Jeosadaque J. Sene, Luis Nelson Prado Castilho, Luis Rogério Dinelli e Keila Bossolani Kiill ▲ equilíbrio de sais pouco solúveis, contraste radiológico, Celobar® ▲ Carbonato de bário é um exemplo de sólido cujo ânion formado pela ionização de um ácido fraco torna-o solúvel em meio de ácido clorídrico. A intoxicação de vários indivíduos com bário há alguns anos deveu-se ao emprego indevido desse sal em exames de contraste. Geralmente, é utilizado um contraste comercial para exames radiológicos que consiste em uma suspensão aquosa de sulfato de bário insolúvel no suco gástrico. Entretanto, a contaminação de um lote do produto com carbonato de bário ocasionou a morte de dezenas de pessoas. Neste artigo, a relação entre a solubilidade de ambos os sais e suas constantes de solubilidade é demonstrada e discutida. Um experimento utilizando tripas de celofane demonstra como íons Ba2+ em solução migram para a corrente sanguínea, causando a intoxicação. Recebido em 11/11/05, aceito em 21/9/06 C ontrastes radiológicos são Janeiro junto ao laboratório Enila substâncias utilizadas em exaindicaram que o produto Celobar® mes de diagnóstico por raios - um contraste radiológico largaX, radiografias ou ressonância magmente utilizado em exames de ennética. Essas substâncias são ema opaco, radiografia de esôfago, capazes de absorver os raios X, de estômago, intestinos e dos vasos modo que órgãos internos preenda base do coração - teve a comchidos pelo contraste tornam-se posição adulterada durante sua brancos no filme de raios X, realfabricação. çando a imagem da estrutura do Sais como o sulfato de bário e o órgão. Isto cria a necessária distincarbonato de bário são pouco solúção (contraste) entre o órgão exaveis em meio aquoso de pH neutro: minado e os tecidos vizinhos. O aproximadamente 2,45 mg L-1 (1,05 contraste auxilia o médico a visua× 10-5 mol L-1) e 17,8 mg L -1 (9,00 × lizar qualquer anomalia no órgão 10 -5 mol L -1), a 25 °C, respectivasob exame. mente. O Celobar® é uma suspenNo decorrer do ano de 2003, um são aquosa de sulfato de bário de fato envolvendo a concentração 1 g mL -1 e a dosagem morte de pelo meContrastes radiológicos são nos 23 pessoas e a recomendada para substâncias capazes de adultos é de 30 mL. intoxicação de deabsorver os raios X, de Considerando as zenas de outras em modo que órgãos internos baixas solubilidavários Estados brapreenchidos pelo contraste sileiros chamou a des citadas, em tornam-se brancos no filme atenção da mídia e de raios X, realçando a condições normais imagem da estrutura do essa dosagem não da opinião pública órgão brasileira. Investiseria suficiente para gações realizadas atingir a dose mínina época pela Agência Nacional de ma letal de 2 a 3 mg de bário por Vigilância Sanitária (Anvisa) e pela quilo de tecido. Vigilância Sanitária do Rio de Por que, então, a contaminação QUÍMICA NOVA NA ESCOLA Equilíbrio químico de sais pouco solúveis do Celobar ® com o carbonato de bário provocou a morte de um número significativo de pessoas? Apresentamos, a seguir, um procedimento experimental que ajuda a responder essa questão. Material e reagentes • Barbante • Membrana semipermeável (tripa de celofane usada para fabricação de salsicha e lingüiça, encontrada em casas de embutidos) • 3 espátulas (ou colheres de plástico pequenas) • Proveta graduada ou seringa descartável de 50 mL • 3 pipetas graduadas ou seringas descartáveis de 10 mL • 3 béqueres de 50 mL (ou copos plásticos descartáveis transparentes) • 2 béqueres de 100 mL (ou copos plásticos descartáveis transparentes) • Béquer de 250 mL (ou copo plástico descartável transparente) • Solução de ácido clorídrico 0,5 mol L-1 (ou ácido muriático N° 24, NOVEMBRO 2006 43 a 10 %, encontrado em supermercados e lojas de materiais de construção) • Cloreto de bário (BaCl2) • Carbonato de sódio (ou bicarbonato de sódio, encontrado em farmácias e supermercados) • Sulfato de magnésio (ou Sal Amargo ®, encontrado em farmácias e supermercados) Preparo das soluções Solução de cloreto de bário (BaCl2) Pese 1,25 g de cloreto de bário, transfira para um béquer de 100 mL e adicione 50 mL de água. Agite até a dissolução completa do sal. Solução de carbonato 44 Pese 0,20 g de carbonato de sódio (Na2CO3) ou 0,16 g de bicarbonato de sódio (NaHCO3), transfira para um béquer de 50 mL e adicione 25 mL de água. Agite até a dissolução completa do sal. Identifique como Solução 1. Solução de sulfato de magnésio (MgSO 4) Pese 1,20 g de sulfato de magnésio, transfira para um béquer de 100 mL e adicione 50 mL de água. Agite até a dissolução completa do sal. Identifique como Solução 2. Em seguida, transfira 25 mL desta solução para um outro béquer de 50 mL e reserve. Identifique como Solução 3. de sólido dentro dos mesmos. Teste da solubilidade dos precipitados em meio ácido (HCl 0,5 mol L-1) Separe dois pedaços de 10 cm da membrana semipermeável (tripa de celofane) e feche uma das extremidades com o barbante. Transfira o precipitado do béquer identificado como Solução 1 para a primeira e o precipitado do béquer identificado como Solução 2 para a segunda. Adicione 20 mL da solução de HCl 0,5 mol L-1 em cada uma das tripas e agite. Observe se ocorre a solubilização dos precipitados. Evidência de que o bário livre chega à corrente sangüínea Feche as membranas com o barbante e coloque cada uma em um béquer de 50 mL (identificados como 1 e 2), contendo 30 mL de água destilada (Figura 1). Espere por 10 minutos, agitando o líquido externo ocasionalmente. Em seguida, transfira 3 mL dos líquidos externos para dois tubos de ensaio (identificados como 1 e 2) e teste com 3,0 mL da solução de sulfato de magnésio reservada anteriormente (Solução 3). Questões para discussão 1) Em qual tubo ocorre a formação de um precipitado? 2) Quais os precipitados formados durante a realização do experimento? 3) Qual o gás formado na dissolução do precipitado na presença de ácido clorídrico? Discussão e conclusões O conhecimento de que soluções de sais solúveis de carbonato e bicarbonato tendem a estabelecer um equilíbrio entre as espécies HCO3– e CO32– é importante para se compreender a possibilidade da substituição do carbonato de sódio pelo bicarbonato de sódio comercial na preparação da Solução 1: HCO3–(aq) CO32–(aq) + H+(aq) (1) De acordo com o princípio de Le Chatelier, a adição dos íons de bário à Solução 1 e a conseqüente precipitação do carbonato de bário desloca o equilíbrio, produzindo novas quantidades do íon carbonato numa tentativa de restabelecer o equilíbrio em (1): Ba2+(aq) + CO32–(aq) → BaCO 3 (s) (2) Por sua vez, todo sal, por menos solúvel que seja, mantém-se, em meio aquoso, em equilíbrio com os seus íons formadores conforme a equação 3. BaCO3(s) Ba2+(aq) + CO32–(aq) Kps = 8,1 × 10 -9 mol L -1 (3) O valor da constante do produto de solubilidade (Kps) indica a extensão em que o soluto se dissolve em Preparo das suspensões de carbonato de bário e sulfato de bário Adicione 25 mL da solução de cloreto de bário à Solução 1 e os outros 25 mL à Solução 2. Agite e observe a formação de um precipitado branco em cada uma delas. Deixe as soluções em repouso por aproximadamente 15 minutos para a decantação dos precipitados. Em seguida, transfira, cuidadosamente, o líquido sobrenadante presente nos dois béqueres para o béquer de 250 mL (descarte), procurando conservar a maior massa possível QUÍMICA NOVA NA ESCOLA Figura 1: Esquema experimental para demonstração da passagem de Ba2+ através das membranas semipermeáveis do trato digestivo. Equilíbrio químico de sais pouco solúveis N° 24, NOVEMBRO 2006 um dado solvente, nesse caso a água. A equação 4 representa o equilíbrio de solubilidade do sulfato de bário: BaSO4(s) Ba2+(aq) + SO42–(aq) Kps = 1,1 × 10 -10 mol L -1 (4) íons carbonato reagem com os íons hidrônios, provenientes da dissociação do ácido forte, deslocando o equilíbrio representado na equação (1) para a esquerda. O íon HCO3–, por sua vez, pode também reagir com os íons hidrônios formando o ácido carbônico, que é instável e leva à formação do gás dióxido de carbono: Precipitados de carbonato, assim como os de fosfato e sulfeto, entre outros, podem ser dissolvidos porque seus ânions são bases HCO3–(aq) + H+(aq) conjugadas de ácidos fracos e H2CO3(aq) H2O(l) + CO2(g) (5) reagem com os íons hidrônios do O consumo de íons carbonato, ácido forte, regenerando o ácido por sua vez, leva a fraco original. No um deslocamento caso do carbonato, A morte de pacientes que para a direita do fizeram uso do contraste CO2 é liberado com equilíbrio repreCelobar® contaminado foi excesso do ácido sentado na equaprovocada pela forte. ção (3), até a dissolubilização do carbonato Ao se analisar a solução do precide bário presente e a equação (3) conpitado. conseqüente absorção do clui-se que uma 2+ O suco gástrico cátion Ba pelo organismo, quantidade, ainda é constituído princiconforme demonstrado que muito pequena, pelos experimentos aqui palmente de ácido de íons carbonato propostos clorídrico, um ácido está presente em forte que ocasiona solução, na presena solubilização do carbonato de ça do precipitado de carbonato de bário (Figura 2): bário em meio aquoso. Quando se adiciona ácido clorídrico ao precipitado de carbonato de bário, os BaCO3(s) + 2HCl(aq) → Ba2+(aq) + 2Cl–(aq) + CO2(g) + H2O(l) (6) Os íons Ba 2+, ao entrarem em contato com as membranas celulares do trato digestivo, passam para a corrente sanguínea e alcançam todos os órgãos do corpo humano, o que ficou evidenciado pela formação de um precipitado no tubo de ensaio 1, comprovando a solubilização do carbonato de bário (BaCO3) pelo ácido clorídrico (HCl). O mesmo não acontece com o líquido externo pertencente à amostra (2) que continha uma suspensão de sulfato de bário, pois esta substância é pouco solúvel em meio ácido. Assim, demonstra-se que a morte de pacientes que fizeram uso do contraste Celobar® contaminado foi provocada pela solubilização do carbonato de bário presente e a conseqüente absorção do cátion Ba2+ pelo organismo. Jeosadaque J. Sene, licenciado em Química pela Fundação Educacional de Barretos, é mestre e doutor em Química Analítica pelo Instituto de Química de Araraquara da UNESP. Luis Nelson Prado Castilho é licenciado em Química e bacharelando em Química com Atribuições Tecnológicas pela Fundação Educacional de Barretos. Luis Rogério Dinelli ([email protected]), bacharel em Química, mestre e doutor em Química Inorgânica pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), é docente da FEB. Keila Bossolani Kiill, licenciada e bacharel em Química pela USP, mestre e doutoranda em Educação pela UFSCar, é docente da FEB. Para saber mais ATKINS, P. e JONES, L. Princípios de Química: Questionando a vida moderna e o meio ambiente. Trad. I. Caracelli et al. Porto Alegre: Bookman, 2001. Na Internet Figura 2: Representação de um estômago mostrando a secreção de ácido clorídrico e a solubilização do carbonato de bário. http://www.anvisa.gov.br/divulga/ informes/2003/celobar/index.htm h t t p : / / w w w. c r q 4 . o r g . b r / informativo/dezembro_2003/ pagina04.php Abstract: Chemical Equilibrium of Low Solubility Salts and the Celobar® Case – Barium carbonate is an example of a solid whose anion formed from the ionization of a week acid makes it soluble in hydrochloric acid medium. The barium poisoning of several persons some years ago was due to the improper use of this salt in contrast exams. Commonly, in radiological exams a commercial contrast that consists of an aqueous suspension of barium sulfate insoluble in the gastric juice is used. However, the contamination of a lot of the product with barium carbonate caused the death of tens of persons. The relationship between the solubility of both salts and their solubility constants is demonstrated and discussed. An experiment using cellophane bowels demonstrates how Ba2+ ions in solution migrate to the bloodstream causing poisoning. Keywords: equilibrium of low solubility salts, radiological contrast, Celobar® QUÍMICA NOVA NA ESCOLA Equilíbrio químico de sais pouco solúveis N° 24, NOVEMBRO 2006 45