozano (2006) destacaram que
a violência doméstica ou familiar enquanto fator de risco para a ocorrência de bullying
pode ser identificada a partir do aumento de situações de violência escolar. De acordo
com esses autores, esse tipo de violência caracteriza-se por condutas agressivas e
antissociais que acontecem na escola, incluindo conflitos interpessoais, que nos últimos
anos tem desencadeado ocorrências mais graves como o uso de arma de fogo e até
homicídios, além de agressões a professores e demais funcionários, ou envolvimento
em grupos característicos do fenômeno da violência em ambiente urbano como as
denominadas gangues (ou “bondes” conforme a variabilidade dos jargões regionais).
Segundo Sani (2008), não é possível estabelecer um modelo reativo da criança
à violência doméstica, ocorrendo, inclusive, reações bastante divergentes. Contudo,
diversos fatores podem auxiliar na compreensão desse impacto, tais como: idade,
gênero, frequência, intensidade e severidade dos conflitos, sua resolução, as formas de
expressão da violência, o suporte social e comunitário. O conhecimento dessa realidade
é essencial para que melhores formas de prevenção e minimização dos efeitos negativos
possam ser determinadas.
Além disso, para que o impacto da VD e do bullying sobre crianças e adolescentes
seja avaliado, é necessário o entendimento de que a infância e a adolescência são
etapas da vida extremamente delicadas e importantes, que requerem significativos
investimentos afetivos e de suporte social. Os cuidados prestados pela família, por outros
grupos sociais e instituições às crianças e adolescentes, influenciarão significativamente
na sua possibilidade de sobrevivência e de bem-estar. Servirão também como uma
espécie de espelho de valores no qual ela vai se refletindo e formando suas ideias sobre
si mesma, sobre o outro e sobre o mundo em que vive (Deslandes, Assis & Santos,
2005).
Como possibilidades de intervenção, os estudos destacados na presente revisão de
literatura enumeram: (a) a descrição e delimitação dos fenômenos e dos contextos em
que eles estão presentes; (b) a participação ativa dos envolvidos (vítimas e agressores)
e de sua rede de suporte afetivo para a tomada de decisões e estabelecimento de
estratégias que atenuem e amenizem os impactos e prejuízos; (c) o envolvimento de
profissionais de diversos seguimentos (saúde, educação, assistência social e jurídico)
para efetivação de trabalhos interdisciplinares e com funcionamento na modalidade de
rede de assistência (Voisin & Honge, 2012; Mustanoja, Luukkonen, Hakko, Rasanen,
Saavala & Riala, 2011; Ali, Swahn & Sterling, 2011).
Considerações finais
Diante desses dados, salienta-se que estudos com metodologias quantitativas
(estudos transversais e de levantamento, por exemplo) e qualitativas (estudo de casos
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53
clínicos ou grupos focais), são fundamentais para a continuidade de pesquisa como
sugerem as análises do presente estudo, bem como para o urgente delineamento de
estratégias de intervenções comunitárias, já que a violência doméstica ou familiar
e o bullying são fenômenos que interferem negativamente também na convivência
interpessoal e de grupos na família, na comunidade e na escola, como revelam os
relatórios de violência no Brasil divulgado em 2011 e sobre bullying em 2010.
Dessa forma, quaisquer abordagens profissionais, preventivas ou de intervenção,
devem ser efetivadas e consideradas sempre de modo interdisciplinar, acrescentando
aí também a importância da intersetorialidade, para que o trabalho se configure como
uma rede de proteção, assistência, estratégias educacionais e pedagógicas articuladas
e metodologicamente definidas com objetivo promover bem estar e qualidade de
vida a todas as crianças e adolescentes personagens da relação Bullying-Violência
Doméstica.
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_____________________________
Recebido em agosto de 2012
Aceito em setembro de 2012
Lelio Moura Lourenço – Professor Associado da Universidade Federal de Juiz de Fora. Doutor em Psicologia
Social PUC SP; Líder do Núcleo de Estudos em Violência e Ansiedade Social (NEVAS).
Luciana Xavier Senra – Mestre em Psicologia pelo PPG PSI da Universidade Federal de Juiz de Fora; Membro
do Núcleo de Estudos em Violência e Ansiedade Social (NEVAS).
Endereço para contato: [email protected]
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Aletheia 37, jan./abr. 2012
Aletheia 37, p.57-72, jan./abr. 2012
Fortalecendo redes sociais: desafios e possibilidade na
prevenção ao uso de drogas na atenção primária à saúde
fortalecendo redes sociais
Fernando Santana de Paiva
Pedro Henrique Antunes da Costa
Telmo Mota Ronzani
Resumo: O presente estudo procurou levantar desafios e possibilidades da incorporação das redes
sociais no processo de implementação de ações preventivas ao uso de drogas na Atenção Primária à
Saúde (APS). Trata-se de uma pesquisa-intervenção empregando as seguintes técnicas de coleta de
dados: observação participante, grupo focal com atores comunitários e entrevistas semiestruturadas
com gestores de saúde. Os dados foram analisados a partir da análise de conteúdo. Os resultados
foram agrupados em duas categorias: “Redes de Saúde e Drogas” e “Redes Sociais e Drogas”.
A rede de saúde e drogas foi entendida a partir de sua desarticulação, sua função pedagógica e a
concepção idealizada sobre a noção de rede. Em relação às redes sociais e drogas, observou-se uma
ausência de participação e mobilização social dos sujeitos coletivos no debate em torno das ações
e políticas locais. A pesquisa aponta para as ações preventivas ao uso de drogas onde o trabalho se
organiza em um modelo fragmentado, sem incorporar e fortalecer as potencialidades comunitárias
no que se refere ao enfrentamento dos problemas de saúde.
Palavras-chave: saúde comunitária, rede social, assistência à saúde.
Strengthening social networks: Challenges and opportunities preventing
the use of drugs in primary health care
Abstract: The present study sought to raise challenges and possibilities of incorporating social
networks in the implementation of preventive drug use actions in Primary Health Care. This is a
research-intervention using the following techniques of data collection: participant observation,
focus group with community actors and semi structured interviews with health managers. To
analyze the data, we used content analysis. The results were grouped into two categories: “Networks
of Health and Drugs” and “Social Networks and Drugs.” The network of health and drugs was
understood from its disarticulation, its pedagogical function and design of idealized network. On
social networks and drugs, there was a lack of political participation of the population. The research
points to preventive drug use in a place where the work is organized in a fragmented model, without
incorporating and strengthening local capabilities in dealing with health problems.
Keywords: community health, social network, delivery of health care.
Fortalecimiento de las redes sociales: desafíos y posibilidades em la
prevención del uso de drogas em la atención primaria de salud
Resumen: El presente estudio trató de plantear desafíos y posibilidades de incorporación de las redes
sociales en la implementación de acciones de prevención al uso de drogas en la Atención Primaria
de Salud. Es una investigación-intervención mediante las siguientes técnicas de recopilación de
datos: observación participante, grupos de enfoque con los actores de la comunidad y entrevistas
semiestructuradas con los directores de salud. Para analizar los datos, se utilizó el análisis de
contenido. Los resultados se agruparon en dos categorías: “Redes de Salud y drogas” y “Redes
Sociales y Drogas”. Las redes de salud y drogas se entienden a partir de su desarticulación, su
función pedagógica y el diseño de la red idealizado. En las redes sociales y drogas, hay una falta de
participación política de la población. La investigación apunta la prevención del uso de drogas en un
modelo donde el trabajo se organiza de forma fragmentada, sin la incorporación y el fortalecimiento
de las capacidades locales para hacer frente a problemas de salud.
Palabras clave: salud comunitaria, red social, prestación de atención de salud.
Introdução
O paradigma do trabalho em redes tem sido aludido como resposta a uma série de
dificuldades de ordem estrutural e relacional no que se refere à concretização de ações,
projetos e políticas no contexto da saúde (Lopes & Baldi, 2009). Essa perspectiva assume
o pressuposto que atores sociais e instituições se organizam a partir de um conjunto de
articulações, constituindo vínculos, consolidando teias de relacionamento que conformam
a dinâmica da vida sociocomunitária (Montero, 2010).
A discussão em torno deste modelo tem sido amplamente realizada no cenário
acadêmico e da prática em campos distintos, tais como a administração, a sociologia,
a antropologia, a saúde coletiva, saúde comunitária, a psicologia social, dentre outras
(Mangia & Muramoto, 2005). O esforço tem sido o de apontar a importância, limitações e
possibilidades em se compreender o processo de subjetivação dos atores sociais, atrelado
ao desenvolvimento de intervenções que visem fortalecer recursos objetivos e simbólicos
com vistas à melhoria da qualidade de vida de diferentes contingentes populacionais. A
despeito da trajetória multidisciplinar vinculada ao conceito em tela, de maneira sintética,
tentaremos nos aproximar da ideia que o conceito de redes representa, privilegiando os
referenciais teóricos da Psicologia Social Comunitária em consonância com as discussões
operacionalizadas no campo da saúde comunitária (Freitas & Montero, 2003; Meneses,
2008; Meneses & Sarriera, 2005).
Meneses e Sarriera (2005) traçam dois focos de estudos relacionados às redes
sociais. O primeiro encontra-se ocupado especialmente com o aspecto estrutural das
redes, utilizando um referencial metodológico de caráter quantitativo. O segundo aborda a
funcionalidade das redes sociais, geralmente utilizando-se de metodologias qualitativas, ao
propor a descrição das funções da rede social e caracterizando os vínculos com que estas
se entretecem. Meneses (2008) considera que as principais funções das redes sociais são
propiciar: a) apoio social; b) apoio emocional; c) orientação e aconselhamento; d) conjunto
de regras sociais; e) ajuda material e de serviços; f) possibilidade de estabelecimento de
novas relações. Montero (2010), por sua vez, argumenta que, a partir de uma perspectiva
psicossocial comunitária, as redes sociais podem ser definidas como um emaranhado
de relações que mantém um fluxo e refluxo constante de informações e mediações,
organizadas e estabelecidas em prol de um objetivo comum: o desenvolvimento, o
fortalecimento e o alcance de metas específicas de uma comunidade em um contexto
particular.
Nesta direção, entendemos que o conceito de rede social, ainda que seja utilizado
para fazer referência a distintas realidades, apresentam como ideia comum a imagem
58
Aletheia 37, jan./abr. 2012
de pontos conectados por fios, de modo a formar a imagem de uma teia, onde os atores
sociais são participantes ativos em sua construção e fortalecimento (Freitas & Montero,
2010). Tal concepção aproxima-se do preconizado por Meneses e Sarriera (2005) que
definem as redes sociais como “um sistema aberto em permanente construção, que se
constroem individual e coletivamente. Utilizam o conjunto de relações que possuem uma
pessoa e um grupo, e são fontes de reconhecimento, de sentimento de identidade, do ser,
da competência, da ação”. Meneses (2008) ainda considera as redes sociais como uma
construção individual e coletiva, onde os nós da rede são tecidos a partir das relações
diárias entre as pessoas, sendo que tanto a estrutura como a função da rede, bem como
os vínculos estabelecidos a partir de sua constituição serão caracterizados pelas relações
estabelecidas entre seus componentes.
A noção de redes sociais aqui sinalizada está vinculada ao paradigma ecológicosistêmico, que compreende o homem inserido em uma série de sistemas abertos e
contínuos, compreendendo a subjetividade social como processo complexo, contextual
e interativo (Sarriera, 2008). Portanto, pensar as redes sociais passa pela compreensão de
processos e dinâmicas que envolvem vetores de ordem macroestrutural, como a cultura,
os sistemas econômicos e político, crenças religiosas, ideologias, até os discursos e
práticas cotidianas, concretizadas por sujeitos e instituições, tais como a família, a escola,
as organizações do mundo do trabalho, as rede de serviços públicos, como a saúde,
assistência social e segurança pública (Paiva, 2011).
Nesta direção, é importante inserirmos a noção de rede assistencial em saúde, que
é entendida como um componente de uma rede social abrangente. Isto significa que
se compreende a rede assistencial em saúde como um sistema inscrito no conjunto de
articulações sociais e por sua vez como elemento constituinte da vida sociocomunitária.
Trata-se de um conjunto de atores sociais e políticos bem como instituições, que
conformam uma rede estruturada e dinâmica com a finalidade de assegurar a gestão e
planejamento de ações, serviços e políticas no âmbito da saúde, que no caso brasileiro,
organiza-se a partir da regulamentação do Sistema Único de Saúde (SUS), através de
seus princípios e diretrizes (Lobato & Giovanella, 2008).
A rede assistencial em saúde está organizada sob os princípios da integralidade e
da intersetorialidade. No que diz respeito à integralidade da assistência, preconiza-se um
conjunto articulado e contínuo em relação ao conjunto de ações e serviços preventivos
e curativos, individuais e coletivos, realizados em todos os níveis do sistema de saúde
(Brasil, 2006). No tocante ao princípio da intersetorialidade procura-se a assegurar a
articulação de saberes e experiências no planejamento, realização e avaliação de ações
para alcançar efeito sinérgico em situações complexas visando o desenvolvimento social,
superando a exclusão social (Junqueira, Inojosa & Komatsu, 1997).
Para tanto, é necessária a superação de práticas fragmentadas correntes no
âmbito das políticas públicas, que acarreta na deficiência e até mesmo na falta de
diálogo e interação entre os diferentes atores e setores que a constituem. Compreender
a rede de saúde desde esta perspectiva integrada vai ao encontro do paradigma da
saúde comunitária, defendido por Saforcada (2008). Segundo este autor, o principal
componente deste paradigma é a comunidade, sendo as redes de assistência e,
consequentemente, as equipes multidisciplinares de saúde atores coadjuvantes, que
Aletheia 37, jan./abr. 2012
59
devem se moldar de acordo com as necessidades das próprias comunidades. Parte-se do
princípio que ninguém melhor para definir suas prioridades e apresentar suas demandas
do que a própria comunidade.
É sobre este marco teórico-metodológico que assumimos o debate em relação às
ações prestadas pelos dispositivos assistenciais em saúde no que diz respeito à prevenção,
promoção e reinserção social dos usuários de álcool e outras drogas em nosso país. Ou seja,
temos acompanhado a constituição de uma rede assistencial voltada para o atendimento
desta demanda social, tendo o envolvimento de atores sociais a partir de diferentes lugares
e posições sociais, conformando um quadro peculiar no que toca aos processos de gestão
e cuidado no âmbito das políticas públicas de saúde.
Atualmente, o uso e abuso de álcool e outras drogas contribuem na formatação de
um novo perfil epidemiológico no Brasil e em todo o mundo. Vivenciamos durante as
últimas décadas um processo de transição epidemiológica não linear, no qual as doenças
relacionadas a agentes etiológicos externos têm sido substituídas pelo aumento da
prevalência de morbidades crônico-degenerativas, e, ainda, àquelas mais relacionadas às
condições de vulnerabilidade social, em que inúmeros contingentes populacionais estão
inseridos. Quadro este que passa a exigir novas modalidades de enfrentamento e modelos
alternativos de atenção à saúde, priorizando as políticas de redução dos riscos e danos
associados ao uso destas substâncias em detrimento às abordagens de cunho reducionistas
e discriminatórias (Brasil, 2005; Machado & Miranda, 2007).
Recentemente, em outubro de 2005, foi homologada a Política Nacional sobre
Drogas (PNAD), que é composta por cinco frentes prioritárias de atuação: 1) a prevenção
ao uso de drogas; 2) o tratamento, a recuperação e a reinserção social do usuário; 3) a
redução dos danos sociais e à saúde causada pelo uso de substâncias; 4) a redução da oferta
de drogas; 5) o apoio a estudos, pesquisas e avaliações na área (Brasil, 2005). No tocante
à rede assistencial, tal política encontra-se sustentada pelos princípios de integralidade e
intersetorialidade, sintonizados com o SUS, além de organizar seus processos de cuidado
e planejamento de ações a partir da APS, que emerge como política de reorganização
do modelo assistencial e como primeiro nível de atenção à saúde em nosso país (Brasil,
2005; Brasil, 2006).
A rede assistencial para álcool e outras drogas apresenta como elemento estratégico
de articulação os Centros de Atenção Psicossocial para Álcool e Drogas (CAPSad), desde
o cumprimento de suas funções na assistência direta de regulação da rede de serviços
de saúde, atuando diretamente em conjunto com as equipes da Estratégia de Saúde da
Família (ESF) no contexto sociocomunitário, tendo como objetivo favorecer o processo
de autonomização da vida dos usuários e da própria comunidade, aproximando-se do
ideal da autogestão sociocomunitária (Brasil, 2004).
Em relação às redes sociais, a PNAD preconiza que a prevenção ao uso de álcool
e outras drogas deve ocorrer através da articulação entre os diferentes segmentos da
sociedade e dispositivos governamentais, com a construção e/ou fortalecimento de redes
sociais visando à melhoria das condições de vida e promoção geral da saúde. Além disso,
traça como diretriz para a prevenção ao uso de álcool e outras drogas o desenvolvimento de
um trabalho interdisciplinar e multiprofissional, através da participação de todos os atores
sociais envolvidos no processo (Brasil, 2005). Isto se justifica, pois, embora a atenção
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Aletheia 37, jan./abr. 2012
para álcool e outras drogas seja tarefa de uma rede articulada de serviços, é crucial que
ocorra o fortalecimento dos recursos comunitários a fim de se constituir um cenário de
real inclusão dos usuários (Bezerra & Dimenstein, 2008).
Portanto, ações desintegradas, formuladas e realizadas setorialmente por atores
políticos, sem cooperação sistemática dos diversos atores que compõem a sociedade civil
não conseguem atingir em sua totalidade as diferentes realidades em que estão inseridos
os diversos atores que compõe a rede assistencial bem como as redes sociais mais amplas
(Junqueira et al., 1997). Nesta perspectiva Lopes e Baldi (2009) consideram que para
compreendermos os efeitos que uma estrutura em redes pode produzir, é necessário um
entendimento prévio dos aspectos articuladores, relacionais dos grupos e instituições
envolvidos que constituem e são constituintes destas redes. Nesta direção é imprescindível
que as redes sociais sejam analisadas desde seus contextos sociais e históricos, avaliando
quais os efeitos políticos e os impactos na vida dos diversos atores sociais que a compõe,
e, sobretudo, quais são as demandas sociais emergentes assim como seus impactos na
estruturação das redes assistenciais de saúde.
Frente ao exposto, o objetivo do presente artigo foi avaliar as articulações entre
os diferentes atores e instituições inseridos na rede de saúde, buscando compreender os
desafios e possibilidades de incorporação das redes sociocomunitárias no processo de
implementação de ações de prevenção ao uso de drogas no âmbito da APS.
Método
O presente estudo se trata de uma pesquisa-intervenção de natureza qualitativa,
sendo um recorte do projeto Disseminação de Práticas de Prevenção ao Uso de Drogas
na Assistência Municipal. A duração total do estudo foi de nove meses, correspondendo
ao período de março a dezembro de 2010.
Local
O município escolhido está situado no sudeste brasileiro. Por se tratar de um
município de pequeno/médio porte, a rede assistencial de saúde local é organizada de
forma horizontal, com uma maior proximidade entre gestores, profissionais e usuários
dos serviços se comparados a municípios de grande porte.
No município, os serviços de saúde mental e, consequentemente, álcool e outras
drogas, seguem um protocolo de avaliação através do acolhimento, avaliação, referência
e contrarreferência dos pacientes que procuram os serviços da APS. Todo o paciente para
se inserir na rede assistencial de saúde mental do município deve ser avaliado inicialmente
através das ESF, exceto pacientes atendidos pelo serviço de urgências psiquiátricas.
Desenvolvimento
O projeto foi iniciado através do contato realizado junto aos gestores da secretaria
municipal de saúde para a obtenção de autorização e colaboração em seu desenvolvimento.
Essa pactuação envolveu a elaboração, em conjunto, das estratégias e formas em que a
implementação do projeto ocorreria no município, respeitando as características locais.
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Posteriormente, iniciou-se um trabalho de mapeamento através de reconhecimento
e coleta de informações acerca das características locais como: rede de serviços do setor
saúde, serviços para álcool e outras drogas e sua dinâmica de funcionamento, informações
sobre a participação da sociedade civil no processo de definição, planejamento, implantação
e avaliação dos serviços, articulação com outros setores (assistência social e educação),
dentre outras. Para isso, os pesquisadores realizaram durante dois meses visitas às equipes
de ESF, e às suas áreas de abrangência. Durante este período, participamos das reuniões
mensais da Coordenação de APS realizada com os gerentes das unidades (enfermeiros),
bem como da reunião do Conselho Municipal de Saúde (CMS).
A partir da realização desse diagnóstico inicial, levantaram-se possíveis pontos
facilitadores e dificultadores concernentes às redes sociais e assistenciais voltadas para
a intervenção sobre o uso e abuso de álcool e outras drogas.
Coleta dos dados
As estratégias de coleta de dados utilizadas foram: entrevistas semiestruturadas
com o secretário municipal de saúde e a coordenadora municipal de atenção primária;
grupo focal com atores chave do município (líderes comunitários e agentes comunitários
de saúde), identificados durante o trabalho de campo; e a observação participante.
Os atores-chave foram convidados a participar do grupo focal devido a sua atuação
destacada perante as comunidades, caracterizando-se como importantes nós nas redes
sociais comunitárias. O roteiro abordava questões referentes à existência de propostas
de trabalhos para álcool e drogas e o nível de participação da população (lideranças
comunitárias/organizações sociais/instituições locais) na construção e implementação
de políticas públicas de saúde, além de questões referentes à disposição e dinâmica
de funcionamento da rede assistencial e à relação entre os atores da sociedade civil e
política.
As entrevistas semiestruturadas, realizadas com o secretário municipal de saúde
e a coordenadora da atenção primária municipal, foram realizadas antes e após a
implementação do projeto. O roteiro de tais entrevistas abordava questões pertinentes à
concepção dos mesmos sobre a rede municipal de saúde e sua dinâmica de funcionamento,
ao papel de gestor desempenhado por ambos, a relação com os profissionais de saúde e
a população, dentre outras. Sobre a observação participante, os dados coletados foram
registrados em diários de campo, sendo discutidos periodicamente entre os pesquisadores
envolvidos.
Análises dos dados
Os dados provenientes das entrevistas e grupo focal foram gravados em mídias
eletrônicas e transcritos. Para a análise, foi utilizada a técnica de análise de conteúdo do
tipo temática e estrutural (Bardin, 2009). Para isso foi empregado o Atlas.ti v.7.0, um
software construído como forma de auxílio na análise de dados qualitativos.
Aspectos éticos
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade
Federal de Juiz de Fora, processo nº 0419/06. Todos os participantes consentiram sobre
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a realização da pesquisa, assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
A realização das entrevistas e do grupo focal foi efetuada em horário de trabalho e
conforme as possibilidades dos participantes.
Resultados e discussão
Mapeamento
No município, em relação à rede de serviços de saúde, existem 177
estabelecimentos cadastrados no sistema de armazenamento de dados do SUS, sendo 147
da iniciativa privada e 30 de responsabilidade do poder público municipal, organizados
na rede assistencial do SUS (DATASUS, 2010). Na APS são vinte e uma equipes de
ESF distribuídas na zona urbana e uma ESF localizada na zona rural, além de uma
equipe do Núcleo de Apoio à Saúde Família (NASF), responsável pelo matriciamento
e organização do fluxo de pacientes. Esse núcleo é composto por profissionais da
psicologia, fisioterapia, nutrição, educação física, assistência social e medicina
(ginecologista). Em 2009, 76,5% da população era coberta pela ESF, sendo a média
mensal de visitas domiciliares por família de 0,09 (DATASUS, 2010).
Através do mapeamento e coleta de informações com os profissionais da ESF e
população, constatou-se que, em média, cerca de 850 famílias são atendidas por cada
equipe de ESF. A média de profissionais por equipe de ESF foi de 9,73, variando de
sete a doze profissionais por equipe. Quatro equipes de ESF não possuíam Auxiliar
de Consultório Dentário (ACD), uma equipe encontrava-se sem enfermeiro, uma sem
dentista e uma sem auxiliar de enfermagem. Nenhuma das equipes de ESF encontravase sem médico ou Agente Comunitário de Saúde, sendo a média de ACS por equipe
de 5,17. A composição mais comumente encontrada entre as ESF era: seis ACS, um
enfermeiro, um auxiliar de enfermagem, um dentista, um ACD e um médico, sendo
encontrada em seis das vinte e uma equipes estudadas.
As maiores demandas da população junto às equipes da ESF eram de consultas
médicas e odontológicas, aferições de pressão, requisição de medicamentos, realização
de curativos e vacinas. Também foi relatado e percebido um aumento no fluxo de
pacientes nos postos de saúde durante os horários de consulta médica e dentária. Dentro
dessa demanda, os pacientes hipertensos e diabéticos são os grupos de pessoas que
requerem um maior número de acompanhamentos.
Além dessas práticas, eram realizadas pelos profissionais da ESF ações como:
grupos de puericultura; grupos de saúde da mulher e de gestantes (com realização
de pré-natais, preventivos, atendimento ginecológico e aconselhamento); grupos
para diabéticos; hipertensos; e palestras de cunho educativo e preventivo (no próprio
posto e em escolas) sobre diversos temas, como educação sexual, drogas, dengue etc.
Segundo a gestão municipal de APS e os profissionais de saúde, a realização de tais
atividades vai de acordo com o levantamento de necessidades das comunidades feito
pelas equipes de ESF.
A existência do NASF é relatada pelos profissionais como uma forma de auxílio,
sendo principalmente os serviços de psicologia e fisioterapia bastante requisitados
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pela população. A realização de ações educativas, como palestras, também são citadas
como atividades realizadas pelo NASF. Entretanto, o papel de matriciamento do fluxo
de pacientes fica a cargo dos profissionais das equipes de ESF. Cabe ressaltar, que nem
todas as equipes de ESF são cobertas pelo núcleo.
Na rede de atenção ao usuário de álcool e outras drogas, o município dispõe de um
Centro de Atenção Psicossocial para Álcool e Drogas (CAPSad) que atendia às cidades
vizinhas também. Entre os grupos de autoajuda, eram cadastrados na Secretaria Nacional
de Políticas sobre Drogas (SENAD) quatro grupos de Alcoólicos Anônimos (AA) e dois
grupos de Narcóticos Anônimos (NA). Na rede particular havia uma clínica de repouso
(OBID, 2010). Entretanto, durante o trabalho de mapeamento foram detectadas duas
comunidades terapêuticas. Além disso, existia no município o Conselho Municipal de
Políticas para Álcool e Drogas, que, no entanto, encontrava-se desativado.
Acerca das redes sociais do município, deparou-se com um quadro onde metade
dos bairros abrangidos pelas equipes de ESF estudadas não possuíam associação de
moradores, ou estas se encontravam desativadas. Ainda existiam casos de associações de
moradores sem representatividade perante suas comunidades e de pessoas que percebiam
e se utilizavam de tal espaço como uma forma de promoção política. Nos bairros onde
existiam associações de moradores percebeu-se, no entanto, uma aproximação muito
grande destas com as equipes de ESF. Diversas ações em parceria eram realizadas,
indo desde a realização de palestras e eventos festivos para as comunidades até o
cadastramento para programas assistenciais do governo e distribuição dos alimentos
para as crianças abaixo do peso.
As entidades que exerciam maior influência na mobilização popular e possuíam
maior inserção na comunidade eram aquelas que realizavam algum tipo de trabalho
assistencialista, principalmente as relacionadas a algum tipo de grupo religioso. Os
maiores exemplos foram a pastoral da criança, pautando suas atuações no combate à
desnutrição infantil e a atuação de diferentes instituições religiosas na realização de
variadas ações, como doação de donativos à população carente, doação de sangue,
serviços de aferição de pressão e glicemia, palestras e grupos educativos sobre álcool
e outras drogas, DST´s, gravidez na adolescência etc. O restante dos trabalhos era
realizado através de trabalhos voluntários por parte da população.
As redes sociais no município para álcool e drogas ficavam em grande parte
limitadas a trabalhos voluntários de atores e entidades comunitárias, grupos de
autoajuda e instituições religiosas. A natureza dessas ações, em sua maioria, era de
cunho assistencialista e/ou voltada para o tratamento da dependência.
Análise das entrevistas e grupo focal
Os resultados referentes ao processo de observação participante ao longo do projeto
e às entrevistas e grupo focal foram agrupados em duas categorias centrais: Redes de
Saúde e Drogas e Redes Sociais e Drogas.
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Aletheia 37, jan./abr. 2012
Redes de saúde e drogas
Com relação à estruturação da rede de saúde do município, encontrou-se um quadro
de desarticulação entre os diferentes níveis de atenção (primário, secundário e terciário).
A rede de saúde local não concretiza os ideais de integralidade e intersetorialidade
apregoados pelo discurso sanitarista, relegando-os a uma retórica incrustada no cenário das
práticas de saúde. Os sujeitos e instituições que conformam a rede assistencial em saúde
não implementam suas ações através da integração entre diferentes setores, inscritos na
teia de relações que constitui a rede, e tampouco tem conseguido realizar uma articulação
entre a própria rede de saúde. As razões para isto podem estar relacionadas ao ineditismo
que tais concepções denotam como fica evidenciado no discurso de um ator estatal:
(...) a gente tentou implementar isso juntamente com a secretaria de educação que
tem participado dos fóruns com a gente também, a secretaria de meio ambiente
e a secretaria de ação social. Porém o envolvimento destas demais secretarias
é uma coisa que a gente começou também é uma coisa muito nova, porque até
então cada um estava trabalhando separadamente (...).
A despeito de não alcançar esta organização em rede, um aspecto importante
observado nos processos da pesquisa-intervenção foram as concepções dos atores sociais
e políticos em relação à função exercida pela rede de saúde na promoção do bem estar
populacional. Ela emerge nos discursos dos sujeitos sociais com a missão de desempenhar
um papel pedagógico junto à sociedade em relação a uma série de temáticas tidas como
pertinentes ao âmbito da saúde. Neste sentido, a rede de saúde passa a ocupar a posição
de um ator imprescindível e responsável por mudanças na vida comunitária, haja vista os
parcos recursos sociais percebidos na própria comunidade, vista como apática e repleta
de problemas estruturais.
Um dos aspectos em que as ações da rede de saúde tem se ocupado é a busca pelo
rompimento com o modelo biomédico que baliza as concepções de saúde/doença da
população, e, portanto, criam dificuldades para a implantação de um modelo de atenção
à saúde organizado através da APS, como explicitado por um dos atores entrevistados:
“Isso a população custou a entender né, porque na verdade eles queriam tratar mais
com especialista. Mas na verdade, a porta de entrada que era o PSF, esse paciente não
buscava esse atendimento”.
Outro ponto que contribui para compreendermos a posição ocupada pela rede
de saúde no cenário local, diz respeito à noção de rede embebida por um idealismo,
que reproduz o discurso da necessidade de um trabalho em rede, coletivo e articulado.
Discurso este que se aproxima de um messianismo por parte de quem atua e pesquisa o
cenário das políticas públicas, haja vista sua capacidade técnica, experiência e destreza
para a formulação de estratégias que caminhem nesta direção:
(...) através da voz dos profissionais, da voz da experiência, da prática, vocês
trouxeram essa questão da das redes e eu acho que as coisas só funcionam em
redes não adianta cada um trabalhar do seu... né do seu lado do seu jeito.
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Não se questiona aqui o porquê do trabalho em rede, pelo contrário, este é tomado
como uma assertiva pronta, como antídoto para os problemas da gestão em saúde. Este
aspecto vale ser tensionado, uma vez que ao defendermos, sem problematização, um
determinando modo de ação, permanecemos reféns de um saber fazer idealizado, sem
conexão com a realidade material na qual estamos inseridos. Portanto, é fundamental que
se faça uma reflexão sobre que trabalho em rede queremos? Como é trabalhar em rede?
Porque adotar este e não outro modelo de análise e intervenção?
Em suma, podemos sintetizar nosso entendimento sobre a rede de saúde através
de três pontos fundamentais: 1º) desarticulação da rede; 2º) função pedagógica e 3º)
concepção idealizada de rede. A partir deste cenário é que podemos compreender os
resultados concernentes ao processo de implementação de ações de prevenção ao uso
de drogas.
Devido ao crescente uso de álcool e outras drogas, explicitada nas demandas
oriundas de gestores, profissionais e população, percebemos a gestão de saúde municipal
bastante solícita e parceira, no que diz respeito à organização e realização das etapas do
projeto. Além disso, foram articuladas parcerias com um grupo de trabalho sobre álcool
e outras drogas composto por gestores de diversos setores e um fórum intersetorial de
saúde mental, onde as práticas relacionadas à saúde mental realizadas no município eram
apresentadas e discutidas entre usuários e profissionais da rede em encontros quinzenais.
Entretanto, apesar do esforço, como sinalizado anteriormente a rede de serviços se
organizava de forma desintegrada e desarticulada. As noções de trabalho intersetorial e
integral baseavam-se apenas na junção de diferentes setores para a realização de ações com
caráter pontual. Foi notória a falta do envolvimento da sociedade civil no planejamento
e realização das ações para álcool e outras drogas, sendo esta posicionada como mera
receptora de ações e políticas públicas.
Podemos perceber como um dos problemas centrais no estrangulamento da rede de
atenção para usuários de álcool e outras drogas, a incapacidade do CAPSad em suprir a
demanda de usuários encaminhados e de sua interlocução com a APS. Foram relatados
de forma recorrente problemas na referência e contrarreferência de pacientes a este
dispositivo assistencial. Entretanto, mesmo o CAPSad não conseguindo administrar o
fluxo de pacientes e assegurar o matriciamento da rede assistencial, ele foi observado
através de uma ótica positiva pelos profissionais de saúde e gestores, em detrimento da
época em que não existia. Ademais, como reflexo da rede assistencial do município, os
serviços para álcool e outras drogas atuavam de maneira isolada, com dificuldades de
articulação.
No tocante à rede de saúde, apesar das dificuldades destacadas, foram observados
alguns pontos facilitadores para a disseminação das práticas preventivas, como:
o envolvimento e a participação dos profissionais do CAPSad; a participação dos
profissionais do NASF e, principalmente o trabalho desenvolvido pelas psicólogas no
auxílio terapêutico aos dependentes e suas famílias; a organização do serviço na APS pelas
enfermeiras, através de salas de espera e estratégias educativas em escolas; a aplicação
dos instrumentos de rastreio pelos ACS; o envolvimento, também, dos auxiliares de
enfermagem, enfermeiros, auxiliares de consultório dentário e dentistas, ressaltando a
importância do trabalho multiprofissional e integrado.
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Isso indica a importância do envolvimento de diferentes categorias profissionais e
suas maneiras de analisar e abordar o tema álcool e outras drogas. A articulação entre os
demais dispositivos da rede assistencial deve-se pautar, principalmente, através do trabalho
multiprofissional integrado, tendo em vista a inserção destes profissionais, principalmente
os ACS, nas comunidades (Nunes, Trad, Almeida, Homem & Melo, 2002). Tal fator, aliado
à compreensão de que o componente principal das ações da saúde deve ser a comunidade,
transforma-se no horizonte a ser percorrido quando se objetivam resultados mais efetivos
das políticas públicas para álcool e outras drogas (Saforcada, 2008).
Consideramos que as ações, programas e políticas nesta área não devem ser
prioridade de um único setor, devendo estar organizados através da articulação entre
as políticas de caráter estruturante, como a saúde, a educação, a assistência social, a
segurança pública, bem como a habitação e geração de emprego e renda (Mota, 2011).
Compreendemos que se trata de um problema multifacetado e, portanto, atravessado
por inúmeros determinantes sociais, o que justifica a adoção de estratégias coletivas
para sua análise e intervenção, que tenham como fim a eliminação das desigualdades e
iniquidades sociais.
Redes sociais e drogas
Como descrito anteriormente, durante o processo de mapeamento, observou-se
no contexto pesquisado uma ausência de participação política da população no que diz
respeito à análise de suas necessidades e proposição de ações, o que foi evidenciado tanto
por gestores e profissionais como pela própria população. Neste sentido, a conformação
da rede assistencial em saúde não contempla a participação e articulação com as redes
sociais. Por conseguinte, a participação comunitária no âmbito da saúde é inexistente
vinda das percepções dos diferentes atores entrevistados:
(...) infelizmente a participação da população não, eu vejo assim a população
participa nos grupos, nos grupos que são feitos nos, nos, em cada PSF. Então assim
de forma descentralizada, os grupos são organizados e a população participa ali
na proposta do que é pra eles, né.
A partir disso, podemos perceber que as redes sociais não são parte constituinte
da rede de cuidados em saúde, uma vez que a participação e mobilização social não são
asseguradas, tampouco percebidas como relevantes para os processos de cuidado. Isto
reflete a centralidade das tomadas de decisões no saber da equipe de saúde, além do poder
de decisão atrelado ao ator estatal. Indubitavelmente, considera-se que este quadro se
mostra fruto de um processo socio-histórico, no qual a tomada de decisões tem sido de
responsabilidade exclusiva da gestão. Além disso, caracteriza-se como uma via de mãodupla onde não somente a posição da gestão, mas também a falta de conscientização
e mobilização da população para a uma maior participação política contribuem para a
manutenção do status quo.
Os nós que compõe as redes sociais são considerados ativos a partir da concretização
dos conselhos gestores de políticas públicas. Trata-se de arranjos de cunho democrático
que foram institucionalizados no contexto brasileiro desde a constituição de 88. No
Aletheia 37, jan./abr. 2012
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entanto, a despeito do caráter participatório e democrático de tais arenas, pensar a
participação social apenas e/ou exclusivamente por tais mecanismos pode sinalizar certo
engessamento e mesmo uma burocratização da participação e mobilização da sociedade
civil na análise de suas necessidades e proposição de ações. Falas como “se o Secretário
falou tá falado”, foram repetidas, mostrando uma carência de significado dos próprios
conselheiros sobre o seu papel. Isso pode indicar que a agenda de saúde é definida de fato
pela secretaria de saúde e a ação do conselho é restrita quanto a decisões efetivas sobre
as políticas de saúde. Quadro que temos encontrado em outras realidades sociopolíticas
pesquisadas (Stralen, 2011).
Com relação ao uso de álcool e outras drogas, as redes sociais são vistas com
informações distorcidas e com parcos recursos para o enfrentamento desta questão.
Portanto, a rede de saúde, através de seus diferentes atores e instituições termina por
assumir a função pedagógica conforme sinalizado anteriormente:
Essa é a verdade, porque eu acho que não tem mesmo né, uma informação, acho que
é uma questão de cultura mesmo. A gente tem buscado uma mobilização, informar
a população né, [...] os meios de comunicação direcionando o que a gente tem
feito, o que o município tem feito dentro da sua rede de assistência a esse... à saúde
mental, porque aí quando eu falo saúde mental tá vinculado a esses jovens que estão
né==álcool e drogas==porque o álcool e drogas é direcionado, tá relacionado
dentro da saúde mental, então a gente têm procurado, a gente ainda sente muita
dificuldade né. A população, ela né, geralmente não tem esse envolvimento. É,
geralmente ela tem sim, só os apontamentos né, a discriminação.
Predomina uma perspectiva de pouca participação e envolvimento das redes
sociais em detrimento a questões de ordem cultural, que estruturam discursos e práticas
discriminatórias. Neste sentido a temática “álcool e outras drogas” pode ser difícil de
ser administrada junto à população em razão de seus posicionamentos estigmatizantes
(Silveira, 2010). O papel da rede assistencial de saúde passa a ser o de ofertar informações
e propagandear o que tem realizado, sendo os atores inscritos nas redes sociais vistos como
meros receptores destas iniciativas. Neste sentido, os atores sociais são compreendidos
como despreparados para assumir a posição de protagonistas e autogestores de suas vidas.
Consequentemente as redes sociais são percebidas como inexistentes e/ou incapazes de
concretização.
O uso de álcool e outras drogas ainda é percebido no contexto das redes sociais
desde diferentes determinantes sociais e familiares, tendo a população uma concepção
envolvida por preconceitos e estigmas em relação aos usuários (Silveira, 2010). Aqui,
a política pública é vista como solução para este problema, leia-se, corrigir os maus
comportamentos dos diferentes sujeitos inseridos nas redes sociais. O problema observado
não se deve tanto a este papel fundamental dos atores inseridos na rede assistencial de
saúde, mas sim ao total descrédito atribuído à população para pensar e enfrentar este
problema, que diz respeito tanto a ela quanto aos gestores e profissionais inseridos nas
políticas públicas de saúde.
De acordo com os atores sociais inseridos nas redes sociocomunitárias, as drogas
surgem no discurso social atreladas à “conjuntura familiar” e a necessidade de mulheres
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Aletheia 37, jan./abr. 2012
(mães) serem orientadas para serem mais capazes de orientar seus filhos, e, portanto,
estarem mais próximas em seus processos de desenvolvimento. Nesta perspectiva, as
mulheres são colocadas como responsáveis pelo processo de cuidado e monitoramento
da prole a fim de prevenir a adoção deste comportamento prejudicial à saúde. Ou seja, a
mulher (mãe) é tida como a responsável por este processo (Paiva, 2009).
Além disso, devido a incursão em campo, foi possível observar que nas regiões
marcadas por um cenário de acentuada vulnerabilidade social, com episódios de
violência, falta de saneamento básico, falta de lazer paras as crianças e adolescentes,
quadros de pobreza etc., o nível de dificuldade para a consolidação de um trabalho que
envolva as redes sociais é maior, uma vez que a população está imersa em um contexto
socioeconômico nos quais suas necessidades básicas de vida não são asseguradas, tendo
assim prioridades consideradas mais urgentes em detrimento à questão das drogas. E
isto favorece a representação social de profissionais e gestores sobre a população, que
passa a ser objetivada como um conjunto de atores sociais com pouca capacidade de ter
consciência de si e do mundo no qual vivem, cabendo então aos gestores e profissionais
o papel de protagonistas no processo de organização e prestação de serviços no âmbito
da saúde.
Contudo, algumas ações realizadas em parceria entre as equipes de saúde e as
comunidades durante o projeto, como a realização de práticas educacionais e preventivas
em escolas bem como a implementação de grupos de discussão com a população dentro
dos postos da ESF indicam tentativas de se pensar a temática de álcool e outras drogas
de forma mais ampla, visando consolidar a autonomia comunitária de acordo com suas
realidades e potencialidade.
Considerações finais
Devido ao explicitado anteriormente, consideramos importante iniciativas de
pesquisa-intervenção como esta aqui apresentada por compreenderem a discussão em
torno das redes considerando a sua dimensão como estrutura de governo – dispositivos
administrativos/redes assistenciais –, ao mesmo tempo em que buscam analisar sua
configuração em meio à teia formada pelas redes sociais, que nos leva a compreender a
maneira como os diferentes atores sociais e instituições se constituem e são constituídos a
partir do processo de articulação em redes. A pesquisa aponta para as ações de prevenção
ao uso de álcool drogas em um contexto no qual integralidade e intersetorialidade ainda
não foram de fato consolidadas. Esta dificuldade repercute na integração das redes sociais
existentes, uma vez que o trabalho ainda se organiza através de um modelo fragmentado
e calcado no saber técnico, sem incorporar e fortalecer as potencialidades locais para o
enfrentamento dos problemas de saúde existentes.
No que tange as redes sociais, o seu fortalecimento pode vir a ser uma forma das
comunidades se organizarem, buscando melhorias em suas condições de vida. A ação
em redes pode favorecer a concretização da autogestão comunitária, criando espaços e
condições para a resolução dos diversos problemas sociais existentes e que necessitam
ser enfrentados (Mangia & Muramoto, 2005; Rodrigues, Carvalho & Ximenes, 2011).
Cumpre sinalizar que isto não implica em um afastamento e tampouco a diminuição da
Aletheia 37, jan./abr. 2012
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responsabilidade estatal na oferta e garantia de direitos humanos e sociais fundamentais,
mas pelo contrário, implica em um realinhamento das responsabilidades que incide no
planejamento das ações, programas e políticas públicas.
Nesta perspectiva, reiteramos que a participação, envolvimento e mobilização
social devem ser encarados como mecanismos permanentes de inovação e construção
de sociedades democráticas, onde os programas e ações em saúde sejam planejados e
executados com e não para a população. Movimento que requer uma práxis dialógica entre
Estado e sociedade civil, no qual se assegure o compartilhamento de responsabilidades na
proposição de ações, análise de necessidades locais e garantia de políticas que representem
de fato as diversas vozes sociais (Briceño-Leon, 1998).
Para tanto, consideramos fundamental repensarmos acerca dos pressupostos que
orientam as práticas no âmbito da saúde. Conforme discute Saforcada (2008), é necessário
ressignificarmos a práxis profissional em direção ao paradigma da saúde comunitária.
Isto significar nos afastarmos do modus operandi tradicional desenvolvido pela saúde
pública, bem como as estratégias defendidas pela saúde coletiva, que, apesar de haver
representado um grande avanço, ainda se encontra limitada pelo pressuposto de que é
a equipe de saúde (profissionais/gestores) o principal componente de seus programas
de ação, e não a comunidade. Portanto, devolver o poder de decisão às populações em
matéria de saúde constitui-se em uma forma de contribuir para a real democratização de
nossas sociedades e, por conseguinte, no fim do neocolonialismo.
Finalmente, no que toca à perspectiva do trabalho em rede, consideramos essencial
operarmos contínuos questionamentos acerca de esta ter se tornado a resposta para uma
panaceia de problemas, sem que se efetue um importante exercício reflexivo a respeito.
Ao propor este caminho de análise e intervenção não se deseja deslegitimar tal perspectiva
de ação, mas, ao contrário, potencializá-la. Isto, pois acreditamos que ao se realizar um
trabalho de análise mais acurado sobre como estão organizadas e articuladas às redes
assistenciais e sociais no contexto socio-histórico no qual estamos inseridos, é possível
tomarmos mais consciência das vicissitudes e recursos objetivos e simbólicos com os quais
podemos contar e/ou devemos fortalecer, potencializar e mesmo lutarmos Neste sentido,
contribuiremos indubitavelmente para o fortalecimento das redes sociocomunitárias, em
prol de sua autonomia e emancipação.
Referências
Bardin, L. (2009). Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70.
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_____________________________
Recebido em julho de 2012
Aceito em setembro de 2012
Fernando Santana de Paiva – Doutorando em Psicologia Social pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Professor do Curso de Psicologia da Faculdade Machado Sobrinho. Pesquisador do Centro de Pesquisa,
Intervenção e Avaliação em Álcool e Outras Drogas (CREPEIA) da Universidade Federal de Juiz de Fora
(UFJF).
Pedro Henrique Antunes da Costa – Graduando em Psicologia na Universidade Federal de Juiz de Fora.
Telmo Mota Ronzani – Pós-Doutor em Álcool e Drogas pela University of Connecticut Health Center e
Universidade de São Paulo. Professor Adjunto do Departamento de Psicologia da UFJF.
Endereço para contato: [email protected]
72
Aletheia 37, jan./abr. 2012
Aletheia 37, p.73-90, jan./abr. 2012
Um estudo sobre percepções de profissionais de um serviço
de atendimento às vítimas de violência e exploração sexual
Beatriz Mello de Albuquerque
Narjara Mendes Garcia
Maria Angela Mattar Yunes
Resumo: O presente artigo apresenta um estudo de caso sobre um serviço público que atende
crianças, adolescentes e famílias vítimas de violência, abuso e exploração sexual. O objetivo
foi compreender as percepções dos profissionais para esboçar uma análise das práticas sociais
e relacionais da equipe para com os usuários. A pesquisa seguiu o modelo qualitativo, tendo
como base a Inserção Ecológica no contexto pesquisado e entrevistas semiestruturadas com
três técnicos: coordenador, psicólogo e assistente social. A análise evidenciou a satisfação
dos técnicos com os atendimentos e suas crenças na eficácia dos resultados baseadas na
diversidade de metodologias e flexibilidade de abordagens desenvolvidas: formação de grupos
e/ou atendimentos individuais. Os profissionais revelaram-se otimistas e consideram que os
casos de reincidência após a alta do atendimento é baixo, pois a maioria das famílias se vincula
com confiança ao serviço.
Palavras-chave: serviços sociais, violência sexual, profissionais sociais.
A study on the professional´s perceptions of a service for victims
of violence and sexual exploitation
Abstract: The present article presents a study about a public service for children, adolescents and
families who are victims of violence, abuse and sexual exploitation. The aim was to understand the
professional´s perceptions in order to draft an analysis of the social and relational team practices
with the service´s users. The research followed the qualitative method based on the Ecological
Engagement in the context and semi-structured interviews with three professionals: coordinator.
psychologist and social worker. The analysis showed the professional’s satisfaction with the
treatment and their beliefs in the efficacy of the results based on the diversity of methodologies
and flexibility of approaches developed: groups or individual treatment. The professionals showed
optimism considering the low return number of cases after ending the treatment as the majority
of families is linked with trust to the Service.
Keywords: social services, sexual violence, social profissionals.
Un estudio sobre percepciones de profesionales de un servicio de atención
a víctimas de violencia y explotación sexual
Resumen: El presente artículo presenta un estudio de caso sobre un servicio público para
niños, adolescentes y familias victimas de violencia, abuso y explotación sexual. El objetivo fue
comprender las percepciones de los profesionales para dibujar un análisis de las prácticas sociales
y relacionales del equipo con sus usuarios. La investigación siguió el modelo cualitativo teniendo
como premisa la inserción ecológica en el contexto investigado y entrevistas semi-estructuradas
con tres técnicos: coordinador, psicólogo y trabajador social. El análisis evidenció la satisfacción
de los técnicos con los atendimientos y sus creencias a cerca de la eficacia de los resultados en
función de la diversidad de metodologías y flexibilidad de abordajes desarrolladas: formación
de grupos y/o atendimientos individuales. Los profesionales demostraron estar optimistas y
consideran que los casos de reincidencia después del alta de atendimiento son bajos, una vez
que la mayoría de las familias vinculase con confianza al servicio.
Palabras-clave: servicios sociales, violencia sexual, profesionales sociales.
Introdução
Estudar os serviços de proteção e atendimento às crianças e adolescentes
que viveram situações de violências e que, por isso, se encontram em situação
de risco social é um imperativo, senão um dever dos cientistas sociais e da saúde
pública. Os órgãos de denúncia, tais quais: o Disque 100, os Conselhos Tutelares,
as Delegacias de Polícia, e outros que compõe a rede de proteção da infância e
juventude, são frequentemente referidos nos noticiários nacionais e muitas vezes
anunciam as dificuldades destes segmentos em lidar com as diferentes expressões
de violência. Diante desta realidade, é pertinente questionar a eficácia de alguns
mecanismos públicos e governamentais dos serviços de enfrentamento à violência,
abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes. Esta proposta de pesquisa
visou a investigar como se desenvolve um dos serviços da rede de proteção que
presta especificamente o atendimento/tratamento às crianças/adolescentes e famílias
vitimizadas num município do interior do Rio Grande do Sul. A investigação foi
feita a partir de um estudo de caso do local do serviço, enfatizando-se as percepções
dos técnicos responsáveis e a análise das práticas de atendimento exercidas por esta
equipe de profissionais sociais.
Ao início do estudo pode-se constatar a vasta bibliografia sobre o tema, tanto na
área da Psicologia, como na área da Saúde. Há muitas produções científicas a respeito
de violência em suas diferentes modalidades (Bonamigo, 2008; Minayo, 1994; Prado
& Pereira 2008, entre outros). Diversas pesquisas descrevem as consequências e o
perfil dos agressores e das vítimas (Habigzang, Koller, Azevedo & Machado, 2005;
Santos & Dell`Aglio, 2010; Bérgamo & Bazon, 2011) assim como as implicações
no desenvolvimento de crianças e adolescentes dentre outros aspectos (Habigzang,
Azevedo, Koller & Machado, 2005; Prado, Pereira, 2008; De Antoni, Yunes,
Habigzang & Koller, 2011). Em contrapartida, pode-se constatar uma escassez de
trabalhos que abordem e avaliem os serviços sociais de atendimento às vítimas destes
episódios. A complexidade do fenômeno da violência por si só justifica a eminente
necessidade de elaboração de investigações acerca do funcionamento dos órgãos e
serviços que compõe a rede de apoio às vítimas de violência sexual.
A violência sexual contra crianças e adolescentes passou a ter maior visibilidade
no Brasil na última década do século passado, período em que esta problemática
foi incluída na agenda da sociedade civil como questão relacionada à luta nacional
e internacional pelos direitos humanos de crianças e de adolescentes. Estes eram
preconizados na Constituição Federal Brasileira, no Estatuto da Criança e do
Adolescente – Lei nº 8.069/90 e na Convenção Internacional dos Direitos da Criança.
(Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual Infanto-Juvenil, 2002).
74
Aletheia 37, jan./abr. 2012
De acordo com os documentos acima mencionados, este período foi marcado
por um forte processo de articulação, mobilização e por experiências consolidadas
que fortaleceram a Sociedade Civil para assumir a denúncia como forma de
enfrentamento à violência sexual. Isso significou um marco histórico na luta dos
direitos da criança e do adolescente. O relatório da CPI de 1993 sobre a violência
sexual contra crianças e adolescentes no Brasil também provocou a conscientização
e mobilização de importantes setores do executivo, legislativo, judiciário, da mídia
e de organismos internacionais. Vale destacar esse papel histórico da sociedade
civil (Movimentos/Fóruns/ONGs/Conselhos) como protagonista da mobilização
social na luta pela inclusão da violência sexual contra crianças e adolescentes na
agenda pública brasileira. Internacionalmente algumas agências como Unicef,
Unifem, Visão Mundial, Ecpat, NGO – Focal Point, IIN-OEA, pautaram a temática
da violência sexual no contexto dos Direitos Humanos, estimulando os governos,
apoiando técnica e financeiramente as iniciativas da sociedade civil e monitorando
os avanços conquistados.
Na sequência destes acontecimentos, foi realizado em 2000 na cidade de Natal/
Rio Grande do Norte um evento específico para discussões sobre esta temática. A
partir do referido encontro, constatou-se que embora algumas medidas tenham sido
adotadas, estas não foram capazes de controlar o fenômeno da violência sexual
contra crianças e adolescentes e nem responsabilizar os culpados, mesmo havendo
reconhecimento da gravidade desta situação por parte do governo brasileiro. Assim,
conscientes da responsabilidade frente a este problema e compreendendo que há
um conjunto de atores e forças no país para fazer valer os direitos fundamentais de
crianças e adolescentes, os participantes da discussão do Plano Nacional assumiram o
compromisso para o desenvolvimento de ações que assegurassem o fim da violência
contra crianças e adolescentes. Além disso, a responsabilização/tratamento de
violadores, a prevenção, a mobilização da sociedade civil e o protagonismo infantojuvenil foram enfatizados. No mesmo ano, o Governo Federal elaborou o Plano
Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual Infanto-Juvenil, com o objetivo de
estabelecer um estado de direito para a proteção integral de crianças e adolescentes
em situação de violência sexual. O referido Plano foi apresentado e deliberado pelo
Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescentes – CONANDA, na
assembleia ordinária de 12/07/2000, constituindo-se em diretriz nacional no âmbito
das políticas de enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes.
Trata-se, portanto, de um documento legitimado e de referência para as políticas
públicas nos níveis federal, estadual e municipal. (Plano Nacional de Enfrentamento
à Violência Sexual Infanto-Juvenil, 2002).
No ano de 2001, foi implantado o Programa Sentinela, dentro do âmbito da
Política da Assistência Social. Este programa era uma prioridade estabelecida pelo
governo para cumprir o Plano Nacional e foi implantado no âmbito da Política de
Assistência Social, coordenado pela Secretaria de Estado da Assistência Social. Este
programa tinha como critério de priorização, as capitais e as regiões metropolitanas
inseridas no Programa de Segurança Pública: cidades com grandes entroncamentos
Aletheia 37, jan./abr. 2012
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rodoviários, polos turísticos, polos industriais, zonas de garimpo, áreas portuárias
ou localidades que, com registros, comprovassem as situações de violências contra
crianças e adolescentes. Em todos estes munícípios deveriam estar implantados
os Conselhos Tutelares. O programa destinava-se, portanto, a cumprir as linhas
de ações das políticas de atendimento estabelecidas no artigo 86, do ECA, através
da integração operacional e das diretrizes do atendimento estabelecido que davam
guarda às atribuições dos Conselhos Tutelares. Em 2004, o Sentinela deixou de
ser “programa”, passando a ser “serviço de ação continuada”, superando assim,
qualquer possibilidade de extinção. Passou a se chamar Serviço de Enfrentamento
à Violência, ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes (Antigo
Programa Sentinela).
Em 2005, este Serviço foi inserido no Sistema Único de Assistência Social/
SUAS como Serviço de Proteção Social Especial de Média Complexidade. Atualmente
em âmbito nacional, é coordenado pelo MDS – Ministério do Desenvolvimento Social
e Combate à Fome, através da Secretaria Nacional de Assistência Social/SNAS. Este
segmento oferece um conjunto de procedimentos técnicos e especializados para o
atendimento e proteção imediata às crianças e adolescentes vítimas de abuso ou
exploração sexual, bem como aos seus familiares.
Atualmente, este Serviço é desenvolvido no âmbito do Centro de Referência
Especializado de Assistência Social – CREAS. Portanto, o “locus” de execução
do Serviço de Enfrentamento à Violência, ao Abuso e à Exploração de Crianças e
Adolescentes é o CREAS. No entanto, o município pode efetuar a descentralização
do serviço, caso haja na rede socioassistencial, entidades que realizem este tipo de
atendimento. Este poderá ser implantado com abrangência local ou regional, de
acordo com o porte, nível de gestão e demanda dos municípios, além do grau de
incidência e complexidade das situações de risco e violação de direito. O CREAS de
abrangência local pode ser implantado em municípios habilitados em gestão inicial,
básica e plena. Já o de abrangência regional é implantado nas seguintes situações:
a) Nos casos em que a demanda do município não justificar a disponibilização no
seu âmbito de serviços continuados, no nível de proteção social especial de média
complexidade, ou, b) Nos casos em que o município, devido ao seu porte ou nível
de gestão, não tenha condições de gestão individual de um serviço em seu território.
(Histórico disponibilizado pela coordenação Estadual do Serviço Sentinela/RS).
O município do interior do Rio Grande do Sul pesquisado neste artigo foi um dos
pioneiros na implantação deste Serviço por se tratar de uma cidade portuária, o que
ocorreu no ano de 2002.
Dentre as metas do Serviço destaca-se: proporcionar condições para o
fortalecimento da autoestima das vítimas e superação da situação de violação de
direitos e reparação da violência vivida (Relatório CREAS, 2008). Ademais, almeja
contribuir para a proteção, defesa e garantia de direitos de crianças e adolescentes
vítimas de violência, abuso e exploração sexual, buscando: identificar o fenômeno de
riscos decorrentes; prevenir o agravamento da situação; promover a interrupção do
ciclo de violência; contribuir para a devida responsabilização dos autores da agressão
ou exploração e a potencialização da autonomia e o resgate da dignidade.
76
Aletheia 37, jan./abr. 2012
O Serviço em questão trabalha com três modalidades distintas de violência: a
violência doméstica ou “intrafamiliar”, o abuso e a exploração sexual. O Estatuto da
Criança e do Adolescente (Brasil, 1990) determina a obrigatoriedade da notificação de
casos suspeitos ou confirmados de maus tratos em crianças e adolescentes. Entretanto,
a subnotificação da violência é ainda uma realidade em nosso país, havendo muita
dificuldade de identificação da violência sexual. Esta situação pode ser compreendida
devido ao despreparo dos profissionais da rede de atendimento nas diferentes áreas
de atuação: seja na saúde, na educação ou na área jurídica (Silveira & Yunes, 2010;
Yunes, Garcia & Abuquerque, 2007). Esta lacuna no atendimento às vítimas é
decorrente de uma lacuna nos currículos de graduação, uma vez que estão sendo
desconsideradas as questões referentes à violência sexual (Gonçalves & Ferreira,
2002; Santos, 2011). Este fato resulta no desconhecimento de informações básicas
para o diagnóstico da situação de violência em questão. Nesse sentido Amazarray
e Koller (1998) afirmam que o trabalho em rede tem apresentado atendimentos por
vezes desarticulados, fragmentados e metodologicamente difusos.
O panorama geral sobre o tema apontou para a necessidade de investigar o
serviço e a atuação dos profissionais no que se refere às suas crenças e percepções
sobre o atendimento realizado às vítimas de violência e aos seus familiares. Neste
trabalho, crenças foram definidas como as formas de enxergar e expressar o mundo
vivido, pois estas influenciam o que vemos ou o que não vemos, assim como o que
fazemos a partir de nossas percepções (Wright, Watson & Bell, 1996). Na sequência
estão explicitadas as estratégias metodológicas para o desenvolvimento deste
estudo.
Método
Este estudo de cunho qualitativo teve como base a “Inserção Ecológica”
(Cecconello & Koller, 2003; Prati, Couto, Moura, Poletto & Koller, 2008) que se
define por ser uma metodologia de pesquisa que se realiza em ambientes naturais.
A revisão atualizada indica que seu objetivo é “avaliar os processos de interação das
pessoas com o contexto no qual estão se desenvolvendo em um determinado período
de tempo” (Prati, Couto, Moura, Poletto & Koller, 2008, p.161). Tal método tem seus
fundamentos na Teoria dos Sistemas Ecológicos (Bronfenbrenner & Morris, 1998)
que prioriza a análise da interação de quatro núcleos: o processo, a pessoa, o contexto
e o tempo. Neste modelo teórico, o Processo se refere às interações entre a pessoa e o
ambiente no qual ela convive. No estudo de caso em questão o foco estará nos técnicos
do serviço e sua convivência diária entre si e com as famílias, crianças e adolescentes
usuárias do serviço. Entre estas pessoas se desenvolvem relações que são denominadas
de processos proximais e considerados os motores primários para o desenvolvimento
segundo o modelo bioecológico (Bronfenbrenner & Morris, 1998). Quanto à Pessoa
será levado em consideração, tanto as características determinadas biopsicologicamente,
quanto aquelas construídas na interação com o ambiente. Para a realização desta
pesquisa foram considerados os técnicos e as famílias entrevistadas, enquanto pessoas
em desenvolvimento, com características, percepções e interações específicas.
Aletheia 37, jan./abr. 2012
77
A análise do Contexto, segundo Bronfenbrenner (1979/1996), buscará
compreender a interação dos quatro níveis sistêmicos: microssistema, mesossistema,
exossistema e o macrossistema. O microssistema é o sistema ecológico mais próximo
e compreende um conjunto de relações entre a pessoa em desenvolvimento e seu
ambiente mais imediato, como por exemplo, a família, a escola e a igreja, nos quais a
pessoa realiza diversas atividades e assume diferentes papéis, estabelecendo interações
pessoais e simbólicas múltiplas. Neste trabalho o microssistema estudado, será a sede
do Serviço de Enfrentamento à Violência, ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças
e Adolescentes da cidade do interior do Rio Grande do Sul. O mesossistema referese ao conjunto de relações entre dois ou mais microssistemas dos quais a pessoa em
desenvolvimento participa de maneira ativa: as relações família-escola ou escola-igreja.
Quando a criança sai de um microssistema conhecido, como a família, para integrar um
novo microssistema, como a escola, ou a igreja, ocorre um fenômeno de movimento
no espaço ecológico, ou seja, uma “transição ecológica”. As transições ecológicas
ocorrem ao longo do ciclo vital e são fundamentais para crianças e adolescentes. Neste
caso, é particularmente significativo analisar a transição do ambiente familiar para o
referido Serviço, já que este ambiente foi criado para ajudar a superar ou amenizar o
sofrimento decorrente das mais diversas situações de violência que vitimizaram crianças,
adolescentes e suas famílias.
O potencial de desenvolvimento dos ambientes que compõem um mesossistema é
otimizado se a transição inicial da pessoa no novo ambiente se der na companhia de uma
pessoa pertencente ao ambiente anterior, por exemplo, no assunto em questão, se um
cuidador/responsável acompanhar a criança/adolescente (Bronfenbrenner, 1979/1996),
neste caso, ao CREAS – Centro de Referência Especializado da Assistência Social.
Nessa perspectiva, Bronfenbrenner considera ainda que a capacidade desenvolvimental
dos mesossistemas aumenta pelo número de inter-relações entre um contexto e outro,
principalmente se estas relações se derem com pessoas que já estabeleceram díades
primárias, ou seja, relações que já não dependem da presença física das pessoas para
continuarem a existir. Uma terceira força de influência no desenvolvimento são os
exossistemas. Estes compreendem aquelas estruturas sociais formais e informais que,
embora não contenham a pessoa em desenvolvimento, influenciam e delimitam o que
acontece nos ambientes mais próximos: a família extensa, as condições e as experiências
de trabalho dos adultos e da família, as amizades, a vizinhança do bairro em geral. O
macrossistema inclui os valores culturais, as crenças, as situações e acontecimentos
históricos que definem a comunidade, na qual, os outros três sistemas estão inseridos,
podendo portanto, afetá-los: os estereótipos, os preconceitos de determinadas
sociedades, períodos de graves situações econômicas dos países e a globalização entre
outros componentes culturais. Diante do exposto, o modelo biecológico se constitui
em um suporte metodológico apropriado para a realização de pesquisas sobre aspectos
psicoeducacionais e de desenvolvimento-no-contexto.
O quarto componente do modelo bioecológico é o Tempo. Este permite examinar
as influências sobre o desenvolvimento humano, as mudanças e continuidades que
78
Aletheia 37, jan./abr. 2012
acontecem ao longo da vida. Nessa perpectiva, a relação a ser investigada entre o
Serviço de Enfrentamento à Violência, ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e
Adolescentes e as famílias, representa o que na linguagem ecológica de Bronfenbrenner,
é um estudo de mesossistema, ou seja, a análise de dois microssistemas de grande
influência na vida das crianças e dos adolescentes, neste caso específico, vítimas de
diferentes modalidades de violência sexual.
Para este estudo foram entrevistados dois técnicos do Serviço: um psicólogo e
um assistente social, que relataram o processo de atendimento aos usuários. Também
foi realizado contato com a coordenadora do mesmo, que descreveu a proposta, os
objetivos e o histórico no serviço no município investigado.
O critério de escolha destes técnicos foi o fato destes serem concursados, para
que os mesmos pudessem se sentir mais a vontade para falar sobre seu trabalho. A
assistente social trabalha no Serviço há aproximadamente dois anos e possui duas
especializações: uma em Atenção Psicossocial e outra sobre Programa Saúde da Família
– PSF. A psicóloga está neste Serviço há sete anos, não tem especialização na área, mas
possui um curso de perícia na área da violência física e psicológica. Os participantes
assinaram um Termo de Consentimento livre e esclarecido elaborado de acordo com
os artigos da resolução CFP no 16/2000.
De acordo com o pressuposto da inserção ecológica, para se efetuar o
estabelecimento de processos proximais deve haver uma base relativamente regular
de interações por períodos de tempo. Assim, foram realizadas 17 visitas ao Centro de
Atendimento: 7 (sete) foram realizadas em horário integral (manhã e tarde) e 10 (dez)
em horários alternados. Estas foram parte do processo de inserção da pesquisadora no
contexto pesquisado. As visitas possibilitaram a observação sistemática da dinâmica
do serviço e de alguns aspectos das interações dos trabalhadores sociais e as famílias
atendidas. As dinâmicas observadas foram: as interações na sala de espera durante os
atendimentos, 3 (três) visitas às residências, participação em reuniões em grupo com as
famílias e os contatos de comunicação do serviço com o Conselho Tutelar. Para registro
foi utilizado o diário de campo cujas anotações eram sobre as percepções e vivências
no ambiente pesquisado, além de detalhes observacionais não contemplados pelas
entrevistas. Este instrumento de registro contribui para a identificação de processos
presentes em conversas informais, descrição do ambiente e outras situações que foram
observadas durante a inserção ecológica do pesquisador.
Os técnicos do Serviço foram entrevistados a partir de um guia de perguntas
semiestruturado. No início de cada contato, os objetivos da pesquisa foram apresentados
pela pesquisadora, ou seja, de contribuir para a implementação do atendimento no
Serviço. Foi reiterada a importância da participação para o desenvolvimento da
pesquisa e a elaboração de estratégias para melhorar a qualidade do Serviço oferecido
à comunidade. Para tanto, o roteiro elaborado para a entrevista buscou identificar
os seguintes pontos na percepção dos técnicos: riscos mais frequentes aos quais as
vítimas estão submetidas, características da vítima e do agressor, características do
ambiente em que residem as famílias, das práticas parentais nas famílias, tipo de
Aletheia 37, jan./abr. 2012
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relação que estabelecem com a comunidade em que estão inseridas e por fim, como
percebem o seu papel no Serviço prospectando o resultado de seu trabalho. Todas
as entrevistas foram gravadas, transcritas na íntegra e analisadas seguindo os passos
da grounded-theory.
A grounded-theory foi cogitada, neste caso, por oferecer condições de
descobertas de uma teoria a partir dos dados coletados (Charmaz, 2009). Esta
metodologia de análise permite ao pesquisador a possibilidade de organizar uma
grande quantidade de dados qualitativos, obtidos a partir dos relatos, proporcionando
a descoberta de códigos, categorias e subcategorias que emergem a partir das
análises. Embora não exista uma tradução literal da expressão grounded-theory para
o português, esta é uma forma de análise conhecida como “teoria fundamentada
nos dados”. O objetivo do pesquisador ao utilizar esta metodologia de análise é
compreender uma determinada situação e entender o conteúdo subliminar de ações,
percepções, crenças, atitudes e comportamentos. O processo de ler e reler, escrever
e reescrever, ouvir r re-ouvir as gravações das entrevistas realizadas com os técnicos
e com as famílias propicia a descoberta dos códigos, a eleição de subcategorias e
categorias e o encontro se suas inter-relações. O detalhamento será apresentado na
seção resultados. O rigor dos procedimentos desta forma de análise possibilita uma
certa “descontaminação” das ideias teóricas e hipóteses previamente elaboradas
para a realização do seu estudo.
Resultados
A seguir serão apresentadas as categorias extraídas a partir das narrativas e
perspectivas dos profissionais entrevistados na seguinte sequência: (a) dinâmica de
funcionamento do serviço; (b) as famílias atendidas no Serviço; (c) dificuldades no
cotidiano do trabalho no Serviço.
Dinâmica de funcionamento do Serviço
Os relatos dos três técnicos entrevistados foi consistente e as observações
realizadas evidenciam os processos do fluxo de funcionamento da rede apoio social às
crianças e adolescentes vítimas de violência, bem alguns aspectos do atendimento do
serviço investigado (Figura 1). Segundo os entrevistados, as pessoas são encaminhadas
ao Serviço através de órgãos como: Conselho Tutelar, Ministério Público, Delegacias
de Polícia, Juizado da Infância e da Adolescência, hospitais e recepcionadas por um
assistente social. Este momento é definido como “abertura de caso” ou “acolhimento”,
termo utilizado pelos três técnicos. Na acolhida, é realizada a anamnese social da
família, para a elaboração do diagnóstico e de um possível plano de ação, no qual,
são levadas em consideração as vulnerabilidades e potencialidades das famílias.
“Quais as necessidades, vulnerabilidades e potencialidades da família? Em cima das
vulnerabilidades a gente vai montar nosso plano de ação” (Assistente Social).
Constatada a necessidade de tratamento no Serviço, o responsável é encaminhado
ao psicólogo, que também realiza uma bateria de questionamentos, mas agora com
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outro enfoque. “A primeira entrevista com a psicóloga, também é com o cuidador
ou a pessoa responsável para fazer a anamnese psicológica e depois é que vão
marcar com a criança” (Assistente Social). Somente após estas entrevistas com os
responsáveis é que o psicólogo passa a atender a pessoa vítimizada sistematicamente.
Vale destacar que a criança ou o adolescente neste processo é atendido apenas
pelo psicólogo. Segundo a coordenadora e a assistente social, esta é uma forma de
proteção instituída no Serviço, com intuito de poupá-los de verbalizar várias vezes
a situação ocorrida a diferentes técnicos. “Toda criança e adolescente que chega ao
Serviço de avaliação e tratamento já falou pra muita gente (Assistente Social)”.
Estas crianças e adolescentes são incluídos nos grupos psicoterapêuticos, onde são
utilizadas diferentes técnicas que permitem que o profissional identifique as situações
de violência da qual a criança/adolescente foi vítima, sem que esta precise relatar
verbalmente a situação ocorrida.
No que tange às metodologias de acolhimento e organização do espaço de
atendimento às crianças ou aos adolescentes, constata-se a utilização de diferentes
atividades lúdicas e o cuidado no uso de uma linguagem mais acessível que possibilite
expressões de forma criativa e espontânea dos sentimentos, medos e inseguranças. “Às
vezes, elas desenham tal e qual, outras no brinquedo ela coloca o boneco em cima
do outro e consegue te mostrar a situação de abuso” (Psicóloga). Já os cuidadores
são convocados a participarem de reuniões em grupo sob a coordenação de um
assistente social. Nestas reuniões são transmitidas orientações a respeito da educação
dos filhos, as fases de desenvolvimento da criança e do adolescente e estratégias de
como lidar com o problema que estão enfrentando, buscando assim colaborar para que
haja o entendimento e a superação da violência vivenciada e a troca de experiências
e angústias entre cuidadores. “Eu acho que o grande barato, talvez o ganho mesmo
do grupo é essa troca entre elas.[...]” (Assistente Social).
No decorrer do processo de acompanhamento, as técnicas entrevistadas
ressaltam que a assistente social faz a visita domiciliar, com intuito de ver in loco a
realidade desta família. “A gente tá fazendo no mínimo duas visitas no decorrer da
criança aqui. Uma na avaliação e outra no tratamento”. (Assistente Social). Uma
das práticas do Serviço é a realização sistemática de reuniões envolvendo toda a
equipe técnica, ou seja, entre a coordenadora, os psicólogos e os assistentes sociais.
O objetivo das mesmas é a troca de informações a respeito dos casos novos, sugestões
de abordagens, dúvidas, relatos dos casos em andamento ou demais dificuldades
que possam estar enfrentando. “A reunião é quarta-feira de manhã. Tu leva para
a equipe técnica, já apresenta ali e já troca umas ideias . Já se pensa em algumas
intervenções” (Assistente Social).
Aletheia 37, jan./abr. 2012
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As famílias das vítimas são encaminhadas ao
Serviço através de órgãos como:
Conselho Tutelar, Ministério Público, Delegacia de Polícia,
Juizado da Infância e da Adolescência, hospital, escolas...
No Serviço, as famílias são recebidas por um assitente social,
para avaliação/diagnóstico do caso
Há casos em que não
se detecta necessidade
de tratamento
Diagnosticada a necessidade de tratamento
São acionados diferentes
serviços sociais
É enviado um relatório
para o órgão que fez o
encaminhamento
Um responsável
é encaminhado ao psicólogo
para anamnese familiar
O responsável é convocado
a participar dos grupos
de cuidadores
São realizadas pelo menos
duas visitas domiciliares
A criança/adolescente
é encaminhado a um psicólogo
e a um grupo psicoterapêutico
Alta do tratamento após
avaliação e consenso dos
técnicos do serviço
Figura 1 – Descrição da dinâmica de atendimento/tratamento.
Os técnicos entrevistados demonstraram satisfação com o resultado de seu
trabalho. “Nós temos tido bons resultados. A gente tem tido poucos retornos depois da
alta, poucos tiveram reincidência.” A psicóloga atribui o sucesso do trabalho realizado
a dois fatores: primeiro ao trabalho em grupos de cuidadores, “[...] esse avanço que a
gente teve foi o trabalho em grupo. À medida que eles trocam, têm a possibilidade de ver
que a dor deles também é a dor do outro e podem dividir. Psicologicamente conseguem
evoluir relativamente bem”, e em segundo lugar, atribui o sucesso ao vínculo da família
com o serviço e sua responsabilidade com o tratamento da vítima. “Não adianta a
criança vir e a família não vir” (Psicóloga). Azevedo e Guerra (1994) estão de acordo
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com este elemento e sugerem que a vítima e a família devem ser encaminhadas a um
tratamento compulsório na comunidade com duração de no mínimo dois anos.
A assistente social entrevistada também percebe o resultado positivo do seu
trabalho, no relato das mudanças de conduta parental das cuidadoras durante as reuniões
de grupo quando afirma que “algumas estão conseguindo fazer diferente” referindo-se
às novas posturas com relação à educação dos filhos. A profissional do serviço social
afirmou que: “o resultado pra mim é o comprometimento da família, tu vai medindo,
a caminhada dessas famílias junto da instituição, adesão ao tratamento”. Acrescenta
ainda que: “Compreendo que a família tá num processo de transformação, tá se
construindo”. Referindo-se a família que “nunca teve acesso nunca teve aquele modelo,
nunca foi cuidada”. De forma geral, suas falas evidenciam a relevância do vínculo
familiar para o tratamento efetivo das vítimas e das famílias e a visão processual das
técnicas sobre o tratamento, sublinhando que nos grupos de cuidadores são discutidas
questões referentes ao cuidado, educação, violência e outros temas detectados por
estes técnicos.
Características das famílias atendidas no Serviço
A partir das narrativas constatou-se uma variedade de adjetivos que caracterizam
as percepções dos técnicos sobre as famílias usuárias do Serviço. Segundo estas
profissionais a maioria das famílias atendidas pelo Serviço é de baixa renda. Mas
reconhecem que a violência está presente em todas as classes sociais. Segundo a
assistente social, as residências das famílias não apresentam condições de extrema
pobreza. No entanto se destacam pelo elevado número de filhos que possuem. Por este
motivo precisam dividir o mesmo cômodo pra dormir, fato este que ocasiona a falta
de privacidade das pessoas e segundo a técnica, pode estimular de maneira precoce
a sexualidade das crianças. Talvez este seja um paradoxo na fala da profissional, que
apesar de reiterar a violência sexual como fenômeno “democrático”, acentua pontos
característicos de moradia das classes pobres como possíveis estímulos de situações
abusivas.
A assistente social relatou que muitas famílias atendidas no Serviço apresentam
grande demanda, pois “são pessoas carentes e abandonadas socialmente.” Apontou
também que, de modo geral, a família contemporânea vive um momento de muita
fragilidade. Atribui esta condição ao ingresso da mulher no mercado de trabalho, e
à falta de serviços públicos destinados ao cuidado dos filhos destas trabalhadoras.
Muitas mães não têm com quem contar para cuidar e orientar seus filhos a respeito
de valores, hábitos e atitudes, no período em que elas estão trabalhando. Por este
motivo, a assistente social entrevistada percebe que muitas crianças ficam totalmente
desamparadas durante o período de expediente de trabalho da mãe. Justifica desta forma,
a fragilidade das relações familiares. Estas situações de vulnerabilidade, as quais estão
submetidas estas crianças e adolescentes, ocorrem muitas vezes por falta de uma figura
de proteção. Para a técnica, estes fatos denunciam que a família necessita cada vez
mais dos serviços sociais. Outra característica percebida nas famílias é a presença da
violência no seu cotidiano, especialmente no trato com os filhos. Quanto ao perfil das
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mães, a assistente social relatou que muitas apresentam baixa autoestima e se mostram
dependentes e pouco assertivas. Afirmou ainda a importância de investigar a questão
da transgeracionalidade das situações de abuso e violência, já que muitas das mães das
vítimas também sofreram de violência sexual.
Quanto à relação das famílias com a comunidade, as profissionais apontam que
as interações das famílias com outros contextos, são restritas às figuras dos vizinhos,
que desempenham papel fundamental na condição de necessidade de auxílio mútuo.
Nestas relações se estabelece um vínculo quase familiar, de cuidado e até de suporte
financeiro (Yunes, 2001). As técnicas revelam que no que se refere ao conhecimento
das potencialidades do bairro em que residem, as famílias sabem muito pouco. Este
desconhecimento nos remete ao fato de que as famílias de um modo geral, não são
sabedoras dos serviços e políticas sociais às quais têm direito e, por este motivo, não
usufruem nem sabem reivindicá-los (Yunes, Garcia & Albuquerque, 2007) A psicóloga
entrevistada também observa que as famílias têm como característica o isolamento da
comunidade em que estão inseridas. Esse isolamento favorece a perpetuação do segredo
nos casos de abuso sexual (Furniss, 1993; Pietro & Yunes, 2008). Nestas famílias, o
homem exerce extrema autoridade sobre os filhos ou enteados e a mulher é subjugada
a este sistema (Sarti, 1996) e essa submissão e dependência da mulher para com seu
marido ou companheiro pode interferir na relação que esta mãe estabelece com seus
filhos bem como no seu autoconceito.
A partir do atendimento que realizam e das informações que obtém no contato
direto com as famílias das vítimas de violência, as profissionais apontam e identificam
as causas da violência familiar na sua visão. A análise das entrevistas evidenciou que
são múltiplas as causas da violência segundo as percepções das técnicas entrevistadas.
Segundo elas, estas famílias estão expostas a muitos fatores de risco microssistêmicos,
ou seja, são referidas várias situações que podem ocasionar violência familiar. As mais
citadas são: vulnerabilidades individuais, mudança/transformação de papéis e funções
na família contemporânea, práticas educativas autoritárias ou violentas, uso de drogas
ou álcool e a transgeracionalidade da violência. Estes fatores de risco que emergem
internamente na história da dinâmica do grupo familiar, as profissionais julgam como
fragilidade das relações familiares. Segundo a assistente social a fragilidade nos grupos
familiares é vinculada ao fato de que as crianças “não têm afeto e atenção”, fatores
que segundo ela favorecem as situações de negligência e descuido: “a maioria dos
acidentes é dentro de casa, são acidentes domésticos”.
No que tange aos fatores de riscos macrossistêmicos e à vulnerabilidade social,
as duas profissionais apontaram a baixa renda e a pobreza sócioeconômica como
importantes variáveis de risco. A psicóloga salientou na entrevista que estes não são
fatores únicos, pois uma série destes fatores geram outros riscos, denotando mais
uma vez a perspectiva processual e sistêmica na maneira de elaborar conceitos. No
que se refere às causas da violência, a assistente social apresentou uma percepção
ampla e atualizada do tema. Ressalta em primeiro plano, a dimensão macrossistêmica,
apontando várias causas, dentre elas: questões sociais, onde há um grande contingente de
famílias carentes “tanto de habitação, educação, falhas que o sistema não tá ofertando,
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desemprego...”. Tal elaboração nos remete ao conceito de violência estrutural de
Minayo (1994).
Outro fator de risco macrossistêmico sublinhado por estes agentes sociais é que
com o ingresso da mulher no mercado de trabalho, a escassez de serviços públicos
destinados ao cuidado dos filhos destes trabalhadores, pode acarretar em inúmeros
problemas familiares de proteção às crianças e adolescentes, com desgaste mais
específico para a figura materna. As profissionais denotam ciência de que as dificuldades
enfrentadas pela mulher contemporânea podem ficar ainda mais complicadas, nos casos
de separação conjugal e monoparentalidade feminina, pois é fato que a grande maioria
de casamentos quando se desfazem, deixam para a mulher a maior carga de cuidado
e responsabilidade com os filhos, o que é consistente com a literatura sobre o tema
(Carter & Mc Goldrick, 2008; Yunes, Mendes & Albuquerque, 2007).
No que se refere às práticas parentais, a assistente social relatou que a questão
do cuidado e da educação das crianças e adolescentes ainda é muito restrita à figura da
mulher. As mães/cuidadoras aceitam este fato com naturalidade, e justificam o mesmo
devido ao trabalho do marido/companheiro (Sarti, 1996). O discurso da assistente
social revelou que ainda é muito forte a relação de poder exercida por quem cumpre
o papel de provedor, evidenciando o desequilíbrio de poder nas relações familiares,
fato exaustivamente demonstrado no clássico trabalho antropológico de Sarti (1996)
na periferia de São Paulo e que ao que parece, não mudou muito durante estes anos e
parece valer para famílias de baixa renda de diferentes regiões do Brasil. A profissional
entrevistada apontou também que há casos em que os responsáveis não se comprometem,
nem definem questões de educação e cuidado dos filhos, vivendo numa constante
situação de delegar a outra pessoa estas questões. “Ela espera do marido, o marido
espera dela, que passa pra vó, que mora junto”. Certamente esta atitude de falta de
compromisso com a educação dos filhos e de delegar ao outro estas questões, sem
que ninguém realmente se comprometa, pode trazer consequências prejudiciais ao
desenvolvimento de crianças e adolescentes.
A psicóloga referiu-se ainda a famílias que não respeitam as fronteiras
transgeracionais. Muitos pais desrespeitam as etapas de desenvolvimento de seus
filhos e exigem que estes desempenhem tarefas para os quais não estão muitas
vezes física, psicológica e cognitivamente preparados. Isso não deixa de ser uma
modalidade de violência que mereceria especial atenção. Apontou ainda a questão da
transgeracionalidade como um fator de risco, afirmando que há casos em que os pais
foram vítimas de situação de negligência, de violência física ou sexual, e que poderão
reproduzir junto aos filhos, o que do ponto de vista científico ainda é assunto polêmico
na literatura (Carter & McGoldrick, 2008).
Dificuldades apontadas pelos agentes sociais
Os trabalhadores sociais entrevistados relataram as dificuldades enfrentadas no
desenvolvimento das ações e no atendimento à população foco. A assistente social
referiu-se basicamente à dificuldade de estabelecer um efetivo trabalho em rede com os
demais órgãos de assistência social, uma vez que para suprir as demandas específicas da
Aletheia 37, jan./abr. 2012
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população atendida, necessitam de outros serviços de suporte. Como explica a seguir:
“Tu faz um belo laudo, cheio de referenciais teóricos, bota teu carimbo, assinas. Precisa
de avaliação neurológica, psicológica e psiquiátrica dos pais e acompanhamento. Se
essa rede não vai dar, não vai conseguir comportar, não vai acolher. Nem sempre se
consegue”. A esse respeito Faleiros e Costa (1998) apontam que as políticas públicas
brasileiras caracterizam-se pela pouca articulação e fragmentação entre as redes de
proteção e combate à violência sexual. A profissional apontou também o despreparo
profissional das pessoas que atuam na rede social: “Tu vê pessoas, profissionais que
trabalham na área da assistência social que se dizem pertencem a uma rede e que
não conhecem as políticas que implementam essa rede”. Expressou a dificuldade de
estabelecer um diálogo com outros serviços: “[...] eu sei o que é essa angústia de tu
queres buscar mais informações a respeito dessa família. Às vezes, tu não és recebido,
às vezes tu não consegues. Relatou ainda problemas internos do Serviço que poderiam
ser sanados pelo órgão Executivo municipal, uma vez que este Serviço esta inserido
na Secretaria da Assistência Social do Município.
Outro aspecto identificado foi a ausência de uma pedagoga no Serviço, o que
resulta numa lacuna no atendimento em termos da avaliação do desenvolvimento
escolar destas crianças e adolescentes. Embora outros técnicos estejam buscando
suprir esta deficiência, este fato resulta em atrasos ou sobrecarga dos demais técnicos
que não têm formação adequada para o desenvolvimento deste trabalho. “A questão
da distribuição das escolas, fica pro técnico que tá mais liberado.” Outro complicador
é o fato de haver profissionais contratados, referindo-se ao problema da instabilidade
dos técnicos no Serviço. Sobre esta questão expressou que: “em termos de projetos...
sonhos que eu teria pro nosso Serviço, é poder ter uma equipe completa, todos
nomeados sem ter contratados”. Afirmou que esta situação “Pro Serviço isso tem um
impacto muito grande”. A assistente social refere-se à lacuna que a saída de um técnico
provoca na equipe, seja por demissão ou pela não renovação do contrato e o impacto
no atendimento ao usuário.
Discussão
O estudo realizado numa cidade do interior do RS possibilitou constatar que o
Serviço pesquisado está cumprindo com seus objetivos, contribuindo para a promoção,
defesa e garantia de direitos de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual.
Esta constatação foi possível através da análise das práticas de atendimento/tratamento
oferecidas aos usuários no município investigado, das observações realizadas e das
categorias que emergiram nas entrevistas das profissionais. No entanto, o estudo
realizado com os profissionais apontou ainda a necessidade de suprir a demanda de
melhoria da estrutura de atendimento às crianças e adolescentes vítimas de violência
e, assim, promover a articulação mais efetiva entre os serviços da rede de apoio social,
como conselhos tutelares, escolas, unidades de saúde, promotoria de Justiça, Juizado da
Infância e da Adolescência, Secretaria da Assistência Social, dentre outros. Tal trabalho
em rede de colaboração é requerido para fazer o encaminhamento das vítimas aos
serviços, seja para regulamentar o afastamento e punição do agressor ou para fornecer
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Aletheia 37, jan./abr. 2012
certidões e outros documentos que por ventura as famílias não possuam, dentre outras
demandas (Pietro & Yunes, 2012).
A concepção de rede de colaboração e sua importância para a eficácia dos serviços
de saúde à comunidade estão claramente expressas nos conceitos da teoria ecológica de
Bronfenbrenner (1979/1996), no que se refere às formas de comunicação e consequentes
inter-relações microssistêmicas. Tais relações podem formar mesossistemas de risco ou
proteção. No caso do Serviço pesquisado, os técnicos se mostraram alertas e protetivos,
pois logo após a constatação da situação de violência, pedem o afastamento do agressor
junto ao Ministério Público e procuram atuar em rede para evitar que a criança ou
adolescente seja re-vitimizado por ser retirado da família e da comunidade em que
vive em casos de inserção em casa de acolhimento.
Os técnicos entrevistados afirmaram ainda que, embora não tenham estatísticas
numéricas, percebem que é baixo o índice de reincidências após a alta do tratamento no
Serviço. Pode-se constatar que os resultados favoráveis são fruto de múltiplos fatores,
como: o trabalho comprometido da equipe técnica para com os usuários evidenciado por
demonstrações de interesse e satisfação em trabalhar com os solicitantes; preocupação
dos profissionais em manter uma formação acadêmica específica, com participação
ativa em cursos de especialização direcionados à área de atuação de violência sexual;
participação em avaliações sistemáticas acerca do funcionamento da equipe técnica;
participação em reuniões semanais envolvendo toda equipe para a discussão dos casos
mais “delicados” e apresentação de novos casos; desenvolvimento de um trabalho
comunicativo entre as equipes multidisciplinares de outros serviços, o que permite um
olhar mais abrangente dos casos em andamento; a busca constante de novas estratégias
e de abordagens que promovam o maior envolvimento dos usuários no tratamento
(evidenciado pela satisfação dos usuários participantes nos grupos de cuidadores e das
crianças/adolescentes nos grupos psicoterápicos) e a norma interna de obrigatoriedade
da participação de pelo menos um responsável/cuidador adulto no tratamento da criança
ou do adolescente.
Uma prática de atendimento valorizada pelos profissionais foi a construção de um
espaço destinado à troca de experiências entre os responsáveis das famílias vitimizadas
que integravam os grupos de cuidadores. Nessa perspectiva, poder-se-ia dizer que
o potencial de desenvolvimento humano é otimizado através de relações proximais
que ocorrem entre pessoas que provém de ambientes de convívio com características
similares e que tenham papéis e vivências próximas. Segundo considerações dos
entrevistados, o resultado mais importante é a ajuda mútua e os indícios de reciprocidade
possibilitada pelos conteúdos que são discutidos em grupo e “amenizados” em suas
consequências a partir da catarse grupal. Por último, é preciso destacar o respeito, o
cuidado e a relação de empatia da equipe técnica para com os usuários e entre os próprios
usuários. Vale ressaltar que estes elementos de análise emergiram das entrevistas, das
observações da rotina do Serviço e dos diálogos informais realizados pela pesquisadora
com os profissionais durante o período de inserção.
No que se refere às relações e interações dos técnicos com as famílias usuárias
deste Serviço, pode-se afirmar que as relações profissionais são pautadas pelos
princípios do respeito, alteridade, e crenças otimistas no desenvolvimento das pessoas
Aletheia 37, jan./abr. 2012
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em situações de sofrimento (Yunes, 2007; Siqueira, Betts, Dell`Aglio, 2006). Apesar
dos resultados positivos do Serviço, com relação à superação da situação de violência
e os baixos índices de reincidência, há ainda algumas sugestões que na percepção
dos técnicos poderiam melhorar a qualidade do Serviço oferecido à comunidade. Os
técnicos salientaram a necessidade da incorporação de um profissional da área da
educação e sugerem que todos os profissionais sejam funcionários concursados para
maior estabilidade do próprio Serviço e de sua filosofia de atendimento. É fato que
as mudanças provocadas por trocas constantes de funcionários nos serviços públicos
de saúde e educação, ocasionam ruptura nos tratamentos, provocam lacunas de tempo
em processos burocráticos e podem ocasionar quebra de relações já estabelecidas
entre o usuário e o novo técnico, exigindo pra isto, período de adaptação e algumas
vezes, o recomeço do “zero”.
O estudo realizado identificou necessidades na implementação das seguintes
ações ao Serviço: o desenvolvimento de um trabalho específico para as mães/
cuidadoras que também foram vítimas de abuso sexual durante a infância ou a
adolescência; a disponibilidade de inclusão de um profissional da área jurídica para
assessorar os casos em andamento; e a efetivação de um trabalho em rede mais amplo
e articulado, uma vez que muitas famílias que são encaminhadas apresentam uma
demanda que extrapola as atribuições do Serviço em questão. Portanto, as ações e
intervenções devem ser de caráter ecológico-sistêmico e não individuais.
Conclui-se que apesar das adversidades estruturais do Serviço pesquisado, o
mesmo está cumprindo o seu papel do ponto de vista humano e relacional, já que
vem colaborando para minimizar os danos psicológicos dos envolvidos na complexa
situação de violência sexual. As práticas de intervenção parecem atingir os objetivos
de apoiar a superação do sofrimento com o fortalecimento e empoderamento das
famílias, tanto individual como socialmente.
Portanto, um serviço como este, que se dispõe a atender vítimas de violência
é mais uma conquista das políticas públicas brasileiras que visa a garantir os
direitos fundamentais de crianças e adolescentes a um atendimento especializado e
protetivo, e por isso deve valorizar, proteger e acompanhar os profissionais que nele
atuam, pois os resultados dependerão da qualidade das relações micro, meso, exo e
macrossistêmicas.
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_____________________________
Recebido em julho de 2012
Aceito em agosto de 2012
Beatriz Mello de Albuquerque – Pedagoga, Especialista e Mestre em Educação Ambiental. Professora da
Rede Pública Municipal.
Narjara Mendes Garcia – Pedagoga, Mestre e Doutora em Educação Ambiental. Professora Assistente do
Instituto de Educação na Universidade Federal do Rio Grande.
Maria Angela Mattar Yunes – Psicóloga, Doutora em Educação: Psicologia da Educação, Professora no
Mestrado em Educação do Centro Universitário La Salle, Unilasalle/Canoas. Professora colaboradora no
Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental da FURG, Rio Grande, RS.
Endereço para contato: [email protected]
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Aletheia 37, jan./abr. 2012
Aletheia 37, p.91-104, jan./abr. 2012
Bem-estar pessoal de pais e filhos e seus valores aspirados
Jorge Castellá Sarriera
Verônica Morais Ximenes
Lívia Bedin
Anelise Lopes Rodrigues
Fabiane Friedrich Schütz
Carme Montserrat
Caroline Lima Silva
Resumo: O bem-estar pessoal de adolescentes é um tema de crescente interesse na literatura
científica, especialmente quando se considera a escassez de artigos que considerem o ponto de
vista dos adolescentes. Este estudo busca analisar relações entre bem-estar pessoal de pais e filhos
e seus valores aspirados. A amostra compõe-se de 543 adolescentes de 12 a 16 anos, de ambos os
sexos, e seus pais ou responsáveis. Utilizam-se os instrumentos Personal Well-Being Index (PWI)
para medir níveis de bem-estar, e Aspiration Index para identificar valores aspirados. Obteve-se
uma função discriminante entre pais e filhos agrupando significativamente as variáveis de bemestar pessoal discriminando a favor dos filhos, e as variáveis de valores de caráter abstrato e
humanista discriminando a favor dos pais, sem apresentar diferenças entre os de valores materiais
e de habilidades e conhecimentos. Os resultados contribuem para a discussão sobre a transmissão
de valores e do bem-estar em contexto familiar.
Palavras-chave: valores, bem-estar subjetivo, adolescentes.
Personal well-being of parents and children and their aspirated values
Abstract: The personal well-being of adolescents is a subject of growing interest in the scientific
literature, especially considering the scarcity of articles that consider adolescent’s points of view.
This study aims to analyze the relationships between personal well-being of parents and children
and their aspirated values. The sample consists of 543 adolescents aged 12 to 16 years, of both
sexes, and their parents or guardians. The Personal Well-Being Index (PWI) is used to measure
personal well-being, while the Aspiration Index is used to measure aspired values of both groups.
A discriminant function was obtained between parents and children gathering the personal wellbeing variables significantly towards children, and gathering the variables of humanistic values
discriminate in favor of parents, without differentiating material values, skill and knowledge’s
values. These results contribute to the discussion on the transmission of values and well-being in
the family context.
Keywords: values, subjective well-being, adolescence.
Bienestar personal de padres e hijos y sus valores aspirados
Resumen: El bienestar personal de los adolescentes constituye un tema de creciente interés en
la literatura científica, sobre todo cuando se tiene en cuenta el reducido número de artículos que
tiene consideran el punto de vista de los adolescentes. Este estudio busca analizar relaciones entre
el bienestar personal de padres y hijos y sus valores aspirados.
La muestra se compone de 543 adolescentes escolarizados de ambos sexos, con edades comprendidas
entre 12 y 16 años y sus padres de ambos sexos entre 27 y 70 años. Se utiliza la escala de Personal
Well-Being Index (PWI) para medir los niveles de bienestar, y el Aspiration Index para identificar
los valores aspirados por ambos grupos. Se obtuvo una función discriminante entre padres e hijos
reuniendo significativamente las variables de bienestar personal a favor de los hijos y las variables
de valores de carácter abstracto y humanista a favor de los padres, sin diferenciar los valores
materiales, las habilidades y el conocimiento. Los resultados contribuyen a la discusión sobre la
transmisión de valores y el bienestar en el contexto familiar.
Palabras clave: valores, bienestar subjetivo, adolescentes.
Introdução
Muitos estudos sobre bem-estar pessoal têm sido conduzidos com população adulta
enquanto poucos tiveram como foco crianças e adolescentes (Casas, 2010; Casas et al.
2012; Veenhoven, 2009). As publicações que consideram a satisfação dessa população
quanto aos diferentes aspectos de suas vidas e seus valores são escassas. Além disso,
raramente crianças e adolescentes podem participar como informantes, considerando-se
supostos problemas de credibilidade. Entretanto, estudos com população adolescente
reforçam a confiabilidade das respostas dos adolescentes (Casas & Bello, 2012).
Profissionais de diferentes âmbitos (acadêmicos, profissionais, políticos) afirmam, cada
vez mais, que as opiniões e avaliações de crianças e adolescentes devem ser levadas em
conta, tanto na concepção de políticas e programas que promovam o bem-estar durante
sua infância como também na vida adulta.
Bem-estar é um termo que possui múltiplos significados, para o qual não existe
uma definição consensual (González, 2006). A felicidade e a satisfação com a vida são
alguns dos principais aspectos que compõe o bem-estar subjetivo (Diener, Scollon &
Lucas, 2003). Assim, a avaliação de diferentes níveis de bem-estar ao longo da vida,
mantém seu foco em aspectos positivos, não se limitando à identificação de patologias
(Diener, Suh & Oisihi, 1997).
Já em pesquisas realizadas na Austrália e Espanha (Casas, 2010; Cummins & Lau,
2005), a expressão bem-estar pessoal tem sido a mais adotada. Essa se refere a sentirse globalmente bem ao longo do ciclo vital. O bem-estar tem sido objeto de interesse
em diversas investigações que buscam identificar quais variáveis fazem com que os
indivíduos avaliem sua vida como globalmente satisfatória (Casas, 2010; Veenhoven,
2009). Benatuil (2003), em seus estudos sobre bem-estar realizados com população
latino-americana, aponta a utilização de instrumentos de avaliação baseados em uma
concepção unidimensional de bem-estar.
Tendo em vista a proposta de somar a perspectiva dos adolescentes a de outros atores
– tais como pais, professores, psicólogos – é possível que se obtenham ganhos de pesquisa
em termos de riqueza e compreensão do fenômeno, possibilitando a problematização
de alguns clichês contraditórios ancorados na perspectiva adulta. É neste sentido que os
seguintes questionamentos são propostos: Quais são os valores que crianças e adolescentes
aspiram? Esses valores são compatíveis com os de seus pais? Qual é a sua relação com
o bem-estar pessoal dos adolescentes?
Os valores podem ser relacionados ao bem-estar na medida em que servem como
guias para diferentes escolhas que o sujeito fará ao longo de sua vida. O estudo dos valores
92
Aletheia 37, jan./abr. 2012
humanos é considerado ainda um tema complexo. Considerando a expressiva quantidade
de trabalhos empíricos relacionados a essa temática, evidencia-se ainda uma escassez em
termos de sistemas teóricos consistentes, a fim de que haja uma melhor incorporação dos
resultados (Gouveia, 2003). No princípio da década de 80, Rokeach (1981) definiu valores
como sendo uma espécie de padrão ou medida, cuja principal função seria servir de guia
para as ações e atitudes e formas de estabelecer comparações, avaliações e justificativas
tanto de si próprio quanto dos outros.
Aproximadamente 10 anos mais tarde, Schwartz (1994) definiu valores como
critérios ou metas que transcendem situações específicas, ordenados por importância
e representam objetivos humanos básicos. Para o autor, os valores humanos básicos
são identificados em dez tipos de valores motivacionais: poder, realização, hedonismo,
estimulação, autodeterminação, universalismo, benevolência, tradição, conformidade e
segurança. Esses são universais porque atendem as necessidades biológicas, sociais e
socioinstitucionais concernentes à sobrevivência e ao bem-estar dos grupos, consideradas
requisitos da existência humana.
Nesse sentido, os valores estão presentes em diferentes culturas. Eles possuem
componentes motivacionais, cognitivos, afetivos, culturais e comportamentais e estão
organizados em um sistema ordenado ao longo de um continuum de importância, podendo
influenciar as atitudes e ações de outras pessoas (Schwartz, 2005).
Os valores ou orientações valorativas sustentam-se em crenças duradouras,
constituídas de acordo com o contexto social ou cultural no qual o sujeito está inserido.
Portanto, podem determinar o modo como o sujeito se comporta, seja no âmbito pessoal
ou social. Acredita-se na possibilidade de transmissão/influência dos valores aspirados dos
pais para os seus filhos adolescentes, o que pode fundamentar suas escolhas, aspirações
e atitudes perante a vida, e por consequência, influenciar em seu bem-estar.
Entretanto, ressalta-se que os valores não devem ser entendidos simplesmente como
palavras que devem ser ensinadas pelos pais a seus filhos, uma vez que compreendem
um sistema de ideias e conceitos de caráter latente, responsáveis por orientar as pessoas
a viver em sociedade (Gouveia, 2003). A família, espaço de socialização primária, exerce
influência significativa na formação do indivíduo, sendo que as práticas parentais de
socialização interferem tanto positivamente quanto negativamente na construção dos
valores dos adolescentes (Moraes, Camino C., Costa, Camino L. & Cruz, 2007). Assim,
as interações no território familiar são compreendidas como um elo de conciliação entre
as dimensões pessoais e coletivas, uma vez que os valores que permeiam as relações
familiares podem ser elementos que constituem os membros dessa família (Féres-Carneiro,
Henriques & Jablonski, 2011).
Tanto as práticas parentais, quanto o comportamento geral dos pais em relação a
seus filhos são influenciados por um sistema de valores e crenças compartilhados pelos
pais em relação ao desenvolvimento de seus filhos (Biasoli-Alves, 2000). Esse sistema
de crenças corresponde a um conjunto de ideias implícitas em julgamentos, decisões e
escolhas tomadas pelos pais, podendo constituir-se num quadro de referencia interno
capaz de sustentar o comportamento cotidiano dos pais em relação a seus filhos.
Casas, Buixarrais, Figuer e González (2004) aprofundam a temática de qualidade
de vida de jovens a partir dos fatores de autoestima, apoio social percebido, percepção
Aletheia 37, jan./abr. 2012
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de controle e valores, relacionando-os com a satisfação vital, e também analisam a
concordância e discrepância entre percepções de filhos e pais. O objetivo foi comparar
os valores aspirados dos adolescentes com os valores aspirados pelos pais acerca de seus
filhos, assim como o bem-estar pessoal de ambos. Os resultados mostraram que a maior
discrepância incidiu sobre os valores: “conhecimento sobre os computadores”, “dinheiro”,
“poder” e “conhecimento do mundo”.
Em estudo realizado por Casas e Bello (2012) com uma amostra de 5.934
adolescentes espanhóis, de ambos os sexos, em sua maioria com 12 anos de idade, foram
encontrados resultados que contrariam o estereótipo de que os adolescentes importam-se
apenas com bens materiais. A amabilidade e a personalidade foram elencadas, tanto entre
os meninos quanto entre as meninas, como as qualidades que mais aspiram ser apreciados
no futuro; os valores poder e dinheiro obtiveram pontuações médias globais muito mais
baixas. Ademais, os níveis mais elevados de bem-estar subjetivo foram observados entre
aqueles que atribuíram mais importância a valores como simpatia, amabilidade, relações
pessoais e solidariedade, e os menores entre os que dão mais importância aos valores
materialistas como dinheiro, poder e imagem. A partir da literatura apresentada, este estudo
tem como objetivo diferenciar adolescentes de seus pais quanto ao nível de bem-estar e
valores por eles aspirados. A contribuição deste está em apresentar dados empíricos de
uma amostra de adolescentes brasileiros, da região Sul do País, aprofundando o tema dos
valores aspirados e do bem-estar como foco de desenvolvimento nessa etapa vital.
Método
Participantes
Esta investigação consta de 1.086 participantes, sendo 543 adolescentes, e seus
respectivos pais. Cabe ressaltar que a amostra total de adolescentes que responderam ao
questionário foi de 1.588. Entretanto, houve retorno de apenas 543 questionários de pais,
e, portanto, a amostra final utilizada é de 543 adolescentes e seus pais.
Destes, 25,6% eram da capital do Estado do Rio Grande do Sul, e os demais de três
cidades do interior: Santa Cruz do Sul (32,4%), Rio Grande (17,9%), Santa Maria (24,1%).
As escolas participantes foram sorteadas a partir da lista fornecida pela Secretaria de
Educação do Estado do Rio Grande do Sul e contatadas posteriormente. Foram sorteados
alunos das turmas da sétima e oitava séries do ensino fundamental e primeiro e segundo
ano do ensino médio.
Dos adolescentes, 31,7% são meninos e 68,3% meninas. A diferença de frequência
do sexo se dá, pois o retorno dos termos de consentimento das meninas foi mais alto.
Os participantes de escolas particulares compuseram 60% da amostra, enquanto os de
escolas públicas corresponderam a 40%. As idades dos alunos variaram de 12 a 16 anos,
com a média de 14,07 (DP = 1,30).
Com relação aos pais, 22,2% eram homens e 77,8% mulheres. As idades variaram
de 27 a 70 anos, com média de 43,84 (DP = 6,56). Destes, 69,4% eram mães, 20,3% pais,
8,1% mães e pais juntos e 2,2% outros membros da família. A classe social mencionada
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Aletheia 37, jan./abr. 2012
pela maioria dos pais/responsáveis foi a classe média, com 91,5%, sendo que destes
78,7% trabalhavam e 21,3% não.
Instrumentos
Utilizou-se um instrumento para avaliar o bem-estar pessoal dos adolescentes
e um para identificar os valores aspirados pelos adolescentes e seus pais. Esses estão
descritos a seguir.
Personal Well Being Index (PWI, Cummins, Eckersley, Pallant, Van Vugt, &
Misajon, 2003) é composto de sete itens e avalia a média de satisfação com diferentes
âmbitos da vida através de uma escala Likert original de sete pontos. Para este estudo,
a escala foi traduzida e adaptada à realidade dos adolescentes brasileiros por meio de
validação semântica e backtranslation (Casas et al., 2012). A escala é medida por 11 pontos
que variam de zero (totalmente insatisfeito) a dez (totalmente satisfeito). Os participantes
responderam sobre o quanto estão satisfeitos com a sua saúde, com o seu nível de vida,
com as coisas que tem obtido na vida, com a sensação de segurança, com os grupos aos
quais pertencem, com a segurança a respeito do futuro e com as relações com outras
pessoas. Com essa amostra, a consistência interna (Alpha de Cronbach) do PWI foi de
0,78. Cummins (1998) apresenta alphas entre 0,70 e 0,80 em pesquisas realizadas com
a população australiana.
A Escala de Valores Aspirados foi desenvolvida por Kasser e Ryan (Aspiration
Index, 1996) para verificar as aspirações pessoais, que são divididas em extrínsecas, como
riqueza, fama e imagem; e intrínsecas, como relacionamentos significativos, crescimento
pessoal e contribuição na comunidade. A escala apresenta Alpha de Cronbach de 0,76
(Kasser & Ryan, 1996). Nessa amostra, o alpha foi de 0,88. Para este estudo, foi utilizada
uma escala Likert de 11 pontos, com 21 itens, na qual o participante determina qual a
intensidade em que ele gostaria de ser valorizado por cada item variando de zero (nada) até
dez (muitíssimo), projetando para um momento futuro, no qual tivesse 21 anos de idade.
A escala foi traduzida e adaptada para adolescentes brasileiros, seguindo as orientações
de adaptação transcultural de Beaton, Bombardier, Guillemin e Ferraz (2000).
O método utilizado para verificar os valores aspirados pelos adolescentes foi
semelhante ao proposto por Casas et al. (2004) o qual consistiu na seguinte questão:
“Imagine que você já tem 21 anos: naquele momento, com que intensidade você gostaria
que as outras pessoas valorizassem alguns aspectos seus?”. O questionário dos pais
continha os mesmos valores dos questionários dos adolescentes, com a seguinte questão:
“Imagine que seu filho tenha 21 anos. Naquele momento, com que intensidade você
gostaria que as outras pessoas apreciassem certas características do seu filho?”, também
variando de 0 a 10.
Procedimentos de coleta de dados e aspectos éticos
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética do Instituto de Psicologia/UFRGS,
sob o protocolo nº 066/2008. Os procedimentos previstos obedeceram aos Critérios de
Ética na Pesquisa com Seres Humanos conforme Resolução nº 196/96 do Conselho
Nacional de Saúde.
Aletheia 37, jan./abr. 2012
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As escolas sorteadas foram contatadas a fim de obter autorização para a realização
da coleta de dados entre seus alunos. Em seguida, a equipe de pesquisadores entregou
os Termos de Consentimento Livre e Esclarecido para que os alunos levassem para casa
e pedissem a autorização de seus pais ou responsáveis para a participação de ambos.
Combinou-se com a direção da escola um horário para entrar nas turmas. A aplicação
durou aproximadamente 45 minutos, sendo realizada pela equipe de pesquisadores apenas
com os alunos que devolveram os Termos de Consentimento assinados por eles e por
seus pais. Os alunos tiveram plena liberdade de se recusar a preencher o questionário.
Durante a coleta de dados dos alunos, foram distribuídos os questionários para serem
entregues aos pais, sendo combinado que deveriam ser devolvidos, no máximo, em uma
semana à direção escola.
Procedimentos para análise de dados
Foi realizada Análise Discriminante (AD), tendo em vista verificar quais variáveis
da escala de bem-estar e valores aspirados diferenciam os grupos de adolescente e seus
pais. A AD busca diferenciar os determinados grupos investigados através de diversas
variáveis, onde as diferenças são maximizadas. Portanto, essa análise foi utilizada, pois
objetiva-se diferenciar os adolescentes de seus pais com relação aos valores aspirados e
ao bem-estar de ambos.
Resultados
Primeiramente, são apresentadas as médias, desvios padrão e dados de comparação
dos itens da escala de bem-estar dos adolescentes e de seus pais, bem como as diferenças
entre os valores aspirados pelos filhos e os valores que seus pais aspiram para eles. Além
destes dados, também são apresentadas as variáveis que, individualmente, tem capacidade
para discriminar os grupos de pais e filhos através da significância, utilizando-se o método
Wilks. Os itens que mais contribuem para a variabilidade total são os que irão discriminar
os grupos, se forem significativos (Tabela 1).
96
Aletheia 37, jan./abr. 2012
Tabela 1 – Dados dos descritivos do bem-estar e dos valores aspirados pelos adolescentes e seus pais.
Humanitários e Relações Interpessoais
Personalidade
Materiais
Habilidades e
Conhecimentos
Itens a Escala de Valores Aspirados
Itens da Escala de Bem-estar
Adolescentes
Média (dp)
Pais
Média (dp)
λ de
Wilks
F
Satisfação com a saúde
8,52 (1,44)
7,61 (2,26)
0,948
F(1,941)=51,776**
Satisfação com o nível de vida
8,41 (1,54)
7,06 (2,24)
0,898
F(1,941)=106,52**
Satisfação com as coisas que tem
conseguido na vida
8,11 (1,69)
7,71 (1,97)
0,992
F(1,941)=8,0580*
Satisfação com o quanto se sente
seguro/a
7,58 (1,98)
6,64 (2,34)
0,966
F(1,941)=32,906**
Satisfação com os grupos dos
quais faz parte
8,77 (1,65)
7,46 (1,96)
0,896
F(1,941)=109,61**
Satisfação com a segurança a
respeito do futuro
7,83 (1,89)
6,41 (2,42)
0,916
F(1,941)=85,749**
Satisfação com as relações com as
outras pessoas
8,44 (1,70)
7,72 (1,73)
0,958
F(1,941)=41,143**
Valor dado a tua riqueza espiritual
8,02 (2,31)
9,13 (1,47)
0,914
F(1,941)=88,332**
Valor dado a tua humanidade
8,71 (1,57)
9,37 (1,04)
0,925
F(1,941)=76,429**
Valor dado a tua alegria de viver
9,19 (1,29)
9,44 (0,95)
0,987
F(1,941)=12,463**
Valor dado a tua família
8,99 (1,69)
9,2 (1,26)
0,993
F(1,941)=6,172*
Valor dado ao teu sentido de vida
8,69 (1,47)
9,05 (1,23)
0,975
F(1,941)=24,302**
Valor dado a tua solidariedade
8,75 (1,56)
9,19 (1,23)
0,969
F(1,941)=30,301**
Valor dado a tuas habilidades com
as pessoas
8,85 (1,46)
9,04 (1,20)
0,992
F(1,941)=07,70**
Valor a tua amabilidade
8,76 (1,71)
9,20 (1,17)
0,977
F(1,941)=21,885**
Valor dado ao teu senso de humor
8,85 (1,72)
8,56 (1,73)
0,995
F(1,941)=4,789*
Valor dado a tua tolerância
7,80 (2,07)
8,51 (1,78)
0,965
F(1,941)=33,666**
Valor dado ao teu otimismo
8,76 (1,44)
9,06 (1,31)
0,985
F(1,941)=14,611**
Valor dado a tua simpatia
9,06 (1,27)
9,05 (1,41)
1,000
F(1,941)=0,027
Valor dado a tua personalidade
9,30 (1,19)
9,38 (1,07)
0,997
F(1,941)=2,385
Valor dado a tua inteligência
8,74 (1,41)
8,88 (1,21)
0,997
F(1,941)=3,049
Valor dado a tuas habilidades
técnicas (práticas)
8,63 (1,51)
8,63 (1,45)
1,000
F(1,941)=0,399
Valor dado a tua competência
profissional
9,31 (1,18)
9,26 (1,16)
1,000
F(1,941)=0,119
Valor dado a tua força de vontade
9,18 (1,42)
9,19 (1,29)
0,999
F(1,941)=0,661
Valor dado a tua coerência
8,1 (1,97)
8,73 (1,60)
0,968
F(1,941)=31,339**
Valor dado ao teu dinheiro
5,95 (3,37)
6,14 (3,12)
0,999
F(1,941)=1,090
Valor dado a teu poder
6,18 (3,26)
6,21 (2,29)
1,000
F(1,941)=0,020
Valor dado a tua imagem
8,26 (2,27)
8,22 (2,10)
1,000
F(1,941)=0,150
* p < 0,05; ** p < 0,001
Aletheia 37, jan./abr. 2012
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Com relação ao bem-estar pessoal, cabe destacar que os itens “satisfação com o
quanto se sente seguro” e a “satisfação com a segurança a respeito do futuro” foram
aqueles com pior avaliação por parte de pais e filhos. Em termos gerais, observouse uma diferença nos níveis de satisfação sobre o bem-estar pessoal, significativa a
favor dos filhos.
No que tange aos itens da escala de valores, percebe-se o equilíbrio entre as
médias dos valores aspirados pelos filhos adolescentes com os valores que os pais
aspiram para seus filhos para a competência profissional (Madolesc = 9,31/ Mpais = 9,26),
personalidade (Madolesc = 9,30 / Mpais = 9,38), força de vontade (Madolesc = 9,18/ Mpais =
9,19) e simpatia (Madolesc = 9,06 / Mpais = 9,05).
As diferenças entre as médias dos valores apresentadas entre pais e filhos,
assinalam diferenças para riqueza espiritual (Madolesc = 8,02 / Mpais = 9,13), tolerância
(Madolesc = 7,80 / Mpais = 8,51), humanidade (Madolesc = 8,71 / Mpais = 9,37), coerência
(Madolesc = 8,10 / Mpais = 8,73), amabilidade (Madolesc = 8,76 / Mpais = 9,20), solidariedade
(Madolesc = 8,75 / Mpais = 9,19), sentido de vida (Madolesc = 8,69 / Mpais = 9,05), otimismo
(Madolesc = 8,76 / Mpais = 9,06), senso de humor (Madolesc = 8,85 / Mpais = 8,56), alegria de
viver (Madolesc = 9,19 / Mpais = 9,44), família (Madolesc = 8,99 / Mpais = 9,20) e habilidades
com as pessoas (Madolesc = 8,85 / Mpais = 9,04).
Os valores inteligência, personalidade, competência profissional, imagem, força
de vontade, simpatia e habilidades técnicas não apresentaram diferenças significativas
(p > 0,05), constituindo, portanto, variáveis que não diferenciam bem as aspirações
entre os dois grupos, sendo dinheiro e poder os valores que apresentam a média mais
baixa em ambos os grupos.
Observa-se, finalmente que os pais conferem maior importância aos valores do
que ao bem-estar pessoal, sendo que dentre os valores são os de cunho existencial ou
humanístico e alguns de personalidade (tolerância, otimismo e senso de humor). Já
as dimensões materiais e de habilidades e conhecimentos não apresentam diferenças
entre valores aspirados de pais e filhos.
Para verificar em que medida essas diferenças evidenciam um perfil discriminante
das variáveis, realizou-se uma análise discriminante, considerando como variáveis
independentes os itens das escalas de bem-estar pessoal e valores, e como variável
dependente os dois grupos – pais e filhos.
Percebe-se que a função obtida na análise entre pais e filhos, por ser única,
explica 100% da variabilidade entre os dois grupos. A função discriminante é
significativa (χ2(28) = 415,85, p < 0,001) e apresenta uma correlação canônica
discriminante de 0,601.
Pode-se observar um λ de Wilks de 0,639, equivalente a uma variância explicada
pela função discriminante de 36,1%. Com relação à classificação, a função obtida
classifica corretamente 78% dos participantes em seus respectivos grupos, sendo
um índice aceitável de classificação preditiva através do perfil da função obtida
(Tabela 2).
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Aletheia 37, jan./abr. 2012
Tabela 2 – Classificação dos grupos: perfil discriminante preditor de ser pai ou filho.
Preditor Pai
Preditor Filho
Total
Original Pai
356 (77,1%)
106 (22,9%)
462
Original Filho
101 (21,0%)
380 (79,0%)
481
78,0% dos casos originais agrupados foram corretamente classificados
As variáveis significativas e mais relevantes na capacidade discriminativa entre os
pais e filhos estão ordenadas por tamanho absoluto de correlação na matriz estrutural,
tendo como ponto de corte 0,20 (Tabela 3).
Tabela 3 – Matriz estrutural da função canônica discriminante: Correlações entre variáveis discriminantes e
função discriminante estandardizada.
Função 1
Satisfação com os grupos dos quais faz parte
0,454
Satisfação com o nível de vida
0,447
Valor dado a tua riqueza espiritual
-0,407
Satisfação com a segurança a respeito do futuro
0,401
Valor dado a tua humanidade
-0,379
Satisfação com a saúde
0,312
Satisfação com as relações com as outras pessoas
0,278
Valor dado a tua tolerância
-0,251
Satisfação com o quanto se sente seguro/a
0,249
Valor dado a tua coerência
-0,243
Valor dado a tua solidariedade
-0,238
Valor dado ao teu sentido de vida
-0,214
Valor a tua amabilidade
-0,203
O grupo dos pais apresentou valor de centroide de -0,767, enquanto o grupo dos
filhos apresentou o valor de 0,737. Estes valores indicam que os grupos estão bem
afastados pelo perfil obtido, podendo ser discriminados pelas variáveis apresentadas, sendo
que o sinal das correlações obtidas indica a direção favorável a um grupo ou outro.
Pode-se observar que os valores que mais discriminam pais de filhos, a favor destes
últimos, estão associados ao bem-estar pessoal (grupos, nível de vida, segurança com o
futuro, saúde, outras pessoas e sentir-se seguro). Já os itens que mais discriminam a favor
dos pais são os valores aspirados (riqueza espiritual, humanidade, tolerância, coerência,
solidariedade, sentido de vida e amabilidade) (Tabela 3).
As variáveis que expressam valores de nível mais abstrato são as que apresentam
a maior distância entre pais e filhos. São elas: riqueza espiritual (-0,407), humanidade
(-0,379), tolerância (-0,251), coerência (-0,243), solidariedade (-0,238), sentido vital
(-0,379) e amabilidade (-0,203).
Aletheia 37, jan./abr. 2012
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Discussão
Os âmbitos que melhor diferenciam os adolescentes de seus pais, em termos de
bem-estar pessoal são o relacionamento, o nível de vida, a segurança e a saúde. Esses
resultados estão em consonância com o que outros autores descrevem como uma tendência
na diminuição da avaliação sobre o bem-estar à medida que a idade dos participantes
aumenta. Casas et al (2012) apontaram uma significativa e constante diminuição do item
único de satisfação global com a vida entre os 12 e os 15 anos de idade. Outra pesquisa
apresenta uma avaliação decrescente da satisfação global com a vida na mesma faixa etária,
bem como a satisfação com outros âmbitos da vida (Baltatescu & Cummins, 2006).
Com relação ao bem-estar de pais e filhos, correlações significativas foram
encontradas, apesar de baixas (Casas et al.,2008). Os autores defendem que os resultados
mostram relações pouco claras e muito abaixo do esperado entre o bem-estar subjetivo
de pais e seus filhos, indicando a necessidade de desenvolver outras formas para verificar
estas relações. Da mesma forma, os adolescentes da presente investigação apresentaram
médias de bem-estar pessoal mais altas que a de seus pais.
Tais resultados podem demonstrar a maturidade que os pais apresentam em relação
aos filhos, em virtude de seu próprio período de desenvolvimento dentro do ciclo vital.
Leonardo (2001) afirma que, durante a adolescência, o contato com diversas realidades
tais como família, amigos, escola e outras instituições, constitui-se como fundamental
para a formação de juízos de valor adultos. Assim, na adolescência, há uma desvalorização
dos valores antigos e uma busca por novos valores.
Para Moraes et al. (2007), as crianças e os jovens começam a reconhecer seus
interesses a partir da participação em diferentes grupos, contribuindo para a constituição
de sua identidade social. Esse fato repercute na divergência de valores e normas aspirados
pelos pais em relação a seus filhos. Tal divergência pode relacionar-se com o fato de a
adolescência ser caracterizada por uma série de questionamentos dos valores e crenças
com relação ao contexto familiar (Stengel, 2011), em especial no que diz respeito a valores
que não são enfatizados pela sociedade capitalista. Bobowik et al. (2011) corroboram
esse resultado quando afirmam que o valor “poder” dos pais é um dos preditores dos
valores dos filhos. Os resultados encontrados por Casas et al. (2004) indicaram que
os adolescentes espanhóis tiveram uma alta discrepância em comparação aos valores
aspirados por seus pais nos itens: “conhecimento sobre computadores”, “dinheiro”,
“poder” e “conhecimento do mundo”. Diferentemente, na presente amostra, os itens
“dinheiro” e “poder” não apresentaram discrepâncias entre pais e filhos, sendo os itens
valorados com menores médias, o que pode representar diferenças culturais entre os
adolescentes brasileiros e espanhóis.
Entretanto, em estudo mais recente, “personalidade” e “amabilidade” foram os
aspectos mais valorizados na Espanha por meninos e meninas de 12 anos (M = 9,36)
além de serem os valores pelos quais gostariam de ser apreciados com 21 anos. No outro
extremo, se encontram os valores poder e dinheiro, com médias globais muito baixas
(M = 6,15 e M = 6,52). Ademais, os adolescentes que demonstram, significativamente,
maior bem-estar subjetivo foram aqueles que destacaram aspirar valores mais relacionais
(Casas & Bello, 2012).
100
Aletheia 37, jan./abr. 2012
A família é um espaço de socialização (Moraes et al., 2007; Féres-Carneiro,
Henriques & Jablonski, 2011), e os valores, como guia de padrões de ações (Rokeach,
1981), contribuem como elementos que auxiliam no conhecimento das relações pais e
filhos, sendo ordenados por sua importância (Schwartz, 1994). Ao analisar os valores
aspirados por pais e filhos (Tabela 1), encontra-se que as menores médias foram atribuídas
aos valores poder e dinheiro para ambos.
As médias baixas atribuídas a esses dois valores materiais podem relacionar-se
por parte dos pais com a visão de dependência financeira que os seus filhos ainda terão
com a idade de 21 anos e por parte dos filhos por se encontrarem, no momento atual da
sua vida, dependendo financeiramente de seus pais. Segundo Stengel (2011) em famílias
hierarquizadas, pode-se inferir que as relações estão pautadas na dependência financeira
dos filhos em relação aos pais, o que possibilita uma forma de controle. A autoridade e
o poder dos pais estão relacionados com as formas de negociação que fazem com seus
filhos a partir da questão financeira. Desse modo, na medida em que os pais mantêm uma
relação de dependência financeira até os 21 anos de idade, mantém-se a continuidade de
sua autoridade. Para Camino C., Camino L. e Moraes (2003) o controle parental também
está presente nas relações pais e filhos.
A baixa importância dos valores “dinheiro” e “poder” pode estar relacionada aos
projetos de vida que os pais fazem para os seus filhos, e que os próprios filhos podem ter
no que diz respeito à formação continuada, oportunidade que muitos pais não tiveram
quando eram jovens. Stengel e Tozo (2010) ressaltam que os pais transmitem ambição
a seus filhos para que tenham uma vida com status diferente da que possuem. Nesse
caso, ocorre um adiamento da autonomia financeira dos filhos devido a dificuldades em
conciliar a carga horária de trabalho com a educacional (Biasoli-Alves, 2000, Porto &
Tamayo, 2006).
A priorização dos valores humanistas por parte dos pais pode ser atribuída as suas
diferentes experiências e vivências características do mundo adulto. Lança (2005) salienta
que a diversidade de estilos de vida propicia aos indivíduos a adesão a um conjunto de
valores que estariam de acordo com determinadas circunstancias da sua vida, dos grupos
aos quais pertencem, da conjuntura politica, situação sócio profissional, etc. Assim,
compreende-se que os valores não possuem caráter estático, mas sim, dinâmico, podendo
ser alterados com o passar do tempo.
Finalmente, cabe destacar que a amostra de adolescentes e de pais de nosso estudo
apresenta mais mulheres do que homens. Não sabemos até que ponto tal aspecto introduz
um viés nos resultados, já que as diferenças de gênero acerca do bem-estar subjetivo
infantil têm provocado intenso debate na literatura cientifica a partir de resultados
contraditórios apresentados por diferentes estudos, questão esta que deve ser tratada com
maior profundidade no futuro.
Considerações finais
Evidenciaram-se diferenças significativas do bem-estar de pais e filhos. A
importância que os pais atribuem aos valores humanitários sobrepõe-se a importância
atribuída pelos filhos, sinalizando mudanças entre gerações devido ao fato de a
Aletheia 37, jan./abr. 2012
101
adolescência ser um período de transição no qual há influência das transformações
culturais. Por outro lado, os valores relacionados às capacidades profissionais foram
valorizados tanto pelos pais como pelos adolescentes.
Os valores “dinheiro” e “poder” também não apresentaram diferenças significativas
entre pais e filhos. Logo, percebe-se que o controle parental nas relações entre pais e
filhos pode permanecer presente ao longo da vida, envolvendo a dependência financeira,
que pode repercutir nas relações de poder e na continuidade da educação formal dos
jovens.
Quanto às limitações, sinaliza-se o fato de utilizar um instrumento que mede
os valores desejados para o futuro pelos adolescentes e valores que os pais almejam
para seus filhos, constituindo-se em uma medida de previsão. Além disso, destaca-se
a dificuldade de coletar dados dos pais, tendo em vista a baixa taxa de retorno dos
questionários.
Em termos de sugestões para investigações futuras, entende-se que a adoção de
delineamento longitudinal poderá auxiliar na compreensão aprofundada das relações
entre os valores aspirados por adolescentes e seus pais. Dessa forma, será possível
comparar os dados dos adolescentes quando atingirem 21 anos. Por outro lado, seria
desejável complementar este mesmo tema a partir de um enfoque mais qualitativo, por
exemplo, com a utilização de grupos focais com adolescentes e progenitores, de modo
a aprofundar a compreensão dos resultados.
Conhecer os níveis de bem-estar dos adolescentes em distintos âmbitos da vida
bem como os valores por eles aspirados é fundamental para a formulação de políticas e
programas dirigidos a essa população, de modo a melhor adequá-los a suas necessidades
específicas – e não somente as necessidades que os adultos pensam que eles têm. É
subsidio importante também para professores, educadores de tempo livre, psicólogos
e políticos no que tange as recomendações da Convenção sobre os Direitos da Criança
pela promoção do bem-estar, protagonismo e participação social da juventude. A
investigação deve, portanto, seguir contribuindo a esse cenário.
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_____________________________
Recebido em julho de 2012
Aceito em outubro de 2012
Jorge Castellá Sarriera – Psicólogo, Doutor em Psicología Social pela Universidad Autónoma de Madrid
(Espanha). Professor do Programa de Pós Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil.
Verônica Morais Ximenes – Psicóloga, Doutora em Psicologia pela Universidad de Barcelona (Espanha) e
Professora da Universidade Federal do Ceará, Brasil.
Lívia Bedin – Psicóloga, Doutoranda em Psicologia pelo Programa de Pós Graduação em Psicologia da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil.
Anelise Lopes Rodrigues – Psicóloga, Doutoranda em Psicologia pelo Programa de Pós Graduação em
Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil.
Fabiane Friedrich Schütz – Psicóloga, Mestranda em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil.
Carme Montserrat – Dra., Professora do Institut de Recerca sobre Qualitat de Vida, Universitat de Girona,
Espanha.
Caroline Lima Silva – Psicóloga, Mestranda em Psicologia pelo Programa de Pós Graduação em Psicologia
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil.
Endereço para contato: [email protected]
104
Aletheia 37, jan./abr. 2012
Aletheia 37, p.105-120 jan./abr. 2012
Crenças básicas e bem-estar pessoal em adolescentes
brasileiros
Jorge Castellá Sarriera
Eveline Favero
Ângela Carina Paradiso
Tiago Zanatta Calza
Resumo: As crenças fazem parte de um sistema conceitual que se forma na infância e é refinado
e estabelecido ao longo da vida. O presente estudo investiga associações entre crenças básicas e
bem-estar pessoal em 1.588 adolescentes brasileiros, meninos e meninas com idade entre 12-16
anos (M= 14,13; DP=1,26). Utilizou-se um questionário contendo 16 itens da World Assumption
Scale (WAS) como medida de crenças e o Personal Well-Being Index (PWI-7) para avaliar bemestar. A WAS apresentou alfa de Cronbach de 0,72 e, o PWI-7 de 0,81. As crenças explicam 30% do
bem-estar, considerando os itens que versam sobre autovalor, sorte pessoal, autocontrole, bondade
das pessoas, justiça e acaso dos acontecimentos. Verifica-se a necessidade de reavaliar os itens
da WAS e discute-se a importância de promover ambientes saudáveis e práticas educativas que
promovam o desenvolvimento de crenças positivas e fortaleçam o bem-estar adolescente.
Palavras-chave: Crenças Básicas, Adolescentes, Bem-Estar Pessoal.
World assumptions and personal well-being in Brazilian adolescents
Abstract: The world assumptions are part of a conceptual system developed during childhood
which is refined and established throughout life. The present study investigates associations between
world assumptions and personal well-being within 1.588 Brazilian adolescents, boys and girls, with
ages between 12-16 years (M=14,13; DP=1,26). It was applied a questionnaire containing 16 items
from World Assumptions Scale (WAS) as measure of beliefs and the Personal Well-Being Index
(PWI-7) to evaluate well-being. The WAS had a Cronbach’s alpha of 0,72 and the PWI-7, 0,81.
The beliefs explain 30% of well-being, considering eigenvalue, self-control, kindness, justice and
randomness items. It’s noticeable the necessity to reevaluate the WAS items as well as the importance
of promoting healthy environments and educational practices that stimulate the development of
positive beliefs and strengthen the adolescent’s well-being.
Keywords: World Assumptions; Adolescents; Personal Well-being
Creencias básicas y bienestar personal en adolescentes brasileños
Resumen: El estudio investiga las relaciones entre creencias básica y bienestar personal en 1588
adolescentes brasileños de ambos sexos, con edades entre 12-16 años (M=14,13, SD=1,26). Se
utilizó como instrumento un cuestionario que contiene la World Assumption Scale (WAS), para
medir las creencias (versión con 16 ítems) y el Personal Well-Being Index (PWI-7), para evaluar el
bienestar. Un análisis de regresión lineal múltiple mostró que el 30% de bienestar de los adolescentes
se explica a través de las creencias básicas. Las creencias que predicen el bienestar están relacionadas
al autovalor, a la suerte personal, al autocontrol, a la benevolencia de las personas, a la justicia y a
la creencia de que las cosas no suceden por casualidad. Por lo tanto, se discute la importancia de
la promoción de ambientes saludables que favorezcan el desarrollo de las creencias positivas en la
adolescencia, especialmente aquellas relativas al valor y estima personal.
Palabras clave: Creencias básicas; Adolescentes; Bienestar personal
Introdução
As crenças básicas têm recebido grande atenção na área de psicologia do trauma
(Kaler et al., 2008) e, especialmente, em estudos com populações adultas (Arnoso
et al., 2011; Elklit, Shevlin, Solomon, & Dekel, 2007; Harris & Valentiner, 2002;
Jeavons & Godber, 2005; Magwaza, 1999; Mikkelsen & Einarsen, 2002). No entanto,
são poucos os estudos sobre este construto na população em geral e ainda mais raros
quando o objetivo é relacioná-lo com bem-estar na adolescência (Bègue & Muller,
2006; Calhoun & Cann, 1994; Franklin, Janoff-Bulman, & Roberts, 1990).
O conceito de crenças básicas deriva da teoria dos pressupostos fundamentais
(Assumptive World Theory), que postula haver um sistema conceitual desenvolvido ao
longo do tempo, o qual nos fornece expectativas sobre o mundo e sobre nós mesmos
(Janoff-Bulman, 1992). Esse sistema é representado por pressupostos gerais que
refletem e guiam nossas interações no mundo, sendo as crenças básicas um parâmetro
que orienta diariamente nossos pensamentos e comportamentos, conforme explica
Jannoff-Bulman. A autora afirma que a estrutura mental que sustenta o sistema de
crenças seria formada na infância por meio das experiências precoces, refinada e
estabelecida ao longo da vida.
O sistema de pressupostos fundamentais tende a ser positivo e, consequentemente,
gera emoções também positivas, tendo implicações sobre a nossa motivação na medida
em que favorece o envolvimento em comportamentos proativos (Janoff-Bulman, 1992).
A teoria propõe três dimensões para as crenças básicas. A primeira delas, denominada
Benevolência do Mundo, estaria relacionada às crenças na bondade do mundo e das
pessoas, as quais seriam basicamente boas e agradáveis. A segunda, Significação
do Mundo, abarca as crenças a respeito da distribuição dos acontecimentos bons
e ruins. Três aspectos guiariam a nossa compreensão sobre esses acontecimentos:
justiça (recebemos aquilo que merecemos), controlabilidade (os acontecimentos são
determinados pelos nossos comportamentos) e aleatoriedade (os acontecimentos
negativos são uma questão de puro acaso). A terceira dimensão é denominada Autovalor
e também inclui três aspectos centrais: autovalor (a percepção das pessoas de que são
boas e decentes), autocontrole (as pessoas se autoavaliam como precavidas e capazes
de controlar as consequências dos seus comportamentos) e sorte (percepção das pessoas
de que são afortunadas, têm sorte) (Janoff-Bulmann, 1992).
Diversos pesquisadores consideram que eventos negativos possam ter impacto
sobre as crenças causando mudanças significativas neste sistema conceitual (Attin,
2002; Elklit et al. 2007; Janoff-Bulman, 1992; Magwaza, 1999; Parkes, 1991). No
entanto, pesquisas realizadas com vítimas de eventos considerados traumáticos quando
comparadas com não vítimas nem sempre sustentam estes resultados (Kaler et al.,
2008). Por exemplo, se por um lado Mcgeorge (1995) encontrou crenças similares
quando comparou esses dois grupos, por outro lado Owens e Chard (2001) apontam
que vítimas e não vítimas diferem significativamente em suas crenças no que diz
respeito às dimensões autovalor e benevolência do mundo. Sobre este aspecto,
Kaler et al. (2008) justificam que diferentes estudos podem ter falhado em apontar
diferenças entre esses dois grupos pelas seguintes razões: problemas com a teoria
106
Aletheia 37, jan./abr. 2012
dos pressupostos fundamentais, teste inapropriado da teoria ou problemas com o
instrumento utilizado, a World Assumptions Scale (WAS).
Quanto aos estudos que relacionam crenças e bem-estar a tendência é que
eles também utilizem grupos comparativos tendo como referência a ausência de um
fator de estresse como, por exemplo, o divórcio dos pais (Franklin et al., 1990) ou
o diagnóstico de câncer de mama (Tomich & Helgeson, 2002). Em nenhum deles
são encontrados resultados que sustentam mudanças significativas nas crenças dos
grupos com algum fator de estresse, sendo que Franklin et al. (1990) não encontraram
diferenças entre as crenças do grupo de filhos de pais divorciados em relação ao
grupo de filhos de pais não divorciados. Do mesmo modo, Tomich e Helgeson (2002)
verificaram que as crenças sobre controle pessoal parecem ser fundamentais para a
qualidade de vida tanto de mulheres com diagnóstico de câncer de mama quanto de
mulheres sem este diagnóstico.
Feist, Bodner, Jacobs, Miles e Tan (1995) compararam, a partir de pesquisa
longitudinal, dois modelos estruturais de bem-estar subjetivo (Top-Down e BottomUp) a fim de verificar em qual deles os dados das variáveis saúde física, crenças
básicas, aborrecimentos diários e pensamento construtivo melhor se ajustavam. No
modelo Top-Down estas variáveis funcionariam como causa do bem-estar enquanto
que no modelo Bottom-up elas seriam consequência deste último. O bem-estar foi
medido pelas escalas Purpose in Life, Environmental Mastery e Self-Acceptance. No
que diz respeito às crenças básicas, apenas as dimensões benevolência do mundo
e autovalor entraram no modelo. Os resultados mostraram que ambos os modelos
possuem boa adequação aos dados e os autores sugerem um modelo bidirecional de
causalidade para o Bem-estar.
Os resultados encontrados por Feist et al. (1995) tem sido corroborados por
estudos mais recentes, como o de Smedema, Catalano e Ebener (2010), o qual mostrou
que sentimentos de autovalor estão positivamente associados com bem-estar subjetivo.
Kaler et al. (2008), num estudo com adultos jovens (18-21 anos) também encontraram
correlações significativas entre as subescalas de benevolência do mundo e autovalor
(medidas pela WAS) e o bem-estar subjetivo (medido por afeto positivo, otimismo,
satisfação com a vida e autoestima).
Dentre os estudos que investigaram as crenças básicas com amostra de
adolescentes e adultos jovens, Calhoun e Cann (1994) avaliaram as crenças que
estudantes de graduação norte-americanos têm a respeito de seu mundo pessoal e do
mundo em geral. Os autores verificaram se esses pressupostos diferem entre estudantes
de graduação oriundos de um grupo majoritário (European Americans) em relação a
um grupo minoritário (African Americans, Asian Americans e Hispanic Americans).
Comparado ao grupo minoritário, os resultados revelaram que os participantes do
grupo majoritário acreditam mais na sorte pessoal e na benevolência do mundo e
das pessoas e percebem o seu mundo como mais justo do que o mundo em geral. No
entanto, o grupo minoritário tem uma alta percepção de valor pessoal em relação ao
grupo majoritário.
Em outro estudo Bègue e Muller (2006) investigaram os efeitos protetivos da
crença de que o mundo pessoal é justo e da crença de que o mundo é justo para as
Aletheia 37, jan./abr. 2012
107
outras pessoas em relação à tendência de atribuição de hostilidade. Eles utilizaram
uma amostra de 379 adolescentes com idades entre 10 e 16 anos e verificaram
que a crença de que o mundo pessoal é justo funciona como protetora frente às
experiências negativas e estressantes. Os autores apontam que esta crença contribui
para a minimização da percepção de injustiça e está associada com confiança
interpessoal.
No que se refere à relação entre crenças básicas e gênero não são muitos os
estudos que abordam esta questão. Franklin et al., (1990), por exemplo, verificaram
que estudantes universitárias mostraram-se mais prováveis do que seus colegas
do sexo masculino a acreditar no acaso, enquanto os homens acreditavam mais no
controle e na justiça do que as mulheres. Por outro lado, o estudo de Calhoun e Cann
(1994) não revelou diferenças significativas nas crenças básicas quando comparou
homens e mulheres.
Diante destas considerações este artigo tem por objetivo verificar se as crenças
básicas estão associadas com o bem-estar dos adolescentes e se existem diferenças
quando comparados meninos e meninas. Através da realização deste estudo esperase contribuir com conhecimentos sobre o papel das crenças básicas na percepção do
bem-estar pessoal de adolescentes da população geral, considerando que a maioria
dos estudos sobre crenças têm sido realizados com população adulta. O estudo adquire
relevância na compreensão de como as crenças podem influenciar as atitudes dos
adolescentes diante dos acontecimentos diários, bem como a percepção desses sobre
a sua satisfação com diferentes domínios da vida, tais como: saúde, nível de vida, as
coisas conquistadas na vida, segurança, a satisfação com os grupos de pessoas dos
quais fazem parte, expectativa de futuro e relações interpessoais.
Método
Participantes
Participaram desse estudo 1.588 estudantes (548 meninos e 1.040 meninas)
provenientes de cinco cidades do Estado do Rio Grande do Sul, Brasil, sendo elas a
capital do Estado, Porto Alegre, e outras quatro cidades do interior similares entre
elas em tamanho (Santa Maria, Passo Fundo, Rio Grande e Santa Cruz do Sul). A
idade dos participantes variou entre 12 e 16 anos (M= 14,13; DP= 1,26). A seleção
dos participantes foi feita através de amostragem estratificada. Partindo de uma lista
obtida através da Secretaria de Educação do Estado do Rio Grande do Sul foram
escolhidas aleatoriamente, através de sorteio, 16 escolas das cidades do interior e
16 da capital, sendo metade de ensino público e a outra metade de ensino privado.
A Tabela 1 descreve as características da amostra em termos de sexo, ano escolar e
tipo de escola.
108
Aletheia 37, jan./abr. 2012
Tabela 1 – Sexo, ano escolar e tipo de escola dos participantes.
Variáveis
(n= 1588)
Gênero
Masculino
Feminino
548 (34,5)
1040 (65,5)
Ano Escolar
Sétima sériea (12-13 anos)
441 (27,8)
Oitava sériea (13-14 anos)
445 (28,0)
Primeiro anob (14-15 anos)
395 (24,9)
Segundo ano (15-16 anos)
307 (19,3)
b
Tipo de Escola
Pública
868 (54,7)
Privada
720 (45,3)
Nota. Entre parênteses percentual relativo ao número total de participantes
ª Ensino Fundamental
b
Ensino Médio
Instrumentos
World Assumptions Scale (WAS). A WAS foi elaborada por Ronnie JanoffBulman e originalmente consiste de 32 itens medidos por escala Likert de seis pontos
(de 1=discordo plenamente até 6=concordo plenamente). Janoff-Bulman (1992)
propôs avaliar as crenças básicas através de oito dimensões primárias – cada uma
delas composta por quatro itens – as quais podem ser agrupadas em três dimensões
secundárias. Sendo assim, as crenças na benevolência do mundo e na benevolência das
pessoas compõem a dimensão Benevolência do Mundo; as crenças na justiça, controle
e acaso dos acontecimentos formam a dimensão Significação do Mundo; as crenças
no autovalor, autocontrole e sorte compõem a dimensão Autovalor (Eklit et al., 2007;
Kaler et al., 2008). Janoff-Bulman originalmente encontrou coeficiente de consistência
interna (alfa de Cronbach) de 0,74 para a dimensão Benevolência do Mundo, 0,82 para
a dimensão Significação do Mundo e 0,77 para a dimensão Autovalor. Embora, a WAS
tenha sido elaborada para avaliar as crenças em situações traumáticas, o objetivo do
instrumento não é o de avaliar o trauma em si, de modo que se optou por usar esta
escala numa amostra de adolescentes da população em geral.
No presente estudo foram utilizados 16 dos 32 itens da escala original, sendo
selecionados dois itens de cada dimensão primária, tendo como referência para
seleção das variáveis o estudo de Eklit et al. (2007) e Kaler et al. (2008). A opção
por utilizar metade dos itens da WAS deve-se ao fato de que este instrumento foi
incluído em um questionário composto por outras escalas, investigando variados
aspectos relacionados ao bem-estar na adolescência. O questionário foi padronizado
para uso em diferentes países e a opção por escalas reduzidas mostrou-se vantajosa,
quando considerada a viabilidade do estudo.
Aletheia 37, jan./abr. 2012
109
Os itens selecionados da dimensão Benevolência do Mundo foram: “Se observar
o mundo atentamente, verá que está cheio de bondade” e “No mundo acontecem
muito mais coisas boas que ruins” (relativos à crença na benevolência do mundo);
“As pessoas são basicamente boas e agradáveis” e “As pessoas não se preocupam
com o que acontece aos demais” (relativos à crença na benevolência das pessoas).
Os itens selecionados da dimensão Significação do Mundo foram: “A desgraça é
menos provável entre as pessoas honradas” e “Geralmente as pessoas obtêm aquilo
que merecem” (relativos à crença de justiça); “Através de nossas ações pode-se
prevenir as coisas ruins que podem acontecer” e “As desgraças das pessoas são
causadas pelos seus próprios erros” (relativos à crença de percepção de controle
dos acontecimentos); “A vida está cheia de incertezas distribuídas ao acaso” e “Os
acontecimentos negativos são distribuídos ao acaso entre as pessoas” (relativos à
crença na aleatoriedade dos acontecimentos). Os itens selecionados da dimensão
Autovalor foram: “Estou satisfeito/a com a boa pessoa que sou” e “Tenho uma baixa
opinião de mim mesmo” (relativos à crença no autovalor); “Geralmente procuro obter
o melhor para mim” e “Quase sempre realizo um esforço para prevenir as coisas ruins
que podem me acontecer” (relativos à crença de autocontrole); “Tenho mais sorte
do que o resto das pessoas” e “No fundo sou uma pessoa com sorte, afortunada”
(relativos à crença na sorte pessoal).
Os participantes foram orientados a assinalar a opção que mais se aproximasse
de sua opinião geral sobre a sentença correspondente ao item, tendo sido usada uma
escala de 11 pontos (de 0=nunca até 10 = sempre). A utilização de uma escala de
medida de 11 pontos fundamenta-se na ideia de que aspectos relacionados ao bemestar podem ser mais bem avaliados por escalas com mais opções de pontos (Cummins
& Gullone, 2000). Além disso, essa escala de pontuação é a mesma utilizada no
sistema de avaliação escolar brasileiro, e por isso não parece oferecer dificuldades
de resposta aos participantes.
Personal Well-being Index (PWI). O PWI (Cummins, Eckersley, Pallant, Van
Vugt, & Misajon, 2003) avalia a satisfação das pessoas com aspectos gerais da sua
vida e é apontado pelos seus autores como um instrumento potencialmente válido,
confiável e sensível para monitorar o bem-estar. O PWI consta de sete itens que
avaliam através de uma escala Likert de sete pontos a satisfação com os seguintes
domínios da vida: saúde, o nível de vida, as coisas que se tem conquistado na vida,
segurança, grupos de pessoas dos quais se faz parte, segurança em relação ao futuro
e relações com as outras pessoas. Neste estudo os participantes foram orientados
a informar até que ponto sentiam-se satisfeitos com esses aspectos através de uma
escala de 11 pontos etiquetada apenas nos extremos (de 0=totalmente insatisfeito
até 10= totalmente satisfeito). O PWI apresenta coeficientes de consistência interna
entre entre 0,70 e 0,80 em pesquisas realizadas com a população australiana
(Cummins, 1998).
110
Aletheia 37, jan./abr. 2012
Procedimentos de coleta de dados e aspectos éticos
O estudo atendeu aos procedimentos éticos conforme resolução 196/96 do
Conselho Nacional de Saúde para pesquisa com seres humanos (Conselho Nacional de
Saúde, 1996). Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto
de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul sob o número 066/2008.
Pesquisadores treinados explicaram aos alunos os objetivos da investigação e entregaram
aos interessados o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) para que seus
pais/responsáveis tomassem conhecimento do estudo e autorizassem a sua participação.
Somente responderam ao questionário aqueles alunos que aceitaram participar livremente
e que trouxeram o TCLE assinado pelos seus pais e/ou responsáveis. Os instrumentos
foram aplicados em sala de aula ou em espaço designado pela escola, no mesmo turno
de estudo dos participantes.
Procedimentos de análise de dados
Inicialmente foi realizada análise de componentes principais dos 16 itens retirados
da WAS. Após, foi realizada análise de regressão linear múltipla, método Stepwise, a fim
de verificar as relações de predição das crenças básicas sobre o bem-estar pessoal.
Resultados
Os dados foram analisados utilizando-se o software Statistical Package for
Social Sciences (v.17). Primeiramente, a análise de confiabilidade (Reliability
Analysis) calculada para os 16 itens da WAS encontrou Alfa de Cronbach de 0,69
para a amostra de adolescentes. Procedeu-se então a análise de componentes
principais, método Varimax, com os 16 itens da escala, com o objetivo de verificar
se, para esta amostra, os itens se agrupariam em fatores correspondentes às três
dimensões secundárias propostas por Janoff-Bulman (1992) (Benevolência do
Mundo, Significação do Mundo e Autovalor). Numa primeira inspeção da matriz de
componentes, verificou-se que o item “Tenho uma baixa opinião sobre mim mesmo”
não contribuiu para nenhum dos fatores, sendo por isso excluído da análise. A análise
de confiabilidade (Reliability Analysis) foi novamente calculada para os 15 itens da
escala tendo sido encontrado Alfa de Cronbach de 0,72.
Uma nova análise de componentes principais com os 15 itens restantes da WAS
foi conduzida, buscando-se novamente a solução para três fatores. A matriz de dados
mostrou-se adequada para proceder à análise fatorial, conforme aponta o índice
de Kaiser-Meyer-Olkin (0,773) e o teste de esfericidade de Bartlett (χ²=3442,784;
p<0,001). A variância explicada acumulada foi de 42,33%. A distribuição dos itens
por fator e seu respectivo coeficiente de consistência interna são apresentados na
Tabela 2.
Aletheia 37, jan./abr. 2012
111
Tabela 2 – Cargas fatoriais para análise fatorial exploratória com rotação Varimax da World Assumptions Scale
(WAS) – versão com 15 itens.
Composição dos Fatores
1
Se observar o mundo atentamente, verá que está cheio de bondade
0,76
As pessoas são basicamente boas e agradáveis
0,68
No mundo acontecem muito mais coisas boas que ruins
0,66
No fundo sou uma pessoa com sorte, afortunada
0,62
Tenho mais sorte do que o resto das pessoas
0,60
2
A vida está cheia de incertezas distribuídas ao acaso
0,65
Os acontecimentos negativos são distribuídos ao acaso entre as
pessoas
0,60
As pessoas não se preocupam com o que acontece aos demais
0,56
As desgraças das pessoas são causadas pelos seus próprios erros
0,55
A desgraça é menos provável entre as pessoas honradas
0,39
3
-0,40
Geralmente procuro obter o melhor para mim
-0,73
Quase sempre realizo um esforço para prevenir as coisas ruins que
podem me acontecer
-0,69
Estou satisfeito/a com a boa pessoa que sou
0,46
Através de nossas ações podem-se prevenir as coisas ruins que
podem acontecer
-0,58
0,36
-0,56
Geralmente as pessoas obtêm aquilo que merecem
0,37
Alfa de Cronbach
0,71
0,48
0,62
Variância Explicada (%)
22,31
11,30
8,72
Variância Explicada Acumulada (%)
22,31
33,60
42,33
-0,50
Conforme mostra a Tabela 2, os coeficientes de consistência interna (alfa de
Cronbach) dos fatores 1 e 3 estão no limite inferior de aceitabilidade, o qual se situa
entre 0,60 e 0,70 (Hair, Anderson, Tatham, & Black, 2005), enquanto o coeficiente
do fator 2 está abaixo desse valor mínimo. Além disso, os itens não se agruparam
nas três dimensões previstas (Benevolência, Significação do Mundo e Autovalor)
por Janoff-Bulman (1992). Desse modo, optou-se por conduzir análises de regressão
linear utilizando-se os 15 itens da WAS como variáveis independentes, ao invés dos
fatores, pois os itens da escala têm se mostrado úteis em pesquisas que tratam da
avaliação cognitiva das crenças (Arnoso, 2011; Cal Calhoun & Cann, 1994; Harries
& Valentiner, 2002; Kaler et al., 2008; Mikkelsen & Einarsen, 2002; Magwaza,
1999; Smedema et al., 2010; Tomich & Helgeson, 2002). Inicialmente utilizou-se
para estas análises a amostra geral, posteriormente a amostra foi separada por sexo,
112
Aletheia 37, jan./abr. 2012
a fim de identificar possíveis diferenças dos preditores do bem-estar pessoal entre
meninos e meninas.
Em relação ao PWI-7, o coeficiente de consistência interna foi de 0,81, tendo os
sete itens carregado em um único fator. Usando esse mesmo instrumento, Casas et al.
(2011) encontraram coeficiente de consistência interna de 0,81 para uma amostra de
adolescentes espanhóis e 0,78 para adolescentes chilenos.
A análise de regressão linear múltipla, método Stepwise, apresentou o valor DurbinWatson de 1,97, o que indica um bom ajuste residual do modelo. Verificou-se que seis
dos 15 itens da WAS são preditores de bem-estar (Tabela 3). O coeficiente ajustado de
variância explicada de R2 0,303 indica que estas variáveis explicam 30% do bem-estar
pessoal dos adolescentes da amostra geral. De acordo com os resultados apresentados,
três itens da dimensão secundária Autovalor contribuem para o bem-estar pessoal dos
adolescentes, seguido de um item da dimensão Benevolência do Mundo e de dois itens
da dimensão Significação do Mundo. Em relação ao último item a entrar no modelo de
regressão (“Os acontecimentos negativos são distribuídos ao acaso entre as pessoas”)
observa-se que a associação entre essa crença e o bem-estar é negativa. Dessa forma,
interpreta-se que acreditar que os acontecimentos negativos são distribuídos ao acaso
entre as pessoas é preditor de menor nível de bem-estar. Inversamente, não acreditar (ou
acreditar menos) na aleatoriedade da distribuição dos acontecimentos negativos entre as
pessoas é preditor de maior nível de bem-estar.
Tabela 3 – Análise de Regressão Linear por itens da versão com 15 itens da escala World Assumtions Scale.
Modelo
Coef. Não P.
Β
Erro
Padrão
(Constante)
47,83
1,59
Estou satisfeito/a com a boa pessoa
que sou
No fundo sou uma pessoa com sorte,
afortunada
Geralmente procuro obter o melhor
para mim
As pessoas são basicamente boas e
agradáveis
Geralmente as pessoas obtêm aquilo
que merecem
1,81
0,16
0,7
Os acontecimentos negativos são
distribuídos ao acaso entre as pessoas
Coef. P.
IC 95% para β
T
Sig.
Menor
Valor
Maior
Valor
30
0,001*
44,7
50,96
0,29
11
0,001*
1,48
2,13
0,11
0,16
6,5
0,001*
0,49
0,92
0,91
0,17
0,14
5,3
0,001*
0,57
1,25
0,65
0,13
0,13
5,1
0,001*
0,4
0,89
0,5
0,11
0,11
4,7
0,001*
0,29
0,71
-0,21
0,09
-0,05
-2,3
0,025
-0,39
-0,03
Beta
Nota. Variável Dependente: Personal Well-being Index (PWI)
IC = Intervalo de Confiança
*p<0,001
No que diz respeito às diferenças entre sexos, a análise de regressão linear
múltipla apontou que as cinco variáveis de maior peso como preditoras de bem-estar,
Aletheia 37, jan./abr. 2012
113
tanto para meninos quanto para meninas, correspondem aos resultados das análises
para a amostra geral. Somente o sexto e último item a entrar no modelo apresentou
diferenças entre meninos e meninas. Para os meninos, no lugar de “Os acontecimentos
negativos são distribuídos ao acaso entre as pessoas” (p=0,02; Beta=-0,05) encontrado
na amostra geral, entrou como preditor de bem-estar o item “Quase sempre faço um
esforço para prevenir as coisas ruins que podem me acontecer” (p=0,029; Beta=0,09).
Para as meninas a sexta variável a predizer bem-estar foi o item “A vida está cheia de
incertezas distribuídas ao acaso” (p=0,05; Beta=-0,06). Desse modo, menores crenças
no acaso para explicar os acontecimentos contribuem para o bem-estar das meninas,
assim como a crença no autocontrole apresentou impacto estatisticamente significativo
para o bem-estar dos meninos.
Discussão
Este estudo teve por objetivo verificar se as crenças básicas estão associadas ao
bem-estar dos adolescentes e se existem diferenças quando comparados meninos e
meninas. De acordo com os resultados encontrados as crenças que predizem bem-estar
na amostra de adolescentes englobam as três grandes dimensões das crenças básicas
(Benevolência do Mundo, Significação do Mundo e Autovalor), conforme proposto
por Janoff-Bulman (1992). As crenças que mais contribuem para o bem-estar dos
adolescentes são “Estou satisfeito/a com a boa pessoa que me considero ser”, seguida
de “No fundo sou uma pessoa com sorte e afortunada” e “Geralmente procuro obter
o melhor para mim”. Este resultado aponta relação positiva entre a crença no valor
pessoal e os níveis de bem-estar dos adolescentes, corroborando os achados de outros
estudos como o de Smedema et al. (2010) e de Kaler et. al (2008), que apontaram
que crenças de autovalor positivo estão associados ao bem-estar subjetivo.
Do ponto de vista das práticas educativas e da intervenção junto a adolescentes,
estes resultados reforçam a importância de que pais, educadores e profissionais
estimulem os adolescentes a desenvolver uma percepção positiva sobre si mesmos,
apoiando-os no desenvolvimento da autonomia e competência pessoal, a fim de
promover melhores níveis de bem-estar. A crença no controle pessoal sobre os
acontecimentos pode incentivar o exercício de práticas de protagonismo juvenil
(Costa, 2000), as quais se referem às ideias e comportamentos que promovem tanto o
desenvolvimento pessoal quanto o coletivo. Tais práticas implicam que os adolescentes
atuem no contexto onde vivem por meio de ações proativas, o que favorece a
manutenção das crenças no valor pessoal. Além disso, crenças no autovalor podem
contribuir para que os adolescentes tenham comportamentos orientados a maximizar
resultados de sucesso em suas vidas (Janoff-Bulman, 1992), o que também incide
sobre a percepção positiva de bem-estar.
Ainda em relação ao autovalor, a crença que se refere à sorte (“No fundo sou
uma pessoa com sorte, afortunada”), demonstra a tendência de nos avaliarmos como
tendo mais sorte do que a maioria das pessoas que fazem parte do nosso mundo
(Calhoun & Cann, 1994; Janoff-Bulman, 1992). Janoff-Bulman, quando descreveu
114
Aletheia 37, jan./abr. 2012
essa dimensão primária das crenças básicas afirmou que nós acreditamos que a sorte
prevalece sobre os infortúnios e somos otimistas em nossa visão de mundo quando
utilizamos como referência nosso ambiente social e pessoal. Ela observou ainda
que estudantes universitários subestimam a probabilidade de que eventos negativos
possam lhes acontecer e superestimam os eventos positivos, fenômeno que Weinstein
e Lachendro (1982) chamaram de “otimismo irrealístico”. Tomich e Helgeson (2002)
também encontraram relação entre a crença na sorte pessoal e afeto positivo, ou seja,
um indicador de bem-estar subjetivo. Embora se encontre referência ao otimismo
irrealístico como característica da adolescência, Jannof-Bulman (1992) afirmou que
o sistema de crenças tende a ser positivo, o que, consequentemente, gera também
emoções positivas, o que mantém viva a motivação para interagir com o mundo.
Em relação à crença no autocontrole (“Geralmente procuro obter o melhor para
mim”), Janoff-Bulman (1992) argumentou que a ilusão de autocontrole é adaptativa
e que além das emoções positivas que derivam dela, esta crença pode aumentar a
motivação para explorar o mundo e iniciar novos comportamentos, o que pode ser
positivo para os adolescentes. Desse modo, salienta-se a importância das intervenções
psicossociais que têm como objetivo fortalecer o autocontrole e a assertividade nos
adolescentes. Tomich e Helgeson (2002) também encontraram que as crenças no
controle pessoal são preditoras de qualidade de vida numa amostra de mulheres com
ou sem diagnóstico de câncer de mama, ou seja, não são as crenças de controle sobre
as causas da doença, mas a maestria sobre a vida em seus diferentes domínios que
apresentam relação com o bem-estar.
O item “As pessoas são basicamente boas e agradáveis” refere-se à crença
na benevolência das pessoas. De acordo com Jeavons e Godber (2005), acreditar
na benevolência do mundo e das pessoas nos protege do estresse e da ansiedade
da vida diária, o que pode contribuir indiretamente para a promoção do bem-estar.
Outros estudos encontraram relações entre crenças de benevolência e afeto positivo
(Tomich & Helgeson, 2002) além de benevolência e bem-estar subjetivo (Feist et al.,
1995; Mcgeorge, 1995). Uma vez que a estrutura mental que sustenta o sistema de
crenças começa a ser formada desde a infância e perdura ao longo da vida (JanoffBulman, 1992), a qualidade das relações que os adolescentes estabelecem com
pessoas significativas como pais, pares, professores e outros pode ser considerada
como importante para o bem-estar dos adolescentes, porque interfere na formação
do seu sistema de crenças.
O item que se refere à crença na justiça do mundo (“Geralmente as pessoas obtêm
aquilo que merecem”), o qual faz parte da dimensão Significação do Mundo, também
resulta como preditor de bem-estar na adolescência. As pessoas teriam necessidade
de viver em um contexto previsível e coerente, o qual lhes permita planejar o futuro
e sentir-se a salvo de injustiças e, assim, evitar as incertezas com relação ao mundo
em que vivem (Barreiro e Castorina, 2005). Para Janoff-Bulman (1992) nós temos
a tendência de fazermos uma avaliação seletiva dos eventos, os quais nos levam a
acreditarmos que certos acontecimentos “fazem sentido” e, então, interpretamos nosso
mundo como imbuído de significado. Em geral tentamos encontrar uma razão para os
Aletheia 37, jan./abr. 2012
115
eventos que consideramos negativos e acreditamos que temos controle sobre certos
acontecimentos através do nosso comportamento. De acordo com a autora, quando isso
não é possível, nos sentimos como vítimas de infortúnios ou do comportamento ruim
das outras pessoas. Considerando essas ideias, Bègue e Muller (2006) desenvolveram
estudos cujos resultados apontam que as pessoas que acreditam em um mundo justo
também apresentam maiores níveis de satisfação vital e autoestima, dentre outros
aspectos relacionadas ao bem-estar.
Por fim, o item “Os acontecimentos negativos são distribuídos ao acaso entre
as pessoas” também aparece como preditor do bem-estar, mas no sentido inverso, ou
seja, quanto maior a crença de que a distribuição dos acontecimentos negativos entre
as pessoas é fruto do acaso menor o nível de bem-estar dos adolescentes. Acreditar
que os acontecimentos negativos são distribuídos ao acaso entre as pessoas faz com
que nós nos sintamos profundamente ameaçados pela possibilidade de que eventos
negativos aconteçam conosco (Lerner, 1980), o que justifica porque as crenças no
autocontrole e na sorte apresentam relações positivas com o bem-estar e as crenças no
acaso apresentam relações negativas.
Em relação à comparação dos preditores de bem-estar por sexo, os resultados
desse estudo mostram que a influência das crenças básicas sobre o bem-estar dos
adolescentes não parecem ter relação com o fato de ser menino ou menina. Mesmo
que o último item do modelo de regressão tenha apresentado diferenças entre sexos, a
variável contribui muito pouco para explicar o bem-estar. Ressalta-se a necessidade de
estudos longitudinais para compreender se estas diferenças se mantêm ou se modificam
com a idade e assim verificar se as crenças contribuem de maneira diferente para o
bem-estar quando comparados meninas e meninas.
Considerações finais
De modo geral, o estudo sobre crenças básicas possui relevância porque tanto a
construção de crenças positivas como a modificação cognitiva das mesmas podem se
refletir sobre as atitudes, a saúde e o bem-estar psicológico das pessoas (Foa, Ehlers,
Clark, Tolin, & Orsillo, 1999). Mesmo que as crenças, na maioria das vezes, possam
não corresponder exatamente à realidade, crenças na justiça do mundo, na bondade
das pessoas, no controle sobre os eventos e na sorte estão relacionadas a sentimentos
positivos (Janoff-Bulman, 1992) e, consequentemente, incidem positivamente sobre
o bem-estar pessoal.
O estudo apresenta limitações, uma vez que o instrumento utilizado não foi
capaz de reproduzir as dimensões secundárias das crenças básicas propostas por
Janoff-Bulman (1992) através dos 16 itens retirados da WAS original. Por um lado,
reconhece-se que a redução dos itens da escala original possa ter prejudicado o seu
funcionamento. Por outro lado, a literatura na área, especialmente estudos mais
recentes sobre as propriedades psicométricas da WAS, como os conduzidos por Elklit
et al. (2007) e Kaler et al. (2008), apontaram que a escala apresenta problemas para
116
Aletheia 37, jan./abr. 2012
comprovar a validade e confiança de algumas de suas subescalas, os quais apresentam
índices razoáveis, mas não plenamente satisfatórios. Os autores desses estudos propõem
que o conteúdo dos itens seja revisado e o seu número por subescalas seja ampliado,
ressaltando que problemas com o funcionamento do instrumento não necessariamente
indicam problemas com a teoria.
Uma outra justificativa para os índices de consistência interna insatisfatórios na
WAS pode estar na interpretação dos itens por parte dos adolescentes. As sentenças
do instrumento estão construídas de modo a requerer um certo nível de abstração
cognitiva, habilidade que ainda não está plenamente consolidada na adolescência.
Um exemplo de sentença que requer abstração é “A vida está cheia de incertezas
distribuídas ao acaso”. Desse modo, a apresentação dos itens necessita ser revisada e
adaptada para esta faixa etária, sendo uma sugestão pertinente para novos estudos com
a escala. Além disso, estudos futuros precisam considerar a utilização da escala em sua
versão completa, na tentativa de investigar suas propriedades psicométricas e assim
aperfeiçoar o instrumento para uso no contexto brasileiro, tanto com adolescentes
quanto com adultos. No entanto, mesmo que o instrumento apresente limitações, não
se pode deixar de ressaltar que a teoria das crenças básicas e a própria WAS têm sido
úteis para avaliar as crenças há quase duas décadas.
Cabe ainda considerar a necessidade de realizar estudos longitudinais que avaliem
as crenças durante a transição da adolescência para a idade adulta, a fim de analisar
se ocorrem mudanças nesse sistema conceitual ao longo do ciclo vital. Nesse sentido,
as crenças relacionadas ao controle e ao acaso dos acontecimentos, variáveis que
mostraram diferenças na predição do bem-estar de meninos e meninas, necessitam ser
mais bem investigadas.
Por fim, tendo constatado que as crenças básicas têm uma importante relação
com o bem-estar, este estudo destaca a importância da promoção da saúde psicológica
e da qualidade de vida dos adolescentes, oferecendo subsídios para a criação de
ambientes que favoreçam o desenvolvimento do autovalor, da visão positiva sobre si
mesmos, sobre o mundo e as pessoas. Ressalta-se ainda a importância da crença na
justiça e no autocontrole sobre os acontecimentos de sua própria vida para o bem-estar
pessoal na adolescência. Espera-se estar contribuindo para a discussão sobre o bemestar pessoal no contexto brasileiro, indicando que aspectos ainda pouco considerados,
como as crenças básicas, podem ser úteis na compreensão deste construto.
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_____________________________
Recebido em julho de 2012
Aceito em outubro de 2012
Jorge Castellá Sarriera – Psicólogo, Doutor em Psicología Social pela Universidad Autónoma de Madrid
(Espanha). Professor do Programa de Pós Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil.
Eveline Fávero – Psicóloga. Pós-doutoranda em Psicologia pelo Programa de Pós Graduação em Psicologia
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Ângela Carina Paradiso – Psicóloga. Doutoranda em Psicologia pelo Programa de Pós Graduação em
Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Tiago Zanatta Calza. Psicólogo – Mestrando em Psicologia pelo Programa de Pós Graduação em Psicologia
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Endereço para contato: [email protected]
120
Aletheia 37, jan./abr. 2012
Aletheia 37, p.121-132, jan./abr. 2012
Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas e a Psicologia
Chalana Piva Larentis
Alice Maggi
Resumo: Verifica-se atualmente grande quantidade de pessoas envolvidas de alguma forma
com o uso prejudicial de álcool e outras drogas, o que representa um desafio para a saúde
pública e para os profissionais. Este artigo tem como objetivo investigar a organização dos
Centros de Atenção Psicossociais Álcool e Drogas – CAPS ad – no estado do RS, no que se
refere às práticas e/ou intervenções psicológicas. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica, de
caráter descritivo e exploratório, com a análise dos seguintes temas: histórico da implantação
dos CAPS e CAPS ad no RS; rede de atendimento; orientações e políticas de trabalho;
indicações de atividades e intervenções dos psicólogos; formação acadêmica e profissional
em Psicologia. Foram pesquisadas bases de dados como BVS-PSI e Google Acadêmico,
no período de 2001 a 2010 e dados disponíveis de sites de domínio público. Os resultados
indicaram que os profissionais psicólogos têm desenvolvido suas atividades parcialmente
conforme recomendação do Ministério da Saúde já que encontram limitações para ampliálas e registrá-las. Os resultados também apontam para a escassez de registros dos próprios
CAPS ad como um todo. Portanto, o estudo permitiu evidenciar potencialidades dos serviços
e também lacunas que viabilizam a qualificação dos mesmos e também futuros estudos com
abordagens teóricas e técnicas diferentes.
Palavras-chave: Saúde mental, caps ad, Psicologia.
Psychosocial Care Centers Alcohol and Drugs and the Psychology
Abstract: There is currently a great number of people involved in some way with the
harmful use of alcohol and other drugs, which poses a challenge to public health and for
the professionals. This article aims to investigate the organization of the Psychosocial Care
Centers Alcohol and Drugs – CAPS ad – in the state of RS, with regard to practices and / or
psychological interventions. This is a bibliographical and descriptive and exploratory analysis
with the following themes: historical deployment of CAPS and CAPS ad in RS; service network;
guidelines and policies of work; indications of activities and interventions of psychologists;
academic and professional training in psychology. Databases were searched as BVS-PSI and
Google Scholar, in the period 2001 to 2010 and data from sites in the public domain. The results
of this study allow us to show more clearly how psychologists have developed in part their
activities in such services as recommended by Ministry of Health, but finding barriers both
in achieving larger activities, when the difficulty in maintaining records of same. The results
also point to the issue of difficulty with records of CAPS ad as a whole. So, the construction
of this study highlights the potential of services and also loopholes that enable future studies
with different theoretical and techniques approaches.
Keywords: Mental health, caps ad, Psychology.
Centro de Atención Psicosocial Alcohol y Drogas y la Psicología
Resumen: Actualmente existe un gran número de personas involucradas de alguna manera con
el uso nocivo del alcohol y otras drogas, lo que plantea un reto para la salud pública y para los
profesionales. Este artículo tiene como objetivo investigar la organización de los Centros de
Atención Psicosocial Alcohol y Drogas – CAPS ad – en el estado de RS, en lo que respecta a las
prácticas y / o intervenciones psicológicas. Se trata de un análisis bibliográfico y descriptivo y
exploratorio con los siguientes temas: el despliegue histórico de CAPS y CAPS ad en RS; red de
servicios; directrices y políticas de empleo; las indicaciones de las actividades e intervenciones
de los psicólogos; formación académica y profesional en psicología. Se realizaron búsquedas
en bases de datos como la BVS-PSI y Google Académico, en el período 2001 a 2010 y los
datos de los sitios de dominio público. Los resultados permiten mostrar más claramente cómo
psicólogos han desarrollado sus actividades en dichos servicios según lo recomendado por el
Ministerio de Salud, pero encontrán obstáculos en el logro de mayores actividades, cuando
la dificultad de mantener registros de la misma. Los resultados también apuntan a la cuestión
de la dificultad con registros del propio CAPS ad. Con esto, la construcción de este estudio
ponen de relieve el potencial de servicios y también lacunas que permiten estudios futuros
con diferentes técnicas y enfoques teóricos.
Palabras clave: Salud mental, caps ad, Psicología.
Introdução
Drogas psicotrópicas são quaisquer substâncias que alteram de alguma forma
o sistema nervoso, modificando afetos, comportamentos, sentimentos, e dividem-se
em drogas estimulantes, depressoras e perturbadoras do sistema nervoso central
(CEBRID, 2007). A experiência em estágios curriculares, a vivência profissional
e estudos nos mostram que a temática do uso abusivo de substâncias psicotrópicas
e da dependência química está cada vez mais presente em nossa sociedade atual.
Estima-se que 10% da população dos centros urbanos brasileiros fazem uso abusivo
de drogas psicotrópicas (Brasil, 2004c).
Além disso, dados da Organização Mundial da Saúde – OMS (em Tribunal de
Contas da União, 2005) apontam que 6% da população geral apresenta transtornos
psiquiátricos graves decorrentes do uso de álcool e outras drogas. Esses índices podem
ser considerados significativos e que implicam em questões sociais, econômicas,
judiciárias, psicológicas e econômicas. Segundo Baltieri (2001), o grande crescimento
do consumo de drogas no mundo deve-se ao contexto pós-moderno marcado por
diversas mudanças em valores e costumes, sendo que essa situação e todas as suas
repercussões físicas, sociais, biológicas e psicológicas no indivíduo e na família,
constitui-se num grave e desafiante problema de saúde pública.
No Brasil, durante a década de 1970, com o intuito de desconstruir os
manicômios, os trabalhadores em saúde mental iniciaram um intenso movimento
social ao denunciar a situação precária dos hospitais psiquiátricos. No final da década
de 1980, começaram a se fortalecer serviços substitutivos nos moldes de Centros
de Atenção Psicossocial – CAPS – com o objetivo de oferecer aos usuários um
tratamento mais humanizado. No entanto, somente a partir de abril de 2001, quando
foi aprovada e sancionada a Lei da Saúde Mental ou Lei Paulo Delgado, é que se dá
a desinstitucionalização e consolidação dos CAPS (Galvanese & Nascimento, 2009;
Ministério da Saúde, 2004; Silva, 2004).
122
Aletheia 37, jan./abr. 2012
Os CAPS são instituições destinadas a acolher pacientes com transtornos
mentais, estimular sua integração cultural, social e familiar, apoiar suas iniciativas por
busca de autonomia e oferecer atendimento médico e psicológico. Devem funcionar
como articuladores estratégicos da rede de atenção à saúde mental, promovendo vida
comunitária e autonomia dos usuários (Ministério da Saúde, n.d.).
Em março de 2002, foram criados os CAPS ad (Centro de Atenção Psicossocial
Álcool e Drogas) que são serviços de atenção psicossocial para atendimento de
pacientes com transtornos decorrentes do uso prejudicial de álcool e outras drogas,
devendo oferecendo atendimento diário, intensivo, semi-intensivo ou não intensivo.
Esses serviços, conforme preconiza o Ministério da Saúde, devem contar com
planejamento terapêutico individualizado de evolução contínua, possibilitando
intervenções precoces, além de apoio de práticas de atenção comunitária e de leitos
psiquiátricos em hospitais gerais. Vale ressaltar que a multidisciplinaridade nesses
serviços é de fundamental importância para que os atendimentos possam ser mais
humanizados, visando a liberdade e autonomia das pessoas e não a reprodução de
discursos (Alverga & Dimenstein, 2006; Ministério da Saúde, 2003, 2004, 2005).
Com isso, este artigo tem como objetivo investigar a organização dos Centros
de Atenção Psicossociais Álcool e Drogas – CAPS ad – no estado do RS, no que se
refere às práticas e/ou intervenções psicológicas.
Método
Trata-se de uma pesquisa com delineamento qualitativo, caráter descritivo e
exploratório. Foram utilizadas como fontes dados disponíveis nos sites do Ministério
da Saúde, da Secretaria Estadual da Saúde, das Secretarias Municipais da Saúde e de
artigos compreendidos no período de 2001 a 2010, pesquisados na BVS-PSI e Google
Acadêmico, através de descritores em saúde como CAPS, CAPS ad, tratamento
psicológico, álcool e drogas, dentre outras combinações de palavras pesquisadas nas
categorias “Psicologia e Psiquiatria” e “Saúde Pública”.
A pesquisa com base documental (Laville e Dionne, 1999) também é descrita
por Montero (2006), Menegon (2004) e Spink (1998) e, por isso, constituiu-se
numa possibilidade metodológica para atender aos objetivos do presente estudo.
Os procedimentos utilizados têm por base a proposta de Minayo (2004), na qual a
análise de conteúdo temática é desdobrada em três fases, que consistem na pré-análise,
exploração e tratamento dos materiais e resultados obtidos.
Para este estudo, num primeiro momento foram reunidos, em uma pasta
eletrônica, todos os materiais encontrados que tratavam do assunto de interesse, assim
sendo possível definir os temas de pesquisa, sintetizados a seguir.
- Histórico da implantação dos CAPS e CAPS ad no RS: Breve resgate histórico
dos registros de cuidados psiquiátricos no estado do RS;
- Rede de atendimento dos CAPS ad: Apresentação quantitativa da rede de
atendimentos a partir dos registros dos materiais analisados;
Aletheia 37, jan./abr. 2012
123
- Orientações e políticas de trabalho: Análise das orientações e políticas
ministeriais relacionadas aos trabalhos realizados pelas equipes nos CAPS ad;
- Indicações de atividades e intervenções dos psicólogos: Apresentação e análise
das práticas desenvolvidas e relatadas pelos psicólogos atuantes nos CAPS ad, com
especial interesse às desenvolvidas nos serviços do estado do RS;
- Formação acadêmica e profissional em Psicologia: Reflexão sobre a formação
acadêmica e profissional em Psicologia para a atuação na rede pública de atendimento
em saúde mental.
Após uma leitura flutuante, alguns materiais foram considerados mais relevantes
para a análise dos temas e foram passados para uma segunda pasta eletrônica,
denominada “artigos_focais”. Com uma leitura mais atenciosa dos materiais, foram
construídas fichas de leitura eletrônicas contendo os aspectos mais relevantes de
cada material, e a criação de uma terceira pasta eletrônica denominada “materiais
usados”.
Os dados foram analisados com o uso da análise de conteúdo, modalidade
temática. Segundo Minayo (2004), fazer análise temática consiste em descobrir
“núcleos de sentido” que compõem uma comunicação cuja presença e/ou frequência
de aparição pode ter significados para o objeto analítico.
Apresentação e discussão dos resultados
O primeiro tema a ser abordado é um breve resgate histórico da implantação dos
CAPS e CAPS ad no estado do RS, conforme Tabela 1.
Tabela 1 – Histórico da Implantação dos CAPS e CAPS ad no RS.
Data
Acontecimento
1884
Inauguração do Hospital Psiquiátrico São Pedro
1960 – 1970
Surgem ambulatórios para atendimento em Saúde Mental
1988
São Lourenço do Sul – CAPS
1989
Casa de Saúde Mental – Novo Hamburgo
1991
Fórum Gaúcho de Saúde Mental
1992
Aprovação da Legislação da Reforma Psiquiátrica
2002
Portarias que regulamentam os CAPS
2003
Primeiras experiências com CAPS ad – Novo Hamburgo
2004
CAPS ad Pelotas e Porto Alegre
Nota: Construída por Chalana Larentis, 2010 com base nas bibliografias pesquisadas.
124
Aletheia 37, jan./abr. 2012
As lutas pela reforma psiquiátrica brasileira ganharam força no RS a partir 1991,
quando foi fundado o “Fórum Gaúcho de Saúde Mental” (FGSM), com o intuito de
discutir a implantação da reforma psiquiátrica. Essa iniciativa teve grande influência
para que o RS se tornasse o primeiro estado brasileiro a aprovar a legislação da reforma
psiquiátrica, com a lei nº 9.716, de 1992, na qual ficou determinada a diminuição
progressiva dos leitos em hospitais psiquiátricos, com substituição por uma rede de
atenção integral à saúde mental. No âmbito desta rede integrada surgem os CAPS
como principais serviços, sendo o de São Lourenço do Sul o primeiro do sul do Brasil
e do RS (Ministério da Saúde, 2004a; Tomasi et al., 2008).
Nos materiais estudados há vários relatos das experiências dos serviços
substitutivos pioneiros no Brasil, os CAPS em São Paulo e os NAPS em Santos, sendo
escassos, no entanto, relatos históricos das primeiras experiências com CAPS no RS.
Essa possível falta de registros verificada pode significar uma perda importante de
partes da história da saúde mental do RS.
Foram implantados de abril a dezembro de 2002, 42 CAPS ad em 14 estados
brasileiros. No RS, os primeiros registros de experiências de CAPS ad foram
encontrados, no Informativo de Saúde Mental no SUS (2004b), datando do ano de
2003 em Novo Hamburgo e 2004 nos municípios de Pelotas e Porto Alegre (Ministério
da Saúde, 2003).
A rede de atendimento dos CAPS ad no RS em 2008, dados pesquisados e
utilizados neste trabalho, estava organizada com um total de 15. Os municípios
identificados com CAPS ad, pelas fontes pesquisadas são: Porto Alegre, Novo
Hamburgo, Pelotas, Caxias do Sul, Nova Palma, Santa Maria, Alegrete, Alvorada,
São Borja, Jaraguá do Sul, Augusto Pestana, Gravataí, Passo Fundo e Santa Cruz do
Sul (Rio Grande do Sul, 2008).
Segundo Consoli, Hirdes e Costa (2009), o estado apresenta diferenças regionais
significativas quanto à estruturação dos serviços. Constatam que a metade sul do
estado protagonizou experiências inéditas em saúde mental, enquanto a metade norte
apresenta dificuldades e carências na estruturação e inserção de serviços em saúde
mental. Um exemplo disso é que o município de Pelotas, situado no sul do estado,
está dentre os municípios brasileiros que estão respondendo mais satisfatoriamente
à substituição do modelo hospitalocêntrico pela rede substitutiva (Ministério da
Saúde, 2005).
O terceiro tema abordado corresponde às orientações e políticas de trabalho
instituídas pelo Ministério da Saúde para as equipes de trabalho dos CAPS. Os dados
obtidos estão sintetizados na Tabela 2.
Aletheia 37, jan./abr. 2012
125
Tabela 2 – Orientações e políticas de trabalho para as equipes: objetivos e atividades.
Objetivos
Atividades
1. Atendimento diário aos usuários dos serviços;
2. Redução de danos;
3. Cuidados personalizados;
4. Atendimento nas modalidades intensiva, semi-intensiva e não intensiva;
5. Condições para o repouso e desintoxicação ambulatorial;
6. Cuidados aos familiares dos usuários dos serviços;
7. Promover, mediante diversas ações a reinserção social dos usuários, utilizando recursos
intersetoriais, com estratégias conjuntas para o enfrentamento dos problemas;
8. Trabalhar os fatores de proteção para o uso e dependência de substâncias psicoativas, buscando minimizar a influência dos fatores de risco;
9. Trabalhar a diminuição do estigma e preconceito relativos ao uso de substâncias psicoativas, mediante atividades de cunho preventivo/educativo;
10. Monitorizar a saúde mental na comunidade;
11. Promover cuidados comunitários.
1. Atendimento Individual (medicamentoso, psicoterápico, de orientação);
2. Atendimento em Grupos;
3. Oficinas Terapêuticas;
4. Visitas Domiciliares;
5. Perspectiva Individualizada;
6. Prevenção.
Nota: Construída por Chalana Larentis, 2010 com base nas bibliografias pesquisadas.
“A rede de atenção à saúde mental (...) caracteriza-se por ser essencialmente
pública, de base municipal e com um controle social fiscalizador e gestor no processo
de consolidação da Reforma Psiquiátrica” (Ministério da Saúde, 2005, p. 25). Entendese que as políticas e diretrizes dos CAPS ad são instituídas a nível federal e de forma
geral aos profissionais que compõem as equipes, ou seja, não há mudanças significativas
das políticas e diretrizes de cada estado e/ou município, da mesma forma que não há
orientações específicas para o trabalho de cada profissional do serviço. Tudo deve ser
adequado ao perfil populacional de cada município e da equipe de cada serviço, desde
que seja seguida a lógica preconizada pela reforma psiquiátrica.
Os conceitos de territorialidade – que abrange não somente a área geográfica, mas
também as pessoas que ali habitam, com seus conflitos, interesses, amigos, família e de
municipalização dos serviços (os municípios é que devem ser os principais responsáveis
pela saúde da população) –, são importantes por serem conceitos que apontam para o
fato de que as diretrizes gerais de trabalho devem ser adaptadas, pelos profissionais, para
a realidade de cada local, situação e usuário, a fim de atingir o objetivo maior que é de
oferecer cuidado integral aos usuários dos serviços.
Até mesmo a formação das equipes desses serviços deve seguir as diretrizes
estipuladas, mas não são estanques. As diretrizes indicam que as equipes dos CAPS ad
devem conter no mínimo 13 profissionais, alguns com designação da especialidade como
médicos, e outros não como psicólogos, em que é necessário nível superior ou nível
técnico, ficando a decisão de quais profissionais serão integrados à equipe a critério de
cada município (Ministério da Saúde, 2005). Os profissionais da Psicologia, portanto,
embora estejam presentes em todas as equipes dos materiais estudados, não possuem um
lugar garantido pelas diretrizes.
126
Aletheia 37, jan./abr. 2012
A Tabela 3 sintetiza as indicações dos psicólogos quanto às atividades e intervenções
que desenvolvem nos CAPS ad, identificadas no estudo dos artigos incluídos nesse
estudo.
Tabela 3 – Indicações dos psicólogos: atividades e intervenções.
Atividades
Acolhimento
Grupo de família
Grupo de adolescentes
Grupo terapêutico com alcoolistas
Grupo terapêutico com drogadictos
Grupo recreativo
Oficinas terapêuticas
Grupo antitabagismo
Atendimento individual (psicoterapia)
Visita domiciliar
Grupo de motivação
Grupo de psicoterapia
Grupo de prevenção de recaída
Grupo de relaxamento
Grupo de orientação em saúde
Grupo de reencontro
Grupo psicopedagógico
Grupo de promoção de abstinência
Grupo de mulheres
Intervenções
Atendimentos clínicos
Grupos terapêuticos
Avaliação psicológica
Nota: Construída por Chalana Larentis, 2010 com base nas bibliografias pesquisadas.
A Tabela 4, por sua vez, condensa as indicações dos psicólogos quanto às abordagens
e instrumentos utilizados.
Tabela 4 – Indicações dos psicólogos: abordagens e instrumentos.
Abordagens
Psicanálise (lacaniana, freudiana)
Cognitivo-comportamental
Histórico cultural
Perspectiva da psicopatologia
Grupo operativo
Psicossocial
Instrumentos
Escuta clínica
Testes psicológicos
Brinquedos em geral
Materiais escolares
Jogos didáticos
Mielke, Kantorski, Jardim e Olschowsky (2009) ressaltam que a realização de
atendimentos tanto individuais quanto grupais, preconizados na legislação em saúde
Aletheia 37, jan./abr. 2012
127
mental, faz com que esses serviços atendam às orientações legais com relação aos
atendimentos oferecidos. Dessa forma, entende-se que as práticas dos psicólogos
nesses serviços também estão atendendo às orientações legais, uma vez que relatam
os atendimentos individuais e grupais como principais práticas desenvolvidas, além do
“suporte social às famílias de usuários” (Figueiredo & Rodrigues, 2004, p. 177).
No entanto, Souza et al. (2007) salientam que a maior parte das ações na área
de saúde mental álcool e drogas recomendadas pelo Ministério da Saúde e pela OMS
fazem referência às intervenções na comunidade. Contudo, o que observam é uma
continuidade do modelo biomédico, ressaltando que os CAPS ad, no período estudado,
não estavam desenvolvendo efetivamente as visitas domiciliares ou outras intervenções
comunitárias.
O que fica evidente nos materiais analisados é que a prática predominante dos
profissionais psicólogos nestes serviços é a psicoterapia individual, seguida dos grupos
terapêuticos. Figueiredo e Rodrigues (2004) descrevem a realização de psicoterapia nos
moldes da clínica tradicional. Este fato pode ser entendido de acordo com a orientação
de Dimenstein (2001) quando ressalta que o modelo clínico da psicoterapia individual
ainda é a forma de trabalho predominante entre os profissionais. Figueiredo e Rodrigues
(2004) salientam que as práticas psicológicas visando promover a reinserção dos usuários
encontram-se pouco desenvolvidas. Com isso, entende-se que a psicoterapia tem sido a
prática mais comum dos psicólogos mesmo que também se envolvam com atividades
preventivas e comunitárias, em escala reduzida.
O quinto tema a ser analisado é referente à formação acadêmica e profissional em
Psicologia. Estudos como o de Figueiredo e Rodrigues (2004) apontam que o modelo de
atuação privilegiado na graduação em Psicologia é o da clínica tradicional, o que reflete
nas atuações desses profissionais nos serviços. Para Dimenstein (2001) os cursos de
graduação tenderam para a formação de profissionais com modelos de atuação limitados
para o setor da saúde e responsáveis pelas dificuldades dos profissionais para lidar com
as demandas, instituições e adaptação às dinâmicas condições de perfil profissional
exigidas pelo SUS.
Como possibilidade para explicar essas dificuldades, deve ser lembrado que a
graduação tem que abranger atuações prováveis dos psicólogos, devendo adequar os
conhecimentos adquiridos às particularidades dos serviços, utilizando de sua capacidade
criativa e reconhecendo as particularidades de fatores regionais e culturais de cada espaço,
uma vez que interferem para a proposta das atividades nos CAPS ad. Santos e Duarte
(2009) reforçam essa ideia ao pontuarem que o psicólogo atua com as demandas que
cada caso requer, dependendo da necessidade percebida.
Segundo Menegon e Coêlho (2006), uma maneira de enfrentar o desafio da
formação é fortalecendo “redes interdisciplinares e intradisciplinares na saúde e nas
ciências sociais” (p.162), produzindo e desenvolvendo conhecimentos para a atuação
do psicólogo na rede de saúde pública. Ressaltam a necessidade da compreensão dos
processos coletivos implicados na saúde-doença, ampliando e fortalecendo os saberes e
fazeres da psicologia: social e da saúde.
Entende-se, também, que a busca por formação complementar se torna fundamental
para que os profissionais psicólogos desenvolvam suas atividades de forma mais eficaz,
128
Aletheia 37, jan./abr. 2012
ampla e de acordo com a preconização da reforma psiquiátrica. No entanto, Figueiredo
e Rodrigues (2004) salientam que na formação complementar os profissionais optam
por áreas caracterizadas pelo modelo clínico. Essa circunstância foi apontada por um
psicólogo entrevistado em tal estudo, o que acarreta pouca expressividade de práticas
voltadas para a promoção da reinserção social dos usuários.
Além disso, Dimenstein (2001) enfatiza que a prática dos profissionais psicólogos
deve ser mais questionada dentro da própria categoria profissional para a sua adequação
e efetividade social. A mesma autora aponta também para a necessidade de os psicólogos
incorporarem uma nova concepção de sua prática profissional, “associada ao processo
de cidadanização, de construção de sujeitos com capacidade de ação e de proposição”
(p.62), rompendo com o “corporativismo, as práticas isoladas e a identidade profissional
hegemônica vinculada à do psicoterapeuta” (p. 62).
A abordagem psicossocial compreende a articulação entre o que está no social e o
que faz parte do psíquico, concebendo o sujeito em suas múltiplas dimensões. Dessa forma,
o campo das intervenções psicossociais deve direcionar-se para a potencialização das
capacidades existentes no sujeito, visando a sua autonomia, a superação das dificuldades
vividas e a reinvenção e fortalecimento de caminhos possíveis (Alves & Francisco,
2009). Para Campos, citado por Alves e Francisco, (2009) as ações psicológicas em que
a realidade socioeconômica e as condições de vida dos sujeitos não estão articuladas, não
são ações que reconhecem a condição de autonomia dos usuários como protagonistas
de sua história.
Refletir sobre essas ideias é fundamental para a formação acadêmica e profissional
para atuação dos profissionais psicólogos na rede pública de saúde mental, juntamente
com as demais equipes que compõem esses serviços substitutivos, uma vez que
todas as atividades desenvolvidas são ações de uma clínica ampliada e dependem do
engajamento de todos os profissionais atuantes. Além disso, o permanente diálogo entre
os diversos campos do saber e entre os profissionais que compõem as redes de saúde é
que os serviços podem se desenvolver plenamente no âmbito da desinstitucionalização,
compreendida como ações voltadas para a superação da condição de exclusão que,
historicamente estigmatiza essas pessoas, e como ações que considerem os usuários em
suas experiências cotidianas (Alves & Francisco, 2009; Dimenstein, 2001; Figueiredo
& Rodrigues, 2004).
Considerações finais
A implantação dos CAPS representa um avanço nos tratamentos destinados às
pessoas portadoras de transtornos mentais, e a regulamentação dos serviços destinados
aos usuários de álcool e outras drogas representa um início para quebrar com paradigmas
relacionados à figura dos dependentes químicos, muito associada à criminalidade e justiça.
No entanto, entende-se, também, que a rede substitutiva dos CAPS possui limitações, não
estando ainda totalmente firmada, até mesmo por serem bastante recentes.
Torna-se fundamental, portanto, a realização de estudos avaliativos desses
serviços, com o uso de pesquisas de campo, que podem colaborar com o levantamento
de necessidades e implantação de mudanças importantes. Além disso, sobre os CAPS ad
Aletheia 37, jan./abr. 2012
129
existe pouco material disponível, ou seja, trata-se de uma literatura que pode ser muito
mais explorada por estudantes e profissionais da área da Psicologia.
Da mesma forma que acontece com a literatura referente aos CAPS ad, são raros os
materiais publicados sobre a atuação dos psicólogos nesses serviços. Isso não significa que
os psicólogos não estejam realizando atividades importantes, mas representa mais uma
necessidade de estudo, viabilizando maior conhecimento sobre as intervenções realizadas,
já que se pode pensar que muitos profissionais preferem realizar suas atividades, sem
registrá-las e publicá-las. Fazer contato direto com profissionais psicólogos atuantes nesses
serviços seria um tipo de abordagem viável para investigações complementares.
Analisando pelo viés histórico, também se recomenda o estímulo aos registros
sistemáticos referentes a experiências e práticas dos profissionais em saúde mental no
estado independente dos CAPS, para que não se percam informações ao longo dos anos.
Esse aspecto é percebido simultaneamente como uma lacuna e uma possibilidade para
o desenvolvimento de futuros estudos.
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_____________________________
Recebido em julho de 2012
Aceito em novembro de 2012
Chalana Piva Larentis – Psicóloga. Especialista em Psicologia Clínica em formação. Universidade de Caxias
do Sul.
Alice Maggi – Psicóloga. Doutora. Universidade de Caxias do Sul.
Endereço para contato: [email protected] ou [email protected]
132
Aletheia 37, jan./abr. 2012
Aletheia 37, p.133-148, jan./abr. 2012
Estilos de vida de adolescentes escolares no sul do Brasil1
Sheila Gonçalves Câmara
Denise Rangel Ganzo de Castro Aerts
Gehysa Guimarães Alves
Resumo: Este estudo enfoca os estilos de vida de adolescentes escolares a fim de identificar tanto
as práticas protetivas quanto as arriscadas entre grupos de adolescentes. O estudo transversal contou
com uma amostra de 1210 adolescentes escolares de nono ano do ensino fundamental de 66 escolas
públicas estaduais da região metropolitana de Porto Alegre, RS. Os instrumentos foram inquérito de
dados sociodemográficos e o questionário de comportamentos de saúde entre escolares. A análise
de cluster permitiu agrupar os sujeitos segundo seus atributos e a análise discriminante serviu para
identificar a combinação de variáveis capazes de explicar as diferenças entre os grupos identificados.
Os resultados revelaram três grupos, sendo dois de meninas e um de meninos. Os primeiro perfil
diferenciou meninos e meninas, tendo os meninos um perfil mais saudável, enquanto as meninas
apresentaram mais sintomas físicos e psicológicos. O segundo perfil diferenciou os adolescentes
com maior atividade social, indicativo de um perfil mais saudável, daqueles menos proativos.
Os resultados revelam a necessidade de intervenções promotoras da saúde ou preventivas que
considerem diferenças de gênero, bem como de grupos adolescentes com suas especificidades.
Palavras-chave: Adolescência, estilos de vida, sexo, saúde adolescente.
Lifestyles of scholastic adolescents in Southern Brazil
Abstract: This study focuses on the lifestyles of adolescent students in order to identify both
protective and risky practices among adolescent groups. The cross-sectional study involved a sample
of 1210 adolescents from ninth year of elementary studies of 66 public schools in the metropolitan
area of Porto Alegre, RS. The instruments were a sociodemographic questionnaire and the Health
Behaviors among Scholarship children. The cluster analysis grouped the subjects according to
their attributes, and the discriminant analysis was used to identify the combination of variables that
could explain the differences between the groups identified. The results revealed three groups, two
of girls and one of boys. The first profile differed boys and girls, having the boys a more healthful
profile, whereas girls presented more physical and psychological symptoms. The second profile
differentiated adolescents with greater social activity, indicative of a healthier profile from that least
proactive. The results show the need for health promoting or preventive interventions that could be
able to consider gender differences, as well as groups of teenagers with their specificities.
Keywords: Adolescence, lifestyles, sex, adolescent´s health.
Estilos de vida de adolescentes escolares del sur de Brasil
Resumen: Este estudio enfoca los estilos de vida de adolescentes escolares a fin de identificar
tanto las practicas protectoras cuanto las arriesgadas entre grupos de adolescentes. El estudio
transversal conto con una amuestra de 1210 adolescentes escolares de noveno año de la
enseñanza básica de 66 escuelas públicas estaduales de la región metropolitana de Porto Alegre,
RS. Los instrumentos fueron un cuestionario de datos socio demográficos y el cuestionario de
1
Apoio: CNPq.
comportamientos de salud entre escolares. El análisis de cluster permitió agrupar los participantes
conforme sus atributos, y el análisis discriminante fue para identificar la combinación de variables
capaces de explicar las diferencias entre los grupos identificados. Los resultados revelaron tres
grupos: dos de niñas e uno de niños. El primero perfil diferencio niños y niñas, teniendo los niños
un perfil más saludable, mientras las niñas presentaron más síntomas físicos y psicológicos. El
segundo perfil diferenció los adolescentes con mayor actividad social, indicativa de un perfil más
saludable, de aquellos menos proactivos. Los resultados revelan la necesidad de intervenciones
promotoras de la salud o preventivas que consideren diferencias de género así como de grupos
de adolescentes con sus especificidades.
Palabras clave: Adolescencia, estilos de vida, sexo, salud del adolescente.
Introdução
A adolescência constitui-se em um período crucial para as estratégias de promoção
da saúde, posto que é um período de grandes modificações na vida dos indivíduos.
Embora esse período seja considerado um dos mais saudáveis do desenvolvimento
humano, as taxas de mortalidade por acidentes ou envolvimento em situações que
acarretem risco à própria saúde são significativas (OPAS, 2001). É nessa etapa que
a aquisição de estilos de vida voltados para a saúde pode consolidar-se de maneira
definitiva no decorrer do ciclo vital do indivíduo (Heaven, 1996). Da mesma forma,
como a adolescência consiste em um período de aprendizagens e experimentação, no
qual são fortes as pressões contextuais para o início de práticas pouco saudáveis, os
padrões comportamentais voltados para estas práticas podem tornar-se estilos difíceis
de modificar posteriormente (Sarafino, 1994; Heaven, 1996).
A adoção de comportamentos vai depender do resultado das interações do
jovem com suas circunstâncias peculiares de vida. Como os padrões culturais são
uma construção social, faz-se necessário considerar que as escolhas dos jovens
são influenciadas pelo ambiente no qual vivem. Isto é, um ambiente mais saudável
proporcionará um estilo de vida com mais qualidade. Em contrapartida, quando as
propriedades do ambiente são adversas, determinam estilos de vida menos saudáveis
(Balaguer, Castillo & Pastor, 2002). Nesses contextos são desenvolvidos padrões
comportamentais, os quais dizem respeito a formas recorrentes de comportamento que
se executam de maneira estruturada, tornando-se hábitos quando constituem a forma
preferencial de responder a diferentes situações (Rodríguez Marín & García, 1995).
Na confluência entre padrões culturais, hábitos e estilos de vida é preciso
considerar a integralidade do contexto de vida adolescente em processos inerentes
aos contextos sociais (históricos, políticos e econômicos) nos quais estão imersos.
Assim, pensar a saúde do adolescente implica em refletir sobre os diversos modos de
viver a adolescência e a vida (Ferreira, Alvinir, Teixeira & Veloso, 2007).
A imagem corporal e a satisfação com o corpo representam aspectos apontados como
importantes preditores da percepção de saúde na adolescência (Haraldstad, Christophersen,
Eide, Nativg & Helseth, 2011; Simões, Matos & Batista-Foguet, 2008). Tanto meninas
quanto meninos preocupam-se com a imagem corporal. No entanto, para as meninas esta
é uma marca que as identifica, exigindo corpos cada vez mais magros, enquanto meninos,
por sua vez, tendem a desejar corpos mais fortes e atléticos. Estudo realizado com 402
134
Aletheia 37, jan./abr. 2012
escolares de Florianópolis/SC apontou que a insatisfação da imagem corporal é mais
comum no sexo feminino (Pereira, Graup, Lopes, Borgatto & Daronco, 2009).
Neste sentido, o presente estudo visou identificar os adolescentes por grupos em
função de suas características nas variáveis relacionadas à imagem corporal, atividade
física, alimentação, sintomas físicos e psicológicos, consumo de drogas legais e
ilegais, tempo livre, escola, comunicação com familiares e amigos, e percepção de
saúde e felicidade. A partir dessa identificação, buscou-se apontar as variáveis que
apresentavam maior capacidade discriminante para diferenciar os grupos.
Método
Amostra
Estudo de base escolar, com corte transversal, realizado com escolares do nono
ano do ensino fundamental, matriculados na rede pública estadual de municípios da
região metropolitana de Porto Alegre/RS (RMPA) em 2009 e 2010. A faixa etária foi
fixada entre 12 e 19 anos, considerando a idade mínima neste nível de ensino e os
critérios da OMS para a definição da etapa da adolescência (WHO, 1995).
A população foi identificada a partir dos dados disponibilizados pela Secretaria
de Educação e Cultura/RS em 2009 (N=17.107 alunos matriculados). A amostra
inicial foi calculada para representar a população total de escolares. Para o cálculo
do tamanho da amostra considerou-se uma prevalência para qualquer desfecho de
50%, um erro máximo tolerado de +3,5% e um nível de significância de 5%. Além
disso, para corrigir um possível viés de delineamento, uma vez que este foi um estudo
transversal, ampliou-se o tamanho da amostra em 50%. Com isso, o tamanho da
amostra com poder de representar o universo de escolares foi de 1125 sujeitos. Para
tanto, foram sorteadas aleatoriamente 66 escolas da região metropolitana de Porto
Alegre, resultando em 1244 escolares selecionados. Destes, 24 foram excluídos por
não haverem preenchido o mínimo de 90% do instrumento de pesquisa, estando a
amostra final composta por 1210 alunos, que representam 7% da população.
Instrumentos
Como instrumentos foram utilizados: inquérito de dados sociodemográficos (sexo,
idade, raça/cor autorreferida, peso e altura autoinformados, e escolaridade dos pais);
e, Comportamentos de Saúde entre Escolares, desenvolvido pela OMS para estudar os
estilos de vida dos adolescentes em diferentes países (Wold, 1995). Deste instrumento,
foram utilizados os blocos referentes a: imagem corporal, atividade física, alimentação,
sintomas físicos e psicológicos, consumo de drogas legais e ilegais, tempo livre, escola,
comunicação com familiares e amigos, e percepção de saúde e felicidade.
Procedimentos de coleta de dados
Após a autorização das escolas sorteadas, a coleta de dados foi realizada de
forma grupal em salas de aula por bolsistas de iniciação científica e acadêmicos de
Aletheia 37, jan./abr. 2012
135
psicologia treinados para a atividade. O tempo médio de aplicação foi de 30 minutos.
Os participantes responderam ao instrumento de pesquisa mediante assentimento dos
estudantes e autorização dos responsáveis (assinatura do Termo de Consentimento Livre
e Esclarecido), no caso dos menores de 18 anos.
A aplicação inicial dos instrumentos foi acordada previamente com cada escola.
Foram combinados três retornos semanais para captar os alunos faltantes no dia das
coletas anteriores. Foram consideradas perdas os alunos matriculados que não estavam
frequentando as classes e aqueles faltantes no momento da coleta de dados nos quatro
encontros, bem como os menores de idade que não haviam trazido assinado pelos
responsáveis o TCLE. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em
Pesquisa da instituição de afiliação dos autores (protocolo: 2008-495H).
Procedimentos de análise dos dados
Para a descrição da amostra foi realizada uma análise univariada. A análise de
cluster (Hierárquica e K-Médias) permitiu agrupar os sujeitos segundo seus atributos
em grupos e a análise discriminante serviu para identificar a combinação de variáveis
capazes de explicar o máximo de diferenças nos perfis de escores médios entre os grupos
identificados na análise de Cluster (Pardo-Merino & Ruiz-Díaz, 2002).
Resultados
A distribuição dos participantes por características sociodemográficas revelou
que um maior contingente (39,8%) estudava na cidade de Porto Alegre. No eixo norte,
contemplando os municípios de Canoas, Nova Santa Rita, Sapucaia, Esteio e Campo
Bom, a amostra representou 38,8%. No eixo leste, representado pelos municípios de
Cachoeirinha, Alvorada e Gravataí a 13,5% e, no eixo leste, representado apenas pelo
município de Guaíba, a amostra correspondeu a 7,9%.
Quanto ao sexo, 51,4% dos participantes eram do sexo masculino. Houve maior
concentração de estudantes com 14 anos (50,2%), com uma média de 14,4 anos (DP=±
1,09 anos), sendo esta a idade esperada para o nono ano do ensino fundamental. Em
relação à cor da pele autorreferida, 74,4% consideraram-se brancos. Quanto ao estado
nutricional, a partir dos dados de peso e altura informados pelos jovens, verifica-se
que a maioria (66,1%) é eutrófica, 22,5% apresentam baixo peso e 11,4% sobrepeso/
obesidade.
A escolaridade de pai e mãe foi equivalente, na seguinte ordem: sem estudos
ou ensino fundamental incompleto (30,8% dos pais e 30,6% das mães), ensino médio
completo (31,1% dos pais e 30,7% das mães), ensino fundamental completo ou médio
incompleto (23,3% dos pais e 24,7% das mães) e curso superior (14,8% dos pais e
14,0% das mães).
A análise de cluster revelou que a melhor configuração do modelo, através do
Dendograma, era a de três conglomerados. O método K-Médias permitiu verificar a
distância euclidiana entre as médias ou centroides dos três clusters em cada variável
(Tabela 1).
136
Aletheia 37, jan./abr. 2012
Tabela 1 – Centroides dos três clusters identificados na amostra de adolescentes escolares da RMPA. (Porto
Alegre, 2009-2010) (n=1210).
Variáveis na análise
Cluster I (n= 297)
Cluster II (n= 580)
Cluster III (n=333)
1,61
1,61
1,57
Sexo
1
2
1
Idade
1,29
1,27
1,30
Raça/cor
1,23
1,26
1,28
Níveis índice de massa corporal
Município/Região
1,89
1,90
1,94
Nível de estudos do pai
4
4
4
Nível de estudos da mãe
4
4
4
Situações de embriaguez
0
0
0
Satisfação com o corpo
2
3
2
Avaliação do peso em comparação
3
3
3
Hábitos alimentares em comparação
3
3
3
O quanto acredita estar saudável
3
3
3
Sentimento de felicidade
3
3
3
Sentimento de solidão
1
1
2
Dor de cabeça
2
2
3
Dor de estômago
1
1
2
Dor nas costas
2
2
3
Dificuldades para dormir
2
1
3
Sentir-se deprimido(a)
1
1
3
Sentir-se irritado(a)
2
2
4
Sentir-se nervoso(a)
2
2
4
Gostar da escola
3
3
3
Rendimento escolar em comparação
3
3
3
Ter um bom amigo
1
1
1
Facilidade novos amigos
3
3
3
Como ocupar o tempo em tarde livre
2
3
2
Uso de tabaco
1,29
1,21
1,45
Consumo de álcool
1,69
1,67
1,84
Uso de maconha
1,09
1,07
1,13
Prática de atividade física
1,70
4,62
3,42
Prática de esporte
1,86
4,55
3,50
Comunicação com o pai
2,38
2,76
2,23
Comunicação com a mãe
2,87
3,11
2,83
Comunicação com amigos
3,28
3,28
3,25
Frequência encontro amigos fora da escola
2,18
2,80
2,46
Aletheia 37, jan./abr. 2012
137
O agrupamento dos participantes em cada aglomerado apresentou distribuição
desigual em relação ao sexo (tabela 2) e diferentes características em termos de satisfação
com o corpo, felicidade, solidão, sintomatologia (tabela 3); e rendimento, comunicação
com pai e mãe, ocupação do tempo, hábitos alimentares, atividade física e prática de
esportes (tabela 4).
Tabela 2 – Dados sociodemográficos dos adolescentes escolares da RMPA. Porcentagens e médias das variáveis
inseridas na análise de cluster. (Porto Alegre, 2009-2010) (n=1210).
Variáveis
Cluster I (n= 297)
Cluster II (n= 580)
Cluster III (n=333)
%
%
%
M(DP)
M(DP)
Município/Região
Porto Alegre
Região metropolitana de Porto Alegre
38,7
61,3
39,0
61,0
42,6
57,4
Sexo
Feminino
Masculino
61,3
38,7
30,9
69,1
68,2
31,8
Idade
12-14
15-19
71,0
29,0
72,6
27,4
70,0
30,0
Raça/cor
Branco
Não branco
77,4
22,6
74,3
25,7
71,8
28,2
Níveis índice de massa corporal
Baixo peso
Peso normal
Sobrepeso/obesidade
23,9
65,3
10,8
Nível de estudos do pai
Sem estudos/EFI*
EFC**
EMC***
Curso superior
38,4
20,5
28,6
12,5
Nível de estudos da mãe
Sem estudos/EFI
EFC
EMC
Curso superior
36,3
25,9
27,6
10,1
1,9(0,6)
1,9(0,6)
22,4
66,9
10,7
3,6(1,5)
1,9(0,6)
21,3
65,5
13,2
3,9(1,5)
28,1
24,7
33,1
14,1
3,6(1,5)
3,9(1,5)
28,8
23,4
29,7
18,0
4,0(1,5)
33,0
25,0
33,4
14,8
M(DP)
3,8(1,5)
40,2
23,1
28,8
15,9
* EFI= Ensino fundamental incompleto; **EFC= Ensino fundamental completo; ***EMC= Ensino médio
completo
138
Aletheia 37, jan./abr. 2012
Tabela 3 – Aspectos individuais relacionados a saúde dos escolares. Porcentagens e médias das variáveis
inseridas na análise de cluster. (Porto Alegre, 2009-2010) (n=1210).
Aspectos individuais
Cluster I
(n= 297)
Cluster II
(n= 580)
%
%
M(DP)
2,2(1,0)
Satisfação com o corpo
Nada/pouco
Mais ou menos
Bastante/muito
20,9
41,4
37,7
Avaliação do peso em comparação
Magro/a
Nem magro/a nem gordo/a
Gordo/a
27,6
57,2
15,1
O quanto acredita estar saudável
Nada/pouco saudável
Bastante/muito saudável
28,3
71,7
Sentimento de felicidade
Nada/pouco feliz
Bastante/muito feliz
7,4
92,6
Sentimento de solidão
Não
Sim
20,9
79,1
Dor de cabeça
Não
Sim
66,7
33,3
Dor de estômago
Não
Sim
71,4
28,6
Dor nas costas
Não
Sim
63,6
36,4
Dificuldades para dormir
Não
Sim
75,8
24,2
Sentir-se deprimido(a)
Não
Sim
74,4
25,6
Sentir-se irritado(a)
Não
Sim
31,0
69,0
Sentir-se nervoso(a)
Não
Sim
44,8
55,2
Cluster III (n=333)
M(DP)
%
2,7(0,9)
8,7
37,1
55,2
2,0(1,1)
30,6
41,2
28,2
2,8(0,7)
2,8(0,8)
26,3
62,6
11,0
2,8(0,6)
3,0(0,9)
24,6
50,5
24,9
3,0(0,7)
19,5
80,5
3,3(0,6)
2,6(0,8)
45,6
54,4
3,4(0,6)
4,3
95,7
1,3(0,9)
2,9(0,7)
27,6
72,4
0,9(0,8)
36,2
63,8
1,7(1,2)
1,9(1,1)
9,0
91,0
1,7(1,1)
65,3
34,7
1,4(0,8)
3,4(1,4)
18,3
81,7
1,4(0,8)
74,0
26,0
1,8(1,2)
2,3(1,4)
42,3
57,7
1,7(1,1)
63,6
36,4
1,5(1,1)
3,3(1,5)
21,6
78,4
1,5(1,0)
75,5
24,5
1,4(0,9)
3,0(1,6)
32,1
67,9
1,2(0,6)
81,9
18,1
2,5(1,3)
3,0(1,5)
27,3
72,7
2,2(1,2)
38,3
61,7
2,2(1,3)
4,1(1,0)
3,9
96,1
1,9(1,1)
50,2
49,8
Aletheia 37, jan./abr. 2012
M(DP)
3,9(1,2)
8,1
91,9
139
Tabela 4 – Aspectos relacionais e estilos de vida dos escolares. Porcentagens e médias das variáveis inseridas
na análise de cluster. (Porto Alegre, 2009-2010) (n=1210).
Aspectos relacionais e estilos de vida
Cluster I
(n= 297)
Cluster II
(n= 580)
Cluster III
(n=333)
%
%
%
M(DP)
M(DP)
27,6
72,4
Rendimento escolar em comparação
Abaixo da média
Médio
Bom
2,7
38,7
58,6
Comunicação com o pai
Difícil
Fácil
54,2
45,8
Comunicação com a mãe
Difícil
Fácil
31,3
68,7
21,8
78,2
34,0
66,0
Ter um bom amigo
Não
Sim
7,4
92,6
5,0
95,0
7,8
92,2
Facilidade novos amigos
Difícil
Fácil
21,9
78,1
Comunicação com amigos
Difícil
Fácil
14,1
85,9
Frequência encontro com amigos fora da escola
Uma vez por semana ou menos
Mais de uma vez por semana
39,0
61,0
Como ocupar o tempo em tarde livre
Não
Sim
10,8
89,2
Uso de tabaco
Não
Sim
85,5
14,5
Consumo de álcool
Não
Sim
36,0
64,0
Situações de embriaguez
Não
Sim
77,8
22,2
Uso de maconha
Não
Sim
96,6
3,4
Hábitos alimentares em comparação
Menos saudáveis
Igual
Mais saudáveis
16,8
53,5
29,6
Prática de atividade física
Não
Sim
65,0
35,0
Prática de esporte
Não
Sim
56,2
43,8
140
37,0
63,0
26,0
74,0
4,5
33,3
62,1
2,9
27,4
69,7
2,2(1,0)
2,7(0,9)
2,4(1,0)
61,3
38,7
37,5
62,5
2,8(1,0)
3,1(0,9)
2,9(1,0)
2,9(0,8)
3,2(0,6)
2,9(0,7)
26,7
73,3
9,2
90,8
3,2(0,9)
3,3(0,9)
3,3(0,8)
17,1
82,9
15,9
84,1
2,4(1,3)
2,8(1,1)
2,2(1,2)
31,5
68,5
17,9
82,1
2,4(0,6)
2,6(0,5)
2,4(0,7)
9,3
90,7
2,4
97,6
1,4(1,0)
1,2(0,6)
1,3(0,8)
78,4
21,6
87,2
12,8
1,8(0,7)
1,7(0,6)
1,7(0,6)
26,7
73,3
37,4
62,6
0,5(0,9)
0,3(1,5)
0,2(0,6)
70,9
29,1
75,5
24,5
1,1(0,7)
1,2(0,5)
1,1(0,6)
95,2
4,8
97,1
2,9
3,2(1,0)
3,5(0,9)
3,2(0,8)
18,7
45,3
35,1
8,1
49,3
42,6
3,4(1,6)
4,6(1,0)
1,7(1,1)
22,2
77,8
1,2
98,8
3,5(1,5)
4,5(1,0)
1,9(1,1)
Aletheia 37, jan./abr. 2012
2,8(0,8)
2,9(0,7)
2,8(0,8)
1,2
98,8
M(DP)
2,7(0,8)
2,9(0,7)
2,9(0,8)
Gostar da escola
Não
Sim
18,0
82,0
O aglomerado 1 (n=297) é composto por meninas que se consideram brancas,
com menor índice de massa corporal e que estão relativamente satisfeitas com seu
corpo. Elas têm menor sentimento de solidão e apresentam menos sintomas físicos
(dor de cabeça, de estômago, nas costas) e psicológicos (sentir-se deprimidas, irritadas
e nervosas). No que tange a dificuldades para dormir elas apresentam uma posição
média e, quanto aos relacionamentos, elas apresentam um nível médio de facilidade/
dificuldade de falar com pai e mãe e menor frequência de encontro com amigos fora
da escola. Em relação ao estilo de vida, o consumo de álcool e tabaco é médio e a
prática de atividade física e esportes é inferior aos demais grupos.
O aglomerado 2 (n=580) é formado por meninos, brancos, com índice médio
de massa corporal, mas que estão mais satisfeitos com o seu corpo. Eles também
apresentam pouco sentimento de solidão e menos sintomas físicos e psicológicos (dor
de cabeça, de estômago, nas costas, dificuldades para dormir, sentir-se deprimidos,
irritados e nervosos). Este é o grupo que tem mais opções sobre como ocupar seu tempo
livre, maior frequência de contato com amigos fora da escola e melhor comunicação
com pai e mãe. Apresentam o menor consumo de álcool e tabaco e a maior prática
de atividade física e exercícios.
O aglomerado 3 (n=333) agrupou meninas, cujo grupo apresenta mais
participantes que se consideram como não brancas, com maiores índices de massa
corporal e que estão menos satisfeitas com seu corpo. Elas apresentam maior
sentimento de solidão e mais sintomas físicos (dor de cabeça, de estômago, nas
costas) e psicológicos (dificuldades para dormir, sentir-se deprimidas, irritadas e
nervosas). As opções para ocupar o tempo livre são mais restritas. Elas apresentam
média frequência de encontro com amigos fora da escola e pior comunicação com
pai e mãe. Quanto a estilos de vida, essas meninas apresentam maior consumo de
tabaco e álcool e média prática de atividade física e exercícios.
A investigação das variáveis que contribuíram para a diferenciação dos três
clusters mostrou duas funções discriminantes. A primeira explicou 60,5% da variância
e, de acordo com os centroides dos grupos, discrimina melhor os aglomerados 2
(-1,146) e 3 (2,151), sendo que o de número 1 (-0,174) está mais próximo do 2. Já
a segunda função, explicou 39,5%, discriminando o aglomerado 1 (-1,951) do 2
(0,705) e 3 (0,513), que estão bastante próximos. O autovalor das duas funções foram,
respectivamente, 1,915 e 1,248 e o l de Wilks foi de 0,153 na função 1 e 0,445 na
função 2. Tais valores indicam que há pouca sobreposição entre os grupos. O valor
transformado de l na função (X2=2251,29), associado a 40 graus de liberdade, e o valor
de l na função 2 (970,20), associado a 19 graus de liberdade, apresentam p≤0,001.
Na tabela 5, encontram-se as variáveis mais relevantes na capacidade diferenciadora
das funções discriminantes.
Aletheia 37, jan./abr. 2012
141
Tabela 5 – Variáveis que entraram na Função Discriminante entre os clusters conforme sua contribuição discriminativa na matriz estrutural nas duas funções identificadas entre adolescentes escolares da RMPA. (Porto
Alegre, 2009-2010) (n=1210).
Variáveis discriminantes
Função
1
Sentir-se deprimido(a)
0,541(*)
Sentir-se nervoso(a)
0,537(*)
Sentir-se irritado(a)
0,493(*)
Dor de cabeça
0,428(*)
Dificuldades para dormir
0,385(*)
Dor nas costas
0,377(*)
Sentimento de solidão
0,329(*)
Dor de estômago
0,269(*)
Sexo
-0,232(*)
Satisfação com o corpo
-0,210(*)
Comunicação com o pai
-0,159(*)
Prática de atividade física
2
Prática de esporte
0,809(*)
0,772(*)
Frequência de encontro com amigos fora da escola
0,167(*)
Como ocupar o tempo em tarde livre
0,118(*)
A função 1 discriminante está composta por 11 variáveis com ponto de corte superior
a 0,10. As variáveis referentes a sintomas psicológicos: sentir-se deprimido(a) (0,541),
sentir-se nervoso(a) (0,537), sentir-se irritado(a) (0,493) e dificuldades para dormir (0,385),
sentimento de solidão (=,329) e sintomas físicos de dor de cabeça (0,428), dor nas costas
(0,377) e dor de estômago (0,269) são aspectos mais presentes entre as participantes do
aglomerado 3. Já no sexo masculino (-0,232), a maior satisfação com o corpo (-0,210) e
a maior facilidade de comunicação com o pai (-0,159) caracterizam o aglomerado 2.
A função 2 está composta por quatro variáveis. A maior prática de atividade
física (0,809), maior prática de esportes (0,772), maior frequência de encontro com
amigos fora da escola (0,167) e maior possibilidades de ocupação do tempo livre (0,118)
são aspectos mais presentes no grupo 2, discriminando-o do grupo 1. Ressalta-se, nesta
função, a proximidade entre os aglomerados 2 e 3, revelando uma maior similaridade
entre estes grupos na discriminação com o grupo 1.
Discussão
Os adolescentes participantes do estudo são predominantemente de área urbana,
com idade média adequada ao seu nível de escolaridade. Em sua maioria, consideram-se
brancos e a maior parte de seus pais tem escolaridade igual ou inferior a que eles tinham
no momento da coleta. Esses adolescentes, por estarem inseridos no contexto escolar,
contam com um fator adicional de proteção que deve ser considerado na avaliação dos
resultados (Gallo & Williams, 2008).
142
Aletheia 37, jan./abr. 2012
A análise de cluster revelou três grupos de jovens, sendo que as meninas dividiramse em dois grupos. O aglomerado 1, de meninas, apresenta um perfil mais saudável em
comparação com o outro grupo de meninas (aglomerado 3), ainda que ambos os grupos de
meninas apresentem um perfil menos saudável que o grupo dos meninos (aglomerado 2).
Este resultado é concordante com um estudo sobre a percepção de saúde de adolescentes,
o qual encontrou uma percepção mais negativa entre as meninas (Strelhow, Bueno &
Câmara, 2010). Nesse sentido, pode-se dizer que a percepção corresponde efetivamente a
estilos de vida menos saudáveis. Galárraga, Aguilá e Rajmil (2009) também encontraram
diferença entre os sexos quanto à percepção de saúde e de qualidade de vida, sendo que
as meninas percebem-se com pior saúde. Outros estudos relacionados à percepção de
bem-estar pessoal entre meninos e meninas revelam diferenças significativas para uma
percepção mais negativa nas meninas. Em estudo de Sarriera, Bedin, Abs, Rodrigues
e Paradiso (2012), com 1588 escolares do Estado do Rio Grande do Sul, com idade
entre 12 e 16 anos (M=14,15; DP1,26), encontrou-se que apenas aos 12 anos as médias
das meninas são superiores às médias dos meninos na percepção de bem-estar pessoal
(Personal Wellbeing Index – PWI, Cummins, 1998), apresentando diferença significativa
(t=2,068; df=591,34; p=0,039), com médias de PWI de 82,58 para meninos e 80,85 para
as meninas. Isso, de certa forma, reflete-se nos dados acerca da avaliação dos adolescentes
quanto à sua alimentação. Os meninos consideram sua alimentação mais saudável em
comparação com seus pares, enquanto as meninas tem uma avaliação menos positiva.
A avaliação subjetiva de saúde, a satisfação com a imagem corporal e a percepção
de felicidade são mais positivas entre os meninos, indicando que os três construtos seguem
um padrão. Em estudo realizado com estudantes portugueses, a contribuição do gênero
explicou apenas 3% da variância de bem-estar. No entanto, foi verificada associação entre
autoestima e bem-estar subjetivo (satisfação com a vida). De acordo com os autores, a
autoestima corresponde a uma avaliação do sujeito sobre si, enquanto a satisfação com
a vida representa uma avaliação da vida em geral. Essa relação foi interpretada como
resultante do fato de ambos os construtos terem em comum um componente valorativo e
emocional: gostar de si ou da vida que se tem. Nesse sentido, a relação entre autoestima e
bem-estar subjetivo abre espaço para que se possa falar de níveis de felicidade, os quais
podem ser considerados como mediadores das dimensões psicológicas relacionadas com
objetivos, motivações, autonomia e autorrealização (Ryff, 1989; Delle Fave, Brdar, Freire,
Vella-Brodrick & Wissing, 2011).
O modo como o indivíduo utiliza seu tempo livre varia conforme o contexto
social, cultural, econômico, ideológico e físico no qual está inserido, incluindo fatores
psicológicos individuais do adolescente (Sarriera, Paradiso, Mousquer, Marques, Hermel,
Coelho, 2007). Na adolescência, grande parte do tempo livre é ocupada na companhia
de pares (Garcia-Castro & Perez Sanchez, 2010). Embora muitas atividades sejam
compartilhadas com a família, é fora de casa que se estabelecem relações interpessoais
mais aprofundadas, seja com pares ou outros adultos (Bueno, Strelhow & Câmara, 2010).
A família, no entanto, segue tendo um papel de referência para o adolescente, assim como
o contexto escolar (Klosinski, 2006; Lila, Buelga & Musitu, 2009).
Nesse sentido, é preciso contextualizar o sentimento de solidão experienciado
pelos jovens. No presente estudo, os meninos são os que apresentaram menor sentimento
Aletheia 37, jan./abr. 2012
143
de solidão, o que se soma aos aspectos relacionais e estilos de vida como gostar da
escola, percepção mais positiva de seu rendimento escolar, facilidade para fazer novos
amigos e frequência de encontro com amigos e comunicação com pai, mãe e amigos. O
contexto relacional avaliado contemplou essas dimensões da vida adolescente nas quais
os meninos apresentaram dados mais positivos, seguidos pelas meninas do aglomerado
1. O sentimento de solidão, na adolescência, está ligado a esferas bem específicas de sua
vida. A literatura aponta que pessoas com mais amigos, com maior qualidade em suas
relações e mais interações sociais apresentam maior satisfação com a vida (González
Carrasco, 2006).
No que diz respeito à mediação psicológica entre suporte social e saúde, há consenso
entre vários pesquisadores, seja pela diminuição dos efeitos negativos de eventos
estressores ou pelos mecanismos desenvolvidos no contexto familiar que permitem ao
indivíduo a busca pelo suporte social (González Carrasco, 2006). Estudo realizado com
3185 crianças e adolescentes de Portugal, com idades entre 10 e 16 anos, encontrou que
as meninas apresentavam médias significativamente superiores em atividades ligadas
ao suporte social em comparação aos meninos. Para os autores, as meninas têm maior
satisfação em desenvolverem atividades com a família e mais facilidade para falar de
sua intimidade, enquanto os meninos falam pouco de si próprios e são mais seletivos
na escolha de pessoas com quem conversar sobre temas pessoais (Gaspar, Ribeiro, Leal
& Matos, 2008). Diferente desse, o presente estudo verificou que ambos os grupos de
meninas, em comparação o de meninos, apresentam maior sentimento de solidão, gostam
menos da escola, consideram seu rendimento menor, têm menos facilidade para falar com
os pais e para fazer novos amigos.
Os fatores mais importantes na diferenciação entre os dois grupos de meninas e o
grupo de meninos dizem respeito a sintomas físicos e psicológicos e consumo de tabaco,
álcool e maconha, nos quais as meninas do aglomerado 1 passaram a ter maior proximidade
com o aglomerado 2 dos meninos e ambos diferenciaram-se do aglomerado 3, de meninas.
A frequência de meninas do grupo 3 que apresentou dor de cabeça, de estômago, nas costas,
dificuldades para dormir, sentimento de depressão, irritação e nervosismo foi bem mais
elevada que os dois outros grupos. O mesmo ocorreu com o consumo de tabaco, álcool e
maconha, além de mais situações de embriaguez. Nesse sentido, o perfil do aglomerado
3 permite identificar um grupo de meninas com estilo de vida muito pouco saudável, o
que se reflete nitidamente nos aspectos individuais, psicossomáticos e psicológicos, bem
como nos aspectos relacionais e de uso de substâncias.
Esse resultado sugere que as meninas do conglomerado 3 têm vivido um contexto
perceptivo e relacional bastante negativo, o que se soma a uma menor percepção de saúde
e felicidade, mais sintomas físicos e psicológicos e um estilo de vida mais voltado ao uso
de substâncias. Assemelham aos meninos (que correspondem ao grupo mais saudável)
no que tange à prática de atividade física e esportes. Nesse aspecto, os aglomerados 2 e 3
diferenciam-se bastante do aglomerado 1. Quanto à diferença entre meninos e meninas,
estudo com 960 adolescentes de Pelotas, RS identificou uma prevalência de sedentarismo
de 22,2% para os meninos e 54,5% para as meninas. Foi identificada a influência de fatores
biológicos, comportamentais e culturais na determinação do sedentarismo (Oehlschlaeger,
Pinheiro, Horta, Gelatti & San’Tana, 2004).
144
Aletheia 37, jan./abr. 2012
Em estudo qualitativo sobre tempo livre entre adolescentes de ensino médio na
Argentina, os autores identificaram que sempre havia um contingente de jovens “não
adaptados” ou que “não se encaixavam” no conceito hegemônico sobre o que representava
ser um estudante de ensino médio. Esses jovens eram denominados “estranhos” ou
“nerds”, termos que têm uma conotação pejorativa entre adolescentes. No entanto, os
pesquisadores verificaram que os jovens assim classificados não buscavam aceitação
pelos pares, parecendo não ser importante a opinião dos demais sobre eles. Eram jovens,
habitualmente, identificados com algumas tribos juvenis (Camarotti, Di Leo & Kornblit,
2007). Não é possível afirmar que esse seja o caso das meninas do aglomerado 3, uma
vez que tanto meninas quanto meninos podem identificar-se ou serem classificados como
desviantes, segundo o padrão normativo entre os pares.
Ao serem avaliadas quais, dentre as variáveis em estudo, melhor diferenciam os três
grupos, identificam-se dois perfis que discriminavam sempre os meninos das meninas.
A adolescência, como uma etapa do ciclo vital, apresenta suas peculiaridades e, entre
elas, está o processo de organização identitária, o qual é extremamente angustiante e
acarreta uma profusão de sentimentos para ambos os sexos (Contreras Romeroe et al,
2009). No caso das meninas, no entanto, estes se apresentam como sintomas psicológicos
(depressão, nervosismo, irritação) ou psicossomáticos, como é o caso de dor de cabeça,
nas costas, no estômago e dificuldade para dormir. São sintomas que estão presentes em
qualquer etapa do ciclo vital, mas na adolescência, podem fazer parte de uma experiência
feminina (Campagna, 2005).
A satisfação com o corpo entre as meninas tende, também, a ser menor (Contreras
et al, 2009). Esse tem sido um fenômeno recorrente nos estudos sobre imagem corporal
(Langoni, Aerts, Alves & Câmara, 2012; Pereira et al, 2009) e os resultados indicam uma
maior preocupação com a aparência física entre as meninas. Ou seja, a socialização
de gênero ainda se faz presente, com as meninas incorporando em sua identidade uma
ideia de corpo de beleza ideal (Pereira et al, 2009). A comunicação com a figura paterna
também pode ser derivada dessa socialização, uma vez que as meninas sofrem maior
controle familiar e, possivelmente, têm maior dificuldade de conversar com o pai sobre
seus interesses (Guimarães, Hochgraf, Brasiliano & Ingberman, 2009). Os meninos, por
sua vez, são incentivados a um estilo de vida mais livre e menos regulamentador, o que
abarca a prática de atividade física e esportiva, o uso de tempo livre e a socialização com
os amigos (Contreras Romero et al, 2009; Traverso-Yépez & Pinheiro, 2005).
Os dois perfis encontrados diferem por seu caráter internalizante (função 1) e
externalizante (função 2). Os aspectos voltados para sensações do indivíduo, incluindo
sintomas psicológicos e físicos, bem como a preocupação com o corpo, são os aspectos
que diferenciam os jovens com percepção de estilo de vida mais e menos saudável. Na
função 2 verificam-se aspectos voltados para as relações com pares, diversão e atividade
esportiva, o que contribui na diferenciação de gênero, uma vez que as meninas do grupo
3 apresentam características externalizantes similares às do grupo de meninos.
Nesse sentido, os resultados indicam que é necessária uma maior atenção à saúde
das meninas adolescentes, especialmente por estas apresentarem sintomas menos
identificáveis de mal estar psicológico, os quais são voltados para comportamentos
e percepções mais negativas de si mesmas. Além disso, é preciso considerar que
Aletheia 37, jan./abr. 2012
145
as meninas apresentam um perfil menos homogêneo que os meninos em termos de
estilos de vida e saúde. Assim, as intervenções também precisam ser direcionadas às
particularidades de cada grupo.
É importante ter cautela acerca dos resultados encontrados, uma vez que o presente
estudo limita-se a adolescentes da região metropolitana de Porto Alegre, a qual tem
características mais urbanas que rurais, acarretando, portanto, em aspectos de uma
vida citadina. São jovens inseridos no sistema escolar, o que representa um importante
fator de proteção. Nesse sentido, outros estudos são necessários para compreender as
diferenças entre meninos e meninas em termos de estilos de vida promotores de saúde
ou de risco, uma vez que o sexo apresentou-se como uma variável fundamental nos
perfis encontrados.
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____________________________________
Recebido em julho de 2012
Aceito em outubro de 2012
Sheila Gonçalves Câmara – Psicóloga. Doutora em Psicologia. Professora do Curso de Psicologia e do
Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Universidade Luterana do Brasil). Professora do Departamento
de Psicologia (Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre).
Denise Rangel Ganzo de Castro Aerts – Médica. Doutora em Clínica Médica, área de concentração em
Epidemiologia. Professora do Curso de Medicina e do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva
(Universidade Luterana do Brasil).
Gehysa Guimarães Alves – Socióloga. Doutora em Educação. Professora do Curso de Enfermagem e do
Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Universidade Luterana do Brasil).
Endereço para contato: [email protected]
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Aletheia 37, jan./abr. 2012
Aletheia 37, p.149-161, jan./abr. 2012
Desafios nas ações de atenção primária: estudo sobre
a instalação de programa de visitas domiciliares
para mães adolescentes
João Eduardo Coin-Carvalho
Fabiana Cristina Federico Esposito
Resumo: A Estratégia Saúde da Família (ESF) busca se confirmar como intervenção emancipadora
e transformadora dos sujeitos, consideradas a preocupação com o acolhimento e a especificidade
da atenção, como no caso mães adolescentes. O objetivo deste trabalho foi estudar as condições
para a implantação de um programa de visitadoras domiciliares para adolescentes puérperas em
parceria com ESF. O trabalho teve como participantes 84 moradores e 15 profissionais de saúde,
ao longo de 51 encontros e reuniões. Os resultados revelam mulheres e funcionários que se acusam
mutuamente de “invasores”, confrontando duas perspectivas em relação ao lugar da ação de saúde:
a “UBS”, marcada pelo controle técnico-institucional, e o “Posto”, patrimônio da comunidade.
Concluímos que a formação especifica de profissionais e estudos sobre as histórias das relações
entre a comunidade e os serviços públicos são pontos de partida que profissionais e comunidade
possam se reconhecer como parceiros das ações de saúde.
Palavras-chave: estratégia saúde da família, visitas domiciliares, maternidade adolescente.
Challenges in primary care actions: A study on the installation
of a program of home visiting for teenage mothers
Abstract: The Family Health Strategy intends to be a liberating and transforming action for
social subjects, dealing with clients’ reception and specific attention, as in the case of teenage
mothers. The aim of this work was to study the conditions for conducting a home visiting
program for adolescent mothers in partnership with a FHS team. The study participants were 84
residents and 15 health professionals, over 51 meetings and gatherings. The results reveal that
women and health professionals accuse each other of “invaders”, comparing two approaches
in relation to the place of a health action: the “Unidade Basica de Saude”, within a technical
and institutional remark, and the “Posto”, a community heritage. We conclude that specific
professional training must join studies about the history of relationships between community
and public health services are a starting point to conduct professionals and community residents
as partners of health actions.
Keywords: family healthcare strategy, home visiting, adolescent motherhood.
Desafíos en las acciones de atención primaria: un estudio sobre la
instalación de un programa de visitas domiciliarias a madres adolescentes
Resumen: La Estrategia Salud de la Familia busca una acción liberadora de los sujetos sociales,
considerando la preocupación por la acogida y la especificidad de la atención, como en el caso
de adolescentes madres. El objetivo de esta investigación fue estudiar las condiciones para la
aplicación de un programa de visitas domiciliarias para adolescentes puérperas, en colaboración
con equipo ESF. Los participantes del estudio fueran 84 moradoras y 15 profesionales de salud,
durante 51 encuentros. Los resultados revelan que las mujeres y los empleados se acusan
mutuamente de “invasores”, construyendo lugares para la acción sanitaria: la “UBS”, marcada
por el control técnico, y el “Posto”, patrimonio de la comunidad. Así, entendemos la importancia
de unirse la formación profesional específica y lo estudio de las historias de relaciones entre
la comunidad y los servicios públicos como punto de partida para que los profesionales y la
comunidad pueden ser socios de las acciones de salud.
Palabras clave: estrategia salud de la familia, visita domiciliaria, maternidad adolescente.
Introdução
As intervenções em saúde em sua dimensão coletiva consideram a assistência
à saúde como uma interferência consciente pelo conjunto dos profissionais de saúde
no processo saúde-doença de uma dada coletividade, objetivando o desenvolvimento
de uma consciência crítica por parte dos usuários, para que estes se tornem sujeitos
de suas próprias transformações. Essa consciência crítica é possível na medida em
que são expostas as contradições da realidade, considerando também os pontos
de vulnerabilidade e os momentos e formas de intervenção. A concepção teórica
do Programa Saúde da Família (PSF) traz as potencialidades para se transformar
em uma proposta de intervenção em saúde que busca essa atuação emancipadora
e transformadora dos sujeitos e, ao optar pela instituição do acolhimento como
um processo de trabalho nas Unidades de Saúde da Família, incrementa essa
potencialidade inicial. (Francolli & Zoboli, 2004).
Dependendo da adesão dos gestores estaduais e municipais de saúde, o Programa
vem se expandindo desde 1994 e, embora mostre resultados muito positivos nos
indicadores de saúde e qualidade de vida das populações atendidas, exige que ainda se
faça um grande esforço para sua implantação efetiva num maior número de municípios
brasileiros. Avaliações realizadas e a percepção advinda do acompanhamento rotineiro
do PSF indicam três grandes grupos de problemas para a sua implementação: os
relacionados à dificuldade de substituir o modelo e a rede tradicional de atenção à
saúde; os aspectos relacionados à inserção e desenvolvimento de recursos humanos; e
o monitoramento efetivo do processo e resultados do PSF, incluindo os instrumentos
e estratégias de sua avaliação. Ainda outro grupo de problemas está relacionado
com a garantia da integralidade, considerada na dimensão da integração aos demais
níveis de complexidade da rede de serviços de saúde. Dificuldades verificadas na
implementação do PSF em municípios de pequeno e médio porte são potencialmente
agravadas nas grandes cidades e metrópoles, considerando-se a existência de altos
índices de exclusão do acesso aos serviços de saúde, agravos de saúde característicos
dos grandes centros, oferta consolidada de uma rede assistencial desarticulada e mal
distribuída, predominância de modalidade tradicional de atendimento à demanda e
de programas verticalizados sem estabelecimento de vínculos com a comunidade do
entorno (Brasil, 2005). Junte-se a isto as condições e contradições no financiamento,
e o distanciamento dos princípios políticos norteadores da Reforma Sanitária em
benefício de uma perspectiva expansionista e tecnicista (Cohn, 2009).
Pesquisas têm mostrado o desejo de meninos e meninas de também serem
pais e mães (Carvalho, 2007). Apesar da literatura historicamente ter construído
a gravidez e a maternidade na adolescência como um problema de saúde pública,
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Aletheia 37, jan./abr. 2012
diversos trabalhos têm indicado como a gravidez/maternidade adolescente não
produz apenas um problema na vida da adolescente, mas é, muitas vezes, motor para
a melhora de vida, com investimentos nos estudos e no trabalho (Geronimus, 2003).
As vantagens da maternidade são identificadas na melhora da qualidade de vida,
como preenchendo um vazio, dando razão para viver, aumentando o sentimento de
autoconfiança e construindo a sensação de pertencer de fato a uma família (Hoga,
2008). Na gravidez/maternidade várias adolescentes afirmam e demonstram um
importante amadurecimento e a saída da vida de criança para encontrar-se mulher.
A satisfação com a maternidade também está associada à rede de relações que a
adolescente detém neste período e que inclui companheiro e familiares (Hoga, 2008).
Os ganhos ou compensações que podem acompanhar a maternidade na adolescência
ficam ameaçados em função das mudanças psicossociais encontradas nesta nova
condição e que, via de regra, não são apoiadas entre pares, pelos pais/mães ou pelos
serviços de saúde, no mais, pouco equipados para atenderem a esta clientela (Ferrari,
Thomson e Melchior, 2008).
O atendimento às mães adolescentes passa por questões fundamentais, como
no reconhecimento da importância do trabalho conjunto entre profissionais de saúde
e famílias no entendimento; na função ativa da família no processo; nas demandas
específicas dos adolescentes associadas à gravidez; na promoção do empoderamento
das mulheres (Hoga, 2008). Outra questão é a da necessidade de se trabalhar com
os jovens, interdisciplinarmente, e dentro de suas próprias condições. De fato, o
trabalho com adolescentes de populações de baixa renda atendidas pelos serviços
públicos de saúde (SUS/PSF) indica que há ainda há muito a ser construído de
específico e apropriado, especialmente em relação ao pós-parto, demandando ação
que incorpore as perspectivas dos próprios adolescentes e seus saberes (Ferrari,
Thomson e Melchior, 2008).
A Visita Domiciliar tem se tornado um modelo popular de atendimento de saúde
a famílias vulneráveis. Sujeitos a críticas pela suscetibilidade às características dos
visitadores (Haynes-Lawrence, 2008), estes programas têm objetivos mais restritos
e buscam populações-alvo específicas (Tandon, Mercer, Saylor e Duggan, 2008). No
atendimento a mães adolescentes e pobres, por exemplo, este recurso tem contribuído
para incrementar o cuidado com a criança, diminuir casos de negligência e abuso,
e ainda diminuir gravidezes subsequentes e problemas com drogas. Utilizando
voluntários, estes Programas, embora tradicionais, ainda não têm sido suficientemente
avaliados quanto à sua efetividade (Barnet, Liu, Devoe, Alperovitz-Bichell e
Duggan, 2007). Trabalhos sobre as visitas domiciliares durante o puerpério devem
ser entendidos entre aqueles que buscam recursos teórico-metodológicos para ações
de Promoção de Saúde. A centralidade da promoção na ação de saúde pública está
associada, entre outros temas, à busca de responsabilidade compartilhada entre
indivíduos, comunidade, grupos, profissionais da saúde, instituições que prestam
serviços de saúde e governos. Isto exige a abertura e a manutenção de canais de
contato entre estas diferentes instâncias, respeitadas as condições culturais, tradições e
backgrounds de todos os indivíduos e grupos envolvidos nestas ações. Solicita também
um esforço para a educação e a formação técnica, filosófica e política, aqui, de todos
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os profissionais da área de saúde, da gestão e do campo, que devem estar preparados
para alcançar metas que incluam, no caso brasileiro, o compromisso com o Sistema
Único de Saúde (SUS), o encontro com a diferença e o reconhecimento de todos,
usuários, gestores e profissionais, como pessoas numa perspectiva integral (Buss,
2000). A importância das visitas domiciliares como ações de promoção de saúde na
vida de crianças e jovens pode ser verificada em trabalhos recentes que mostram como
efeitos de longa duração de visitas domiciliares diferenças significativas para jovens
de grupos vulneráveis que receberam visitas domiciliares, em relação à frequência ao
pré-natal ou no envolvimento com a criminalidade (Eckenrode et al., 2010).
O objetivo deste trabalho foi estudar as condições para a implantação de um
programa de visitadoras domiciliares voluntárias junto a uma população de mães
adolescentes no período do puerpério, moradoras de uma comunidade de baixa renda
da Zona Norte da Cidade de São Paulo, em parceria com Unidade Básica de Saúde da
Família da região.
O trabalho é oportunidade para discutir as condições para a entrada efetiva do
psicólogo nos serviços de saúde pública, especialmente no que diz respeito à Atenção
Primária e à Promoção de Saúde, junto a equipes de PSF, considerando as condições
institucionais e históricas dos serviços para ações interdisciplinares e o uso do
conhecimento disponível dentro da própria comunidade.
Métodos e procedimentos
O trabalho, realizado entre fevereiro de 2009 e dezembro de 2010, teve como
participantes moradores da Vila Nova Tietê, uma das vilas do Complexo da Funerária
que se utiliza da Unidade Básica de Saúde – UBS Parque Novo Mundo I e profissionais
de saúde do equipamento. Participaram da pesquisa 79 mulheres que estiveram nas
Rodas de Conversa na UBS, 5 mulheres, lideranças da comunidade, e 15 profissionais
de saúde, entre médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem e agentes comunitários
de saúde (ACS). Os encontros com as equipes de campo e administrativas aconteceram
sempre dentro da UBS, convocadas pelas respectivas chefias normalmente durante as
reuniões de rotina das equipes. Os encontros com os moradores aconteceram dentro
da comunidade, na igreja católica do bairro, na associação de moradores ou nas
casas de moradores, sempre a convite dos pesquisadores. As Rodas de Saúde, grupos
abertos e de participação espontânea, aconteceram semanalmente, com duração de
três horas, entre outubro de 2009 e junho de 2010, na antessala da consulta pré-natal
(PN). As interessadas eram convidadas a participar de uma “conversa com psicólogos”,
apresentado o primeiro nome, idade e tempo gestacional. Todos os encontros, reuniões
e Rodas com profissionais e moradores foram registrados e submetidos à análise de
conteúdo, considerando as condições simbólicas e imaginárias que marcam instituição e
comunidade (Castoriadis, 1986). O trabalho teve autorização formal da Gerência da UBS
(PMSP – SPDM), da Organização Social (OS) responsável pela UBS e da Supervisão
de Saúde Vila Maria-Vila Guilherme, tendo aprovação do Comitê de Ética da Secretaria
Municipal de Saúde – CEP/SMS (CAAE: 0160.0.162.000-09) e foi conduzido por um
psicólogo e uma estudante de psicologia, bolsista de iniciação científica (PIBIC).
152
Aletheia 37, jan./abr. 2012
O Centro de Saúde do Parque Novo Mundo foi fundado em setembro de 1984.
Em maio de 1985 foi instituído como UBS. O Programa Saúde da Família (PSF)
teve início na comunidade em 2000. Atualmente há 5 equipes PSF constituídas pela
formação mínima: um medico, um enfermeira, duas auxiliares de enfermagem e agentes
comunitários de saúde na proporção de um para cada 150 famílias. Em novembro
de 2009 a população de abrangência da UBS era de 33.400 moradores, enquanto a
população cadastrada perfazia 20.677 moradores. As reuniões com as gestantes/mães
participantes da pesquisa (a Roda de Mulheres) aconteceram na própria UBS.
Resultados e discussão
Ao longo da pesquisa foram realizados e registrados 9 encontros com a
comunidade, 12 reuniões e encontros como os dirigentes gerenciais e técnicos da
UBS/PMSP, 9 reuniões e encontros com os profissionais da UBS e 21 encontros com
gestantes e mães da comunidade. A partir de outubro de 2009, após a aprovação do
CEP/SMS foi reiniciado um dos procedimentos de atenção e acompanhamento da
comunidade que veio sendo desenvolvido na comunidade nos dois anos anteriores,
a Roda de Mulheres (Carvalho et al., 2008). Os registros destes encontros e reuniões
foram organizados de acordo com dois grandes conjuntos que pretenderam oferecer
um entendimento das condições de instalação do programa de visitadoras a partir
de dois polos que se apresentaram ao longo dos encontros: as mulheres, usuários da
comunidade que foram ouvidas nas Rodas, e os funcionários administrativo-gerenciais
e técnicos. Neste embate, surgem duas perspectivas em relação ao lugar da ação de
saúde: a “UBS”, marcada pela burocracia e pelo controle técnico-institucional, e o
“Posto”, patrimônio da comunidade reivindicado como território de acolhimento. A
apresentação destas duas perspectivas vai sendo atravessada pelos relacionamentos entre
os diferentes atores institucionais, pela história da UBS/Posto e pela nossa presença
como ferramentas de análise destas condições.
A história da investigação: parcerias, possibilidades, embates e resistências
Desde o primeiro contato, as reuniões e discussões com a equipe da UBS e
gestores já sugeriam que a implantação do serviço não seria fácil, exigindo cuidado
e atenção às reivindicações e condições da parceria. De fato, esta condição inicial
rendeu um semestre de intensas negociações entre o pesquisador, a UBS (gerência
e profissionais), a Supervisão de Saúde e a Organização Social, entidade sem fins
lucrativos responsável pelo gerenciamento do serviço, que culminaram com a liberação
para submeter o trabalho para o Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal
de Saúde (CEPSMS) apenas no final de junho de 2009.
O contato com os profissionais da UBS só então pode ser retomado visando
à realização da pesquisa, tratando diretamente com os “principais” protagonistas:
população e profissionais. Nestes contatos foi possível confirmar a importância
do trabalho com as puérperas e, mais especialmente, com as mães adolescentes. A
comunidade se mostrou surpreendentemente solidaria com a proposta de trabalho
Aletheia 37, jan./abr. 2012
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com voluntarias, reforçando um entendimento de que esta estratégia de promoção
comunitária de saúde pode mesmo ser eficiente Ao mesmo tempo, convivemos com
uma desconfiança insistente na instituição por parte da equipe de profissionais, que nos
tomaram como “invasores” de um terreno que já possuía proprietários.
As mulheres nas Rodas: demanda por falar o que não pode ser tratado
As Rodas de Mulheres ofereceram a oportunidade de, literalmente, ficarmos no
meio do caminho, sendo vistos por usuários e trabalhadores da UBS. Como estratégia de
aproximação da equipe de pesquisadores, o contato com as gestantes e acompanhantes
permitiu também nos familiarizarmos com as demandas e as rotinas das equipes e nos
aproximarmos dos usuários. Chamou a atenção a franqueza com a qual apareceram
nestes encontros referências sobre os modelos de pai, mãe e de grávida, quase sempre
implícitas, por exemplo, em questões sobre a amamentação ser ou não suficiente, as
demandas de atenção e cuidado, ou sobre a alimentação da grávida: A. (25a), por
exemplo, acha que a amamentação materna não é tão importante, “no Norte mamam
direto leite de vaca e não morrem” (sic). Foi notável a condição de isolamento das
mulheres que afirmavam não ter com quem conversar, especialmente agora durante
a gravidez. N. (18a), inteligente, falante, cheia de potencialidades, contava como
conversava com o cachorro e com o tomateiro (a planta) quando o marido não estava
em casa. E acrescentava que o marido, quando em casa, pedia que ela “não falasse
durante o filme na TV” (sic).
As mulheres grávidas da comunidade mal se conhecem mesmo morando na mesma
rua. Surpreendente é que, mesmo quando se conhecem, quase não trocam experiências
sobre esta condição e muitas acabam descobrindo as grávidas da vizinhança nas
consultas de pré-natal, o que sugere a gravidez como experiência privada que se ajusta
bem ao aconchego e sossego do lar. Pode-se pensar que ficar em casa é também mais
seguro em função da violência presente na comunidade, ou que, simplesmente, não é
adequado sair de casa para visitar vizinhas e vice-versa. Amigas de muitos anos, duas
delas só se visitaram em casa uma única vez neste período. Já o modelo de sociabilidade
dos homens, segundo elas, é bastante diferente, o que elas chamam de “rueiro”. Eles
não estão nas casas uns dos outros, mas têm espaços de convivência comum, como os
bares e os jogos de futebol. Lá todos se encontram, todos os homens se conhecem.
Estas observações são importantes para se considerar a importância de espaços
de encontro e sociabilidade entre as mulheres da comunidade, que ainda são raros, e
que dizem das dificuldades que a implantação de programas de visitação encontram.
Rodas de Mulheres fora do espaço do pré-natal ganham importância estratégica em
meio a uma cultura patriarcal que pretende o modelo de Maria, a mulher em casa, mãe,
controlada (DeSouza, Baldwin e Da Rosa, 2000).
A restrição ao movimento e à sociabilidade também se dá em relação ao trato de
temas específicos. Segundo as falas das gestantes acompanhadas nas Rodas, a proporção
de abortos se aproxima dos números da literatura (Cecatti, Guerra, Souza & Menezes,
2010), reforçando o entendimento da gravidade desta questão entre as mulheres da
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Aletheia 37, jan./abr. 2012
comunidade. A gravidade deste quadro, considerada a diferença entre o que de fato
acontece e o que é relatado, num contexto de ação de saúde pautado pela contagem
documentada e que tem propositalmente desconsiderado o que significa o aborto para
a mulher, como ela o entende e o pratica, indica uma ação frágil e deficiente no trato
das questões ligadas ao planejamento familiar (Menezes & Aquino, 2009). Assim,
não é possível estudar e entender a dinâmica pessoal e social envolvida na prática do
aborto sem considerar as condições de desigualdade e exclusão social nas quais vivem
as mulheres brasileiras, especialmente as mais jovens. Inclua-se aqui, além disso, a
ditadura de gênero a qual estão submetidas. O trabalho com grupos na comunidade
busca criar estratégias para ampliação das vozes – dos discursos – presentes na
comunidade (mulheres, adolescentes, homens jovens, velhos – faixa etária e gênero)
e o próprio discurso da comunidade. Para isso, é necessário combater a hegemonia do
discurso masculino patriarcal e opressor e instituir espaços de encontro das diferenças.
Diferentes situações enfrentadas durante as Rodas indicam que as grávidas poderiam
ter tido alguma atenção em função do que passaram – fosse pelo médico, pela equipe
do PSF, pelo psicólogo do posto, num grupo de atenção à gravidez/parto/puerpério
ou – quem sabe? – por um grupo de voluntários que visitaria estas mulheres em casa
a partir de indicação ou pedido, como pretendíamos implantar. As mulheres poderiam
ser acompanhadas por estes dispositivos grupais e comunitários dos quais estamos
tratando nesta pesquisa. Aqui, amigas, familiares ou os próprios médicos poderiam
fazer a indicação destes serviços.
Finalmente, um elemento importante nesta investigação, diretamente ligado à
justificativa do projeto, foi a insistência das mulheres quanto a afirmarem que estão
mais sensíveis, nervosas, preocupadas. Mas quando perguntamos se tratam isto com os
médicos/enfermeiros dizem que não. Por quê? Não há tempo? Não se sentem à vontade?
Não há disponibilidade do profissional? Como entender isto tendo em vista que nas
Rodas tratam de temas difíceis, fazem perguntas e confissões, tudo isto bem no meio do
corredor? A culpa e o estigma que elas carregam (pobres e grávidas) parecem impedir
esta maior interação com a equipe de saúde. E fora dali, na porta do consultório, no
meio do corredor, elas dizem: “os médicos não têm tempo de conversar sobre outras
coisas” (F., 28a). O que se fala fora da sala do médico/enfermeira, sem maior esforço
dos psicólogos, é diferente. Queixas, dificuldades e medos parecem não entrar nos
consultórios, mas podem, literalmente, ser ouvidos nos corredores por quem quiser
ouvir. Some-se a isto a referência à demora para começar o PN e a necessidade de
“convocação”, feita pelo ACS. Ainda que esta situação deva ser melhor investigada,
pode confirmar a falta de confiança e reconhecimento do trabalho realizado na UBS:
a comunidade vai desconfiando de sua competência para tratar das questões mais
delicadas, ser mais atencioso e acolhedor com estas mulheres. Neste sentido, o trabalho
que estamos considerando poderia ter esta função de mediação entre profissionais de
saúde e comunidade, empoderamento desta e reasseguramento daqueles, levando-os
a ocupar uma posição de respeito e autoridade (de saúde) na comunidade. A resposta
a esta pergunta poderia auxiliar a compreender o lugar da UBS junto à comunidade e
as condições para implantar um programa de Mulheres Visitadoras.
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Os invasores: reflexos da história desta instituição
O resultado do contato com as mulheres através das Rodas, conduzido ao longo de
oito meses, foi bastante esclarecedor quanto às possibilidades, implicações e vantagens
que um programa de visitação específico para as gestantes, especialmente as adolescentes,
poderia oferecer. Ainda assim, sua realização em parceria com a UBS se mostrou, neste
momento inaplicável. Como entender isto?
A direção da UBS ofereceu inicialmente suporte e apoio para o trabalho, embora
a posição da gerente neste momento fosse frágil, dado o histórico de conflitos com a
comunidade e mesmo com os funcionários da UBS. A apresentação inicial para as equipes
teve apoio entusiasmado dos médicos, algum desconforto por parte das enfermeiras e
desconfiança do lado dos agentes comunitários, o que exigiu atenção especial no contato
com estes trabalhadores no sentido de garantir que não pretendíamos interferir nas
suas rotinas, que o trabalho que viríamos a desenvolver não substituiria suas práticas
e responsabilidades e que qualquer ação realizada junto aos moradores demandaria
necessariamente a parceria e participação destes trabalhadores.
A equipe do Núcleo de Apoio ao Saúde da Família (NASF) também mostrou
interesse sobre o que pretendíamos fazer, mas a história de sua entrada na UBS propiciou
elementos que podem ajudar a esclarecer nosso próprio lugar ali. Depois de um ano
de trabalho na comunidade, a ainda pouca inserção da equipe mostrava uma relação
conflituosa com os ACS, que negociavam seu valor/importância mediando o contato
com a comunidade. Esta situação impedia que os técnicos se aproximassem de fato do
território, conhecendo os líderes e se articulando para realizar e/ou orientar o trabalho de
saúde. A equipe escapava do confronto montando serviços para as franjas da região de
abrangência da UBS, procurando estabelecer seus próprios caminhos para as lideranças
e demandas da comunidade, procurando literalmente penetrar no território, como numa
invasão, aqui tanto espacial como simbólica.
A ideia de uma invasão aqui tem história. O “Posto da comunidade”, resultado de
mobilização dos moradores, foi, durante a instalação do PSF, gradualmente ocupado por
diferentes profissionais que vieram requerer seu “quinhão”. Os primeiros funcionários a
chegar foram os ACS (agosto de 1999). Depois as enfermeiras e os médicos (dezembro
de 1999). Segundo os relatos dos moradores, também os funcionários do posto (que já
funcionava desde 1984) já àquela época reagiram a esta chegada (“invasores”). Ainda
hoje escutamos que a comunidade gosta do Posto, “ele é da comunidade” (N., moradora),
mas não necessariamente das equipes/funcionários, proporcionando um entendimento
que confunde a ação de saúde com o prédio. Se o Posto não é só o prédio, vale pensar
que esta representação por parte da população também é uma construção sustentada
pelas próprias dificuldades que o estado tem para instalar o SUS da Reforma Sanitária,
para escapar do modelo tradicional e hospitalocêntrico e contrapor a mera presença do
equipamento público (o acesso) à participação social. (Cohn, 2009). Palavras-chave na
história do Posto: desconfiança e invasão.
A desconfiança da comunidade em relação aos “funcionários invasores” pode ser
percebida também nas queixas que recaem sobre as ACS que, via de regra, (há exceções)
são acusadas de se bandear para o outro lado e ficam assim contaminadas por esta presença
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Aletheia 37, jan./abr. 2012
estrangeira: “Até a S. está assim. Ela mudou.” (L., moradora). As razões oferecidas
pelos moradores e que explicam esta passagem (para se qualificar socialmente; para
manter o emprego; para ganhar a simpatia e o reconhecimento de médicos, enfermeiras,
da gerência) mostram como os próprios moradores podem ocupar o lugar de invasores
neste cenário.
Os primeiros tempos da história de instalação do Posto compreendem uma relação
muito diferente daquela que atualmente sustenta o trabalho de saúde aqui. Segundo os
moradores, ações que fazem uma enorme falta hoje, como um grupo que conversava sobre
drogas, violência e sexualidade, já foram desempenhadas por funcionários do Posto. O
que aconteceu ali? A história de atenção e cuidado com a comunidade foi literalmente
apagada.
Neste contexto, a presença do ACS, morador e profissional de saúde, poderia ser a
possibilidade de ultrapassagem deste lugar marcado pela alcunha de “invasor”, na medida
em que recuperasse a posse do Posto. O caminho necessário é o da preparação técnica
e social destes profissionais. No entanto, as queixas e histórias de discriminação dos
moradores da comunidade pelos profissionais de saúde, inclusive os ACS, são extensas e
frequentes, sem que isto seja tratado, ao que tudo indica, na formação dos funcionários. De
fato, desde a própria estrutura de cargos pode-se verificar a dificuldade para transformar
esta condição do ACS. Sua possibilidade de progressão profissional é muito reduzida,
incentivando que o ACS almeje um cargo administrativo, isto é, deixar de ser ACS, o
que o afasta da demanda de melhor preparo para esta primeira função que é vista quase
sempre como “provisória”, marcando sua precarização e diminuindo o valor específico
e essencial da sua inserção na comunidade (Schmidt & Neves, 2010).
Desta forma, a ação de saúde produzida pela UBS vai ser entendida fora do
contexto da saúde: os funcionários não podem ser parceiros nem cuidadores, mas
submetem-se a prestar um serviço que não os agrada, que não tem o apelo da ação de
saúde, atenção e cuidado. É apenas trabalho, e trabalho pesado, insalubre. Isto produz
sofrimento nos próprios funcionários. A situação é paradoxal. A condição de exclusão
e de pária da comunidade, que produz e sustenta humilhação e sofrimento social é ela
própria produtora e sustentadora de sofrimento entre os funcionários, o que mantém sua
ação de saúde como obrigação, ação descompromissada e sem cuidado: o resultado é o
sofrimento da comunidade. Mecanismo perverso de sustentação de sofrimento, fruto de
ação que não nasce com os atores envolvidos ali, mas é resultado de um enredo produzido
historicamente, de uma cultura que nasce em outro tempo mas que se atualiza aqui na
instituição na medida em que ela é esvaziada de história e afastada da clientela. Agora,
enquanto sofrimento, ela está nos corpos (Das, 1997).
O saber do ACS, porque não há dúvida que ele como membro da comunidade
também tem algo a ensinar, não é só sobre a violência da comunidade, que entra como
moeda de troca assim que chegam novos visitantes/invasores. Há este saber que é um
patrimônio: “aqui é minha área, aqui eu sei lidar como violência. Aqui eu sei... e você
precisa de mim”. Exagerar isto é, desta forma, dar valor para a função do ACS; mas
de tal maneira que não vai se encontrar sua efetiva função como mediador da ação
de saúde. O potencial de trabalho do ACS fica comprometido em relação àquele que
pode ser alcançado por este profissional. A presença dos ACS na equipe do PSF não
Aletheia 37, jan./abr. 2012
157
alcança a autonomia criativa que poderia ser modelo para ações de atenção domiciliar
e ele assume a função de um subprofissional nas equipes, alimentado com pouco
conhecimento e formação técnica. Convocado a ser meramente um instrumento da ação
de saúde curativa tradicional, ele vai entender o usuário não como parceiro mas muitas
vezes como um “obstáculo” à ação de saúde corretiva e salvadora, vendo a oposição
e o confronto da população como ação subversiva e destruidora. Neste momento, é a
população que ocupa o lugar do invasor.
Assim, como se pôde ver no período da pesquisa, a solução para o confronto
não poderia ser outra senão a força policial ou institucional – de desqualificação dos
saberes, da comunidade e dos moradores vistos como seus representantes: ao menos duas
vezes, as reivindicações da comunidade feitas na porta da UBS foram acompanhadas
da convocação da Polícia Militar.
As dificuldades para a preparação da ação voluntária, proposta que incluiria
necessariamente a participação das ACS (algo visto inicialmente com interesse pela
própria direção da OS), dão o tom da falta de importância para este quesito, especialmente
quando se percebe que não há, de fato, espaços para tratar sistematicamente de questões
de formação técnica e muito menos das condições de relacionamento com a comunidade,
requisitos necessários para ação de saúde (São Paulo, 2008). Tomando as dificuldades
no contato com a equipe da UBS é possível perceber como este relacionamento exige
disponibilidade, convida para o enfrentamento, enreda o projeto, numa armadilha
em que nos colocamos, mesmo não sendo funcionários, a serviço da burocracia e
dos limites enfrentados pelos próprios funcionários. Neste sentido, a comunidade é
gradualmente posta em segundo plano, não é o alvo prioritário da ação, fica a reboque
do que se puder oferecer a ela. É possível vê-la assim como um “empecilho”, pois o
trato com as questões institucionais, os conflitos entre diferentes profissionais, o difícil
gerenciamento do serviço público por entidade de “excelência técnica”, mas estranha à
cultura e à realidade do serviço público, exige disponibilidade e esforço que colocam os
usuários, sintomaticamente numa inversão de posições, como estrangeiros à instituição.
Eles, usuários, neste caso também, são os invasores.
Nossa presença ali não foi suficientemente desafiadora para provocar mudanças,
tensionar a instituição. Mas suficiente para incomodar e demandar o controle sobre
nossas ações. Assim, nós também viemos participar desta dinâmica – a do confronto
de saberes e funções (quem está autorizado a fazer o que?) que ganha força na própria
história da UBS, uma história de “invasões”. A solução deste confronto não é simples
e direta e não pode evitar a negociação entre as posições que os diferentes atores
ocupam neste cenário – o gerente da UBS, o médico, os funcionários, a comunidade,
os líderes, as mães, os maridos – assim também com outros elementos que atravessam
estas relações, como a miséria e o sofrimento social, a humilhação e a história.
Depois de avaliar a própria viabilidade das visitadoras, consideramos a
possibilidade do treinamento ser “em campo”, junto com um psicólogo. A solução
que encontramos a partir do que foi discutido acima foi a realização do trabalho piloto
de visitação pelos próprios pesquisadores. Este movimento deve ser entendido dentro
da situação paradoxal de termos cerceada a possibilidade de trabalho com a equipe
ao mesmo tempo em que somos solicitados pela própria equipe para a realização
158
Aletheia 37, jan./abr. 2012
de visitas, o que se repete várias vezes durante a pesquisa. A oferta de acompanhar
as mães adolescentes é vista, ao que parece, como possibilidade de dar conta de
questões que não são tratadas nos atendimentos e mesmo nas visitas das ACS, mas
que são importantes para a atenção que deve ser dada a esta população. A demanda
pelo atendimento “especializado”, neste caso, do psicólogo, denuncia a falta de
especialização técnica das ACS e do apoio matricial que deveria ser dado pela equipe
do NASF. Esta passagem de pesquisador para “funcionário informal” da Unidade pode
ser entendida dentro da lógica da nossa incorporação na Unidade, quando deixamos de
ser “visita” para sermos profissionais dentro do serviço – com todas as consequências
que esta inserção institucional implica. Quando isto acontece, nossa presença passa
a outros patamares da desconfiança pelos próprios profissionais, embora pareça ser a
senha para se poder realizar qualquer ação junto à comunidade com o aval da Unidade.
Uma lógica denunciada pelo reconhecimento que recebemos em outras circunstâncias,
percebido pelos profissionais sobre o trabalho que temos desempenhado junto à Unidade
e à comunidade. A aproximação do serviço, do campo, se é uma exigência para este
trabalho, parece ser também sua danação, quando se passa de funcionário a invasor.
Conclusões
A entrada neste cenário como mais um ator, mesmo no caso específico da
atenção no puerpério, exige conhecer a história do serviço, a história das relações
entre o Posto e a comunidade e as histórias dos próprios moradores. Demanda também
tratar de saberes e tecnologias. Sejamos nós, sejam os profissionais de saúde do
PSF envolvidos nesta transferência, a negociação nem pode deixar de ser realizada
nem pode deixar de fora os aspectos sociais, culturais-comunitários e subjetivos
envolvidos no confronto de saberes. As dificuldades na introdução de novos serviços,
na participação na integração efetiva posto-comunidade, posição que sustentou
nossa estratégia desde o início, revelaram menos da oportunidade e importância do
trabalho com gestantes e mães e mais das barreiras quanto a essa aproximação entre
trabalhadores e comunidade, UBS e Posto.
Neste sentido, compreendemos que a implantação de quaisquer serviços
demandam ações em duas frentes distintas e em paralelo. Numa delas, a participação
na formação de profissionais para a especificidade das ações. Na outra, estudos
sobre as práticas de saúde e relações entre a comunidade e os serviços públicos,
suas dimensões simbólicas e imaginárias, como ponto de partida para a proposição
e a sustentação dos serviços. A convergência destes dois movimentos se dará na
medida em que profissionais e comunidade possam se encontrar e se reconhecer
como parceiros para ações de saúde.
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_____________________________
Recebido em julho de 2012
Aceito em dezembro de 2012
João Eduardo Coin-Carvalho – Doutor em Psicologia, Professor e Pesquisador do Curso de Psicologia da
Universidade Paulista (São Paulo).
Fabiana Cristina Federico Esposito – Psicóloga, Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Medicina
Translacional da Universidade Federal de São Paulo.
Endereço para contato: [email protected]
Aletheia 37, jan./abr. 2012
161
Aletheia 37, p.162-176, jan./abr. 2012
Processos de fortalecimento em um Movimento Comunitário
de Saúde Mental no Nordeste do Brasil: novos espaços para a
loucura
Maria Aparecida Alves Sobreira Carvalho
Verônica Morais Ximenes
Maria Lúcia Magalhães Bosi
Resumo: Este artigo focaliza a construção de novos espaços para a loucura no processo de
fortalecimento de pessoas que transitaram do papel de usuárias de um serviço de saúde mental para
o lugar de cuidadores. Realizamos um estudo de caso no Movimento de Saúde Mental Comunitário
do Bom Jardim (Fortaleza/Ceará/Brasil). Foram realizadas entrevistas mediadas pela autofotografia
e grupo focal. Os resultados apontam que a participação nas atividades do Movimento favorece
o fortalecimento, ocorrendo o resgate do valor pessoal e poder pessoal com mudança das crenças
sobre si mesmo, sobre o mundo. A categoria fortalecimento mostrou-se importante na avaliação
dos serviços de saúde mental. Os participantes referem terem desenvolvido a coragem para
reinventar práticas no cotidiano de sua existência. A experiência ecológica também é reconhecida
como dimensão de fortalecimento por conduzir a uma maior conexão consigo, com o outro e com
a natureza.
Palavras-chave: Psicologia Comunitária, Fortalecimento, Saúde Mental.
Empowerment processes in a Community Mental Health Movement
in Northeast of Brazil: New spaces for the madness
Abstract: This article focuses on the construction of new spaces for the madness in the process
of empowering people who changing their role in mental health services from the position of
patients to citizens. For this it has been conducted a case studying in a Community Mental Health
Movement in Bom Jardim, Fortaleza, Ceará, Brazil. Interviews were conducted mediated by the
auto and focus groups. The results indicate that participation in the activities of the Movement
favors strengthening, resulting in the rescue of personal identity and personal power, and changing
beliefs about themselves and about the world. Thus this theoretical category cam be an important
tool for the evaluation of mental health services. Participants reported having developed the courage
to overlap obstacles trying to reinvent practices in their daily existence. The ecologic experience is
also recognized as a dimension of empowerment aspect of leading in connection with the others
and with the nature.
Keywords: Community Psychology, Empowerment, Mental Health.
Procesos de fortalecimiento en un Movimiento Comunitario de Salud
Mental en el Nordeste de Brasil: nuevos espacios para la locura
Resumen: Este artículo focaliza la construcción de nuevos espacios para la locura en el proceso
de fortalecimiento de personas que ocuparon el papel de usuarias de un servicio de salud mental
para posteriormente se tornaren cuidadoras. Fue realizado un estudio de caso en el Movimiento de
Salud Mental Comunitario del Bom Jardim (Fortaleza/Ceará/Brasil). Fueron realizadas entrevistas
mediadas por la auto fotografía y grupo focal. Los resultados apuntan que la participación en las
actividades del Movimiento favorece el fortalecimiento, ocurriendo el rescate del valor personal
y el poder personal con cambio de las creencias sobre sí mismo, sobre el mundo. La categoría
fortalecimiento se mostró importante en la evaluación de los servicios de salud mental. Los
participantes refieren haber desarrollado el coraje para reinventar prácticas en el cotidiano de su
existencia. La experiencia ecológica también es reconocida como dimensión de fortalecimiento
por conducir a una mayor conexión consigo mismo, con el otro y con la naturaleza.
Palabras-clave: Psicología Comunitaria, Fortalecimiento, Salud Mental.
Introdução
Este artigo analisa o processo de fortalecimento de pessoas que passaram da
condição de usuários em um serviço de saúde mental para a de cuidadores, inaugurando
uma prática inovadora ao superar o papel social de louco e estigmatização dele
decorrente. Deriva de um estudo que buscou compreender as transformações ocorridas
nas pessoas com experiência de adoecimento, reconhecendo as mudanças de caráter
individual (sentimentos, sensações, ideias e percepções) e as coletivas (possibilidade
de participar e influir nos espaços coletivos).
Dando visibilidade aos sentidos de fortalecimento, confrontamos, na
problematização que embasa esta pesquisa, o silêncio instaurado pela psiquiatria,
destituindo o louco do seu poder existencial atestando sua desrazão, sua incapacidade
para o trabalho e revestindo-o de periculosidade. Esse processo de isolamento e de
segregação do diferente, instaurado desde o século XVIII, atualiza-se na presença de
novos estereótipos e formas de aprisionamento nos serviços de saúde mental e na vida
cotidiana por meio dos “desejos de manicômio”, que são desejos de dominar, subjugar,
classificar, hierarquizar e controlar (Machado & Lavrador, 2001).
Desta forma, os sentidos de fortalecimento que apresentamos neste artigo, são
concebidos como rotas de fuga utilizadas pelas pessoas em experiência de adoecimento
diante de situações de tensão, dor e medo. São ações micropolíticas essenciais para
a saúde, pois permitem estranhar o papel de doente, de submissão ao tratamento e a
lógica da tutela, tão presentes nos serviços de saúde mental.
O conceito de fortalecimento que guia este estudo ressoa fortemente no campo
da psicologia comunitária (Góis 1993, 2008; Montero, 2003; Martin-Baró, 1998),
trazendo aportes para se pensar possibilidades de produção coletiva da saúde mental por
reconhecer a capacidade dos indivíduos se implicarem e modificarem seus contextos,
em uma política de saúde mental integrada à comunidade, capaz de produzir impactos
reais na cultura e na qualidade da atenção à saúde mental. Segundo Góis (2005, p.51), a
Psicologia Comunitária é definida como “uma área da Psicologia Social da Libertação
voltada para a compreensão da atividade comunitária como atividade social significativa
(consciente) própria do modo de vida (objetivo e subjetivo) da comunidade e que
abarca seu sistema de relações e representações”. Essa concepção permite-nos tratar
mais integralmente a relação entre as práticas comunitárias e o desenvolvimento da
saúde mental, reconhecendo a saúde como ação potencializadora do indivíduo e de
sua comunidade.
O conceito de fortalecimento aproxima-se dos termos empowerment e
empoderamento, confluindo para uma linha que favorece o desenvolvimento das
Aletheia 37, jan./abr. 2012
163
pessoas a partir da participação, do fomento às potencialidades, buscando superar
abordagens assistencialistas. Estes conceitos são fundamentais na conformação do
campo da saúde mental e coletiva, encontrados em diferentes perspectivas, bem
como em diferentes projetos de saúde, sendo comum o uso do termo empowerment
ou de empoderamento nos estudos de saúde e saúde mental (Almeida, Dimenstein &
Severo, 2010; Carvalho, 2004; Carvalho & Gastaldo, 2008; Figueiró & Dimenstein,
2010; Vasconcelos, 2003, 2009).
O conceito de empowerment nasce na década de 1970, no ideário da Promoção
da Saúde, como um conjunto de intervenções que enfatizam a responsabilidade
individual desresponsabilizando o estado em uma política neoliberal. Esta perspectiva
denominada empowerment psicológico segue uma filosofia individualista que tende
a ignorar a influência dos fatores sociais e estruturais, centralizando as estratégias
de promoção à saúde no fortalecimento da autoestima e na capacidade de adaptação
ao meio (Carvalho, 2004; Carvalho & Gastaldo, 2008). Esta concepção de base
behaviorista sofreu duras críticas na década de 1980 pelos movimentos sociais,
sendo superada pela Nova Promoção à Saúde que preconiza a centralidade das
condições de vida para a saúde dos indivíduos, em interface com a justiça social, a
equidade, a educação, o saneamento, a paz, a habitação e os salários apropriados. Esta
nova perspectiva foi denominada empowerment comunitário, tendo dentre as suas
referências os estudos de psicologia comunitária de Julian Rapport e da pedagogia
da libertação de Paulo Freire (Carvalho, 2004).
Apesar de o termo empowerment estar presente em abordagens antiopressivas
de vários campos do saber, Stotz e Araújo (2004) nos alertam que na tradição anglosaxônica do liberalismo civil e religioso a palavra empower tem como tradução os
verbos transitivos autorizar, habilitar ou permitir. A utilização desse conceito sugere
a ideia de que o poder é algo vindo de fora do indivíduo ou de sua comunidade
ou que exista alguém capaz de autorizar ou dotar de poder outrem, servindo como
instrumento de maior controle por parte de alguns grupos e/ou instituições, os quais
condicionariam a distribuição de poder aos interesses de seus grupos corporativos.
O termo empowerment tem sido traduzido pelos neologismos de apoderamiento
(espanhol) e empoderamento (português, espanhol), sem registro no dicionário
entre nós.
Neste artigo decidimos utilizar a categoria fortalecimento para retomar um
conceito que surge na América Latina, possuindo maior proximidade com a nossa
realidade histórica e por superar a confusão que indica o uso do prefixo em (em
powerment, em poderar), discutido anteriormente. O conceito fortalecimento emerge
na América Latina no final de 1970, quando se discutia que o investimento em políticas
sociais centralizava-se nas instituições e esquecia as pessoas, devendo reconhecer as
lutas históricas das comunidades e seus elementos culturais. Para Montero (2003), o
fortalecimento é definido como:
O processo mediante o qual os membros de uma comunidade desenvolvem
conjuntamente capacidades e recursos para controlar sua situação de vida, atuando
de maneira comprometida, consciente e crítica, para chegar à transformação de
164
Aletheia 37, jan./abr. 2012
seu entorno segundo suas necessidades e aspirações, transformando-se ao mesmo
tempo a si mesmos. (p.72, tradução nossa1)
O fortalecimento é um processo individual e psicológico que se constitui na
experiência grupal em um contexto socio-histórico. Realiza-se em ações conjuntas
e solidárias entre os membros de uma comunidade que compartilham objetivos e
expectativas, enfrentando os mesmos problemas. Outro aspecto que queremos destacar é a
inexistência de um fortalecimento individual e outro comunitário, pois o desenvolvimento
de uma competência pessoal necessita da expressão em um contexto social em função
de um coletivo específico.
Método
Dentre os diversos enfoques existentes de pesquisa qualitativa, percorremos uma
perspectiva crítica definida por Bosi e Mercado (2007) como a vertente que busca desvelar
o sentido da experiência humana em suas dimensões simbólicas compreendidas em
seu contexto material e social. O estudo foi realizado no Movimento de Saúde Mental
Comunitário do Bom Jardim2, Organização Não Governamental (ONG) que realiza, desde
1996, ações que integram a saúde mental, a arte, a cultura, a educação e a profissionalização
no bairro do Bom Jardim em Fortaleza, Ceará. Este bairro está localizado no sudoeste
da capital e conta com uma população estimada de 220 mil habitantes que enfrentam
problemas como falta de moradia, emprego, segurança, educação, transporte e saúde,
caracterizados por precariedade na infraestrutura e por uma grande demanda de serviços
que propiciem melhores condições de vida à população, que se encontra em situações de
risco e de vulnerabilidade social.
O Movimento de Saúde Mental Comunitário iniciou com os moradores do bairro
Bom Jardim, lideranças das Comunidades Eclesiais de Base e missionários combonianos3,
realizando uma formação em Terapia Comunitária no modelo do Projeto quatro varas4.
Além das atividades terapêuticas o Movimento de Saúde Mental Comunitário desenvolve
cursos e formações em Massoterapia, Arte-terapia, Biodança, Horta Comunitária e cultivo
de plantas medicinais, dentre outros.
1
El proceso mediante el cual los miembros de uma comunidad desarollan conjuntamente capacidades y recursos
para controlar su situación de vida, actuando de manera comprometida, consciente y crítica, para lograr la
transformación de su entorno según sus necesidades yaspiraciones, transfórmandose al mismo tiempo a si
mismos (Montero, 2003. p.72).
2
Site do Movimento de Saúde Mental Comunitário do Bom Jardim (MSMCBJ): www.msmcbj.org.br
3
Os combonianos fazem parte de uma ordem religiosa da Igreja Católica, os missionários combonianos do
Coração de Jesus, fundada em 1867 por Daniel Comboni. Os padres combonianos atuam no Nordeste em 13
comunidades, com cerca de 50 padres de diversas nacionalidades. Trabalham preferencialmente com os mais
pobres, abandonados na fé e na dimensão social, em localidades do interior e periferias de grandes cidades
(Texto retirado do site do MSMCBJ: www.msmcbj.org.br).
4
O Projeto quatro varas nasceu de um movimento social iniciado em 1985, por posses de terras, na favela do
Pirambu, em Fortaleza-CE. As sessões de Terapia Comunitária tiveram início em 1987, sendo institucionalizadas
por Adalberto Barreto em 1988, através de um Projeto de Extensão do Departamento de Saúde Comunitária da
Universidade Federal do Ceará. Logo em seguida o projeto é vinculado a uma Organização Não Governamental
(ONG), o Movimento Integrado de Saúde Mental Comunitário (Barreto, 2008).
Aletheia 37, jan./abr. 2012
165
Da experiência de ser cuidado nas atividades terapêuticas e participação nas
formações, várias pessoas ingressaram em ações voluntárias assumindo a facilitação
ou cofacilitação dos grupos de terapia comunitária, autoestima, reforço de Matemática,
massoterapia e horta comunitária. Das pessoas que passaram do papel de usuários do
Movimento para o de cuidadores, selecionamos nesta pesquisa oito pessoas de acordo
com os critérios: entrada no Movimento como usuário, com diagnóstico de transtorno
mental; mais de um ano de participação nas atividades do serviço e ter assumido a
coordenação de alguma atividade de cuidado. Realizamos uma sessão de grupo focal
(GF) e duas pessoas foram selecionadas para entrevista (E) mediada pela autofotografia.
O critério para participação na entrevista foi ter falado menos no grupo focal e apresentar
um diagnóstico de maior comprometimento dos vínculos sociais referindo sintomas como
alucinações auditivas, ideias de suicídio, medo de interagir com as pessoas e consequente
isolamento social.
No método autofotográfico foi solicitado que cada sujeito produzisse fotografias, em
máquina fotográfica disponibilizada pelo pesquisador, de modo a que pudessem descrever
as mudanças ocorridas em sua vida após a entrada no Movimento. Na entrevista, o sujeito
utilizou as fotos como mediação da sua palavra ao ter a oportunidade de selecionar
previamente fatos de sua vida.
O material discursivo foi transcrito e organizado em uma rede interpretativa
utilizando a compreensão proporcionada pela hermenêutica crítica (Bosi & Mercado,
2007). O nome dos sujeitos que são referidos neste artigo são fictícios, escolhidos
pelos participantes da pesquisa e as fotos omitidas para resguardar a privacidade dos
entrevistados. A pesquisa respeitou os aspectos éticos, tendo como base a Resolução no
196/96 e foi aprovada pela coordenação do serviço pesquisado e pelo Comitê de Ética
em Pesquisa da Universidade Federal do Ceará, protocolo COMPE No. 103/10.
Análise e discussão do processo de fortalecimento em saúde mental
Para a compreensão do processo de fortalecimento das pessoas que passaram pela
experiência de adoecimento, adotamos cinco categorias analíticas: Valor e Poder pessoal;
Capacidade de refletir e agir sobre a realidade; Sentimento de comunidade; Negociação do
uso da medicação e Experiência ecológica. As três primeiras categorias são utilizadas por
Montero (2003) nos estudos de psicologia comunitária. A negociação do uso da medicação
e a Experiência ecológica foram incorporadas nesse trabalho a partir da interpretação do
material discursivo, como novas categorias surgidas da experiência de adoecimento dos
sujeitos desta pesquisa.
Valor pessoal e poder pessoal
As pessoas chegam ao Movimento de Saúde Mental Comunitário com uma sensação
intensa de fragilidade, desesperança, enfocando histórias de perda e dor. Emerge um
processo de destituição do próprio valor, de restrição aos espaços de fala e nas relações
sociais. A existência de sintomas identificados na consulta médica como psiquiátricos,
discrimina socialmente o louco, o diferente, aquele que sente coisas estranhas, o que
toma remédio controlado, o sem razão. Na acolhida do Movimento de Saúde Mental
166
Aletheia 37, jan./abr. 2012
Comunitário puderam compartilhar espaços de escuta e afetividade: “Chegou (em minha
casa) e me deu um abraço, foi um abraço assim bem acolhedor, como se dissesse “eu te
vejo como gente”, mesmo eu pobre, morando aqui” (Inaê, GF). Desta acolhida surgem
novas interações e representações capazes de desenvolver o valor e poder pessoal.
Valor pessoal e Poder pessoal são conceitos utilizados por Rogers (1989) como
impulsos inatos para o desenvolvimento que abrem possibilidade de transformação
das relações de opressão, pois quando as pessoas confiam em si mesmas são capazes
de estimular a força do outro. Estes conceitos foram sistematizados por Góis (1993)
quando analisou as possibilidades de superação do sujeito diante de situações de
opressão da consciência, dos afetos e do próprio corpo quando expostos a uma rede
ideológica voltada para o aniquilamento do oprimido. Para Góis (1993), o Valor
pessoal é um sentimento de valor intrínseco que se manifesta quando a pessoa entra
em contato com o seu núcleo de vida, uma tendência natural para a realização,
sentindo-se capaz de viver, de gostar de si mesmo, acreditar na sua capacidade de
conviver e de trabalhar. O Poder pessoal é a capacidade de influir na construção de
relações saudáveis com os outros e com a realidade, a potência com que se vive
a cada momento, buscando o crescimento de si e do outro, e a transformação da
realidade (Góis, 1993).
No desenvolvimento do Valor pessoal, há uma tendência de superação da visão
fatalista da realidade, dimensão de extrema importância no âmbito da saúde mental.
O termo fatalismo descrito por Martín-Baró (1998) provém do latim fatum, que
significa que seu destino é inevitável e que nada resta ao ser humano a não ser acatar
seu fim, já prescrito. Para este autor as ideias mais comuns da atitude fatalista é que a
vida está pré-definida por Deus e sua ação não pode mudar o destino, desenvolvendo
sentimentos de resignação frente ao próprio destino, aceitação do sofrimento, sem
deixar-se afetar pelos sucessos da vida. Para Martin-Baró (1998, p.97) “o fatalismo
constitui um valioso instrumento ideológico para as classes dominantes. A aceitação
ideológica do fatalismo supõe uma aceitação prática da ordem social opressiva”.
A superação do fatalismo se dá no âmbito da mudança das ideias e na crença
de que é capaz de agir, de mudar a sua história: “Antes de chegar neste grupo eu
não tinha muitos sonhos. Eu não sonhava em ter uma família, um dia terminar os
estudos e fazer uma faculdade. Agora eu sonho com isso né, acho que talvez é essa
uma diferença que fez” (Jarbas, E). Esta superação exige empenho e trabalho árduo;
no excerto acima, o entrevistado fala do cansaço de passar o dia trabalhando e ir para
a escola à noite para fazer o ensino médio, mas diz que continuar é uma conquista.
Fortalece o sentido de valor pessoal ao superar o poder massificante da realidade,
retomando a alegria de viver que para Sawaia (2009) é a base da liberdade que
desbloqueia as forças reprimidas da subjetividade, superando as paixões tristes que
anulam a potencia de vida, destruindo as relações que sustentam a servidão.
Capacidade de refletir e agir sobre a realidade
Quando uma pessoa é capaz de observar as dificuldades que enfrentou e organizar
formas de superação, podendo reconstruir-se a cada desafio, ocorre o desenvolvimento
da capacidade de relacionar a reflexão com a ação e vice-versa, traduzindo em atitudes
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produtivas as ideias e produzindo novas ideias a partir das ações realizadas. Para que
este aspecto do fortalecimento seja desenvolvido é necessária a participação em grupos
pautados na escuta, diálogo problematizador, estabelecimento de vínculos afetivos e
cooperação. Encontros capazes de gerar mudanças pessoais e coletivas se aproximam
do conceito de conscientização, que para Freire (1983) é um processo em que as pessoas
se encontram para “desvelar” a realidade em uma relação dialógica, onde se solidariza
o refletir e o agir dos sujeitos endereçados ao mundo, superando o ato de depositar
ideias de um sujeito no outro ou da simples troca de ideias.
A existência de uma relação dialógica, segundo Freire (1983), implica um processo
onde as emoções ocupam papel significativo, onde a amorosidade torna-se elemento
imprescindível para que supere o técnico e se estabeleça como um ato político e social,
que conduza a profundas implicações e supere a alienação ao destituir o ser humano
de seus afetos. O desenvolvimento deste diálogo problematizador e amoroso favorece
o desenvolvimento da autonomia e libertação de cada sujeito, potencializando o
rompimento do círculo de relações autoritárias na produção do cuidado, desenvolvendo
projetos terapêuticos que não percam a dimensão ética.
A participação em grupos capaz de gerar fortalecimento é entendida como conceito
também psicológico e não somente sociológico ou político, com total influência na
promoção da saúde mental em uma comunidade e no desenvolvimento da consciência
dos indivíduos (Góis, 2008; Montero, 2003). O ato de participar implica, portanto,
a transformação na maneira de o sujeito refletir sobre a realidade, reconhecendo-se
capaz de apropriar-se desta e recriá-la. A possibilidade de tomar parte nas decisões,
estabelecer compromissos com os outros é vivenciada no Movimento de Saúde Mental
Comunitário nas atividades voluntárias, como referido anteriormente, sendo esta
vivência identificada como um fator importante no fortalecimento: “Ser uma pessoa
útil. Não era só aquela pessoa que precisava de medicamento, precisava de consulta,
precisava de acolhimento, mas por outro lado eu dava também alguma coisa, o que
eu tinha” (Jarbas, E). O voluntariado que é fruto de uma escolha, capaz de facilitar
aprendizados por meio de atividades plenas de sentido que respondem às necessidades
subjetivas dos sujeitos e da própria comunidade.
Margarida fala desta dimensão solidária, quando as pessoas que foram ajudadas
no Movimento aprenderam novas tecnologias de cuidado, são chamadas a se preocupar
com outros que estão fora do bairro: “Porque a gente fica muito no próprio sentido da
minha vida, da vida de quem tá mais próximo, a gente não expande mesmo. Eu acho que
o desafio do Movimento é desbravar mais horizontes” (Margarida, GF). No processo
de conscientização, a participação é um chamado a um compromisso comunitário, indo
além das questões psicológicas e subjetivas por reconhecer a necessidade de cuidar
de si e do outro em uma dimensão social e ecológica, sendo capaz de transformar a si
mesmo e se implicar no mundo. Paulo, outro entrevistado, refere que nunca deixou de
escutar vozes que o depreciam em um processo de alucinação auditiva característico
da esquizofrenia. Mesmo com a recorrência do sintoma, agora em menor intensidade,
demonstra forte sentido de fortalecimento ao relatar o desenvolvimento do papel de
professor no reforço de Matemática: “a gente ensinando a gente aprende, né, não
é só se doar” (Paulo, E). Neste voluntariado é reconhecido como uma pessoa que
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disponibiliza seus conhecimentos para ajudar às crianças da comunidade, superando
o lugar do doente com sintomas em remissão.
Demo (2001) discute outra perspectiva do voluntariado ao lembrar que há
uma tradição do Estado brasileiro de brincar de solidariedade por meio de políticas
sociais dirigidas ao assistencialismo e que não redistribuem renda, incentivando um
voluntariado quando o pleno emprego é inviável na lógica capitalista. Este autor critica
este voluntariado assistencialista por desresponsabilizar o Estado de suas obrigações de
viabilizar condições de emprego e sustentabilidade. Diferente desta visão utilitarista, o
voluntariado no Movimento de Saúde Mental Comunitário é uma estratégia utilizada
para aumentar o acesso das pessoas às atividades e fazer circular o cuidado, um dos
pilares de sua organização. Bosi e cols. (2011) lembram que uma das características
dessa circularidade é a valorização da experiência de ser cuidado para transformar-se
em cuidador. Este voluntariado, também, é um espaço profissionalização e mudança do
lugar social do louco. Margarida (GF) relata a preocupação do Movimento de Saúde
Mental Comunitário com a passagem do voluntariado para a atividade remunerada em
virtude da necessidade financeira das pessoas, uma vez que a situação de pobreza do
bairro é algo real.
Sentimento de comunidade
Outro aspecto do fortalecimento é um sentimento de apego à comunidade em que a
pessoa percebe-se segura neste espaço, incluída, capaz de comprometer-se pessoalmente
com as lutas comunitárias. O sentimento psicológico de comunidade dilui o sentimento
de alienação, anomia, isolamento e solidão ao satisfazer as necessidades de intimidade,
diversidade, pertença e utilidade. Segundo McMillan e Chavis (1986) o sentimento
de comunidade “é um sentimento de pertença que os membros possuem, de que os
membros se preocupam uns com os outros e com o grupo, em uma fé partilhada de que
as necessidades dos membros serão satisfeitas através do compromisso de permanecerem
juntos” (p.9, tradução nossa).
O sentimento de comunidade é formado por quatro dimensões: Estatuto de Membro
– relaciona-se com o sentimento de pertença em um relacionamento pessoal; Ligações
Emocionais Compartilhadas – compromisso e crença de que os membros partilharam a
história, lugares comuns, tempo juntos, e experiências similares; Influência – sentimento de
importância do grupo para os seus membros e Integração e Satisfação de Necessidades – o
sentimento de que as necessidades dos membros serão satisfeitas pelos recursos recebidos
pelo seu estatuto de membro no grupo (Mcmillan & Chavis, 1986).
Para Elvas e Moniz (2010), o sentimento de comunidade contribui para o baixo
índice de doenças mentais e de suicídios, sendo capaz de desencadear aumento do bemestar, qualidade e satisfação de vida, sentido de justiça e capital social, menor solidão e
isolamento. Na dimensão coletiva ocorre maior colaboração, mobilização e participação
em torno da mudança social, constituindo uma identidade comunitária expressa em ações e
palavras carregadas no afeto, impregnadas das individualidades e ao mesmo tempo de um
caráter psicossocial (Montero, 2003). Este sentimento de compromisso com a comunidade
é apontado por Carina como um objetivo de sua participação “eu vim para o Movimento
(Movimento de Saúde Mental Comunitário) com uma missão de ajudar as pessoas, um
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caminho dentro do bairro, a partir das dificuldades do nosso bairro, como que a gente
pode realmente melhorar” (Carina, GF). Na realização do trabalho comunitário Margarida
lembra a importância de refletir sobre os aspectos de sua individualidade como espaço de
potencialização do trabalho social “participei do grupo da autoestima, a gente trabalhava
muito a questão pessoal, também a comunidade, trabalhava questões do masculino e
feminino, como é isso na sua vida. Foi me despertando pra outras questões que ás vezes
a gente deixa esquecido no trabalho comunitário, ser mulher” (Margarida, GF).
O aparecimento do sentimento de comunidade retoma a dimensão ética do
fortalecimento, quando Góis (2008) afirma que o ser livre significa sermos todos livres,
sermos povos livres, assumindo um processo de construção e recriação permanente da
identidade, rompendo com os valores antivida. Somente na relação amorosa o indivíduo
deseja ser ator, superando a posição de conformidade e acomodação, deixando de ser um
elemento de funcionamento do sistema social e se torna criador de si mesmo e produtor
da sociedade. Suzana relata: “à medida que eu fui melhorando eu fui ensinar aos meninos
matemática, na aldeia Pitaguary”(Suzana, GF).
Na circularidade do cuidado, dar, receber, retribuir, amplia-se a noção de comunidade
“o Movimento ele cresce aqui dentro, mas ele cresce fora assim quando outras pessoas
vem aprender na formação e torna-se multiplicadores nos seus espaços, propaga a ideia
de acolhimento. Por exemplo, eu recebi, eu voltei pra colaborar e nem todos fazem
isso, e uma vez o padre Rino disse que é assim, uns voltam pra colaborar e outros vão
colaborar em outros espaços” (Suzana, GF). O sentimento de comunidade tido como
espaço territorial então se alarga pela construção de um novo ethos, que para Boff (2001)
significa “a toca do animal ou casa humana, vale dizer, aquela porção do mundo que
reservamos para organizar, cuidar e fazer o nosso habitat. Temos que reconstruir a casa
comum- a Terra- para que nela todos possam caber” (p.27).
Nesta casa comum, há vivência dos conflitos, no reconhecimento da saúde como
equilíbrio oscilante, da dor como parte da vida e de uma rede de encontros. Encontros
permeados de vínculos solidários, com intensa expressão das emoções e afetividade que
buscam conduzir a autonomia dos sujeitos. O sentimento de comunidade, de fazer parte,
de construir vínculos, evidencia a intrínseca relação entre o cuidado de si e do mundo,
desenvolvendo a capacidade de assumir compromisso com a superação da miséria e da
alienação do outro.
Negociação do uso da medicação
O processo de fortalecimento abre horizontes existenciais com profundas
implicações na forma de compreender a vida, na expressão das emoções e na sensibilidade
ao incorporar uma atitude ética definida por Carvalho, Bosi e Freire (2008), como
disponibilidade pessoal onde cada profissional permite ser afetado por outra via não
teórica e de não isenção. Nesta abertura para a realidade existencial do outro foi destacada
a negociação do uso da medicação em uma relação de responsabilidade compartilhada,
como quarto aspecto do fortalecimento.
Jarbas fala da convivência diária com a angústia, tristeza e medo quando passou
dois anos sem sair de casa: “comecei indo pra Terapia Comunitária com um amigo, tinha
muito medo de ir sozinho, de que uma coisa muito ruim me acontecesse. Só depois de
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um tempo é que tive coragem de ir só” (Jarbas, E). A dose adequada da medicação foi
então capaz de ajudá-lo a enfrentar seus medos.
A relação com os medicamentos é complexa ao favorecer a superação de sintomas
que geram muita dor, mas podem também desenvolver uma dependência psicológica.
Este processo não pode ser superado pela imposição médica, mas negociado. Suzana fala
como é difícil este processo: “já recebi alta, o padre Rino disse que eu estou curada, já
sinalizou pra tirar a medicação total, porque já tá muito pequena a dose. Eu que pedi
pra não tirar agora, porque eu ainda não me sinto segura” (Suzana, GF).
O serviço de saúde mental ao reconhecer as necessidades existenciais da pessoa em
sofrimento, seu projeto de vida, medos e limitações, favorece um processo de fortalecimento
capaz de gerar autonomia em uma relação de responsabilidade compartilhada. O uso da
medicação para Flor de Lótus tem um sentido diferente, lembrando várias situações de
sofrimento: “ele (o psiquiatra) já me ofereceu remédio várias vezes e eu disse: eu não
quero remédio, eu prefiro chá. Eu tinha um medo muito grande de me viciar em remédio
né, na minha família tem vícios de várias coisas” (Flor de Lótus, GF). Para Rotelli
(2001, p.91) os serviços de saúde mental devem favorecer a experimentação de novas
oportunidades e possibilidades, em que o objetivo seja “não da cura, mas da emancipação;
não se trata de reparação, mas de reprodução social das pessoas; outros diriam, o processo
de singularização e ressingularização”. Um serviço que possa sair da caricatura do papel
do louco, capaz de criar novas oportunidades e possibilidades para pessoa por meio de
laboratórios e não ambulatórios, lugares em que se produz cultura, trabalho, intercâmbio
e relações entre artistas, artesãos, pessoas doentes ou não (Rotelli, 2001).
O cuidado que facilita a emancipação pressupõe a existência de uma relação
dialógica, em que a pessoa em sofrimento não seja um mero depositário de informações
e orientações realizadas pelos profissionais de saúde. Todos são desafiados a superar
as situações de opressão, onde opressor e o oprimido encontram-se desumanizados e
coisificados numa relação onde o Ter se sobrepõe ao Ser humano.
Barrio, Perron e Ouellette (2008) afirmam a importância da farmacologia para
a desinstitucionalização quando os serviços de saúde mental reconhecem o direito ao
consentimento livre e esclarecido para as pessoas que usam medicação, garantindo o
acompanhamento necessário para sua suspensão de forma segura. Para Rauter e Peixoto
(2009) os usuários de serviços de saúde têm pouca ingerência sobre os tratamentos que
recebem ou rotinas a que são submetidos, pois são vistos como um organismo biológico
onde um especialista busca aplicar a medicação adequada para corrigir seu transtorno. A
prescrição da medicação funciona, desta forma, como poderoso dispositivo de controle
contemporâneo.
Suzana fala do uso da medicação “quando eu cheguei pra ser atendida eu tava
a todo instante praticamente tirando a minha vida, mas a partir do momento que eu
comecei a me estabilizar um pouco, não foi desconsiderado que eu tinha acabado de
terminar uma graduação, não fui empurrada de diazepan e amytril” (Suzana, GF).
Para superar ações de prescrição, medicalização e normatização da dor, os serviços
de saúde mental necessitam acompanhar as pessoas em seus diferentes contextos de
relações, reconhecendo os recursos institucionais e comunitários presentes no território
e nas pessoas. Lembramos que o uso da medicação não conduz a uma ausência total de
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angústia e sofrimento, onde o limite é dado pelo próprio indivíduo, não podendo haver
controle ou regulação do Outro.
É fundamental perceber a beleza da impermanência do humano, reconhecendo a
saúde como equilíbrio oscilante, onde a negociação do uso da medicação está inserida na
busca não só da remissão de sintomas, mas na experimentação de novas oportunidades e
possibilidades de autonomia, produzindo relações de reciprocidade e intenso confronto
com a reprodução, rigidez e institucionalização. Dentre as relações de contratualidade, foi
ressaltado o poder de negociar o uso da medicação como capaz de inserir o sujeito que
adoece em uma relação de troca que supera o valor negativo previamente atribuído ao
indivíduo dentro do campo social, favorecendo uma clínica que se distancia da supremacia
da economia de mercado.
Experiência ecológica
A experiência ecológica foi referida como aspecto do fortalecimento por
redimensionar as crenças religiosas, ampliando o olhar para o transcendente em uma
nova compreensão do adoecimento, dos medos e incertezas da vida. Adotamos o
conceito de ecologia apresentado por Bosi e cols. (2011) como as relações recíprocas
estabelecidas entre os seres humanos e seu meio social, econômico e cultural,
valorizando a conexão com a vida por meio de um homem relacional, ecológico e
cósmico. Baseado na visão de ecologia profunda de Arne Naess, a dimensão ecológica
é considerada inovadora para subsidiar as práticas e modelos de avaliação em saúde
mental (Bosi e cols., 2011).
A religiosidade, como os sentimentos de pertença à comunidade, estão associados
a níveis mais baixos de depressão, índices mais elevados de esperança e bem-estar, o que
também pode explicar a correlação positiva com a qualidade de vida em geral (Rocha
& Fleck, 2011). O reconhecimento das práticas religiosas e da espiritualidade tem sido
negligenciado nos serviços de saúde, quando os profissionais negam a diversidade
espiritual ou mesmo religiosa, produzindo interpretações superficiais deste universo
cultural baseadas em suas próprias crenças e nas produções culturais dominantes.
Concordamos com Nunes (2009) quando afirma que as influências culturais negadas
ou desvalorizadas têm pertencimento de classe, etnia ou gênero, deixando à margem
todo um universo de compreensões produzido a partir do lugar social no qual os grupos
e pessoas se inscrevem.
A experiência ecológica referida como dimensão do fortalecimento são
experiências que ajudam a enriquecer o cotidiano, que conduzem a uma conexão com
a dimensão espiritual, com a natureza e os seres vivos no qual o indivíduo tem uma
sensação de pertinência. Jarbas relata esta experiência no cuidado da horta comunitária:
“cuidar da horta, aquilo lá para mim foi um encontro comigo mesmo. Como meus pais
foram agricultores, pra mim foi maravilhoso, tá mexendo com a terra. Acho que foi
uma força a mais pra recuperação” (Jarbas, E). Para Flor de Lótus, foi a oportunidade
de conviver com os bichos: “na casa de aprendizagem tinha toda a bicharada. Outra
coisa que minha mãe não deixava a gente fazer, bicho não deveria entrar dentro de
casa, e quando então a gente pegava, apanhava. Lá no Movimento eu recebi todo esse
carinho dos bichos” (Flor de Lótus, GF).
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A experiência religiosa também pode se aliar a dor, quando Jarbas relata: “meus
pais eram evangélicos, então eles traziam aquela coisa muito rígida, aquela coisa do
pecado, aquela coisa do castigo. Eu acho que psicologicamente me trouxe algumas
feridas e com os grupos eu descobri que isto são ponto de vista, só a vista de um ponto
só” (Jarbas, E). Para Boff (2001), existem experiências transcendentes negativas,
são pseudotranscendencias que diminuem a humanização do ser, provocando um
endeusamento e fetichização do cotidiano, como as experiências provocadas pelas
drogas, o universo do marketing, do show bizz ou experiências religiosas que evocam
mudanças efêmeras, deixando o cotidiano triste e opaco. A verdadeira transcendência
ajuda a enriquecer e assumir o cotidiano, ampliando a liberdade e energia para enfrentar
os desafios diários (Boff, 2001).
A experiência de transcendência se configura uma estratégia de cuidado em saúde
mental por lidar com as dimensões pouco conscientes do ser em que se assentam os
valores, motivações e sentidos humanos da existência, capazes de operar transformações
existenciais que “permitem auscultar dimensões radicais do humano, as quais a maioria
das pessoas resiste a enfrentar, abrindo portas para uma sabedoria pessoal mais profunda,
e para formas específicas de conhecimento, de competência e poder” (Vasconcelos,
2003, p.305).
Em um mito originado na tradição ioruba (com origem na Nigéria) e afrobrasileira, Vasconcelos (2003) descreve as transformações ocorridas pela experiência de
adoecimento. A figura de Omulu é representada por um homem que tem o corpo coberto
de palha para ocultar diversas chagas que foram provocadas por inúmeras doenças e
conflitos com a mãe. Ele é rejeitado por sua família e pelos moradores da aldeia indo se
refugiar na floresta à procura de seu próprio caminho. Ao lidar com as próprias dores e
doenças é transformado em curador. Volta às aldeias que antes o expulsavam carregando
seus apetrechos de cura, vários tipos de águas, remédios e poções (atós), para realizar
curas e rituais de proteção. Voltou à própria casa, podendo curar os seus pais.
O mito do curador ferido fala de uma dor intensa e solitária capaz de modificar
relações de desprezo e exclusão para relações de cura e cuidado. Suzana fala deste
aprendizado “Quando eu vejo assim uma pessoa, por exemplo, com tentativa de suicídio,
eu olho pra aquela pessoa com uma compaixão que muitas vezes eu não fui olhada né,
porque eu entendo que aquela pessoa tem uma dor tão grande que naquele momento ela
não tá suportando e que ela precisa de ajuda, ao invés de julgamento, de condenação”
(Susana, GF). Flor de Lótus sofreu uma série de conflitos e abusos na infância que
passou muito tempo para reconhecer. Hoje fala em como aprendeu a tomar posição, da
capacidade de cuidar do outro de forma sensível e empática “Você chega no ônibus, por
exemplo, você sente à distância quando uma pessoa tá passando por uma necessidade,
você conversa, você passa a mão. Alguma coisa acontece na sua vida diária porque você
aprendeu aqui no dia a dia” (Flor de Lótus, GF).
A transformação das feridas em poder de cura não é natural, se configurando como
um processo de cuidado da alma, de ocupar-se consigo. Para Foucault (2006), o cuidado
de si representa o momento do despertar, em que os olhos se abrem para alcançar a luz,
um movimento de permanente inquietude no sentido da existência. A epiméleia heautoû
(cuidado de si) designa precisamente “o conjunto das condições de espiritualidade, o
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conjunto das transformações de si que constituem a condição necessária para que se possa
ter acesso à verdade” (Foucault, 2006, p.21). Ocupar-se consigo, cuidar das próprias
feridas, é um caminho apresentado pelos sujeitos desta pesquisa como propiciador de
fortalecimento, como experiência que conduz a uma vivência ecológica que fomenta o
que Sawaia (2009) descreve como a felicidade ético-política que é sentida quando se
ultrapassa a prática do individualismo e do corporativismo para abrir-se à humanidade
na conquista da cidadania e da emancipação de si e do outro.
Considerações finais
Artigos recentes destacam a dificuldade dos serviços de saúde mental em realizar
práticas de cuidado que produzam saúde e autonomia das pessoas, pouco estimulando a
organização mais independente dos usuários e familiares, uma vez que tal espaço é ainda
liderado, em sua grande maioria, pelos técnicos dos serviços (Almeida, Dimenstein &
Severo, 2010; Figueiró & Dimenstein, 2010; Vasconcelos, 2009). As situações de exclusão
representam para Sawaia (2009) uma ameaça à existência, cerceando a experiência, a
mobilidade, produzindo intenso sofrimento, bloqueando o poder do corpo de afetar e
ser afetado.
Enfocando os sentidos de fortalecimento de homens e mulheres que passaram
pela experiência de sofrimento reconhecemos a potência de sujeitos, o que lhes faz
escapar do interdito manicomial. No resgate do valor pessoal e do poder pessoal ocorrem
mudanças nas crenças sobre si mesmo, sobre o mundo, experimentando a coragem de
fazer diferente, superando atitudes fatalistas que promovem a passividade, acomodação
e desqualificação. Ao apresentar um sentimento de comunidade a pessoa percebe-se mais
segura, reconhecendo espaços de trocas, de solidariedades, materializados principalmente
por meio de atividades voluntárias. Nas atividades do Movimento de Saúde Mental
Comunitário analisado, vimos que usuários são reconhecidos como pessoas, com
identidade na comunidade e não como pacientes. Inaugura-se desta forma, um novo
espaço social para a loucura, superando relações de tutela e de segregação.
Foi evidenciado como importante para o fortalecimento, a negociação do uso
da medicação, reconhecendo a pessoa que sofre como sujeito do tratamento, em sua
capacidade de compreender seu diagnóstico e negociar as formas de tratamento. Outro
aspecto foi a experiência ecológica como ampliação da conexão consigo, com o outro
e a vida, onde o desenvolvimento pessoal é mediado pela profunda implicação com o
Outro, a comunidade e a natureza.
Nos vários aspectos do fortalecimento que surgiram das histórias aqui retratadas de
dor e superação de pessoas que passaram pela situação de adoecimento, reconhecemos
o conceito de fortalecimento, surgido na práxis da psicologia comunitária, como
fundamental no enriquecimento do campo da saúde mental. Desse modo, não existe
sujeito fora de um sentido de comunidade, onde os processos de fortalecimento não se
engessam em teorias ou em atividades de cuidado, mas reivindicam o respeito ao território
existencial como suporte à expressão da dor, da insatisfação, da possibilidade de ser e
desejar coisas diferentes, de rompimento com uma ideologia de submissão e de resignação
na compreensão do modo de vida de sua comunidade e de si mesmo.
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Recebido em agosto 2012
Aceito em setembro 2012
Maria Aparecida Alves Sobreira Carvalho – Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC),
psicóloga, professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba – Campus Sousa.
Verônica Morais Ximenes – Psicóloga, Doutora em Psicologia (Universidade de Barcelona), Professora
Associado da Graduação e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará
(UFC), Bolsista produtividade CNPq.
Maria Lúcia Magalhães Bosi – Professora Titular – Departamento de Saúde Comunitária. Coordenadora do
Laboratório de Avaliação e Pesquisa Qualitativa em Saúde (LAPQS). Universidade Federal do Ceará.
Endereço para contato: [email protected]
176
Aletheia 37, jan./abr. 2012
Aletheia 37, p.177-196, jan./abr. 2012
A qualidade da educação e o professor por um fio: o cotidiano
docente na ótica da psicologia social comunitária1
Maria de Fatima Quintal de Freitas
Lygia Maria Portugal Oliveira
Resumo: Sob a ótica da Psicologia Social Comunitária, propõe-se uma análise sobre
armadilhas/dimensões psicossociais que afetam as relações interpessoais dos docentes,
com subprodutos negativos à prática e rede escolar-comunitária. Realizou-se uma pesquisa
exploratória, aplicando questionários semiestruturados a 219 docentes de 33 escolas municipais
de Curitiba. O eixo temático da pesquisa dirige-se à Educação, Formação e Vida Cotidiana do(a)
Professor(a). A análise quantitativa e qualitativa (com análise de conteúdo) gerou categorias
a posteriori, em torno de: caracterização geral, ingresso e prática; dificuldades enfrentadas
e alternativas de resolução; dificuldades percebidas na comunidade escolar; perspectivas/
planos de futuro. A condição docente é pouco valorizada, e há baixo envolvimento coletivo e
dificuldades para participação escolar solidária. Encontraram-se paradoxos/desafios vividos
pelos professores: fragilidade de redes de solidariedade no cotidiano; posturas fatalistas diante
da vida e do trabalho; trabalho docente vivido como uma prática solitária no espaço público
e que acontece no limite da exaustão psicossocial.
Palavras-chave: Prática docente e psicologia social comunitária, vida cotidiana e educação
comunitária, cotidiano docente e comunidade.
The quality of education and the teacher about to collapse: The daily
teaching experience from the perspective of social community psychology
Abstract: From the perspective of Social Community Psychology, an analysis of traps /
psychosocial dimensions that affect interpersonal relationships of teachers with negative
byproducts practice and school-community network is proposed. We performed an exploratory
research, using semi-structured questionnaires to 219 teachers from 33 municipal schools in
Curitiba. The main theme of the research is directed to Education, Training and the Teacher`s
Daily Life. The quantitative and qualitative analysis (with content analysis) later on generated
categories of: general characterization, admission and practice; difficulties faced and resolution
alternatives; difficulties perceived in the school community; prospects / future plans. The
teacher`s condition is undervalued, and there is little involvement and collective solidarity
and difficulties for solidary school participation. Paradoxes / challenges faced by teachers
were met: fragility of daily solidarity network; fatalistic attitudes toward life and work,
teaching work experienced as a solo practice in public space and that happens in the limit of
psychosocial exhaustion.
Keywords: Educational Practice and Social Community Psychology, Everyday Life and Community
Education, Educational Everyday and community.
1
CNPq e CAPES.
La calidad de la educación y el profesor a punto de colapsar: el cotidiano
del profesor desde la perspectiva de la psicología social comunitaria
Resumen: Desde la perspectiva de la Psicología Social Comunitaria, se propone un análisis
de las trampas/dimensiones psicosociales que afectan a las relaciones interpersonales de los
docentes produciendo subproductos negativos para la práctica y red de la escuela y comunidad.
Se realizó una investigación exploratoria, utilizando cuestionarios semiestructurados a 219
docentes de 33 escuelas de la alcaldía de Curitiba. El tema principal de la investigación se dirige
a la Educación, Formación y la Vida Cotidiana del (la) profesor (a). El análisis cuantitativo y
cualitativo (análisis de contenido) generó categorías acerca de: caracterización general, entrada
y práctica docente, dificultades vividas y soluciones, dificultades percibidas en la comunidad
escolar; perspectivas /planes futuros. La condición de los docentes está infravalorado, y hay
poca participación y solidaridad colectiva y hay dificultades para la participación en la escuela
de manera solidaria. Se conocieron paradojas/retos que enfrentan los docentes: fragilidad de las
redes de solidaridad en su cotidiano, actitudes fatalistas delante de la vida y del trabajo, el trabajo
docente se experimenta como una práctica vivida en solitario en el espacio público y que ocurre
en el límite de agotamiento psicológico.
Palabras clave: Práctica Docente y Psicología Social Comunitaria, Vida cotidiana y Educación
Comunitaria, Cotidiano Docente y Comunidad.
Introdução
Ao refletir sobre a escola e o processo educativo dentro do paradigma das
relações de produção, no tipo de sociedade capitalista em que vivemos, Guzzo (2005)
refere-se à mercantilização e coisificação da vida humana, que se expressam também
no contexto educacional. Guzzo (2005) bem revela este sutil e cruel processo ao
afirmar que “viver o cotidiano da escola tem sido viver o desalento de um processo
adaptativo e domesticador em relação ao mundo” (p.19). Inúmeras também são as
dificuldades que afetam, de forma significativa, o cotidiano do professor, tanto em sua
vida particular quanto laboral, principalmente aquele das escolas públicas que trabalha
em condições e infraestrutura precárias, além de viver, nas interações humanas,
relações de competição e individualismo, típicas da natureza desta sociedade. O censo
escolar de 2011 mostra que pouco mais de 15,5% dos alunos da educação básica
(7.918.677 de alunos de um total de 50.972.619 matriculados) frequentam escolas
privadas, sendo que esse percentual aumentou, aproximadamente, meio por cento a
cada ano, desde 2007. Nesse ano, em 2007, no total geral das matrículas da educação
básica, havia 2.056.309 de alunos a mais do que as matrículas em 2011, o que torna
essa presença na rede privada, hoje, ainda mais significativa (Mandelli, 2012). Assim,
poder-se-ia dizer que o número de escolas públicas, proporcionalmente, é menor do
que o das privadas, visto que aquelas atendem a um contingente maior de estudantes
em sala de aula do que as particulares (Mandelli, 2012; Oliveira, 2007; Penteado &
Guzzo, 2010). Esta é uma das dificuldades que os professores de escolas públicas
enfrentam, além do alto índice de sofrimento mental, estresse e burnout presentes, em
especial, para os professores com mais tempo de magistério (Souza & Leite, 2011);
assim como os problemas de saúde física, como os ligados à voz (Servilha & Ruela,
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2010; Souza, 2011; Luchesi, 2009) e os cuidados físicos dependentes das condições
de trabalho (Araújo & Carvalho, 2009; Cardoso et al., 2011; Fernandes & Rocha,
2009; Gasparini, Barreto & Assunção 2005).
Vários são os estudos, pesquisas e levantamentos que têm sido realizados, desde
fins dos anos 90, tendo o foco dirigido ao aprimoramento e melhoria da educação,
buscando garantir uma melhor formação e condições mais dignas e saudáveis aos atores
sociais envolvidos (Abramovay, 2005; Gasparini, Barreto & Assunção ,2006; Marriel,
Assis, Avanci & Oliveira, 2006). Embora tenham também aumentado as instâncias
governamentais, programas e propostas ligados ao desenvolvimento de conhecimentos
e práticas neste campo, isso não significa necessariamente que os aspectos centrais
dessa relação ensino-aprendizagem tenham melhorado e recebido o devido valor e
proteção. Assim é que, por exemplo, na maioria dos programas públicos no campo da
educação, há sempre uma ênfase, claramente colocada, para a melhoria dos índices,
dos resultados de aprendizagem e aprovação, do número de vagas para entrada no
sistema educacional, do contingente de recursos e bolsas destinados aos jovens, tendo
na maioria o foco na formação, educação, preparação e profissionalização do estudante,
e vários outros itens nessa direção.
Contudo, a figura do professor não tem recebido a mesma prioridade na destinação
dos recursos ou nas propostas de aprimoramento e formação. Em vários casos, ele é
colocado como o “protagonista” desse processo educacional, mas numa perspectiva
de quase ser o principal responsável pelos resultados, criando-se assim várias tensões
e dilemas vividos pelos professores em seu cotidiano (Freitas, 2003; Guzzo, 2005).
Isto, em parte, tem contribuído para que os professores “sintam-se perdidos. Eles
perderam algumas referências fundamentais sobre seu trabalho, sobre as relações
com este e sobre sua vida” (Freitas, 2003, p.144). Várias são as explicações sobre
o quadro de insucessos e desafios na realidade educacional, entre as quais muitas
localizam o professor como responsável, pois “não teria competências”, ou “não teria se
capacitado”, ou “não ´soube´ como lidar com essas situações” de adversidade. Mesmo
que, de fato, o professor possa não ter sido capacitado e nem aprendido em como lidar
com essas situações, esta condição não pode, por si só, significar a reificação dessa
responsabilidade. Isto porque faltam – para uma análise justa e voltada à totalidade
histórica dos determinantes dessa situação – aspectos estruturais que devem ser
considerados para a análise e compreensão da precarização do trabalho docente, que
também produz impactos nas dimensões subjetivas da vida cotidiana desses professores.
Mesmo que sólidos e extensos investimentos sejam feitos na direção de “melhorar e
capacitar” os profissionais da educação, também não é isto que, por si só, seria suficiente
para desvendar o que se passa nos meandros dos processos psicossociais vividos pelo
professor em seu cotidiano, muitas vezes de modo solitário, silencioso e desalentador
e que afeta não só seu trabalho e sua vida, como também, as perspectivas e projetos
educacionais nesse campo.
Este trabalho pretende reunir informações obtidas através de uma pesquisa de
campo exploratória, realizada na região metropolitana de Curitiba, ao trazer as vozes,
sonhos, desafios, problemas e possibilidades percebidas no cotidiano, pelos professores
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de educação básica de 33 escolas municipais. Tem-se como objetivo caracterizar o
trabalho docente, na ótica dos professores, identificando os efeitos psicossociais em
sua vida cotidiana e as influências sobre os planos e sonhos para o futuro. Busca-se
fazer uma reflexão sobre os aspectos importantes para a formação e capacitação de
futuros agentes comunitários, dentro e fora da escola, na ótica desses docentes e à luz
da psicologia social comunitária.
Método
Esta pesquisa foi realizada, dando continuidade à proposta de implementar ações
comunitárias no contexto educacional, que vinha sendo desenvolvida em projetos
anteriores, ligados ao NUPCES (Núcleo de Psicologia Comunitária, Educação e
Saúde/CNPq-PPGE/UFPR) buscando envolver diferentes atores sociais (professores,
estudantes e comunidade), preparando-os para a realização do diagnóstico de
necessidades e construção de redes colaborativas em seus entornos educacionais e
comunitários.
Em uma primeira aproximação, foi feito o levantamento de vários aspectos e
necessidades junto ao grupo de professores. A linha temática central localizou-se
no eixo “vida cotidiana: estratégias de resistência e de desistência dos docentes”,
o que gerou investigações e a participação em atividades de formação a pedido da
Secretaria de Educação e do Sindicato dos Professores. Ambos têm buscado aportes
para compreender o que se passa com os docentes, em seu dia a dia, sob a ótica
dos processos psicossociais com vistas a uma melhoria na participação escolar e
comunitária. Já existiam vários contatos e trabalhos grupais anteriores, que vinham
sendo realizados junto ao Sindicato de Professores e aos professores-representantes
de cada escola ligada ao sindicato. Durante ano e meio, regularmente, realizaram-se
reuniões mensais, em que eram feitas discussões sobre problemáticas vividas pelos
docentes em seu cotidiano de trabalho, buscando-se a constituição de grupos de
trabalho que fossem dirigidos a essas problemáticas em cada escola participante. Como
resultado disto, após um levantamento de informações e diagnóstico psicossocial feito
junto aos professores-representantes que participavam dessas reuniões regulares, o
próprio grupo de docentes, juntamente com a diretoria do sindicato e a nossa equipe
de trabalho de intervenção, definiu que um primeiro passo seria a realização de uma
pesquisa para conhecermos sobre os docentes e sua vida. Esta deveria ter a maior
abrangência possível, atingir cada escola e permitir que os professores pudessem
expressar, de modo seguro e sigiloso, seus posicionamentos e visões a respeito de seu
cotidiano de trabalho e sua vida, captando as diferentes necessidades e problemas,
assim como os anseios e projetos para o futuro pessoal e profissional como educadores
e cidadãos.
Isto gerou um instrumento de coleta de informações, sob o formato de
questionário que foi denominado, à época, de ”Professor: sua vida, seu trabalho, seu
futuro”. Este questionário, composto de 17 questões abertas e fechadas, estruturouse, com a ajuda dos docentes-representantes, em torno de três eixos temáticos:
“conhecendo os docentes da rede municipal” (dados de caracterização sociofamiliar180
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escolar); “ingresso e participação no magistério e cotidiano docente” e “planos e
perspectivas de futuro”. As respostas foram categorizadas e submetidas a uma análise
de conteúdo, criando-se categorias a posteriori, dentro dos eixos temáticos.
Desafios e dificuldades no campo da pesquisa
Parte dos dados aqui apresentados originou-se de uma proposta de intervenção
coletiva, em que a construção e os temas-guias do instrumento de coleta foram
discutidos e elaborados em conjunto (direção do sindicato, representantes dos docentes
e a nossa equipe). Anteriormente a esta coleta, já existia um trabalho que realizávamos
junto aos professores-representantes que tinham assento no sindicato e com a direção
dessa entidade, através de reuniões mensais em que as problemáticas e dificuldades
dos docentes apareciam, de maneira recorrente, ligadas às dimensões subjetivas e
psicossociais.
Assim, foi-se identificando, ao longo desse período, um tema central relacionado
à vida docente, surgindo discussões sobre as estratégias de resistência e de desistência
que os docentes encontravam em sua vida cotidiana, cujo conteúdo discutimos, nas
intervenções e palestras solicitadas pela Secretaria de Educação. Isso produziu algum
impacto e expectativa nos professores quanto à necessidade de adquirirem conhecimentos
sobre o que se passava com eles, do ponto de vista psicossocial (como os desânimos,
sofrimentos, fatalismos, descrenças em possibilidades de melhoria, entre outros), em
seus trabalhos e vidas, para que pudessem encontrar alternativas de enfrentamento,
individual e coletivo.
Dessa forma, após a confecção e aplicação do questionário-piloto, tendo o apoio
e autorização do sindicado e dos docentes-representantes, buscou-se um contato com
as direções das escolas. Mesmo tendo a mediação dos professores-representantes,
foi um trabalho demorado e cheio de desencontros em termos de tentar coadunar as
disponibilidades, assim como os interesses das direções e coordenações pedagógicas
em saber do que se tratava, com receios de estarem sendo avaliados externamente. Dos
35 docentes-representantes que participavam com regularidade das reuniões mensais no
sindicato, obteve-se por parte de 33 a concordância em intermediar o nosso contato em
suas escolas. Assim, estas 33 escolas integrantes da rede (de um total de 167 instituições)
tinham em seu conjunto 987 professores ligados à educação básica, que receberam os
questionários, entregues ou em reuniões e visitas que realizamos em cada escola, ou
através do próprio representante. Cada questionário constituía um conjunto de 17 itens,
organizados de modo a ser rápida e objetiva a resposta, com exceção das questões abertas,
relativas aos planos de futuro e dimensões mais pessoais. Com todos houve um contato
e informação cuidadosa sobre a finalidade da pesquisa, assim como a garantia de sigilo
e anonimato, além da leitura e assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido
(TCLE) (em consonância à resolução 196/96/MS, aprovado pelo comitê de ética em
pesquisa do setor de ciências da saúde, em 2009). O questionário deveria ser, então,
depositado em outra urna lacrada, colocada à parte da urna, também lacrada, destinada
à recolha dos TCLE assinados. A existência dos contatos e trabalho anteriores, junto aos
professores-representantes, contribuiu para que fôssemos recebidas nas escolas e que
fosse construída uma relação de confiança, mediada pelo aval e conhecimento destes
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docentes. Isso colaborou para que conseguíssemos um retorno dos 219 questionários
(de 987 entregues) que foram considerados válidos. Houve casos de escolas, em que
as urnas recolhidas apresentavam poucos questionários no seu interior (ao todo, oito
foram considerados inválidos) ou mesmo tinham questionários com a maior parte das
respostas em branco, que se referiam a docentes que atuavam na escola não mais na
função de conduzir as salas de aula, mas sim em trabalhos administrativos.
Ao final, os 219 questionários respondidos pelos docentes representaram 22%
do total entregue. Em cada escola, com a permissão da direção, colocamos uma urna
que foi publicamente lacrada por nós, para que os professores pudessem depositar de
modo sigiloso e seguro suas respostas, e as duas urnas (a dos termos de consentimento
e a dos questionários respondidos) só poderiam ser retiradas por alguém de nossa
equipe, a fim de garantir o sigilo e segurança dos docentes, evitando qualquer tipo de
pressão ou possível represália. Mesmo com estes cuidados, verificou-se haver uma não
devolução de questionários em 88% e, em muitas situações, foi-nos relatada uma “certa
insegurança e receio em participar, embora quisessem muito” (sic). Houve inclusive
o recebimento de alguns questionários (quatro, de escolas diferentes) que nos foram
entregues, anonimamente, três meses depois, colocados no escaninho da coordenadora
deste projeto, na universidade. Embora seja um fato isolado e de abrangência restrita,
apresenta forte significado se considerarmos que, a sua chegada às nossas mãos, implicou
um esforço e envolvimento desses professores, desde a busca e localização da nossa
lotação institucional específica, até um interesse em que tais informações nos fossem
dadas, para o conjunto do trabalho. Os dados destes questionários agregaram-se depois
ao conjunto de respostas dos outros docentes.
Resultados
Alguns aspectos contribuem para uma reflexão sobre as dificuldades de
participação e obtenção de dados para a realização de pesquisas em cenários, cujas
relações interpessoais são delicadas e sensíveis às pressões hierárquicas e de poder.
Estas são influências que muitas vezes colaboram para que os dados obtidos possam
sofrer interferências que, se não forem consideradas quando do processo de coleta das
informações, podem trazer percepções parciais e compreensões analíticas nem sempre
próximas à realidade concreta.
Observou-se ao longo destas práticas de intervenção, desde as diretamente realizadas
no sindicado dos docentes, uma dificuldade em aumentar o número de professores
participantes nas reuniões mensais e debates, em parte explicada pelos medos de serem
“vistos como contrários às normas da secretaria ou da direção” (sic). Alguns inclusive
relatavam que nem sempre conseguiam vir às reuniões, também em parte porque muitas
vezes tinham de cobrir colegas que haviam faltado naquele dia em suas escolas. Nesta
ocasião também, o sindicato estava reunindo informações sobre as condições frágeis
de saúde dos professores, cujos pedidos de afastamento por causa de doença vinham
aumentando. Várias, também, eram as reclamações relativas às dificuldades de ascensão
na carreira de magistério, devido a fatores pouco claros.
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Além disto, podem-se também indicar mais dois aspectos que permitiriam explicar
as dificuldades para uma participação maior em responder aos questionários. Um deles
relaciona-se à ideia de que a pesquisa poderia ter uma finalidade de avaliação pessoal
dos docentes e/ou escola, visão esta que tem sido observada em várias investigações
realizadas no campo da educação e ciências humanas, em que os docentes expressam
uma concepção equivocada de que “podem estar sendo avaliados pela universidade”,
mesmo quando esclarecidos dos objetivos das pesquisas a serem realizadas. O outro
aspecto estaria ligado ao fato de que as escolas, de maneira geral, têm sido procuradas
por um grande número de pesquisadores e seus estudantes para a realização de trabalhos
de investigação (monografias, dissertações de mestrado e/ou teses de doutorado, e
outros), utilizando uma variedade de instrumentos de coleta de dados nem sempre
muito explicados e “confortáveis” às pessoas. Isso, em muitos casos, pode gerar uma
saturação e uma certa desconfiança em relação ao que será feito com os resultados, em
especial quando não há um retorno dos pesquisadores para os participantes da pesquisa
sobre os achados e conclusões obtidas.
Conhecendo os docentes e seu ingresso no magistério
Como esperado na rede da educação básica, a maioria dos docentes é do sexo
feminino. Encontramos 214 mulheres para apenas 5 homens, com idade entre 24
e 61 anos sendo que mais de três quartos deles situam-se em duas faixas etárias
predominantes: dos 24 aos 35 anos (com 85 professores-38,8%) e dos 36 aos 47 anos
(com 87 professores – 39,7%). Ainda 31 docentes situam-se entre os 48 e 55 anos,
representando uma proximidade com a aposentadoria, visto que se dedicam à profissão
há mais de duas décadas.
Considerando-se apenas os que foram informaram de modo preciso (209) seu
estado civil, houve uma maioria de casados (130- 62,2%) para 37,7% (79 docentes)
que se encontram, provavelmente, sozinhos em alguma condição similar (solteiros,
divorciados ou viúvos). Mesmo trabalhando e vivendo na capital do estado, os docentes
praticamente se equilibram quanto à sua origem: uma maioria (112- 51,6%) é originária
de fora da capital sendo que 38,2% (83 docentes) são do interior desse estado, e 48,4%
(105) nasceram na capital. Em termos de moradia, observa-se que a grande maioria (179
docentes) vive em casa própria e os demais se dividem, equitativamente, entre morar
de aluguel ou em casa de parentes. A contribuição para a renda familiar predomina
(172 docentes – 78,5%) em um a dois trabalhadores, vivendo em casas em que moram
de 3 a 6 pessoas (168 – 76,7%).
Em relação à sua formação para a docência, a maioria (195–89,04%) fez magistério
no ensino médio, concentrando-se (146 deles) em escolas públicas. Quase a mesma
proporção observa-se em relação a terem feito (210-95,9%) algum curso superior, com
predomínio para a pedagogia (100-47,2%), magistério superior (31-14,7%) e letras (2210,4%). Os cursos de educação física, artes e ciências sociais aparecem equiparados,
tendo sido feitos por nove (4,3%) docentes cada um. Com o mesmo índice de escolha
(quatro -1,9%), aparecem os cursos de psicologia, jornalismo, biologia, história e
filosofia. Ainda foram cursadas as seguintes carreiras por apenas um docente: geografia,
matemática, desenho industrial, economia, serviço social, direito e fonoaudiologia.
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Observa-se que algumas destas carreiras cursadas não estão diretamente relacionadas
ao exercício da docência na educação básica, podendo indicar que estes professores
talvez não tenham conseguido colocação profissional quando se formaram, ou que já
atuavam no magistério e lhes foi mais vantajoso e motivador continuar na docência do
que iniciar-se na nova carreira.
Como indicado na Tabela 1, a maioria (169) dos docentes informou já ter realizado
algum tipo de curso de especialização ou capacitação, concentrando-se nas áreas da
Educação e das Psicologias, com ênfase nos temas relativos à sala de aula (metodologias,
técnicas e didática, e gestão do trabalho pedagógico) e aos processos de ensino (desde
deficiências até processos de aprendizagem).
Tabela 1 – Cursos de especialização e capacitação frequentados pelos professores.
Área
Temas
F
%
Educação – Metodologia
de Educação
Ed. Infantil – Magistério – EJA –
Alfabetização – Gestão e Organização do Trabalho Pedagógico – Didática e Técnicas Educacionais – Metodologias Ensino
– Processos Aprendizagem e Ensino
67
39,7
Psicopedagogia – Psicologias
Pedagogia Terapêutica – Psicomotricidade Relacional –Psicodrama – Neuropsicologia
37
21,9
Educação
Especial
Inclusão – Deficiências (Mental, Visual, Auditiva) – Intervenção
26
15,4
Área de
Humanas
Artes, Geografia, História, Turismo, Direitos Humanos, Ed.
Ambiental e Educ. Física
23
13,6
Outros
Letras e Línguas, Exatas, Administração Pública,
Informática
16
9,5
169
100
Total
Em termos de expectativa futura para seu aprimoramento profissional, todos os
professores indicaram algum tipo de capacitação que desejam fazer, havendo casos
de mais de uma indicação por docente. Interessante verificarmos que predomina a
expectativa em fazer cursos no campo das psicologias (43) e da pós-graduação stricto
sensu (40) nessa área, ficando o campo da Educação e Educação Especial como terceira
(30) área procurada para cursos futuros. Parece haver uma crença de que cursos voltados
para a compreensão do individuo e de suas formas de desenvolvimento e aprendizagem
poderiam trazer benefícios, inclusive para a prática de magistério que eles têm. Isso
aparece também nas escolhas que fazem em termos de cursos de mestrado e doutorado
que pretendem fazer.
Observa-se na Tabela 2, que as razões indicadas para terem se tornado docentes
concentram-se em aspectos vocacionais, altruístas (de quererem melhorar o mundo e a
humanidade), pessoais e de condições externas/objetivas.
184
Aletheia 37, jan./abr. 2012
Tabela 2 – Razões indicadas para o ingresso no magistério.
Motivos para o Ingresso
1ª Razão
2ª Razão
Vocação/Gosto
98
44
Melhorar o Mundo – Contribuir
84
70
Prazer em Ensinar – Transmitir Conhecimentos
56
45
Crescimento Individual
26
32
Influência de outros
39
35
Trabalho meio período
15
23
Segurança de emprego
13
27
Os aspectos externos indicados referiram-se ao fato de terem buscado essa profissão
pela influência e modelo de amigos e parentes, por ser um trabalho que permite atuar
somente por meio período, e pela segurança ao ser um trabalho de vínculo público. Estes
motivos mantêm-se presentes seja como primeira ou segunda razão atribuída.
Ao serem perguntados a respeito dos problemas e dificuldades que enfrentam em
seu cotidiano profissional, os professores apontaram sete grupos de dificuldades que se
expressaram e em relação às condições: alunos, saúde, colegas, relacionamento, família
dos alunos, execução e recursos do trabalho (Vide Tabela 3). Cada grupo de dificuldades
refere-se a vários aspectos, reunidos em categorias a posteriori a partir das respostas dadas
às perguntas abertas, que permitem conhecer os obstáculos que os professores enfrentam
em seu dia a dia. Há um significativo predomínio de dificuldades relacionadas aos alunos
(534 problemas apontados) e suas famílias (370 problemas).
Tabela 3 – Grupos de sete problemas e dificuldades enfrentadas pelos professores.
Problemas
Dificuldades
Têm
Problemas
Não Têm
Problemas
Não
Respondeu
197
4
18
Problemas (Freq.)
Problemas em Relação a:
534
Alunos
343
Saúde no Trabalho
148
27
44
323
Colegas
141
36
42
182
Relacionamento na Escola
94
57
68
370
Família de Alunos
178
14
27
287
Execução do Trabalho
146
32
41
167
Recursos para o Trabalho
112
68
30
O grupo de dificuldades relacionadas a recursos e materiais no trabalho foi o que teve
a frequência maior de professores (68) que informou não enfrentar tais obstáculos. Em
sentido oposto, poucos (4) foram os que disseram não enfrentar problemas relacionados
aos alunos. Por sua vez as dificuldades ligadas a “relacionamento na escola” tiveram
respostas na categoria “não respondeu” superiores a “não têm problemas” neste item.
Aletheia 37, jan./abr. 2012
185
Mesmo que a quantidade de problemas indicados em relação a este aspecto tenha sido
o menor de todos (94), isto nos faz pensar nos receios que muitos docentes têm em se
expressarem de maneira objetiva, de tal modo que isso poderia revelar algum tipo de
tensão ou conflito nas relações profissionais, colocando-os em posições frágeis nas relações
hierárquicas e de poder, por isso talvez muitos preferem “não responder”.
As dificuldades e/ou problemas enfrentados em relação aos alunos foram indicadas
quanto a três dimensões: a) problemas na relação alunos e sua família; b) ao próprio
comportamento e desempenho dos alunos, e c) problemas da escola/comunidade que
afetam os alunos (Vide Figura 1). Este é o grupo de problemas com maior indicação
(534), destacando-se aqueles relacionados ao comportamento e desempenho (387). Neste
subgrupo, os professores apontam principalmente a falta, por parte dos alunos, de atitudes
e interações adequadas e com bom controle emocional e afetivo diante de contrariedades
ou adversidades, muito mais do que os problemas relativos ao processo de aprendizagem
e aquisição de conhecimento (62).
Na relação alunos e suas
famílias: (77 indicações)
– Ausência dos pais – Desinteresse: 54
– Falta de Modelo/Referência: 13
– Desestrutura familiar/Concorrência das mídias/TIC: 10
Comportamento e desempenho
dos alunos: (387 indicações)
– Falta de disciplina e ‘boas’ maneiras: 155
– Rebeldia/agressividade; desobediência/desatenção: 136
– Falta de conhecimentos/pré-requisitos de aprendizagem/conteúdos
básicos: 62
– Baixa “inteligência” emocional-afetiva: 34
– Fatores socioeconômicos: 22
Problemas da escola/comunidade
– Falta de condições favoráveis de ensino: 20
que afetam os alunos: (70 indicações) – Falta de condições pedagógicas adequadas: 20
– Sistema educacional vigente: 8
Figura 1 – Problemas ou dificuldades enfrentadas em relação aos alunos, indicadas por 197 professores.
Os problemas relativos à Escola/Comunidade, que os professores consideram
afetar mais os alunos, derivam de: fatores socioeconômicos (pobreza, falta de condições
materiais, de higiene e alimentação; drogas e álcool;); falta de condições favoráveis de
ensino (excesso alunos em sala, falta de material/pessoal); falta de condições pedagógicas
(apoio e comprometimento político-pedagógico, autonomia escolar, acompanhamento
especializado); sistema educacional vigente (ciclos e critérios para aprovação).
Conforme se observa na Figura 2, quanto à saúde no trabalho, os professores
indicaram problemas que foram agrupados em duas subcategorias: uma relativa à saúde
física e emocional, e, outra, ligada à saúde afetada pelas condições de trabalho. Na
primeira, foram apontados problemas e dificuldades ligadas a: aspectos psicossociais e
SN (sistema nervoso) (desânimo, ansiedade, depressão, esgotamento emocional); dores
na coluna e musculares; comprometimentos nos órgãos do sentido (voz-garganta, audição,
visão); alergias e enxaquecas. Na segunda subcategoria – saúde ligada às condições de
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trabalho – foram indicados problemas ligados a: excesso de horas trabalhadas e falta
de pessoal (que geram estresse e sobrecarga física); condições precárias e insalubres
(ambiente insalubre, problemas com médicos, espaços precários, doenças infectocontagiosas no ambiente); falta de tempo (sem lazer e sem descanso); e “clima” social
negativo (muitas reclamações, desconfianças, baixo comprometimento dos funcionários
e professores).
Quanto à Saúde Física e
Emocional: (225 indicações)
– Aspectos Psicossociais e SN: 116
– Dores Corpo/Coluna/Musculares: 45
– Voz, Audição, Visão: 43
– Alergias e enxaquecas: 21
Quanto à Saúde ligada às
Condições de Trabalho:
(118 indicações)
– Excesso de horas e pouco pessoal: 38
– Condições insalubres: 54
– Sem lazer/tempo: 15
– “Clima” social negativo: 11
Figura 2 – Problemas e dificuldades ligadas á saúde no trabalho, indicadas por 148 professores.
As dificuldades e/ou problemas enfrentados pelos professores em relação aos
seus colegas de trabalho (vide Figura 3) foram reunidas em quatro subcategorias:
desunião e desrespeito (enfatizando as competições desleais, individualismo, baixa
solidariedade, falta de ética e responsabilidade, incompreensões e injustiças nas
interações); desinteresse e insatisfação (lamúrias e desânimos, baixo envolvimento
e compromisso com situações escolares); ciúmes/inveja e fofocas (falta de aceitação
às várias, disputas pessoais e discórdias, “muita convivência de mesmo “gênero”
(sic)); e estresse físico-emocional (decorrente das doenças e afastamentos dos
colegas que produz sobrecarga e acúmulo de aulas com substituição dos que estão
em exercício).
Desunião e Desrespeito: 235 indicações
Desinteresse e Insatisfação dos colegas: 42 indicações
Ciúmes/Inveja e Fofocas: 41 indicações
Estresse Físico-Emocional provocado pelos colegas: 5
Figura 3 – Problemas e dificuldades em relação aos colegas de trabalho, indicadas por 141 professores.
Já em relação aos problemas e dificuldades existentes nos relacionamentos
dentro da escola (vide Figura 4), os professores indicaram os 182 aspectos distribuídos
nas seguintes categorias: falta de valores e ética (individualismo, baixo compromisso,
desrespeito, competição desleal); falta de espírito de equipe (falta de união e
cooperação, partidarismo/facções, baixa colaboração); falta de tempo/interesse e
comunicação (poucas oportunidades criadas para compartilhar atividades, falta de
perspectivas no trabalho, problemas de comunicação/diálogo); déficits nos planos
pedagógicos (falta de professores, de planejamento metodológico, gerando estress);
e abuso de poder.
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Falta de valores e ética: 71 indicações
Falta de tempo/interesse e diálogo entre colegas: 38 indicações
Déficits dos planejamentos pedagógicos: 19 indicações
Abuso de poder e hierarquia: 2 indicações
Figura 4 – Problemas e dificuldades existentes nos relacionamentos dentro da escola, indicadas por 94
professores.
Como quinto grupo de dificuldades e problemas, apontado por 178 professores,
relativo à família dos alunos, e refletindo nos comportamentos destes, foram agrupados
nas seguintes categorias: falta de acompanhamento escolar (com 118 indicações
– ausência de: diálogo e comunicação, tempo para conversas, de apoio/incentivo,
interesse); falta de compromisso e limites dos pais (com 85 indicações – expressada
em baixo compromisso com as atividades escolares, pouca responsabilidade diante dos
prazos e pouca disciplina e limites no âmbito familiar); negligência e abandono (com
60 indicações – permissivos, esquecem crianças na escola, negligentes); desvalorização
/desrespeito dos professores (com 43 indicações – desrespeito, colocam alunos contra
docentes, responsabilizam professores por tudo, sem ética); famílias desestruturadas
(com 38 indicações – famílias instáveis, com drogas e violência); problemas econômicoculturais (com 26 indicações – pobreza, falta de higiene, alimentação, valores e cuidados
básicos de sobrevivência).
Os professores indicaram 287 dificuldades que interferem na execução/
desenvolvimento do seu trabalho na escola, referentes ao sexto grupo de obstáculos
vivenciados (vide Figura 5).
Condições Físico-Estruturais Deficitárias: 84
Más Condições Físico-Emocionais: 53
Excessivas Exigências Humanas/laborais: 44
Julgamentos Negativos: 35
Problemas com Alunos: 39
Dificuldades com Secretarias: 32
Figura 5 – Problemas e dificuldades que interferem na execução e desenvolvimento do trabalho docente,
indicadas por 146 professores.
Esses obstáculos foram agrupados nas seguintes categorias: condições físicoestruturais deficitárias (falta de materiais básicos, pouco/ruim espaço físico, excesso de
alunos, tecnologia deficiente); condições físico-emocionais (cansaço, ansiedade, estresse,
falta de apoio e valorização); exigências humanas e laborais (falta de professores e
tempo, baixos salários, capacitação exigida); julgamentos (opiniões negativas, críticas,
cobranças); problemas com alunos (relacionamento, interação e desrespeito); dificuldades
com secretarias(filosofias de ensino, burocracia).
Quanto às dificuldades e problemas ligados aos recursos necessários para o seu
trabalho (vide Figura 6), os professores apontaram 167 aspectos que se referem a: falta
de materiais e infraestrutura (escassez de materiais, equipamentos, verba, espaço);
problemas de uso/zelo dos materiais (acesso difícil, demora na aquisição, falta de
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cuidado no manuseio, equipamento estragado, roubo de equipamento); falta de apoio
(falta de auxiliares, de tempo e apoio pedagógico), utilização dos próprios recursos (uso
de equipamentos pessoais, trabalha com o que existe).
Falta de Materiais e infraestrutura: 109
Mau Uso e Pouco Zelo dos Materiais/Equipamentos: 36
Falta de Apoio Logístico e Pedagógico para o trabalho: 10
Utilização dos Próprios Equipamentos (pessoais) na escola: 12
Figura 6 – Problemas e dificuldades relacionadas aos recursos necessários para o trabalho docente, indicadas
por 112 professores.
E o futuro?
Os planos profissionais (250 indicações) de futuro dos docentes situam-se em
cinco categorias: realizar estudos para se aprimorar e/ou ter ascensão profissional; buscar
trabalho em outra área; continuar trabalhando como professor; atingir reconhecimento
e valorização profissional; aposentadoria (Figura 7). Da totalidade de 219 docentes, 26
deles não indicaram nenhum projeto ou plano profissional para o futuro.
Estudar: 151 indicações
Cursar Mestrado/Pós-Graduação: 93
Outra Graduação: 19
Curso de aperfeiçoamento/Aprimoramento: 39
Trabalhar em outra área: 36
Continuar como professor(a): 15
Ser reconhecido(a)/realizar-se: 40
Aposentar-se: 8
Figura 7 – Projetos profissionais para o futuro indicados pelos professores.
Com relação aos sonhos, o relato dos docentes distribui-se desde indicar aspectos
pessoais como uma melhoria de função e trabalho, até um desalento e certo desespero
por sair, como fruto da desvalorização que a profissão docente tem tido, passando por
desejos relacionados a condições objetivas e razoáveis de trabalho ou alguns desejos
´românticos´ com a profissão.
Algumas verbalizações, fornecidas pelos docentes nas respostas às perguntas abertas
no questionário, ilustram isso:
“Gostaria de ter salário mais decente e fidedigno ao que tenho trabalhado”
(professora, 45anos),
“Quem sabe, abrir uma pré-escola” (professora, 27 anos)
“... realizar um projeto com crianças em minha chácara. Vai se chamar “xxx”,
meio ambiente e educação” (professora, 41anos)
“Conseguir ensinar alunos que tenham menos problemas disciplinares. O meu
sonho é ser um professor que orienta e ensina usando as tecnologias do momento:
computador em sala de aula” (professor, 31 anos)
“…ajudar a ter uma sociedade mais participativa, educada e responsável pelos
seus atos. Liberdade, respeito e paz’” (professora, 59 anos)
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“Que os alunos da escola pública tenham mesma qualidade de ensino da escola
particular. Sou uma idealista sonhadora” (professora, 60 anos)
“…queria ter turmas menores” (professor, 35 anos)
“Passar para pedagoga” (professora, 33 anos)
“Meus sonhos no magistério foram morrendo aos poucos devido à forma como
os profissionais vêm sendo tratados pela sociedade de uma maneira geral”
(professora, 45 anos)
“Deixar de ser professora o mais rápido possível! Urgência! Nunca mais mesmo,
quero cogitar em ser professora!” (professora, 29 anos)
“Um dia trabalhar com alunos mais envolvidos, interessados, respeitadores e em
um ambiente harmônico (bonito)” (professora, 37 anos)
Os projetos pessoais (256 indicações) que os docentes têm para si próprios situamse em quatro categorias: âmbito familiar (desde constituir família até dar segurança);
segurança material-financeira (de bens, moradia e aposentadoria); saúde (cuidados e
qualidade de vida); e realizar outros cursos (como hobby). (Vide Figura 8).
ÂMBITO FAMILIAR (132 indicações):
Construir Família: 35
Estar/Viajar com Família-lazer: 74
Garantir Estudos/Formação aos Filhos: 23
SEGURANÇA MATERIAL-FINANCEIRA: (80 indicações)
Garantia de Moradia Própria: 63
Segurança de Aposentadoria: 17
SAÚDE: (32 indicações)
Cuidados de Saúde no Cotidiano: 20
Melhorar Qualidade de Vida: 12
REALIZAR OUTROS CURSOS: 12 indicações
Figura 8 – Projetos Pessoais para o futuro indicados pelos professores.
Discussão
Professores por um fio…?
Neste momento, podemos iniciar algumas reflexões sobre as dimensões
psicossociais que se expressam no cotidiano da vida dos professores. Depreende-se
que esta profissão, também, é vista pelos próprios professores como estando imbuída
de “características humanitárias, altruístas”, parecendo depender muito mais da
dedicação e do gosto ou vocação que têm por ela, de tal modo que isto lhes daria força
e coragem para enfrentar o dia a dia. Isso em parte pode dar um certo caráter sacerdotal
à profissão, podendo contribuir para desfocar outros aspectos que são importantes para
a construção de uma prática profissional e seu sucesso, e com isso gerar processos de
naturalização que podem contribuir para posturas fatalistas e pouco coletivas em uma
perspectiva comunitária. Estes são exemplos daquilo que, no campo da psicologia
social comunitária e da psicologia social da libertação, tem sido chamado de processo
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de naturalização da vida cotidiana (Alfaro, 2012; Freitas, 2008, 2012; Montero, 2003;
Montero & Serrano-Garcia, 2011; Martín-Baró, 1989).
Considerando-se as falas dos docentes, em relação aos vários aspectos, poderse-ia dizer que, mesmo antes dos desafios relacionados a como fazer seus alunos
aprenderem, interpõem-se, no seu cotidiano, problemas anteriores que estão na base
das relações e interações humanas, cuja condição básica seria necessária para qualquer
aprendizagem. Ou seja, as dificuldades que enfrentam quanto aos comportamentos e
posturas “inadequadas” e “inadmissíveis” de seus estudantes revelam um importante
entrave em seu cotidiano. Esse entrave contribui, muitas vezes, para (re)criar formas
de desalento e descrença no “fazer docente” – como um fazer psicossocial fatalista
(Martín-Baró, 1987, 1989) – cujo reflexo, lamentavelmente, abre a porta para
formas de adoecimento psicossocial na vida desses profissionais. Novamente, nos
deparamos com condições facilitadoras para que se reinstaure, assim, um perverso
círculo vicioso entre: essa vida docente que “se naturaliza” (como uma sequência de
sacrifícios e paradoxos, necessários de serem vividos), as concepções fatalistas que
fornecem algum parâmetro de referência (de que nada poderá mudar, restando um
certo “acostumar-se” com esse “caminho”), a crença na imutabilidade histórica (visto
que a vida dos professores “é assim em todos os lugares”), e o deparar-se com dilemas
e paradoxos cotidianos (percebidos nos avanços de aprendizagem em seus alunos
“apesar de tudo”, e no envolvimento afetivo-emocional com sua práxis cotidiana
“que justificaria o sacrificar-se”) (Freitas, 2008, 2012; Montero, 2003;Martín-Baró,
1987, 1989) .
Os problemas que afetam a saúde dos professores e são derivados, especificamente
dos aspectos psicossociais e dos reflexos no sistema nervoso (116 indicações), têm
grande importância que quase se equiparam aos problemas ligados às condições
objetivas de trabalho. Isto poderia significar mais uma vez que algumas dificuldades,
(como a falta de condições estruturais e objetivas) para o desenvolvimento do trabalho
docente, não chegam a se constituir em entraves sérios e impeditivos, visto que para
os professores as condições de dimensão subjetiva e psicossocial têm uma maior
significação. Isto aponta para a necessidade de uma análise histórico-dialética, que
identifique as contradições histórico-sociais que se refletem na vida das pessoas, se
pretendemos obter subsídios para pensar em propostas de intervenção comunitária
(Montero, 2003). Uma consideração a fazer é a de que não estamos, aqui, defendendo
uma precariedade nas condições de trabalho dos professores, já que estes conseguem
fazer “verdadeiros milagres” para atingirem seus objetivos. Pretende-se sim, destacar
este lado da força e da criatividade do trabalho cotidiano dos docentes, que inúmeras
vezes atingem seus resultados mesmo diante de grandes adversidades. Como bem
sabemos, há décadas esta profissão constitui-se em um grande baluarte de resistências
e de enfrentamentos na vida cotidiana (Freitas, 2003, 2007; Guzzo, 2005; Penteado &
Guzzo, 2010). Outra consideração refere-se ao fato de que as dimensões psicossociais,
que atravessam a vida dos docentes, são aspectos relevantes que deveriam ser enfocados
seja na formação desses profissionais, seja no planejamento e implementação de políticas
públicas, que poderiam reverter em novas formas de planejamento das condições
cotidianas de trabalho. Isso poderia contribuir para que as formas de superação e
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191
resistência às adversidades não ficassem dependendo, quase exclusivamente, das ações
e posições dos professores, como numa atitude individual, solitária e corajosa (Freitas,
2003, 2007; Montero, 2007).
Os professores referem-se a vários problemas (em relação aos colegas ou a outros
problemas, de modo geral) que emergem das interações, nem sempre produtivas e
saudáveis, havendo situações de uma certa “ animosidade” não declarada, já que relatam
não haver confiança, união e nem cuidados éticos no trato interpessoal. Parece haver uma
situação paradoxal, visto que seria compreensível se os professores estivessem inseguros
em seu emprego, de tal modo que teriam de disputar por espaços e por sobrevivência. No
entanto, como é um emprego público isto não acontece e não há um risco forte de perda
de emprego. Entretanto, outras dimensões das relações de trabalho emergem e parecem
acirrar-se nas interações professor-professor e professor-condições da escola, que se
expressam em situações como:
a) a falta de docentes (decorrente de um quadro escasso, professores que vão
adoecendo e/ou vão se intimidando com as inseguras condições de trabalho diário e
depois licenciam-se ou pedem remanejamentos de escola) acaba pressionando aqueles
que permanecem no exercício das suas atividades;
b) existe pouca participação em grupo e/ou sindical dirigida a interesses coletivos
ou da categoria;
c) o excesso de tarefas e trabalho traz um subproduto “interessante” para a não
união e estabelecimento de parcerias e solidariedades que revertam para todos, já que os
docentes ou estão exaustos ou têm de deslocar-se rapidamente para a outra escola, na 2ª
ou 3ª jornada de trabalho, portanto pouco tempo há para discussões coletivas;
d) a insegurança, as ameaças fora e dentro da sala de aula, o não envolvimento
das famílias e ainda a cobrança por indicadores de “excelência” educacional colocam de
novo o docente na condição vulnerável.
Considerações finais
Todos estes aspectos, numa interação intensa e cotidiana, podem fazer com que
qualquer personagem, participante desta dinâmica, transforme-se em potencial disputa
por alguns parcos benefícios, como horários e aulas melhores, salas e espaços de trabalho,
horários-atividade e reuniões de colegiado, e aproveitamento escolar das turmas como se
isso, por si só, indicasse a (in)eficiência e (in)competência do professor. Cria-se, assim,
uma armadilha psicossocial muito perversa que fragiliza as relações interpessoais e
legitima um trabalho a ser feito, na maioria das vezes de modo solitário e no limite da
exaustão psicológica, social e laboral. Some-se a isto, ainda, o fato de que tais condições
favorecem e fortalecem a criação de explicações naturalizantes e fatalistas para as
dificuldades e insucessos, criando círculos viciosos de visões desalentadoras quanto à
possível mudança e melhoria em sua vida e trabalho. Como já mencionado, deparamonos com um importante entrave à realização de trabalhos de intervenção comunitária
no contexto educacional. (Freitas, 2007, 2008, 2012; Montero, 2003; Martín-Baró,
1987, 1989; Rebellato, 2009). Isso vai aparecer, por exemplo, quando os professores (e
outros também) não só não acreditam ser possível mudar, como também colaboram para
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reforçar visões fatalistas junto aos alunos e colegas. Agrava-se a situação – aumentando
a distancia para a realização de projetos e propostas coletivas e comunitárias – quando o
individualismo e egoísmo são fortalecidos e valorizados por posturas “que deram certo”, já
que “cada um cuidou do que é seu sozinho”. Configura-se, assim, o desafio aos trabalhos
comunitários: como romper com este círculo de fatalismo-descrença no comunitário?
E como fazer com que as pessoas (e professores) acreditem em um projeto coletivo e
comunitário de formação cidadã e mais digna no cotidiano?
Mesmo havendo a indicação de uma série de problemas relativos à família dos
alunos, com fortes impactos na vida destes – como pais negligentes, pais que desrespeitam
os professores, ausência no acompanhamento e apoio aos filhos, etc. – e que podem tornar
o trabalho dos professores mais árduo ainda, estes profissionais não deixam de manifestar
uma grande preocupação com a vida de seus alunos, com as condições nas quais vivem e
como isso tudo afeta o seu desenvolvimento e aprendizagem na escola. Mesmo podendo
parecer uma situação por demais delicada e difícil, a persistência dos docentes nesta
preocupação parece apontar para uma crença de que algo deve e pode ser feito. Novamente
emergem considerações sobre a importância de serem agregados conhecimentos e práticas
oriundas do campo dos processos psicossociais, durante a formação destes professores,
para que possam instrumentalizar-se com algumas estratégias de intervenção e participação
comunitária. Esta poderia ser uma contribuição, ao menos para se evitar explicações
legitimadoras e fatalistas, assim como encontrar alternativas para ações grupais pró-ativas
dentro da escola guiadas por uma proposta coletiva e comunitária.
Quando avaliamos as diferentes dificuldades enfrentadas pelos docentes, pode-se
dizer que o tornar-se professor, na prática diária, apresenta-se muito difícil ao terem
de lidar com várias condições contrárias e adversas, muitas das quais não são de sua
responsabilidade e atribuição. Estas condições concentram-se em aspectos físicos e
estruturais que em nada ajudam a atuar como professor, ou seja, o espaço físico é ruim e
precário, há um excesso de alunos em sala, e faltam equipamentos ou não funcionam, e a
tecnologia é deficiente. Portanto, o ser professor acaba, em grande medida, restringindose ao “aparato” físico-corpóreo-cerebral do próprio professor, que ainda solapado pelas
pressões de ordem psicológica (como as fofocas, julgamentos, críticas e cobranças, entre
outros) vê-se sempre como numa linha de front, onde a cada dia novas e desafiadoras
experiências podem se configurar. Ele(a) sustenta-se, então, no seu cotidiano e a cada
dia…por um fio! Apesar disso, continuam a buscar alternativas, mesmo que possam
ser pontuais e baseadas em recursos individuais e próprios. Todavia, destacar o aspecto
positivo disto não pode servir para criar conformismos e nem para aceitar esta precarização
das condições de trabalho e de vida. Talvez a possibilidade de construção de projetos
comunitários a partir de dentro da escola possa ser uma possibilidade de mudança em longo
prazo. Para isso, necessário se faz o envolvimento de todas as instâncias educacionais e
pedagógicas nessa construção.
Olhando o futuro que os docentes projetam para si, parecem ser planos imediatos
(dirigidos para a realização de estudos) ligados a alguma capacitação e aprimoramento.
Isto talvez esteja ligado ao fato de que eles acreditam em si próprios e em suas ações no
cotidiano escolar, como fatores essenciais para a resolução dos problemas que vivem.
E, nesse sentido, o fato de poderem estudar e se aprimorar contribuiria para encontrar
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estratégias de enfrentamento dessas dificuldades, gerando soluções que reverteriam de
modo positivo para a sua prática profissional como docentes. Embora a continuidade
na profissão, como docentes, tenha aparecido pouco, superando apenas a opção de
se aposentar, percebe-se que os professores ainda colocam dentro de seus planos
profissionais, mesmo que de modo indireto, alternativas ligadas ao trabalho e à prática
docente ( como aprimorar-se dentro da temática da educação). Isto revela, assim, um
forte envolvimento com seu trabalho, independentemente dos sucessos e fracassos, e dos
sentimentos de satisfação ou de desalento que possam ter em seu trabalho. Outra razão
para desejarem estudar mais no futuro poderia estar na direção de aumentar as chances
de melhoria salarial, seja dentro do campo da educação e ensino em que se encontram,
seja em outro, caso se mudem para outra área.
Estes aspectos foram nos indicando os dilemas e paradoxos que os professores vivem
em seus cotidianos, ora percebendo dimensões positivas que chegam a lhes dar mais alento
para o trabalho, ora identificando aspectos difíceis, dolorosos e até aversivos a ponto de
quase se “desesperarem” e desejarem sair, mudar ou se afastar. Ao mesmo tempo, mesmo
em situações dolorosas, parece haver uma constante que se refere ao fato de estarem
buscando, de modo contínuo, meios e recursos para “fazerem os alunos aprenderem” (sic)
e melhorarem suas vidas. Muitas vezes, mesmo estando “por um fio”, em suas vidas e seus
trabalhos, chegando próximos a sentimentos de desistência, de desalento, de descrença,
ainda assim acreditam e buscam outras formas, mesmo que pequenas, de resolução e
melhoria. Parece, então, que este “fio” pode ser de aço! Entretanto, se assim for, isto de
modo algum, pode ser utilizado para justificar e legitimar formas de precarização e de
aceitação de situações indignas e injustas, vividas no cotidiano das pessoas. Ao contrário!
(Martín-Baró, 1987; Freitas, 2008; Rebelatto, 2009).
Buscou-se, aqui, dar voz a estes docentes e, ao fazer isto, foi possível refletir sobre
os impactos na vida cotidiana destes profissionais, empregando-se alguns aportes da
psicologia social comunitária visando desnudar os processos de naturalização que podem
enfraquecer a construção de redes comunitárias e processos de mudança no dia a dia.
Nesse sentido, a discussão sobre o cotidiano docente, tomando-o como ponto de partida,
buscou tornar visíveis caminhos para possíveis projetos de participação comunitária dentro
do contexto educacional, baseados em redes de relações mais solidárias e humanas na
própria escola (Freitas, 2007, Martin-Baró, 1987, 1989). Com isto, talvez seja possível
subsidiar formas de romper com o “processo adaptativo e domesticador presente nas
relações” (Guzzo, 2005) cotidianas, que tanto têm contribuído para esta condição de
mal-estar e sofrimento docente.
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_____________________________
Recebido em agosto de 2012
Aceito em setembro de 2012
Maria de Fatima Quintal de Freitas – Professora Associada do Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutora em Psicologia Social pela PUC-SP e Pós-Doutora
em Psicologia Comunitária pelo ISPA-Lisboa e Universidade do Porto, Portugal.
Lygia Maria Portugal Oliveira – Professora do curso de Psicologia da Faculdade de Administração, Ciências
Educação e Letras (FACEL). Mestre em Educação pela UFPR.
Endereço para contato: [email protected]
196
Aletheia 37, jan./abr. 2012
Aletheia 37, p.197-211, jan./abr. 2012
Treinamentos corporativos, qualidade de vida e saúde
do trabalhador1
Fabio Scorsolini-Comin
Rosalina Carvalho da Silva
Leandro Gilio
Resumo: O objetivo deste estudo foi investigar a qualidade de vida de alunos de dois cursos
de pós-graduação na modalidade a distância, funcionários de uma instituição bancária do setor
público. Trata-se de um estudo exploratório e transversal, com método misto. Os 245 participantes
responderam a um instrumento semiestruturado, por meio do qual se observou que os alunos,
apesar da dedicação diária apregoada pelo curso, viram neste uma possibilidade de apropriação
de conhecimentos e possibilidade de desenvolvimento profissional. Alguns relataram que o ritmo
do curso, aliado ao trabalho diário, foi um fator de sobrecarga, o que interferiu na diminuição da
qualidade de vida no período do curso e diminuiu o rendimento e o aproveitamento nos estudos.
Destaca-se a necessidade de que os cursos a distância possam se ajustar às necessidades de trabalho
dos alunos, na medida em que a dupla jornada é uma realidade cada vez mais presente no contexto
brasileiro.
Palavras-chave: Qualidade de vida, educação, saúde do trabalhador.
Corporative training, quality of life and worker health
Abstract: The aim of this study was to investigate the quality of life among students of two courses
of e-learning postgraduate distance, employees of a public sector bank. This is an exploratory and
cross-sectional study, with quantitative and qualitative method. The 245 participants answered
a semi structured instrument, by which it was observed that students, despite the daily devotion
preached by the course, saw it as a possibility of appropriation of knowledge and opportunity for
professional development. Some reported that the pace of the course, coupled with daily work, was
an overload factor, which interfered with decreased quality of life as well as them performance and
harnessing of the studies. It is noteworthy the necessity of the courses of e-learning postgraduate
distance in being adjusted to the students working necessities, considering the double journey as
a even more present reality in Brazilian context.
Keywords: Quality of life, education, occupational health.
Entrenamiento corporativo, calidad de vida y salud del trabajador
Resumen: El objetivo de este estudio fue investigar la calidad de vida de alumnos de dos cursos
de pos-grado a distancia, funcionarios de una institución bancaria pública. Tratase de un estudio
exploratorio y transversal, con metodología mixta. Los 245 participantes respondieron a un
instrumento semiestructurado, por lo cual fue posible observar que los alumnos, aunque tengan
dedicación diaria incentivada por el curso, vieron en ese una posibilidad de desarrollo profesional.
1
Nota. Uma versão preliminar deste estudo foi divulgada no capítulo de livro: Scorsolini-Comin, F.; Ruwer,
L. M. E. Considerações sobre o impacto de um treinamento a distância na qualidade de vida percebida por
funcionários do setor bancário, pp. 319-328. In: Lourenço, E. Â. S. et al. (Orgs.). (2010) Trabalho, saúde e
serviço social. Curitiba: CRV/Franca: UNESP/São Paulo: FAPESP.
Algunos de ellos manifiestan que el ritmo del curso, junto con su trabajo cotidiano, fue un factor
de sobrecarga. Eso contribuyó para la disminución de su calidad de vida en el periodo del curso
así como de su rendimiento académico y provecho en los estudios. Destacase la necesidad de que
los cursos a distancia puedan ajustarse a las necesidades de trabajo de los alumnos, considerandose
que la jornada dupla es una realidad cada vez más presente en el contexto brasileño.
Palabras clave: Calidad de vida, educación, salud del trabajador
Introdução
A qualidade de vida e o bem-estar psicológico são dimensões que vêm sendo
discutidas em diferentes áreas do conhecimento ao longo dos anos. Na Psicologia,
por exemplo, predominam tradições que ora se concentram nos aspectos objetivos e
observáveis do comportamento (como condições de vida e trabalho), ora se detêm nos
aspectos subjetivos, como a percepção que a pessoa tem sobre a sua satisfação com as
condições de vida. Desde a década de 1970, tem havido um movimento crescente em
torno da compreensão do que é, de fato, a qualidade de vida, notadamente no campo da
saúde. No entanto, os diferentes modos de conceituá-la têm gerado um processo complexo
que envolve as dimensões biológica, psíquica, social, cultural e ambiental (Costa, Rossi,
Lopes & Cioffi, 2008; Fleck et al., 2000, Vasques-Menezes & Soratto, 2000).
Segundo Penteado e Pereira (2007), a qualidade de vida tem sido apontada como
uma categoria analítica central para promover abordagens integradoras e interdisciplinares,
decorrente de uma construção subjetiva, multidimensional, composta por elementos
positivos e negativos. Desse modo, ainda segundo essas autoras, amplia-se o espectro de
análise dos processos envolvidos na perspectiva da ecologia humana e da investigação das
conexões entre as múltiplas dimensões da relação entre saúde e trabalho. As principais
produções científicas acerca da qualidade de vida ainda são provenientes do campo da
saúde (Costa et al., 2008; Prudente, Barbosa & Porto, 2010; Fávero-Nunes & Santos,
2010), sendo que tem crescido o número de investigações que correlacionam essa noção
ao mundo do trabalho, especificamente no campo da saúde do trabalhador (Glina, Rocha,
Batista & Mendonça, 2001; Rocha & Felli, 2004).
Segundo as definições de Minayo, Hartz e Buss (2000), a qualidade de vida é uma
noção eminentemente humana, que tem sido aproximada ao grau de satisfação encontrado
na vida familiar, amorosa, social e ambiental e à própria estética existencial. Para esses
autores, a noção pressupõe a capacidade de efetuar uma síntese cultural de todos os
elementos que determinada sociedade considera seu padrão de conforto e bem-estar. A
noção de qualidade de vida abrange muitos significados, que refletem conhecimentos,
experiências e valores de indivíduos e coletividades que a ele se reportam em variadas
épocas, sendo, portanto, uma construção social com a marca da relatividade cultural
(Rocha & Felli, 2004; Minayo, Hartz & Buss, 2000).
Para Buss (2000), a saúde e a qualidade de vida podem ser promovidas
proporcionando-se adequadas condições de vida, boas condições de trabalho, educação,
cultura física e formas de lazer e descanso. No entanto, a oferta de tais condições não
garante que as pessoas tenham, de fato, qualidade de vida. No exemplo tratado no presente
artigo, estamos tratando de pessoas com adequadas condições de vida, com trabalho,
198
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família, relações interpessoais consideradas satisfatórias e que têm acesso à educação. E
neste caso, o que seria qualidade de vida?
É nesse sentido que, aproximando a discussão da área do trabalho, a qualidade
de vida no trabalho é referida, em muitos estudos, como o maior determinante da
qualidade de vida (Haddad, 2000). A psicodinâmica do trabalho enfatiza a centralidade
do trabalho na vida dos trabalhadores, analisando os aspectos dessa atividade que
podem favorecer a saúde ou a doença. Dejours (1986) acentua o papel da organização
do trabalho no que tange aos efeitos negativos ou positivos que aquela possa exercer
sobre o funcionamento psíquico e à vida mental do trabalhador.
Nesse sentido, as organizações têm investido em programas de educação
corporativa não apenas como vantagem competitiva, mas também como uma política
de gestão que tem como um de seus focos o desenvolvimento de seus colaboradores
(Manfredi, 1999). É nesse contexto que começam a surgir programas de treinamento,
notadamente na modalidade a distância, como forma de proporcionar treinamentos
com o mesmo padrão de qualidade e com a mesma entrega de conteúdo para pessoas
dispersas geograficamente (Mcbrien, Jones & Cheng, 2009; Scorsolini-Comin, Inocente
& Matias, 2009; West & Jones, 2007). Ainda que a educação a distância (EAD)
possa flexibilizar o acesso ao conhecimento e à formação, há diferentes modelos de
treinamento que exigem maior ou menor dedicação por parte de seus participantes
(Zerbini & Abbad, 2009).
Assim, em um contexto organizacional onde avança a promoção desse tipo de
treinamento, torna-se relevante compreender de que modo os alunos desses programas
têm conjugado as dimensões do trabalho, dos estudos, da saúde e do lazer (Inocente,
Scorsolini-Comin & Matias, 2009). A partir desta contextualização, o objetivo deste
estudo foi investigar a qualidade de vida em alunos de cursos de pós-graduação in
company, na modalidade a distância, todos os funcionários de uma instituição bancária
do setor público.
Método
O estudo desenvolvido possui caráter exploratório e transversal, e foi desenvolvido
considerando aspectos quantitativos e qualitativos (método misto) de coleta, análise e
interpretação dos dados. Foram pesquisados e analisados os dados de dois cursos de
especialização, com carga horária de 400 horas, ambos na modalidade a distância e
ofertados a 1.089 funcionários de uma instituição financeira (in company).
O modelo dos cursos analisados neste estudo contava com uma sequência
programada de atividades, uma a cada dia da semana (exceto aos finais de semana).
Todas as atividades desenvolvidas a distância eram pontuadas com nota (a depender da
participação e da qualidade da mesma) e frequência. Desse modo, a cada dia o aluno
deveria desenvolver uma atividade diferente, como participar de fórum de discussão,
responder a questionários, realizar provas, ler o material didático escrito, entre outras
ações. A quase totalidade das atividades era realizada no ambiente virtual de aprendizagem,
uma plataforma organizada segundo as especificações do método do curso.
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Instrumentos
Foram utilizados os dados de um questionário semiestruturado de avaliação de
satisfação (Inocente, Scorsolini-Comin & Matias, 2009), disponibilizado em ambiente
virtual por cerca de um mês após a finalização dos cursos (disponibilizado, desta forma,
ao total do universo pesquisado, ou seja, 1.089 alunos). Foi feita uma mensagem de
sensibilização e solicitação de resposta ao questionário, a qual foi postada no ambiente
virtual de aprendizagem. Este questionário teve o objetivo de avaliar os cursos
oferecidos em suas diversas dimensões, abrangendo a maioria de suas extensões e
especificidades.
A construção do questionário abrangeu todos os aspectos dos cursos (materiais,
aulas, tutoria, professores presenciais, monitoria a distância, método, interatividades,
ambiente virtual de aprendizagem e suas ferramentas, aprendizagem na modalidade a
distância e qualidade de vida durante a realização dos cursos). O questionário foi composto
por perguntas abertas e fechadas. Nas perguntas de múltipla escolha, os respondentes
deveriam atribuir notas de 1 a 5 acerca da sua satisfação com o quesito, sendo 1 a nota
mais baixa e 5 a mais alta (maior satisfação).
Neste estudo, contemplaremos especificamente as questões relacionadas à qualidade
de vida (sete itens fechados e sete itens dissertativos). Por se tratar de um estudo
exploratório, o questionário utilizado ainda não passou por tratamento estatístico para
validação, o que será conduzido futuramente. Todos os dados estão disponíveis em um
banco de dados armazenado pelas instituições ofertantes do programa.
Participantes
Com relação ao perfil dos sujeitos pesquisados (N = 1.089), tem-se que a maioria
é do sexo masculino (66% homens e 34% mulheres), possui de 41 a 45 anos (21%
está na faixa de 41 a 45 anos; 19% de 36 a 40 anos; 17% de 46 a 50 anos; 16% de 31
a 35 anos; 15% com mais de 50 anos; e 12% de 25 a 30 anos de idade), é casada (70%
casados e 30% solteiros) e não possui filhos (36% não possuem filhos; 29% possuem
dois filhos; 19% possuem um filho; 13% possuem três filhos e apenas 3% possuem
mais que três filhos). Em relação à distribuição geográfica desses alunos, a maioria é
da região sudeste do Brasil (74% são do sudeste; 12% da região norte; 8% do sul; e
6% do nordeste).
Em termos de formação desses alunos durante a graduação, as áreas de maior
destaque são: Administração, Contabilidade, Direito e Economia (24% são graduados
em Administração; 14% em Contabilidade; 13% em Direito; 8% em Economia; 6%
em Engenharia; 5% em Computação e Informática; 30% em outros cursos diversos).
Destes, responderam voluntariamente ao questionário de avaliação 245 alunos (22,49%
do universo pesquisado). Todos os respondentes eram funcionários de um único banco,
com agências espalhadas por todo o território nacional.
A análise dos dados foi de caráter quantitativo e qualitativo. Foi quantitativa
em relação à tabulação das respostas às perguntas fechadas da pesquisa, por meio de
programa estatístico SPSS versão 17.0. Assim, foi possível a construção de gráficos
para subsidiar a discussão acerca dos dados obtidos. Em relação à análise qualitativa,
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a mesma se deu a partir da pergunta dissertativa. As respostas e comentários foram
agrupados por meio de categorias, seguindo as orientações de Minayo (1999). A pesquisa
qualitativa se preocupa com o nível de realidade que não pode ser quantificado, ou
seja, ela trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores
e atitudes (Minayo, 1999). Nesta pesquisa qualitativa, o pesquisador está preocupado
com as marcas discursivas contidas no relato com o qual o indivíduo busca se apropriar
de suas experiências (Inocente, Scorsolini-Comin & Matias, 2009).
Resultados e discussão
A fim de organizar a apresentação e a discussão dos resultados, foram construídas
categorias a partir dos relatos dos respondentes: (a) Permanência da qualidade de
vida; (b) Qualidade de vida como conceito integrado; (c) Família e qualidade de vida;
(d) O treinamento como algo nocivo à qualidade de vida; (e) Qualidade de vida e
educação a distância; (f) Modelos presenciais e a distância; (g) Saúde e qualidade de
vida; (h) Relacionamentos interpessoais em comunidades virtuais; (i) Educação como
possibilitadora da qualidade de vida; (j) Melhorias na qualidade de vida.
Permanência da qualidade de vida
Em termos das percepções sobre a qualidade de vida durante a realização do curso,
alguns alunos destacaram que não houve alterações, trazendo a normalização desse
aspecto, como podemos observar nos trechos das falas dos participantes, a seguir:
(a) Não mudou praticamente nada. Manteve-se estável, tirando problemas pessoais,
não sofrendo nenhuma alteração brusca.
(b) Apenas algumas atividades foram prejudicadas. Talvez pelo fato de ter facilidade
em aprender, não tenha havido tanta interferência em minha vida pessoal. E a
interferência que houve não chegou a prejudicar a qualidade de vida.
Para esses participantes, podemos notar que houve uma adequação de suas rotinas
em termos do curso e do trabalho regular. Assim, com a adoção de rotinas de trabalho e
estudo, aliada a uma maior ou menor facilidade com o aprendizado, eles acabam tendo
uma visão neutra acerca desse processo, com pouco impacto sobre a vida profissional
e pessoal.
Qualidade de vida como conceito integrado
Em termos dessa adequação das horas dedicadas ao trabalho em banco e aos
estudos, alguns alunos consideraram a separação entre esses ambientes, pensando na
qualidade de vida como algo complexo e que não separa o indivíduo de sua atuação e de
suas dimensões constitutivas. Essa noção de integralidade e de multidimensionalidade é
contemplada nos seguintes discursos:
(a) Como a gente tem uma rotina exaustiva no banco, fazer este curso foi uma
prova de fogo, pois para fazer bem feito tive que sacrificar muitas horas que
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normalmente destinaria a passeios, lazer, etc. Mas valeu a pena, adorei o curso,
aprendi muito.
(b) Nós que trabalhamos nas agências de varejo, que estamos no front office
cotidianamente, geralmente já temos uma qualidade de vida prejudicada
pelas exigências de nosso trabalho diário. O esforço necessário para
acompanhar esse curso, a meu ver, prejudicou sensivelmente minha
qualidade de vida nesse período. Confesso que, apesar de todas as
vantagens que obtive nesse período, estou aliviado em saber que terei
um pouquinho mais de tempo para minha família e para mim mesmo e,
pasmem, para o meu trabalho.
No excerto anterior, o participante destacou que o trabalho em agência, por si só, já
prejudica a qualidade de vida em termos das horas de dedicação ao emprego, que acaba
extrapolando oito horas diárias, bem como pelo escopo do serviço prestado, com forte
carga de estresse. Sendo assim, o estudo também diário (em média duas horas) necessita
ser incorporado à jornada de trabalho, o que exacerba o impacto na qualidade de vida.
As horas de lazer dos alunos acabam sendo, deste modo, comprometida, pelo menos em
termos das atividades realizadas durante a semana. Essa rotina, sem muita possibilidade
de negociação, uma vez que o banco não libera seus funcionários para a realização das
atividades do curso, acaba sendo incorporada como a sua jornada (agora constituída por,
no mínimo, oito horas de trabalho mais duas de estudo).
Família e qualidade de vida
Nas noções que buscam delimitar o conceito de qualidade de vida e bem-estar,
frequentemente as experiências familiares são destacadas como importantes no sentido
de oferecer conforto emocional às pessoas. Nessa perspectiva, a vida em família pode
contribuir para que os trabalhadores possam ter uma diversidade de experiências
prazerosas, minimizando, por exemplo, efeitos do estresse e da competição associados ao
trabalho. A vivência familiar, a partir dos relatos dos alunos, acaba tendo que se adequar
a essa exigência de estudo e trabalho diários, como destacado na fala a seguir:
(a) Seria impossível dizer que o curso não afetou a vida dos envolvidos. A rotina
foi modificada, entretanto, não existem muitas alternativas para o indivíduo que
trabalha e precisa estudar. Apesar dessas alterações e mudanças, minha família
teve a compreensão adequada, foi preciso deixar algumas atividades de lado por
esse tempo, mas nada que tenha tornado a vida insuportável ou tenha trazido
problemas.
A partir desse comentário, podemos compreender que a família acaba ocupando
um lugar inferior, sendo priorizados o trabalho (primeiro lugar) e os estudos (segundo
lugar). Isso reflete as exigências colocadas pelo próprio contratante do curso de
especialização (o empregador), na medida em que é o aluno que deve arcar com as
despesas do curso, caso não consiga concluí-lo seja reprovado na maior parte das
disciplinas. Esse aspecto, isolado, já faz com que os alunos se dediquem aos estudos,
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uma vez que o valor integral do curso é considerado elevado. Desse modo, as concessões
em família acabam sendo ainda mais expressivas, haja vista que o meio familiar
torna-se o depositário dessa tensão no ambiente de trabalho e de educação, sendo mais
permissiva a essas exigências.
O treinamento como algo nocivo à qualidade de vida
Outros discursos sobre a interferência do curso na qualidade de vida colocam a
experiência do treinamento (ou do curso de especialização a distância) como sendo nociva,
prejudicial ao desenvolvimento e à satisfação no trabalho. Alguns desses discursos nessa
direção foram destacados abaixo:
(a) Foram muitas noites que fiquei fazendo os exercícios e provas do curso,
também tive muitas horas a menos de sono por conta da elaboração do trabalho
de conclusão de curso, sem dúvida meu tempo diminuiu durante a realização do
curso, os encontros nos sábados também foram sentidos pela minha família, mas
sem algum sacrifício não há evolução, acredito que o tempo empregado no curso
será revertido de outras formas para mim.
(b) Fiquei muito estressada, portanto, sem qualidade de vida.(...) A pior fase da
minha vida, notadamente após todo o esforço despendido ter sido jogado no lixo
com a não qualificação do TACC.
Pelo que pode ser observado nesses relatos, o curso também foi percebido como
prejudicial à qualidade de vida, segundo alguns participantes, uma vez que se tratava de
uma formação com elevado nível de exigência. No Brasil, na década de 2000 ocorreu
uma grande expansão da educação a distância, notadamente em instituições de ensino
privadas. Com o aumento da oferta de cursos (de graduação e de pós-graduação), houve
também a diminuição das mensalidades, tornando a educação a distância mais atrativa,
motivo que possibilitou a sua utilização também no cenário corporativo. Nesse movimento
de expansão, a qualidade desses cursos não foi priorizada em boa parte das iniciativas,
consideradas inferiores em relação à educação presencial tradicional. Nessa perspectiva,
os cursos a distância passaram a ser identificados como mais “flexíveis” e como mais
“fáceis” e “simples”, o que nem sempre corresponde à realidade. Um exemplo disso é o
curso aqui analisado, que seguiu uma estrutura considerada rígida e com forte exigência,
fato que contribuiu para que muitos alunos relatassem uma diminuição da qualidade de
vida no período de realização do curso.
Qualidade de vida e educação a distância
Devido ao método de aprendizagem adotado pelo curso, os alunos desenvolviam
atividades diárias e de caráter obrigatório. A maioria dos cursos realizados na modalidade
a distância no Brasil apresenta grande flexibilidade em termos de horários e de
dedicação, mas isso não significa, necessariamente, um incremento à aprendizagem
(Inocente, Scorsolini-Comin & Matias, 2009). Paira no imaginário popular que os
cursos a distância são menos complexos, sem muitas cobranças e com total flexibilidade.
Ainda que os cursos nessa modalidade diminuam ou mesmo rompam com a distância,
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isso não significa que os cursos sejam mais simples ou que não exijam a dedicação dos
alunos. Nesse sentido, no início, o curso gerou expectativas de que fosse mais flexível,
o que provocou muitas reações negativas nos alunos. No entanto, ao participarem do
processo seletivo para ingresso na especialização, os alunos conheceram as regras do
curso e as atividades que deveriam ser realizadas diariamente.
Alguns alunos trouxeram características específicas do curso na modalidade a
distância e que interferiram tanto no aproveitamento do treinamento como na própria
percepção da qualidade de vida, como podemos observar a seguir.
(a) Dado o volume de atividades concomitantes – realização do trabalho de
conclusão do curso juntamente com as matérias do curso, além da colocação do
tema de Metodologia de Pesquisa no meio do curo – eu e meu grupo sentimo-nos
prejudicados, no que desaconselharíamos a realização dos cursos a distância,
que tenham este pressuposto.
(b) A dificuldade é exatamente ter que entrar todo dia para fazer o curso, as
matérias poderiam ser acumulativas e poder fazer em outros dias. Caso deixasse
de fazer algum exercício durante um dia de semana, o mesmo teria que ser feito
durante o final de semana.
Na primeira fala, o aluno destaca a realização de diferentes atividades ao mesmo
tempo como sendo um fator de sobrecarga no curso. De fato, a realização do trabalho de
conclusão de curso, que exigia o envolvimento do aluno em um estágio prático para a
coleta de dados, acabou por sobrecarregar muitos dos funcionários, uma vez que a coleta
ocorria concomitantemente ao trabalho e à integralização dos créditos das disciplinas.
Pela fala do participante, ele destaca que não aconselharia que outras pessoas realizassem
um curso a distância a exemplo do que ele fez. O que é preciso destacar, nesse sentido,
é que existem diferentes metodologias para o trabalho em educação a distância, sendo
o curso analisado apenas a corporificação de um dos modelos possíveis. O curso, desse
modo, poderia ter desenvolvido recursos para que essa atividade fosse incorporada às já
realizadas nas disciplinas, aliviando a carga horária.
Modelos presenciais e a distância
Em função desse modelo de curso a distância, alguns alunos destacaram a
necessidade de maior liberdade para poderem organizar as suas atividades, adequandose em termos de carga horária e tipologia das atividades (mais teóricas, mais práticas,
de reflexão, de verificação de aprendizagem, entre outras), como vemos a seguir. A
comparação com o modelo de especialização na modalidade presencial (com aulas
quinzenais ao fim de semana, em período integral) também é trazida nas falas dos
participantes:
(a) Insatisfatória. Gostaria de sugerir maior liberdade na execução das tarefas
recorrentes, pois não é todo dia que o aluno tem oportunidade para acessar o
ambiente, mas como em cursos de especialização presenciais, poder-se-ia dispensar
um dia inteiro para aprendizado.
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(b) Com o hábito de acompanhar as atividades diárias, o curso interferiu pouco
na minha rotina de vida. Foi uma opção minha fazer o curso e já tinha experiência
anterior de um presencial que exigiu bastante, mas foi igualmente gratificante. A
parte mais difícil, e sacrificada, foi a que envolveu as últimas etapas da conclusão
do trabalho de conclusão de curso. Foi onde senti alteração significativa, foi a
mais cansativa e desgastante. E pesou muito o fato de ter que se concentrar no
trabalho, e não se descuidar das disciplinas em andamento.
Saúde e qualidade de vida
Utilizando o instrumento de atribuição de notas aos diferentes aspectos do curso,
no que tange à realização de atividades físicas e esportivas, 17,82% atribuíram nota
1, 15,84% nota 2, 26,73% nota 3, 24,75% nota 4 e 11,88% nota 5. Pode-se dizer que,
neste aspecto, boa parte dos alunos manteve as suas atividades esportivas mesmo com
o curso de especialização. Outro aspecto que aparece nos relatos dos participantes é
o fato de muitos deles pararam ou diminuíram a frequência de suas atividades físicas
diárias, embora não vejam nisso um fator relacionado à diminuição da qualidade de
vida, mas um movimento necessário na busca por qualificação profissional, como
observado a seguir:
(a) Parei de fazer atividades físicas (caminhadas diárias) e também tive que
abrir mão de muitas atividades de lazer nos finais de semana, férias, descanso
com a família, encontro com amigos). Não acho isso bom, mas sabia que teria
que me dedicar seriamente aos estudos quando iniciei. Além disso, estaria
gastando muito mais tempo e me estressando muito mais se os encontros fossem
presenciais.
Deve-se destacar, como fonte complementar, que pelo perfil dos alunos, tais
práticas (encontros e provas presenciais) são realizadas aos finais de semana, a cada
dois meses (não há atividades regulares do curso aos finais de semana), o que pode ter
contribuído para a obtenção de tais resultados, uma vez que a maior carga de dedicação
ao curso é durante a semana.
Em relação à interferência da realização do curso nas horas de sono dos alunos
e na consequente qualidade de vida, 34,65% dos respondentes atribuíram uma nota 3,
seguidos por 21,78% com nota 4. Juntos, esses alunos correspondem a cerca de 56%
dos respondentes. Aqui, algumas hipóteses podem ser lançadas. A maioria dos alunos
acessava o curso no período noturno, ou seja, depois do dia de trabalho. Assim, o estudo
noturno mediado pelo computador pode ter interferido negativamente nas horas de
sono dos alunos. Pela tendência das respostas, pode-se supor uma associação entre este
estudo noturno e com uso do computador e as horas de sono dos alunos.
Devido aos compromissos profissionais e rotinas de trabalho, diversos alunos
relataram na pergunta aberta que chegavam a acessar o site inclusive de madrugada
para entregar alguma atividade, uma vez que cada aula (atividade diária) se encerrava às
duas horas da manhã (prazo limite para envio de atividades/participação nas ferramentas
de interação).
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As interferências físicas no ciclo de sono e vigília em decorrência do curso foram
salientadas por alguns alunos, como podemos observar a seguir:
(a) Tive que dormir menos. Parei com minha natação e com meu curso de inglês.
O curso exigiu dedicação completa. Não tivemos apoio dos administradores
para pelo menos usufruir das duas horas de direito, para dedicação ao
estudo.
Em relação à alteração dos hábitos alimentares em termos de quantidade e
qualidade em decorrência do curso, 37,62% atribuíram nota 1, ou seja, não houve
alterações significativa nos hábitos alimentares em função do curso. Outros 19,8%
atribuíram nota 4 e 11,88% nota 5, o que pode revelar a necessidade de que ainda se
investigue melhor a questão, uma vez que as alterações mencionadas pelos participantes
nem sempre podem ser associadas diretamente ao curso. Para fazermos tal afirmação
são necessários outros delineamentos metodológicos que fogem ao escopo do presente
estudo. Deve-se destacar que a qualidade de vida concebe a pessoa enquanto uma
realidade sistêmica, ou seja, ela não é influenciada ou composta apenas pelo seu trabalho
ou pelo estudo. Uma alteração grave nos hábitos alimentares é referida por uma das
participantes, a seguir:
(a) Engordei nove quilos durante o curso, pois compensava minha ansiedade em
passar bom tempo na frente do micro “comendo”, e muito! O que contribuiu para
amenizar foi saber que o tempo de duração do curso era relativamente curto. Não
tive qualidade de vida durante esse período. As atividades diárias consumiam todo
o tempo disponível (após as 18 horas).
Relacionamentos interpessoais em comunidades virtuais
Uma característica marcante dos cursos na modalidade a distância é a formação
de comunidades de relacionamento, como o Orkut® e o Facebook®. Nesses cursos na
modalidade a distância, formam-se turmas, sendo que os alunos interagem por meio de
fóruns, chats e, presencialmente, na realização de provas. Nesse sentido, em relação à
ampliação da rede de amigos a partir da realização do curso, a maioria (34,65%) atribuiu
uma nota 5. Outros 31,68%, nota 4, e apenas 5,94% nota 1. Isso revela que o curso
coloca em interação pessoas de diferentes cidades e regiões e que são aproximadas em
função do estudo, mas também a partir das ferramentas de interação disponíveis em
meio virtual, haja vista que é um curso na modalidade a distância.
Assim, em muitas das atividades diárias, os alunos entram em contato uns com
os outros por meio de ferramentas de interação, o que possivelmente contribui para a
ampliação da rede de amigos. Embora os alunos se encontrem fisicamente apenas nos
encontros presenciais (cerca de oito encontros em um período de 18 meses), a interação
virtual acaba por aproximar realidades e romper distâncias, favorecendo a aproximação
dos alunos, as trocas de conhecimentos e de experiências, o que pode ser compreendido
como algo positivo para a qualidade de vida.
206
Aletheia 37, jan./abr. 2012
Educação como possibilitadora da qualidade de vida
Em termos da avaliação geral da qualidade de vida durante a realização do
treinamento, é sabido que todos os participantes trabalham em agências bancárias
e possuem uma rotina extenuante de trabalho. Ou seja, para a realização do curso
foi necessária uma conciliação de horários por parte do aluno, o que não implica
apenas em regulações ligadas à vida familiar e de trabalho, mas também a questões
de saúde e de lazer.
Nesse sentido, muitos alunos se mostram satisfeitos com a sua qualidade de
vida durante o período em que se desenvolveu o MBA, afirmando que o curso pouco
alterou negativamente tal situação. Tais respostas foram agrupadas sob a categoria
“Satisfatória” (39,84%), ou seja, a maioria dos respondentes. Houve registros que
mostram que a qualidade de vida durante o curso “Poderia ser melhor” (20,33%),
em função de uma maior regulação de horários e de diminuição de carga horária e
nível de exigência do curso. Outros atestaram que a qualidade de vida piorou em
comparação com antes do início do curso, ou seja, tiveram uma avaliação como
“Insatisfatória” (21,14%). E, por fim, alguns alunos se autoavaliariam “Prejudicados”
(21,14%) nesta questão.
Nesse sentido, alguns alunos destacaram uma interferência positiva da
realização do curso na qualidade de vida geral, uma vez que os novos conhecimentos
possibilitaram maior negociação interna acerca da divisão de horas dedicadas ao
trabalho, ao estudo, ao lazer e à família. Como destacado nas opiniões abaixo, o estudo
possibilitou uma seletividade nas diversas atividades do dia a dia. Aqui podemos
estabelecer um paralelo com a variável educação, uma vez que ela está diretamente
ligada à qualidade de vida em diferentes populações (Penteado & Pereira, 2007).
(a) Na minha opinião, a aquisição de conhecimentos interfere positivamente
na qualidade de vida. O conhecimento faz com que o ser humano torne-se
mais seletivo em suas escolhas.
(b) Melhorou minha qualidade de vida. Pude perceber a possibilidade
de unir diversos temas e ponderar algumas decisões, inclusive no campo
pessoal. Passei a realizar exercício diário, durante a leitura das apostilas
e das aulas a distância. Bicicleta ergométrica. Achei fantástico e obtive
ótimos resultados.
Embora o banco estimule que seus funcionários participem de cursos e
treinamentos por meio de incentivos e bolsas de estudo, a opção por um curso
de MBA, como aqui analisado, é do próprio funcionário. Sendo assim, ele tem a
possibilidade de se planejar em termos da realização do mesmo, conhecendo os
requisitos para o curso inclusive em termos de volume de atividades e de dedicação
diária. A possibilidade de estudar (em muitos casos, de voltar a estudar depois de
muitos anos) é percebida por alguns alunos não apenas como um incremento da
qualidade de vida, mas também como algo que promove a autoestima, na medida
em que possibilita novos conhecimentos, novas leituras de mundo e a adoção de
Aletheia 37, jan./abr. 2012
207
práticas mais salutares e adaptativas tanto no trabalho como na vida em geral, como
trazido a seguir:
(a) Considerando que a realização do curso foi opção minha, penso que as horas
disponibilizadas para a realização das atividades, que envolveram sacrifício de
alguma coisa, valeram a pena.
(b) O conhecimento sempre contribui para melhora de nossa qualidade de vida,
sempre apuramos mais o nosso modo de ver a vida, quando estamos em constante
aprimoramento quebrando paradigmas e transpondo barreiras. O curso melhorou
minha autoestima.
Melhorias na qualidade de vida
Ressignificando os percalços na realização do curso, alguns alunos destacaram
que a experiência de superação proporcionou a possibilidade de incremento à formação
e também em termos da vida em família, como podemos ver a seguir:
(a) Como comentei anteriormente, aconteceu tudo de uma vez só. Soube que
estava grávida quando da matrícula do curso e já tinha um bebê de um ano. Foi
complicado. Trabalhar o dia todo, longe de casa, atender trabalho, casa, marido
e depois dois filhos bebês de uma vez... Foi osso duro de roer. Pensei em desistir,
mas acho que apesar de tudo, das dificuldades, das horas de sono perdidas, dos
nervosos, das recuperações e do atraso no TACC, acredito que vou conseguir e
que valeu a pena. Agora espero a oportunidade de um mestrado.
Esta participante nos conta a respeito de um curso que ocorreu em sua vida em um
momento no qual ela acabara de se tornar mãe, tendo que negociar e conciliar não apenas
as suas atividades de trabalho, de estudo e de lazer, mas também de maior dedicação à
sua família. Assim, o curso foi “gerado” juntamente com o seu filho, fazendo com que ela
ressignificasse essa árdua experiência como algo positivo em sua vida, lançando o desejo,
inclusive, de prosseguir os seus estudos com a realização de um mestrado. Sendo assim,
o curso de especialização, ainda que exija negociação e uma complexa readequação de
rotinas e de prioridades, acaba sendo um indicador de dinamismo intelectual e promotor
de desenvolvimento para alguns dos alunos.
Ainda em termos dessa ressignificação da experiência do MBA, os alunos destacam
a oportunidade como sendo um forte incremento à formação pessoal e profissional. O ato
de estudar, muitas vezes visto como dissociado da prática de trabalho, é percebido como
um prazer, funcionando como uma pausa na rotina de trabalho e como um investimento
na carreira e no desenvolvimento dos participantes, como observado nas falas a seguir.
Nesse sentido, a experiência é percebida como recompensadora, como promotora de
bem-estar e de satisfação:
(a) Minha qualidade de vida não vem sendo das melhores. Acho que o curso
contribuiu para ajudar a melhorá-la, por meio dos amigos e da interatividade.
É um momento em que nos sentimos parte de uma elite intelectual e interagimos
com pessoas de muita capacidade. Tenho verdadeira admiração por todos os
meus colegas de curso.
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(b) Foram muitas noites e muitos finais de semana dedicados ao curso. Para mim,
no entanto, voltar a estudar é um prazer. Voltei a me sentir uma pessoa mais viva,
mais feliz. As horas dedicadas ao estudo tiveram sua recompensa.
Pelos comentários destacados, pode-se perceber que os alunos, apesar da
dedicação diária apregoada pelo curso, viram neste uma possibilidade de apropriação de
conhecimentos e possibilidade de desenvolvimento profissional. Desse modo, mesmo que
a realização do curso tenha interferido na qualidade de vida, os alunos destacaram que o
mesmo foi positivo e que os ganhos superaram os possíveis decréscimos em termos de
qualidade de vida. Neste sentido, é importante que se destaque que os alunos, ao realizar
o curso, tiveram que optar por estudar nos períodos que anteriormente eram dedicados
ao lazer e à família.
Por esses e outros relatos, pode-se notar certa prevalência de opiniões que colocam a
necessidade de que as pessoas se adéquem às exigências e às necessidades de incrementos
em formação e em termos profissionais, resguardando a saúde para outros domínios,
não sendo esta encarada como uma prioridade e condição sine qua non para uma série
de outras atividades, inclusive as profissionais e as de formação. Outro aspecto a ser
considerado, ainda, é que os alunos destacaram que as horas diárias de lazer passaram a
ser preenchidas pela realização do curso, o que, inevitavelmente, interferiu na qualidade
de vida e na dinâmica familiar dos mesmos, o que coloca a necessidade de que a carga
horária diária seja repensada pedagogicamente para futuras iniciativas com públicos em
regime de trabalho integral.
Considerações finais
Como observado no contexto de um treinamento realizado na modalidade a
distância, o conceito de qualidade de vida deve estar continuamente atrelado às mudanças
que temos observado e promovido no mundo do trabalho em sua interseção com a saúde
e a educação. A relatividade da noção deve ser dimensionada dentro de seu contexto
histórico e cultural, permitindo uma abordagem da realidade mais condizente e situada.
Como observamos nos relatos dos alunos, a realização de um curso de especialização
por meio da educação a distância desmistificou a ideia de que o programa fosse mais
flexível ou de menor complexidade, aviltando a necessidade de que esses participantes
sejam atendidos em suas necessidades de maior flexibilidade de tempo para a realização
de atividades, bem como de maior apoio (além do incentivo financeiro) da organização
contratante (no caso, o banco) no sentido de liberar os alunos-colaboradores para atividades
de campo ou de flexibilizar suas horas diárias de trabalho em dados momentos do curso
ou do treinamento.
Deste modo, a noção de qualidade de vida transita em um campo semântico
polissêmico que está aberto para ser reconstruído, recolocado e redefinido a partir de
novas leituras de mundo, de trabalho, de saúde e de educação possíveis. Pelos dados aqui
trazidos, deve-se destacar que a realização de um curso de especialização com dedicação
diária, além das horas de trabalho, possui uma repercussão particular na vida dos alunos,
o que não deve ser visto apenas em relação ao que os alunos devam fazer para se ajustar
Aletheia 37, jan./abr. 2012
209
em termos de suas rotinas e interesses, mas em termos do que podem ganhar, do que
é acrescido e modificado em termos de conhecimentos, expectativas e possibilidades.
Assim, mais do que trazer uma noção de impactos, deve-se pensar em uma intervenção
que destaque as possibilidades adaptativas juntamente com o treinamento.
Pelos dados aqui descritos, deve-se compreender que a qualidade de vida deve
abarcar o ser humano enquanto uma realidade que não deve ser decomposta em trabalho,
profissão, estudo, família e cultura, mas um todo complexo. Assim, os profissionais
que atuam na área de saúde do trabalhador devem estar preparados para lidar com esta
complexidade e dispostos para repensar o modo como as diversas atividades podem ser
conjugadas e problematizadas enquanto partes constituintes e igualmente definidoras da
identidade de cada aluno, de cada profissional e cada ser humano.
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____________________________________
Recebido em julho de 2012
Aceito em novembro de 2012
Fabio Scorsolini-Comin – Psicólogo, Mestre e doutorando em Psicologia pela Universidade de São Paulo –
USP. Professor da Universidade Federal do Triângulo Mineiro – UFTM.
Rosalina Carvalho da Silva – Psicóloga, Mestre e Doutora pela Universidade de São Paulo – USP. Professora
da Universidade de Franca – UNIFRAN.
Leandro Gilio – Acadêmico de Ciências Econômicas pela Universidade de São Paulo – USP.
Endereço para contato: [email protected]
Aletheia 37, jan./abr. 2012
211
Aletheia 37, p.212-227, jan./abr. 2012
Percepções, expectativas e conhecimentos sobre o parto
normal: relatos de experiência de parturientes
e dos profissionais de saúde
Bruna Cardoso Pinheiro
Cléria Maria Lobo Bittar
Resumo: O presente estudo objetivou conhecer as percepções, as expectativas e os conhecimentos
de puérperas em relação à experiência do parto normal, assim como os procedimentos utilizados
pelos profissionais da saúde para a humanização do parto. Foram entrevistadas 31 puérperas
que passaram pela parturição normal, na maternidade de um Hospital Público do município de
Franca. Foi aplicado ainda um questionário a 20 profissionais de saúde que atuavam no centro
obstétrico da referida maternidade. O método de análise dos dados seguiu as diretrizes da Análise do
Discurso. A experiência da parturição foi percebida pela maioria das mulheres como extremamente
dolorosa e sofrida, compensada, no entanto, pela atenção, apoio e carinho recebidos de alguns
profissionais e acompanhantes, que contribuíram para uma visão satisfatória do parto normal.
Entre os profissionais evidenciou-se dificuldade em conceituar sobre a temática da humanização
do parto. Constatou-se a importância de enfocar, sobretudo o aspecto relacional, base para uma
verdadeira prática humanizada.
Palavras-chave: humanização, parto normal, promoção de saúde.
Perceptions, expectations and knowledge about the normal delivery:
Experience reports of mothers and health professionals
Abstract: This study investigated the perceptions, expectations and knowledge of puerperal in
regarding the experience of natural childbirth, as well as the procedures used by health professionals
for the humanizing delivery. We interviewed 31 puerperal who gave birth by vaginal delivery in a
public hospital in Franca. A questionnaire was also applied to 20 health professionals who worked
in the obstetric ward of that hospital. The method of data analysis followed the guidelines of
Analysis of Discourse. The experience of childbirth was perceived by most women as extremely
painful and distressful, offset, however, by the attention, support and affection received from some
professionals and caregivers who contributed to a satisfactory view of natural childbirth. Among
the professionals was evident the difficulty in conceptualizing about humanizing delivery. It was
noted the importance of focus, especially the relational aspect, basis for a truly humane practice.
Keywords: humanizing, natural childbirth, health promotion.
Percepciones, expectativas y conocimientos sobre el parto normal: relatos
de experiencia de puerperas y e de los profesionales de la salud
Resumen: El presente estudio objetivó conocer las percepciones, expectativas y conocimientos
de puérperas em relación a la experiencia del parto normal así como los procedimientos utilizados
por los profesionales de salud para la humanización del parto. Fueron entrevistadas 31 puérperas
que pasaron por la parturición normal en la maternidad de um hospital publico del município de
Franca, SP. Asimismo fue aplicado un cuestionario a 20 profesionales de salud que actuaban em
el centro obstectrico de la referida maternidad. El método de análisis de datos siguió las directrizes
del analisis de discurso. La experiencia de parturición fue percebida por la mayoria de las mujeres
como extremamente dolorosa y sufrida, compensada, sin embargo, por la atención, apoyo y cariño
recebidos por algunos profesionales y acompañantes que contribuyeron para una visión satisfactória
del parto normal. Entre los profesionales se evidenció dificultad em conceptuar la temática de la
humanización del parto. Fue constatada la importancia de enfocar sobretodo el aspecto relacional
para una verdadera practica humanizada.
Palabras clave: humanización, parto normal, promoción de la salud.
Introdução
Que as pessoas grávidas sejam assistidas com humanidade, atenção e carinho.
Que sejam vistas em suas individualidades e não colocadas no anonimato das
estatísticas e da produção de consultas em massa.
(Maria Tereza Maldonado)
A gravidez e o parto são eventos biopsicossociais, que compõem um processo de
transição do status de mulher para o de mãe e são permeados por valores culturais, sociais,
emocionais e afetivos (Domingues, Santos & Leal, 2004).
Por muito tempo a arte de partejar foi considerada uma atividade eminentemente
feminina, realizada, tradicionalmente, por parteiras, que, através de uma cultura feminina
sobre o parto resgatavam sua individualidade e exercitavam alianças de gênero (Wolff
& Waldow, 2008).
A incorporação da prática obstétrica pelos médicos, que teve início nos séculos XVII
e XVIII, na Europa, foi afastando, aos poucos, as parteiras do cenário do nascimento
(Wolff & Waldow, 2008). Com a chegada do século XX, sobretudo após a Segunda
Guerra Mundial ocorreu um grande avanço e desenvolvimento de novos conhecimentos e
tecnologias no campo da medicina, que contribuíram significativamente para a diminuição
da mortalidade materna e infantil (Moraes, Godoi & Fonseca, 2006).
Essa série de avanços colaborou com a passagem do parto de evento familiar para
rotina hospitalar. Os médicos e seus instrumentos entraram em cena e a comunidade de
mulheres que, tradicionalmente, desenvolviam a arte de partejar foram marginalizadas,
tornando o parto um ato privativo dos médicos (Wolff & Waldow, 2008).
A institucionalização do parto substituiu o saber-poder feminino, orientado pela
intuição e pela experiência cotidiana, pelo saber-poder-fazer masculino, guiado pela
técnica, pela tecnologia e pela medicalização da sociedade (Wolff & Waldow, 2008).
De acordo com Moraes et al. (2006, p. 14), o parto hospitalar “[...] colocou a
mulher como objeto, e não como sujeito da ação durante o processo de nascimento, no
qual as ações e rotinas de trabalho são mais importantes que a mãe e seu filho e suas
ligações afetivas”.
Desse modo, se por um lado a institucionalização do parto significou um grande
avanço no que se refere à saúde da mulher, reduzindo as taxas de morbimortalidade
materna e perinatal, por outro deixou as mulheres submissas e vulneráveis ao modelo
biomédico, expondo as parturientes a procedimentos intervencionistas, invasivos e,
muitas vezes, desnecessários, que diminuem sua autonomia e participação no processo
(Schmalfuss, Oliveira, Bonilha & Pedro, 2010).
Aletheia 37, jan./abr. 2012
213
O modelo de atenção ao parto que predomina ainda hoje é, essencialmente, médico
e tecnológico, onde a gravidez é tratada como um evento médico isolado e o parto cercado
de risco potencial (Domingues et al. 2004).
No entanto, o uso irracional de tecnologia no parto levou a um paradoxo, pois é
justamente ele que impede a redução da mortalidade materna e perinatal em diversos
países (Diniz, 2005), além de contribuir com uma fragmentação da assistência à mulher
(Dias & Domingues, 2005).
Levando todos estes aspectos em consideração, foi criado um movimento
internacional de humanização do parto, visando priorizar o uso de tecnologia apropriada,
a qualidade da interação entre parturiente e seus cuidadores, assim como desincorporar
as tecnologias danosas (Diniz, 2005).
A expressão “humanização do parto” tem sido utilizada pelo Ministério da Saúde,
desde o final da década de 1990, como forma de se referir a uma série de políticas
públicas promovidas pela Organização Mundial de Saúde (OMS), pela Organização
Pan-Americana de Saúde (OPAS), pelo Banco Mundial, com o apoio de diversos atores
sociais, como ONGs e entidades profissionais (Hotimsky & Schraiber, 2005).
No Brasil, um grande passo na luta pela humanização do parto foi dada com a criação
do Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento (PHPN), instituído pela portaria
nº 569, de 01/06/2000, do Ministério da Saúde (Griboski & Guilhem, 2006).
O PHPN tem como foco principal o resgate da dignidade durante o processo
parturitivo, bem como a transformação da assistência durante a gestação, parto e puerpério,
priorizando o parto vaginal, a não medicalização do parto e a redução de intervenções
cirúrgicas desnecessárias, tornando assim, o momento do parto um processo mais ativo
por parte da mulher (Griboski & Guilhem, 2006).
O movimento pela humanização do parto propõe mudanças no atendimento ao
parto hospitalar, que incluem:
[...] incentivo ao parto vaginal, ao aleitamento materno no pós-parto imediato,
ao alojamento conjunto (mãe e recém-nascido), à presença do pai ou outra/o
acompanhante no processo do parto, à atuação de enfermeiras obstétricas na
atenção ao partos normais e, também a inclusão de parteiras leigas no sistema
de saúde [...]. Recomenda, também, a modificação de rotinas hospitalares
consideradas como desnecessárias e geradoras de risco, custos adicionais
e excessivamente intervencionistas no que tange ao parto, como episiotomia
(corte realizado no períneo da mulher, para facilitar a saída do bebê),
aminiotomia (ruptura provocada da bolsa que contém o líquido amniótico),
enema (lavagem intestinal) e tricotomia (raspagem dos pelos pubianos) e,
particularmente, parto cirúrgico tipo fórceps ou cesáreas. (Priszkulnik &
Maia, 2009, p. 81)
O conceito de atenção humanizada é amplo e possui sentidos variados. Ele envolve
um conjunto de conhecimentos, práticas e atitudes voltados para a promoção do parto
e do nascimento saudáveis e que priorizam o uso de procedimentos comprovadamente
benéficos para a mulher e o bebê, evitando intervenções desnecessárias, de forma a
preservar a privacidade e autonomia da mulher (Brasil, 2001).
214
Aletheia 37, jan./abr. 2012
Estas mudanças, além do aspecto humanitário e da melhoria da qualidade assistencial
representam uma redução de custos, como a economia em medicações analgésicas e
nos gastos relativos aos atos anestésicos, incluindo honorários médicos, materiais e
medicamentos específicos, além da economia em materiais de consumo (Priszkulnik &
Maia, 2009).
Como ressaltam Priszkulnik e Maia (2009) humanizar é verbo pessoal e
intransferível, é multiplicável e contagiante. Para a realização do parto humanizado não
são necessárias grandes transformações na estrutura hospitalar. O maior obstáculo para
sua concretização é a mudança de paradigmas na assistência obstétrica.
O presente estudo tem como objetivos conhecer a percepção de puérperas, sobre a
experiência do parto normal, buscando-se, também, saber qual o tipo de informação que
elas dispunham sobre a parturição, puerpério e sobre seu direito de ter acompanhante
no parto; e conhecer quais os procedimentos que os profissionais da área da obstetrícia
– médicos obstetras, anestesistas, enfermeiros(as) e técnicos em enfermagem realizam
para a humanização do parto normal, e o que entendem sobre humanização à assistência
no parto.
Método
Participaram desta pesquisa 31 puérperas, entre 16 e 40 anos, que passaram pela
parturição normal, sendo 12 primíparas e 19 multíparas e 20 profissionais de saúde (9
médicos obstetras; 2 anestesistas; 4 enfermeiros e 5 técnicos de enfermagem).
As participantes foram entrevistadas, e constatou-se que a maioria era casada (18)
ou viviam em união estável (13) e tinham Ensino Médio Completo (17). As atividades
profissionais desempenhadas pelas participantes foram variadas: do lar (11); indústria
calçadista (6); estudante (4); vendedora (2); auxiliar de limpeza (2); manicure (1); designer
(1). Quatro entrevistadas estavam desempregadas.
A maioria das crianças nascidas, no período em que foi realizada a pesquisa, foi do
sexo masculino (59%). A média de filhos nascidos por participante foi de 2,7.
Entre os médicos (obstetras e anestesistas), o tempo de experiência na obstetrícia
variou de um à 21 anos. Entre os profissionais de enfermagem (enfermeiros e
técnicos em enfermagem), o tempo de experiência variou de 7 meses à 15 anos. A
maioria dos profissionais sempre trabalhou nessa área (8 médicos e 6 profissionais de
enfermagem).
Segundo a percepção dos médicos (obstetras), eles acreditam realizar, em média,
15,5 partos por semana, sendo destes 7,6 partos normais. Na mesma linha de raciocínio,
os enfermeiros disseram assistir, em média, 45 partos normais por semana. A média de
partos realizados ao mês, neste hospital é de 400, sendo 196 partos normais.
O estudo foi realizado entre os meses de novembro de 2010 a abril de 2011, com
31 mulheres que tiveram parto normal, numa maternidade de um Hospital Público do
município de Franca. Neste mesmo período, aplicou-se um questionário estruturado
aos profissionais de saúde que trabalhavam no centro obstétrico do hospital onde foi
desenvolvida a pesquisa, (médicos obstetras, anestesistas, enfermeiros e técnicos em
enfermagem).
Aletheia 37, jan./abr. 2012
215
Sabendo que a vivência da parturição é única para cada mulher, independentemente
do número de partos que tenha vivenciado, este trabalho foi proposto, no intuito de
resgatar a percepção delas em relação à experiência do parto normal, buscando saber
o que efetivamente elas vivenciaram. Para isso, foram abordadas como temáticas na
entrevista semiestruturada com as puérperas: a experiência de parto normal; os tipos de
orientação profissional recebidas, incluindo orientações durante a gestação, para saber
lidar com a dor e o desconforto e sobre o direito de ter um acompanhante no parto; o uso
de tratamentos alternativos para alívio da dor.
O questionário aplicado aos profissionais de saúde consistiu de um instrumento
mais estruturado, sendo incluídas questões sobre o uso, vantagens e inconveniências
da analgesia do parto normal; o que se entende por humanização e parto humanizado;
quais procedimentos o profissional comumente adota para tornar o parto um momento
menos desconfortável para a parturiente; o conhecimento do profissional a respeito do
Programa Nacional de Humanização de Parto; e os aspectos que julga necessários para
garantir um parto humanizado.
Os aspectos éticos relativos à pesquisa com seres humanos atenderam às diretrizes
da Resolução nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. O projeto foi submetido ao
Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de Franca, recebendo aprovação (protocolo
nº 0722/10) e também ao Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital onde foi desenvolvida
a pesquisa, sendo aprovado sob o protocolo nº 094/2010.
As participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, sendo
realizada a entrevista após este procedimento. Para garantir o sigilo das participantes, foi
utilizado somente suas iniciais e o nome do Hospital onde foi realizado o estudo não foi
identificado. Ressaltamos que na transcrição das entrevistas mantivemos a fala original
das participantes, e por escolha nossa, evitamos a repetição da partícula sic, para indicar
incorreção da fala.
Os profissionais que responderam ao questionário o depositaram em uma urna, sem
identificação. Portanto, ao respondê-lo estavam anuindo em seus termos, não havendo a
necessidade do TCLE para este grupo.
O método de análise das entrevistas e questionários seguiu as diretrizes da
Análise do Discurso, que posiciona a relação entre participante e pesquisador numa
horizontalidade, dando a este último um destaque na possibilidade de participar não como
‘ouvinte’ apenas, mas como agente na construção de uma articulação entre a linguagem
e a sociedade, entendendo que é impossível romper a linguagem do social (Rocha &
Deusdará, 2005).
As falas das participantes foram categorizadas por núcleos de sentido, trabalhandose com “recortes discursivos”, onde se representam linguagem e situação. Neste modelo,
a linguagem é estudada não apenas enquanto forma linguística, mas também enquanto
forma material da ideologia, considerando que o conhecimento produz relações de força
e de poder (Caregnato, 2006).
Nesse sentido, os elementos básicos da análise qualitativa são ideias e as palavras
que visam à descoberta, descrição, compreensão e interpretação partilhada. O pesquisador
participa do processo e o todo é mais que as partes, identificando o que os sujeitos têm
a dizer sobre determinado assunto (Turato, 2003).
216
Aletheia 37, jan./abr. 2012
Como o questionário aplicado aos profissionais de saúde incluía alguns resultados
quantitativos, optou-ser por apresentá-los de forma gráfica. O mesmo procedimento não
foi adotado com as puérperas, pois o instrumento utilizado com estas participantes foi de
caráter predominantemente qualitativo, baseado em recortes discursivos e na elaboração
de categorias de sentido. Ressaltamos que as falas foram transcritas da maneira que foram
pronunciadas, guardando-se a originalidade das mesmas.
Resultados e discussão
O parto normal sob o olhar das parturientes
A experiência da parturição, para a grande maioria das mulheres entrevistadas
configurou-se como uma vivência marcada pela dor, pelo medo da dor e pelo sofrimento,
havendo grande referência à intensidade da dor, caracterizada como uma dor “insuportável”,
“inexplicável”, “horrível” e “anormal”, como é possível observar no depoimento:
Anormal (...). A dor é imensa, muito dolorosa, porque só quem teve mesmo pra te
noção dela, bem dolorosa. Pra te fala que não tem nem sentimento, é só dor que
você sente, sabia, só dor, o único sentimento que tem na hora é muita dor. (J.L.O.,
24 anos, primípara)
No discurso das mulheres, a dor e o sofrimento aparecem como aspectos inevitáveis
e inerentes ao parto normal, que se configura como uma experiência desconhecida e
imprevisível.
A percepção dolorosa tem sido uma constante nos relatos das mulheres, conforme
apontado por Barros (2011). Esta percepção se reflete na intensidade da dor, na comparação
realizada com partos anteriores e em uma atitude pré-concebida sobre a dor do parto.
Embora grande parte das mulheres entrevistadas tenha dado ênfase ao aspecto
doloroso do parto vaginal, consideraram a experiência do parto normal como satisfatória,
apesar da dor, que é “esquecida” após o nascimento do bebê: “(...)vale a pena, o bebê é
a coisa mais linda. Depois passa, pode repeti de novo o normal (risadas)” (J.L.O., 24
anos, primípara).
No entanto, para algumas das participantes, a experiência do parto normal foi
considerada traumática e elas referiram um desejo de não passar novamente por este
processo ou de não ter mais filhos:
Olha parece que, assim, agora no momento eu to com trauma. To assim, vô te falá,
se falá assim pra mim ‘se que te outro?’ Não! Nunca! Deus me livre! Né, eu não
quero. Porque eu to com trauma, até agora. (K.R.B.F., 28 anos, primípara)
A parturição pode ser vivida como uma experiência prazerosa ou traumática, sendo
que esta vivência é influenciada pelo grau de maturidade da mulher, pelas experiências
pessoais e familiares anteriores, assim como pela assistência recebida durante o pré-natal
e o parto (Nascimento, Progianti, Novoa, Oliveira & Vargens, 2010).
Aletheia 37, jan./abr. 2012
217
Outro fator que deve ser considerado como determinante na forma como a
parturição é vivida é a idade da mulher. Em função da limitação de espaço, não foi
considerado o fator idade entre as participantes, apenas as similiaridades entre suas
falas, aspecto que reconhecemos como uma limitação deste estudo.
É importante considerar também que uma experiência negativa ou traumática
de parto normal parece ser determinante na escolha de parto por cesariana (Barros,
2011). Além disso, é importante considerar que a dor do parto é em grande medida
iatrogênica, ou seja, amplificada por rotinas como a imobilização, o uso abusivo de
ocitócitos, a episiotomia e episiorrafia, a rotura artificial de membranas, entre outros
(Diniz, 2005).
Todos estes procedimentos, em muitos casos desnecessários e desaconselhados
acabam por aumentar a intensidade do processo doloroso, contribuindo para a
cristalização de uma concepção do parto normal como um processo imensamente
dolente e da ideia de que parir é sofrer.
Informações e orientações recebidas pelas parturientes
No momento do trabalho de parto e no parto, as puérperas receberam orientações de
médicos, incluindo obstetras, ginecologistas e pediatras, de enfermeiros, e de estagiários.
As orientações, na sala de pré-parto foram, principalmente, sobre a amamentação, os
cuidados com o bebê, sobre técnicas de respiração, sobre exames realizados. Na sala
de parto, as orientações foram mais no sentido de acalmar, tranquilizar e incentivar as
parturientes, além de orientações sobre as posições que deveriam ser adotadas e como
deveria ser feita a “força” para facilitar o processo de parto. No pós-parto imediato, as
mulheres foram instruídas sobre os cuidados puerperais e os cuidados com o recémnascido.
Como é possível observar, as orientações recebidas pelas parturientes, durante o
trabalho de parto e o parto restringem o papel da mulher a fazer força, ficar na posição
correta, mantendo sempre a calma, de forma a ajudar os profissionais na realização
do parto. Dessa forma, colocam a parturiente em uma posição de passividade e
submissão.
No estudo realizado por Silveira, Camargo e Crepaldi (2010), os autores constaram
que, na visão dos profissionais de saúde, o papel da mulher estava restrito a fazer força
e ajudá-los no parto, cabendo a eles orientar as parturientes sobre o momento correto
de fazer a força, e dizer o que e como fazer durante o processo de parto.
Frente a este jogo desigual de poder, a mulher é destituída de seu poder decisório,
havendo uma restrição da expressão de sua vontade e liberdade (Griboski & Guilhem,
2006), inclusive na escolha da melhor posição no momento do parto.
(...) tem a posição que você tem que ficá, tem o jeitim de ficá pra não machucá a
cabecinha do nenê, pra não machucá o corpinho do nenê, eles falam pra gente
qual é a posição, não é do jeito que a gente que não, não tem nem como, porque
senão a gente pode machucá a criança. (A. P. J.H.G., 33 anos, multípara)
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A Organização Mundial da Saúde (OMS, 1996), no seu guia de Assistência ao
Parto Normal recomenda que as mulheres tenham liberdade para escolher a posição
que mais lhes agrade, tanto no primeiro como no segundo estágio do parto, evitando,
preferencialmente, longos períodos em decúbito dorsal. Os profissionais, por sua vez
devem estimulá-las a experimentar a posição que lhes seja mais confortável, apoiando
suas escolhas, o que exige treinamento na realização de partos em outras posições,
além da supina, de forma a não inibir a escolha de posições.
Grande parte das entrevistadas destacaram a atenção, o apoio e o carinho recebidos
pelos profissionais, tanto no pré-natal, como no trabalho de parto e parto como um
fator essencial da assistência recebida, tendo influência, inclusive, sobre sua satisfação
com o parto.
Todos eles uma super atenção, sabe (...) eles me ajudaram bastante, foi muito
importante pra mim, porque, assim, se eles não tivesse me orientado, eu não teria
conseguido, porque esgota a gente muito, sabe, e ela fica ali dando força e vai,
vai, não só no profissional, mas no humano também, no emocional. Foi muito
importante elas tando ali pra me ajudar. (L.L.C., 21 anos, primípara)
A atenção dada pelos profissionais às parturientes é um aspecto fundamental
do atendimento humanizado e se estabelece a nível técnico, humanizador, intuitivo e
relacional (Barros, 2011).
É preciso, contudo, diferenciar que existem dois aspectos de atenção prestada à
mulher em relação à gravidez/parto/puerpério: a do tipo informativa, que se caracteriza
por orientações dadas em relação à gestação, aos cuidados com o físico, a alimentação,
o repouso, o ganho de peso, etc, e em relação ao parto em si, como agir, como respirar e
manter a tranquilidade, como ser ativa e colaborar com o processo em si. Também são
dadas orientações em relação aos cuidados com o bebê, sobretudo no que diz respeito
à amamentação e aos primeiros cuidados.
Mas há um nível de atenção dispensada às mulheres que dizem respeito ao
momento da parturição em si, e que torna esta vivência tão mais ou menos ‘humanizada’.
Diz menos respeito à informação em si, mas presta-se ao tipo de atenção que se
estabelece pelo vínculo emocional criado entre parturiente e o profissional, além do
vínculo que se estabelece com o próprio processo de parturição em si mesmo.
O papel do profissional que assiste à esta mulher é, além de fornecer as orientações
em geral tais como saber lidar com a dor e com o desconforto e fazer adequadamente os
exercícios respiratórios; estimulá-la a fazer uso do banho de chuveiro, à deambulação, a
praticar exercícios de agachar e levantar e exercícios com a bola, aplicar-lhe massagem,
enfim, fazer uso de quaisquer recursos para tornar o processo em si menos doloroso e
fazer com que a mulher fique mais relaxada e colaborativa.
Dessa forma, é possível reconhecer na “atenção” recebida pelas parturientes e
que foi considerada como um diferencial na experiência da parturição, dois aspectos
fundamentais da humanização: o acolhimento e o vínculo.
Aletheia 37, jan./abr. 2012
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O acolhimento se constrói com base na ética, no respeito à diversidade e na
tolerância aos diferentes, com base em uma escuta clínica solidária, comprometida
com a construção da cidadania. O acolhimento se dá no encontro entre profissional
e usuário, onde o primeiro tenta identificar as necessidades do segundo e através de
uma relação negociada se constrói o vínculo (Schimith & Lima, 2004).
O vínculo entre profissional e usuário estimula a autonomia e a cidadania. A
sua construção depende do reconhecimento do usuário enquanto sujeito, que fala,
julga e deseja. Tanto o acolhimento quanto o vínculo ampliam a eficácia das ações
de saúde e aumentam a autonomia e participação dos usuários nos serviços prestados
(Schimith, Lima, 2004).
Além das orientações em geral, algumas mulheres foram submetidas ao uso de
técnicas não farmacológicas para alívio da dor ou de tratamentos alternativos, que
foram percebidos como positivo pelas parturientes, que destacaram que embora estes
métodos não tirem a dor, a aliviam, amenizam e confortam.
(...) ajuda a gente a senti a dor, mas de um modo diferente (...) A gente sente a
dor, mas no momento que você tá agachado ela é menos, ameniza, sabe, sentá
em cima de uma bola também, lá debaixo do chuveiro, com água quente também
ajudo bastante (...) (L.L.C., 21 anos, primípara)
Segundo Barros (2011) algumas estratégias não farmacológicas podem ser
empregadas para aliviar a dor e o sofrimento do trabalho de parto. Essas técnicas partem
de uma concepção do parto enquanto um evento fisiológico e respeitam sua natureza,
preservando a integridade corporal e psíquica das mulheres. Outros benefícios das
técnicas não farmacológicas são o conforto e a autonomia proporcionados às mulheres,
além de incentivarem estas a reconhecerem suas sensações corporais, contribuindo
para maior controle e liberdade no uso de seus movimentos.
Embora tenham sido oferecidas algumas técnicas não farmacológicas de alívio
da dor, não houve um padrão no uso destes procedimentos, sendo que algumas
mulheres receberam uma combinação dessas técnicas ou apenas uma delas e outras
não receberam nenhuma, gerando um sentimento de desassistência e desamparo na
parturiente: (...) eles não fala nada, a gente tem que se virá sozinha, mesmo (A.V.C.,
30 anos, multípara).
Além disso, o número de mulheres que não recebeu nenhuma forma de
orientação para alívio da dor e do desconforto, ou que foram orientadas apenas
parcialmente foi consideravelmente alto (14 mulheres).
Durante o trabalho de parto, a grande maioria recebeu soro com ocitocina,
anestesia local e algumas foram submetidas ao procedimento de episiotomia. Nenhuma
das mulheres recebeu analgesia no parto normal.
Nos hospitais públicos a analgesia de parto, como meio de aliviar a dor, de uma
forma geral, não é oferecida, apesar de o procedimento ser pago pelo SUS. Além da
grande demanda que dificulta a realização, o valor do procedimento pago é muito
baixo levando ao desinteresse do anestesiologista (Leite Filho, 2006).
220
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A presença do acompanhante familiar
A quase totalidade das puérperas foram orientadas sobre o direito de ter um
acompanhante no momento do parto, sendo que algumas ficaram sabendo sobre
esse direito no momento da internação. Quatorze puérperas tiveram acompanhante
e quinze não tiveram. A grande maioria das mulheres que teve um acompanhante
familiar considerou esta experiência positiva, destacando os aspectos de conforto,
apoio, segurança e tranquilidade que ter uma pessoa próxima traz.
Vários estudos internacionais relacionam a satisfação das mulheres com a
assistência recebida durante o parto à presença de um acompanhante, prática esta
reconhecida pela OMS como benéfica para a atenção aos partos de baixo risco,
além de proporcionar conforto físico e suporte emocional à parturiente (Domingues
et al., 2004).
Como destaca Carvalho (2003), é fundamental respeitar o desejo da mulher de
ter um acompanhante ou não, pois o parto ocorre em seu corpo e a decisão deve ser
sua. No caso do acompanhante ser o pai da criança, o direito deste participar deve
se negociado entre o casal.
É fundamental que seja feito um melhor planejamento da participação do
acompanhante no momento do parto, tanto no sentido de possibilitar a presença deste,
como de orientar e fornecer recursos para que este participe efetiva e ativamente do
momento do parto.
O parto normal sob o olhar dos profissionais
Assim como é importante avaliar as demandas das mulheres em relação à
humanização é fundamental analisar o discurso dos profissionais de saúde, para ver
como se coaduna com a proposta de humanização.
A maioria dos médicos obstetras e anestesistas (9 profissionais) considera a
analgesia de parto normal desejável do ponto de vista médico. Entre os profissionais da
enfermagem (enfermeiros e técnicos em enfermagem) este índice foi menor, sendo que
apenas um profissional considera o procedimento desejável, quatro não o consideram
desejável e quatro não souberam opinar.
Os médicos apontaram como principais inconveniências da analgesia de parto
normal: uso de fórceps (4 profissionais); período expulsivo prolongado (3); falta de
colaboração materna (2); sofrimento fetal e aumento dos partos operatórios (2). A
maioria dos profissionais de enfermagem (6) não reconhece nenhuma inconveniência
na analgesia de parto normal.
Os profissionais atribuem a pouca utilização da analgesia de parto normal nos
hospitais à falta de adesão dos serviços e profissionais (6 profissionais), à carência de
anestesistas (5), ao custo (4) e às indicações controversas do procedimento (3). Dois
profissionais consideraram que a baixa utilização do procedimento se deve a dificuldade
de entendimento pela mãe e à falta de colaboração materna.
Investigou-se também entre os profissionais, as vantagens da analgesia de parto
normal, sendo apontadas, principalmente, o alívio da dor (4 médicos e 9 profissionais
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da enfermagem) e a maior satisfação e conforto da paciente (5 médicos e 1 profissional
da enfermagem), como é possível observar na figura a seguir:
Figura 1 – Vantagens da analgesia do parto normal.
Cerca de onze médicos e nove profissionais da enfermagem consideram a analgesia
de parto normal uma forma de humanizar o parto. Os profissionais apontaram como
motivos: o alívio da dor (5 médicos e 4 profissionais de enfermagem); a maior satisfação
da parturiente (3 médicos); a diminuição da ansiedade (3 médicos e 3 profissionais da
enfermagem) e a diminuição do parto cesariana (2 profissionais da enfermagem).
A maioria dos médicos entende a humanização como alívio da dor (3 profissionais), e
como assistência voltada à pessoa e suas necessidades (apoio emocional) (3 profissionais).
Também consideram que a humanização significa maior proximidade entre equipe e
paciente (2) e tornar o procedimento do parto mais familiar, através da presença de
acompanhantes (2). Os profissionais da enfermagem deram maior ênfase aos aspectos
biopsicossociais que devem ser atendidos (4 profissionais). Também enfatizaram o apoio
emocional (2) e à proximidade entre equipe e paciente (2). Observe os resultados na
figura seguinte:
Figura 2 – Humanização na visão dos profissionais de saúde.
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Embora os profissionais tenham citado alguns procedimentos que podem ser
adotados para uma assistência mais humanizada, não mencionaram o que entendem por
humanização, o que seria uma assistência humanizada ou quais seriam as implicações
desta para sua prática.
A humanização representa um ideal livre e inclusivo da manifestação dos
sujeitos na organização das práticas sociais, incluindo a atenção à saúde, pautadas na
compreensão mútua e na construção de seus valores e verdades (Brasil, 2002).
Para o Ministério da Saúde (Brasil, 2002), a humanização implica receber com
dignidade a mulher, seus familiares e o recém-nascido, exercendo uma atitude ética e
solidária, de forma a criar um ambiente acolhedor e instituir rotinas hospitalares que
rompam com o modelo tradicional.
Grande parte dos médicos (10) e profissionais da enfermagem (9) relacionam
o parto humanizado à presença de acompanhante familiar e ao atendimento às
necessidades físicas e emocionais da parturiente. Os profissionais da enfermagem
(4) também destacaram o contato precoce mãe-bebê como um aspecto importante da
humanização do parto, como é apontado na figura abaixo:
Figura 3 – Parto humanizado na visão dos profissionais de saúde.
Embora estes sejam elementos importantes, outros aspectos fundamentais como
a realização de procedimentos comprovadamentee benéficos, a redução de medidas
intervencionistas e o respeito à privacidade e autonomia da parturiente, defendidos no
PHPN não foram citados (Brasil, 2002).
A humanização do parto envolve a promoção de uma assistência de qualidade,
através do alívio da dor, do conforto físico e emocional, mas também da liberdade para a
mulher escolher como deseja ter o bebê, respeitando sua autonomia, sua individualidade
e seu poder de decisão e de troca com o profissional (Brasil, 2002).
Além disso, as ações levantadas pelos profissionais, visando à humanização do
parto referem-se somente ao momento do parto ou pós-parto imediato. Pouca ênfase
foi dada à importância do pré-natal.
Aletheia 37, jan./abr. 2012
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É importante ressaltar que a humanização do parto não se restringe a um
momento específico, não se inicia no Centro Obstétrico, mas envolve todo um
processo, que tem início no pré-natal, com o aconselhamento e explicação do
processo gravídico-puerperal, levando em consideração as necessidades da mulher
na admissão e no parto.
Os principais procedimentos utilizados pelos médicos para diminuir o
desconforto da parturiente são: presença de acompanhante (7 médicos); apoio
emocional (4); e fornecimento de orientações (4). Os profissionais da enfermagem
adotam, principalmente, o apoio emocional (6), o uso de técnicas não farmacológicas
(banho, massagem, exercícios na bola, deambulação) (5) e o fornecimento de
orientações (4) para diminuição do desconforto da parturiente. Apenas um médico e
um profissional da enfermagem destacaram o respeito à privacidade e autonomia da
parturiente como forma de reduzir seu desconforto.
A existência de uma hierarquia nas relações entre profissionais e as mulheres
atua como uma barreira à humanização. O profissional é o detentor do saber e da
técnica e, mesmo quando a mulher participa do parto, sua participação é vista apenas
como uma colaboração ao profissional (Griboski & Guilhem, 2006). Da mesma forma,
certas técnicas ou procedimentos voltados para a humanização do parto são vistos
como positivas na medida em que facilitam o trabalho do profissional de saúde no
ambiente hospitalar.
Declararam conhecer o Programa Nacional de Humanização do Parto 8
profissionais da enfermagem e 5 médicos.. É significativo o número de médicos que
não conhecem o Programa de Humanização do Parto, considerando-se que eles são
os agentes diretamente envolvidos com a cena do parto.
Mabuchi e Fustinoni (2008) destacam a carência de contato com a temática
da humanização do parto em todos os cursos que envolvem o cuidado à mulher
durante o ciclo gravídico-puerperal, o que acaba contribuindo para despersonalizar
e desumanizar a assistência oferecida.
Nos cursos de formação em medicina é dada primazia ao desempenho técnico
científico, sendo a dimensão intersubjetiva relegada ao segundo plano. Desse modo,
os aspectos da assistência humanizada ficam sujeitos às prioridades dos serviços e às
preferências e treinamento dos profissionais (Hotimsky & Schraiber, 2005).
Por fugir do escopo deste trabalho não se investigou o que os profissionais
pensam a respeito do PNHP, aspecto relevante a ser pesquisado em estudos futuros, no
intuito de se conhecer melhor qual a opinião dos profissionais a respeito do programa
e de que forma o que é descrito no mesmo se coaduna com a prática.
Os médicos apontaram como fatores necessários à humanização do parto: a
capacitação dos profissionais de saúde e gestores (3), a reestruturação do espaço
físico da maternidade (2) e o incentivo financeiro dos órgãos governamentais (2).
Cinco médicos não responderam a esta questão. Os profissionais da enfermagem
consideraram que os principais fatores necessários à humanização do parto são a
capacitação de profissionais da saúde e gestores (5), a contratação de mais profissionais
(4) e a reestruturação do espaço físico da maternidade (2). Pouca ênfase foi dada à
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Aletheia 37, jan./abr. 2012
questão das políticas educacionais e aos fatores mais relacionais, como o respeito à
vontade da parturiente, como é possível obsertvar na figura a seguir:
Figura 4 – Fatores necessários à humanização do parto.
Para Dias (2006) a humanização depende mais de fatores pessoais, como
disponibilidade, sensibilidade e qualificação e de fatores coletivos, como o trabalho em
equipe e o compromisso do grupo de profissionais do que das condições materiais ou
administrativas. É fundamental mudar não só a estrutura física e as rotinas dos hospitais,
mas principalmente modificar o paradigma que embasa as ações dos profissionais,
segundo o qual a performance clínica é mais importante do que a pessoa que está sendo
cuidada.
Considerações finais
A humanização do parto está se tornando uma tendência atualmente. Porém, na
prática ainda predomina um modelo de atenção ao parto, essencialmente centrado na
figura do médico, o que contribui com a manutenção de uma cultura de subordinação
e dominação, que reduz a mulher a simples objeto da passagem do bebê.
Nesse sentido, a atenção, a sensibilidade e o cuidado dos profissionais são
elementos essenciais para garantir uma parturição segura e prazerosa, assim como
deixar a mulher mais confortável para tomar decisões a respeito do seu parto.
Além do suporte emocional é importante oferecer subsídios para que a mulher
vivencie este momento de maneira menos dolorosa e sofrida, como as práticas
preconizadas pela PNH – massagem, banhos, deambulação e todo o tipo de situação
que possa trazer alívio e tranquilidade.
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Embora a maioria dos adeptos da humanização do parto normal, não vejam com
bons olhos a analgesia por considerá-la um processo intervencionista, e um ato médico,
quando o que se busca é recuperar o protagonismo da mulher, e não do profissional
da medicina. É necessário destacar que, a prática da analgesia, embora assegurada
legalmente ainda está distante da realidade de muitos hospitais, como percebido nesta
pesquisa.
Em que pese a diferença dos dois posicionamentos – um contra e outro a favor do
uso da analgesia no parto normal, é inconteste sua garantia legal, independentemente do
que se propaga a favor ou contra sua utilização, é fato que este recurso previsto em lei
não é respeitado, mais uma situação de violência contra as mulheres, uma vez que sequer
lhes cabe o direito de decidirem se desejam ou não, uma vez que nem lhes cabe este tipo
de orientação de seus direitos.
O desenvolvimento de práticas educativas durante o pré-natal e nos grupos de
gestantes também é um aspecto fundamental para aumentar o nível de informação das
parturientes a respeito do seu parto e de seus direitos sexuais e reprodutivos, fornecendolhe instrumentos para assumir uma postura mais ativa e autônoma.
No entanto, a simples substituição da cesariana por um parto normal intervencionista,
não levará, por si só à humanização do parto. É fundamental uma mudança de paradigma,
que conte com a participação de todos os agentes envolvidos na assistência ao parto, não
apenas no sentido técnico, mas, sobretudo relacional e ético, base para uma verdadeira
prática humanizada.
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_____________________________
Recebido em agosto de 2012
Aceito em setembro de 2012
Bruna Cardoso Pinheiro – Graduada em Psicologia. Pós-graduanda em Especialização em Saúde Pública,
Universidade de Franca, Franca – SP.
Cléria Maria Lobo Bittar – Docente do Curso de Psicologia e do Mestrado e Doutorado em Promoção de
Saúde da Universidade de Franca, Franca – SP.
Endereço para contato: [email protected]
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Aletheia 37, p.228-234, jan./abr. 2012
O grupo Maternar... Uma experiência com mulheres gestantes
e com estudantes da área de saúde – UFBa
Anamélia Lins e Silva Franco
Resumo: O grupo Maternar é uma experiência de atividade curricular em comunidade
(ACC) que visa desenvolver atividades em saúde materno-infantil e tem tido como principal
campo de atuação a Maternidade Climério de Oliveira, maternidade-escola da UFBA. A
cada semestre estudantes, uma monitora, residentes, técnicos e professores têm organizado
grupos de gestantes e estúdio fotográfico. Pretende-se com esse texto apresentar a experiência
considerando principalmente o envolvimento das gestantes e das estudantes. Considera-se que
a atividade está em aperfeiçoamento e preenche um espaço de escuta-informação e elaboração
para todos os envolvidos.
Palavras-chave: grupo de gestantes, atividade interdisciplinar em saúde, educação em
saúde
The group Maternar ... experience with pregnant women and health care
students – UFBa
Abstract: The Maternar group is an experiment in community curricular activity (CCA) which
aims to develop activities in maternal and child health and has had as its main field of activity
of Motherhood Climério Oliveira, maternity hospital of the university. Each semester students,
a monitor, residents, technicians and teachers have organized groups of pregnant women and
photographic studio. The intention of this text to present the experience especially considering
the involvement of pregnant women and students. It is considered that the activity is improving
and fills a space for listening, information and preparation for all involved.
Keywords: group of pregnant women, interdisciplinary activity in health, health education.
El grupo Maternar ... Una experiencia con mujeres embarazadas y
estudiantes de salud – UFBa
Resumen: El grupo Maternar es un experimento en la actividad comunitaria curricular (CCA),
que tiene como objetivo desarrollar actividades en materia de salud materna e infantil y ha
tenido como su principal campo de actividad de la Maternidad Climério Oliveira, hospital de
maternidad de la universidad. Cada semestre los estudiantes, un monitor, residentes, técnicos
y profesores han organizado grupos de mujeres embarazadas y un estudio fotográfico. La
intención de este texto es presentar la experiencia sobre todo teniendo en cuenta la participación
de las mujeres embarazadas y los estudiantes. Se considera que la actividad está mejorando y
llena un espacio para la escucha, la información y la preparación para todos los implicados.
Palabras clave: Grupo de mujeres embarazadas, la actividad interdisciplinaria en salud,
educación para la salud.
Introdução
Atividades educativas com gestantes
A maternidade é um fenômeno vivido contemporaneamente com marcas
eminentemente modernas como a industrialização, a urbanização e consequentes
mudanças na família e nas relações de gênero. Sendo assim, reafirmamos nossa
compreensão da maternidade e, especialmente, da gravidez como um fenômeno social,
marcado pelas desigualdades sociais, raciais/étnicas e pela questão de gênero que lhe
é subjacente (Scavone, 2001). A compreensão da dimensão biológica da natureza
humana sofreu fortes mudanças a partir dos avanços tecnológicos, que influenciaram
tanto a anticoncepção como a concepção voluntária e repercutiram nas vivências
psicológicas.
Esse cenário tem influenciado a concepção de gravidez, objeto de trabalho de
profissionais de saúde. Sabe-se que a gravidez, em si, é um sinal de saúde da mulher
que gera, entretanto as tecnologias possibilitaram conhecer mais e assim observar a
linha tênue entre os processos considerados normais e patológicos ao longo do ciclo
gravídico-puerperal. Desse modo, sendo a gravidez um estado saudável, o pré-natal
constitui um procedimento de atenção primária no qual os profissionais de saúde estão
aptos para acompanhar o processo fisiológico, promover a saúde e prevenir possíveis
manifestações patológicas. Somente em casos especiais, nos quais sejam observados
quadros patológicos, como hipertensão e diabetes serão necessárias ações profissionais
especializadas.
A gravidez é um período de 38-42 semanas, aparentemente longo, comparado
com outras espécies, entretanto muito curto diante das repercussões biológicas, sociais
e psicológicas que a mulher e aqueles que a rodeiam vivenciam com o nascimento de
uma criança, inclusive porque ao nascer o ser humano encontra-se em condição de total
dependência, o que se intitula prematuridade inerente à espécie humana (Maldonado,
1997; Lordelo e Bichara, 2009).
Diante de tal cenário, cabe aos profissionais de saúde desenvolver ações que
proporcionem às mulheres e famílias prepararem-se para o parto e as mudanças
relacionadas ao nascimento. Estas atividades em geral são grupos de gestantes. Trata-se
de uma ação típica da atenção primária em saúde, por exemplo, implantada em Cuba
como Círculos de Grávidas (Calatayud, 2011).
Encontram-se disponíveis na literatura relatos de diversas experiências de grupos
de gestantes, ações de promoção-educação em saúde. Um exemplo apresentado por
Delfino, Patrício, Martins e Silvério (2004) argumenta que ao longo dos anos a assistência
à gestante tem sido exclusivamente vinculada à consulta médica individual:
“As ações de saúde não propiciam um acolhimento às ansiedades, às queixas e
temores associados culturalmente à gestação (...) a gestação é conduzida de modo
intervencionista. Tornando a assistência e as atividades educativas fragmentadas,
sem que a realidade da mulher gestante seja tratada na sua individualidade e
integralidade”. (p. 1058)
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A partir de uma discussão nessa perspectiva, os autores relatam a realização de
um estudo no qual dez gestantes se reuniram em seis oficinas, quando foi desenvolvido
um trabalho dialógico e ao término destas ocorreu uma visita domiciliar. Os temas das
oficinas foram escolhidos pelas próprias gestantes e estas foram delineadas de acordo
com o referencial do Cuidado Holístico-Ecológico. Através das oficinas os dados foram
levantados a partir da observação participante e das entrevistas realizadas na visita
domiciliar. Os resultados do estudo possibilitam afirmar que a atividade repercutiu na
ampliação do conceito de saúde e de cidadania e esta ampliação foi partilhada para
além do grupo e de suas famílias tendo sido objeto nos encontros das diversas redes
nas quais as gestantes encontram-se inseridas.
Um segundo exemplo trata-se do trabalho desenvolvido por Falcone, Mäder,
Nascimento, Santos e Nóbrega (2005), cujo trabalho de um grupo multiprofissional
buscou diagnosticar transtornos afetivos não psicóticos em gestantes, bem como realizar
uma intervenção grupal com objetivo psicoprofilático e avaliar as alterações após a
intervenção. A intervenção consistiu em dez encontros semanais com um total de 103
gestantes, entre adolescentes (32) e adultas (71). Foram abordados temas relacionados
ao vínculo entre as mulheres-mães e o nenê, à gestação e ao recém-nascido e dúvidas
trazidas pelas gestantes. Os grupos psicoprofiláticos tinham duração de duas horas e
estas eram divididas em 40 minutos para trabalho em torno do vinculo com relaxamento,
automassagem, aprendizagem de técnica de massagem para o bebê, cantigas de ninar
e dinâmicas para trabalhar as relações com o bebê, os sentimentos e a função do pai.
Após esse trabalho foram discutidos temas diversos por aproximadamente uma hora e
ao final eram dedicados 20 minutos para tirar dúvidas.
Antes e depois deste programa de encontros foram aplicados o Self Report
Questionaire e o Beck Depression Inventory. Foram observados transtornos afetivos
em 45(43,7%) das gestantes antes da gestação e após em 23 (22,3%). Estes resultados
possibilitaram constatar que a intervenção teve impacto estatisticamente significante
(p=0,001) no que diz respeito aos transtornos afetivos. Com relação à presença de
depressão, antes da intervenção 21(20,4%) gestantes apresentavam depressão, e após, 13
(12,6%), embora estas não sejam diferenças estatisticamente significantes (p=0,133).
Assim, torna-se importante realizar intervenções no contexto da gestação, como
o que será apresentado no presente relato de experiência.
Contexto da intervenção
O grupo Maternar
As origens do Grupo Maternar estão relacionadas ao trabalho da autora como
psicóloga e supervisora de estágio curricular na Maternidade Climério de Oliveira,
maternidade-escola da Universidade Federal da Bahia (MCO). Entre as atividades
desenvolvidas fazia parte da rotina grupos de sala de espera com gestantes e familiares
(Franco, Rodrigues & Silveira, 2008). A partir de 2011 foi iniciada a Atividade Curricular
em Comunidade (ACC) na qual participam 14 estudantes de graduação, um monitor
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Aletheia 37, jan./abr. 2012
e a professora coordenadora. A ACC é um componente curricular de natureza práticaextensionista.
A ACC tem como requisito ser uma atividade interdisciplinar e para favorecer este
propósito conta-se com estudantes de pelo menos cinco cursos de graduação e o apoio de
um monitor que recebe bolsa para desempenho das atividades. O trabalho desenvolvido
pelo grupo Maternar conta principalmente com a participação de estudantes da área
de saúde, entretanto já participaram estudantes do Bacharelado Interdisciplinar de
Humanidades, Artes e de Psicologia.
Método
As atividades do Maternar são orientadas por princípios da educação popular em
saúde. Para início das atividades com as gestantes os estudantes participam de vários
encontros nos quais se discute suas concepções de saúde, gravidez, família, parto,
maternidade. Além disso, são assistidos e debatidos vários vídeos-documentários e
apresentados pequenos seminários. Trata-se assim de um breve programa de formação
dos estudantes para os encontros.
Ao longo dos semestres foram desenvolvidos alguns princípios para o trabalho
do grupo: i) a gravidez é um fenômeno biológico, psicológico e social; ii) valorização
da gestante; iii) não educação e não ensino; iv) não consumismo; v) diálogo. Esses
princípios são complementares. Espera-se que o trabalho seja orientado por uma
compreensão interdisciplinar na qual o biológico, mais conhecido e valorizado, seja
somado às dimensões psicológica e social. Apesar de estarmos em ambiente acadêmico
o conhecimento, a experiência e a verdade de cada mulher devem ser reconhecidas
e valorizadas e assim não se desenvolve a atividade para ensinar, para reafirmar a
superioridade do saber técnico-científico e sim para dialogar, trocar e construir. Por
fim, a sociedade contemporânea capitalista tem a gravidez e o nascimento como um
período favorável ao consumo. Associa-se o consumo a provas de amor da mãe e dos
familiares, garantias de felicidade, saúde e prosperidade para o nenê que vai nascer.
Buscamos estar vigilantes para não reproduzir esses modelos.
Processo de intervenção
Desenvolvimento dos grupos
O grupo Maternar fundamenta-se nos princípios da educação popular em saúde e
para isso desenvolve atividades com o objetivo principal de troca de saberes e experiências
entre todos os presentes-participantes e assim busca valorizar a dimensão dialógica e
fortalecer a autonomia das mulheres.
As ações vêm se aperfeiçoando a cada semestre. Inicialmente, as atividades eram
desenvolvidas somente entre os integrantes do Grupo e as gestantes, que eram convidadas
para um encontro e após este era incentivada a participação nos seguintes, sendo cada
encontro independente, não havendo ideia de sequência de conteúdos.
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No último semestre foram desenvolvidos encontros com as gestantes com a
participação dos integrantes do ACC e de profissionais de saúde da MCO. A participação
das gestantes se deu em três encontros ocorridos em três meses consecutivos. Esta
composição buscou garantir encontros suficientes para tratar diversos temas e a
possibilidade de acompanhar a gravidez por mais tempo. Entretanto, não se propôs
sequência preestabelecida. O que orienta o grupo é a partilha das mulheres-gestantes e
suas buscas.
Os temas foram identificados em entrevistas realizadas com as gestantes na sala
de espera do pré-natal. Os temas propostos foram: mudanças associadas à gravidez;
alimentação, nutrição e aleitamento materno; cuidados pessoais e com o nenê, sexualidade;
direitos da mulher e da família com o nascimento de um filho.
Cada encontro tem duração aproximada de duas horas e meia e é programado
especificamente. Em geral ocorrem vários momentos como: i) apresentação-entrosamentoaquecimento, quando acontece, por exemplo, uma dinâmica de apresentação-aquecimento,
alongamento individual e em duplas; ii) o tema proposto para aquele dia usando estratégias
como caixa de perguntas, exposição-participada com um profissional, exibição de vídeo
seguido de debate, vídeos que podem ser educativos ou comerciais; iii) o lanche, quando
se experimenta e valoriza novamente o convívio, os vínculos entre os participantes e as
orientações nutricionais discutidas no grupo e nas consultas especializadas; iv) avaliação
da atividade pelas gestantes e pelos presentes, quando se utilizou um pequeno instrumento
impresso no qual estão imagens que tratam “do que gostei”, “do que não gostei” e “do
que desejo” ou se fez uma avaliação espontânea oralmente. As avaliações das gestantes
têm sido positivas, confirmando a pertinência da iniciativa e, às vezes, pedindo mais
tempo para abordagem dos temas ou maior número de encontros.
O estúdio fotográfico
Mensalmente gestantes são convidadas a participar de um Estúdio Fotográfico.
Nesse encontro a “sala de aula” onde ocorrem os grupos é adaptada com panos brancos
para a formação do estúdio. As próprias gestantes levam seu vestuário e o grupo de
estudantes partilha outras peças, bijuterias, maquiagem e objetos para composição do
cenário. As fotos são feitas pelas estudantes, reveladas e doadas para as mulheres e suas
famílias.
A experiência do Estúdio é um momento lúdico que conquista grande participação
das gestantes, das estudantes e de familiares como maridos, mães, filhos. Várias mulheres
relatam que gostariam de ter feito fotos como aquelas, que buscaram orçamento e os
custos impossibilitaram o projeto. Observamos que algumas gestantes chegam tímidas
precisando de palavras de incentivo e que, ao longo da sessão de fotos, conquistam outro
humor, revelam feminilidade e erotismo.
Diferente da experiência dos grupos entre as gestantes no qual são partilhados
conteúdos pessoais e técnicos, no estúdio há partilhas, interações, mas há uma experiência
individual-singular. Observa-se frequentemente a mudança de humor e de postura das
mulheres gestantes que ao chegarem para o Estúdio estão inibidas e ao final demonstram
muita satisfação.
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Aletheia 37, jan./abr. 2012
Os estudantes como participantes – seus depoimentos
Como já foi dito anteriormente o grupo Maternar é uma Atividade Curricular em
Comunidade na qual a Maternidade Climério de Oliveira (UFBA) é o campo de atuação.
O projeto da atividade, com pressupostos da Educação Popular em Saúde, do Método
Paulo Freire, busca garantir uma experiência de partilha, diálogo entre os saberes e as
experiências dos participantes. A condição da maioria dos estudantes universitários
que até então não engravidaram, não tem filhos, ao entrar em contato com os temas e
as mulheres-gestantes sofrem mudanças em seus conhecimentos, suas opiniões. Para
favorecer a compreensão das repercussões da experiência dos estudantes no grupo
Maternar utilizaremos trechos de seus relatórios como sínteses ilustrativas.
“a minha satisfação maior nesse ACC foi poder aprender tanto sobre e com as
grávidas. Para a minha formação, tanto profissional quanto pessoal, essa atividade
terá um peso enorme (...) Essa experiência possibilita um crescimento de todos
aqueles que participaram dela, pois tudo que você aprende de verdade com o
outro é para levar para a vida toda, e eu nunca esquecerei ambas gestantes que
me marcaram... os benefícios trazidos por esta experiência não atingem somente
as grávidas, mas também a nós estudantes. Além do esclarecimento de dúvidas
e angústias e a elevação da autoestima das futuras mães, nós ganhamos um
conhecimento único através da troca de experiências”. (Margarida, 2011)
“Esse ACC foi uma prática valiosa para a minha vida acadêmica, que me trouxe
várias dúvidas, medo de como abordar alguns temas, curiosidade e ansiedade,
me tirou do lugar comum, confortável da cadeira acadêmica, onde me posiciono
apenas de um ângulo para estudar esse ou aquele assunto, mas quando sou trazida
para essa forma de interação minha visão amplia e consigo perceber nuances
importantes de cada contexto”. (Grande Flora, 2011)
“Penso que a ACC repercutiu na vida não só das gestantes que frequentam
os encontros, mas também na vida das pessoas próximas. E isso se deve à
equipe multidisciplinar que ela comporta (...) O resultado das atividades é
muito positivo, isso se comprova com a visita das ex-gestantes que já haviam
participado das atividades anteriores. Elas, algumas vezes, visitaram o grupo
e relatavam a experiência vivenciada, com muito entusiasmo e sentimento de
agradecimento... a ACC é um espaço que dá a possibilidade de construção,
produção e compartilhamento de conhecimentos, sobretudo de reinventar uma
nova forma de se conceber a gestação e de valorização da mulher e da criança”.
(Angélica, 2012)
“Em todos os encontros senti que naquele espaço as gestantes podiam ser elas
mesmas, sem julgamento, sem críticas, sem negativismo. Tentei seguir os princípios
do ACC principalmente, ´não educação e não ensino´, pois acredito na troca de
aprendizado. Elas puderam falar de sentimentos únicos e talvez secretos, puderam
tirar dúvidas com as profissionais de Nutrição, Enfermagem, Serviço Social, onde
suas presenças foram imprescindíveis. Acredito que as atividades prestadas por
essa ACC foram de imensa valia tanto pelas gestantes quando para as integrantes
do grupo”. (Mimo do céu, 2012)
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Dessa forma, percebeu-se que a atividade também propiciou aos estudantes a
possibilidade de refletir sobre as práticas de um profissional da saúde junto à comunidade.
Além disso, usando as palavras de Delfino (2004, p. 1064) “o grupo revelou-se como
um recurso para as suas participantes, constituindo-se num espaço para compartilhar
experiências, sentimentos e afetos e socialização de saberes técnico-científico e
popular”.
Considerações finais
Como em uma gravidez o ACC do Grupo Maternar está em desenvolvimento a
cada semestre e, assim, busca proporcionar um espaço para as gestantes, os familiares,
os técnicos e os estudantes. Um espaço em que a construção possibilita a participação, a
busca de fortalecimento da autonomia. Para os estudantes estar no serviço de saúde tem
sido uma aproximação ao real e a noção da complexidade e das possibilidades de atuação
profissional. As experiências disponíveis na literatura são tomadas como contrapontos
para a análise e o planejamento do trabalho no contexto que vivemos.
Referências
Catalayud, F. M. A psicologia: experiências e contribuições à saúde da comunidade. pp.
189-209. In Sarriera, J. C. (org). Saúde Comunitária: Conhecimentos e experiências
na America Latina. Porto Alegre, Sulina, 2011.
Delfino, M. R. R., Patricio, Z. M., Martins, A. S., Silvério, M. R. (2004). O processo
de cuidar participante com um grupo de gestantes: repercussões na saúde integral
individual-coletiva. Ciência e Saúde Coletiva, 9(4), 1057-1066.
Falcone, V. M., Mäder, C. V. N., Nascimento, C. F. L., Santos, J. M. M. e Nóbrega, F. J. (2005).
Atuação multiprofissional e a saúde mental de gestantes. Rev. Saúde Pública, 39(4), 612-8.
Franco, A. L. S., Rodrigues, L. O. Silveira, P. S. (2008). O trabalho com mulheres gestantes
que nascem com seus filhos. pp. 173-187. In Dimenstein, M. Psicologia Social
Comunitária: Aportes teóricos e metodológicos. Natal, RN: EDUFRN.
Lordelo, E. R., & Bichara, I. D. (2009). Revisitando as funções da imaturidade: uma reflexão
sobre a relevância do conceito na Educação Infantil. Psicologia USP, 20(3), 337-354.
Maldonado, M. T. (1997). Psicologia da Gravidez: parto e puerpério. São Paulo:
Saraiva. 16.ed.
Scavone, L. (2001). Maternidade transformações na família e nas relações de gênero.
Interface – Comunicação, Saúde e Educação, 5(8), 47-60.
_____________________________
Recebido em julho de 2012
Aceito em dezembro de 2012
Anamélia Lins e Silva Franco. Doutora em Saúde Pública. Profa. do Bacharelado Interdisciplinar em Saúde
– Instituto de Humanidade, Artes e Ciências Professor Milton Santos, Universidade Federal da Bahia
Endereço para contato: [email protected]
234
Aletheia 37, jan./abr. 2012
Aletheia 37, p.235-237, jan./abr. 2012
Saúde Comunitária: conhecimentos e experiências
na América Latina
Anamélia Lins e Silva Franco
O livro Saúde Comunitária: Conhecimentos e Experiências na América Latina,
organizado por Jorge Castellá Sarriera e com a participação de vinte coautores de diversos
países como Argentina, Brasil, Estados Unidos, Uruguai e Venezuela, é, em primeiro
lugar, um registro das conferências proferidas no IV Congresso Multidisciplinar de Saúde
Comunitária do Mercosul ocorrido em Gramado (RS) em Outubro de 2009. A Introdução,
de autoria de Jorge Sarriera e Enrique Saforcada, historia todos os encontros de Saúde
Comunitária do Mercosul, o que vem a demonstrar a construção desse movimento no
qual participam profissionais e estudantes do campo da Saúde.
O livro é composto por 11 capítulos. O primeiro, de autoria de Francisco Morales
Catalayud, é intitulado: “A psicologia e a promoção da saúde. Do que necessitamos, o
que temos e o que podemos fazer”. Ele apresenta um breve histórico entre os projetos
de prevenção e os de promoção, distingue o papel da comunicação para o exercício
da promoção em saúde, como também o lugar diferenciado da psicologia, e propõe a
elaboração de ações comuns para enfrentamento de problemas globais.
O capítulo seguinte, “Mudança organizacional para o bem-estar da comunidade”,
é um relato de atividades em curso na Universidade de Miami, especialmente o projeto
SPEC – sigla relacionada aos termos da língua inglesa strengths, prevention, empowerment
e change. A autoria deste capítulo conta com a participação de sete profissionais, entre
eles Ora e Isaac Prilleltensky. Os autores destacam que organizações sociais têm, em
geral, trabalhado em uma perspectiva paliativa, e propõem que seja desenvolvido um
trabalho transformador. Também apresentam os pressupostos, os passos e os exemplos
do trabalho realizado em algumas organizações.
O capítulo três, de autoria de Maritza Monteiro, foi intitulado “Uma psicologia
clínica-comunitária construída a partir da comunidade: práxis latino-americana”. A
profa. Maritza apresenta um histórico das ações clínicas na comunidade, o processo de
desospitalização até o que vem chamar de “A experiência do nosso tempo”. A Psicologia
Clínica Comunitária que tem como objeto de interesse a compreensão e a intervenção
do vínculo-relação pessoa-comunidade, compreensão que conta com conceitos-chave,
os conceitos de apoio social e rede. Por fim, apresenta o relato de uma intervenção em
várias zonas de baixa renda de Caracas e o trabalho com famílias vitimadas pela violência
urbana.
O livro, como um todo, aproxima as semelhanças presentes na realidade latinoamericana e possibilidades comuns de ação da saúde comunitária. No capítulo quatro,
a vida da população caraquenha faz uma ponte com a vida da população brasileira,
especialmente o relato dos estudos e ações coordenadas pela Profa. Silvia Koller, uma
das autoras do capítulo quatro junto com Débora Dalbosco Dell’Aglio. As autoras
retomam a realidade da psicologia brasileira, apresentam o CEP-RUA (Centro de Estudos
Psicológicos) e o NEPA (Núcleo de Estudos e Pesquisas em Adolescência) vinculados ao
Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia da UFRGS. Os trabalhos realizados
são destinados à população em situação de vulnerabilidade pessoal e social, e têm a
Psicologia Positiva e a Abordagem Ecológica do Desenvolvimento Humano como suas
bases teóricas. Essa trajetória tem propiciado a formação de “psicólogos ecológicos”.
O quinto capítulo relata um trabalho em desenvolvimento na Universidade da
República em Montevidéu, Uruguai. Esse capítulo, de autoria da Profa. Susana R. Macció,
foi intitulado “A construção da saúde segundo a perspectiva da relação universidadecomunidade. A figura do ‘operador de bairro’, como articuladora das atividades”. Trata-se
de um trabalho de extensão no qual se busca a promoção de hábitos de vida saudáveis.
Este trabalho possibilita a inserção de estudantes em uma prática alternativa aos modelos
hegemônicos de saúde e de aprendizagem.
Em seguida, o capítulo “Políticas públicas, qualidade de vida e saúde”, de autoria
da Profa. Graciela Tomon, faz uma apresentação crítica do conceito de qualidade de vida
justificando os diversos modos que este é empregado e acrescenta considerações em
torno do debate sobre políticas de saúde, desde aspectos considerados pela Organização
Mundial da Saúde, e por fim apresenta um estudo quantitativo e outro qualitativo que
analisam a realidade à luz do referido conceito.
O capítulo de autoria de Martin de Lellis é intitulado “Saúde Mental Comunitária ou
o Mental na Saúde Comunitária? Alternativas de Política Pública. A Crítica do Papel do
Profissional”. O autor retoma as origens da psicologia comunitária e analisa as pretensões
de trabalho que buscavam superar modelos que se centravam em práticas individuais e
descontextualizadas, com ênfase na necessidade de reformas.
O enfoque do capítulo oito se centra no debate da psicologia na atenção primária
a partir da experiência pioneira de Cuba. O Prof. Francisco Morales Calatayud retoma a
história cubana e apresenta as condições que resultaram no modelo atual, pressupostos
e algumas experiências.
O capítulo nove se distingue dos anteriores por relatar uma experiência em torno
da Saúde Ambiental ocorrida na Argentina. Os autores, Oscar Alberto Fariña, Beatriz
Mendoza e Walter Capote, apresentam as condições e a situação de saúde de uma área
industrial nas proximidades de Buenos Aires, e a partir de vários diagnósticos descrevem
as decisões tomadas para atender à situação de saúde da população e relatam resultados
obtidos a partir de processos psicodiagnósticos com crianças.
Os últimos dois capítulos do livro apresentam semelhanças. O Prof. Enrique
Saforcada reflete sobre as condições de ampliação do trabalho em saúde comunitária
na Argentina e o Prof. Jorge Sarriera faz o mesmo com relação ao Brasil. A realidade
Argentina é marcada por uma condição profissional que propicia o desenvolvimento
das ações em psicologia comunitária e em saúde comunitária. Há algumas décadas
profissionais trabalham em comunidades, mas expressam dificuldades para a articulação
dos arcabouços teóricos, que subsidiaram suas formações, na sua maioria fundamentadas
na teoria psicanalítica e na prática comunitária.
A análise do Prof. Jorge considera que o Brasil, desde os grupos de conscientização
de Paulo Freire (década de 60), vem construindo uma realidade favorável, apesar de várias
interrupções e distanciamentos. O fato da compreensão da saúde enquanto um direito
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Aletheia 37, jan./abr. 2012
constitucional, o crescimento do Sistema Único de Saúde (SUS), o fortalecimento da
democracia repercutem favoravelmente para a implementação de ações comunitárias.
São identificados quatro desafios: i) melhora das condições de vida da população; ii)
melhora na qualidade e avaliação de programas de projetos; iii) fortalecimento das redes
comunitárias; iv) a ética na intervenção e pesquisa em Saúde.
Por fim, as últimas palavras do Prof. Saforcada são significativas para consolidação
da saúde comunitária como em discussão no Mercosul: “a comunidade é o componente
e o ator principal de qualquer projeto de ação que se desenvolva enquadrado neste
paradigma (da saúde comunitária) e a equipe profissional ocupa um papel complementar de
colaboração ou participativo, mas entendendo que o poder de decisão está na comunidade
(2011, p. 243)”.
Sarriera, J. C. (org.). (2011). Saúde Comunitária: Conhecimentos e experiências na
America Latina. Porto Alegre: Sulina.
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Recebido em julho de 2012
Aceito em agosto de 2012
Anamélia Lins e Silva Franco – Doutora em Saúde Pública, Professora do Bacharelado Interdisciplinar em
Saúde, Instituto de Humanidade, Artes e Ciências Professor Milton Santos, Universidade Federal da Bahia.
Endereço para contato: [email protected]
Aletheia 37, jan./abr. 2012
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Aletheia 37, p.238-240, jan./abr. 2012
Psicologia Clínico-Comunitária
Ana Luisa Teixeira de Menezes
A busca de articular o conhecimento da saúde com os sujeitos comunitários, tendo
como base o direito à vida, o meio ambiente, o amor, a crítica à propriedade privada
e as diferenças entre as classes sociais, revela a profundidade com que esta produção
merece ser lida, enquanto uma contribuição para a Educação e a Psicologia. Uma
percepção que instiga um debate sobre os sentidos e os desafios do desenvolvimento
de um pensamento e de uma prática clínica permeados por uma visão biocêntrica e
sociopsicológica que integra a dimensão coletiva e singular, dentro de um processo
histórico de construção de uma Psicologia Clínico-Comunitária.
Uma das questões centrais do livro é o fortalecimento dos sujeitos históricos em
seu processo de superação e transcendência, em seu percurso de construção de saúde
ativa, na responsabilidade por uma convivência transformadora. A saúde é desenhada,
enquanto um processo histórico e cultural como prevenção e promoção, nas experiências
comunitárias, na discussão sobre o papel do psicólogo nos Programas de Saúde da
Família, na implantação de Centros de Atendimento Psicossocial, na Estratégia de
Ação da Família e na Saúde Mental.
Essa publicação contribui de uma forma consistente com a prática e com a
teorização para uma Psicologia Clínico-Comunitária, que desenvolve o processo
terapêutico baseado nos potenciais da identidade humana. Esta proposta vem sendo
elaborada pelo autor e outros atores sociais desde a década de sessenta, num momento
histórico em que houve uma emergência dos grupos terapêuticos e quando os grupos
de encontros de Carl Rogers representaram uma proposta significativa para os trabalhos
da psicologia clínica.
Pode-se considerar que o contexto vivido de repressão social e moral, dos
movimentos de educação popular, da música popular brasileira, dos hippies, dos
trabalhadores e outros mobilizava as pessoas para uma busca de transformação social,
uma sede de crítica e uma esperança de que os movimentos dos grupos que emergiam,
poderiam ser uma saída para a desordem social e de relações em que se vivia. No
entanto, observou-se um declínio que atravessou a década de 70, através do qual os
grupos terapêuticos foram sendo criticados como uma proposta superficial que não trazia
resultados eficazes, sendo vistos como práticas nas quais poucos profissionais tinham
uma formação mais consistente, tanto do ponto de vista teórico como operacional e
com um estigma de que grupo era um trabalho mais para os pobres que não dispunham
de recursos para pagar um tratamento individual.
Fica evidente que a proposta Clínico-Comunitária descrita nasceu na práxis da
Psicologia Comunitária do Ceará que se construiu dentro do processo da derrubada
da Ditadura e da participação popular. Esse movimento fez avançar as discussões
e práticas no meio acadêmico através de disciplinas de psicologia comunitária na
Universidade Federal do Ceará, bem como projetos de extensão realizados a partir
do Núcleo de Psicologia Comunitária e enraizados nos movimentos sociais urbanos e
rurais. Os marcos teóricos que fudamentaram a Psicologia Comunitária no Ceará foram
a psicologia histórico-cultural de Vygotsky, Leontiev e Luria, a educação libertadora de
Paulo Freire, a psicologia da libertação de Martin Baró, a biodança de Rolando Toro
e a abordagem humanista de Carl Rogers.
Todo esse movimento provocou, na psicologia, como também na educação, uma
reflexão sobre novas possibilidades para a ciência e para a clínica, de pensar a relação
entre sujeito, grupo e sociedade. Essa discussão é renovada com a leitura desta obra, sem
criar dicotomias entre o individual e o grupal, anunciando um alargamento conceitual
que, juntamente com propostas metodológicas, produz um pensar epistemológico na
direção de um caminho que integra singularidade, grupos e comunidade. E provoca
uma discussão para e com a psicologia, sobre a concepção de uma clínica enraizada
no movimento, dialógica no sentido freireano, problematizando de forma positiva as
noções de participação, consciência e mudança.
É uma abordagem que relaciona diretamente a identidade à comunidade, ou seja,
a compreensão de que, ao fortalecer as condições de existência comum, as identidades
emergem mais inteiras, mais saudáveis. Nessa perspectiva, mudam os direcionamentos
de energias e de olhares sobre a doença, mudam-se as escutas e, necessariamente, os
espaços por onde se movimentam as práticas clínicas, a percepção de quem são os atores
e, por consequência, onde e com quem devemos trabalhar nossa formação.
Cezar Góis consegue fazer uma recriação, juntamente com Carl Rogers, Paulo
Freire, Rolando Toro e outros, sobre a importância dos grupos e da comunidade,
refletindo uma psicologia clínica a partir de categorias teóricas consistentes como:
identidade, vivência biocêntrica, corporeidade vivida e arte-identidade. O autor sintetiza,
com ousadia e comprometimento, um percurso, um modo de atuar de forma clínica
e comunitária na atenção primária e na rede social básica, numa visão integrada às
políticas públicas, ao terceiro setor e às atividades comunitárias.
Esta obra apresenta uma proposta metodológica que, entranhada com o modo
de vida do ser pobre, nos ensina a viver com esta cultura, a partir de um conviver
biocêntrico, psicológico e comunitário, tornando-nos mais capazes para lidar existencial
e metodologicamente com o sofrimento e com a potência vital. As teorizações e
metodologias propostas são fruto de perguntas que nunca calaram na vida do autor:
como diminuir o sofrimento e aumentar a potência do povo empobrecido? Onde nos
inspiramos? Quem procuramos para pensar juntos? A quem devemos escutar? Com
quem necessitamos compartilhar um mundo novo?
A visão biocêntrica, na qual a vida é percebida como o centro do universo, permeia
essa publicação que, reconhecendo o poder pessoal, propõe também a transcendência
do humano. A visão da saúde, a noção de participação e de mobilização desenvolvidas
evocam a identificação com uma cosmovisão que pensa a relação com a natureza como
uma condição de saúde.
Ao longo dos capítulos, fica claro que a percepção de Clínico-Comunitária
desenvolvida no livro implica uma noção complexa, viva, não linear e construída
socialmente, que necessita ser ressignificada na história vivida do encontro com o
ser saudável. Nesse enfoque, a saúde é considerada possível quando o ser humano
Aletheia 37, jan./abr. 2012
239
reconhece a existência de outros seres vivos e a relevância de perceber-se como um ser
que vive em comunidade, na relação consigo e com a natureza, com toda a diversidade
que representa a vida.
Góis, C. W. de L. (2012). Psicologia Clínico-Comunitária. Fortaleza: Banco do Nordeste
do Brasil.
_____________________________
Recebido em julho de 2012
Aceito em agosto de 2012
Ana Luisa Teixeira de Menezes – Psicóloga (UFC). Mestre em Psicologia (PUCRS). Doutora em Educação
(UFRGS). Pró-reitora de extensão e relações comunitárias da Universidade de Santa Cruz do Sul e professora
do departamento de Psicologia e do Mestrado em Educação da UNISC.
Endereço para contato: [email protected]
240
Aletheia 37, jan./abr. 2012
Instruções aos autores
Política editorial
A Aletheia é uma revista quadrimestral editada pelo curso de Psicologia da
Universidade Luterana do Brasil destinada à publicação de trabalhos de pesquisadores
envolvidos em estudos produzidos na área da Psicologia ou ciências afins. Serão
aceitos somente trabalhos não publicados que se enquadrem nas categorias de relato
de pesquisa, artigos de revisão ou atualização, relatos de experiência profissional,
comunicações breves e resenhas.
Relatos de pesquisa: investigação baseada em dados empíricos, utilizando
metodologia e análise científica.
Artigos de revisão/atualização: revisões sistemáticas e atuais sobre temas
relevantes para a linha editorial da revista.
Relatos de experiência profissional: estudos de caso contendo discussão de
implicações conceituais ou terapêuticas; descrição de procedimentos ou estratégias de
intervenção de interesse para a atuação profissional dos psicólogos.
Comunicações breves: relatos breves de experiências profissionais ou
comunicações preliminares de resultados de pesquisa.
Resenhas: revisão crítica de livros recém-publicados, orientando o leitor quanto
a suas características e seus usos potenciais.
Aspectos éticos: todos os artigos envolvendo pesquisa com seres humanos
devem declarar que os sujeitos do estudo assinaram um termo de consentimento livre
e esclarecido, de acordo com as diretrizes nacionais e internacionais de pesquisa. No
caso de pesquisa com animais, os autores devem atestar que o estudo foi realizado de
acordo com as recomendações éticas para esse tipo de pesquisa. Os autores também são
solicitados a declarar, na seção “Método”, que o protocolo da pesquisa foi previamente
aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do local de origem do projeto.
Conflitos de interesse: os autores devem declarar todos os possíveis conflitos
de interesse (profissionais, financeiros, benefícios diretos ou indiretos), se for o caso.
A falha em declarar conflitos de interesse pode levar à recusa ou cancelamento da
publicação.
Normas editoriais
1. Serão aceitos somente trabalhos inéditos.
2. O artigo passará pela apreciação dos Editores.
3. Após a avaliação inicial, os Editores encaminharão os trabalhos para apreciação
do Conselho Editorial, que poderá fazer uso de consultores ad hoc de reconhecida
competência na área de conhecimento. A Comissão Editorial e os consultores ad hoc
analisam o manuscrito, sugerem modificações e recomendam ou não a sua publicação.
Aletheia 37, jan./abr. 2012
241
4. Os artigos poderão receber: a) aceitação integral; b) aceitação com reformulações;
c) recusa integral. Em qualquer dessas situações, o autor será devidamente comunicado.
Os originais, em nenhuma das possibilidades, serão devolvidos.
5. O(s) autor(es) do artigo receberá(ão) cópia dos pareceres dos consultores e
será(ão) informado(s) sobre as modificações a serem realizadas.
6. No encaminhamento da versão modificada do seu manuscrito (no prazo máximo
de 15 dias após o recebimento da notificação), os autores deverão incluir uma carta
ao Editor esclarecendo as alterações feitas e aquelas que não julgaram pertinentes e a
justificativa. No texto, as modificações feitas deverão estar destacadas com a ferramenta
Word “pincel amarelo”. O encaminhamento com as modificações realizadas pode ser
realizado via e-mail ([email protected]).
7. Os Editores reservam-se o direito de fazer pequenas alterações no texto dos
artigos.
8. A decisão final sobre a publicação de um manuscrito sempre será do Editor
Responsável e Conselho Editorial que fará uma avaliação do texto original, das sugestões
indicadas pelos consultores e as modificações encaminhadas pelo autor.
9. Os artigos poderão ser escritos em outra língua além do português (espanhol e
inglês).
10. Independentemente do número de autores, serão oferecidos dois exemplares por
trabalho publicado. O arquivo eletrônico com a publicação em PDF será disponibilizado
no site www.ulbra.br/psicologia/aletheia.
11. As opiniões emitidas nos artigos são de inteira responsabilidade do(s) autor(es),
e sua aceitação não significa que a revista Aletheia ou o curso de Psicologia da ULBRA
lhe dão apoio.
12. A matéria editada pela Aletheia poderá ser impressa total ou parcialmente,
desde que obtida a permissão do Editor Responsável. Os direitos autorais obtidos pela
publicação do artigo não serão repassados para o autor do artigo.
Apresentação dos manuscritos
1) Os artigos inéditos deverão ser encaminhados em disquete ou CD e uma via
impressa, digitada em espaço duplo, fonte Times New Roman, tamanho 12 e paginada
desde a folha de rosto personalizada. A folha deverá ser A4, com formatação de margens
superior e inferior (no mínimo 2,5 cm), esquerda e direita (no mínimo 3 cm). A revista
adota as normas do Manual de Publicação da American Psychological Association - APA
(4ª edição, 2001).
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Aletheia 37, jan./abr. 2012
2) O número máximo de laudas deve atender a seguinte orientação: relatos de
pesquisa (25 laudas); artigos de revisão/atualização (20 laudas); relatos de experiência
profissional (15 laudas), comunicações breves (5 laudas) e resenhas (máximo de 5
laudas).
3) Encaminhamento: toda correspondência deve ser encaminhada à revista
Aletheia, aos cuidados do Editor Responsável.
4) Todo manuscrito encaminhado à revista deverá ser acompanhado de uma carta
de autorização, assinada por todos os autores, onde deve constar:
a) a intenção de submissão do trabalho à publicação;
b) a autorização para reformulação da linguagem, se necessário;
c) a transferência de direitos autorais para a revista Aletheia.
5) O artigo deve conter:
a) folha de rosto identificada: título do artigo em língua portuguesa; nome dos
autores; formação, titulação e afiliação institucional dos autores; resumo em português
de 10 a 12 linhas; palavras-chave, no máximo 3; título do artigo em língua inglesa;
abstract compatível com o texto do Resumo; key-words; endereço para correspondência,
incluindo CEP, telefone e e-mail.
b) folha de rosto não identificada: título do artigo em língua portuguesa; resumo
em português, de 10 a 12 linhas, 3 palavras-chave, título do artigo em língua inglesa,
resumo (Abstract) em inglês, compatível com o texto do Resumo; key-words.
c) corpo do texto.
d) sugere-se que os artigos referentes a relatos de pesquisa apresentem a seguinte
seqüência: Título; Introdução; Método (população/amostra, instrumentos, Procedimentos
de coleta e Análise de dados – incluir nessa seção afirmação de aprovação do estudo em
Comitê de Ética em Pesquisa de acordo com Resolução 196/96 do Conselho Nacional
de Saúde – Ministério da Saúde); Resultados; Discussão, Referências (títulos em letra
minúscula e em seções separadas). Usar as denominações tabelas e figuras (não usar a
expressão quadros e gráficos). Colocar tabelas e figuras incorporadas ao texto. Tabelas:
incluindo título e notas de acordo com normas da APA. Formato Word – ‘Simples 1’.
Na publicação impressa, a tabela não poderá exceder 11,5 cm de largura x 17,5 cm de
comprimento. O comprimento da tabela não deve exceder 55 linhas, incluindo título
e rodapé(s). Para assegurar qualidade de reprodução, as figuras contendo desenhos
deverão ser encaminhadas em qualidade para fotografia (resolução mínima de 300
dpi). A versão publicada não poderá exceder a largura de 11,5 cm para figuras. Anexos:
apenas quando contiverem informação original importante, ou destaque indispensável
para a compreensão de alguma seção do trabalho. Recomenda-se evitar anexos.
6) Trabalhos com documentação incompleta ou não atendendo às normas adotadas
pela revista (APA, 4ª edição) não serão avaliados.
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Normas para citações
- As notas não bibliográficas deverão ser colocadas ao pé das páginas, ordenadas
por algarismos arábicos que deverão aparecer imediatamente após o segmento de texto
ao qual se refere a nota.
- As citações dos autores deverão ser feitas de acordo com as normas da APA (4ª
edição).
- No caso da citação integral de um texto: deve ser delimitada por aspas, e a citação
do autor seguida do ano e do número da página citada. Uma citação literal com 40 ou mais
palavras deve ser apresentada em bloco próprio em itálico e sem aspas, começando em
nova linha, com recuo de 5 espaços da margem, na mesma posição de um novo parágrafo.
A fonte será a mesma utilizada no restante do texto (Times New Roman, 12).
• Citação de um autor: autor, sobrenome em letra minúscula, seguida pelo ano da
publicação. Exemplo: Rodrigues (2000).
• Citações de dois autores: cite os dois autores sempre que forem referidos no
texto. Exemplo: (Carvalho & Santos, 2000) – quando os sobrenomes forem citados entre
parênteses, devem estar ligados por &. Quando forem citados fora de parênteses, devem
ser ligados pela letra e.
• Citação de três a cinco autores: citar todos os autores na primeira referência,
seguidos da data do artigo entre parênteses. A partir da segunda referência, utilize o
sobrenome do primeiro autor, seguido de e cols. Exemplo: Silva, Foguel, Martins e Pires
(2000), a partir da segunda referência, Silva e cols. (2000).
• Artigo de seis ou mais autores: cite apenas o sobrenome do primeiro autor, seguido
de e cols. (ANO). Na seção referências, todos os autores deverão ser citados.
• Citação de obras antigas, clássicas e reeditadas: citar a data da publicação original,
seguida da data da edição consultada. Exemplo: (Kant 1871/1980).
• Autores com a mesma idéia: seguir a ordem alfabética de seus sobrenomes e não
a ordem cronológica. Exemplo: (Foguel, 2003; Martins, 2001; Santos, 1999; Souza,
2005).
• Publicações diferentes com a mesma data: acrescentar letras minúsculas, após o
ano de publicação. Exemplo: Carvalho, 1997, 2000a, 2000b, 2000c.
• Citação cuja idéia é extraída de outra ou citação indireta: utilizar a expressão
citado por. Ex: Lopes, citado por Martins (2000),...
Na seção Referências, incluir apenas a fonte consultada (Martins).
• Transcrição literal de um texto ou citação direta: sobrenome do autor, data, página.
Exemplo: (Carvalho, 2000, p.45) ou Carvalho (2000, p.45).
Normas para referências
As referências bibliográficas deverão ser apresentadas no final do artigo.
Sua disposição deve ser em ordem alfabética do último sobrenome do autor e em
minúsculo.
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Livro
Mendes, A. P. (1998). A família com filhos adultos. Porto Alegre: Artes Médicas.
Silva, P. L., Martins, A., & Foguel, T. (2000). Adolescente e relacionamento familiar.
Porto Alegre: Artes Médicas.
Capítulo de livro
Scharf, C. N., & Weinshel, M. (2002). Infertilidade e gravidez tardia. Em: P. Papp
(Org.), Casais em perigo, novas diretrizes para terapeutas (pp. 119-144). Porto Alegre:
Artmed.
Artigo de periódico científico
Dimenstein, M. (1998). O psicólogo nas Unidades Básicas de Saúde:
desafios para a formação e atuação profissionais. Estudos de Psicologia,
3(1), 95-121.
Artigos em meios eletrônicos
Paim, J. S., & Almeida Filho, N. (1998). Saúde coletiva: uma “nova saúde pública”
ou campo aberto a novos paradigmas? Revista de Saúde Pública, 32 (4) Disponível:
<http://www.scielo.br> Acessado: 02/2000.
Artigo de revista científica no prelo
Albuquerque, P. (no prelo). Trabalho e gênero. Aletheia.
Trabalho apresentado em evento científico com resumo em anais
Corte, M. L. (2005). Adolescência e maternidade. [Resumo]. Em: Sociedade
Brasileira de Psicologia (Org.), Resumos de comunicações científicas. XXV Reunião
Anual de Psicologia (p. 176). Ribeirão Preto: SBP.
Tese ou dissertação publicada
Silva, A. (2000). Conhecimento genital e constância sexual em crianças préescolares. Dissertação de Mestrado ou tese de Doutorado. Programa de Estudos de PósGraduação em Psicologia do Desenvolvimento, Universidade Federal do Rio Grande do
Sul. Porto Alegre, RS.
Tese ou dissertação não-publicada
Silva, A. (2000). Conhecimento genital e constância sexual em crianças préescolares. Dissertação de Mestrado ou tese de Doutorado não publicada. Programa de
Estudos de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento, Universidade Federal
do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS.
Obra antiga e reeditada em data muito posterior
Segal, A. (2001). Alguns aspectos da análise de um esquizofrênico. Porto Alegre:
Universal. (Original publicado em 1950).
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Autoria institucional
American Psychological Association (1994). Publication manual (4ª ed.).Washington:
Autor.
Endereço para envio de artigos
Universidade Luterana do Brasil
Curso de Psicologia
Revista Aletheia
Av. Farroupilha, 8001 – Bairro São José
Sala 121 - Prédio 01
Canoas – RS – Brasil
CEP: 92425-900
246
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Instructions to authors
Editorial policy
Aletheia is a three-times yearly journal edited by the Psychology Program of the
Lutheran University of Brazil, which purpose is to publish papers in Psychology and
related sciences. Only unpublished papers will be accepted into these categories: original
articles, review/update articles, professional experiences reports, brief communications
and book reviews.
Original articles: empirical research reports with scientific methodology.
Review articles/ Update articles: systematic and update reviews about relevant
themes according with editorial policy.
Professional experiences reports: case reports with discussion of its conceptual or
therapeutic implications; description of intervention procedures or strategies of psychology
practitioners’ interest.
Brief communications: brief reports of professional experiences or preliminary
communications of original character.
Book review: critical review of recently published books that may be of interest
to psychology.
Ethical aspects: All the articles involving research with human subjects must state
that individuals included in these studies gave a Written Informed Consent, according
to the national and international ethical regulations. In case of research with animals,
authors must confirm that the study was done in accordance with the ethical care standards
for the animals involved in the research. The authors are also requested to state in the
“Methods” section that the research protocol was previously approved by a Research
Ethics Board.
Disclosures: The authors are requested to disclose all possible kinds of conflict of
interest (professionals, financials, direct or indirect benefits), if the case. The failure to
disclose properly can lead to publication refusal or cancellation.
Editorial rules
1. Only unpublished articles will be accepted.
2. The articles will be evaluated by the Editors.
3. After initial evaluation, the Editors will send the submitted papers to the
Editorial Board, which will be helped, whenever necessary, by ad hoc consultants
of recognized expertise in the knowledge area. The Editorial Board and ad hoc
consultants will analyze the manuscript, suggest modifications, and recommend or
not its publication.
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4. The papers may be: a) fully accepted; b) accepted with modifications; c) fully
refused. In any of the situations the author will be properly communicated. The originals
will not be returned in any case.
5. The authors will received a copy of the consultants’ analysis and will be informed
about recommended modifications.
6. When the modified version of the manuscript is sent (this may happen up
to 15 days after receiving the notification), the authors must include a letter to the
Editors, elucidating the changes that have been made and justifying the ones they
did not judge relevant to make. All modifications must be highlighted with Word’s
tool “yellow brush”. The modified version of the article may be sent by e-mail
([email protected]).
7. The Editors have the right to make small modifications in the text.
8. The final decision of publication of a manuscript will always be of the Editor
and of the editorial board in charge. They will take into consideration the original text,
the consultant’s recommendations and the modified version of the article.
9. Articles may be submitted in other languages besides Portuguese (Spanish and
English)
10. Regardless the number of authors, two copies of the journal per published article
will be offered. The electronic version of the printed article (PDF file) can be accessed
in Aletheia homepage www.ulbra.br/psicologia/aletheia.
11. The opinions emitted in the articles are full responsibility of author(s), and its
acceptance does not mean that Aletheia supports it.
12. Total or partial reproduction can be made only after permission of the Editor.
Aletheia owns the copyrights and will not transfer them to authors.
Preparation of manuscripts
1) The unpublished articles must be sent in diskettes or CD and also one printed
copy, typed in double space, Times New Roman letter, size 12, numbered since the title
page. The sheet must be A4, with inferior and superior margins of 2,5 cm, and right and
left margins of 3 cm. The journal follows the rules of Manual of Publication of American
Psychological Association - APA (5th edition, 2001).
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2) The maximum number of pages should be as follow: Original articles (25 pages);
Review articles/Uptade articles (20 pages); Professional experiences reports (15 pages);
Brief communications (5 pages); Book review (5 pages).
3) Submissions: All correspondence should be addressed to Aletheia in behalf of
the Editor in charge.
4) Every manuscript sent to the Journal must be accompanied by an authorization
letter, signed by all of the authors, stating:
a) The intention of submission the article to publication;
b) Authorization for modification of language if necessary;
c) Transference of copyrights for Aletheia Journal.
5) The manuscript should contain:
a) Title page: article title in Portuguese ; authors’ name; authors’ essential title and
institutional affiliation; abstract in Portuguese from 10 to 12 lines; key words, at least
3; article title in English; abstract compatible with the text of Portuguese abstract ; key
words; Correspondence address, including Zip Code, telephone and e-mail.
b) Non identified title page: article title in Portuguese; abstract in Portuguese from
10 to 12 lines; key words, at least 3; article title in English; abstract compatible with the
text of Portuguese abstract ; key words;
* If article was not written in Portuguese, it must contain the same information in
its original language.
c) Body of the text.
d) Original articles may have the following sequence: Title, Introduction,
Method (population/sample; instruments; procedures; and data analysis. In this
section the study approval in a Ethics Research Committee should be stated), Results,
Discussion, Conclusion or Final Considerations, References (in small letters and in
separate section). Use the denomination “table” and “figure” (and not graphs or other
terms). Place tables and figures embedded in the text. Tables: including title and
notes in accordance with APA’s standards . Word format - ‘Simple 1’. In the printed
version the table may not exceed 11.5 cm wide x 17.5 cm in length. The length of
the table should not exceed 55 lines, including title and footer(s). To ensure quality,
the reproduction of pictures containing drawings should have photograph quality
(minimum resolution of 300 dpi). The printed version can not exceed 11.5 cm width
for pictures. Appendixes: only when they contain new and important information,
or are essential to highlight and make more understandable any section of the paper.
The use of appendixes should be avoided.
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249
6) Papers with incomplete documentation or that do not attend the norms adopted
by Aletheia (APA, 4th edition) will not be appraised.
Citations norms
- The non bibliographical notes must be put in the lower margin of pages, arranged
by Arabic numerals that must appear immediately after the segment of text to which the
note refers to.
- The authors’ citations must be done in agreement with norms of APA (4th edition).
- In the case of full citation of a text: it must be delimited by quotation mark and the
author’s citation followed by the year and number of page mentioned. A literal citation
with 40 or more words must be presented in proper block and in italic without quotation
mark, starting a new line, with pullback of 5 spaces of margin, in the same position of
a new paragraph. The letter will be the same used in the remaining of text (Times New
Roman, 12).
• Citation of an author: author, last name in small letter, followed by the year of
publication. Example: Rodrigues (2000).
• Citation of two authors: cite both authors always that they are referred in the text.
Example: (Carvalho & Santos, 2000) – when the last names are cited between parentheses:
they must be connected by &. When they are cited outside the parenthesis they must be
connected by the letter e.
• Citation from three to five authors: cite all the authors in the first reference, followed
by the date of article between parentheses. Starting from the second reference, use the last
name of the first author, followed by e cols. Example: Silva, Foguel, Martins and Pires
(2000), starting from the second reference, Silva and cols. (2000).
• Article of six or more authors: cite just the last name of the first author, followed
by e cols (YEAR). In the references all the authors must be cited.
• Citation of old, classic and reedited works: cite the date of original publication,
followed by the date of edition consulted. Example: (Kant 1871/1980).
• Authors with the same idea: follow the alphabetical order of their last names
and not the chronological order. Example: (Foguel, 2003; Martins, 2001; Santos, 1999;
Souza, 2005).
Different publications with the same date: Increase capital letter, after the year of
publication. Example: Carvalho (1997, 2000a, 2000b, 2000c).
• Citation whose idea is extracted from other or indirect citation: Use the expression
cited by. Ex: Lopes, cited by Martins (2000),...
In the Bibliographical References, include just the source consulted (Martins).
• Literal transcription of a text or direct citation: last name of author, date, page.
Example: (Carvalho, 2000, p.45) or Carvalho (2000, p.45).
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References norms
The bibliographical references must be presented at the end of article. Its disposition
must be in alphabetical order of the last name of author in small letter.
Book
Mendes, A.P. (1998). A família com filhos adultos. Porto Alegre: Artes Médicas.
Silva, P.L., Martins, A., & Foguel, T. (2000). Adolescente e relacionamento familiar.
Porto Alegre: Artes Médicas.
Chapter of book
Scharf, C. N., & Weinshel, M. (2002). Infertility and late pregnancy. Em P. Papp
(Org.), Couples in danger,, new guideline for therapists (pp. 119-144). Porto Alegre:
Artmed.
Article of scientific journal
Dimenstein, M. (1998). The psychologist in the Basic Units of Health:
Challenges for the formation and professional performance. Studies of Psychology,
3(1), 95-121.
Articles in electronic means
Paim, J. S., & Almeida Filho, N. (1998). Collective Health: a “new public health”
or open field for new paradigms? Magazine of Public Health, 32 (4) Available: <http://
www.scielo.br> Accessed: 02/11/2000.
Article of scientific journal in press
Albuquerque, P. (no prelo). Gender and work. Aletheia.
Work presented in congress
Silva, O. & Dias, M. (1999). Unemployment and its repercussions in the family.
Em Annals of XX Meeting of Social Psychology, pp. 128-137, Gramado, RS.
Thesis or published dissertation
Silva, A. (2000). Genital knowledge and sexual constancy in pre-school children.
Master dissertation or doctorate thesis. Program of Graduate Studies in Psychology of
Development, Federal University of Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS
Thesis or non-published dissertation
Silva, A. (2000). Genital knowledge and sexual constancy in pre-school children.
Master dissertation non-published or doctorate thesis (non-published). Program of
Graduate Studies in Psychology of Development, Federal University of Rio Grande do
Sul. Porto Alegre, RS
Old work reedited in posterior date
Segal, A. (2001). Some aspects of analysis of a schizophrenic person. Porto Alegre:
Universal. (Original published in 1950)
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Institutional Authorship
American Psychological Association (1994). Publication manual (4th edition).
Washington: Author
Address for submissions
Universidade Luterana do Brasil
Curso de Psicologia
Revista Aletheia
Av. Farroupilha, 8001 – Bairro São José
CEP: 92425-900
Sala 121 - Prédio 01
Canoas – RS – Brasil
252
Aletheia 37, jan./abr. 2012
Instrucciones a los autores
Política editorial
Aletheia es una revista quadrimestral editada por el Curso de Psicología de la
Universidad Luterana de Brasil, destinada a la publicación de trabajos de investigadores,
implicados en estudios producidos en el área de la Psicología o ciencias afines. Serán
aceptados solamente trabajos no publicados que se encuadren en las categorías de relato
de investigación, artículo de revisión o actualización, relatos experiencia profesional,
comunicaciones breves y reseñas.
Relatos de investigación: investigación basada en datos empíricos, utilizando
metodología y análisis científica.
Artículos de revisión/actualización: revisiones sistemáticas y actuales sobre
temas relevantes para la línea editorial de la revista.
Relatos de experiencia profesional: estudios de caso, contiendo discusión de
implicaciones conceptuales o terapéuticas; descripción de procedimientos o estrategias
de intervención de interés para la actuación profesional de la psicología.
Comunicaciones breves: relatos breves de experiencias profesionales o
comunicaciones preliminares de resultados de investigación.
Reseñas: revisión crítica de libros recién publicados, orientando el lector cuanto
a sus características y usos potenciales.
Aspectos éticos: Todos los artículos implicando investigación con seres
humanos deben declarar que los participantes del estudio firmaron algún Término
de Consentimiento Libre y Esclarecido, de acuerdo con las directrices brasileñas e
internacionales de investigación. En el caso de investigación con animales los autores
deben atestar que el estudio ha sido realizado de acuerdo con las recomendaciones éticas
para este tipo de investigación. Los autores también son solicitados a declarar, en la
sección “Método”, que el protocolo de la investigación ha sido previamente aprobado
por algún Comité de Ética en Investigación del local de origen del proyecto.
Conflictos de interés: los autores deben declarar todos los posibles conflictos
de interés (profesionales, financieros, beneficios directos o indirectos), si es el caso.
El fallo en declarar conflictos de interés puede llevar a la recusa o cancelación de
la publicación.
Normas editoriales
1. Serán aceptados solamente trabajos inéditos.
2. El artículo pasará por la apreciación de los Editores.
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253
3. Seguido de una evaluación inicial, los Editores enviarán para apreciación del
Consejo Editorial, que podrá hacer uso de consultores ad hoc de reconocida competencia
en el área de conocimiento. La Comisión Editorial y los Consultores ad hoc analizan el
artículo, sugieren modificaciones y recomiendan o no su publicación.
4. Los artículos podrán recibir: a) aceptación integral; b) aceptación con
reformulaciones; c) recusa integral. En cualquier de estas situaciones el autor será
debidamente comunicado. Los originales, en ninguna de las posibilidades, serán
devueltos.
5. El autor del artículo recibirá copia de los pareceres de los consultores. Será
informado sobre las modificaciones que necesiten ser realizadas.
6. En el envío de la versión modificada del artículo (en el límite máximo de 15
días después del recibimiento de la notificación), los autores deberán incluir una carta
al Editor, esclareciendo las alteraciones hechas y aquellas que no juzgaran pertinentes
y la justificativa. En el texto, las modificaciones hechas deberán estar destacadas con
la herramienta Word “pincel amarillo”. El envío del archivo con las modificaciones
realizadas puede ser realizado por e-mail ([email protected]).
7. Los Editores se reservan el derecho de hacer pequeñas alteraciones en el
texto de los artículos.
8. La decisión final sobre la publicación de un manuscrito siempre será del Editor
Responsable y del Consejo Editorial, que hará una evaluación del texto original, de
las sugerencias indicadas por los consultores y las modificaciones enviadas por el
autor.
9. Los artículos podrán ser escritos en otra lengua además del portugués (español
e inglés).
10. Independientemente del número de autores, serán ofrecidos dos ejemplares
por trabajo publicado. El archivo electrónico con la publicación en PDF estará
disponible en el site www.ulbra.br/psicologia/aletheia.
11. Las opiniones emitidas en los artículos son de entera responsabilidad de los
autores, su aceptación no significa que la Revista Aletheia o el Curso de Psicología
de la ULBRA le soportan.
12. La materia editada por la Aletheia podrá ser impresa total o parcialmente,
des de que obtenida la autorización del Editor Responsable. Los derechos autorales
obtenidos por la publicación del artículo no serán repasados para el autor del
artículo.
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Presentación de los originales
1) Los artículos inéditos deberán ser enviados en disquete o CD y una vía impresa,
digitada en espacio doble, fuente Times New Roman, tamaño 12 y paginado desde la
hoja de rostro personalizada. La hoja deberá ser A4, con formatación de márgenes
superior e inferior (mínimo de 2,5 cm), izquierda y derecha (mínimo de 3 cm). La
revista adopta las normas del Manual de Publicación de la American Psychological
Association - APA (4ª edición, 2001).
2) El número máximo de laudas debe atender a la siguiente orientación: Relatos
de investigación (25 laudas); Artículos de revisión/actualización (20 laudas); Relatos
de experiencia profesional (15 laudas), Comunicaciones breves (5 laudas) y Reseñas
de libros (máximo de 5 laudas).
3) Dirección: Toda correspondencia debe ser dirigida a la Revista Aletheia, a la
atención del Editor Responsable.
4) Todo manuscrito dirigido a la Revista deberá acompañar una carta de
autorización, firmada por todos los autores, donde deberá constar:
a) la intención de sumisión del trabajo a la publicación;
b) la autorización para reformulación del lenguaje, si necesario;
c) la transferencia de derechos autorales para la Revista Aletheia.
5) El artículo debe contener:
a) Hoja de portada identificada: título del artículo en lengua portuguesa; nombre
de los autores; formación, titulación y afiliación institucional de los autores; resumen
en portugués de 10 a 12 líneas; palabras-clave, en el máximo de 3; título del artículo
en lengua inglesa; abstract compatible con el texto del resumen; keywords; dirección
para correspondencia, incluyendo CEP, teléfono y e-mail.
b) Hoja de portada no identificada: título del artículo en lengua portuguesa o
castellana; resumen en portugués o castellano, de 10 a 12 líneas, 3 palabras-clave,
título del artículo en lengua inglesa, resumen (abstract) en inglés, compatible con el
texto del Resumen en lengua original; keywords.
c) Cuerpo del texto.
d) Sugiérase que los artículos referentes a Relatos de Investigación presenten la
siguiente secuencia: Título; Introducción; Método (populación/muestra, instrumentos,
procedimientos de recogida y análisis de los datos, (incluir en esta sección afirmación
de aprobación del estudio en Comité de Ética en Investigación de acuerdo con la
Resolución 196/96 del Consejo Nacional de Salud – Ministerio de Salud o declaración de
haber atendido a los criterios de dicha resolución); Resultados; Discusión, Referencias
(títulos en letra minúscula y en secciones separadas). Utilizar las denominaciones
tablas y figuras (no utilizar la expresión cuadros y gráficas). Dejar las tablas y figuras
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incorporadas al texto. Tablas: incluyendo título y notas de acuerdo con las normas de la
APA. Formato Word – ‘Sencillo 1’. En la publicación impresa la tabla no podrá exceder
11,5 cm de ancho x 17,5 cm de largo. El largo de la tabla no debe pasar de 55 líneas,
incluyendo título y notas al pié. Para garantizar cualidad de reproducción, las figuras
que contengan dibujos deberán ser dirigidas en cualidad para fotografía (resolución
mínima de 300 dpi). La versión publicada no podrá ultrapasar el ancho de 11,5 cm
para figuras. Anexos: solo cuando tengan información original importante, o destaque
indispensable para la comprensión de alguna sección del trabajo. Recomendase
evitar anexos.
6) Trabajos con documentación incompleta o no atendiendo las normas adoptadas
por la revista (APA, 4ª edición) no serán evaluados.
Normas para citaciones
- Las notas no bibliográficas deberán ser puestas al pié de las páginas, ordenadas
por números arábicos que deberán figurar inmediatamente después del segmento de
texto al cual se refiere a la nota.
- Las citaciones de los autores deberán ser hechas de acuerdo con las normas
de la APA (4ª edición).
- En el caso de la cita integral de un texto: debe ser delimitada por comillas
y la citación del autor, seguida del año y del número de la página citada. Una cita
literal con 40 o más palabras debe ser presentada en bloque propio y en cursiva y sin
comillas, empezando en nueva línea, con una retirada de espacio de 5 espacios del
margen, en la misma posición de un nuevo párrafo. La fuente será la misma utilizada
en el restante del texto (Times New Roman, 12).
• Citación de un autor: autor, apellido en letra minúscula, seguida por el año
de publicación. Ejemplo: Rodrigues (2000).
• Citaciones de dos autores: cite los dos autores siempre que sean referidos en el
texto. Ejemplo: (Carvalho & Santos, 2000) - cuando los apellidos sean citados entre
paréntesis: deben estar separados por &. Cuando sean citados fuera del paréntesis
deben ser vinculados pela letra e, en publicaciones en portugués y por la letra y para
publicaciones en castellano.
• Citación de tres a cinco autores: citar todos los autores en la primera referencia,
seguidos de la fecha del artículo entre paréntesis. A partir de la segunda referencia,
utilice el apellido del primero autor, seguido de y cols. Ejemplo: Silva, Foguel, Martins
y Pires (2000), a partir de la segunda referencia: Silva y cols. (2000)
• Artículo de seis o más autores: cite solamente el apellido del primero autor, seguido
de y cols. (AÑO). En la sección Referencias, todos los autores deberán ser citados.
• Citación de obras antiguas, clásicas y reeditadas: citar la fecha de la publicación
original, seguida de la fecha de la edición consultada. Ejemplo: (Kant 1871/1980).
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• Autores con la misma idea: seguir el orden alfabético de sus apellidos y no el orden
cronológico. Ejemplo: (Foguel, 2003; Martins, 2001; Santos, 1999; Souza, 2005).
• Publicaciones distintas con la misma fecha: Añadir letras minúsculas, luego
el año de publicación. Ejemplo: Carvalho, 1997, 2000a, 2000b, 2000c.
• Citación cuya idea es extraída de otra o citación indirecta: Utilizar la expresión
citado por. Ej.: Lopes, citado por Martins (2000),...
En la sección Referencias, añadir solamente la fuente consultada (Martins).
• Transcripción literal de un texto o citación directa: apellido del autor, fecha,
página. Ejemplo: (Carvalho, 2000, p.45) o Carvalho (2000, p.45).
Normas para referencias
Las referencias bibliográficas deberán ser presentadas en el final del artículo.
Su disposición debe ser en orden alfabético del último apellido del autor (cuando
presente más de uno) y en minúscula. En el caso de autores hispánicos, se puede
utilizar la normativa de la APA, y presentar los dos apellidos a la vez, separados por
un guión. Ej.: Martínez-Cruz.
Libro
Mendes, A. P. (1998). A família com filhos adultos. Porto Alegre: Artes
Médicas.
Silva, P. L., Martins, A., & Foguel, T. (2000). Adolescente e relacionamento
familiar. Porto Alegre: Artes Médicas.
Capítulo de libro
Scharf, C. N., & Weinshel, M. (2002). Infertilidade e gravidez tardia. Em: P.
Papp (Org.), Casais em perigo, novas diretrizes para terapeutas (pp. 119-144). Porto
Alegre: Artmed.
Artículo de publicación periódica científica
Dimenstein, M. (1998). O psicólogo nas Unidades Básicas de Saúde: desafios
para a formação e atuação profissionais. Estudos de Psicologia, 3(1), 95-121.
Artículos en medios electrónicos
Paim, J. S., & Almeida Filho, N. (1998). Saúde coletiva: uma “nova saúde pública”
ou campo aberto a novos paradigmas? Revista de Saúde Pública, 32 (4) Disponível:
<http://www.scielo.br> Acessado: 02/2000.
Artículo de revista científica en prensa
Albuquerque, P. (en prensa). Trabalho e gênero. Aletheia.
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257
Trabajo presentado en evento científico con resumen en anales
Corte, M. L. (2005). Adolescência e maternidade. [Resumo]. Em: Sociedade
Brasileira de Psicologia (Org.), Resumos de comunicações científicas. XXV Reunião
Anual de Psicologia (p. 176). Ribeirão Preto: SBP.
Tesis o monografía publicada
Silva, A. (2000). Conhecimento genital e constância sexual em crianças préescolares. Dissertação de Mestrado ou tese de Doutorado. Programa de Estudos de
Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento, Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Porto Alegre, RS.
Tesis o monografía no-publicada
Silva, A. (2000). Conhecimento genital e constância sexual em crianças préescolares. Dissertação de Mestrado ou tese de Doutorado. Programa de Estudos de
Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento, Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Porto Alegre, RS.
Obra antigua y reeditada en fecha muy posterior
Segal, A. (2001). Alguns aspectos da análise de um esquizofrênico. Porto Alegre:
Universal. (Original publicado em 1950).
Autoría institucional
American Psychological Association (1994). Publication manual (4ª ed.).
Washington:Autor
Dirección para el envío de artículos
Universidade Luterana do Brasil
Curso de Psicologia
Revista Aletheia
Av. Farroupilha, 8001 – Bairro São José
Sala 121 - Prédio 01
Canoas/RS – Brasil
CEP: 92425-900
E-mail: [email protected]
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