PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8a10 de outubro 2014) Sobre a (Não-)Neutralidade do Livro: Cultura Material, Teoria Antropológica do Consumo e os Usos Sociais dos Bens.1 Cláudia Pereira2 Joana Dominguez Gonzalez Bouères Beleza3 PUC-Rio Resumo Considerando a proposta de neutralidade dos bens defendida pela perspectiva antropológica do consumo, este artigo pretende pensar o reflexo dessa teoria, quando aplicada ao estudo dos valores e funções do livro em espaços e ambientes contemporâneos. Os pressupostos da arte neoconcreta e a teoria das representações sociais, portanto, juntam-se ao texto na tentativa de apaziguar e justificar o desconforto produzido pela identificação de uma eventual discrepância entre o conceito antropológico e a realidade específica da pesquisa. Palavras-chave: Livro; consumo; cultura material; representações sociais. Introdução Pesquisar o deslocamento do livro a novos espaços sociais a partir da perspectiva antropológica do consumo – tema ao qual nos debruçamos com afinco nos últimos três anos – trouxe à tona, além do desvendamento de curiosas e inéditas funções contemporâneas do objeto, uma questão, de todo modo, inquietante. Se a Antropologia do Consumo pressupõe que os bens se assumam necessariamente neutros, quando destituídos de interação, teríamos, portanto, como destino lógico deste estudo, o encontro de uma completa simbiose entre teoria e prática refletida nos casos analisados, fato que não ocorreu. Pelo contrário, através da observação das representações do objeto em diferentes discursos sociais - literatura, mídia e decoração -, consideramos que os livros, independente da finalidade ao qual estavam 1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho 10 - CONSUMO, LITERATURA E ESTÉTICAS MIDIÁTICAS, do 4º Encontro de GTs- Comunicon, realizado nos dias 08, 09 e 10 de outubro de 2014. 2 Doutora em Antropologia (PPGSA/IFCS). Professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da PUC-Rio. E-mail: [email protected]. 3 Mestre em Comunicação Social (PUC-Rio) - A vida social do livro: um estudo sobre representações sociais, cultura material e consumo; pesquisa livro, literatura e consumo; especialista em Edu. Infantil (PUC-Rio) e em Língua Portuguesa (UERJ); graduada em Letras (PUC) [email protected]. 1 PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8a10 de outubro 2014) associados, carregavam em sua imagem, quase que espontaneamente, seu arraigado apelo cultural e literário, ainda que muitas vezes estivessem, momentaneamente, desprovidos de seu valor primordial (a leitura). O presente artigo, portanto, busca refletir acerca da neutralidade do livro em ambientes e espaços contemporâneos, valendo-se da perspectiva material e dos principais pressupostos da arte neoconcreta na construção de uma reflexão que se propõe, sobretudo, apaziguar o desconforto produzido pela “transgressão” da prática em relação à parte do aporte teórico que conduziu todo o trabalho de pesquisa. Em seguida, buscamos a Teoria das Representações Sociais, baseada nos estudos de Émilie Durkheim, Serge Moscovici e Stuart Hall, para pensar a expressividade e importância de tal fenômeno na construção e sustentação da simbologia social contemporânea do livro, compartilhando modelos simbólicos que, sobremaneira, acreditamos, corrobora para nublar e desviar a neutralidade do objeto no contexto específico estudado. Este artigo pretende, ainda, portanto, sublinhar a importância da Teoria das Representações Sociais para os trabalhos científicos em Comunicação. Para um ensaio teórico sobre a neutralidade dos bens Ficou um pouco de tudo no pires de porcelana. (Carlos Drummond de Andrade. Resíduos) Poderíamos interromper o estudo da “vida social” do livro, sob a perspectiva da Antropologia do Consumo, sem suscitar grandes objeções, caso não tivesse emergido, naturalmente, um ponto hesitante nesta trajetória: como perceber este bem cultural simbolicamente revestido e, sobretudo, envolto por significados culturalmente cristalizados - como elemento (neutro) que adquire sentido somente a partir de seus usos sociais 4 ? Alcançando facilmente a segunda proposição – no contexto da pesquisa, os livros, de fato, apresentaram-se diferentemente a diferentes públicos 5 –, 4 A perspectiva antropológica do consumo sugere que os bens sejam neutros, e o que se revelaria social seriam apenas seus usos. Consultar Douglas & Isherwood (2004); Rocha (2006); e Barbosa e Campbell (2006). 5 Um colecionador, um arquiteto, um decorador, um amante da leitura, o dono de uma editora não compartilham do mesmo sentimento perante o livro. 2 PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8a10 de outubro 2014) pretende-se, neste momento, registrar o desconforto gerado pela aplicação da primeira parte da teoria antropológica do consumo à observação deste bem industrializado, impulsionado pela ilusão da universalização da comunicação (Chartier, 1998), construído culturalmente, e que, por estes motivos aqui citados, nos parece investido de valores sociais arraigados desde sua criação. Adverte-se, sobretudo, que, ainda que estivéssemos tratando de um elemento natural – uma pedra, a água do rio, a areia da praia –, ainda assim seria delicado, a partir de um entendimento particular, assumi-lo como neutro (ou “mudo”), em razão da dificuldade em extrair de seus conceitos todos os valores atribuídos socialmente. Avalia-se que, para os bens industrialmente produzidos, a relação entre a força cultural e o objeto seja ainda mais inerente, pois parece constituir a base de sua criação e produção. Citando Bourdieu (2011), difícil qualificar de modo “inocente” aquilo que é regido por apelos comerciais. Buscando aliviar o desconforto nos pressupostos da arte neoconcreta, sobretudo na teoria do “não-objeto”, proposta por Ferreira Gullar (2007), pretende-se fazer deste espaço um campo de reflexão da proposta de neutralidade dos bens, no que se refere, especificamente, à realidade da pesquisa. Esta necessidade (pessoal) justifica-se, em primeiro lugar, à medida que se revela, no estudo realizado, meio à identificação das particulares facetas do livro em campos de atuação pouco ou nada tradicionais, a permanência de seu indissociável significado simbólico, que (re)produz constantemente seu sentido social mais amplo. Observou-se que, independente do papel desempenhado – ornamento, reivindicador de status ou instrumento de leitura, ora funcionando como suporte, móvel, escultura, mesa de centro, prateleira ou apoiador de objetos -, o livro representa um elemento importante da cultura e tende a se apresentar, nas mais diversas ocasiões sociais, sempre acompanhado dos valores previamente atribuídos. Dito de outra forma, embora assuma diferentes funções sociais, quase todas elas apresentaram-se sustentadas por um valor cultural, mais forte e mais consistente, que abarca a circulação da variedade de sentidos que internaliza. Deslocado a outros espaços – que, embora não fossem idênticos, constituíam, no todo, locais orientados, direta ou indiretamente, por uma cultura letrada -, o livro 3 PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8a10 de outubro 2014) seguiu carregando o peso de elemento propagador de cultura e conhecimento, ainda que tenha se apresentado despido temporariamente desta função para agregar e acumular outras. No entanto, assumir que os diferentes usos sociais possibilitaram apropriações e experimentações distintas não significa, necessariamente, que tenhamos alcançado a compreensão do objeto como elemento privado de sentido, antes de qualquer contato. Esta percepção se faria mais automática e natural, caso a investigação estivesse detida, por exemplo, aos deslocamentos do livro a culturas fundamentalmente orais (iletradas), quando se imagina avaliar o objeto totalmente desprovido de sentidos cristalizados – ao menos, em um primeiro momento, porque, uma vez circulado, com o tempo, naturalmente seriam também agregados valores positivos ou negativos à sua imagem. Afinal, entende-se que, à semelhança do “pires de porcelana”, o livro, como qualquer outro bem cultural, absorve os conceitos sociais atribuídos, que passam a integrar, simbolicamente, seu “corpo” físico – que carrega, inevitavelmente, uma imagem social. No movimento artístico neoconcreto, pelo contrário, observamos que, propositadamente, os objetos não incorporam as significações anteriores, e, portanto, não induzem seus usos sociais. Por não possuírem função primordial a priori, os bens, nestes casos, à semelhança do que seria o livro para as culturas iletradas, revelam seus sentidos somente a partir da experimentação estética de cada sujeito em particular, promovendo uma imensa gama de significados, restrita, no entanto, às particularidades de cada contato. Isto observado, avalia-se que a arte contemporânea - especialmente aquela que trabalha com elementos não previamente classificados e classificáveis – funciona aqui, portanto, como plano prático ideal para chegarmos mais facilmente à compreensão dos pressupostos da teoria antropológica, à medida que explora um caso irrefragável excessivamente claro, a partir de uma análise pessoal -, daquilo que traduziria a neutralidade de um bem. Buscando aprimorar a proposta estética – que, em seus primórdios, ainda observava os significados e práticas habituais anteriores sufocando a tentativa de libertar a arte das significações prévias (Milliet, 1992) -, Ferreira Gullar (2007), um 4 PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8a10 de outubro 2014) dos principais expoentes do movimento neoconcreto, desenvolve a “teoria do nãoobjeto” (um objeto sem uso e sem lugar na classificação usual da arte), pela qual se limita o disparo da significação da obra e a revelação de toda a sua potencialidade à participação do espectador, essencialmente. Se Milliet (2007, p. 58) observa o “nãoobjeto” de Gullar como “um ser do mundo cultural que, por nada representar, é sua própria representação e, portanto, apenas significação”, o artista, por sua vez, acrescenta que este tipo de “arte” impregna-se de sentido apenas para aquele sujeito que a significou, transformando-se em “metáfora” daquilo que foi revelado, somente a partir de uma segunda interação sujeito-obra. Embora o livro tenha sido observado por Gullar (2007, p. 57) como o despertar do movimento, visto ser um objeto “manuseável”, tridimensional e provocador de ações, pressupõe-se, para fins deste estudo, que o processo pelo qual trafega desloca-o ao “lugar” da “segunda contemplação”, uma vez observado que o objeto participa, no contexto letrado pesquisado, de conceitos e funções pré-determinados. Em outras palavras, mesmo destituído de contato, o livro tende a irradiar sua forte carga de significação: ao contrário do “não-objeto”, não “oculta” nem “guarda” (Gullar, 2007) do espectador aquilo que significa previamente, salvo em situações especiais como a da sua inserção inicial em culturas iletradas. A partir da consideração de Gullar (2007, p. 95) que avalia que, de modo geral, “pelas conotações que o nome e o uso estabelecem entre o objeto e o mundo do sujeito, pode o objeto ser apreendido e assimilado pelo sujeito” (p. 95), voltamos a pensar o livro, no contexto específico da pesquisa, distante do conceito do “nãoobjeto” e da categorização de objeto “mudo”, uma vez que ele significa a priori - não somente por participar de um sistema ativo de comunicação, que transmite sentidos instantaneamente, mas, principalmente, por estar categorizado nominalmente, ser apoiado na forma material e ser revestido culturalmente por um sólido caráter simbólico: o livro possui nome, função e usos induzidos que tendem a ser anteriores a qualquer interação. Ao contrário do “não-objeto” da arte contemporânea, que se define como “um corpo transparente ao conhecimento fenomenológico que se dá à 5 PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8a10 de outubro 2014) percepção sem deixar resto, uma pura aparência” (Gullar, 2007, p. 90), o livro inserese na cultura, deixa rastros sociais e não se fecha na materialidade - ainda que muito de sua significação cultural dependa intrinsecamente de sua forma material, de seu caráter visível e palpável, para comunicar valores e juízos 6, ao menos na observação da realidade estudada. Se o estudo do livro não foi suficiente para alcançar o estímulo provocado pela proposta antropológica, por outro lado, encontramos no projeto “NBP” - Novas Bases para a Personalidade (FIG.1) -, do artista plástico Ricardo Basbaum 7 , um novo caminho de reflexão. Ao criar um artefato “inédito”, vazio, sem nome e “coisa”, restrito à apresentação de si mesmo, que depende necessariamente da participação do espectador 8 para disparar sua significação, o curador estimula, consequentemente, a produção de reações e experimentações desprovidas de automatismos e préexpectativas. Para fins da pesquisa, o “NBP”, esperando o manuseio, despido de funções e usos sociais definidos previamente, ilustraria não apenas a teoria do “nãoobjeto” como a proposta de neutralidade dos bens. Diferente do livro - que não se mostrou neutro nem tampouco imprevisível nos contextos observados -, o “NBP” mostra-se esvaziado de sentido cultural; imprevisível e irreconhecível socialmente9; não classificável pré-experimentação; e não familiarizado fisicamente – pelo menos, até segunda ordem, porque, dependendo do desfecho cultural das significações acrescidas ao objeto, esses valores atribuídos individualmente podem vir a tornar-se juízos arraigados, assim como se pressupõe ocorrer com os livros inseridos em culturas iletradas. Nas mais diversas incursões culturais, a título de exemplificação, foram atribuídas ao “NBP” funções das mais variadas - tanque para peixe, em Valparaíso 10; mesa de centro 11, em Florianópolis; e banheira infantil, em Villach 6 Objetos sem nome são, segundo o poeta, inabordáveis (Gullar, 2007). Ricardo Basbaum foi um dos conferencistas da disciplina Ciclo Depois do Modernismo, oferecida pelos departamentos de Letras e Comunicação Social da PUC-Rio no ano de 2012 e toda a referência ao artista deve-se, primeiramente, ao resultado destes encontros. 8 Sujeitos de diferentes países, que se propuseram vivenciar uma nova experiência estética. 9 Trailer do documentário “NBP”, em: http://www.youtube.com/watch?v=gfMmwBQ1xNY depoimento de um artista que considera ter conseguido anular o objeto de arte, ao banalizá-lo. 10 Ref. http://www.youtube.com/watch?v=TNMKcDLr4JQ. 7 6 PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8a10 de outubro 2014) (FIG. 2) – que, sendo restritas a interações individuais, não interferiram umas nas outras. FIG. 1 - o objeto NBP FIG. 2 – o objeto NBP significado como banheira No entanto, em objetos comuns, ainda que a presença em novos meios sociais, e também a arte, atribuam-lhes novos e diferentes significados, avalia-se que as respectivas significações originais dificilmente se anulam por completo: a faca, como observa o artista mexicano Moris 12 , ainda que possua significação distinta em diferentes usos sociais, - e aqui podemos estabelecer um paralelo com a segunda proposição da proposta antropológica do consumo -, continua sendo um artefato que remete à ação do corte. No que se refere ao livro, seu uso primordial parece ainda constituir fator determinante, ainda que indiretamente, em sua seleção para outros espaços sociais, pontuando, mesmo nas relações estéticas, uma espécie de tributo à leitura, à cultura e ao conhecimento. Neste sentido, se fôssemos aproximá-lo de alguma nomenclatura neoconcreta, arriscaríamos defini-lo como “quase-objeto” (Gullar, 2007), uma vez que se apresenta frequentemente como um bem representado, que, à imagem e semelhança do “primeiro”, nunca se mostra totalmente desprendido de sua fonte. Ainda que algumas interações transformem “radicalmente” seu comportamento social, dificilmente o observamos desassociado integralmente de seu sentido original (consultar, em relação à dimensão artística, o depoimento de Ricardo Basbaum 13). No entanto, romper com o convencionalismo do livro, arrancando-o dos espaços tradicionais para circulá-lo socialmente, participá-lo das mais variadas relações sociais e integrá-lo às práticas habituais - via os mesmos planos material, simbólico e 11 Ref. http://www.nbp.pro.br/blog.php?experiencia=44. Teaser da 30ª Bienal de SP – Moris: http://www.youtube.com/watch?v=FwY7R1j38fA. 13 Teaser da 30ª Bienal de SP – R. Basbaum: http://www.youtube.com/watch?v=x0w5ocZbauw. 12 7 PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8a10 de outubro 2014) significativo utilizados por artistas como Lígia Clark no intuito de confrontar os tradicionalismos da arte (Gullar, 2007) -, também o expõe a afastamentos do uso original para assimilação de novos sentidos produzidos, por exemplo, por “ações reais sobre o suporte material” (Gullar, 2007). Talvez este configure um dos poucos casos no qual se confirma a proximidade do objeto investigado ao conceito de neutralidade. No estudo realizado, a ocorrência que mais se aproximou do desapego total ou parcial da prática da leitura ou dos valores culturais associados foi a referência às esculturas do artista plástico Alejandro Somaschini 14, que, a partir de uma intervenção estética, transforma livros em arte – uma interferência que, sobretudo, se assemelha à ação de Lygia Clark 15, quando, na obra Casulos, em vez de pintar a tela, age fisicamente sobre ela. Logo, o livro, assim como a pintura (Gullar, 2007), ao conquistar os mais diversos espaços, também encontra formas legítimas de participação da vida social coletiva. Por fim, estabelecer um paralelo com a produção artística neoconcreta possibilitou avaliar os novos ambientes conquistados pelo livro16 a partir da analogia ao movimento de supressão da moldura na pintura17 - primeira ação de libertação do suporte (o quadro) que, posteriormente, prolifera as relações sociais da obra de arte. Infere-se, portanto, que a supressão do rigor formal da função original do livro constitui um dos fatores que o conduz a espaços cotidianos, esvaziando-o do “caráter convencional de ficcção” para envolvê-lo “aos demais valores sociais” (Gullar, 2007), assim como ocorre com a arte - embora, diferente do grau de desapego alcançado pelo “não-objeto”, seus significados, suas relações de uso e seus hábitos cotidianos, mais do que suas qualidades formais, ainda fundamentem a maior parte de suas aparições 14 Homenageado pela arquiteta Gisele Taranto, que fez referência ao seu trabalho no espaço Lounge do Hotel do Casa Cor 2012. 15 Artista adepta ao neoconcretismo, Lygia Clark associa o livro à cultura e conhecimento ao declarar sua ignorância livresca: “nunca tive cultura nenhuma, mas devo a pessoas como Mario Pedrosa, Mário Schemberg, Ferreira Gullar, minha formação cultural. Eu não lia nada, eles liam muito e conversavam comigo” (Milliet, 1992, p. 21). 16 Leia-se: cenas políticas, decoração, cenários midiáticos, construção de personagens, etc. 17 Quando, no campo da pintura, os artistas do movimento neoconcreto diminuíram a importância da representação de objetos na tela e se voltaram, sobretudo, para a superfície do suporte, o quadro tornou-se a própria obra de arte, abrindo-se a novas relações. 8 PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8a10 de outubro 2014) sociais na cultura letrada analisada. Mas, se o neoconcretismo reduziu a obra a um “objeto” auto-significante, que nada representa (Gullar, 2007), este ainda não parece ser o lugar do livro, que, enquanto capital literário, no mínimo simboliza posse de recurso cultural, atribuindo “capital social e intelectual” (Bourdieu, 2011), respeito e honra ao sujeito, além de permitir a construção de sentidos a partir da própria composição (a escrita) e promover interpretações tanto a partir do conteúdo (pela leitura textual) quanto da forma (pelas leituras estética e cultural). Considera-se, portanto, que, se na arte, a anunciação do fim do quadro como lugar da pintura envolveu a busca por novos espaços para esta manifestação artística, no caso do livro, além da busca por novos meios para a escrita, o anúncio do fim do suporte material, entre outros indícios, parece ter promovido - ou acentuado – o desejo de extraí-lo do lugar do sacrário para envolvê-lo em novas relações, que, sobretudo, complementam seu valor de base. Books not only enrich the mind – they are increasingly designed to appeal the eye. From towers to tableaux, from colour-coded stacks to leather-bound tomes on tables, the book’s ability as an aesthetic aid should not be underestimated. 18 (Thompson, 1962, p. 13). Enquanto Mondrian profetizou o fim do quadro e a integração da pintura na arquitetura (Gullar, 2007), a sociedade contemporânea, enquanto profetiza o fim do livro impresso, simultaneamente eleva o valor cultural de sua materialidade e o transforma em símbolo legítimo de cultura. Por analogia à teoria de Gullar (2007) em relação à arte, pressupõe-se que, enquanto a “casca histórica” do livro permanece nas bibliotecas, sua “significação viva” (Gullar, 2007) circula vigorosamente por outros espaços. De todo modo, mostrou-se interessante observar o objeto de estudo segundo este “tecido de significações e intenções que constitui o mundo humano” (Gullar, 2007) – o mesmo que o permite deslizar, de modo prestigioso, do nível conceitual ao nível prático e estético. “Os livros não só enriquecem a mente - eles estão cada vez mais projetados para atrair a atenção. De torres a mesas de centro, das pilhas coloridas aos volumes de couro expostos sobre as mesas, a capacidade do livro como auxílio estético não deve ser subestimada”. (Thompson, 1962). 18 9 PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8a10 de outubro 2014) A Teoria Das Representações Sociais Émile Durkheim, Serge Moscovici e Stuart Hall, para os objetivos das discussões que aqui são propostas, são autores-chave para a compreensão da enorme participação das mídias no trabalho de tecer laços, pontos e nós que configuram o mundo que nos rodeia, simbolicamente. Vale a pena, então, retomá-los, brevemente, em suas ideias centrais, fundamentais para o entendimento das proposições aqui postas. Um dos precursores e, ao lado de Karl Marx e Max Weber, um dos “pais” da Sociologia, Émile Durkheim dedicou algumas de suas obras para a discussão do que havia de simbólico na relação dos homens com a natureza e com os seus pares. É deste autor a primeira teoria sobre a construção das imagens mentais que estabelecem uma relação entre o mundo externo e o mundo interno do homem, se assim se pode chamar. Os conceitos de “representações coletivas” e “representações individuais” (Durkheim, 1970) sustentam quase todas as outras teorias sobre as representações sociais que depois vieram. Para Durkheim, a sociedade cria e determina o indivíduo. Há uma força coercitiva exterior e geral que tem por função manter a coesão social e tudo, na sociedade, deve obedecer a esta lei. As relações pessoais entre os membros da sociedade tecem os fios do cotidiano e as ideias coletivas, necessárias para que se estabeleça e se mantenha a comunicação, uma espécie de cimento social. Processos mentais individuais criam vínculos entre os objetos, externos, e as ideias, coletivas. Mas é a síntese dessas representações individuais, e não exatamente a soma de cada uma de suas unidades, que forma as representações coletivas; elas têm “vida própria”, e são realidade independente, até certo ponto, dos indivíduos. Por serem exteriores e coercitivas, as representações coletivas são acessadas permanentemente, por força da coesão social. Pelo mesmo motivo, servem de referência para as novas representações coletivas que nascem, e isso só é possível devido a uma “memória mental” do indivíduo; sem ela, não se dariam os “reajustes” necessários, com a contribuição de representações mais antigas. Para Durkheim (1970), ainda, as representações são 10 PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8a10 de outubro 2014) “fenômenos reais” e, postas em confronto, se assemelham, se diferenciam, se contrastam, pois que têm autonomia entre si; podem, portanto, agir e reagir entre si. Um século depois de Durkheim, muitos teóricos continuaram evocando as teorias do sociólogo francês a fim de sedimentar o que se tornaria uma das bases para a formulação de uma Teoria das Representações Sociais, principalmente no campo da Psicologia Social, onde ela se desenvolve. Serge Moscovici (2011) torna-se um dos mais expoentes destes teóricos, e suas ideias têm sido bem recebidas no campo da Comunicação, por atribuir importantes papeis à interação social e aos meios de comunicação no processo de construção das representações sociais. E é exatamente este o ponto que sustenta a Teoria das Representações Sociais do romeno Moscovici (2011): as representações sociais são, também, um processo, ou, como ele próprio afirma, um fenômeno, e não um conceito, como antes havia proposto Durkheim que, embora faça referência a “fenômenos reais”, não o faz em termos de processo, mas de unidades mentais, em um sentido positivista e determinista. Ao apresentar o sociólogo francês como uma referência fundamental para o seu trabalho, Moscovici (2011) aponta para a divergência que o faz desenvolver uma teoria das representações sociais, e não coletivas - no sentido de que há uma dinâmica comunicacional nas relações sociais que se impõe sobre a forma coercitiva da coletividade. Isso implica em desenvolver uma teoria que se concentre mais na maneira como uma representação social é elaborada, do que nela – forma, conteúdo, simbologia - em si. Longe de afirmar que isso importa pouco para Moscovici, mas é mesmo na atenção sobre o fenômeno que sua teoria das representações sociais contribui, e muito, para alguns estudos no campo da Comunicação, especialmente aqueles que se esforçam em conhecer, como diria o próprio Durkheim, a “marca de origem” de uma representação, ou seja, a sua forma original, datada, histórica. Para tanto, Moscovici (2011) elabora dois conceitos: a “ancoragem” e a “objetivação”, em que a primeira refere-se à necessidade de se buscar representações anteriores para que se criem novas representações sociais e, a segunda, ao processo de vinculação da ideia com o objeto concreto. O teórico apresenta, ainda, a ideia de “familiaridade”, onde, talvez, resida o 11 PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8a10 de outubro 2014) que há de mais durkheimiano em sua teoria, já que trata da necessidade de tornar conhecido o que está fora do repertório circulante e já instituído dentro do grupo social, ou seja, o que é “não-familiar”. E isso garante, pode-se dizer, uma harmonia ontológica para o indivíduo em sociedade. Os meios de comunicação, diante da perspectiva moscoviciana, têm uma função indispensável nos processos de ancoragem e objetivação, e também de familiarização das ideias, de elaboração das representações sociais. Dentre outros autores que poderiam ser aqui mencionados ao lado de Durkheim e Moscovici, Stuart Hall (1997) foi o escolhido por, também, evidenciar a importância da comunicação para as representações sociais. Para Hall, pode-se considerar três abordagens teóricas: a reflexiva, a intencional e a construtivista. Na reflexiva, a linguagem procura refletir a realidade, tal qual um espelho; na intencional, o sujeito que fala impõe um significado através da linguagem; e, na construtivista (que Hall assume como a que norteia os Estudos Culturais), há uma dinâmica social na linguagem, que é elaborada a partir dos significados tecidos pelas representações sociais. Para construir a trajetória desta última abordagem, Hall (1997) começa com a linguística e a arbitrariedade do signo de Saussure, depois recorre à semiótica de Barthes e, por fim, o discurso, de Foucault. A Teoria das Representações Sociais oferece, portanto, um aporte teórico importante para o campo da Comunicação, como o tem feito há mais de quarenta anos, e, não por acaso, serviu de base e sustentação da pesquisa A vida social do livro, estudo que construiu seu corpo, sobretudo, a partir da observação das representações do objeto na literatura, no campo da decoração e no discurso midiático. Juntas, essas três forças contribuíram para revelar os valores contemporâneos do objeto e mapear as possíveis motivações de suas novas ambiências, vivências e relações. Sugeriu-se que o valor social do livro, da leitura e dos intelectuais seja construído, em primeira instância, pela literatura, uma vez que, ao reverenciar o objeto em seu conteúdo, edifica e canoniza sua imagem, e enaltece os leitores, motivando, assim, relações reais ou arbitrárias, baseadas, sobretudo, no reconhecimento social desse universo – o 12 PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8a10 de outubro 2014) literário. Por outro lado, a importância da mídia se concretiza na sustentação do simbolismo do livro, e também em sua produção, uma vez que, em larga escala, atualiza as significações de consumo do objeto e estimula o reconhecimento automático entre o bem material e seu significado social e cultural atrelado. Arriscaríamos afirmar que, enquanto a mídia e a literatura promovem incentivos distintos de “degustação” do livro, ampliando sua força social, a decoração, funcionando aqui como uma das novas instâncias de consumo do objeto, estaria inclinada a manter, circular e renovar esse sistema de classificação e significação social sustentado pelos discursos anteriores, ao passo que, além de reproduzir os valores circulados pelos discursos literário (conhecimento, saber, suporte de leitura e sacralidade) e midiático (tradição, memória, saber, educação, estética e modernidade), incentiva e solidifica novas funções estéticas, ambiências e relações do livro, ao utilizá-lo como prateleira suspensa, mesa de centro, apoiador de pequenos objetos e esculturas de chão (vide Casa Cor Rio, edições 2011 e 2012) e incorporá-lo em ambientes antes inusitados, tais como cozinhas, toiletes, SPAs e chapelarias. Considerações Finais A pesquisa A vida social do livro, de todo modo, assimilou a materialidade, a força simbólica do livro e o valor social da leitura como as principais bases pelas quais se fortalecem a imagem e a valorização do objeto na contemporaneidade. Nesse processo, a mídia assume, portanto, um papel relevante, à medida que categoriza os bens e atualiza as significações, circulando, validando e promovendo, incessantemente, suas representações sociais correspondentes. O estudo, com base nessa perspectiva, identificou o modo pelo qual os livros são “catalogados” contemporaneamente pelos discursos sociais, observando, inclusive, a transformação e a aplicação da sua imagem na definição de conceitos. Se, neste sentido, como se vê, tomamos a representação como “matriz do conhecimento”, que organiza o mundo para o sujeito (Rocha, 1995), reafirmamos, portanto, considerar haver uma redução significativa, em virtude desta colocação, das brechas que 13 PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8a10 de outubro 2014) permitiriam ao livro a neutralidade plena. Ao partilhar modelos simbólicos do livro associado ao conhecimento, ao status social, à educação, à cultura, promovendo sempre um discurso nobre e positivo em relação ao objeto, o discurso midiático contribui fortemente para a disseminação e manutenção de “convenções preliminares de significação” (Moscovici, 2011). Portanto, amarrado a discursos anteriores à efetiva participação nas diferentes esferas sociais, comprovar a proposta antropológica da neutralidade dos bens, no caso específico do livro, tornou-se um desvio de validação complexa. [as representações] convencionalizam os objetos, pessoas ou acontecimentos que encontram. Elas lhes dão uma forma definitiva, as localizam em uma determinada categoria e gradualmente as colocam como um modelo de determinado tipo, distinto e partilhado por um grupo de pessoas [...] Essas convenções nos possibilitam conhecer o que representa o quê. (Moscovici, 2011, p. 34). Quando os livros são exibidos como pano de fundo dos discursos de políticos nas eleições a prefeito e vereador nas eleições de 2011, decorando lares de socialites ou sendo exibidos constantemente em mostras de arquitetura e decoração - aparições distantes da assimilação do objeto enquanto suporte de leitura - observa-se, em paralelo, haver um discurso social poderoso afirmando a legitimidade do objeto, da cultura literária, do universo livresco que custam a ser dissociados de sua aparição pública. Moscovici (2011) confere à mídia - enquanto “processo de influência” - a função de legitimar o conhecimento e estabilizar as representações, que, a esta altura, alcançam um caráter “ultra” simbólico, uma vez percebidos unificados os aspectos “icônico” e “consensual” dos elementos figurados. Os livros, promovidos a símbolos relacionais da força do intelecto, crescem na escala de valores sociais e tranformam-se em mais um modelo de identificação na contemporaneidade. Culturalizados, através da importante e intensa contribuição dos veículos de comunicação, tornam-se “elemento codificado de estatuto social” (Baudrillard, 1995). As representações midiáticas do saber, da inteligência, da cultura e da sofisticação (intelectual e material) – conceitos que dialogaram com o objeto da 14 PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8a10 de outubro 2014) pesquisa – podem, portanto, ser consideradas um fenômeno culturalmente construído que produz simbolismos ao passo que promove objetos socialmente equivalentes a essas definições e pelos quais os sujeitos atribuem valores às suas identidades por meio do consumo dos bens envolvidos. A proposta de Douglas e Isherwood (2004) que confia aos rituais 19 - e à eficácia do uso da cultura material para sua sustentação – a promoção e o reconhecimento das convenções sociais que as categorias de produto carregam, também funciona como alicerce para o desenvolvimento das reflexões aqui conduzidas. A partir do pressuposto destes autores, pode-se considerar que, participando como “acessório ritual” da cultura e da mídia, cuja pretensão também está em estabelecer associações constantes e facilmente identificáveis, o consumo do livro constrói sentido socialmente, apoiado, sobretudo, em uma forte ostentação da cultura literária 20 , que consolida sua imagem social, o lança a novos cenários e permite maior diversificação de uso. Referências BAUDRILLARD, Jean. A Sociedade de Consumo. Lisboa: Edições 70, 1995. BOURDIEU, Pierre. A Distinção: crítica social do julgamento. Porto Alegre: Zouk, 2011. DOUGLAS, Mary; ISHERWOOD, Baron. O Mundo dos Bens: para uma antropologia do consumo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004. MOSCOVICI, Serge. Representações sociais: investigações em psicologia social. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. ROCHA, Everardo. Os bens como cultura: Mary Douglas e a antropologia do consumo. In: DOUGLAS, Mary e ISHERWOOD, BARON. O Mundo dos bens: para uma antropologia do consumo. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004. _______________. Um índio didático: nota para o estudo de representações. In: ROCHA, Everardo et al. Testemunha ocular. São Paulo: Brasiliense, 1995. 19 Conceito que foi, neste estudo, estendido à mídia, por também se tratar de um discurso produtor de ritos, símbolos e mitos, através dos valores morais e culturais disseminados. 20 Bourdieu (2011) observa que a exibição da “cultura literária” se traduz em ostentação, assim como ocorre com outras obras consideradas “legítimas”, como a pintura e o teatro. 15